geografia escolar: reflexões sobre conhecimentos

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XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
GEOGRAFIA ESCOLAR: REFLEXÕES SOBRE CONHECIMENTOS
ARTICULADOS NA TEORIA E NA PRÁTICA DOCENTES
Lana de Souza Cavalcanti
Universidade Federal de Goiás
Resumo
O texto aborda o tema das práticas de integração entre conhecimentos pedagógicos e
conhecimentos disciplinares no processo de ensino e aprendizagem em Geografia.
Considera-se que esse é um tema das Didáticas específicas e das metodologias de
ensino, uma vez que a Didática é justamente o campo da educação que se ocupa da
reflexão sobre o processo de ensino e de aprendizagem e as relações que nele estão
presentes, entre teoria do conhecimento, psicologia do desenvolvimento e da
aprendizagem e os conteúdos e métodos particulares das ciências. Nesse entendimento,
pressupõe-se que para ensinar Geografia não basta saber o conteúdo a ser ensinado, mas
se requer conhecimentos pedagógico-didáticos específicos. Tal linha de reflexão
procura destacar as diferenças entre a estrutura das disciplinas escolares - Geografia
escolar - e a dos ramos científicos de referência - Geografia acadêmica -, entendendo
que entre elas não há uma relação de hierarquia, uma transposição direta ou mecanismos
de simplificação, mas mediações didáticas. Além disso, ressalta que as indicações
teórico-práticas para a Geografia escolar, no âmbito das didáticas específicas, são um
dos modos de promover as necessárias articulações entre os conhecimentos geográficos
e os conhecimentos pedagógicos.
Palavras-chave: Ensino e aprendizagem em Geografia. Geografia acadêmica.
Geografia escolar. Pensamento geográfico.
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Geografia acadêmica e Geografia escolar: duas estruturações da ciência geográfica
No desenvolvimento das ideias que busco desenvolver neste texto, parto de um
entendimento de que a ciência geográfica se estrutura em, pelo menos, duas
modalidades práticas, que são a Geografia acadêmica e a Geografia escolar. A
Geografia acadêmica é o conjunto de conhecimentos formulados por geógrafos
investigadores, na maior parte ligados à academia, que, tendo como referência a história
dessa ciência e os cânones do conhecimento científico em suas diferentes matrizes
teórico-epistemológicas, vão construindo, dentro de suas inúmeras linhas de trabalho (as
especialidades tradicionais e as novas/renovadas), teorias, postulados, sistemas e
classificações, com o intuito de aprimorar mais e mais a compreensão e análise do
mundo, na perspectiva espacial. A Geografia escolar, por sua vez, abriga um conjunto
de conhecimentos que são estruturados e veiculados na prática docente dos professores
em escolas de diferentes níveis de ensino, com o objetivo de compor o objeto da
formação escolar de seus alunos. Para sua estruturação, as referências são, de um lado,
os conhecimentos geográficos acadêmicos (Geografia acadêmica e didática da
Geografia), e, de outro, saberes escolares da tradição, destacando-se a própria Geografia
escolar já constituída. No trabalho docente, há uma tarefa permanente e dinâmica de
composição dessa Geografia; para sua realização, o professor dispõe: da experiência
pessoal com a aprendizagem desse conteúdo; de suas experiências anteriores com o
ensino desse conteúdo; de livros didáticos e outros materiais de indicação de conteúdos;
de experiências e materiais didáticos produzidos por colegas; de uma estrutura de
funcionamento e de encaminhamentos de formas de trabalho com o conteúdo de ensino
na escola em que trabalha; dos conhecimentos científicos que ele possui sobre esses
conteúdos (que provém de sua formação inicial e em exercício), entre outras referências.
Em outros textos (CAVALCANTI, 2010, 2011, 2012) procuro explicitar o
entendimento dessas diferenças, com a convicção de que ele ajuda a esclarecer seus
processos de constituição e a interdependência relativa entre elas. Em outros termos,
indico minha compreensão de que há entre elas uma relação, uma referência comum,
que é o próprio estatuto epistemológico da ciência geográfica, mas essa relação e essa
referência não significam uma identidade. A discussão a respeito da dinâmica e da
complexidade do processo de constituição da ciência geográfica e de suas modalidades
amplia a compreensão de que a Geografia que se ensina não é uma transferência
“simplificada” dos conhecimentos produzidos na ciência, mas é uma composição
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peculiar, dependente de vários fatores, o contexto escolar, o universo cultural dos
agentes da escola e a capacidade de elaboração autônoma das propostas do professor.
Para pautar essa discussão, as reflexões sobre currículo são pertinentes e
esclarecedoras. As discussões sobre a natureza e os processos de constituição dos
conhecimentos/saberes veiculados na escola são realizadas primordialmente por
especialistas na área de currículo e por teóricos da didática, que buscam compreender os
conteúdos como um dos componentes fundamentais do processo de ensino e de
aprendizagem. Lopes e Macedo (2011) fazem um apanhado de diferentes contribuições
teóricas a esse respeito e apresentam uma classificação que agrupa algumas delas em
torno de posicionamentos comuns. Há, conforme as autoras, as seguintes perspectivas:
1- Perspectiva acadêmica: defende a existência de regras e métodos racionais/científicos
de validação de saberes – nem todo saber é conhecimento. Os conhecimentos válidos
são os científicos, que se constituem com base em critérios neutros e racionais de
validação. A resposta à pergunta sobre qual conhecimento deve ser ensinado na escola é
encontrada na lógica dos conhecimentos disciplinares acadêmicos, sendo o
conhecimento escolar derivado da estrutura das disciplinas acadêmicas;
2- Perspectiva instrumental: entende que o conhecimento tem por principal referência a
razão instrumental – é a razão que busca sua legitimação pelo atendimento eficiente a
determinados fins. Nesse sentido, o conhecimento relevante a ser ensinado na escola
deve ser aquele capaz de ser traduzido em competências, habilidades, conceitos e
desempenhos passíveis de serem transferidos e aplicados em contextos sociais e
econômicos fora da escola;
3- Perspectiva progressivista – postula que os campos do conhecimento humano
representam um corpo de verdades a ser utilizado para a descoberta de novos
problemas, novas pesquisas e conclusões. Nesse sentido, o conhecimento é
centralmente embasado na experiência das pessoas, visando a determinados fins, que
devem estar vinculados ao bem-estar da humanidade, à possibilidade de construção da
democracia. Segundo as autoras, essa perspectiva introduz a ideia de currículo não
dependente apenas da lógica dessas disciplinas, incluindo a dimensão psicológica;
4- Perspectiva crítica – conecta o conhecimento com os interesses humanos, a hierarquia
de classes, a distribuição de poder na sociedade e a ideologia. Ela está interessada em
compreender os processos que estão envolvidos na constituição do conhecimento
escolar, problematizando a respeito dos motivos que levam a que determinados
conhecimentos sejam selecionados para a composição dos conteúdos curriculares e
outros não. Sua análise focaliza como a estrutura político-econômica e social atua
nesses processos, articulando assim as discussões e definições do currículo com a
estrutura de poder na sociedade.
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Ainda que se considere, conforme alertam as autoras, que em cada um desses
grupos de referência há inúmeras diferenças, percebe-se as bases distintas dessas quatro
possibilidades de compreensão dos currículos. Defende-se uma das perspectivas – a
perspectiva crítica – como a que melhor fundamenta as relações e as distinções entre
Geografia acadêmica e escolar. A perspectiva crítica, em síntese, entende que o
currículo de disciplinas específicas é uma produção cultural, é um modo peculiar de
configuração dos saberes que está voltado para finalidades educativas específicas.
Assim, enfatiza-se a compreensão de que a relação entre essas duas modalidades da
Geografia não é de transferência ou de reprodução simplificada, pois ocorre o processo
de produção, de elaboração da Geografia escolar pelos sujeitos envolvidos. Nessa
concepção, os professores não são apenas reprodutores do currículo, eles são também
seus construtores. Contudo, para introduzir inovações, há que se reconhecer o contexto
e as possíveis orientações que devem levar em conta na sua atividade, refletindo-se
criticamente sobre o real e o possível que se apresentam na prática cotidiana.
A Geografia escolar na escola contemporânea: realidades e possibilidades
Para compreender a prática da Geografia escolar, sua realidade e suas
possibilidades de cumprir demandas da formação, há que se compreender como ela se
constitui em sua relação com os conhecimentos acadêmicos de referência.
Tomando como base um levantamento feito de teses e dissertações em
Programas de Pós-graduação em Geografia, defendidas entre 2000 e 2009 (CALLAI,
CASTELLAR E CAVALCANTI, 2011), verifica-se um aumento expressivo do número
de estudos sobre diferentes temáticas ligadas ao ensino de Geografia. No entanto,
identificam-se poucas investigações que tratam especificamente da instituição da
Geografia escolar. Sabe-se que estudos em nível de pós-graduação sobre essa temática
também são realizados junto a Programas de áreas correlatas, como os de Educação,
indicando que também neles existe, em alguma medida, uma preocupação com a
questão. Investigar a totalidade desses estudos extrapola os limites desse texto, mas é
pertinente apresentar nessa parte reflexões sobre a articulação entre conhecimentos
pedagógicos e disciplinar em Geografia presentes em alguns desses estudos. O quadro a
seguir destaca os estudos que serão considerados para essa análise:
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Estudos recentes na pós-graduação sobre a temática da Geografia escolar e
Geografia acadêmica
Título
A educação geográfica
escolar: conteúdos e
referências docentes
Desenvolvimento
Profissional de professoras
de Geografia: contribuições
de um grupo de estudos
sobre o ensino de
Localidade
Em busca de uma
epistemologia de Geografia
escolar: a transposição
didática
Saberes docentes sobre
Geografia urbana escolar
A Geografia escolar na
prática docente: a utopia e
os obstáculos
epistemológicos da
Geografia crítica
Por uma outra Geografia
escolar:
O Prescrito e o realizado na
atividade de ensinoaprendizagem de
Geografia
Um olhar sobre a trajetória
da Geografia escolar no
Brasil e a visão dos alunos
de ensino médio sobre a
Geografia atual
Aprender e ensinar
Geografia: a visão de
egressos do curso de
Pedagogia da UEFS –
Universidade Estadual de
Feira de Santana
Autor
Manoel
Martins de
Santana Filho
Célia Batista
dos Santos
Tipo
Tese de
doutorado
Ano de publicação
2010
Instituição
USP
Tese de
doutorado
2007
UFSC – São
Carlos
Marcelo
Oliveira de
Faria
Tese de
doutorado
2012
UFBA
Karla
Annyelly
Teixeira de
Oliveira
Nestor André
Kaercher
Dissertação de
Mestrado
2007
UFG
Tese de
Doutorado
2004
USP
Mônica de
Toledo e
Silva
Spegiorin
Dissertação de
Mestrado
2007
PUC-SP
Rodrigo
Bezerra
Pessoa
Dissertação de
Mestrado
2007
UFPB
Maria
Cleonice
Barbosa
Braga
Tese de
Doutorado
2006
UFSC (São
Carlos)
Esses estudos abordam a temática da distinção e da constituição das diferentes
modalidades da Geografia: a Geografia Acadêmica e Geografia escolar. São relevantes
para melhor compreender limites e possibilidades das práticas do ensino de Geografia.
Para essa abordagem, partem do princípio, tal como na primeira parte do texto, de que
entre as duas formulações da disciplina não há equivalência, e se utilizam das
contribuições de Chevallard (1995) – transposição didática; de Shulmann (apud
SANTOS, 2007), conhecimentos pedagógicos do conteúdo; e de Lopes (1997),
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recontextualização e mediação, para demonstrar a dinâmica na formulação dos saberes e
dos currículos escolares. Em alguns estudos, esses autores são tomados em
complementação (por exemplo, cf. SANTANA FILHO, 2010), em outros, se faz opção
por um deles (por exemplo, cf. FARIA, 2012). A utilização de um ou mais desses
autores parece se sustentar na tentativa de fundamentar uma compreensão que
contempla, de modo complexo, os determinantes sócio-políticos e os epistemológicos
na constituição de disciplinas e de conteúdos escolares.
Predomina a concepção de que há um fundamento epistemológico comum entre
as duas formulações, uma identidade do campo baseada na ideia de distinção da
Geografia. Essa área (nas duas formulações) se identifica por construir um olhar, um
modo de abordar a realidade, baseado em categorias, conceitos, princípios lógicos, que
culminam em uma análise espacial. Ou seja, na escola, a disciplina trabalhada com a
denominação de Geografia tem como principal referente de seus conteúdos a Geografia
produzida no âmbito da pesquisa, porém, dela se distingue por suas finalidades, daí a
necessidade das referências pedagógico-didáticas, já que ela ganha sentido nesse
contexto quando contribui para o desenvolvimento intelectual dos alunos.
A falta de clareza sobre essa questão tem provocado alguns problemas na
formação e na prática docentes dessa área: 1- Os professores formadores, os
especialistas
em
conteúdos
disciplinares
(por
exemplo:
Geografia
Urbana,
Geomorfologia, Geopolítica), quando não percebem a distinção entre o conjunto de
conhecimentos que eles tomam como referência em sua especialidade e a estruturação
desses conhecimentos para fins de ensino, acabam disseminando uma ideia de que a
“passagem” de um âmbito a outro é automática, por isso essa discussão não faz parte de
sua ação docente; 2- Os alunos/futuros professores não tem oportunidade de
problematizar esse tema quando estão estudando as disciplinas do seu curso, e acabam
se concentrando nos conteúdos que tem de aprender sem se preocuparem muito com sua
função no ensino básico. 3- Por sua vez, os professores que ingressam no magistério e
se deparam com a Geografia escolar e suas demandas ficam, muitas vezes, angustiados
porque não “aplicam” em sua atividade diária a Geografia que aprenderam na
Universidade. 4- Os professores que estão há mais tempo na escola básica são, de certa
forma, ambíguos em relação ao saber acadêmico, por vezes tem com ele uma relação de
submissão, crendo que são os conhecimentos produzidos nas Universidades os únicos a
serem considerados corretos e adequados; por vezes, os desconhecem e os negam, por
entender que são excessivamente teóricos e distanciados da realidade da escola.
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Como encaminhar de modo produtivo essa questão? Como promover maior
aproximação entre conhecimentos estruturados na academia e na escola? Como garantir
uma reflexão em ambos os espaços sobre as relações entre esses saberes? Essa é uma
das questões de que tratam, de maneiras diferentes, os estudos aqui considerados.
De um modo geral, todos aqueles estudos confirmam um diagnóstico recorrente
da prática de ensino em Geografia no Brasil: as discussões teóricas e acadêmicas no
campo da Didática da Geografia tem resultado em avanços no sentido de formulação de
propostas para esse ensino. No entanto, na prática permanece, em grande medida, um
ensino carregado pela tradição, ainda com as características: enciclopedismo;
empirismo; tratamento dicotômico e fragmentado dos temas; ênfase em estudos de
dados e informações para memorização; caráter formal e descontextualizado dos
conteúdos; grande apego ao cumprimento do conteúdo prescrito nos livros didáticos.
Com um ideário do que se convencionou como Geografia crítica, mas sem uma maior
reflexão sobre sua prática, os professores têm realizado uma Geografia, no dizer de
Kaercher, como “um pastel de vento: boa aparência externa, mas permanecendo pobre
na capacidade de reflexão. Muito conteúdo, baixa reflexividade” (2004: 26).
Em contraposição a essa realidade, esses estudos reforçam algumas orientações
já bastante presentes nesse campo, como: a Geografia é uma disciplina que tem grande
relevância social, fundamentada na espacialidade presente na realidade; os conteúdos
devem ser trabalhados tendo em vista o desenvolvimento do pensamento espacial dos
alunos; a aprendizagem dos alunos deve ter como referência o cotidiano e seus sentidos
e significados; o papel do professor é o de mediar os processos de aprendizagem dos
alunos, buscando veicular conhecimentos geográficos vivos e significativos para eles.
Com a preocupação de buscar respostas para essas questões, interrogam sobre como de
fato a Geografia escolar se constitui na prática dos professores; que critérios esses
professores utilizam para definir e selecionar os conteúdos a serem trabalhados em suas
aulas, qual o peso dado à formação acadêmica, composta por conteúdos disciplinares e
pedagógicos, na estruturação dos projetos de trabalho dos professores dessa disciplina.
Em geral, verifica-se, por meio dos resultados desses estudos, que há pouca
integração, fundamentada teoricamente, entre os conhecimentos geográficos e os
pedagógicos nos momentos de se definir os conteúdos de ensino. Na maior parte das
vezes, há alusões à Geografia acadêmica, porém, demonstra-se dificuldades em
trabalhar com ela tendo em vista os objetivos e os contextos para os quais se voltam.
Nesse sentido, como evidencia Santana Filho,
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há indicativos de que os saberes, a contribuição de uma didática da
Geografia para a escolha dos conteúdos e temas com os quais
trabalham ou são irrelevantes ou são desconhecidos. Se os avanços da
geografia acadêmica chegam com muito retardo à escola, parece-nos
que os esforços da pesquisa e a formulação de indicativos e
proposições ao trabalho docente no campo da didática da Geografia
tampouco estão alcançando devidamente os professores (p. 138).
As conclusões sobre as demandas de maior articulação entre referências para a
configuração da Geografia na escola apontam para o papel desempenhado pelo
professor. Ele é o sujeito central dessa articulação, pois, ainda que haja outras
mediações que resultam em recontextualizações dos conteúdos curriculares, é no
trabalho docente, na sala de aula que esses conteúdos, por assim dizer, ganham
existência empírica. E, a concepção aqui defendida é a de que o professor é produtor
desse currículo, não um “aplicador” acrítico de prescrições curriculares. O professor, em
seu processo contínuo de formação é o sujeito da construção de conhecimentos sobre o
trabalho, a problemática da educação, a realidade social, o espaço geográfico. Os
saberes docentes são, assim, síntese teórico-prática de um conjunto de referentes da vida
particular e social dos professores e de seu processo de formação. São esses saberes que
são mobilizados nos momentos de tomada de decisão sobre as tarefas profissionais,
entre elas a de definir e de escolher conteúdos escolares. Por um lado, esse
entendimento salienta a figura do professor em sua prática cotidiana, por outro, alerta
para a relevância dos seus processos formativos, pois são nesses processos que eles
podem construir autonomia para refletir e atuar mais conscientemente, superando, por
exemplo, a dependência excessiva ao livro didático, como indicativo da Geografia
ensinada. Sabe-se que muitos professores têm a opção pelo trabalho com uma Geografia
diferente da que foi descrita, e que isso não é suficiente para alteração de sua prática, já
que muitas vezes ela é definida pela estrutura da escola e por suas condições de
trabalho. No entanto, consolidar essa opção no nível teórico é um caminho possível para
o movimento da realidade no sentido de buscar alterações mais estruturais.
Os dados confirmam evidências da relevância maior da experiência docente e
escolar em relação à lógica disciplinar na articulação entre referências disciplinares e
pedagógico-didáticas nas decisões que os professores tomam sobre conteúdos. Do
mesmo modo, há também indicativos fortes do desprestígio dado aos conhecimentos
pedagógicos e didáticos na formação inicial e na continuada, o que pode estar causando
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obstáculos a uma formação mais completa para a profissão. Ou seja, ainda está presente
um senso comum que diz que a aprendizagem da profissão ocorre de fato na prática,
incluindo-se, nessa aprendizagem, o conhecimento sobre o conteúdo a ensinar. Esse fato
acaba por dificultar o avanço na construção de práticas inovadoras da Geografia na
escola, que esteja mais fortemente articulada com a Geografia acadêmica, que não seja
sua simplificação, mas que se nutra com autonomia desse campo disciplinar.
A favor de uma Geografia escolar autônoma e criticamente articulada com a
Geografia acadêmica
Apesar de se considerar a predominância de práticas tradicionais no ensino, é
possível perceber práticas alternativas, que procuram modificar o instituído, que se
inquietam com a realidade dada, que se sensibilizam com a vida e o cotidiano dos
alunos. A Geografia escolar, na realidade, é múltipla, expressam sínteses diferentes,
construídas a partir de várias referências. Convivem, portanto, na prática, diversas
“geografias escolares”; como emergente está aquela que consegue fazer uma articulação
de diferentes conhecimentos, de modo autônomo, para realizar uma disciplina escolar
voltada à formação intelectual, social e emocional dos alunos. Reforçar o entendimento
dos princípios dessa disciplina ajuda a ultrapassar sua característica de emergente, de
instituinte, consolidando um lugar de prática dominante.
Na tradição disciplinar, a Geografia escolar está encarregada de apresentar
aspectos naturais e sociais (associados, interrelacionados, como se indica atualmente) de
diferentes lugares do mundo, “agrupados” de diferentes formas, por regiões, por
continentes, para que sejam aprendidos pelos alunos. Sua abordagem é feita com base
em um direcionamento, dado pelas questões típicas da Geografia, como: onde? Por que
nesse lugar? Como é esse lugar? Ao trabalhar nessa perspectiva, a preocupação não é de
explorar todos os aspectos do fenômeno, mas um modo de pensar a respeito desses
aspectos à uma maneira de pensar geograficamente. Então, por traz dos conteúdos,
fundamentando-os e direcionando-os, está a busca de ensinar um caminho metodológico
de pensar sobre a realidade, sobre seus diferentes aspectos. Trata-se de um modo de
pensar que é peculiar, específico, construído por uma área do conhecimento – esse é o
objetivo mais geral de se apresentar e se trabalhar com seus conteúdos.
O argumento é o de que, quando se busca a aprendizagem do aluno, tem-se em
mente um conteúdo, mas ao se ensinar esse conteúdo ensina-se junto um modo de
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abordar, de observar, de analisar a realidade. Por exemplo, entre as indicações
contemporâneas de caráter pedagógico-didático para o tratamento dos conteúdos
geográficos, está a de se considerar o lugar do aluno no tratamento dos conteúdos.
Porém, ela pode ser válida para qualquer disciplina, desde que se queira dar maior
significado aos processos de aprendizagem dos alunos (a referência mais imediata do
mundo empírico e sua ligação com os conteúdos escolares leva à aprendizagem mais
significativa). No entanto, na Geografia, a referência ao lugar como elemento da
abordagem dos conteúdos significa mais do que fazer referência empírica, porque o
lugar é uma categoria relevante do pensamento espacial, nele, os processos espaciais,
seus elementos e o arranjo resultante das relações espaciais se manifestam, podem se
manifestar, ou podem não se manifestar. Nessa abordagem, ele se torna ferramenta,
procedimento da análise, componente do raciocínio escalar, por isso é tão importante
falar em lugar na multiescalaridade, com a recomendação de que ao se considerar o
lugar, considere-o como uma síntese específica, peculiar de uma combinação
local/global, todo/parte. A proposta de abordagem didática daí resultante associa lugar a
território e ultrapassa a lógica formal e empírica dos objetos, ao focalizar a experiência
espacial cotidiana dos alunos, mas extrapolando essa experiência. Portanto, abordar os
conteúdos geográficos pelo o lugar é mais do que atender às recomendações de cunho
didático-psicológico no sentido de garantir com isso mais envolvimento e motivação
dos alunos; trata-se de formular articulações para proporcionar ferramentas intelectuais
para a compreensão do real (CAVALCANTI, 2010, 2011).
Ao associar conceitos de lugar e território, por exemplo, como estruturadores do
pensamento geográfico a ser desenvolvido, destacam-se as reflexões sobre as mediações
do real empírico, compreendidas na consideração da multiescalaridade inerente aos
objetos e nos processos de identificação e de pertencimento que as pessoas vivenciam,
pelos quais lutam diariamente em sua existência. A articulação dos conteúdos a esses
conceitos, ajuda os alunos a construírem modos de analisar os fatos, fenômenos,
processos com a compreensão de escalas diferentes no movimento do real, que
evidenciam diversas territorialidades. Os alunos, no lugar, realizam práticas espaciais
formadoras de territórios, que tem sua lógica na multiterritorialidade e nas múltiplas
escalas. Portanto, a compreensão desse conceito vinculado às relações de poder, à
estratégia de um grupo social que se materializa num lugar, em contextos históricos e
geográficos determinados, na produção de identidades e de lugares, no controle do
espaço, os ajuda a compreenderem melhor suas próprias práticas espaciais.
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Salienta-se aqui um elemento de relevância para a definição de propostas de
ensino, pois, o que se afirma é que os conteúdos, os temas, são apresentados ao aluno
em situações de ensino como meios de ajudá-lo a formar um pensamento peculiar sobre
a realidade, na convicção de que esse pensamento contribui para suas práticas sociais. A
assimilação/memorização de uma boa quantidade de informações e referências
geográficas é condição mínima para o processo de aprendizagem nessa área. No
entanto, ele não se reduz a esse objetivo, pois não se trata de saber estritamente sobre os
conteúdos, de caracterizá-los estritamente em sua manifestação empírica. Trata-se de
aprender a analisar a realidade em que se vive por meio desses conteúdos, com a
contribuição desses conteúdos. Portanto, ao se ensinar um conteúdo em situações
escolares para promover o desenvolvimento intelectual do aluno, busca-se junto com a
sua apreensão pura e simples ensinar um modo de pensar, um modo peculiar de articular
os significados dos conteúdos, uma perspectiva de análise do real, no campo da ciência,
no caso, da ciência geográfica (CAVALCANTI, 2010, 2011).
Michael Young (2011), embora não seja um teórico da área da Geografia, mas
um teórico da teoria crítica do currículo, traz interessantes colocações, que na verdade
reforçam um pensamento já presente em estudos brasileiros na área da Didática e da
didática específica da Geografia. Ele se utiliza de exemplos da própria Geografia para
explicitar seu entendimento do que ele chama de um argumento radical em favor de
currículo centrado em disciplinas. Algumas de suas colocações são bastante próximas
da linha de alegação do texto, sobre a relação entre os conteúdos e os conceitos a ele
relacionados e sobre as finalidades do ensino, por isso vale a pena a transcrição de
alguns de seus argumentos:
o currículo precisa ser visto como tendo uma finalidade própria – o
desenvolvimento intelectual dos estudantes (...) é um processo
baseado em conceitos, e não em conteúdos ou habilidades. Isso
significa que o currículo deve ser baseado em conceitos. Entretanto,
conceitos são sempre sobre alguma coisa. Eles implicam alguns
conteúdos e não outros” (....) “As escolas são lugares onde o mundo é
tratado como um ‘objeto de pensamento’ e não como ‘um lugar de
experiência’. (p. 4)
Para o autor, disciplinas como História, Geografia e Física são as ferramentas
que os professores têm para ajudar os alunos a passarem da experiência às formas mais
elevadas do pensamento. Para exemplificar, argumenta que os relacionamentos dos
alunos com Londres como um “conceito” devem ser diferentes de seu relacionamento
com a sua experiência, como o lugar onde vivem. E esclarece:
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é importante que os alunos não confundam a Londres de que fala o
professor de geografia com a Londres onde vivem. Até certo ponto, é
a mesma cidade, mas o relacionamento do aluno com ela, nos dois
casos, não é o mesmo. A Londres onde vivem é um ‘lugar de
experiência’. Londres como exemplo de uma cidade é um ‘objeto de
pensamento’ ou um ‘conceito’. (idem, p. 5)
Esse entendimento está nas recomendações das didáticas específicas da
Geografia, mas também nas reflexões sobre currículo e didática em geral, que são em si
mesmo articulações entre conhecimentos disciplinares e conhecimentos pedagógicodidáticos, na medida em que apontam os saberes a serem ensinados em Geografia –
(utilizando-se as formulações de CHEVALLARD (op.cit.)). Porém, é preciso pensar
nessa compreensão como parte dos saberes docentes presentes em sua prática cotidiana,
fundamentando suas escolhas, suas ações, para que seja orientador do saber ensinado
em Geografia (ainda na formulação do CHEVALLARD), que em última instância é a
Geografia escolar, na qual, de fato, a articulação entre conhecimento disciplinar e
pedagógico-didático é feita, de uma forma ou outra.
Referências
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Junqueira&Marin Editores
Livro 1 - p.000382
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