Bíblia

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Grupo Bíblico
“Da Bíblia para a Vida”
Paróquia de Carvalhosa
Vigararia de Paços de Ferreira
Diocese do Porto
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Orientadores:
- Fernanda Torres
- José Meireles
Porquê este nome
“Da Bíblia para a Vida” porque queremos que a nossa vida seja conduzida segundo a
Palavra de Deus, à luz do pensamento cristão. Para tanto, necessitamos beber na Fonte,
que é a Bíblia, e levar para a vida os seus ensinamentos.
Quem somos
Somos um Grupo de pessoas que reúne quinzenalmente, às Segundas-feiras, das 21 às
22 horas, no Salão, em uma das salas.
Somos pessoas normais, sem nenhuma especialização em Bíblia, mas que queremos
crescer mais, conhecer e entender melhor a Palavra proclamada e escutada. Porque só
conhecendo-a bem, a podemos viver, e viver melhor.
O que fazemos
Lemos e escutamos a Palavra de Deus, reflectimos e meditamos nela, rezamos com ela.
Falamos de problemas, nossos e de outras pessoas, do grupo ou fora dele, solidarizamonos com elas e procuramos encontrar soluções.
Também convivemos no grupo e com o Grupo.
Como qualquer grupo, temos regras necessárias para uma boa organização e
funcionamento, regras que procuramos cumprir.
Quem pode participar no Grupo
Todos podem participar no Grupo. Este Grupo Bíblico está aberto a todos quantos
pretendam e desejem aprofundar mais os seus conhecimentos sobre a Bíblia. Aqui, com
a Bíblia, encontramos a Palavra de Deus que nos quer admitir na comunhão com Ele.
Não há idades. As pessoas do nosso Grupo têm idades diversificadas, compreendidas
entre os 20 e os 80 anos.
Portanto, também tu podes participar. Aparece e traz a Bíblia contigo.
O que é a Bíblia
Podemos dizer que a Bíblia é uma estante com 73 livros guardados.
É importante falar da Bíblia, pois é dela que são tiradas as leituras que se proclamam
nas Eucaristias, quer aos Domingos, quer à semana, nas igrejas.
Quando chegares ao nosso Grupo, vamos mostrar-te coisas muito simples sobre este
livro feito de livros, no qual se encontra, segundo a fé dos judeus e dos cristãos, a
revelação de Deus.
Este livro, embora escrito por homens, foi inspirado por Deus. A Bíblia é, por isso, o
nosso Livro Sagrado.
A Bíblia é um conjunto de livros
A Bíblia é, para os judeus e para os cristãos, o mais importante dos livros. Não apenas
por transmitir a Palavra de Deus, mas também pela sua própria organização. Trata-se de
uma verdadeira biblioteca ou, pelo menos, de uma boa estante de livros.
Estamos habituados a olhar para a Bíblia como um só livro, pois é assim que ela se
apresenta nas suas edições. Mas a verdade é que se trata de uma colecção de livros
encadernados num só volume. A palavra Bíblia, em grego, é uma palavra no plural e
significa os livros. Na verdade, a Bíblia é composta por 73 Livros, cujos nomes vamos
conhece-los.
Ainda que toda a palavra de Deus lida na liturgia seja tirada do volume da Bíblia, nunca
se diz Leitura do livro da Bíblia, mas sim Leitura do livro do Génesis... ou Leitura do
Profeta Isaías... ou Leitura do Evangelho segundo São Lucas…etc. pela razão simples
de que nenhum dos seus livros se chama "Bíblia".
Nós, aqui no Grupo, quando em voz alta lemos na Bíblia, enunciamos: Do livro do
Génesis…ou do livro de Isaías…ou do Evangelho de São Lucas…etc.
As duas partes da Biblia
A Bíblia divide-se em duas grandes partes. Nós, os cristãos, chamamos Antigo
Testamento à primeira, ou seja, a tudo o que foi escrito antes de Jesus Cristo, e Novo
Testamento à segunda, isto é, ao que foi escrito depois da morte e ressurreição do
Senhor.
A Biblia judaica é apenas aquilo que nós chamamos Antigo Testamento, e divide-se em
três blocos: a Lei, os Profetas, e os outros escritos.
O Novo Testamento é muito mais pequeno do que o Antigo. Também nós o dividimos
em partes: os Evangelhos, o livro dos Actos dos Apóstolos, as Cartas de São Paulo, as
Cartas dos outros Apóstolos e o Apocalipse.
Hoje a Bíblia está traduzida na maioria das línguas que se falam em todo o mundo. Mas
foi escrita originalmente apenas em três, o hebraico, o aramaico e o grego, e em épocas
muito distantes umas das outras.
Além disso, os livros bíblicos são de géneros muito variados. Encontramos neles contos,
relatos, discursos, leis, sermões, provérbios, visões, etc. Mas para os crentes toda a
Bíblia é obra de um único Artista, o Espirito de Deus. Por isso ela é tão importante para
nós.
Para não levarmos à letra, muito daquilo que lemos na Bíblia, é preciso conhecer o texto
e o contexto em que foram escritos os 73 livros que a compõem.
Aprender a gostar da Biblia
Como é que se chega a gostar de um alimento? Provando-o, saboreando-o. Como é que
se aprende a gostar de uma pessoa? Falando com ela, admirando o que ela faz bem feito,
descobrindo os seus encantos, deixando-se cativar por aquilo que ela diz, por aquilo que
ela faz, por ela própria.
No caso da Bíblia isso há-de acontecer abrindo-a, lendo-a com fé, saboreando-a,
descobrindo cada dia mais coisas sobre ela, aplicando a nós mesmos, aquilo que ela diz.
Os leitores devem aprender a gostar assim da Bíblia, como o diz de maneira admirável
St.º Agostinho, ao comparar a Bíblia às boas pastagens dos montes, onde o rebanho do
Senhor encontra alimento abundante e saboroso: «As páginas da Escritura divina são as
montanhas de Israel. Apascentai-vos nela, se quereis apascentar-vos em segurança.
Tudo quanto nela encontrais, saboreai-o bem; tudo o que encontrais fora dela, rejeitai-o.
Para não vos perderdes no meio do nevoeiro, ouvi a voz do Pastor. Reuni-vos nos
montes da Santa Escritura. Aí estão as delícias do vosso coração, aí nada é venenoso,
nada é prejudicial; são as pastagens fertilíssimas dos montes de Israel. Vinde, ovelhas
sãs; vinde vós somente, e apascentai-vos nas pastagens sadias dos montes de Israel»
(St.º. Agostinho, Sermão 46 sobre os pastores).
É sempre importante que nos habituemos a ler as pequenas introduções que vêm na
Bíblia, para fazermos uma ideia do tema principal de cada um dos seus livros, da forma
como se dividem, das suas características, etc. Devemos também estar sempre dispostos
a aprender algo mais sobre este livro maravilhoso. Mas sobretudo devemos ter paixão
pela sua leitura pessoal, devemos rezar com ele nas mãos e como ele ensina a rezar,
especialmente nos Salmos. É isso apascentar-se nas suas pastagens sadias.
O Antigo Testamento
- O Pentateuco
Os cinco primeiros livros da Bíblia constituem a Torá ou a Lei ou o
Pentateuco. Os mais importantes são o Génesis e o Êxodo.
O Livro do Génesis, que quer dizer a Origem, subdivide-se em duas
partes. A primeira abrange os capítulos 1 a 11. São histórias imaginadas e
não narrações históricas, no sentido que nós damos hoje à palavra história, a
qual supõe sempre alguém que tenha assistido aos factos e que depois os
conta. Quem poderia contar coisas que aconteceram antes do homem
existir, uma vez que ele, segundo a narração, só foi criado no sexto dia?
Poderiam, dirá alguém, ter-lhes sido reveladas por Deus, como noutros
casos! Sim, mas onde está isso dito? A narração não diz que foi Deus que
revelou os gestos e palavras da criação, mas começa desta maneira: «No
princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava deserta e vazia, as trevas
cobriam a superfície do abismo e o espírito de Deus pairava sobre as águas»
(Gen 1, 1-2).
Esta forma de contar é a resposta que os sábios de Israel começaram
a dar a si próprios, a partir do momento em que o povo de Deus, já instalado
na terra prometida, se interrogou sobre as origens do mundo, do homem e da
mulher, do mal e da morte. O que aí se quer dizer é que o mundo foi criado
por Deus e para o homem, que o homem pode recusar-se a colaborar com
Deus, mas que apesar de tal recusa e dos males que ela traz sempre consigo,
Deus nunca desiste de salvar o homem.
A segunda parte vai dos capítulos 12 a 50, onde se fala das origens do
povo hebreu através dos relatos de Abraão, Isaac e Jacob, e querem mostrar
como o Deus fiel já estava com eles.
O Livro do Êxodo, que quer dizer a Saída, tem no centro a figura de
Moisés, fundador histórico do povo de Israel, cerca de 1200 anos antes de
Cristo. Mas o verdadeiro criador desse povo é Deus, porque foi Ele que o
tirou do Egipto e o fez nascer para a liberdade.
O Livro do Levítico e o Livro dos Números são colecções de leis que
exprimem a vocação de Israel, povo escolhido para levar a palavra de Deus
às nações do mundo inteiro.
O Deuteronómio é um grande discurso posto na boca de Moisés, mas
na verdade escrito cerca de 700 anos antes de Cristo, e que recorda ao povo
escolhido, sempre tentado a ser como todos os povos à sua volta, que a sua
grandeza não está em ser como os outros, mas em ser fiel a Deus e à Lei
dada a Moisés no monte Sinai.
O Antigo Testamento
- Os Profetas
Os profetas não são pessoas que conhecem o futuro (não são
“bruxos”). Não há ninguém que conheça o futuro e que o possa predizer, a
não ser que Deus lho revele, já que o futuro é segredo apenas de Deus.
Portanto, se algum profeta predisse alguma vez o futuro, foi apenas e só
porque Deus lho revelou. Os homens podem, pela observação natural e pela
ciência, descobrir leis que se repetem, com mais ou menos precisão, e daí
tirarem conclusões para o futuro. Resume-se nisso a sua adivinhação, a sua
previsão. Nada mais.
Os profetas de Israel foram homens que falaram em vez de Deus, que
disseram ao povo escolhido as palavras que Deus lhes mandou dizer, que
lembraram sem descanso a esse povo que ele deve viver da fé, não criando
para si falsos deuses, e ser o povo do respeito pelos outros, sobretudo pelos
mais pobres, os mais fracos, os mais desprezados, o povo que escuta a
Palavra do Eterno que lha revelou e que deve responder com fé a essa
Palavra.
O ponto culminante da pregação profética talvez sejam os capítulos 40
a 66 do livro de Isaías, que a liturgia lê quase na totalidade. Bem diferente
dos outros livros proféticos é o de Jonas. Mais do que a palavra dum profeta
é uma história sobre um profeta teimoso, que se opõe a anunciar a palavra
de Deus, que não conhece fronteiras à cidade de Nínive, por não pertencer ao
povo de Israel.
Os profetas bíblicos viveram e falaram desde o século VIII até ao séc. II
antes de Cristo e depois desapareceram. Jesus referir-se-á a João Baptista
como o maior dos profetas, para concluir que o mais pequeno no reino de
Deus é maior do que ele, ou seja, para falar da grande dignidade de ser
discípulo de Cristo.
O Antigo Testamento
- Os outros escritos
Trata-se de um número considerável de livros da Bíblia, que
pertencem a dois géneros diferentes, e que, por isso mesmo, formam dois
grupos.
Ao primeiro grupo pertencem os livros da história de Israel. Não se
trata de história no sentido actual da palavra. É a história da grandeza e
decadência de Israel, das suas vitórias e derrotas, e por fim da deportação
para a Babilónia e do regresso, lida com os olhos da fé. Nessa história
surgem figuras espantosas, como Josué, Samuel, David, Salomão, Elias e
outras. No seu centro está sempre a Aliança entre Deus e o povo, a qual
passa por momentos de felicidade e desconsolo, de esquecimento e
regresso, de prostituição e fidelidade. É a história do povo libertado do
Egipto, desde a sua instalação na Palestina até ao fim do segundo cativeiro.
Pertencem a este género histórico os seguintes livros: Josué, Juizes,
Samuel, Reis, Crónicas, Esdras, Neemias, Rute, Tobias, Judite, Ester e
Macabeus.
O segundo grupo é muito diferente deste. Fazem parte dele os livros
da sabedoria de Israel. São uma maravilha. O extraordinário livro de Job, o
homem que no meio do maior infortúnio diz, referindo-se a tudo o que já
tivera e que acabava de perder: «O Senhor deu, o Senhor tirou: bendito seja
o nome do Senhor». O inesgotável livro dos Salmos, onde os homens e
mulheres de todos os tempos encontram todas as cores que a oração pode
tornar consoante as situações: adoração, confiança, lamentação, súplica,
revolta, medo... mas sobretudo a fé em Deus que nunca abandona nenhum
dos que para Ele se voltam. O livro dos Provérbios, onde se cruzam a
espiritualidade e a experiência. O livro de Coelet, escrito por um homem para
quem tudo é vaidade, excepto «respeitar Deus e guardar os seus preceitos».
O Cântico dos Cânticos, que é talvez o mais belo poema de amor que jamais
alguém escreveu. E os livros da Sabedoria e de Ben-Sirá, onde a palavra de
Deus se diz numa linguagem nova, a da cultura grega.
O Novo Testamento
- O Evangelho
Dizemos Evangelho no singular, porque se trata da única Boa Nova
trazida por Jesus ao mundo, embora dita pelas palavras escritas por Mateus,
Marcos, Lucas e João, que compuseram os seus livros como profissões de
fé em Jesus, que eles chamam Cristo, Salvador, Pastor, Mestre, Filho de
Deus, Senhor.
- Os Actos dos Apóstolos
São a continuação do Evangelho, e falam-nos da maravilhosa implantação das Igrejas de Cristo dum extremo ao outro do império romano,
onde se agigantam as duas figuras de Pedro e Paulo. Os Actos dos
Apóstolos são a mais antiga história da Igreja e proclamam-se como primeira
leitura na missa dos domingos e dias de semana do tempo pascal.
- As 21 Epístolas
São Cartas dirigidas às Igrejas ou aos seus responsáveis, para
lembrar, aplicar, ampliar, prolongar o que Jesus ensinara, em função dos
problemas colocados pela vida das Igrejas. Sobretudo as Cartas de Paulo
são escritas para saudar o nascimento de um Homem novo, Cristo
ressuscitado e para servir a Igreja, reflexo múltiplo da Luz Única que veio ao
mundo para iluminar todos os homens.
- O Apocalipse
É o último livro da Bíblia. Apocalipse quer dizer Revelação. É uma
série de visões para reconfortar a Igreja perseguida. Não é um livro sobre o
fim do mundo, mas uma revelação para tirar o véu que encobre o sentido do
presente, onde a fé parece esmagada pelo poder da Besta, símbolo de todos
os poderes que se crêem absolutos, mas que acabarão por se desmoronar,
uma vez que o único Senhor da história é Deus e o seu Cristo.
A Bíblia, livro divino e humano
Judeus e cristãos acreditam que a origem da Bíblia é totalmente diferente da origem de qualquer outro livro célebre, do passado ou do presente.
Eles crêem que a Bíblia é um livro ao mesmo tempo divino e humano.
Quererão eles dizer com isso que os diversos livros da Bíblia foram
ditados por Deus a homens que os escreveram? De modo nenhum. Não é a
isso que a Igreja chama inspiração bíblica. Esta consiste em Deus ter dado
um sopro divino a uma palavra humana. A palavra pertence inteiramente aos
autores que a escreveram, mas Deus «agiu neles e por eles, para que
pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que
Deus queria» (Vaticano II, Dei Verbum, 11).
Do mesmo modo precisamos nós agora da acção de Deus para
compreendermos o sentido verdadeiro dessas palavras, para recebermos o
sopro divino que as anima: «É o Espírito Santo quem dá aos leitores da
Bíblia e ouvintes, segundo a disposição dos seus corações, a inteligência
espiritual da palavra de Deus».
Deus não só inspirou os autores da Bíblia mas também dá aos que a
lêem capacidade para a entenderem.
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Gostaste do que leste até aqui?
Então pelo que esperas?
Se gostaste do que acabaste de ler, pelo que esperas? Aparece ao
nosso Grupo e participa nele. Traz a tua Bíblia. Acolhemos-te com muita
alegria, de braços abertos. Vem daí, ficamos à tua espera.
…mas se ainda não estás decicido…
…Mas se ainda não estás decidido, sentes que tens dúvidas, gostavas
de possuir mais conhecimentos bíblicos antes de chegar ao Grupo, então aí
vai: oferecemos-te um mini-curso bíblico que te vai ajudar. Aproveita-o, e
depois aparece. Contamos contigo.
Por ser longo, não te aventures a fazê-lo de uma só vez, pois só iria
confundir-te. Divide-o por partes, segundo as tuas capacidades e a tua
disponibilidade. Fa-lo devagar e lentamente e aproveitarás muito mais.
Mini-Curso Bíblico:
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Gostavas, então, de fazer um mini-curso
Bíblico?
Pois bem: podemos ajudar-te a apaixonar pela Bíblia.
A Bíblia é a Fonte onde podemos beber com toda a segurança. Mas
precisamos saber beber nela, que o mesmo é dizer, não basta lê-la como se
lê um jornal ou uma revista. Para tudo é necessário preparação. Também
precisamos de preparação para ler a Bíblia. Foi por isso que chegaste aqui.
Então que este trabalho te seja proveitoso.
Este “Mini-Curso Bíblico” está estruturado e ordenado em 57 pontos,
que não deves ler de uma só vez, mas faseado, segundo a tua capacidade e
disponibilidade.
Pontos de ordenação - (Índice):
I PARTE
Introdução
01 – O que é a Bíblia
02 – Ordem dos Livros na Bíblia
03 – Como manusear a Bíblia
04 – Qual a diferença entre a Bíblia Católica e a Bíblia Protestante
05 – Modos de ler a Bíblia
06 – Das Palavra da Bíblia às Palavras de Deus
07 – A Bíblia não é a Palavra de Deus paginada e encadernada em capas duras
08 – A Bíblia é uma Biblioteca
09 – A Bíblia não é “edificante”
10 – A Bíblia não é “um livro sagrado”
11 – Uma parábola sobre a Bíblia
II PARTE
Antigo Testamento
12 – Os primeiros cinco Livros da Bíblia
13 – Livro do Êxodo
14 – Livro do Levítico
15 – Livro dos Números
16 – Livro do Deuteronómio
17 – Uma Aliança que nos põe a caminho
18 – Viver na dinâmica do Dom
19 – Uma Aliança à espera de Cristo
20 – Pistas de leitura para os Livros do Pentateuco
Livros dos Profetas
21 – Os Profetas possuídos pela Palavra
22 – “NABI”, a Palavra escutada
23 – “PROFETÊS”, a Palavra anunciada
24 – Instrumento da Palavra
25 – Pistas de leitura para os Livros dos Profetas
Livros Históricos e Sapiênciais
26 – Livros Históricos
27 – Escritos Sapiênciais
28 – Salmos
29 – Pistas de leitura para os Livros Históricos
30 – Pistas de leitura para os Livros Sapiênciais
O Messias no Antigo Testamento
31 – A Esperança no coração de um Povo
32 – Da Promessa à Desilusão
33 – A importância da fidelidade dos Profetas
34 – O recomeço do sonho, depois do exílio na Babilónia
35 – A espera da Ira de Deus na vinda do Messias
III PARTE
Novo Testamento
A caminhada dos Discípulos
36 – O discipulado histórico
37 – O fracasso da morte
38 – A experiência pascal
De Jesus aos Evangelhos
39 – Jesus de Nazaré
40 – As primeiras Comunidades
41 – Os Evangelistas
Jesus nos Evangelhos
42 – Jesus no Evangelho de Marcos
43 – Jesus no Evangelho de Lucas
44 – Jesus no Evangelho de Mateus
45 – Evangelhos da Infância de Jesus
46 – Jesus no Evangelho de João
O Livro dos Actos dos Apóstolos
47 – O Espírito Santo faz a Igreja
48 – A Igreja da Palavra e do Espírito
49 – Da “seita dos nazarenos” à Igreja de Jesus Cristo
50 – A primeira refundação da Igreja
As Cartas do Apóstolo Paulo
51 – No início do Cristianismo
52 – Quem é Paulo
53 – Da Lei de Moisés ao Espírito de Cristo
54 – O Apóstolo da Graça
Livro do Apocalipse
55 – Um escrito clandestino
56 – A Palavra definitiva da nossa História é Jesus Cristo quem a diz
57 – “E viveram felizes para sempre…”
PARTE I:
I ntrodução
1-
O que é a Bíblia
A Bíblia não é só um livro…
A bíblia não é um livro, mas um conjunto de 73 Livros que formam,
podemos dizer, uma biblioteca. “Bíblia” é uma palavra grega que significa,
“os livros”.
A Bíblia é um conjunto de livros escritos durante vários séculos. Na
Bíblia nós temos uma colecção de livros menores que são diferentes um do
outro no que diz respeito à forma de apresentar as palavras de Deus. Esses
livros falam da história e da experiência do povo de Israel que era escravo no
Egipto. Este povo experimentou Deus como o Deus da vida e da liberdade.
Deus e o povo de Israel fizeram juntos uma Aliança, um pacto, um
acordo: Deus prometeu a liberdade e a vida, prometeu acompanhar e
proteger sempre seu povo, e o povo prometeu caminhar sempre segundo a
vontade do seu Deus, vivendo na fraternidade, como irmãos. O problema é
que, da parte do povo, essa promessa foi constantemente quebrada,
surgindo daí conflitos e opressões dentro do próprio povo de Deus e de
outros povos em relação ao povo de Israel.
Todos estes acontecimentos estão escritos nos Livros bíblicos.
2–
Ordem dos Livros na Bíblia
Esta é a ordem pela qual encontras na Bíblia, os 73 Livros que a
compõem.
O número à esquerda está aqui apenas para contar os 73 Livros nela
constantes. Segue-se uma abreviatura. Esta sim, vais precisar de a conhecer,
vais ter que saber identificá-la, relacionando-a com o respectivo Livro que
aparece à direita.
ANTIGO TESTAMENTO
PENTATEUCO:
1
2
3
4
5
- Gn
- Ex
- Lv
- Nm
- Dt
Génesis
Êxodo
Levítico
Números
Deuteronómio
LIVROS HISTÓRICOS:
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
- Js
- Jz
- Rt
- 1 Sam
- 2 Sam
- 1 Rs
- 2 Rs
- 1 Cr
- 2 Cr
- Esd
- Ne
- Tb
- Jdt
- Est
- 1 Mac
- 2 Mac
Josué
Juízes
Rute
1.º de Samuel
2.º de Samuel
1.º dos Reis
2.º dos Reis
1.º das Crónicas
2.º das Crónicas
Esdras
Neemias
Tobias
Judite
Ester
1.º dos Macabeus
2.º dos Macabeus
LIVROS SAPIENCIAIS:
22
23
24
25
26
27
28
- Jb
- Sl
- Pr
- Ecl
- Ct
- Sb
- Sir
Job
Salmos
Provérbios
Eclesiastes (ou Qohélet)
Cântico dos Cânticos
Sabedoria
Ben Sirá (ou Eclesiástico)
LIVROS PROFÉTICOS:
29
30
31
32
33
34
35
36
37
38
39
40
41
42
43
44
45
46
- Is
- Jr
- Lm
- Br
- Ez
- Dn
- Os
- Jl
- Am
- Abd
- Jn
- Mq
- Na
- Hab
- Sf
- Ag
- Zc
- Ml
Isaías
Jeremias
Lamentações
Baruc
Ezequiel
Daniel
Oseias
Joel
Amós
Abdias
Jonas
Miqueias
Naum
Habacuc
Sofonias
Ageu
Zacarias
Malaquias
NOVO TESTAMENTO
EVANGELHOS:
47
48
49
50
- Mt
- Mc
- Lc
- Jo
S. Mateus
S. Marcos
S. Lucas
S. João
LIVRO DOS ACTOS:
51
- Act
Actos dos Apóstolos
CARTAS (ou Epístolas) DE S. PAULO:
52
53
54
55
56
57
58
59
60
61
62
63
64
65
- Rm
- 1 Cor
- 2 Cor
- Gl
- Ef
- Fl
- Cl
- 1 Ts
- 2 Ts
- 1 Tm
- 2 Tm
- Tt
- Flm
- Hb
Romanos
1.ª aos Coríntios
2.ª aos Coríntios
Gálatas
Efésios
Filipenses
Colossenses
1.ª aos Tessalonicenses
2.ª aos Tessalonicenses
1.ª a Timóteo
2.ª a Timóteo
Tito
Filémon
Hebreus
OUTRAS CARTAS (OU EPÍSTOLAS):
66
67
68
69
70
71
72
- Tg
- 1 Pe
- 2 Pe
- 1 Jo
- 2 Jo
- 3 Jo
- Jd
Tiago
1.ª de Pedro
2.ª de Pedro
1.ª de João
2.ª de João
3.ª de João
Judas
APOCALIPSE (OU REVELAÇÃO):
73
3-
- Ap
Apocalipse
Como manusear a Bíblia
Para manusear a Bíblia é necessário seguir alguns passos:
 Saber o Nome ou o Título do Livro - ver se o Livro está no Antigo
ou no Novo Testamento;
 O número do Capítulo está sempre em tamanho grande, no início
do capítulo do Livro;
 O número do versículo está sempre em tamanho menor, espalhado
pelo meio do texto.
 Ajuda-te a compreender isto melhor, se perceberes que, quando
expressamos por escrito uma citação bíblica, entre o número do capítulo e
do versículo, vai sempre uma vírgula.
 Se o texto abranger mais de um versículo, então separa-se a
sequência dos versículos por um traço.
 Às vezes encontramos um “s” ou dois “ss” depois do versículo.
Quer dizer “versículo seguinte” ou “versículos seguintes”.
 Às vezes encontramos um “a” ou um “b” após o versículo. Indicam
se é a primeira ou a segunda parte do versículo, que se pretende referir. Isso
acontece quando o versículo é formado por uma ou mais frases.
Exemplos para entender uma citação bíblica:
A ordem dos elementos é: o nome do livro em abreviatura, o número
do capítulo e o número do versículo. Assim, Mt 5,12 corresponde ao
Evangelho segundo São Mateus, capítulo 5, versículo 12. (lá está a vírgula a
separar o 5 do 12, ou seja, o Capítulo, do Versículo).
Se o livro só tiver um capítulo, aparece apenas o livro e o versículo.
Assim, 2 Jo 12 para indicar que se trata da 2.ª Carta de João, versículo 12.
(porque esta Carta tem apenas um único Capítulo).
Quando são citados vários versículos ou capítulos seguidos, estão
unidos por um hífen: Mt 5,12-17 (Mateus, capítulo 5, versículos 12 a 17, ou
seja, o versículo 12, 13, 14, 15, 16 e 17); Mt 5-6 (Mateus, capítulos 5 e 6, ou
seja, são estes dois Capítulos com todos os seus Versículos que, neste caso,
são 82, precisamente 48 do Cap. 5 mais 34 do Cap. 6 = a 82); Mt 5,20-6,13
(Mateus do capítulo 5, versículo 20 ao capítulo 6, versículo 13, sem qualquer
interrupção).
Quando são citados vários versículos do mesmo capítulo, mas não
todos seguidos, ficam separados por um ponto: Mt 5,12.14-17 (a citação pára
no v.12 e continua do v.14 ao 17 inclusive, não incluindo o versículo 13).
Se forem citados diferentes capítulos do mesmo livro, tais capítulos
vão separados por um ponto e vírgula mas não é repetido o nome do livro: Mt
5,12.21-23; 6,1-8 (Mateus, capítulo 5, versículo 12 e também do v. 21 a 23
inclusive; e ainda o capítulo 6 do mesmo Mateus, do versículo 1 a 8
inclusive). Como se pode ver, a vírgula vai sempre depois do capítulo, a
separá-lo dos versículos.
4-
Qual a diferença entre a Bíblia
Católica e a Bíblia “protestante”
Existe uma diferença quanto ao número de Livros. O Novo Testamento
da Bíblia Protestante e o nosso são iguais = 27 Livros, porém o número de
versículos em cada capítulo não é igual.
Mas o Antigo Testamento da Bíblia evangélica ou protestante não
possui 7 Livros que fazem parte da Bíblia Católica.
A Bíblia dos protestantes não possui o Livro de Judite, Tobias,
Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, I Macabeus e II Macabeus. Além disso, o
Livro de Daniel na Bíblia protestante, não tem os capítulos 13 e 14, e nem os
versículos 24 a 90 do capítulo 3. Não tem também os capítulos 11 a 16 de
Ester, embora algumas edições da Bíblia Católica também não possuam
estes 6 capítulos.
Explicação: os judeus eram radicalmente nacionalistas. Por isso,
achavam que Deus só poderia inspirar os Livros escritos na língua dos
judeus, que era o hebraico e o aramaico. Achavam também que a Palavra de
Deus só poderia ser escrita dentro do território de Israel.
Quando os judeus começaram a espalhar-se pelo mundo, logo após a
destruição de Jerusalém (ano 70 d.C), eles mesmos viram a necessidade de
traduzir o Livro Sagrado para o grego, que era a língua mais universal
daquela época. E, nessa tradução foram incluídos esses 7 Livros (que
estavam escritos em grego).
Foi daí que surgiram as discussões. Os fariseus que zelavam pela
pureza e conservação das escrituras Sagradas não quiseram aceitar esses 7
Livros como inspirados por Deus. Isso não quer dizer que tanto uma como a
outra não são verdadeiras. Todas as duas são Palavra de Deus.
Curiosidade: em algumas passagens da Bíblia encontramos membros
de Partidos Políticos na época de Jesus. Estes eram os grupos: Saduceus;
Escribas; Fariseus; Zelotas (foram zelotas: Simão, Judas Iscariotes); e os
Essênios.
5-
Modos de ler a Bíblia
A Bíblia mostra a história, a vida de um povo. A Bíblia é Palavra de
Deus porque transmite a experiência de um povo que procurou descobrir o
que Deus queria para a vida deles.
Sem a experiência da saída do Egito em busca da Terra Prometida, por
exemplo, o livro do Êxodo não existiria. As cartas que Paulo escreveu às
comunidades foram escritas para resolver problemas ou encorajar os
cristãos na caminhada; se não tivessem aparecido problemas ou motivos de
agradecimento, a maioria das cartas não teria sido escrita. De acordo com o
problema foi criado um texto.
A Bíblia não pode ser lida sem que se saiba qual a razão (o motivo)
para qual foi escrita. Isso faz da Bíblia diferente de um outro livro. Os textos
da Bíblia devem ser lidos e pensados juntamente com a nossa história de
vida. Somente se lermos a Bíblia de forma consciente é que ela poderá
iluminar nossa vida.
6-
Das palavras da Bíblia à Palavra de Deus
Bíblia e Palavra de Deus são realidades relacionadas entre si, mas não
são sinónimos. A Palavra de Deus não se mumifica em letras impressas em
folhas de papel.
- Deus não se revela na “letra”, mas na “Palavra”
Das palavras da Bíblia à Palavra de Deus.
Sejamos claros desde o princípio: a Bíblia não é a Palavra de Deus
paginada e encadernada em capas duras. Bíblia e Palavra de Deus são
realidades relacionadas entre si, mas não são sinónimos. A Palavra de Deus
não se mumifica em letras impressas em folhas de papel. “A letra mata, só o
Espírito dá Vida!” (2 Cor 3, 6). Deus não se revela na letra, mas sim na
Palavra, que é ecoada no coração do crente por acção do Espírito Santo:
“Nós servimos a Vida Nova do Espírito, e não a vida caduca da letra da Lei”
(Rom 7, 6). Então, qual é o papel da letra? Pode ser uma boa mediação para
fazer acontecer em nós a Palavra, na medida em que tiver sido escrita como
partilha de uma experiência de Deus.
A Bíblia insere-se nesta realidade das mediações, como uma das
privilegiadíssimas para nós, na medida em que for conhecida e haja a
formação adequada para a interpretar. Quando um Doutor da Lei perguntou a
Jesus o que fazer para alcançar a Vida Eterna, Jesus respondeu-lhe deste
modo: “O que está escrito na Lei? Como é que tu o lês?” (Lc 10, 26). Não
basta estar escrito; é preciso saber ler. E esta leitura não tem a ver com o
conhecimento do alfabeto e das regras gramaticais, mas sim com a
capacidade de interpretar e encontrar nas palavras, o caminho da Palavra…
É isto que temos de compreender muito bem.
- Diferença entre “Palavra” e “Voz”
Façamos uma meditação sobre a Palavra…
Um conjunto ordenado de letras forma palavras, mas não geram a
Palavra, isto é, uma comunicação interpessoal de intimidade. A Palavra é
uma realidade pessoal, e não simplesmente uma codificação linguística. É
claro que, neste contexto, compreendemos Palavra num sentido diferente
das palavras de que falam os dicionários e as gramáticas.
Para entendermos melhor o lugar e a originalidade da Palavra,
compreendamos a diferença entre Palavra e Voz. Por Voz queremos
significar um conjunto de técnicas e codificações pelas quais os membros de
uma mesma espécie, cultura ou contexto transmitem informações uns aos
outros. Não se trata apenas da vocalização, dos sons produzidos pelas
cordas vocais, mas por todas as técnicas e codificações de interacção, como
escrita (nos humanos), ruídos, gestos, sinais, etc.
Por exemplo, entre os animais acontece esta dimensão da Voz
(interacção por codificações e técnicas comuns a todos os membros). Entre
si, os animais da mesma espécie interagem, trocam informações. Por
vocalizações, odores, exibição de plumagem, etc. E usam essas codificações
instintivas comuns a todos em situações como a da busca de parceiro na
época de acasalamento ou a chegada de um predador que deve ser avisada,
por exemplo. Quanto mais elaborado for o psiquismo da espécie, mais elaboradas serão as suas técnicas e codificações de interacção e troca de
informações.
Esta dimensão da Voz também está presente na linguagem humana.
Também nós temos técnicas e codificações pelas quais nos
entendemos uns aos outros. Mas a um nível incomparavelmente distante…
Primeiro, pela complexidade e pela sua índole, já não simplesmente
instintiva. Mas, sobretudo, porque ser humano é ser pessoa, ser uma
interioridade pessoal-espiritual que se constrói na medida em que emerge
em relações temperadas pelo amor. Por isso, a dimensão da Voz, na
linguagem humana, serve de suporte à dimensão da Palavra, isto é, da
comunicação pessoal. Quando dizemos Palavra, neste contexto, não
dizemos codificação linguística ou gramatical (porque isso é do domínio da
Voz) mas comunicação-encontro interpessoal. As técnicas e codificações
linguísticas (Voz) não estão ao serviço da simples troca de informação útil a
todos mas, sobretudo, estão ao serviço da construção pessoal em dinâmica
de relações.
- Passar da “Voz” à “Palavra”
Passar da Voz à Palavra é passar da interacção à relação, da
informação à revelação de si próprio, do dizer ao dizer-se. Por isso, falar de
Palavra enquanto conteúdo pessoal de comunicação (do latim comunicare =
comunicar = comungar…) só é possível em contexto pessoal.
Um exemplo, para percebermos melhor: quando entre dois que se
amam surgem as palavras: “Eu amo-te muito. Quero viver em função de ti
para sempre, para te fazer feliz e ser feliz contigo!”, não se trata
simplesmente de um suceder de codificações linguísticas e técnicas de
interacção (nível da Voz) mas, sobretudo, é a comunicação-comunhão de
uma verdade interior e pessoal gerada pelo amor e que gera mais amor (nível
da Palavra). Não se trata de uma informação (se o amor é verdadeiro, eles
bem o sabem, e estas palavras não são uma novidade para o amado que as
escuta), mas sim de uma comunicação-comunhão, encontro, relação.
Na linguagem humana há sempre estes dois níveis presentes, como
no exemplo. A Voz tem o papel de ser mediação da Palavra, meio de
expressão e comunicação, porque o interior pessoal de cada um não é
evidente ao coração do outro. Mas, estas mesmas palavras do exemplo,
exactamente as mesmas, podiam ser ditas na perfeição por um papagaio, se
bem ensinado. Usaria as mesmas codificações e técnicas (Voz), mas ficaria
por aí… porque não haveria uma realidade pessoal-interior capaz de amar.
Isto quer dizer que aquela Voz não seria mediação de Palavra, porque nem
sequer haveria Palavra.
Desde já começamos a entender que quando falamos em Bíblia e em
Palavra de Deus, temos que perceber estas duas realidades: a Bíblia
pertence ao nível da Voz, no seu sentido mais genuíno, que é o pessoal, ou
seja, é mediação de expressão e comunicação da Palavra de Deus, que é
uma experiência pessoal-relacional viva e permanentemente nova no Amor.
A Bíblia é Voz da Palavra de Deus.
Na linguagem humana coabitam os dois níveis, o primeiro como
mediação do segundo. Aliás, devemos esforçar-nos para que seja cada vez
mais assim de facto. Quantas vezes há humanos que entre si só interagem,
usando códigos linguísticos comuns (Voz), mas não mais do que isso?
Quantas vezes não falamos apenas ao nível do papagaio do exemplo
anterior? Existem dois níveis porque, como dissemos já, não somos
evidentes uns aos outros. Para “nos dizermos” a alguém, temos que “dizer”
uma história, “dizer” conteúdos, “dizer” opções… Isto porque somos
pessoas ainda em construção, numa dinâmica histórica limitada por
coordenadas biológicas que nos situam no espaço e no tempo.
- A “palavra” é “comunicação-comunhão”
Pelo acontecimento da morte, a pessoa nasce para o definitivo da Vida
que construiu e é assumida-plenificada em Deus. É isto o Céu, é esta a Vida
Ressuscitada que se abriu para nós na Ressurreição de Jesus. Pelo
acontecimento da morte nascemos para a face interior da Vida, a sua face
para nós ainda escondida, que é a eterna.
Na face histórica da Vida construímos o que seremos definitiva e
plenamente na face eterna da Vida. Para os cristãos, a morte tem rosto e arte
de parteira. Mas no parto definitivo da morte só nasce o que é eternizável,
isto é, a nossa interioridade pessoal-espiritual construída na génese
histórica em opções e atitudes de amor, verdade e bem-querer. O que é do
âmbito da natureza, permanece nos ciclos próprios da natureza. Na Vida
eterna já não há limitações biológicas nem coordenadas espacio-temporais
(com efeito, dizer “eternidade” não significa dizer “muito, muito tempo”, mas
sim “ausência de tempo”). Por não haver esta matriz biológica com as suas
coordenadas limitativas próprias da Vida histórica, as pessoas são
evidentes entre si. Já ninguém “parece que”, “diz que” ou “pode ser que”…
“Eu sou o que sou!”, diz Deus (Ex 3, 14). E no Seu Reino de Vida Plena,
“cada um é o que é!”. O Céu é o Reino da evidência pessoal. Já ninguém
precisa de “dizer-se”, porque todos “são o que são” uns para os outros. Não
há distâncias, desconhecimentos, barreiras, enganos… Na evidência do
encontro acontece a plenitude da Palavra, isto é, da comunicação-comunhão
interpessoal em densidade de amor.
Na Vida eterna, que é Vida unicamente pessoal, já não existe a
dimensão da Voz para as pessoas comunicarem-comungarem e serem umas
com as outras. Já não são precisas mediações para a Palavra, já não são
necessários instrumentos para transpor as barreiras da não evidência e
chegar a comunicar pessoalmente com o outro. Porque essas barreiras
ficaram no domínio da história da qual a morte nos fez nascer. O que é
verdade para as pessoas humanas nascidas já para a eternidade pelo parto
da morte, é-o também para as Pessoas Divinas, eternas por natureza, às
quais chamamos Pai, Filho e Espírito Santo.
- Deus é “Palavra”
Deus é Pessoas em comunhão eterna e plena de Amor. Por isso, Deus
é Palavra, neste sentido da comunicação-comunhão, encontro, relação, ser
para e com o outro.
Assim, há luz do que reflectimos, percebemos que nos animais há Voz
sem Palavra. Entre os Homens em construção histórica há Voz e Palavra ou,
falando mais humanamente, há Voz da Palavra ou Palavra na Voz. Em Deus,
e em todas as pessoas que já são plenamente Nele, há Palavra sem Voz. É
por ser Palavra sem Voz que, ao acontecer na Vida dos Homens, a Palavra
de Deus ganha Voz nas tantas vozes deles. A bíblia é Voz privilegiada de
tantos homens e mulheres que fizeram a experiência desta Palavra nas suas
vidas, voz de justos e de injustos, de pecadores e convertidos… É uma
mediação privilegiada de acolhimento da Palavra de Deus, isto é, de
encontro relacional íntimo com Ele em densidade de amor.
A Palavra de Deus não é uma página, não é um som… é uma
Experiência de encontro íntimo com Deus que Se faz Dom, Comunicação,
Graça, porque é Amor. A Palavra de Deus é um Acontecimento pessoal-relacional, não uma codificação linguística ou literária. Por isso, “escutar a
Palavra de Deus” não é um exercício de audição, mas um exercício de
transformação. A Palavra de Deus não nos entra pelos ouvidos! Pelos
ouvidos podem entrar as tantas vozes e palavras que são mediação dessa
Palavra, mas a Experiência da Palavra só acontece na intimidade mais
profunda de cada pessoa.
- A “Palavra” de Deus é fecunda… mas a “Bíblia” pode ser estéril
Conheço pessoas que ouvem há décadas leituras bíblicas em
eucaristias, reuniões paroquiais, retiros… e a sua Vida não está
minimamente moldada pela Palavra. Será a Palavra de Deus ineficaz, inútil
ou estéril? Ou será que se passam décadas a ouvir apenas letra morta da
Bíblia que, por muito piedosa que seja, entra pelos ouvidos e encontra a
porta do coração aferrolhada, ficando assim impossibilitada de ser mediação
da Palavra? E letra morta após letra morta, vemos tantas vezes nos
primeiros bancos das nossas assembleias gente tão morta como a letra de
que se alimenta e de coração tão ressequido como são secas as páginas
que folheiam.
“Eis o que diz o Senhor: assim como a chuva e a neve descem do céu,
e não voltam mais para lá, senão depois de empapar a terra, de a fecundar e
fazer germinar para que dê semente ao semeador e pão para comer, o
mesmo sucede com a Palavra que sai da Minha boca: não voltará para Mim
vazia, sem ter realizado a Minha vontade e sem cumprir a sua missão.”
(Is 55, 10-11).
A Palavra de Deus é Fecunda; mas a Bíblia pode ser estéril… A
Palavra de Deus é Transformante; mas a Bíblia pode ser inútil… A Palavra de
Deus é Eficaz; mas a Bíblia pode ser inconsequente…
Conheço dois não-crentes que já leram a Bíblia toda, do primeiro ao
último livro. E só encontraram nela motivos para continuar a não crer e a
não querer crer!
A Bíblia já serviu para justificar tantas coisas… tantas mortes,
guerras, injustiças, tiranias… tudo se pode ir buscar à Bíblia! Todos os
motivos e todas as justificações lá foram encontradas durante bastantes
séculos… E depois chamava-se-lhe “Palavra de Deus”; porque Deus tem
sempre as costas largas…
- O “perigo” de chamar à Bíblia “Livro Sagrado”
A Bíblia é uma mediação privilegiada da Palavra de Deus para nós,
mas fora deste horizonte de Fé, ela costuma tornar-se três coisas bem
diferentes:
1. um conjunto piedoso de páginas inconsequentes;
2. uma grande fonte de ambiguidades e incompreensões sobre o “ser
e o querer” de Deus e do Homem;
3. um perigo, quando se lhe chama “Livro Sagrado”, porque nesses se
encontra sempre uma “justificação divina” para quase tudo o que
quisermos.
Dêmos definitivamente o salto de discípulos de Jesus. Tornemo-nos
cristãos de uma vez por todas, maduros na Fé, na Esperança e no Amor,
protagonistas da Nova Aliança prometida por Deus, não já Aliança de uma
Lei escrita como letra morta em pedras mortas, mas a Nova Aliança da “Lei”
do Espírito inscrita no coração dos crentes que permanentemente é neles
fonte de Vida e Novidade: “Dias virão em que Eu firmarei uma Nova Aliança
com a casa de Israel e a casa de Judá – diz o Senhor: não será como a
aliança que estabeleci com os seus pais, quando os tomei pela mão para os
fazer sair do Egipto, aliança que eles não cumpriram; imprimirei a minha lei
no seu íntimo e gravá-la-ei no seu coração…” (Jer 31, 31-33)
Disse Jesus aos seus discípulos, aos de todos os tempos e lugares,
por isso também a nós: “A semente é a Palavra de Deus…” (Mt 13, 3-23).
Uma semente! Vida, Vida, Vida! É princípio de Vida, é génese de novidade, é
força que rompe a terra e desponta, é tornar-se flor que perfuma e fruto que
alimenta. É a Palavra de “um Deus de vivos e não de mortos” (Mc 12, 27).
Como é que pudemos fazer dela uma coisa morta? Já vi rostos
escandalizados por eu ter a minha Bíblia toda sublinhada, em algumas
páginas até com diversas cores e comentários para me chamar a atenção de
alguns pormenores importantes. Já fui acusado de “falta de respeito pela
palavra de Deus” (é claro que quem me acusava não percebia a diferença
entre palavras e Palavra…) por estar a usar as capas duras da bíblia como
suporte de uma folha em que escrevia! Em que paganismos se meteram os
cristãos… De uma vez por todas, “quem tiver ouvidos para ouvir ouça”: a
bíblia é uma mediação privilegiada da Palavra de Deus, mas não se identifica
com ela; a Palavra de Deus é um Acontecimento pessoal de revelaçãorelação de Deus em nós, experiência íntima de encontro no amor com
Aquele que é Amor.
De uma vez por todas, deixemos emergir a Nova Aliança revelada e
realizada por Deus em Jesus de Nazaré, Aliança não da letra mas do
Espírito, não do livro mas da Palavra!
7-
A Bíblia não é a Palavra de Deus
paginada e encadernada em capas duras
A Palavra de Deus é Deus-Palavra. Escutar a Palavra de Deus é acolher
a presença transformante de Deus que se faz Palavra, isto é, comunicação,
revelação, encontro comigo em mim.
A Bíblia não é a Palavra de Deus encadernada…
A Bíblia não é a Palavra de Deus paginada e encadernada em capas
duras. Se acontecer, por exemplo, queimarmos uma bíblia, não queimamos a
Palavra de Deus. E ainda que fizéssemos arder todas as Bíblias do mundo,
nada mais teríamos feito do que destruir uma mediação privilegiada para a
Palavra de Deus acontecer em nós.
Deus é Amor! Quando falamos dos dons e dos modos de presença de
Deus na nossa vida, quase sempre usamos a linguagem do “ter”. Mas Deus é
o “Ser” em plenitude. Deus não “tem” nada para dar; Deus dá o que é, dá-se.
Para dar e se fazer presente, Deus não precisa de “realidades terceiras” entre
Ele e nós. Deus dá-se. Deus faz-se o Dom que nos oferece. Não recebemos
nada de Deus senão Deus mesmo! Deus não tem Amor para dar… Deus é
Amor, e o Amor faz-se dom gratuito e permanente.
Também em relação à Palavra. Deus não tem uma Palavra para nos
dar. Deus é Amor, e o Amor faz-se Encontro, Comunicação (= Comunhão),
Palavra para o amado. Escutar a Palavra de Deus, por isso, não é um
exercício de audição, mas uma experiência de encontro íntimo, relação
pessoal, diálogo amoroso com Deus. A Palavra de Deus é um
Acontecimento, não um som. É uma experiência relacional que tem lugar no
coração do crente, não uma escritura sobre a qual se passam os olhos.
- Deus não é um “mágico”. A Bíblia não é um “ditado de Deus”
A Palavra de Deus é Deus-Palavra.
Escutar a Palavra de Deus é acolher a presença transformante de Deus
que se faz Palavra, isto é, comunicação, revelação, encontro comigo em mim.
A Bíblia tem um papel importante de mediação, na medida em que coloca nas
nossas mãos partilhas de experiências de Deus de homens e mulheres ao
longo de mais de dez séculos, experiências de escuta da Palavra, e também
acontecimentos contrários, opções e atitudes motivadas não pela escuta da
Palavra mas pelos impulsos desumanizantes do pecado que muitas vezes se
aninham no coração da gente. Por isso, conhecida e interpretada como
mediação da Palavra, torna-se fonte de uma Sabedoria nova que brota em
nós por acção do Espírito Santo. O Espírito da Sabedoria dos sábios da
Bíblia é o Espírito da Sabedoria que continua a apelar os crentes de hoje, os
da Nova Aliança, a viverem uma Sabedoria conforme ao projecto de Deus já
revelado e saboreado. O Espírito Santo não está velho nem reformado!
Continua a suscitar a Experiência da Palavra e a deixar em nós um travo de
Sabedoria que o mundo não pode dar.
É bom percebermos agora o que se quer dizer quando se afirma que
os livros da Bíblia são “escritos inspirados”. O que significa a inspiração
divina? Fujamos a um dos perigos maiores da fé: a tentação de fazermos
permanentemente de Deus um mágico. A Bíblia não é um Ditado de Deus que
alguém foi transcrevendo! Foi escrita por centenas de autores, ao longo de
séculos, lado a lado com muitos outros escritos que, com o tempo, se
perderam e não chegaram a ser integrados na recolha de textos a que
chamamos “Bíblia”.
Falar em inspiração de Deus significa dizer que o que subjaz a toda a
Bíblia, o que lhe dá origem da primeira à última página, é a experiência da
Palavra de Deus no coração de algum crente, de uma comunidade ou de um
povo. “Deus inspirado” (usando o exemplo da respiração…), isto é, Deus
acolhido, experimentado, é o motivo da Bíblia. Não é um conjunto de livros
escritos em escrivaninhas de literatos, mas um conjunto de narrações,
parábolas, símbolos e catequeses que desbordam de corações humanos em
que a Palavra de Deus acontecia de maneira privilegiada.
A Bíblia torna-se, por isso, mediação privilegiada da Palavra de Deus
porque é palavra de Homens que dela fazem experiência.
8-
A Bíblia é uma Biblioteca
A Bíblia não é um livro, mas sim uma biblioteca. “Bíblia” é a palavra
grega que significa, literalmente, “os livros”. Porque o que hoje temos
encadernado como um só livro, é na verdade uma biblioteca com 73 livros,
divididos em duas grandes “prateleiras”: 46 livros no Antigo Testamento, e
27 no Novo Testamento.
A bíblia não é um livro… A bíblia não é um livro, mas sim uma
biblioteca. “Bíblia” é a palavra grega que significa, literalmente, “os livros”.
Porque o que hoje temos encadernado como um só livro, é na verdade uma
biblioteca com 73 livros, divididos em duas grandes “prateleiras”: 46 livros
no Antigo Testamento, e 27 no Novo Testamento.
“Testamento” deve entender-se no sentido de “Aliança”, Revelação de
Deus aos Homens e Relação de Deus com os Homens.
Jesus de Nazaré é o centro da Bíblia e de toda a História de Salvação,
porque nele se finaliza plenifica a Antiga Aliança, e inaugura a Nova e Eterna
Aliança, não da lei mas do Espírito, não do rito mas da Fé, não do culto mas
do Amor.
Os 73 livros que formam a Bíblia saíram de centenas de mãos,
milhares de vidas vividas, milhares de quilómetros percorridos durante
centenas de anos… Por isso são reflexo também de inúmeras culturas,
religiosidades, costumes, simbologias de dezenas de povos de outros tantos
lugares por onde o povo bíblico, o de antes e o de depois de Jesus,
palmilhou terra.
O ser humano nunca percebe a revelação de Deus em “estado
quimicamente puro”, mas sempre através de mediações. No caso dos livros
bíblicos, esta mediação está marcada pela história pessoal de cada autor e a
sua cultura, carregada de símbolos próprios, linguagem característica,
mundividências particulares, experiências marcantes, etc. É em Homens
concretos, no tempo e no espaço, que a Palavra de Deus acontece como
experiência fecundante de Vida Nova. E é com Homens concretos, no tempo
e no espaço, que Deus conta para serem suas mediações. Por isso, o Homem
que faz das suas palavras mediação da Palavra de Deus fá-lo sempre com a
sua própria cultura, visão, história, limitações, intenções…
- Diferenciar “Palavra” de “palavras”
É importante compreendermos a diferença entre Revelação de Deus e
contexto histórico-cultural.
A Revelação de Deus acontece sempre por mediação de um contexto
histórico-cultural, mas não se identifica com ele. Conhecer a Bíblia é
importante, mas isso não significa conhecê-la “à letra”. A letra é só a casca
do que nos interessa… É necessário aprendermos a conhecer e desmontar o
contexto histórico-cultural da linguagem bíblica para que possamos, de
facto, ser encontrados pela Revelação de Deus que lhe subjaz. É a diferença
entre a Palavra e as palavras. A Palavra pertence ao âmbito da Experiência de
Deus, sempre pessoal e íntima. As palavras pertencem ao âmbito do
contexto histórico-cultural, que deve ser entendido para ser relativizado.
Como imagem, podemos usar um rebuçado ou uma noz. Um rebuçado
delicioso, dulcíssimo, mas embrulhado em imensas voltas de um papel muito
antigo e difícil de tirar porque não lhe conhecemos as dobras nem as pontas.
Ou uma noz madura, mas que não podemos saborear enquanto não
aprendermos a partir a casca…
Temos que aprender a libertar-nos das palavras para podermos chegar
à Palavra. E esta aprendizagem de libertação faz-se pelo caminho da
formação permanente nos conteúdos da Fé.
A falta de consciência desta necessidade de discernir entre contexto
histórico-cultural e Revelação de Deus é a causa principal para termos feito
da Bíblia um adorno de cómoda a condizer com um “naperon” redondo de
renda branca…
É ao nível da Revelação de Deus que descobrimos os conteúdos
bíblicos da nossa Fé, e não ao nível do contexto histórico-cultural.
Para termos uma ideia da variedade de contextos histórico-culturais,
basta-nos compreender que os textos mais antigos da Bíblia foram escritos
por volta do ano 1000 a.C., e os últimos livros do Novo Testamento
acabaram-se de escrever já no século II d.C. São cerca de 1100 anos! E na
sua grande maioria, os livros não são obra de um autor isolado que se senta
a escrever. A história normal dos livros bíblicos passa por três etapas de
formação, mais ou menos longas e separadas entre si: primeiro, a tradição
oral, narrando de geração em geração feitos, experiências, aprendizagens e
boas-novas; entretanto, vão-se escrevendo pequenos fragmentos e sínteses;
por fim, a terceira etapa dá-se quando algum autor ou pequena comunidade
de crentes recolhe, organiza e fixa por escrito, dando acabamento, ao que já
lhes vinha alimentando a fé desde cedo.
Por terem este processo de formação, os livros bíblicos não abundam
em teorias. Estão repletos de vida e movimento, experiências em vez de
hipóteses, aprendizagens e não receitas baratas ao estilo das
espiritualidades light que hoje são top de vendas.
9-
A Bíblia não é "edificante"
Os livrinhos light que enchem as estantes das livrarias em secções
chamadas de “espiritualidades”, esses sim, são livrinhos edificantes. Quanto
à Bíblia… não é nada “edificante”! Encontra-se nela o melhor e o pior, a
maior virtude do justo e o mais terrível homicídio do pecador, que às vezes
até são a mesma pessoa. Quanto ao que diz de Deus… vai também do melhor
ao pior, tamanha é às vezes a miopia do coração humano quando se trata de
compreender o ser de Deus…
A bíblia não é edificante…
Os livrinhos light que enchem as estantes das livrarias em secções
chamadas de “espiritualidades”, esses sim, são livrinhos edificantes. Cheios
de receitas fáceis, fórmulas mágicas, facilitadores de vida, métodos para
desistir de lutar pelas batalhas em que podemos sair magoados… Tudo neles
está medido para elevar o ânimo, serenar as preocupações e anestesiar as
dores de ser. Nada neles perturba, machuca, põe em causa, inquieta, acusa.
Tudo é doce, tudo é soft, e sobretudo se lido ao som de uma música oriental
zen…
Quanto à Bíblia… não é nada “edificante”! Encontra-se nela o melhor e
o pior, a maior virtude do justo e o mais terrível homicídio do pecador, que às
vezes até são a mesma pessoa. Quanto ao que diz de Deus… vai também do
melhor ao pior, tamanha é às vezes a miopia do coração humano quando se
trata de compreender o ser de Deus…
Incomoda-me ver exemplares da Bíblia nas mesmas estantes de
“espiritualidade” em que estão os livrinhos edificantes das vidas light.
Demonstra um total desconhecimento… A Bíblia é inquietante,
desconcertante, real, às vezes sonhadora, outras vezes grotesca, umas vezes
poética e algumas páginas mais à frente, rasteira… Ao contrário desses
livrinhos, “escritos de modo perfeito por pessoas quase perfeitas e com
teorias perfeitas para chegar à perfeição”, a Bíblia é desmascaradamente
imperfeita! Cheia de tentativas, enganos, recomeços, fracassos, limitações…
Homens e mulheres imperfeitos que gritam a sua imperfeição. Homens e
mulheres que fizeram na sua história experiência de Deus, profunda, mas
sempre imperfeita e limitada pelas suas próprias imperfeições e limitações, e
que a partilharam com outros, com verdade, mas sempre com as
imperfeições e limitações de cada história pessoal, cultura, contexto…
Para além de tudo isto (ou, talvez, apesar de tudo isto…), ler a Bíblia
como mediação privilegiada da Palavra de Deus, torna-a perigosa,
transformadora… porque abrimos a porta a que nos ponha em causa…
Mas, não pode admirar a diferença entre a bíblia e os outros
companheiros de prateleira. Porque respondem a questões diferentes. Na
cabeça da maior parte dos crentes, a revelação bíblica é para dizer ao
Homem “o caminho a seguir”, dizer-nos “Como devemos ser”. Mas não é
isso! Essa é a resposta à qual respondem os livrinhos light de receitas de
pseudo-espiritualidade. A revelação bíblica de Deus diz-nos, antes que
qualquer outra coisa, Quem é Deus. Não é uma moral, mas uma Boa Notícia!
A Bíblia é uma mediação privilegiada para chegarmos ao conhecimento de
Quem é Deus.
E de nós, o que diz? No Ser de Deus, Amor criador e salvador,
descobrimo-nos como projecto Seu, sonho amado e plenificado por Si.
Então, começamos a reconhecer-nos criados à “imagem e semelhança de
Deus” e recriados em plenitude na ressurreição de Jesus Cristo. No Amor de
Deus, descobrimos Quem é o Homem. A revelação de Deus conduz-nos a
saborear Quem é Deus e Quem é o Homem. E se quisermos fazer ao Deus da
Bíblia a pergunta típica da moral e das “espiritualidades cor-de-rosa”: “Como
devemos ser?”, Ele responder-nos-á novamente Quem somos chamados a
ser, e acrescentará que o “como” fica ao nosso critério, está nas nossas
mãos, joga-se nas nossas opções e atitudes, decide-se nos nossos esforços.
10 -
A Bíblia não é “um livro sagrado"
O cristianismo não é uma “religião do livro”. Para os cristãos a Bíblia
não é um “livro sagrado”. Os “livros sagrados” são perigosíssimos, porque
encerram sempre qualquer coisa a que se vem a chamar “lei de Deus”. A
partir daqui, está a porta aberta para todas as opções e imposições
desumanizantes assumidas em nome da “lei de Deus” pelos poderosos que
a controlam.
A bíblia não é um livro sagrado…
O cristianismo não é uma “religião do livro”. O judaísmo e o islamismo
converteram-se nisso.
Algumas seitas cristãs, ultimamente, também se converteram nisso,
pelo modo fundamentalista como lêem e interpretam a Bíblia, e a própria
Igreja já esteve influenciada por essa tentação em séculos passados…
Para os cristãos a Bíblia não é um “livro sagrado”. Os “livros
sagrados” são perigosíssimos, porque encerram sempre qualquer coisa a
que se vem a chamar “lei de Deus”. A partir daqui, está a porta aberta para
todas as opções e imposições desumanizantes assumidas em nome da “lei
de Deus” pelos poderosos que a controlam.
Ainda hoje em dia, centenas de pessoas morrem por ano assassinadas
por alguém cujo último grito é “Por Alá e pelo Islão!”. Em séculos passados,
milhares de Homens foram mortos por espadas benzidas, nas mãos de
Homens com uma cruz ao peito e uma indulgência papal no bolso. Os “livros
sagrados” e as “leis mumificadas” que eles encerram geram sempre a morte.
Mesmo se o período das Cruzadas já vai longe… continua a haver
muitos corações ausentes de Vida, desalojados dela pela “lei de Deus” que
desde a infância lhes ensombrou a possibilidade de serem felizes.
Cristo libertou-nos do domínio da letra da Lei, e introduziu-nos na
dinâmica do Espírito Santo, a fonte da “Lei” da Nova Aliança que é o Amor.
Ama, e faz o que quiseres! Onde antes dominava a Lei, agora habita a
Fé-relação de confiança com Deus (Gal 3-4) Esta é a novidade libertadora da
Nova Aliança que Paulo anuncia em todas as suas cartas às primeiras
comunidades cristãs, contrapondo-a com a “Lei de Deus” da Antiga Aliança
e do seu sinal desde Abraão, que era a circuncisão: “A circuncisão que conta
é a do coração, operada pelo Espírito e não por causa da letra da Lei!” (Rom
2, 29). Em Cristo, não há outra “Lei de Deus” senão a acção transformante e
recriadora do Espírito Santo em nós, Ele que é “o Amor de Deus derramado
nos nossos corações” (Rom 5, 5) para nos fazer renascer no amor e no amar.
Sabemos que a Bíblia não é um “livro sagrado”. Sagrado, além de
Deus, só o ser humano. É a única realidade na criação criada “à Sua imagem
e semelhança” (Gn 1, 26-27). O ser humano é a única imagem que Deus fez
de Si próprio. Por isso me custa compreender os que adoram imagens feitas
pelo Homem, bem-tratam e preservam imagens mortas que Deus não
sonhou, e desprezam com toda a facilidade a única imagem que Deus fez de
Si próprio!
Ao longo de vinte séculos de cristianismo inventámos mais de mil
“coisas sagradas”, mas ainda somos praticamente incapazes de reconhecer
a sacralidade do Homem. Lugares sagrados, celebrações sagradas, tempos e
templos sagrados, livros sagrados, objectos sagrados… e Homens
desprezados!
“Sagrado” significa que pertence ao mundo de Deus, tem cabida n’Ele.
Só o Homem preenche este requisito, porque só o Homem é “à Sua imagem e
semelhança”, criado pessoa, para a Aliança, com interioridade talhada para o
Amor, a Verdade e a Vida. Todas as realidades a que se chamam
piedosamente “sagradas” podem ser, quando muito, realidades
consagradas, isto é, ao serviço da relação entre Deus e os Homens como
mediação de encontro. Por isso, a Bíblia não é um “livro sagrado”, mas pode
ser um livro consagrado, ou seja, pode ser posto ao serviço da escutaacolhimento de Deus, como mediação privilegiada para acontecer em nós a
Sua Palavra. Qual é a condição para que esta consagração aconteça? Como
em todas consagrações no cristianismo, a condição é a Fé.
11 -
Uma parábola sobre a Bíblia
Há alturas em que a vida não é fácil para quase ninguém… O Gervásio
viveu numa altura dessas. O dinheiro era à míngua, o futuro não sorria a
ninguém e as promessas de melhoras não pareciam nunca passar disso
mesmo…
Uma parábola sobre a Bíblia…
Há alturas em que a vida não é fácil para quase ninguém… O Gervásio
viveu numa altura dessas. O dinheiro era à míngua, o futuro não sorria a
ninguém e as promessas de melhoras não pareciam nunca passar disso
mesmo… De qualquer modo, o Gervásio era feliz. Apesar de ter nascido
numa família pobre, sabia muito bem o que era ser amado. O pão não
sobejava em casa, mas ainda assim havia sempre espaço para mais alguém
que precisasse.
Já rapaz feito, o amor pregou-lhe mais uma das suas… Apaixonou-se
pela Teresa, vizinha lá da terra que desde pequeno conhecia. Um dia lá lhe
disse… E um dia lá se casaram… Depois, chegou o dia em que nasceu o
primeiro filhote… E houve festa naquela casa onde os móveis não eram de
luxo mas os rostos reluziam de serenidade e as pessoas se amavam. O
Gervásio e a Teresa amavam-se de verdade. Mas a vida estava cada vez mais
difícil… As rendas subiam, as coisas todas encareciam e o que ganhavam
nos empregos já não dava para o necessário…
Um certo dia, o Gervásio recebeu uma proposta quase irrecusável: um
emprego na França, durante um ano, ao fim do qual receberia o
correspondente a quase vinte anos de trabalho no emprego em que estava!
Conversou com a Teresa e decidiram os dois que, apesar de muito
difícil, aceitar era o melhor a fazer naquele momento. Em nome deles, do
filhote mais pequeno e do pequenino que já estava na barriguita da mãe…
Com uma lágrima teimosa que não conseguia segurar, o Gervásio lá se
despediu da Teresa e do seu pequenote e seguiu numa manhã de Primavera
para a França.
Passaram-se umas semanas, e ao longo de todos os dias o Gervásio
pensava na sua Teresa, nos seus pequenos, em como queria estar com eles,
escutá-los, contar-lhes tudo o que tinha visto na França, dizer-lhes o quanto
os amava… Mas como?! O Gervásio pouco mais sabia escrever que o seu
nome…
E continuava com o desgosto de remoer a saudade no silêncio do seu
coração.
Mas apenas por uns dias, porque… Numa noite, já deitado, resolveu
escrever uma carta: “Saia o que sair!”, disse ele… Levantou-se de um pulo,
agarrou num papel e numa caneta, e começou a tentar escrever algo
parecido com “Querida Teresa”… Gatafunhou, com uma péssima caligrafia
uma coisa assim: “crida trêza”… E, animado pela novidade, lá continuou
empolgado, contando as coisas bonitas que já vira em França, os momentos
mais engraçados e também os mais complicados da viagem, as coisas que
ainda esperava fazer e descobrir… e, acima de tudo, com a sua caligrafia
quase ilegível e com o seu português arranhado, dizia à Teresa o quanto a
amava, contava-lhe como sonhava tantas vezes com ela e com os filhos,
segredava-lhe as ternuras mais fundas do seu coração apaixonado…
A primeira carta que escreveu na vida saiu-lhe muito mais longa do
que esperava! No outro dia, logo pela manhã, enviou-a.
Passados dias, a casa do Gervásio e da Teresa encheu-se de sol
quando a carta chegou.
Teresa leu-a com os olhos molhados de emoção e saudade… Tendo
que soletrar quase cada palavra para lhe decifrar o sentido, ainda assim,
palavra a palavra, sentiu-se abraçada nos braços do seu amor. Cada palavra
era um beijo seu, cada frase era um abraço! Teresa guardou a carta como se
de um tesouro se tratasse. E era, mas só ela o sabia…
Gervásio, entretanto, escreveu outra carta, e depois outra, e outra… E
ia melhorando carta após carta, escrevendo-as cada vez mais perfeitas,
corrigindo muitos erros que abundavam em anteriores, completando coisas
que já tinha dito… Quase escrevia uma carta por dia! Teresa ia-as guardando,
sempre juntas, as cartas do seu amor. As suas cartas de amor…
Um certo dia em que o filho mais novo deixou uma janela aberta,
quando a Teresa abriu a porta para entrar em casa a corrente de ar foi tão
forte que todas as papeladas que estavam em cima do móvel da sala voaram
pela janela. A maior parte eram cartas do Gervásio! A Teresa fechou a porta,
correu à janela, mas era muito tarde… as cartas voavam ao sabor do vento
que naquele dia estava especialmente forte. Nunca mais as veria… Sentou-se
no sofá consolando-se a si própria com a certeza de que o Gervásio
continuaria a escrever-lhe e que o vento levara as cartas mas não o amor que
nelas estava inscrito.
Entretanto, nos quatro cantos da cidade, muitas pessoas começaram a
encontrar folhas de papel escritas à mão pelas ruas, às portas de casa, nos
passeios, nos telhados… Eram as cartas do Gervásio! A maior parte das
pessoas ao pegar nas cartas apenas reparava que estava escrita num papel
muito amarelado que não era papel próprio para escrever cartas, com uma
caligrafia péssima, quase incompreensível e uma linguagem muitíssimo
imperfeita.
O que faziam? Ou a deixavam cair novamente onde estava, ou a
deitavam ao lixo. No entanto, ainda foram alguns os que tentaram ler as
cartas que encontraram. Mas, ao ler, não compreendiam o que aquelas
palavras queriam dizer… Percebiam uma ou outra palavra, mas não o sentido
das frases. É que o Gervásio falava muito das coisas que tinha visto e lhe
tinham acontecido usando muitos exemplos e recordações de outras
experiências que fizera e lugares que conhecera com a Teresa.
Eram os segredos do seu amor… E as pessoas não entendiam esses
segredos porque não conheciam a história de amor do Gervásio e da
Teresa…
Houve apenas uma ou duas pessoas que perceberam as cartas que
encontraram.
Sabiam de amor e reconheceram as suas próprias experiências no
jeito simples e imperfeito de dizer o amor que estava naquelas cartas. Mas
foram muito poucos… Porque só podiam entender as cartas do Gervásio à
Teresa quem estivesse disposto a lê-las com a gramática do coração e o
dicionário do amor. Esses eram capazes de corrigir as imperfeições,
desvendar o sentido oculto das palavras mal escritas e decifrar o significado
de algumas palavras já meio “afrancesadas” no meio do texto… Esses eram
capazes de chegar ao segredo que se escondia sob a aparência rude
daquelas cartas mal escritas…
E o segredo era: “Teresa, amo-te! Sinto a tua falta. Penso em ti
constantemente!”
Esses sim, percebiam…
Porque só com amor se poder ler o que por amor se escreveu!
PARTE II:
ANTIGO TESTAMENTO
12 -
Os primeiros cinco Livros da Bíblia
Pentateuco é uma palavra grega que significa literalmente “cinco
invólucros”. Estes invólucros eram uns cilindros metálicos utilizados para
guardar e proteger os papiros e pergaminhos, os livros da antiguidade,
sempre manuscritos em peles de animais ou folhas de árvores tratadas e
secas.
PENTATEUCO
Os primeiros cinco livros da bíblia
Porquê Pentateuco?
Pentateuco é uma palavra grega que significa literalmente “cinco
invólucros” (penta=cinco; teucós=invólucro). Estes invólucros eram uns
cilindros metálicos utilizados para guardar e proteger os papiros e
pergaminhos, os livros da antiguidade, sempre manuscritos em peles de
animais ou folhas de árvores tratadas e secas. É o nome dado geralmente
pelos cristãos aos cinco primeiros livros da bíblia, aqueles que os judeus
chamam de Torah (ensinamento, lei).
Para os cristãos, o Antigo Testamento tem sobretudo um sabor
profético, porque o lemos à luz de Cristo, o Esperado, Preparado e
Anunciado do Povo de Israel. Por este motivo têm para nós significado muito
especial os livros proféticos. Mas aquilo que nós chamamos simplesmente
de “Antigo Testamento”, é para o povo judeu a sua Bíblia. Como não têm o
horizonte de Cristo como realizador em plenitude das promessas de Deus ao
seu povo, o grande centro da Bíblia não está posto nos profetas como os
protagonistas e arautos da esperança da vinda do Messias, mas durante os
séculos foi-se transpondo esse centro de importância exactamente para a
Torah como Lei do povo. Assim, esta assume toda a importância, a ponto de,
ao dizer Torah, um judeu englobar, não só os primeiros cinco livros, mas
também todos os outros da Bíblia.
Como vamos ver, é pelo facto de lermos o Antigo Testamento à luz de
Cristo, que chegamos a um horizonte de compreensão dos seus livros que
ele, encerrado em si próprio, não teria. É a revelação do Novo Testamento
que ilumina e plenifica a revelação do Antigo Testamento.
13 -
Livro do Êxodo
Êxodo significa “saída, passagem”. O livro do Êxodo narra, de forma
épica a saída, numa mistura de fuga e expulsão, do povo do Egipto para a
Terra Prometida por Deus.
ÊXODO
Êxodo significa “saída, passagem”, e todo o tema do livro é
exactamente o fim da opressão do povo judeu no Egipto, cuja estadia
começou com a família de Jacob, levada para lá por José, o seu filho vendido
ainda criança pelos irmãos, narrada no livro do Génesis. O livro do Êxodo
narra, de forma épica (com todo o estilo de grande epopeia e acontecimentos
maravilhosos, como é costume narrar aquilo que é importante. Como, por
exemplo, a narração épica que os Lusíadas fazem das descobertas
portuguesas…) a saída, numa mistura de fuga e expulsão, do povo do Egipto
para a Terra Prometida por Deus.
Logo no segundo capítulo do livro é apresentada a personagem mais
importante de todo o Pentateuco e que dá como que unidade a este bloco de
cinco livros, a tal ponto de os judeus considerarem que foi ele o seu escritor:
Moisés. Todo o livro, e mesmo todo o restante Pentateuco daqui para a
frente, não é mais que a narração do desenrolar da viagem entre o Egipto até
à Palestina prometida sob a condução de Moisés.
A importância de afirmar que a viagem do êxodo durou quarenta anos
é simbólica. Sempre que na Bíblia aparecer o número quarenta, ouvido
atento… que a seguir vem alguma coisa importante… É sempre este número
símbolo de um tempo de preparação e purificação para que alguma coisa
realmente importante aconteça.
Neste caso concreto do êxodo, o acontecimento importante é a
conquista da terra de Canaã, a tal Terra Prometida, segundo a fé no Deus da
Aliança, dom do Seu Amor pelo povo.
14 -
Livro do Levítico
Este livro é o mais exclusivamente judaico, porque é o livro do culto,
que nós dificilmente entendemos.
LEVÍTICO
Este título encontra a sua explicação no nome de um dos doze filhos
de Jacob, chamado Levi. A tribo familiar descendente de Levi era chamada a
dos levitas, e eram eles os responsáveis pelos cultos e rituais do povo judeu,
isto é, as suas celebrações propiciatórias, os sacrifícios para expiação dos
pecados, os ritos de purificação, os holocaustos… Eram os sacerdotes dos
judeus, os intermediários do culto entre Deus e o seu povo.
Este livro é o mais exclusivamente judaico, porque é o livro do culto,
que nós dificilmente entendemos. Tudo gira em torno das leis da purificação,
das normas para o culto, dos sacrifícios dos animais, das expiações. É um
livro estruturado em normas e irregularidades, directrizes e correctivos, que
se alternam e entrecruzam entre preocupações religiosas e regras de
controlo social do povo.
Os sacerdotes levitas eram os especialistas deste livro e os
responsáveis por fazê-lo cumprir. Foram exactamente estes que, passados
alguns séculos, deram muitas dores de cabeça a um certo profeta de Nazaré
que andava a desviar o povo do cumprimento restrito das normas da lei e do
culto do Templo de Jerusalém do qual eram eles os encarregados (e, aqui
entre nós, também os grandes beneficiados…)
15 -
Livro dos Números
O livro recebeu este nome por começar com o recenseamento do povo
e por estar depois fortemente marcado por narrações de listagens
genealógicas longuíssimas.
NÚMEROS
O livro recebeu este nome por começar com o recenseamento do povo
e por estar depois fortemente marcado por narrações de listagens
genealógicas longuíssimas, como sinal de como o povo crescia e se
organizava. No fundo, a nível histórico, é a continuação do livro do Êxodo
desde o monte Sinai até quase à Terra Prometida.
Este desenrolar da caminhada tinha sido interrompido com o
aparecimento do livro do Levítico, e agora o livro dos Números continua a
viagem a partir do monte Sinai, onde o Êxodo nos tinha deixado. É um livro
que mistura permanentemente narração histórica com legislação. A narração
tem a ver com as surpresas da caminhada, as fidelidades, infidelidades e
arrependimentos.
A legislação aparece na linha da organização social do povo e do
arrependimento à Aliança que conduz à expiação para reatar a relação de
fidelidade com o Deus que é Fiel.
16 -
Livro do Deuteronómio
Deuteronómio significa “segunda lei”. Este livro é também legislativo,
mas tem um tom mais profético e coloquial que qualquer um dos anteriores.
DEUTERONÓMIO
Deuteronómio significa “segunda lei” (deuterós=segunda; nomos=lei).
No fundo, este livro é também legislativo, mas tem um tom mais
profético e coloquial que qualquer um dos anteriores. Não é sequer um livro
rico em narrações porque a técnica literária que utiliza é colocar na boca de
Moisés longos discursos ao povo, nos quais o Profeta relembra novamente
as normas da Lei do Sinai e adverte o povo a ser fiel à Aliança que Deus
selara com ele no deserto.
Moisés é o líder do povo na marcha do êxodo, e é uma personagem
que ocupa quatro quintos de todo o Pentateuco. E o último livro acaba, não
como se estaria à espera, isto é, com a entrada do povo na Terra, mas com a
morte de Moisés, o condutor, do outro lado do rio que separava o povo de
tomar posse de Canaã, olhando para a Terra Prometida sobre o Monte Nebo.
Na leitura puramente judaica deste facto, Moisés morre à vista da terra
mas não entra nela, como castigo de Deus por algo que não se vislumbra
muito bem o que seja… Mas, numa leitura cristã, o pormenor de a Torah não
ter de verdade um fim, pois termina o livro do Deuteronómio sem que esteja
ainda cumprida a Promessa de Deus, ganha um horizonte de compreensão
muito profundo, na medida em que o evangelista João virá depois a colocar o
início da vida pública de Jesus exactamente no sopé do monte onde Moisés
morreu, como que continuando o que Moisés deixara, e levando à plenitude o
êxodo que Deus prometera…
Que era infinitamente mais grandioso e importante que o do Egipto, e
estava para acontecer na Morte-Ressurreição-Dom do Espírito de Jesus…
17 -
Uma Aliança que nos põe a Caminho
Quatro dos cinco livros do Pentateuco são “escritos e lidos a andar”,
acompanhando o povo pelo deserto. O Homem, segundo a espiritualidade
do Pentateuco, é um permanente itinerante, um peregrino. Para onde? Para
onde Deus quiser!
Uma Aliança que nos põe a caminho…
Quatro dos cinco livros do Pentateuco são “escritos e lidos a andar”,
acompanhando o povo pelo deserto. O Homem, segundo a espiritualidade do
Pentateuco, é um permanente itinerante, um peregrino.
Para onde? Para onde Deus quiser! É esta a verdade que repousa
serenamente na caminhada do êxodo: Deus encontrou-nos, amou-nos,
desinstalou-nos e pôs-nos a caminho em direcção à Sua Promessa; nesta
caminhada, Ele nunca nos abandonou, mas sempre Se manifestou presente
nas Suas maravilhas, na Sua Aliança, no Seu perdão, na Sua esperança…
Quando Deus está connosco, a vida torna-se caminho. Caminho em
direcção ao que Ele nos promete… E, nesta história, na do povo e na nossa,
o Fiel é sempre Ele! Por isso, caminhamos na confiança de o chão não nos
falhar, caminhamos na certeza de que não nos espera uma ilusão… e, acima
de tudo, caminhamos na certeza de que Deus não desiste de nós, mesmo
quando o cansaço ou o calor estéril do deserto nos fizer pensar em abrandar
os passos e parar de sonhar…
À pergunta “Preferes viver tranquilo ou viver feliz?”, infelizmente,
muitos responderiam “Tranquilo!”, certamente porque confundem facilidade
com felicidade. Esta é tantas vezes a tentação… Foi a do povo, no deserto,
quando a caminhada deixou de ser um mar de rosas e deixou de ter o brilho
entusiasmado do princípio: “Para quê é que viemos para aqui?! Mais valia
termos ficado no Egipto! Ao menos, lá, tínhamos carne, peixe, cebolas,
alhos… Viemos para aqui para passar fome e morrer!...” (Ex 16, 1-3; Nm 11,
5-6)
Ser feliz é viver a caminho. Ser fiel ao Deus da Aliança, ontem como
hoje, é recusar-se a viver sentado ao borralho, libertar-se de todas as
situações que escravizam o nosso coração, afastar-se corajosamente do
Egipto que a todos nos quer agarrar por dentro e fazer o caminho da
libertação, da escuta e da fidelidade ao Deus da Aliança no deserto do
coração.
No início da Bíblia, duas personagens têm importância fundamental
como imagem desta atitude de escuta e acolhimento de Deus que desinstala
e põe a caminho: Abraão e Moisés. Abraão é o modelo dos crentes na atitude
de escuta e obediência dócil à Palavra de Deus, mesmo quando parece ao
coração humano desprovida de sentido ou de horizonte, como no caso do
sacrifício do seu próprio filho, Isaac. Abraão é apresentado no capítulo 12 do
livro do Génesis, e nesses primeiros capítulos de narração a relação dele
com Deus acontece sempre nestes moldes: Deus dirige a Palavra a Abraão,
que escuta; Deus dá-lhe uma missão; Deus faz-lhe uma promessa, isto é,
explica o sentido da missão; e depois, Abraão… e depois, Abraão, nunca diz
nada! Faz. Não pergunta, não resmunga, não manda esperar, não pede
alternativas, não põe condições… Faz! (Gn 12, 1-4). Por isso, Paulo viria a
apresentar aos cristãos da comunidade de Roma Abraão como modelo de fé,
por ter acreditado para além de todas as razões e “ter esperado mesmo
contra toda a esperança”! (Rom 4, 18)
- Descalça-te de tudo o que te impede…
Moisés é o íntimo de Deus, o “amigo de Deus que conversava com Ele
frente a frente, como fazem os amigos” (Ex 33, 11), o profeta dos encontros
privilegiados. Passeava tranquilamente os rebanhos do seu sogro pelo
monte Horeb, quando faz a experiência da sarça-ardente, arbusto que ardia
sem se consumir, como Deus, permanente novidade crepitante, Amor que
não cessa e não se esgota, presença que aquece, purifica, inflama, mas não
destrói… (Ex 3, 1-14) Escuta a Palavra que o manda tirar as sandálias, porque
o chão era sagrado, e nada se devia interpor entre ele e o sagrado. “Tira as
sandálias”, significa “Descalça-te de tudo o que te impede de assentar
verdadeiramente os pés na rocha firme que é o teu Deus”…
Agora, de pés no chão e de coração assente, por Deus é enviado
novamente ao Egipto, de onde tinha fugido, para ser o líder da libertação que
o próprio Deus sonhara e conduziria. “Mas, Senhor Deus, eu sou gago!!!” E
Deus não desiste… Com Moisés aprendemos que o principal para a
fecundidade da nossa missão não é o que nós temos para dar mas o que
Deus tem para nos pedir! Quando Deus chama, Deus capacita, porque Deus é
Amor, e nele nós próprios nos tornamos sempre mais capazes do que
seríamos sem Ele. Que o diga Moisés… Deus não se deixou derrotar pelas
suas desculpas e incapacidades (nem se deixa derrotar pelas nossas…), e
responde a Moisés: “Vai, sou EU que te envio! EU estarei com a tua boca e te
ensinarei o que deverás dizer!” (Ex 4, 10-12).
E então, na docilidade à Palavra escutada e à Presença experimentada,
Moisés renasce, torna-se um homem novo! De gago converte-se em profeta
que enfrenta e derrota o faraó do império mais poderoso do tempo; de pastor
de um rebanho de ovelhas que nem sequer eram suas, converte-se em pastor
de um povo na sua caminhada para a liberdade. Quando a Bíblia fala no
“Deus dos Impossíveis”, é destes milagres que está a falar, que são tão de
ontem como de hoje, para os corações disponíveis…
18 -
Viver na dinâmica do Dom
Eis a revelação de um Deus que toma a iniciativa. Um Deus que não reage simplesmente às súplicas dos homens ou aos seus méritos, mas o Deus
da Iniciativa Amorosa, gratuita: não pedida, não sonhada, não merecida, não
possível sem Ele…
Viver na dinâmica do Dom…
“Eis o que disse o Senhor a Moisés: EU vi a opressão do meu povo
que está no Egipto, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspectores; EU
conheço, na verdade, os seus sofrimentos. EU desci a fim de o libertar da
mão dos egípcios e de o fazer subir desta terra para uma terra boa e
espaçosa, para uma terra que mana leite e mel…” (Ex 3, 7-8)
Eis a revelação de um Deus que toma a iniciativa. Um Deus que não reage simplesmente às súplicas dos homens ou aos seus méritos, mas o Deus
da Iniciativa Amorosa, gratuita: não pedida, não sonhada, não merecida, não
possível sem Ele…
Já nos relatos da criação é esta a revelação de Deus que se esconde
sob as palavras e as imagens do Deus que cria por Amor e não por
necessidade, que sonha um “toque de génio” na sua criação quando a
coloca em função do Homem, menina dos Seus olhos criado à “Sua imagem
e semelhança” (Gn 1, 26) e ao qual se dá por inteiro num “beijo” que o faz
viver da própria Vida de Deus (Gn 2, 7).
No acontecimento do êxodo é esta mesma gratuidade amorosa que faz
de fio condutor de toda a caminhada, desde a vocação de Moisés até à
entrada na Terra. Durante a caminhada, apesar da infidelidade do povo, da
sua rebeldia e impaciência, o caminho serpenteia entre os dons que Deus
envia ao povo: o maná e as codornizes para se alimentarem, a água a brotar
de um rochedo, a lei para o povo viver segundo a Aliança que Deus lhe
propunha para ser feliz…
No caminho do êxodo que brota da escuta confiada da Palavra de
Deus que nos convida a fazer as malas e partir, aprendemos, ontem como
hoje, que tudo é Dom para quem vive de coração agradecido. Expressão por
excelência desta realidade de fé são as palavras que Moisés dirigiu ao povo,
já perto de entrar na Terra Prometida e há tanto esperada: “Quando o Senhor
teu Deus te introduzir na terra que vos há-de dar, terra de grandes e belas
cidades, que não edificaste, com casas repletas de bens, que não juntaste,
com cisternas abertas, que não cavaste, com vinhas e oliveiras, que não
plantaste… então comerás e ficarás saciado. Livra-te, por isso, de
esqueceres que foi o Senhor Deus quem te tirou da terra do Egipto, da casa
da servidão! E só a Ele, teu Deus, adorarás e servirás.” (Deut 6, 10-13). Tudo
é Dom para quem sabe que Deus é Graça!
19 -
Uma Aliança à espera de Cristo
A Nova Aliança de Deus com os homens, inaugurada em Cristo, não é
nova por ser outra. É nova por ser a Aliança que vem desde o princípio mas
purificada, re-novada e levada à plenitude do sonho de Deus.
Uma Aliança à espera de Cristo…
O povo judeu começou a entender mal o conceito de “povo” e a sua
missão enquanto tal.
Se tinham sido escolhidos por Deus, era para serem no mundo uma
presença mediadora da Palavra e do Amor de Deus por todos os homens,
não para se fecharem em si próprios e se declararem diante de todos como
os detentores em exclusividade da Bondade e da Salvação de Deus.
Alguns profetas disseram-no bem claramente, apontaram ao povo a
missão de ser para os outros povos voz do projecto salvador de Deus para
todos os homens e a infidelidade. Mas não foram muito bem escutados… O
livro de Jonas, por exemplo, tem este tema da relação de Deus com os
pagãos como central, construindo uma parábola espantosa ao longo da qual
Deus quer salvar o povo de Nínive, pagão, e o profeta Jonas faz de tudo para
impedir que essa vontade de Deus se realize através dele. E quando chega a
Nínive, literalmente forçado por Deus, cumpre a sua missão sem o mínimo de
entusiasmo e esperando interiormente que dela não viesse a resultar a
conversão do povo. No entanto, o povo converte-se, e Deus rejubila! Jonas,
por seu lado, entristece-se profundamente com isso e pede a Deus a morte,
porque não aguenta ver que o Amor e a Salvação de Deus sejam também
para os não judeus. Chama a Deus “coração de manteiga” (Jn 4, 2) e prostra-se no chão à espera de morrer, enquanto Deus lhe explica com ternura a
grandeza do Seu amor por todos os homens.
Então, o êxodo não é algo que fique fechado nas fronteiras de um
povo. Como património histórico, é do povo judeu; mas como património
espiritual, é de toda a humanidade à qual Deus se revela e com a qual faz
Aliança de amor. Assim, o êxodo mais importante é o do coração, não o da
geografia. E é a este que todos os homens estão chamados. O êxodo que
Deus propõe, ontem como hoje, acontece por dentro, ao nível da
interioridade humana. Caminhar do Egipto à Terra Prometida é escutar a
Palavra de Deus que nos desinstala e nos põe a caminho, libertando-nos do
nosso Egipto interior, o país do egoísmo, em direcção à nossa Terra da
Promessa, o país do amor.
O êxodo do povo de Israel não pode ser só uma lembrança… é um
apelo! Fazer êxodo hoje é este peregrinar do nosso “eu”, tranquilo, medíocre,
egoísta, instalado, cheio de medos e escravidões, em direcção ao “Tu” de
Deus, verdadeiro dador de Vida Nova em Liberdade e Felicidade. Se para isso
for preciso atravessar o deserto, pois assim seja! Deus está connosco, isso
nos basta! Deus não nos engana, isso nos pacifica! Deus é Amor, isso nos
fortalece!
- O Pentateuco não tem fim…
Esta é a Aliança que Deus fez com Moisés e faz connosco: abandonar
as escravidões do nosso “Egipto interior” para caminharmos, em intimidade
com Deus e dócil confiança, até à Terra Prometida do Seu Amor libertador.
Porque falar de êxodo é sempre mais do que falar num tema da
geografia universal. É a Boa Nova de Deus que toma a iniciativa de vir ao
nosso encontro com o Seu Amor libertador e recriador, sem que nós lho
peçamos, sem que nós o mereçamos, e mesmo sabendo que nem sempre
ouvirá dos nossos lábios um “sim” entusiasmado… É a Boa Nova de que,
nesta história de Amor gratuito, mesmo quando dos nossos lábios se
desprenderem “nins”, ou algum “não”, Deus será sempre SIM para nós.
A Nova Aliança de Deus com os homens, inaugurada em Cristo, não é
nova por ser outra. É nova por ser a Aliança que vem desde o princípio mas
purificada, renovada e levada à plenitude do sonho de Deus. O povo de Deus
já não é uma realidade marcada por fronteiras de sangue, raça, língua ou
nação.
O povo de Deus é uma dinâmica comunitária universal animada pelo
Espírito Santo e alimentada pela escuta da Palavra de Deus e pelas
celebrações da Fé. Eis a plenitude do antigo Povo, eis a plenitude do antigo
Êxodo, eis a plenitude da antiga Aliança! Eis Jesus de Nazaré…
Até literariamente, o Pentateuco não tem fim! O livro do Deuteronómio
acaba em aberto, deixando o povo a olhar para a Terra ainda do outro lado do
rio, e Moisés a morrer. Mas o Pentateuco não podia ficar em aberto para
sempre… É Jesus de Nazaré quem vai “apanhar” o fim em aberto do
Deuteronómio e lhe vai dar pleno cumprimento. Os evangelistas são mestres
em simbolismo, e eram profundos conhecedores da Torah, sua história,
interpretação e espiritualidade.
João, o mestre dos mestres na simbologia bíblica do Novo
Testamento, narra o início da vida pública de Jesus deste modo: “Isto
passou-se em Betânia, na margem além do Jordão, onde João estava a
baptizar…” (Jo 1, 28)
Afinal, para que nos interessa tanto pormenor de lugar?! Porque esse
lugar, onde Jesus foi baptizado, onde todos escutaram a proclamação
messiânica que se fez ouvir na voz do Céu, de onde Jesus partiu para dar
início à sua missão… é exactamente no sopé daquele monte onde Moisés
morreu no fim do Deuteronómio!
Jesus vai dar pleno cumprimento ao que Moisés deixou no início: o
verdadeiro Êxodo (=Páscoa de Jesus), o verdadeiro Povo (=Igreja) e a
verdadeira Terra Prometida (=Céu). A revelação do Antigo Testamento é
levada em Jesus à mais profunda compreensão e ao mais pleno
cumprimento.
O fim do Pentateuco é a Morte-Ressurreiçao-Dom do Espírito de Jesus
Cristo. Aí sim, fica definitiva e plenamente selado o êxodo e a Aliança que
Deus propôs aos homens. “…Moisés e Elias apareceram rodeados de glória
e falavam do seu êxodo (=morte de Jesus) que ia acontecer em Jerusalém…”
(Lc 9, 31).
Este é o Êxodo definitivo, a Páscoa da Nova Aliança, a radical
Libertação da escravidão do coração, a Vitória de Deus sobre o “último
inimigo a ser derrotado, a morte” (1Cor 15, 26). E já saboreamos as delícias
da Terra Prometida da Nova Aliança: o Regaço do Pai, o Amor do Filho
Eterno, a Ternura Maternal do Espírito Santo e a Comunhão com todos os
irmãos que já vivem a plenitude desse reino onde “mana leite e mel” e que
também se chama “Céu”…
20 –
Pista de leitura
para os Livros do Pentateuco
Para uma leitura temática destes livros…
Pistas de Leitura para os livros do Pentateuco
--- 1.
Deus é Amor que “sai de Si” e sonha o Homem como a
“menina dos Seus olhos” na Criação, pura iniciativa da Sua Bondade (“tudo
era muito bom” – Gn 1, 31) e projecto de Aliança… Gn 1-2
--- 2.
Porque o Amor não se impõe, Deus “corre o risco” da
Liberdade! O Homem foi capaz de escolher o contrário da vontade de Deus.
Assim, inicia a marcha do fracasso e do malogro que se chama Pecado,
porque a vontade de Deus corresponde sempre ao melhor para o Homem. O
Pecado gera a ruptura de todas as relações: entre o Homem e Deus, entre
varão e mulher, entre os irmãos (Caim e Abel), entre os povos (torre de
Babel)… Gn 3-4 Gn 11, 1-9
--- 3.
Deus não desiste do Seu Sonho Criador. Por isso inicia uma
História de Eleição, escolhendo Homens de coração disponível para serem
mediações da Sua vontade, e aos quais confia o Seu Sonho Recriador e a
Sua Aliança. O primeiro desta História é Noé… Gn 6-10
--- 4. Abraão é uma das maiores figuras desta História de Eleição.
“Abraão” (=pai de muitos) é, de facto, o “pai histórico” do povo de Israel…
Vocação de Abraão: Gn 12, 1-9 Promessas de Deus e Aliança, com a
imposição do sinal da circuncisão: Gn 15; Gn 17 Sacrifício do seu filho Isaac:
Gn 22 Morte de Abraão: Gn 25, 7-11
--- 5.
Abraão gerou Isaac…
Nascimento: Gn 21, 1-7
Casamento com Rebeca: Gn 24
Morte de Isaac: Gn 35, 28-29
--- 6. Isaac gerou Jacob…
Nascimento: Gn 25, 19-28
Conquista do direito de primogenitura: Gn 25, 29-34; Gn 27
Casamento com Lia e Raquel: Gn 29-30
Deus aparece a Jacob e muda-lhe o nome para “Israel” (=o que luta com
Deus): Gn 32, 25-33; Gn 35, 9-15
--- 7.
Jacob gerou doze filhos, os Doze Patriarcas do futuro povo de
Israel, constituído pelas suas doze tribos… Gn 35, 16-29
--- 8. José é vendido pelos seus próprios irmãos, e levado para
Egipto… Gn 37 Gn 39-41
--- 9. Em tempo de fome, os filhos de Israel-Jacob dirigem-se ao
Egipto para comprar comida, sem imaginar que é o seu irmão José o
governador do Reino… Gn 42-45 10.
46-48
--- 10. Jacob-Israel e os seus filhos mudam-se para o Egipto… Gn
--- 11. Os descendentes de Israel eram cada vez mais, e começaram
a ser oprimidos pelos Faraós do Egipto… Ex 1
--- 12. Outra das maiores figuras da História de Eleição surge aqui:
Moisés, o instrumento da força libertadora de Deus para com o Seu povo…
Nascimento: Ex 2, 1-10
Fuga do Egipto: Ex 2, 11-25
Encontro com Deus, vocação e missão: Ex 3-4
Em “luta de prodígios” com o Faraó: Ex 5-12, 32
Saída do povo do Egipto: Ex 12, 33-51
Sentido e ritual da Páscoa judaica: Ex 12, 1-28
Travessia do mar e Hino da Vitória: Ex 14-15
Aliança no Monte Sinai (Dez Mandamentos): Ex 19-20
Renovação da Aliança e Infidelidade: Ex 32-34
O primeiro “Credo” de Israel e o dever da Gratidão memorial: Dt 6
Hino de despedida de Moisés: Dt 32-34
Morte de Moisés: Dt 34
Livros dos Profetas
21 -
Os Profetas, possuídos pela Palavra
Toda a história bíblica está profundamente marcada pela figura dos
profetas. São eles os grandes apaixonados pela verdade de Deus, os
seduzidos pela força da Sua Palavra, os arautos da Sua fidelidade e os
anunciadores por excelência das maravilhas que Deus pode fazer na vida
daqueles que Lhe são fiéis.
Os Profetas: a aventura da vida possuída pela Palavra…
Toda a história bíblica está profundamente marcada pela figura dos
profetas. No Antigo Testamento são 17 os livros proféticos e, embora de
profetas diferentes e escritos em épocas diferentes, todos giram em torno do
mesmo apelo: reatar a fidelidade à Aliança de Deus com o Seu povo.
O povo tinha tomado posse da Terra Prometida no fim do êxodo do
Egipto, começara a organizar-se como povo estabelecido e estruturado até
ao ponto de, com David, se ter unificado num único reino. Mas o rei do povo
eleito não podia ser como todos os outros reis; ele era o principal
responsável por manter o povo fiel à Lei de Deus recebida na caminhada de
libertação do Egipto. O rei do Povo Eleito era ungido (em hebraico: Messias)
no dia da sua entronização, ungido com azeite virgem, símbolo do Espírito
Santo a agir nele (1Sam 16, 13), configurando-o como mediação de Deus para
o Seu povo. No entanto, a história do povo de Israel e dos seus reis foi
pródiga em infidelidades… O povo eleito pelo Amor de Deus – muitas vezes
animado pelo mau exemplo dos seus próprios reis – rompia
permanentemente a Aliança de Amor fiel que Deus estabelecera com ele. É
então que surgem os profetas como “vozes de Deus” (Is 40, 3), aqueles
através dos quais Deus fala ao povo, o exorta, corrige e apela de novo ao
recomeço da fidelidade à Aliança. Por falarem em nome de Deus e porem o
“dedo na ferida” das infidelidades do povo – sobretudo dos mais
poderosos… – nenhum teve vida tranquila, e todos se deram de caras com o
rosto da morte bem cedo.
São eles os grandes apaixonados pela verdade de Deus, os seduzidos
pela força da Sua Palavra, os arautos da Sua fidelidade e os anunciadores
por excelência das maravilhas que Deus pode fazer na vida daqueles que Lhe
são fiéis.
O Novo Testamento abre também com a acção profética do precursor
do Messias, João Baptista, que rasga o caminho ao aparecimento do rosto
definitivo da vocação profética, que é Jesus de Nazaré.
Ao tempo de Jesus, a esperança messiânica tinha duas perspectivas
fundamentais: messianismo político, com base na profecia messiânica a
David que prometera um descendente real que se sentaria no trono e
reunificaria novamente as doze tribos num só reino, expulsando os
dominadores estrangeiros (2 Sam 7, 12-16); e o messianismo-apocalíptico,
pela junção que a literatura apocalíptica fizera uns séculos anteriores ao
nascimento de Jesus entre o anúncio do Dia da Ira de Deus e a chegada do
Messias (Mt 3, 7-12). Jesus, no entanto, não seguiu nenhuma destas duas
perspectivas, mas toda a sua vida pública é reflexo da sua opção clara por
um messianismo-profético.
Logo no início da sua vida pública, na sinagoga de Nazaré, é
identificando a sua missão com o anúncio do profeta Isaías que Jesus “dá o
tom” ao que irá ser o resto da sua vida: “Entregaram a Jesus o livro do
profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está
escrito: ‘O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para
anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos
cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os
oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor’. Depois,
enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que
estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Começou, então, a dizerlhes:
Cumpriu-se hoje esta passagem da escritura que acabais de ouvir” (Lc 4, 1621).
O modo como “purifica o templo” (Lc 19, 45-48), como convive com
pecadores públicos (Lc 19, 1-11) e louva a fé de pagãos (Mt 8, 10), como olha
nos olhos os fariseus e doutores da Lei e lhes diz “Ai de vós!” (Lc 11, 37-53),
são atitudes em fiel continuidade com toda a história da profecia bíblica.
O próprio Jesus fala de si várias vezes como profeta (Lc 4, 24; 13, 33) e
o povo reconhece-o como “Jesus, o profeta de Nazaré” (Mt 21, 11). E até
quando os discípulos falarem de Jesus depois da sua morte, na experiência
de desilusão, fracasso e tristeza em que estavam mergulhados antes da
experiência pascal, ainda que não o reconheçam mais como Messias, não
deixam de o chamar “Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e
palavras” (Lc 24, 19).
No seguimento de Jesus, também o cristianismo não pode nunca
perder o seu rosto profético. Nas primeiras comunidades, a profecia era um
ministério de grande importância (Act 13, 1) como carisma motivado e
animado pelo Espírito Santo no coração dos crentes: “Há diversidade de
dons, mas o Espírito é o mesmo. A cada um é dada a manifestação do
Espírito para proveito comum. (…) Aqueles que Deus estabeleceu na Igreja
são, em primeiro lugar, apóstolos; em segundo, profetas…” (1Cor 12, 4-6.
28).
Mas, então… o que é ser Profeta?
As duas línguas originais da bíblia são o hebraico e o grego. A partir
da palavra “profeta”, tal como aparece na Bíblia nestas duas línguas, iremos
perceber muito bem a profundidade da vida profética. Com efeito, as duas
palavras, não só se traduzem uma à outra, mas dão-se mutuamente uma
nova significação, completando-se como as duas faces de uma moeda.
Assim, “profeta” em hebraico diz-se Nabi; em grego, diz-se Profetês.
N
22 - " ABI", a Palavra escutada
Na língua hebraica, esta é uma palavra na voz passiva, o que diz já da
essência profética como passividade, disponibilidade, escuta.
NABI: a palavra escolhida.
Na língua hebraica, esta é uma palavra na voz passiva, o que diz já da
essência profética como passividade, disponibilidade, escuta. No nosso
imaginário está sempre o profeta como aquele que fala e que toma a
iniciativa de gestos ousados. Mas o profeta é, antes de mais, aquele que
escuta, aquele que dá a Outro a iniciativa da sua vida. O profeta é um
surpreendido pela Palavra de Deus (Am 7, 15), que a escuta e a acolhe (Is 50,
4b-5), e permite que esta Palavra se torne protagonista na sua vida,
inspirando gestos e atitudes.
Nos livros proféticos da Bíblia superabundam algumas fórmulas
proféticas que revelam bem da essência do profetismo. Uma delas é a
fórmula: “A Palavra do Senhor foi (-me) dirigida (a) nestes termos…” (Jer 1,
2. 4. 11. 13 etc.). Esta fórmula marca o nascimento da vida profética, que é
motivada por uma Palavra e é a história do acolhimento dessa Palavra.
Podemos, por isso, chamar-lhe a “fórmula de Acolhimento”, que
corresponde a um novo nascimento, não “da carne nem do sangue”, mas da
sedução da Palavra (Jer 20, 7).
O profeta é, antes de tudo, um encontrado pela Palavra de Deus, um
homem à escuta, um homem de coração disponível ao acolhimento, um
homem disposto a ser instrumento de uma Palavra que não é sua e rosto
visível de atitudes e gestos cuja iniciativa também não lhe pertence. O
profeta é um seduzido pela Palavra; mas, ainda mais que isso, é um possuído
pela Palavra. Ainda que a queira calar, ainda que lhe queira fugir, a Palavra é
sempre mais forte (Jr 20, 7-9). Nenhum profeta pediu a vocação profética!
Foram encontrados por ela. E quando abrem as portas da vida à acção da
Palavra que os encontra, deixam-se possuir de tal modo que entram numa
aventura sem retorno.
Como Jonas que, escutando o apelo a ir a Nínive anunciar o
arrependimento ou o castigo, foge da Palavra do Senhor para a direcção
exactamente oposta a Nínive: “A Palavra do Senhor foi dirigida a Jonas
nestes termos: ‘Levanta-te, vai a Nínive, a grande cidade, a anuncia-lhe que a
sua maldade subiu até à Minha presença’. Jonas pôs-se a caminho, mas na
direcção de Társis, fugindo da presença do Senhor” (Jn 1, 1-3). Depois,
conhecemos o resto da história… entre tempestades e ventres de grandes
peixes, Jonas não tem outra saída senão ser instrumento da Palavra do
Senhor em Nínive, ainda que sempre descontente, e desejando até a morte
no final da sua missão (Jn 4, 3).
Muitas vezes, o profeta não procura essa missão; suporta-a! É o
encontrado, seduzido, possuído e impelido pela Palavra de Deus que precisa
de mediações para se fazer conhecer e actuar entre os homens. Por isso é
que o profeta, ao mesmo tempo que é um possuído pela Palavra, é um
homem profundamente livre diante de tudo e todos, a ponto de muitas vezes
ser o único a levantar a voz contra os poderosos que desagradam ao Senhor.
Afastam-se com repulsa e ameaçam em nome de Deus os falsos
profetas, aqueles que se encontravam nos santuários reais dependentes dos
soberanos e se deixavam instrumentalizar mais pelas suas políticas do que
ser instrumentos da Palavra de Deus (Jer 14, 14-16). Tão livres que a maior
parte deles foi vítima das injustiças que os poderosos normalmente
maquinam para defender a sua tranquilidade apodrecida.
P
23 - " ROFETÊS", a Palavra anunciada
No profeta, a disponibilidade da escuta gera a inevitabilidade do
anúncio. Assim, além do seduzido pela Palavra que guarda no coração, é a
voz dessa Palavra.
PROFETÊS: a Palavra anunciada…
Esta é a segunda dimensão, ou a outra face da vida profética. A
Palavra que seduz e conquista o coração do profeta impele-o a ser sua voz:
“O leão ruge. Quem não temerá? O Senhor Deus fala. Quem não
profetizará?” (Am 3, 8). No profeta, a disponibilidade da escuta gera a
inevitabilidade do anúncio. Assim, além do seduzido pela Palavra que guarda
no coração, é a voz dessa Palavra (Is 40, 3).
Profetês é a junção das palavras gregas pró+fêmi. Fêmi significa
“dizer, falar, anunciar”; e a partícula pro não significa “antes de” (engano que
muitas vezes fez compreender os profetas como adivinhos do futuro…) nem
“a favor de”. É uma partícula substitutiva – “em vez de” – o que nos faz
compreender o profeta na linguagem bíblica como aquele que “fala em vez
de”, como boca de Deus (Jr 15, 19).
Assim como no discurso profético superabunda a fórmula de
Acolhimento para realçar a dimensão profética de ser encontrado e possuído
pela Palavra de Deus, também para realçar esta dimensão do profeta como
anunciador em nome de Deus o discurso profético forjou o que podemos
chamar a fórmula do Mensageiro (“Eis o que diz o Senhor…”), que abre
quase todas as proclamações proféticas, e a fórmula de Assinatura (“Oráculo
do Senhor”), com a qual as encerra. Para termos uma ideia da abundância
destas fórmulas vejamos que, só no livro de Jeremias, encontramos 61 vezes
a fórmula de Acolhimento, 135 vezes a fórmula do Mensageiro e 193 vezes a
fórmula de Assinatura!
“Eis o que diz o Senhor” é a abertura de todo o anúncio profético, pela
qual o profeta se declara mensageiro de uma Palavra que não é sua. Esta
fórmula do mensageiro representa a maior ousadia do discurso profético
porque ao atribuir a iniciativa e a eficácia da Palavra a Deus, o profeta está a
colocar-se entre a espada e a parede, ou seja, entre a Palavra que anuncia e a
realidade que denuncia, e a assumir plenamente o risco da fidelidade…
Ao terminar o anúncio, “assina com a rubrica de Deus” o que foi dito
usando a fórmula de Assinatura: “Oráculo do Senhor”. Fala, porque Deus lhe
falou, e cala-se quando Deus Se cala (Ez 3, 26-27). Não anuncia as suas
próprias ideias nem tenta preencher os silêncios de Deus com as suas
palavras…
24 - Instrumento da Palavra
A Palavra imprime-se no profeta e exprime-se no profeta. A grandeza
da vocação profética é o mistério da Palavra nas palavras: a Palavra de Deus
revela-se nas palavras dos profetas.
Instrumento da Palavra…
É na harmonia destas duas dimensões que o profeta se constitui. A
Palavra imprime-se no profeta (nabi) e exprime-se no profeta (profetês). Com
efeito, antes da missão, está a vocação.
Ser profeta é ser voz de uma Palavra escutada e instrumento de uma
iniciativa que foi acolhida, não projectada.
A grandeza da vocação profética é o mistério da Palavra nas palavras:
a Palavra de Deus revela-se nas palavras dos profetas. Mas o profeta não é
só o que diz o que Deus diz; é também o que diz como Deus diz, isto é,
comprometendo-se radicalmente com o que diz. Se, por um lado, os profetas
são arautos da força da Palavra de Deus, revela-se também neles a
fragilidade dessa Palavra: aquele que a diz está comprometido com ela até ao
fim, mas esta Palavra não obriga aqueles que a escutam ao mesmo
compromisso; propõe-se, não se impõe.
O profeta quer defender esta Palavra até ao fim, mas não tem nenhuma
arma além da própria vida. E, nessa fragilidade, pode ser preciso entregá-la…
É aqui que a vocação profética assume todo o seu risco.
A fragilidade da Palavra conduz a profecia da Palavra nas palavras à
Palavra sem palavras… Quando a vida se entrega pela fidelidade à Palavra
escutada, toda ela se torna proclamação, ainda que silenciosa, ainda que
ensanguentada, ainda que pregada numa cruz. Ainda que a boca do profeta
seja amordaçada, não se cala a sua vida! A aventura da fidelidade implica
que a Palavra profética não seja apenas Palavra para os ouvidos, mas
Palavra para os olhos…
Este é o risco de assumir na vida o tripé que firma a acção profética:
anunciar, denunciar, renunciar.
Anunciar que a vontade de Deus a respeito do Seu povo não coincide
com o que este vai construindo; que Deus é fiel e não desiste daqueles que
ama, mas também não Se impõe e espera da parte do povo uma renovada
atitude de escuta e acolhimento.
Denunciar aqueles que alimentam a infidelidade do povo e os poderes
que se alimentam daqueles que subjugam, muitas vezes em nome de Deus e
de leis desenhadas à medida dos seus vícios e injustiças.
Renunciar a pertencer ao grupo dos que cruzam os braços diante do
mal ou juntar-se ao lado dos que se limitam a chorar a tristeza da “ausência
da bondade de Deus junto do Seu povo”, nada fazendo para que essa
bondade se sinta presente através daqueles que têm o coração disponível a
ser sua mediação!
O profeta é aquele que radicalmente Renuncia ao que Denuncia e
Testemunha o que Anuncia. E, acima de tudo, é um homem de fé inabalável.
É pela fé que o profeta se torna vidente (1Sam 9, 9): à luz da fé, vê a
realidade e a história com horizontes mais largos e profundos. Não é um
adivinho nem um mago que prediz o futuro. O profeta é um “homem de olhar
penetrante” (Num 24, 15-16). Pela fé, vê e lê os acontecimentos iluminados à
luz da fidelidade de Deus e da Sua vitória sobre o mal que em determinado
momento da história leva a melhor. A partir daqui, firmado na fidelidade e
força de Deus, denuncia as causas do mal e anuncia a acção libertadora de
Deus, ainda que num futuro que não conhece. Não conhece, mas espera,
porque confia!
Porque a Palavra de Deus é sempre mais forte (Is 55, 8-11)… Na
verdade, é esta confiança inabalável o segredo da força dos profetas.
“Prestai atenção ao que diz o Senhor Deus, o Maior de Israel: a vossa
salvação está na conversão, e em terdes calma; a vossa força está na
confiança, e em permanecerdes tranquilos.
Mas há sempre muitos que não querem!” (Is 30, 15) “Uns confiam nos
seus carros, outros nos cavalos; nós, porém, confiamos no Senhor, nosso
Deus. Eles fraquejam e são vencidos; nós, porém, levantamo-nos e ficamos
de pé!” (Sl 20, 8-9).
25 -
Pistas de leitura para os livros dos Profetas
Para uma leitura temática destes livros…
--- 1.
A Vocação do Profeta é sempre uma experiência de Deus que
o faz nascer de novo e para coisas novas. É um acontecimento inesperado
na história do profeta do qual Deus tem a iniciativa. A vocação é sempre o
início de uma missão. “Deus diz e diz-Se ao profeta”, para que este seja
enviado a “dizer em nome de Deus”…
Is 6, 1-13
Jer 1, 4-19
Ez 2, 1 – 3, 11
--- 2.
A linguagem profética fala muitas vezes da Relação de Deus
com o seu Povo usando a imagem do marido de uma esposa adúltera, ou
como um verdadeiro amante apaixonado por uma prostituta. Desta relação
desigual, na qual Deus tem que permanentemente “dar a outra face”, tomar a
iniciativa da reconciliação, o profeta é porta-voz para chamar o povo (esposa)
à fidelidade. E, nos casos dos casamentos de Oseias e da morte da mulher
de Ezequiel, o profeta é mais que porta-voz; torna-se sinal desta relação de
Deus com o povo nas suas próprias acções. A prostituição e o adultério do
povo são a idolatria…
Ez 16
Ez 23
Os 1-3
Ez 24, 15-23
Jr 3, 1-11
Is 54, 1-10
--- 3.
A grande certeza e proclamação dos profetas é sempre a
fidelidade de Deus: Deus compromete-se naquilo que promete! Por isso, é
pelas suas bocas que Deus anuncia repetidamente uma Nova Aliança com o
Povo. A Nova Aliança é uma Vida Nova que nasce do conhecimento e da
confiança em Deus. A Nova Aliança anunciada pelos profetas é o rosto mais
jubiloso da Esperança, sobretudo quando proclamada em momentos de
exílio e sofrimento…
Jer 31
Zac 8
Ez 37, 1-14
--- 4.
O povo foi-se tornando infiel, e Deus foi deixando de poder
contar com ele… Mas, há sempre um Resto Fiel com o qual Deus pode contar
para continuar o Seu sonho. Este Resto Fiel é a garantia da fidelidade à
Palavra de Deus e do acolhimento do Seu Espírito, para que a Graça
Libertadora de Deus possa ir transformando a história dos Homens em Reino
de Deus. É deste Resto Fiel que os profetas esperam o Messias de Deus…
Jer 23,1-6
Is 10, 17-23
Jl 3, 1-5
Miq 5, 6-14
--- 5.
A fidelidade de Deus revela-se sobretudo na persistência com
que ama, na perseverança com que “persegue” aqueles com quem sonha. É
o “Deus-Amor Não Desistente”, ainda que permanentemente traído, ainda
que tantas vezes enchendo a boca de ameaças, anunciando cólera e ira
como castigo, mas voltando atrás logo a seguir e optando pelo único que
pode fazer que é perdoar… O Deus “coração de manteiga”, não por ser fraco
mas por ser Amor, cuja última palavra é sempre de Recriação Salvadora…
Ez 20
Jer 30
Jer 32, 26-44
Os 11
--- 6.
No meio de um povo que facilmente se esquecia das
promessas de Deus, umas das certezas que os profetas mais afirmavam era
a Esperança do Messias descendente de David para levar adiante o Seu
projecto desde o princípio. A fidelidade de Deus e a Sua vitória sobre todos
os poderes opressores do povo brilhariam no seu rosto, rosto de Messias,
Ungido pelo mesmo Espírito que se tinha apoderado de David, para fazer
dele o definitivo Restaurador de Israel…
Is 7, 10-16
Is 9, 1-6
Is 11, 1-16
Jer 23, 1-6
Jer 33, 14-26
Dan 7, 9-14
Miq 5, 1-5
Zac 9, 9-10
--- 7. O profeta não é apenas aquele que diz o que Deus diz, mas
também o que diz como Deus diz. E, por muito que nos custe a entender, a
Palavra de Deus é sempre uma “palavra frágil”, porque não violenta. É
profundamente viva, verdadeira e transformante, mas apenas nos corações
que assim o quiserem… A Palavra de Deus “põe em causa”, mas “não impõe
a sua causa”… Porque é o arauto de uma Palavra que põe em causa mas não
se impõe, muitas vezes o profeta se sente chamado a uma Missão do
Fracasso, em que a única maneira que ele tem de defender e provar a
verdade que anuncia é estar disposto a dar a vida por ela…
Jer 15, 10-21
Jer 20, 7-18
Is 50, 4-9
Ez 3, 1-11
--- 8. Em nome de Deus, o profeta muitas vezes coloca A Cabeça na
Boca do Lobo, carrega com o dedo da Palavra em feridas muito perigosas,
que são sempre as feridas dos poderosos e dos donos das verdades… A
boca dos profetas abre-se para que Deus acuse os falsos profetas das suas
mentiras, os maus líderes das suas injustiças e os iníquos sacerdotes dos
seus cultos vazios. Mas, na verdade, quem depois fica exposto, mais uma
vez, é o profeta…
Ez 13
Ez 34
Miq 3
Is 29, 13-16
Is 58, 1-12
Jer 2, 1-13
Jer 7
Jer 14, 11-22
Jer 23, 9-32
Os 4, 1-10
Am 5, 7-17
Livros Históricos e Sapienciais
26 -
Livros Históricos
Ao dizermos “livros históricos” e ao compará-los com os nossos
livros de história, não podemos esquecer uma coisa: a fé do povo de Israel. A
história do povo é toda ela narrada em chave de fé no Deus da Aliança.
Livros históricos.
Os livros históricos são para o povo judeu exactamente o que são os
nossos manuais de história de Portugal, embora numa perspectiva bem
diferente. Narram a história do povo, nas suas conquistas, vitórias, derrotas,
alegrias…
Os livros de Josué e de Juízes narram a chegada e a
organização do povo em Canaã depois do êxodo;
A partir dos livros de Samuel começa a contar-se a história do
povo na linha da sucessão dos seus reis, a começar com Saul, David e
Salomão, história que continua depois nos
Crónicas;
livros dos Reis e das
A sucessão dos reis termina quando o povo de Judá é conquistado
pela Babilónia e é deportado para o exílio;
Depois do exílio surge a reconstrução de Jerusalém, momento da
história do povo que é narrado nos livros de Esdras e Neemias:
Outro período complicado foi a dominação que o povo experimentou
pelo império selêucida, apenas 170 anos antes do nascimento de Jesus, e
cujo sofrimento e reacção está narrado nos livros dos Macabeus.
Entretanto, outros livros mais pequenos servem para realçar o mito de
algumas personagens individuais que num determinado momento da história
do povo tiveram uma importância decisiva, como a nossa história está cheia
de Padeiras de Aljubarrota e Marias da Fonte… Vão nesta linha os
livros
de Ester e Judite, por exemplo.
Mas, ao dizermos “livros históricos” e ao compará-los com os nossos
livros de história, não podemos esquecer uma coisa: a fé do povo de Israel. A
história do povo é toda ela narrada em chave de fé no Deus da Aliança que
escolheu o Seu povo por amor e o conduz segundo a Sua justiça. Deste
modo, toda a história do povo está ritmada não pelo sucesso ou fracasso
dos seus próprios intentos e projectos, mas pelas bênçãos ou castigos de
Deus, consequência da fidelidade ou infidelidade do povo à Aliança que Deus
desde o início lhe tinha proposto. Era esse o esquema que presidia a toda a
narração histórica, a certeza de que Deus abençoa a fidelidade e castiga a
infidelidade.
Como é que a bênção pela fidelidade se fazia sentir?
Pela liberdade e tranquilidade que o povo gozava, pela abundância das
colheitas, pela paz com os reinos vizinhos…
E o castigo pela infidelidade, como se manifestava?
Nas invasões pelos outros povos, que empobreciam o povo, destruíam
as culturas, roubavam o templo e o palácio de Jerusalém, e, em casos de
castigo mais severo, levavam o povo para o exílio, como aconteceu na
Babilónia.
Os acontecimentos da história, segundo esta fé num Deus
providencialista, nunca se explicam simplesmente no campo político, militar
ou social, mas sim como manifestação de um desígnio divino para o povo. A
história era lida e interpretada à luz do Deus da Aliança, o que transformava
os acontecimentos em palavras de Deus para o povo, revelação do sentir de
Deus em relação a Israel naquele momento. Por isso, a história torna-se
apelo que deve ser interpretado, acolhido e levado a sério como motor de
transformação. A história concreta do povo, no seu dia a dia, era o contexto
no qual se jogava a tal Aliança proposta por Deus no Sinai, era o contexto no
qual o povo vivia ou não segundo os critérios dessa Aliança e no qual Deus
manifestava o Seu agrado ou desagrado.
Hoje, já no horizonte de Jesus Cristo, estamos infinitamente longe do
modelo providencialista de um Deus que “mexe os cordelinhos” da nossa
história segundo lhe apraz, mesmo que não seja essa a nossa
vontade, e que se manifesta na nossa vida pela lógica de fidelidade-bênção,
infidelidade-castigo. Sabemos, isso sim, que Deus conta connosco, está
connosco, mas nunca em nosso lugar. Convida-nos a transformar
radicalmente a nossa história segundo os critérios do Seu Reino revelado e
inaugurado em Cristo, capacitados para essa missão de sermos fermento
transformador da história e do mundo, mas não nos substitui.
Além disso, sabemos que Deus não reage à nossa infidelidade com o
castigo. Segundo a mentalidade da Antiga Aliança, para destruir a lógica do
pecado no seio da história, o segredo era destruir o pecador. Em Cristo,
inaugurador da Nova Aliança, compreendemos que, afinal, o segredo de
Deus é destruir a lógica do pecado recriando o pecador! O pecado já não é
combatido por uma Lei exterior ao homem que, ao destruí-lo, machuca e
destrói o pecador. O pecado é combatido no próprio coração do homem pela
acção do Espírito Santo que, ao mesmo tempo, recria o pecador fazendo dele
uma nova criatura.
Neste horizonte largo do “Amor de Deus derramado nos nossos
corações” (Rom 5, 5), compreendemos que, ainda assim, a dinâmica de
fundo dos livros históricos da Bíblia continua a ser essencial para os crentes
de hoje, ou seja: ler a vida e a história, nos seus acontecimentos, encontros e
atitudes, à luz de Deus. Saborear os dias na sua máxima profundidade, não
apenas ao nível da casca da existência onde tudo acontece quase sem
significado. Acolher Deus como Sentido máximo da vida, isto é, orientação e
significado pleno da história. Viver à luz de Deus é não passar em branco
pela história. É viver a vida, e não deixar-se viver por ela… É assumir os dias
na certeza de que Deus está connosco como Deus das Vitórias, quando se
luta por Amor!
27 -
Escritos Sapienciais
Os livros sapienciais são aqueles em que o tema é a Sabedoria. Estão
muito despojados de normas jurídicas e distanciam-se claramente da
experiência de Deus que dá origem à Lei para afirmarem a primazia de uma
experiência de Deus que dá origem à Sabedoria como arte de viver.
Escritos Sapienciais
Os livros sapienciais são aqueles em que o tema é a Sabedoria. Estão
muito despojados de normas jurídicas e distanciam-se claramente da
experiência de Deus que dá origem à Lei para afirmarem a primazia de uma
experiência de Deus que dá origem à Sabedoria como arte de viver. O sábio,
na perspectiva bíblica, é aquele que saboreia a vida e a história com o
próprio “paladar de Deus”, isto é, com os seus critérios e horizontes. Por
isso o sábio é aquele que vive e testemunha a harmonia entre fé e vida, não
dois blocos separados e ligados apenas pelo vínculo jurídico do
cumprimento de leis religiosas, mas a fé como coração orientador da vida.
Na Bíblia, os livros que formam este grupo sapiencial são sete, e com
bastantes diferenças.
O livro de Job é uma longa reflexão em forma de diálogo sobre a
causa do sofrimento injusto (tema revolucionário porque punha em causa a
lógica clássica do judaísmo que era a de que ao justo, Deus dava a bênção, e
ao injusto, o castigo…) e a linguagem sobre Deus.
O livro do Eclesiastes, ou Qohelet, é o livro mais triste e
desanimado da bíblia… Numa linguagem permanentemente irónica e
cinzenta, Qohelet debate-se com a questão da morte como fim absoluto de
tudo, numa altura em que a revelação ainda não tinha chegado à
compreensão da ressurreição. A questão era a seguinte: se com a morte
acaba tudo, porquê viver assim ou assado? “Tudo acontece igualmente a
todos… justos e injustos, bom e maus… No fim, o destino é o mesmo para
todos!” (Ecl 9, 2-3). Se é assim, viver não precisa de ser mais que isto:
“Come, bebe e goza nos breves dias de que dispões…” (Ecl 5, 17). Este livro
clama urgentemente a Deus uma resposta de compreensão para a morte!
Para que a vida não seja apenas o que Qohelet vai repetindo durante todo o
texto como um refrão: “Tudo é apenas ilusão e correr atrás do vento…” (Ecl
1, 14).
Depois há outro tipo de escritos sapienciais, já não temáticos, como
os anteriores, mas muito ao jeito da sabedoria popular ainda dos nossos
dias, alimentada de adágios e provérbios com lições que brotam da vida. É o
caso dos livros dos Provérbios, Sabedoria e Ben Sirá,
embora estes dois últimos tenham também alguns poemas e reflexões mais
longas à volta do tema da sabedoria como maior tesouro que o homem pode
encontrar na vida: “Se a riqueza é um bem desejável na vida, que há de mais
rico que a sabedoria, que tudo pode?” (Sab 8, 5) “Segue-lhe os passos,
procura-a e ela se dará a conhecer; possuindo-a, não a deixes mais, pois
acharás nela, finalmente o teu repouso, e transformar-se-á para ti em
alegria.” (Sir 6, 27-28).
O Cântico dos Cânticos é um livro único na Bíblia, sem par a
nível de género literário e linguagem. Segue a estrutura poética e a
linguagem lírica dos hinos nupciais cantados nas festas de casamento no
médio oriente, e usa também as mesmas personagens, isto é, o esposo e a
esposa, acompanhada das amigas. É muito rica e frequente na linguagem
profética do Antigo Testamento a imagem do esposo e da amada para falar
da relação de Deus com o seu povo. Deus é o esposo, Israel é a esposa, nem
sempre fiel ao casamento-Aliança selado no monte Sinai. O Cântico dos
Cânticos é o poema por excelência desta relação amorosa e apaixonada
entre Deus e o Seu povo, em linguagem alegórica e simbologia própria dos
modelos de beleza presentes no contexto em que nasceu.
28 -
Salmos
Não é um texto, mas um conjunto de 150 textos. E, acima de tudo, não
são como todos os outros escritos para serem lidos ou proclamados, mas
sim cantados! Os salmos são cânticos.
Salmos
E, por fim, um conjunto de textos muito diferentes: os Salmos. Não é um
texto, mas um conjunto de 150 textos. E, acima de tudo, não são como todos
os outros escritos para serem lidos ou proclamados, mas sim cantados! Os
salmos são cânticos. O livro dos Salmos era para os judeus o que hoje são
para nós os livros de cânticos que se editam em alguns sítios para animar as
celebrações e cantar a fé. Aliás, Salmo, em hebraico, diz-se Mismôr, que é um
tipo de canções, aquilo a que nós chamamos de cânticos.
Muitos salmos têm, logo ao início, os instrumentos com que devem
ser acompanhados e a forma de serem cantados, assim como muitos
também fazem referência “ao director do coro” (por exemplo: Sl 13; 2; 8). O
salmo 150 dá-nos a lista da maior parte dos instrumentos que eram usados
para acompanhar o canto dos salmos.
Muitas vezes, no templo de Jerusalém, o salmo era iniciado pelo
“director do coro” e depois sustentado por este, composto de salmistas que
faziam parte dos que estavam durante longos períodos ao serviço do templo,
enquanto o povo ia repetindo refrães como “porque o Seu Amor é eterno!”
(Sl 136), ou então, mais simples, os salmos eram acompanhados pelo povo
com “Amen! Aleluia!” (Sl 106, 48).
Por vezes também, para facilitar a participação de toda a gente,
escrevia-se um poema que encaixasse numa melodia já conhecida por toda a
gente, como se vê, por exemplo, nos salmos 56, 57, 22: “Pela melodia A
corça da aurora”. Mostra que existia no reportório popular do povo de Israel
uma música que se chamava “A corça da aurora” que toda a gente sabia, à
qual se aplicavam letras para cantar no templo ou nas peregrinações. Era
como se hoje, para que toda a gente pudesse cantar, alguém escrevesse um
poema sobre a fé que encaixasse como letra da melodia “As pombinhas da
Cat’rina”.
Vemos assim que os salmos não são textos mortos, cansativos,
maçudos, como tantas vezes fazemos deles… Na tradição da Igreja têm sido
muito usados, mas quase sempre se esquece que são cantigas, e não textos
para serem recitados! Muitos deles eram sempre acompanhados de danças,
palmas, gritos de festa! E nós hoje queremos recitá-los sentados em cadeiras
de pernas cruzadas e rosto sem vida…
Nasceram na vida, da vida e para a vida! Não são reflexões teóricas
nem orações para aprender de cor. Querer fazê-lo assim é tão estranho como
agora pegarmos num livro de cânticos e usá-lo como devocionário, lendo e
relendo cada texto como se fosse uma recitação a fazer. Há textos que
nascem para serem cantados, e os salmos são desses por excelência.
Os livros de cânticos que encontramos nos bancos das nossas igrejas
são recolhas de cânticos conhecidos, e dá-se-lhes uma certa divisão
temática. Assim, há os cânticos de entrada para a Eucaristia, para o ofertório,
comunhão, etc. Depois, há por tempos litúrgicos: cânticos de Quaresma, de
Páscoa, de Natal… Pois na recolha de 150 salmos que temos na bíblia existe
a mesma divisão. Há salmos para as peregrinações (Sl 120-144), outros para
serem cantados durante a ceia pascal, os salmos de “Hallel” (Sl 105-107. 111118. 135-136. 146-150); salmos de súplica (Sl 5-7. 13. 17. 22. 25. etc.), de
acção de graças (Sl 9-10. 30. 32. 34. etc.); salmos reais, que exaltavam a
figura do rei messiânico (Sl 2. 18. 20. 21. etc.), salmos didácticos, que
desenvolvem um tema, que pode ser sobre a história do povo (Sl 78. 105.
etc.), os rituais do templo (Sl 15. 134. etc.) ou serem uma exortação profética
(Sl 14. 50. etc.).
A vida também se diz a cantar, e por isso havia salmos para todo o
tipo de ocasiões, mergulhando cada momento que se estava a viver na fé e
na pertença ao Deus da Aliança. E porque a vida não é linear, há salmos para
todos os gostos… Há salmos que brotaram de corações exultantes de alegria
por verem o templo de Jerusalém ao fundo do horizonte depois de dias
inteiros de peregrinação, ou de experiências profundas de intimidade com
Deus, de confiança, de ternura. Há também os que confidenciam a Deus a dor
interior de se sentir infiel à Sua vontade e o desejo de experimentar o perdão.
Outros, porém, destilam raiva e desejos de vingança, que nós hoje
dificilmente entendemos como fazendo parte dos textos da Bíblia.
- Os “Salmos” são uma escola de oração
Somos tão piedosos que até nos escandalizamos de que a vida se
exponha diante de Deus tal como é, sem máscaras. Sim, há salmos que com
o tempo e o aprofundamento da experiência de Deus começam a parecer-nos
muito imperfeitos pela violência das palavras e pelo constante apelo a que
Deus faça vingança e castigue aqueles que oprimiam o autor do salmo. Mas a
imperfeição está mais ao nível da linguagem que ao nível da atitude, ou seja,
devemos cultivar uma atitude diante de Deus sem nos escondermos com
“folhas de figueira” como Adão. “Senhor Deus, eis-me aqui, como sou. Hoje
estou mergulhado na raiva e no desejo de ver a injustiça que me fizeram
vingada. Sei que não é segundo a Tua vontade, mas também sabes que não
sou perfeito e há coisas que doem muito. Digo-me a Ti, exponho-me a Ti, nu,
sem defesas nem máscaras, sem mentiras, na crueza destes sentimentos
que ainda mexem no meu coração, e espero confiado em Ti. Transforma-me e
transforma a situação de injustiça em que me colocaram. Confio em Ti,
Senhor…”
Mais do que orações para aprender e repetir, os salmos são antes uma
escola de oração, na medida em que nos chamam a atenção para um segredo
fundamental da arte de orar e viver em intimidade com Deus: tudo ganha
novo sentido quando se lê à luz de Deus. É na medida em que nos expomos
e dizemos a Deus na totalidade dos nossos dias, na alegria dos nossos
sucessos e na angústia dos nossos fracassos, na ilusão dos nossos
projectos e na dor dos nossos enganos, que estamos a tornar a realidade
que vivemos cada vez mais transparente. As coisas que vivemos, só por si,
são opacas, isto é, o seu interior está-nos vedado; no entanto, à luz da fé e
munidos dos segredos que brotam da intimidade quotidiana com Deus, a
realidade torna-se cada vez mais transparente. Passamos a ver a vida “do
lado de dentro”, encontramos em todas as situações e acontecimentos um
fundo de sentido que nos possibilita crescer até com os momentos mais
desagradáveis e inesperados.
Acima de tudo, viver em atitude de salmista significa recusar-se a que
Deus seja um encostado na prateleira da vida ao qual se dá um espaço
semanal. Deus é o coração palpitante da Vida Nova daqueles que o deixam
ser Emanuel, Deus connosco aqui e agora, na alegria e na tristeza, no
sucesso e no fracasso, na bondade e na raiva, no perdão e na vingança. Aqui
e agora, bem ou mal, “Senhor Deus, é para Ti que eu me volto!!!” (Sl 25)
“Porque Tu, Senhor, conheces-me… Tu me envolves por todo o lado e sobre
mim colocas a Tua mão. É uma sabedoria profunda esta, que nem posso
compreender, tão sublime que não a posso atingir! Dou-te graças, Senhor
meu Deus… “ (Sl 139).
29 -
Pistas de leitura para os livros Históricos
Para uma leitura temática destes livros…
Pistas de leitura para os livros Históricos
--- 1. Alguns livros apresentam pequenos resumos da história de
Deus com o Seu povo, sempre à luz de uma experiência de fé e da Aliança do
monte Sinai…
Js 24, 2-15
Ne 9, 6-37
Jdt 5, 6-24
--- 2. Os livros históricos começam onde o Pentateuco acaba: a
morte de Moisés, com o povo à entrada da Terra Prometida. Agora, surge o
sucessor de Moisés, Josué, que faz entrar o povo na Palestina…
Js 1-3
Js 23-24 - (Último discurso de Josué, depois de ter organizado todas
as tribos do povo…)
--- 3. Depois de Moisés e Josué, não voltou a aparecer outro líder
carismático como eles, um guia permanente. É o tempo dos Juízes, homens
e mulheres inspirados por Deus para resolver determinado conflito ou
problema entre o povo, mas que do anonimato vinham e ao anonimato
voltavam depois da sua acção. Este foi o tipo de organização depois de uma
etapa de lideranças carismáticas (Moisés e Josué) e antes do tempo da
monarquia (Saúl, David, Salomão…). O estilo de narração é sempre o mesmo
para todos os juízes que, página a página, se vão sucedendo: “Os israelitas
fizeram o que o Senhor reprova” (Jz 3, 7). Então, acontecia alguma
desgraça… “Mas clamaram ao Senhor, e o Senhor fez surgir um Salvador
para salvá-los” (Jz 3, 9). Depois, vem a descrição do juiz e das coisas que ele
fez, que pode ser maior ou mais pequena, conforme os casos. “O Espírito do
Senhor veio sobre ele” (Jz 3, 10) e por ele “o país esteve em paz” (Jz 3, 11)
até a próxima infidelidade que fará repetir o mesmo esquema… Jz 3-8
--- 4. Um tema típico da história de Israel é a confiança em Deus
como força e vitória dos mais fracos!
A Vitória do Fraco é especialmente clara em Gedeão, e em Sansão, que
só realizou a vontade de Deus quando se viu enganado por uma mulher,
enfraquecido, preso, cego, gozado…
Jz 6-8 - (Gedeão)
Jz 13-16 - (Sansão)
1Sm 17 - (David e Golias)
Jz 9, 53
1Rs 20, 27-28
--- 5. Nascimento e vocação do Profeta Samuel, que irá ungir os
primeiros reis de Israel…
1Sm 1-3
--- 6. Os israelitas pedem um Rei a Samuel, para terem quem os
governe como as outras nações…
1Sm 8
--- 7. Unção de Saúl, primeiro Rei de Israel…
1Sm 9-10
--- 8. A Impaciência de Saúl, que faz com que seja rejeitado por Deus
como Rei do seu povo. Porque Saúl não soube confiar e esperar…
1Sm 13, 8-14
1Sm 15, 10-11
--- 9.
Escolha e Unção de David, “homem segundo o coração de
Deus”…
1Sm 16, 1-13
--- 10. Morte de Saúl…
1Sm 31
--- 11.
Finalmente, das Doze tribos forma-se verdadeiramente um
só povo, unificado em torno de David…
2Sm 5-6
--- 12.
Deus promete a David um templo e uma descendência
eterna; nasce a Esperança Messiânica…
2Sm 7, 1-16
--- 13. Pecado de David com Betsabé, da qual haveria de nascer o
descendente, Salomão…
2Sm 11-12
Sl 51
--- 14. Últimas palavras de David…
2Sm 22-23
--- 15. Salomão sucede a David no trono de Jerusalém, constrói e
inaugura o palácio do Rei e o Templo de Jerusalém…
1Rs 1
1Rs 7-8
--- 16. Roboão, filho de Salomão, origina a divisão do Reino de
David em dois Reinos, vizinhos e adversários: Reino de Israel (norte) e Reino
de Judá (sul)…
1Rs 12
--- 17. No ano 722 a.C. a Assíria entra no Reino do Norte e leva-o
para a deportação. É a destruição do Reino e o fim da monarquia. Metade do
Povo de Deus já está de novo sob a opressão de povos estrangeiros…
2Rs 17
--- 18.
Mas também Judá foi invadido e deportado para o
estrangeiro, desta vez pelo império da Babilónio, no ano 587 a.C…
2Rs 24
--- 19. Depois do desterro (que durou cerca de 70 anos) o Povo
volta de novo para a Palestina, e tem que reconstruir tudo…
Esd 1 - (regresso do exílio)
Esd 3-5 - (reconstrução do Templo)
Ne 3 - (reconstrução das muralhas da cidade)
Ne 7-13 - (recenseamento do povo e reorganização social, legal e
religiosa)
--- 20.
Aqui surge um período longo de alguma paz, até ao século II
a.C., quando os Selêucidas (um povo de cultura grega, os fiéis a Alexandre
Magno) se tornaram numa força imperial agressiva e opressora para estes
pequenos reinos. Os livros dos Macabeus – seguidores de Judas Macabeu –
apresentam vários modelos de fidelidade heróica a Deus nesta altura da nova
opressão…
1Mac 1
1Mac 2, 49-70
2Mac 7
30 -
Pistas de leitura para os livros Sapienciais
Para uma leitura temática destes Livros
Pistas de leitura para os livros Sapienciais
--- 1. Poemas, Orações e Hinos especialmente dedicados ao tema da
Sabedoria…
Pr 2-4
Pr 8-9
Sb 6-9
Sir 1, 1-10 - (Sir, de Ben Sirá; ou, nalgumas Bíblias, Eclo, de Eclesiástico)
Sir 4, 11-19
Sir 6, 18-37
Sir 14, 20-27
Sir 19, 20-30
Sir 24, 19-34
Sir 51, 13-30
--- 2. Quanto aos diversos tipos de Salmos, já estão algumas pistas
de leitura na página própria…
O Messias no Antigo Testamento
31 -
A Esperança no coração de um Povo
A aventura da esperança messiânica nasce da profecia que o profeta
Natan fez a David, aproximadamente mil anos antes de Jesus Cristo.
A esperança no coração de um povo
A história do povo bíblico está profundamente marcada por David,
líder carismático que, pertencendo à tribo de Judá, conseguiu unificar em
torno de si as doze tribos que conviviam na Palestina, nem sempre
pacificamente, e ser aclamado rei de um único povo por elas formado, com a
sua capital real em Jerusalém (2Sm 5, 1-15). O reinado de David figura na
memória colectiva de Israel como o período de ouro da história do povo
eleito. O período na história em que Israel conheceu verdadeiramente o
Shalom prometido por Deus durante o êxodo do Egipto.
Shalom é a palavra hebraica que significa a perfeição da Paz, da
unidade, da justiça, da igualdade, da prosperidade. Além disso, estão
radicadas em David duas realidades fundamentais da identidade nacional do
povo: o templo de Jerusalém e a esperança messiânica.
Os reis de Israel eram ungidos com óleo – símbolo bíblico do Espírito
Santo – para exprimir a sua eleição por parte de Deus, e a sua consagração
ao Seu serviço diante do povo. O Ungido (em hebraico, Messias; em grego,
Cristo) passava a ser animado interiormente e movido na condução do povo
pelo próprio Espírito de Deus (1Sm 16, 12-13). Nesta simbologia, o óleo era
sinal de que a partir da unção do Seu eleito, Deus passava a agir no interior
do rei e a falar por ele, tornando-se, então, o rei mediador entre Deus e o Seu
povo (2Sm 23, 2).
Quando o Shalom instaurado por David terminar, depois da morte do
seu filho Salomão, e o povo começar a alimentar a esperança de um Messias
definitivo da parte de Deus, descendente de David, será nesta categoria de
mediador entre Deus e o povo que ele será esperado, e o dia da sua vinda
anunciado como portador do Shalom definitivo que Deus prometera.
A aventura da esperança messiânica nasce da profecia que o profeta
Natan fez a David, aproximadamente mil anos antes de Jesus Cristo. David
tinha sido aclamado e ungido rei de todas as tribos de Israel, formando agora
um só povo unido (2Sm 5, 1-5), tinha marchado sobre Jerusalém,
conquistara-a e nela construíra o seu palácio real (2Sm 5, 6-12). Depois
transportou a Arca da Aliança até Jerusalém, e aí ficou, numa tenda, como
desde os tempos da caminhada pelo deserto (2Sm 6, 1-17). Foi então que, ao
instalar-se no seu palácio real, David se sentiu incomodado por habitar ele
“num palácio de cedro e a Arca de Deus estar abrigada numa tenda” (2Sm 7,
2), sentindo o apelo de construir um templo. David comunicou este desejo ao
profeta da corte, Natan, que confirmou o propósito de construção do templo.
“Mas, naquela mesma noite, o Senhor falou a Natan: Vai dizer ao meu servo
David: ‘És tu que me vais construir uma casa (templo) para Eu habitar?’ (…)
O Senhor faz hoje saber que será Ele próprio que edificará uma casa
(descendência) para ti” (2Sm 7, 4-11). E Deus, por meio do profeta Natan, faz
a David a promessa que virá a dar à luz a esperança messiânica: “Quando
chegar o fim dos teus dias e repousares com os teus pais, manterei depois
de ti a descendência que nascerá de ti e consolidarei o teu reino. Ele é que
construirá um templo ao meu nome, e Eu manterei para sempre firme o seu
trono régio. Eu serei para ele um pai, e ele será para Mim um filho. Se ele
cometer alguma falta, hei-de corrigi-lo com varas e com açoites, como fazem
os homens, mas não lhe tirarei a minha graça, como fiz a Saul, a quem afastei
diante de ti. A tua casa e o teu reino permanecerão para sempre diante de
mim, e o teu trono estará firme para sempre” (2Sm 7, 12-16).
- Deus cumpre sempre as Suas promessas
Está formulada a promessa, e certamente não deixará de se realizar
pois Deus é fiel e já provou ser o Deus que se compromete naquilo que
promete. Deus é fiel, e esperava também uma resposta de fidelidade por
parte da descendência (casa) de David que Ele mesmo edificava por amor, e
à qual prometia perenidade. Na linguagem profética, a correcção “com varas
e açoites” são as invasões doutros povos inimigos em castigo das
infidelidades do povo, como depois virão a proclamar em alta voz quando
Israel e Judá forem invadidos e levados para o exílio.
Neste momento, estamos diante da promessa messiânica (promessa
feita por Deus ao Seu ungido=Messias=rei, e sobre a sua descendência,
igualmente ungida=messiânica=real) mas não podemos falar ainda
propriamente de esperança messiânica. Porquê?! O facto é que o nosso
olhar vê sempre muito aquém dos horizontes da Palavra de Deus na nossa
vida, e o alcance inicial da profecia não ia além de Salomão, filho de David.
Com efeito, David entendia como coração da promessa – já que tinha sido o
que lhe dera origem – a construção do templo para o Senhor. Como Deus lhe
dissera que seria um descendente seu a construir para Si o templo, e David
entendeu-o referido ao seu descendente imediato, começou a mandar trazer
material para a construção para Jerusalém, preparando tudo de modo que,
ao morrer e subir ao trono Salomão, apenas faltasse edificar. E assim foi.
Salomão sucedeu a seu pai e teve um reinado brilhante: construiu um
magnífico templo a Deus e transladou para lá a Arca da Aliança (1Rs 8, 1-9),
manteve o povo unido em torno do trono do seu pai David, tornou-se símbolo
do rei possuído pelo Espírito de Deus que o enchia de sabedoria e fazia
soberano de um tempo que continuava o Shalom conseguido por seu pai,
tempo de paz, justiça e prosperidade (1Rs 8, 62-66). Então, aos olhos de
todos, estava encerrado o ciclo aberto pela profecia de Natan a David. A
promessa de Deus estava (assim parecia…) cumprida, como é bem claro no
discurso de inauguração do templo feito por Salomão: “Senhor Deus de
Israel, Tu cumpriste sempre as Tuas promessas para com o Teu servo David,
meu pai. Tudo o que disseste com a Tua boca, tudo isso cumpriste com a
Tua mão, como hoje se vê” (1Rs 8, 22-24).
Salomão reinou durante quarenta anos, e a ele sucedeu-lhe no trono o
seu filho Roboão, ainda muito jovem.
32 -
Da Promessa à Desilusão
A experiência do povo, ao confrontar-se com os sucessivos
descendentes davídicos, foi frustrante. A aliança que Deus prometera não
podia realizar-se neles pois não eram instauradores do Shalom messiânico,
não eram fomentadores da paz, da prosperidade, da justiça e da alegria que
vem de Deus.
Da profecia à desilusão
Para construir o templo, palácios reais, e levar a vida faustosa que
levava, Salomão carregara o povo com impostos, e conduzira uma política
muito centralizadora. Agora, que tudo estava já feito, os responsáveis das
várias tribos de Israel juntam-se e dirigem-se a Roboão pedindo-lhe que
diminua as contribuições a pagar ao rei. O jovem Roboão, porém, recusou o
conselho favorável dos anciãos que já tinham sido os conselheiros do seu
pai, e “respondeu asperamente ao povo: Meu pai impôs-vos um jugo muito
pesado? Pois eu vos aumentarei ainda o peso!” (1Rs 12, 13-14). Pagou cara a
insensatez: o reino que o seu avô David tinha conseguido unificar com as
doze tribos, rasga-se em dois: o Reino de Israel, formado pelas dez tribos do
Norte, e o Reino de Judá, no Sul, formado unicamente pela tribo de Judá que
assimilou também a pequena tribo de Simeão (1Rs 12, 16-19).
O reino de Israel nomeia, então, o seu próprio rei, Jeroboão, que nada
tinha já a ver com a descendência davídica, pois nem sequer pertencia à tribo
de Judá. Dois reinos, dois reis. Mas continua a haver um único templo, o de
Jerusalém no reino de Judá, ao qual os habitantes do reino de Israel
continuavam a ir para prestar o seu culto e praticar os seus holocaustos e
sacrifícios rituais.
Aos olhos dos responsáveis do reino do Norte, isso significava ainda
um sinal de dependência e, sobretudo, fazia com que muito dinheiro dos
habitantes do reino de Israel tilintasse nas caixas de esmolas do templo de
Judá e se gastasse na compra dos animais para os sacrifícios, vendidos no
átrio do templo por funcionários de Jerusalém. A solução para este
“problema” foi encontrada na construção de um templo no reino do Norte,
em Siquém, que evitaria a necessidade de o povo se dirigir ao reino vizinho e
lá deixar o seu dinheiro, bem como na proliferação de outros lugares de culto
e sacrifícios em vários lugares elevados, atitude que levou à revolta os
profetas de Judá que acusaram Jeroboão de idolatria (1Rs 12, 25-33).
Reinos separados, reis desavindos, templos multiplicados. Como
continuar a acreditar que a promessa de Deus a David se realizara já em
Salomão? O reino de David estava dividido, aquele que Deus prometera
consolidar para sempre.
O templo de Deus em Jerusalém não era mais o lugar do cumprimento
da Lei para a maior parte do povo. O Shalom prometido desaparecera neste
tempo sem paz, sem prosperidade nem justiça.
O povo começa a dar-se conta de que a promessa de Deus, afinal,
ainda estava por realizar… o descendente de David prometido por Deus, não
era, afinal, Salomão. É aqui, décadas depois da promessa de Deus a David,
que nasce propriamente a esperança messiânica, quando o povo de Deus se
dá conta de que o horizonte dela não era Salomão, mas outro descendente a
esperar no futuro. Qualquer outro povo teria ficado prostrado na desilusão.
Mas o povo bíblico, alimentado pela palavra dos profetas que gritavam a
certeza de um Deus fiel, não adormece na desilusão mas abre-se à
esperança, ainda que num futuro não evidente. O coração que faz palpitar
esta promessa é a certeza de que Deus não Se engana nem nos engana:
“Deus prometeu? Então, esperamos, pois Ele é fiel!”
Face ao fracasso da divisão do reino, a profecia de Natan ganha nova
importância e torna-se a semente dessa árvore grandiosa que é a esperança
messiânica, segundo a qual o povo aguarda um descendente de David que
virá restaurar o reino de seu pai, e trazer de novo o dom do Shalom, ou seja,
o conjunto de todos os bens por que anseia o coração do povo.
A partir daí, cada descendente de David que subia ao trono em Judá
podia ser o “Esperado”… Por isso, cada vez mais o ritual da entronização e
da unção real começa a inspirar-se na promessa feita a David.
Sempre que um novo descendente era ungido e entronizado, era-lhe
recordada a profecia feita a seu pai, e era-lhe anunciada a esperança de que
nele se realizasse. Por isso, esse momento começa a ser visto como o acto
da geração do rei como filho de Deus, tal como constava da promessa (2Sm
7, 14).
- O homem falha, Deus nunca falha
É muito claro o Salmo 2, salmo proclamado nas entronizações reais de
Judá: “Fui Eu que consagrei o meu rei sobre o Meu monte santo de Sião! Vou
anunciar o decreto do Senhor. Ele disse-me: tu és Meu filho, Eu hoje te gerei”
(Sl 2, 6-7).
Mas a experiência do povo, ao confrontar-se com os sucessivos
descendentes davídicos, foi frustrante. A aliança que Deus prometera não
podia realizar-se neles pois não eram instauradores do Shalom messiânico,
não eram fomentadores da paz, da prosperidade, da justiça e da alegria que
vem de Deus. Um após outro, revelavam ser homens centrados em si
próprios e nos seus interesses, nada preocupados com o que se passava
fora dos faustosos banquetes que ofereciam nos seus palácios para outros
iguais a eles. Deste modo, quem vai continuar a alimentar a esperança
messiânica no meio do povo são os profetas, que levantam a voz para dizer
que a promessa de Deus não falha; quem está a falhar são os descendentes
davídicos que com o seu pecado não dão condições a Deus para actuar e O
afastam do povo. Diante da infidelidade dos reis à sua unção real,
anunciavam que Deus não se deixa vencer pelo pecado, e iria realizar a Sua
promessa no futuro, já que com eles não podia contar: “Brotará um rebento
do tronco de Jessé (pai de David), e um renovo brotará das suas raízes.
Sobre ele repousará o Espírito do Senhor (ou seja, esse será fiel e dócil à
unção), espírito de sabedoria e de entendimento, espírito de conselho e de
fortaleza, espírito de ciência e de temor do Senhor” (Is 11, 1-2).
33 -
A importância da fidelidade dos Profetas
A iniquidade e infidelidade à unção dos reis de Judá chama os
profetas à liderança da aventura da esperança messiânica entre o povo.
A importância da fidelidade dos Profetas
A iniquidade e infidelidade à unção dos reis de Judá chama os
profetas à liderança da aventura da esperança messiânica entre o povo.
Exemplo por excelência deste aparecimento dos profetas como
protagonistas da esperança é a atitude do profeta Isaías diante do rei Acaz,
quando condena a sua infidelidade e proclama a fidelidade de Deus
anunciando o nascimento do “Emanuel”, profecia que terá depois eco no
evangelho de Mateus, quando for este o nome que o anjo da anunciação
revelará a José para Jesus (Mt 1, 23).
Acaz, rei de Judá entre 734 e 727 a.C., descendente de David, vê-se
ameaçado no seu pequeno reino (como era apenas uma tribo, não tinha
poderia militar) por um cerco lançado por dois exércitos coligados: os
exércitos da Síria e do vizinho do Norte, Israel.
O profeta Isaías esperava de Acaz a atitude régia cantada em vários
salmos que proclamam a presença de Deus junto do Seu povo e do rei Seu
ungido, fazendo-o forte e vitorioso: “Aquele que habita nos céus sorri; o
Senhor escarnece dos que planeiam planos contra o Seu ungido. Depois
atemoriza-os com a Sua ira e com a Sua cólera os dispersa…” (Sl 2, 4-5);
“Sim, o rei confia no Senhor; com o amor do Altíssimo será inabalável…” (Sl
21, 8ss).
Mas o rei Acaz conseguiu proceder exactamente ao contrário! No
momento da dificuldade ficou aterrorizado, e esqueceuse totalmente de
Deus, tendo chegado ao extremo de sacrificar um filho no fogo para pedir
auxílio divino a Moloc, um ídolo dos povos pagãos (2Rs 16, 3). Isaías vai ter
com ele para lhe dizer: “Tranquiliza-te, tem calma, não temas nem te
acobardes” (Is 7, 4). Mas Acaz não lhe presta ouvidos e envia delegados ao
rei da Assíria, pedindo-lhe que viesse em sua ajuda e exterminasse os
inimigos de Judá: “Acaz enviou mensageiros a Tiglat-Falasar, rei da Assíria,
a dizer-lhe: ‘Eu sou teu servo e teu filho. Vem e salva-me das mãos do rei da
Síria e do rei de Israel, que se levantaram contra mim’. Acaz tomou a prata e
o ouro que se encontravam no templo do Senhor e nos tesouros do palácio
real e enviou-os como presente (para pagar o favor…) ao rei da Assíria” (2Rs
16, 7-9). E eis que vemos o rei Acaz, filho e servo de Deus pela sua unção
real, a entregar-se como filho e servo de um rei pagão, e a entregar-lhe
também toda a riqueza do templo do Senhor e do palácio de David. Não
poderia haver sinal mais contrário à esperança messiânica do que este! I
Isaías manda a Acaz pedir um sinal a Deus, para lhe inspirar a certeza
de que Deus estaria presente, como sempre prometera, ao Seu povo e ao Seu
ungido. Acaz recusa, dizendo: “Não farei tal coisa, não tentarei o Senhor” (Is
7, 12). Nem sequer foi capaz de dar-se conta de que pedir um sinal a Deus
não é uma atitude de pôr o Senhor à prova, mas uma atitude de fé e
esperança profundas na Sua presença e na Sua acção poderosa em nosso
favor, virtudes que o rei já provara não conhecer.
Então, Isaías, com o olhar de profeta que lê a Palavra de Deus em cada
acontecimento, situação e sinal, anuncia-lhe a verdade e a perenidade da
promessa feita por Deus a David de lhe suscitar um filho que fosse
totalmente fiel à unção do “espírito de sabedoria e entendimento, conselho e
fortaleza, ciência e temor do Senhor” (Is 11, 2), características messiânicas
ausentes de Acaz.
O profeta vê na gravidez da jovem esposa de Acaz um sinal da
fidelidade de Deus: “O Senhor por sua conta e risco vos dará um sinal: a
jovem está grávida e vai dar à luz um filho, e há-de pôr-lhe o nome de
Emanuel” (Is 7, 14). O profeta não é um adivinho; é, acima de tudo, um
homem de fé inabalável. Por isso é capaz de dar a vida pela certeza da
fidelidade de Deus. Para o anunciar, serve-se de um sinal evidente aos olhos
de todos: a rainha está grávida, isto é, a descendência de David tem
continuidade, apesar da infidelidade do rei presente. No sinal da gravidez da
jovem, Isaías vislumbrava a certeza de que a promessa de Deus estava
também como que em “gestação”, até chegar a “plenitude do tempo” (Gal 4,
4) em que a promessa daria à luz o Prometido…
Mas os descendentes de Acaz, embora nem todos tão maus como ele,
também não foram sinal para o povo de que Deus podia contar com eles para
realizar a promessa feita a David e instaurar o Seu Shalom. Entretanto,
durante os anos 724-721 a.C., pouco tempo passado sobre a morte de Acaz,
o reino do Norte, Israel, é invadido pela Assíria e o seu povo levado para o
exílio (2Rs 17, 9-12). O rei de Judá que sucedera a Acaz era Ezequias que, dez
anos depois de ver a Assíria invadir e deportar o vizinho reino de Israel, vê
novamente os seus exércitos, mas desta vez a invadir todas as cidades de
Judá. Ezequias manda delegados ao rei da Assíria, pedindo-lhe que parasse
com a invasão, e prometendo em troca da “liberdade” do reino tudo o que
quisesse. Senaquerib, rei da Assíria, impôs um pesado imposto ao reino de
Judá, e Ezequias teve que pagar-lhe com toda a prata e ouro que conseguiu
recolher no templo e no tesouro do palácio real. Até o revestimento de ouro,
que ele mesmo tinha mandado aplicar nas portas do templo, teve que retirar
para entregar à Assíria (2Rs 18, 13-16). E, deste modo, Ezequias lá ia
conseguindo que o reino “sobrevivesse” debaixo das garras da grande
potência dominadora do tempo.
Mas um reino tão pequeno não podia resistir por muito tempo…
Sucedeu a Ezequias o seu filho Manassés, um dos nomes mais mal
amados entre os descendentes davídicos, pela sua infidelidade, injustiça, e
até crueldade para com o seu povo. Quando, uns anos depois, Judá for
invadida e o seu povo finalmente deportado para o exílio, os profetas vão ler
esse acontecimento à luz da profecia de Natan na qual Deus dizia “hei-de
corrigi-lo com varas e açoites, como fazem os homens” (2Sm 7, 14), e
apontando muitas vezes a principal culpa a Manassés, o rei iníquo que
conduzira o seu povo à ruína pelas suas más acções: “O Senhor mandou
contra Joaquim (o rei no tempo da invasão da Babilónia) as tropas dos
caldeus, dos sírios, dos moabitas e dos amonitas; enviou-os contra Judá
para os destruir, conforme Ele anunciara pela boca dos profetas, Seus
servos. Isto aconteceu a Judá por ordem do Senhor, para afastá-lo da Sua
presença, por causa dos pecados cometidos por Manassés, e por causa do
sangue inocente que ele derramara, inundando Jerusalém de sangue
inocente. E o Senhor não quis perdoar tal maldade” (2Rs 24, 2-4).
Com efeito, desde o tempo do rei Ezequias, o povo dominador da
região mediterrânica já havia mudado. Antes eram os Assírios; depois foram
por um breve período os Egípcios; agora, cerca de cem anos depois, são os
Caldeus ou Babilónicos. E o que começou por ser uma ameaça, concretizou-
se no ano 589 a.C. quando Nabucodonosor, rei da Babilónia, invade Judá e
cerca a cidade de Jerusalém. O profeta Miqueias, atento aos acontecimentos
que se precipitavam e lendo-os à luz da Palavra fiel do Senhor, preanuncia os
sofrimentos do povo na Babilónia: “Contorce-te de dores e geme, filha de
Sião, como uma mulher que dá à luz, porque agora sairás da cidade e
habitarás nos campos; irás até à Babilónia, e lá encontrarás a salvação” (Mq
4, 10). Apesar de anunciar o sofrimento, anuncia também a salvação pois
Deus é fiel e há-de suscitar para o povo o seu Messias.
- Exílio: castigo justo pela infidelidade do povo
Miqueias fala de Belém como a cidade da qual háde sair o ungido de
Deus, por ser essa a cidade de David (1Sm 16, 1-13; Jo 7, 42): “Mas tu,
Belém-Efratá, tão pequena entre as famílias de Judá, é de ti que me há-de sair
aquele que governará em Israel. As suas origens remontam aos tempos
antigos, aos dias de um passado longínquo. Por isso, Deus abandonará o
Seu povo até ao ponto em que der à luz aquela que há-de dar à luz… Ele
permanecerá firme e apascentará o seu rebanho com a força do Senhor, seu
Deus” (Mq 5, 1-3). Quantos ecos desta esperança profética viremos a escutar
uns séculos depois nos evangelhos de Jesus…
Finalmente, dois anos depois do cerco (587 a.C.), Jerusalém cai nas
mãos dos caldeus: “Foi incendiado o templo do Senhor, o palácio real e
todas as casas da cidade, começando pelas casas dos mais importantes de
Jerusalém. E as tropas que acompanhavam o chefe da guarda destruíram o
muro que cercava Jerusalém” (2Rs 25, 9-10). Uma parte dos habitantes já
estava no exílio na Babilónia há dois anos, e a restante maioria seguiu agora
para lá, ficando apenas em Judá um pequeno resto do povo, entre o qual
estava o profeta Jeremias.
Jeremias sublinha de novo, à luz da profecia de Natan, que o exílio é o
castigo de Deus à infidelidade do Seu povo, de modo especial causado pelos
seus “pastores”, desde o rei aos sacerdotes do templo, passando até pelos
falsos profetas: “Ai dos pastores que dispersam e extraviam o rebanho das
Minhas pastagens! – diz o Senhor” (Jr 23, 1-3). No entanto, o profeta bíblico
não é um “profeta da desgraça”. As suas palavras desaguam sempre na
esperança do perdão recriador de Deus, que se funda na certeza da Sua
fidelidade: “Dias virão – diz o Senhor – em que farei brotar de David um
rebento justo, que será rei, governará com sabedoria e exercerá no país o
direito e a justiça (o Shalom)”; “Não faltará a David um sucessor que se
sente no trono da casa de Israel. E dos descendentes dos sacerdotes e dos
levitas não faltará jamais um homem que me ofereça holocaustos, incense as
oferendas e celebre o sacrifício quotidiano” (Jr 23, 5; 33, 17-18). O profeta,
em tempo de exílio, sem rei nem templo, é voz de esperança e fé na Palavra
fiel de Deus.
A mesma certeza animava o profeta Ezequiel, que estava na Babilónia
entre os deportados e aos quais anunciava a futura chegada de um “pastor”
para o povo, da descendência de David: “Estabelecerei sobre elas (as Minhas
ovelhas) um único pastor, que as apascentará, o meu servo David; será ele
que as levará a pastar e lhes servirá de pastor. Eu, o Senhor, serei o seu
Deus, e o meu servo David será um príncipe no meio delas. Fui Eu, o Senhor,
que o disse!” (Ez 34, 23-24).
Entretanto, depois de décadas de esperança alimentada no exílio, a
Babilónia é invadida pelos Persas, cujo rei era Ciro. O estilo de domínio dos
Persas era diferente do que até aí tinham praticado os outros povos. Não
deportavam nem escravizavam, mas mantinham cada povo sob o seu
domínio no seu próprio país, permitindo o culto religioso às divindades de
cada um, colocando governantes nacionais, e não fazendo qualquer espécie
de pressão forçada desde que o reino dominado pagasse os impostos que a
Pérsia exigia.
Para o povo bíblico que tinha uma história de dominações violentas e
escravizantes, esta situação era acolhida como uma viçosa liberdade! O rei
Ciro publicou um decreto no qual autorizava o povo a regressar ao seu país,
e no qual os motivava até a reconstruírem as suas casas e o seu templo. De
tal modo é acolhida a libertação que Ciro é entendido como instrumento de
Deus – ele que até era pagão! – para restaurar o Seu povo, e chegam mesmo
a chamá-lo “ungido”, título reservado aos descendentes davídicos que
subiam ao trono de Judá: “Eis o que diz o Senhor a Ciro, Seu ungido, a quem
tomei pela mãodireita…” (Is 45, 1).
34 -
O recomeço do Sonho, depois do exílio na
Babilónia
Um dos problemas a que o exílio prolongado dera origem fora a
quebra da sucessão dinástica no trono de Judá, com o risco de se cortar a
linha da descendência davídica, que era o filão da esperança messiânica.
O recomeço do Sonho, depois do exílio na Babilónia
Um dos problemas a que o exílio prolongado dera origem fora a
quebra da sucessão dinástica no trono de Judá, com o risco de se cortar a
linha da descendência davídica, que era o filão da esperança messiânica. Por
isso, além do reino reconquistado e do templo reconstruído, depois do exílio
da Babilónia ficou como governador de Judá Zorobabel, que era da
descendência de David (1Cro 3, 19). Foi ele um dos responsáveis pela
reconstrução do templo, pela edificação do altar e pela oferta dos primeiros
sacrifícios, no tempo do pós-exílio (Esd 3, 2). Este é um período de grande
exaltação do povo, de tal modo que começa a ver em Zorobabel aquele
descendente de David anunciado e esperado (Ag 2, 20-23; Zac 4, 6b-10a). No
entanto, não durou muito o entusiasmo, pois Zorobabel (que não era sequer
rei, mas apenas governador nas mãos da Pérsia) desaparece
misteriosamente de cena e a monarquia acaba.
O profeta Zacarias, o mesmo que tanto esperava de Zorobabel, ao
deparar-se no meio de um povo sem rei, dominado por um reino estrangeiro,
depois de uma história de guerras, dominações, exílios e sofrimento,
recomenda que a coroa real se guarde no templo (Zac 6, 14) e começa a olhar
para a esperança messiânica com uma perspectiva nova, só possível pela fé
na verdade e no poder de Deus: corrige a perspectiva do rei triunfalista, para
anunciar um rei que venha despojado de poder e desarmado de exércitos
trazer a vitória que se conquista pela justiça e instaurar o Shalom que brota
da humildade: “Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de
Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti; ele é justo e vitorioso; ele vem,
humilde, montado num jumento, sobre um jumentinho, filho de uma jumenta.
Ele exterminará os carros de guerra da terra de Efraim e os cavalos de
Jerusalém; o arco de guerra será quebrado. Proclamará a paz para as
nações. O seu império irá de um mar ao outro, e do rio às extremidades da
terra! (Zac 9, 9-10).
Esta perspectiva da esperança messiânica ficará um pouco
“adormecida” até ser de novo “acordada” pelo Messias Jesus, “manso e
humilde de coração” (Mt 11, 29) que proclamou “bem-aventurados os
construtores da paz” (Mt 5, 9) e que entrou montado num jumentinho em
Jerusalém, entre aclamações de júbilo e gritos de alegria (Mt 21, 1-10).
No entanto, depois do exílio na Babilónia, a esperança messiânica
ganhou alguns novos contornos, primeiro, pela perda da linha dinástica que
acontecera pelo fim da monarquia; segundo, pela literatura de tipo
apocalíptico que iria florescer nos séculos posteriores, em períodos de
novas dominações e sofrimentos infligidos por outros povos.
Uma vez acabada a monarquia, o “Prometido a David” já não se podia
esperar simplesmente olhando para aquele que estava no trono e procurando
no seu modo de reinar a confirmação ou a negação dos conteúdos da
promessa. Sem rei no trono, o povo continuava à espera do descendente de
David prometido por Deus, mas as únicas garantias eram agora que ele teria
que pertencer à tribo de Judá – que era a tribo de David – e seria reconhecido
pelas suas atitudes e capacidade de liderança em ordem à realização da
promessa que a ele dizia respeito.
Em relação à outra nova característica, ela brota da literatura
apocalíptica, que é um estilo literário florescente nos períodos de mais
intensa perseguição e sofrimento imposto por condições sociais, culturais e
religiosas adversas. Teve início sobretudo no interior da literatura profética
durante o exílio, e depois quase que se tornou no “estilo profético oficial”
nos séculos do pós-exílio, durante as perseguições e dominações de povos
como os Selêucidas, os Gregos e os Romanos. Além da presença em muitos
livros proféticos na Bíblia, disseminado ao longo dos capítulos, é o estilo de
quase todo o livro de Daniel, e deu origem a muitos outros livros da tradição
religiosa judaica que, no entanto, não fazem parte da Bíblia.
Já no Novo Testamento, é uma mentalidade e um estilo literário ainda
muito presente nos evangelhos e na pregação dos apóstolos. No tempo da
Igreja nascente, açoitada por perseguições e martírios em série pelo Império
Romano adverso à “nova seita judaica”, vai ser este o estilo literário usado
pelo autor do livro que conhecemos exactamente por Apocalipse.
Apocalipse significa revelação, e literatura apocalíptica é aquela cujas
narrações acontecem sob a forma de testemunho de revelações, quase
sempre em linguagem profundamente simbólica e enigmática, de modo a ser
entendida apenas por membros do grupo perseguido a quem as revelações
se dirigem.
Esta mentalidade e literatura, no Antigo Testamento, vão começar a
dizer a esperança messiânica em termos apocalípticos, introduzindo-lhe,
deste modo, novas dimensões que virão a marcar profundamente a posterior
pregação dos apóstolos de Jesus sobre o seu messianismo, já que a
mentalidade e literatura apocalípticas, pelos seus tons de misticismo
fantástico e colorido profético, eram o alimento mais apreciado da
religiosidade popular de Israel no tempo de Jesus. Como, aliás, ainda hoje,
tudo o que raiar o fantástico ou o esoterismo é o que mais atrai e alimenta a
religiosidade popular dos discípulos de Jesus…
- Deus destrói o pecado, não o pecador
Uma das expressões fundamentais da mentalidade apocalíptica do
Antigo Testamento é o Dia do Senhor, ou Dia da Ira do Senhor. Marcava uma
definitiva intervenção de Deus na história do Seu povo desvalido.
Como vimos, os profetas entendiam os exílios e os sofrimentos como
castigo justo de Deus ao Seu povo infiel à Aliança. Os acontecimentos eram
sempre interpretados dentro do esquema retribuição-castigo: ao justo,
bênção; ao ímpio, maldição. É exactamente dentro deste esquema que dois
acontecimentos são narrados na Bíblia como modelo para o futuro: o dilúvio
(Gn 6, 5-7) e a destruição de Sodoma, a cidade pecadora, pelo fogo (Gn 19,
13). Estes relatos bíblicos tornaram-se o paradigma da ira de Deus, e é sob
essa luz que vai a literatura apocalíptica falar do Dia do Senhor como dia em
que a Sua ira destruiria e purificaria pelo fogo: “Aproxima-se o Dia do
Senhor! Ele está próximo! Diante dele, um fogo devorador, atrás dele, uma
chama abrasiva” (Jl 2, 1-3).
E o Dia da Ira não era anunciado apenas para os opressores
estrangeiros, mas também como Dia de Deus para o povo, dia em que tiraria
vingança da sua infidelidade e separaria os justos dos rebeldes, pelo fogo
purificando uns e destruindo outros: “Ele é como o fogo do fundidor e como
a barrela das lavadeiras. Ele sentar-se-á como fundidor e purificador.
Purificará os filhos de Levi e os refinará como se refinam o ouro e a prata”
(Mal 3, 2-3).
É importante compreendermos, neste momento, que a revelação de
Deus ao homem é histórica, isto é, rege-se por uma gradualidade de
progressão, e manifesta-se sempre num determinado contexto cultural. É
nesta gradualidade de progressão que devemos entender que estamos numa
etapa de revelação pré-cristã, ou seja, antes da revelação da “plenitude dos
tempos” (Gal 4, 4) em Jesus Cristo e, por isso mesmo, num contexto cultural
em que falar da ira de Deus era o melhor modo de dizer a Sua intervenção
poderosa na recriação das realidades que o pecado do homem desfigurara. A
revelação não acontece nunca em estado “quimicamente puro”, mas
mediada pela cultura de cada tempo. Para nós, hoje, a verdade de Deus que
subjaz à expressão Dia da Ira do Senhor é a certeza de que Deus não fica
indiferente diante do mistério do mal nem cruza os braços quando o homem
escolhe para si a desventura do pecado, caminho de fracasso existencial.
Porque é Amor em plenitude, Deus não viola o homem nas suas opções. Mas
esse mesmo Amor não O deixa desistir daquele que criou por ter muito amor
para lhe dar, e faz-Se para ele dom total e gratuito que, na medida em que é
acolhido, o transforma e renova...
Na perspectiva da mentalidade apocalíptica bíblica, o Dia da Ira é o dia
definitivo em que o zelo amoroso do Senhor destruiria o pecado. Era dia de
angústia e sofrimento porque a destruição do pecado implicava a destruição
do pecador. Depois de Cristo, pela revelação familiar de Deus, sabemos que
o Seu zelo amoroso é o Espírito Santo, força que destrói o pecado naqueles
que o acolhem, mas não destrói o pecador; antes, o recria e o faz renascer
para a realidade de ser Homem Novo restaurado e bem-amado por Deus. Esta
é a compreensão cristã do Dia da Ira do Senhor, tão frequente na Bíblia.
35 –
A esperada Ira de Deus na vinda do
Messias
A literatura apocalíptica do Antigo Testamento que falava do Dia da Ira
do Senhor falava também de um outro conteúdo fundamental da Aliança de
Deus com o Seu povo: a esperança messiânica. E aconteceu
progressivamente que os dois conteúdos da fé judaica se juntaram.
A espera da Ira de Deus na Vinda do Messias
A literatura apocalíptica do Antigo Testamento que falava do Dia da Ira
do Senhor falava também de um outro conteúdo fundamental da Aliança de
Deus com o Seu povo: a esperança messiânica. E aconteceu
progressivamente que os dois conteúdos da fé judaica se juntaram, de modo
que o Dia do Senhor começa a associar-se ao Dia da vinda do Messias, o
qual realizaria a Ira de Deus. Deste modo, passa a anunciar-se a chegada do
Messias como dia de bênção para os justos, e dia de grande sofrimento e
destruição para os pecadores. É esta a perspectiva que chega ao tempo de
Jesus, e que está bem presente no Novo Testamento.
A pregação de João Baptista era totalmente desta linha da esperança
messiânica já em tons apocalípticos: “Raça de víboras, quem vos ensinou a
fugir da ira que está para vir? O machado está posto à raiz das árvores, e
toda a árvore que não dá bom fruto é lançada ao fogo. Eu baptizo-vos com
água, para vos mover à conversão; mas aquele que vem depois de mim é
mais poderoso do que eu e não sou digno de lhe descalçar as sandálias. Ele
há-de baptizar-vos no Espírito Santo e no fogo. Tem na sua mão a pá de
joeirar; limpará a sua eira e recolherá o trigo no celeiro, mas queimará a
palha num fogo inextinguível” (Mt 3, 7-11).
Jesus, que seguiu e escutou João e por sua mediação se tornou
consciente da sua própria missão messiânica, não se sentia, no entanto,
minimamente chamado a realizar essa ira do Senhor. Amadureceu a sua
vocação-missão, e nunca foi, de facto, um pregador apocalíptico. Contudo,
após a sua ressurreição, quando os seus discípulos começaram a anunciá-lo
como o Messias de Deus, o esperado prometido a David, não foram capazes
de se desligar totalmente das suas tradições e compreensões judaicas, e do
Dia da Ira do Senhor passaram ao Dia do Filho do Homem (Mt 16, 27). Como a
vida pública do Messias Jesus não assentou nos dois acontecimentos
fundamentais associados à vinda do Messias, ou seja, a entronização e a
realização do Dia da Ira do Senhor, os discípulos na pregação pós-pascal vão
transpor essas realidades para a vida ressuscitada do Mestre (Mc 14, 62).
Assim, anunciam que a entronização aconteceu no momento da sua
ressurreição (Rm 1, 3-4), entronizado directamente por Deus sentando-o
eternamente à Sua direita (Ef 1, 20-22: “Deus ressuscitou Cristo dos mortos e
sentou-o à Sua direita, no alto do Céu, muito acima de todo o poder… Sim,
Ele tudo submeteu a seus pés…”), e o Dia da Ira do Senhor associado à
chegada do Messias viria a acontecer numa Segunda Vinda de Cristo, que
começa a ser chamada de Dia do Filho do Homem, ou Dia do Senhor
referindo-se a Cristo glorificado (1Tes 5, 1-11: “Vós sabeis que o Dia do
Senhor (Jesus) chega de noite como um ladrão. Quando disserem: ‘Paz, e
segurança’, então se abaterá repentinamente sobre eles a ruína, como as
dores de parto sobre a mulher grávida, e não escaparão a isso. Mas vós,
irmãos, não estais nas trevas, de modo a que esse dia vos surpreenda como
um ladrão. De facto, Deus não nos destinou à ira mas à posse da salvação
por meio de Jesus Cristo nosso Senhor”).
No Dia da Ira do Senhor no Antigo Testamento, os justos para quem
esse dia seria uma bênção eram o resto fiel de Israel. No Novo Testamento,
ao fazer-se a passagem do Dia do Senhor para o Dia do Filho do Homem, o
resto fiel são os cristãos. Era, portanto, toda esta mentalidade apocalíptica
que tinha impregnado a esperança messiânica o que alimentou a fé simples
daqueles pescadores judeus a quem Jesus chamou para serem seus
discípulos.
E, apesar de o Mestre nunca se ter identificado com esta perspectiva
apocalíptica, quando a experiência pascal os impeliu para anunciar a Boa
Nova de Jesus a todos os homens, fizeram-no ainda utilizando a mentalidade
e a linguagem de uma etapa da revelação e de um contexto cultural e
religioso que o Mestre já tinha largamente ultrapassado. Mas, nos seus
corações e pelas suas palavras foi o Espírito Santo encontrando espaço para
conduzir os crentes, geração após geração, a discernir o que é fundamental
do que é cultural, para irem saboreando a Verdade do Evangelho. Afinal, foi
Ele, o “Espírito da Verdade”, que Jesus nos prometeu para nos “levar até à
verdade completa” (Jo 16, 12-13) do projecto do Amor de Deus nele revelado
e realizado plenamente…
PARTE III:
NOVO TESTAMENTO
A Caminhada dos Discípulos
36 -
O discipulado histórico
Quando Jesus inicia a sua vida pública messiânica, após a prisão de
João Baptista, uma das suas primeiras preocupações foi escolher e reunir
em torno de si um grupo íntimo de discípulos. Jesus não aparece na História
da Salvação como um “herói solitário”, mas cria uma pequena comunidade
continuadora da sua missão.
O discipulado histórico
Quando Jesus inicia a sua vida pública messiânica, após a prisão de
João Baptista, uma das suas primeiras preocupações foi escolher e reunir
em torno de si um grupo íntimo de discípulos.
Jesus não aparece na História da Salvação como um “herói solitário”,
mas cria uma pequena comunidade continuadora da sua missão. O que nós
costumamos esquecer é que os discípulos eram também judeus, e aderiram
a Jesus perfeitamente acalentados pela esperança messiânica davídica. E
não lhes foi nada fácil transformar essa esperança de modo a acolher a
novidade messiânica que Jesus lhes revelava. Por isso, vamos tentar agora
responder à seguinte pergunta: Qual foi a experiência que os discípulos
fizeram de Jesus?
Desde o princípio, temos que ter claro que foi uma experiência
dinâmica e evolutiva que começa alicerçada na esperança messiânica
davídica, se vai transformando em acolhimento da novidade messiânica de
Jesus, e é totalmente transfigurada na experiência do inédito, a experiência
pascal: “Ele está vivo!” (cf. Jo 20, 18. 25)
A verdade profunda da Encarnação está também presente no grupo de
discípulos de Jesus, na medida em que não escolhe “homens neutros” que
acolham a sua Boa Nova, mas homens concretos com um contexto sócio-
-cultural e religioso bem vincado. Ora, a nível religioso eram puros judeus,
marcados pela esperança messiânica davídica, e foi confiando nessa
esperança que foram ao princípio aderindo a Jesus.
No evangelho de João este dado é claro logo no chamamento dos
primeiros discípulos, quando Jesus chama Natanael: “Jesus disse a
Natanael: ‘Antes de Filipe te chamar, eu vi-te debaixo da figueira!’” (Jo 1, 48).
Na linguagem bíblica, a figueira é símbolo da esperança messiânica (cf. Mt
24, 32-35). E como Natanael era este homem que vivia “à sombra da
esperança no Messias”, ao ver Jesus logo o proclama “Filho de Deus e Rei
de Israel” (Jo 1, 49), isto é, o Esperado, e tal como era esperado segundo a
profecia de Natã (2Sm 7, 14: “Eu serei para ele um pai e ele será para mim um
filho”; 2Sm 7, 12-13: “...manterei a tua descendência e consolidarei o seu
reino... firmarei para sempre o seu trono régio...”).
Mas diante da esperança, Jesus preanuncia desde logo a novidade a
Natanael: “Hás-de ver coisas bem maiores que estas...” (Jo 1, 50).
Pedro, como representante dos discípulos, é também o representante
desta esperança messiânica em confronto com a novidade de Jesus,
enquanto percorriam os caminhos poeirentos da Galileia e da Judeia. No
Evangelho de Marcos, à pergunta de Jesus: “Quem dizeis vós que Eu sou?”
(Mc 8, 29), Pedro responde simplesmente: “Tu és o Messias”.
Mas qual era a ideia de messianismo que estava na cabeça dos
discípulos?
Na continuação imediata do relato fica evidente que este “és o
Messias” dito por Pedro ainda está dentro do horizonte davídico da
esperança messiânica, pois quando Jesus começa a “ensinar-lhes que o
Filho do Homem tinha de sofrer muito e ser rejeitado, e ser morto...” (Mc 8,
31), Pedro “chamou-o à parte e começou a repreendê-lo” (Mc 8, 32), como
que lembrando-lhe que o papel de Messias não era o de subir à cruz, mas o
de subir ao trono “de seu pai David” e reinar com poder no renovado reino,
redimido das suas divisões e liberto dos seus opressores.
O messianismo davídico parecia cegar os olhos dos discípulos à Boa
Nova de Jesus. Por isso, é neste contexto que escutamos da boca de Jesus
as palavras mais duras dirigidas aos seus discípulos, representados em
Pedro: “Põe-te atrás de mim, Satanás, porque os teus pensamentos não são
os de Deus, mas os dos homens” (Mc 8, 33), ou seja, “estás a ser para mim
uma força de bloqueio e divisão (Satanás…) no desenrolar da minha missão,
porque me vês ainda com o olhar da esperança messiânica davídica
(pensamentos dos homens...) e não com o olhar iluminado e novo do Espírito
(pensamentos de Deus...)”.
Mas um dos relatos mais significativos neste aspecto de revelar o
horizonte davídico da esperança messiânica nos discípulos, é o dos filhos de
Zebedeu, Tiago e João, que, convencidos de que Jesus iria instaurar um
reino terreno, lhe pedem para ser os seus mais directos colaboradores
quando chegasse a hora de repartir os cargos ao serviço do trono (Mc 10, 3545). A este pedido tão pouco iluminado pela novidade messiânica, Jesus
responde: “Não sabeis o que pedis...”. “Os outros dez, tendo ouvido isto,
começaram a indignar-se contra Tiago e João” (Mc 10, 41), não por terem
chegado a um nível de conhecimento mais elevado do messianismo de
Jesus, mas porque, no fundo, todos desejavam o mesmo...
Foi a estes “homens sem inteligência e lentos para compreender” (Lc
24, 25) que a experiência da morte de Jesus apanhou como um gigantesco e
incompreensível balde de água fria...
37 -
O fracasso da morte
A morte de Jesus motivou nos discípulos um misto de três
sentimentos profundos: tristeza, medo e desilusão. Para quem esperava um
Messias que pelo poder alcançasse a riqueza e o sucesso, um “Messias
crucificado é um escândalo” e a morte era um fracasso incompreensível.
O fracasso da morte
A morte de Jesus motivou nos discípulos um misto de três
sentimentos profundos: tristeza, medo e desilusão.
Tristeza porque amavam Jesus verdadeiramente; tinham feito com Ele
a experiência de alguém único, como jamais algum deles havia encontrado.
Amavam Jesus, e a sua amizade ficou mergulhada numa profunda tristeza
(Lc 24, 17).
Medo porque os discípulos sofreriam a mesma sorte do Mestre, caso
dessem nas vistas. Foi por medo de sofrer a mesma sorte que Pedro o negou
(Mt 26, 69-75). E João é claro ao dizer este medo: “Ao anoitecer daquele dia,
o primeiro da semana, estando fechadas as portas do lugar onde os
discípulos se encontravam, com medo das autoridades judaicas...” (Jo 20,
19).
Mas o maior sentimento era a desilusão. Eles que haviam aderido a
Jesus na esperança de ser ele o Messias fazem agora a experiência mais
radical de que se enganaram, pois Jesus morrera sem subir ao trono e sem
reunificar as doze tribos do Reino de David. Assim, o coração da promessa
messiânica ficava por cumprir. Jesus mais não era, afinal, que um homem
especial... quando muito, um profeta.
Esta desilusão é evidente no relato dos companheiros a caminho de
Emaús, que voltavam desalentados à sua vida antiga depois de terem
aderido iludidos a um falso Messias: “Jesus de Nazaré, profeta poderoso em
obras e palavras diante de Deus e de todo o povo; os sumos sacerdotes e os
nossos chefes entregaram-no para ser condenado à morte e crucificado. Nós
esperávamos que fosse Ele o que viria libertar Israel, mas com tudo isto já lá
vão três dias desde que se deram estas coisas...” (Lc 24, 19-21).
Os discípulos esperavam em Jesus a realização da promessa
messiânica de cunho davídico, cujo sinal visível seria a libertação e
reunificação política de Israel (At 1, 6), e Jesus morreu sem subir ao trono.
Por isso, o máximo que lhe chamam é “profeta poderoso”, pois a sua morte
provara não ser Messias.
Para quem esperava um Messias que pelo poder alcançasse a riqueza
e o sucesso, um “Messias crucificado é um escândalo” (1Cor 1, 23) e a morte
era um fracasso incompreensível.
38 -
A experiência pascal
A experiência pascal é o grande recomeço da vida daqueles
discípulos, e o grande começo da vida dos discípulos de todos os tempos.
Este recomeço é impulsionado vitalmente pela acção do Espírito Santo, o
grande dom do Ressuscitado, na interioridade dos discípulos, que os conduz
ao nível mais profundo da vida, onde se encontram na Fé e no Amor com
Cristo eternamente vivo.
A experiência pascal
Qual foi o grande acontecimento que fez aquele grupo de homens
desiludidos, tristes e medrosos, saltar para a praça pública, passados três
dias da morte do Mestre, anunciando com júbilo e sem medo a sua
ressurreição e apontando descaradamente o dedo àqueles que o haviam
condenado? Diante desta transformação, os judeus “estavam todos
assombrados e, sem saber o que pensar, diziam uns aos outros: ‘Que
significa isto?’ Outros, por sua vez, diziam, troçando: ‘Estão cheios de vinho
doce!’” (At 2, 12).
A experiência pascal é o grande recomeço da vida daqueles
discípulos, e o grande começo da vida dos discípulos de todos os tempos.
Este recomeço é impulsionado vitalmente pela acção do Espírito Santo, o
grande dom do Ressuscitado, na interioridade dos discípulos, que os conduz
ao nível mais profundo da vida, onde se encontram na Fé e no Amor com
Cristo eternamente vivo: “Os discípulos encheram-se de alegria por verem o
Senhor. E ele voltou a dizer-lhes: ‘A paz seja convosco! Assim como o Pai
me enviou, também Eu vos envio a vós.’ Em seguida soprou sobre eles e
disse-lhes: ‘Recebei o Espírito Santo.’” (Jo 20, 20-22).
A experiência pascal é uma experiência espiritual. É no Espírito Santo
que os discípulos experimentam a verdade da ressurreição, verdade que
acolhem como certeza, mas não como evidência. O Espírito de Deus não se
encontra com o Homem ao nível da biologia nem do psiquismo, mas ao nível
da interioridade pessoal-espiritual. É a esse nível que a experiência pascal é
para os discípulos reveladora de um sentido novo da história, das acções e
das palavras de Jesus, da esperança messiânica, da morte do Mestre e do
novo caminho a seguir. A experiência do sentido da vida não é nunca nem
em ninguém demonstrável pela evidência. E quando este sentido é
optimizado pela vida teologal, isto é, imerso numa nova dinâmica de Fé,
Esperança e Amor ao jeito de Jesus e actuado pelo Espírito Santo, a
evidência desaparece por absoluto. Resta a certeza, mas uma certeza que
não se pode impôr pela evidência. Fica apenas uma forma de “provar” a
experiência pascal, que foi a seguida pelos discípulos: estar disponível para
dar a vida por ela.
Os discípulos tinham, no Espírito Santo, a certeza da ressurreição de
Jesus (Act 5, 32) mas não a podiam impôr pela evidência; evidente, no
entanto, foi o facto de eles terem sido capazes de dar a vida pela certeza que
os habitava. O mesmo Pedro que negara a Jesus por medo diante de uma
criada (Mt 26, 69-70) está, depois da experiência pascal, diante de todo o
Sinédrio, como prisioneiro, anunciando Jesus ressuscitado e apontando o
dedo às autoridades judaicas que o interrogavam de terem matado Jesus. No
fim do interrogatório “trouxeram novamente os apóstolos (Pedro e João) e,
depois de os açoitarem, proibiram-lhes de falar no nome de Jesus e
libertaram-nos. Eles saíram da sala do Sinédrio cheios de alegria por terem
sido considerado dignos de sofrer vexames por causa do nome de Jesus. E
todos os dias, no templo e nas casas, não cessavam de ensinar e anunciar a
Boa Nova de Jesus, o Messias” (At 5, 40-42).
Com os açoites não pareciam Pedro e João muito preocupados... o
que não podia deixar de ser anunciado era a novidade que a experiência
pascal introduzira nas suas vidas. Ora, esta atitude de coerência até às
últimas consequências não costuma ser o resultado típico da embriaguez,
como alguns haviam insinuado. Por outro lado, eles anunciam a Boa Nova do
Ressuscitado recorrendo às Escrituras, citando-as e interpretando-as com
destreza e clareza pouco próprias de um grupo de ébrios...
Olhando para trás dois mil anos podemos ainda reconhecer que
dificilmente uma embriaguez ou uma demência pudesse transformar tão
radicalmente o rosto da história da Humanidade.
Quando nos relatos da ressurreição se salienta tanto a corporeidade
física de Jesus, não podemos interpretá-los como se de reportagens
jornalísticas se tratasse. A grande ênfase dada à corporeidade de Jesus
radica no facto de, no tempo em que os Evangelhos foram escritos,
proliferarem já heresias – criadas pelo contacto do cristianismo nascente
com as filosofias gregas chamadas gnósticas – segundo as quais as
experiências pascais eram apenas visões colectivas de um fantasma. Nesta
mesma linha, punha-se depois em causa a corporeidade histórica de Jesus
(dizendo que Jesus tinha apenas uma aparência de corpo) e a própria
identidade histórica do Ressuscitado. É neste contexto que surgem também,
com o fim principal de identificar realmente a identidade do Ressuscitado
com a identidade histórica de Jesus, os relatos do sepulcro vazio, dado
totalmente ausente na primeira fase da pregação apostólica (1Cor 15, 3-8).
Mas a grande causa para a corporeidade de Jesus nos relatos
evangélicos sobre a ressurreição é a necessidade de partilhar uma
experiência espiritual profunda. Os relatos da experiência pascal dos
discípulos, com efeito, não têm como objectivo ser reportagem da
experiência, mas sim sua proclamação.
A experiência pascal dos discípulos é o fundamento sobre o qual se
foi construindo o edifício da fé cristã. Esta experiência foi-se repetindo nas
comunidades no contexto da celebração, da catequese e da oração. Mas os
crentes de hoje não podem basear a sua fé na experiência pascal dos
primeiros discípulos.
Só podemos ser testemunhas se fizermos a nossa própria experiência
pascal, confrontando-a com a dos primeiros discípulos que é, sem dúvida, o
ponto de referência. Mas, quer para eles como para nós, a experiência pascal
não é a adesão a uma verdade matemática; antes, é a experiência espiritual
profunda pela qual a pessoa se reconhece imersa no projecto salvador de um
Deus Amor que confere à vida um sentido novo de plenitude.
O Espírito Santo que conduziu os primeiros discípulos à experiência
pascal é o mesmo que hoje continua a conduzir os discípulos de Jesus
espalhados pelo mundo. Mas isto não tira o factor de originalidade única à
experiência dos primeiros, em virtude da convivência histórica directa com
Jesus terreno. Esta convivência era uma “chave de interpretação” a que
nenhum de nós hoje tem acesso... Por isso, a experiência pascal dos
discípulos históricos de Jesus é sempre uma experiência de reconhecimento
(Jo 21, 7: “É o Senhor!”; Lc 24, 31: “Os seus olhos abriram-se e
reconheceram-no.”)
Paulo também fez a experiência pascal do mesmo Jesus ressuscitado,
mas como não tinha a “chave” da convivência histórica com Ele, não fez a
experiência de reconhecimento: “Caindo por terra, ouvia uma voz que lhe
dizia: ‘Saulo, Saulo, porque me persegues?’ Ele perguntou: ‘Quem és tu,
Senhor?’ Respondeu: ‘Eu sou Jesus...” (At 9, 4- 5).
Na experiência pascal dos discípulos de Jesus terreno ninguém
precisa de perguntar a Jesus “Quem és?”, e Jesus também nunca diz quem
é; eles o reconhecem. A experiência pascal de Paulo, como a nossa, já não é
uma experiência de reconhecimento mas de revelação, já que ele não tinha,
como nós não temos, a chave do reconhecimento de Jesus que era a
convivência histórica com ele. Mas assim como foi para aquele primeiro
grupo o acontecimento que transformou radicalmente as suas vidas, também
para Paulo foi a experiência de um novo nascimento e o início de uma nova
vida, já não amarrada pelas prescrições da Lei, mas dinamizada pela
novidade do Espírito Santo.
Hoje, continua a ser a experiência pascal o acontecimento que nos dá
à luz para a Vida Nova que Deus nos ofereceu em Cristo. Hoje, como ontem,
ser discípulo fecundo do Mestre implica fazer a experiência maravilhada de
que “Jesus está vivo!”, não como um sobrevivente, mas como um dador de
Vida.
Dizer que Jesus ressuscitou, não significa dizer que Ele sobreviveu à
morte! Significa, isso sim, que Ele se tornou Fonte de Vida e Vitorioso sobre
a morte, conduzindo-nos por graça à Plenitude da Vida em Deus. Enquanto
não fizermos esta experiência maravilhada de que a vida-morte-ressurreição
de Jesus tem a ver connosco, e transfigura radicalmente a nossa própria vida
em todas as dimensões, seremos apenas mais um daqueles discípulos que
depois da morte do Mestre estavam escondidos cheios de medo das
autoridades judaicas, ou seremos talvez um daqueles que iam por um
caminho que não levava a lado nenhum…
De Jesus aos Evangelhos
39 -
Jesus de Nazaré
Evangelho é uma palavra grega que literalmente significa: “Boa Nova”.
Para compreendermos os textos dos evangelhos, o primeiro ponto de
referência é Jesus de Nazaré, ele que foi a Boa Nova de Deus, o anunciador e
revelador da Bondade e da Novidade de Deus.
As três etapas de formação dos evangelhos
Os textos que conhecemos por evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas
e João, não nasceram por mão de “jornalistas” que andavam a acompanhar
Jesus e a fixar por escrito o que ele dizia e fazia. Os livros, tal como os
conhecemos, aparecem já como resultado de uma experiência de caminhada
e amadurecimento da Fé nas primeiras comunidades cristãs, alimentadas
pelo ensino dos apóstolos que tinham acompanhado Jesus durante a sua
itinerância missionária pela Palestina. Deste modo, para se chegar aos textos
dos evangelhos, tal como os conhecemos, foram estas as três etapas
percorridas:
Jesus de Nazaré: o Evangelho a acontecer
Evangelho é uma palavra grega que literalmente significa: “Boa Nova”.
Para compreendermos os textos dos evangelhos, o primeiro ponto de
referência é Jesus de Nazaré, ele que foi a Boa Nova de Deus, o anunciador e
revelador da Bondade e da Novidade de Deus. Iniciou a sua vida pública de
anúncio do Evangelho de Deus com cerca de trinta anos, e juntou à sua volta
um grupo de discípulos, aos quais formou e preparou para os enviar também
a eles a anunciar o Evangelho, a Boa Nova de Deus.
Os discípulos iam aderindo convencidos de que Jesus era o Messias,
mas estavam ainda totalmente presos pela ideia de um Messias Rei, da
linhagem do Rei David, que se revelaria com poder e restabeleceria pela
força o trono real em Jerusalém, expulsando os romanos e matando todos os
pecadores e impuros.
Mas, como se não bastasse Jesus caminhar permanentemente com
pecadores e impuros, acabou por morrer com as costas chagadas numa cruz
romana, e sem subir ao trono! Foi o maior balde de água fria das suas
vidas…
Todos se dispersaram, foram cada um para seu lado, regressando à
vida que tinham deixado cerca de três anos antes, porque tudo acabara na
desilusão e nada mais sobrava que a tristeza. Pelo menos era o que
parecia…
40 -
As primeiras Comunidades
Ao fazer a experiência pascal, o grupo dos discípulos volta a reunir-se,
agora em torno da certeza de que Jesus estava verdadeiramente vivo e era
de facto o Messias de Deus, embora inesperado em relação à esperança
judaica. Saem para a rua no domingo de Páscoa!
As primeiras comunidades: o Evangelho a viver-se
Ao fazer a experiência pascal, o grupo dos discípulos volta a reunir-se,
agora em torno da certeza de que Jesus estava verdadeiramente vivo e era
de facto o Messias de Deus, embora inesperado em relação à esperança
judaica.
Saem para a rua no domingo de Páscoa a apregoar: “Aquele que vós
matastes, está vivo! Deus ressuscitou-o, ele está vivo!” Ameaçados de
morte, açoitados, os discípulos ainda assim não se calavam (Act 5, 40-42). E
começaram a acontecer as primeiras conversões, começaram a formar-se as
primeiras comunidades cristãs, em torno do testemunho dos discípulos que
anunciavam o que tinham acolhido dos três anos com Jesus pelas estradas
poeirentas da Palestina, e a compreensão que a experiência pascal e o dom
do Espírito Santo lhes tinham dado da novidade de Deus que em Jesus se
revelara, e que eles antes ainda não haviam compreendido em todo o seu
alcance, porque estavam limitados pelos horizontes curtos da esperança
messiânica judaica.
Os judeus começaram a perseguir tão ferozmente os discípulos deste
Cristo, e os novos discípulos que cada vez mais a eles se juntavam, que
provocaram que o testemunho da Boa Nova revelada em Cristo fosse levado
para fora de Jerusalém pelos discípulos em fuga das autoridades judaicas. O
momento mais significativo desta dispersão foi a morte à pedrada de
Estêvão, primeiro mártir cristão, o que levou muitos a fugir de Jerusalém e
anunciar o Evangelho de Jesus por outras paragens (Act 8, 1). Deste modo,
deixa de haver apenas a comunidade cristã de Jerusalém, e começam a
nascer comunidades em todo o território de Israel, e sobretudo fora, entre os
pagãos, o que marca uma etapa fundamental, na medida em que o
cristianismo se começou a desligar dos atilhos da Lei e das tradições
judaicas.
É neste contexto de comunidades pagãs espalhadas por toda a bacia
do mediterrâneo que surgem os apóstolos itinerantes, dos quais se destacou
Paulo, passando de comunidade em comunidade para robustecer e apoiar o
seu crescimento na Fé.
Mas o Evangelho era ainda anunciado oralmente. Não se “liam” relatos
sobre Jesus! Jesus era testemunhado de viva voz por aqueles que o tinham
conhecido, ou por discípulos directos seus. Quase certamente, apenas
existia redigido um pequeno conjunto de palavras fundamentais ditas por
Jesus, talvez até algumas parábolas e um esquema da narração da Paixão
que os apóstolos iam repetindo, mas o fundamental do anúncio e da
transmissão era oral. Este Evangelho que se testemunhava de viva voz e era
acolhido pelas comunidades, ia sendo celebrado e vivido nelas.
Todo este tempo de formação das comunidades à volta da pregação
dos apóstolos e da celebração da “fracção do pão” (eucaristia) em memória
de Jesus é o tema do livro dos Actos dos Apóstolos.
41 -
Os evangelistas
O evangelho escrito mais antigo é o de Marcos, datado por volta do
ano 70. O Evangelho era até então anunciado e testemunhado oralmente.
Quem são os evangelistas? Homens concretos, que pertenciam a
comunidades também elas com experiências e características concretas em
relação à vivência do Evangelho de Jesus.
Os evangelistas: o Evangelho escreve-se
O evangelho escrito mais antigo é o de Marcos, datado por volta do
ano 70. O Evangelho era até então anunciado e testemunhado oralmente.
Porque é que começou a sentir-se necessidade (passados quase 40
anos!) de o pôr por escrito? Esta necessidade faz-se sentir quando começam
a morrer os pilares da primeira geração cristã: os apóstolos que caminharam
com Jesus, e os seus discípulos mais directos. Eram eles que mantinham
vivo e verdadeiro o testemunho do Evangelho de Deus revelado em Cristo
par as comunidades. Com a sua morte, como preservar este Evangelho?
Pondo as suas dimensões fundamentais por escrito. E começa, então,
o trabalho de pôr aquele Evangelho testemunhado pelos apóstolos,
celebrado e vivido pelas comunidades por escrito.
Quem são os evangelistas? Homens concretos, que pertenciam a
comunidades também elas com experiências e características concretas em
relação à vivência do Evangelho de Jesus. Ora, estas experiências e
características, bem como os problemas e necessidades próprias de cada
comunidade em que nascem os evangelhos escritos e para as quais se
dirigem, é que fazem a diferença entre uns e outros.
Unidos no essencial, que é Jesus de Nazaré e a Boa Nova de Deus
nele revelada e realizada, diferem pelo contexto das comunidades em que
surgem e às quais se dirigem. São, portanto, escritos vivos, isto é, não
brotam de um escritor sozinho fechado num gabinete à frente de uma
secretária que se lembra de escrever um texto, mas da história de uma
comunidade concreta, que dá o seu testemunho comunitário de celebração e
experiência de Jesus Cristo, recolhido depois e elaborado literariamente
pelos evangelistas.
É pelo facto de serem escritos vivos e fruto de uma história concreta
de amadurecimento da Fé em Cristo, bem como pelos destinatários a quem
se dirigem e pelas próprias características pessoais de cada evangelista, que
o rosto de Jesus foi desenhado para nós em quatro perspectivas diferentes.
Os quatro evangelhos de Jesus no Novo Testamento não nos revelam quatro
rostos diferentes; mas revelam-nos, sem dúvida, a beleza desse mesmo
rosto olhado em quatro perspectivas às vezes bem diversas.
Os evangelhos são a experiência da Fé em Jesus das primeiras
comunidades partilhada connosco. O facto de termos quatro perspectivas do
rosto de Cristo prova-nos que a Fé nascente era tudo menos uma doutrina
aprendida e recitada de cor. As doutrinas são sempre iguais, e as recitações
de cor não dão espaço à novidade das perspectivas pessoais. A Fé era vivida
como experiência pessoal e comunitária de intimidade com Cristo
ressuscitado e escuta da sua Palavra permanentemente transformadora e
recriadora de vida pela acção dinamizadora do Espírito, “Amor de Deus
derramado nos nossos corações” (Rm 5, 5).
É exactamente esta pureza da Fé primitiva enquanto experiência
pessoal e comunitária de intimidade que dá origem aos quatro evangelhos
escritos, como fruto de quatro experiências-perspectivas bem concretas. E
se foram escritos não como doutrina mas como partilha da experiência da
Fé, é exactamente para aí que apontam.
Os evangelhos não foram escritos para nos informar sobre Jesus, mas
para nos transformar em Jesus, conduzindo-nos também à experiência da
intimidade com Ele e ao acolhimento do seu Espírito de Vida em abundância:
“Estes foram escritos para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de
Deus, e, acreditando, terdes a Vida nele” (Jo 20, 31).
Dizer quem Jesus é, e quem é o Deus que ele nos revela, eis o
objectivo e o coração de cada evangelho. Toda a construção literária dos
relatos está depois em função de explicitar este objectivo e conduzir a este
coração. Não são uma “vida de Jesus”, nem uma biografia.
Fundamentalmente, são uma catequese que responde à pergunta: “Quem é
Jesus, e como é Deus, que nele Se revela?”. É nesta atitude de abertura à
novidade de Deus que os evangelhos devem ser lidos, com coração de
discípulo. Não como uma biografia, mas como uma catequese que nos
conduz pela mão até nos colocar frente a Jesus e, olhos
nos olhos, deixar que ele nos faça a pergunta das nossas vidas: “E eu quem
sou para ti?” (Mc 8, 29)…
Jesus nos Evangelhos
42 -
Jesus no evangelho de Marcos
Considera-se que foi escrito em Roma, e será a fixação por escrito do
fundamental do testemunho de Pedro sobre Jesus, do qual Marcos teria sido
discípulo directo. Escrito em contexto pagão e para uma comunidade de
pagãos…
Jesus no evangelho de Marcos
Marcos é um dos Evangelhos Sinópticos. Chama-se assim aos
evangelhos escritos por Marcos, Mateus e Lucas, porque podem ser lidos em
“sinopse”, isto é, são tão parecidos que pondo os três lado a lado quase que
lemos num e noutro a mesma coisa. As diferenças são quase só de
perspectiva, mas, no geral, narram mais ou menos os mesmos relatos e de
modos muito semelhantes. São muito parecidos porque Mateus e Lucas
seguem no fundamental o esquema do escrito mais antigo, que é o de
Marcos, embora alargando-o, o que explica que o evangelho de Marcos tenha
16 capítulos e já os de Mateus e Lucas tenham respectivamente 28 e 24.
O evangelho de Marcos foi escrito antes do ano 70, e os de Mateus e
Lucas, por volta do ano 75.
O evangelho de João destaca-se deste grupo de três porque, ao ser
um escrito mais tardio (já para lá do ano 100) apresenta uma reflexão e
experiência de Jesus feita nas comunidades de modo muito mais
aprofundado sendo, por exemplo, o único dos quatro evangelhos a falar da
preexistência eterna do Filho de Deus.
Quanto ao evangelho de Marcos, considera-se que foi escrito em
Roma, e será a fixação por escrito do fundamental do testemunho de Pedro
sobre Jesus, do qual Marcos teria sido discípulo directo (1Ped 5, 13).
Escrito em contexto pagão e para uma comunidade de pagãos,
Marcos, embora cite várias vezes palavras em aramaico no seu texto, vê-se
quase sempre obrigado a traduzi-las, bem como a explicar algumas tradições
e costumes dos judeus que os pagãos não conheciam. Por este contexto
onde nasce e para o qual se dirige se entende como Jesus tem no evangelho
de Marcos uma actividade de evangelização especialmente fecunda junto dos
pagãos. Com a particularidade de não aparecer ao longo de todo o texto, nem
sequer uma única vez, a palavra “Lei”, algo tão caro e central para os judeus,
mas sem significado para os pagãos.
E sendo o objectivo do evangelista possibilitar a experiência da Fé em
Cristo aos seus destinatários – no caso, romanos – começa o seu evangelho
afirmando o fim a que se propõe: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo,
Filho de Deus” (Mc 1, 1), tema que vai desenvolvendo (Mc 14, 62) até colocar
novamente este título de “Filho de Deus” como ponto de chegada do seu
evangelho, mas agora na boca de um pagão – exactamente um romano –
junto à cruz de Jesus: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!” (Mc
15, 39).
É um texto com pouquíssimos discursos de Jesus. Abunda a narração
e, sobretudo, os milagres.
Enquanto que Mateus, por exemplo, coloca Jesus a fazer longos
discursos sobre o Reino de Deus que vem trazer ao homem a libertação e a
alegria da Vida Nova, Marcos não põe Jesus a falar mas a actuar essa
libertação e alegria. Por isso superabundam as curas, sinal por excelência da
libertação e da paz reencontrada, já que as doenças eram consideradas
como resultado do pecado e da possessão por espíritos malignos.
Muitas vezes Marcos utiliza os verbos no presente, não por acaso, mas
para tornar o relato actual, para dizer este Jesus que hoje continua a querer
libertar e conduzir à paz aqueles que por ele se deixam tocar. E esta palavra
“tocar” tem um papel-chave em Marcos, que apresenta um Jesus em
permanente contacto directo com as pessoas, profundamente humano e
afectivo, que tocava (Mc 1, 41), abraçava (Mc 9, 36; 10, 16), pegava pela mão
(Mc 8, 23), se amargurava (Mc 3, 5), admirava (Mc 6, 6) …
Os verbos no presente e este jeito profundamente humano, próximo e
afectivo, falam-nos de um Jesus que continua a estar próximo e disponível, e
que só se conhece numa relação interpessoal de intimidade.
Há claramente em Marcos a distinção entre a intimidade e a multidão,
que depois será muito desenvolvida por Lucas. Jesus, que andava sempre
apertado pelas multidões, quando chegava a hora de curar algum doente,
isto é, a hora do encontro libertador e transformante, afastava-se com a
pessoa, a sós, para longe da multidão, como fez no relato da cura do surdomudo (Mc 7, 33) e de um cego, ao qual até conduziu pela mão para fora da
cidade (Mc 8, 23), e então, na intimidade, acontecia a acção libertadora e
transformante de Cristo na vida daquela pessoa, simbolizada na cura.
É também na base desta distinção entre a intimidade e a multidão que
compreendemos uma outra característica de Marcos: o segredo messiânico,
isto é, a proibição que permanentemente Jesus fazia aos discípulos e
àqueles que curava para não o apregoarem como Messias. Pode parecer-nos
enigmático, mas a questão era que Jesus sabia bem quais as esperanças
messiânicas que bailavam nas ideias e nos corações daquele povo… Na
prática, acontecia muitas vezes que Jesus dizia àqueles que curava: “Livra-te
de falar disto a alguém! (…) Mas ele, porém, assim que se retirou, começou a
proclamar e a divulgar o sucedido, a ponto de Jesus não poder entrar
abertamente numa cidade; ficava fora, em lugares despovoados” (Mc 1, 4445).
Mas onde esta preocupação de Jesus é mais clara é na sua relação
com os discípulos, aos quais “ordenava que a ninguém contassem o que
tinham visto, senão depois do Filho do Homem ressuscitar dos mortos. Eles
guardaram a recomendação, discutindo uns com os outros o que seria
ressuscitar de entre os mortos” (Mc 9, 9). Só depois de fazerem a experiência
pascal os discípulos estariam capazes de proclamar Jesus como Messias de
um jeito novo, já muito purificado da esperança messiânica davídica. Ainda
era a esta luz davídica de um Messias Rei que viria instaurar novamente o
reino das doze tribos e se sentaria no trono em Jerusalém que os discípulos
seguiam Jesus pelos caminhos da Palestina, como bem se vê no pedido que
Tiago e João fazem ao Mestre, antecipando esse momento e preparando para
si os melhores lugares junto do Rei, pedido que deixou os outros dez muito
zangados porque, na verdade, todos esperavam o mesmo (Mc 10, 35-41)…
Só pela experiência da morte de Jesus – sem reunificar o reino e sem
subir ao trono – e, depois, a experiência da sua Vida Ressuscitada, se
libertaram em parte os discípulos da visão messiânica que tinham ainda de
Jesus. Só aí foram também capazes de compreender o que Jesus lhes
revelava e ensinava de si próprio enquanto ia caminhando no anúncio do
Reino de Deus pelos lugarejos da Palestina. “Jesus perguntou-lhes: ‘E vós,
quem dizeis que eu sou?’ Pedro tomou a palavra e disse: ‘Tu és o Messias!’
Ordenou-lhes, então, que não dissessem isto a ninguém” (Mc 8, 29-30).
Porquê? Porque Jesus bem sabia as ideias de Messias que os discípulos
tinham na cabeça, e tinha que lhes ensinar um messianismo diferente. Por
isso, imediatamente a seguir aos discípulos responderem “Tu és o
Messias!”, Jesus “ordenou-lhes que não o dissessem a ninguém, e começou
depois a ensinar-lhes que o Filho do Homem tinha de sofrer muito e ser
rejeitado pelos anciãos, pelos sumos-sacerdotes e pelos doutores da Lei, e
ser morto e ressuscitar depois de três dias. E dizia claramente estas coisas”
(Mc 8, 31-32).
A prova de que os discípulos não era este o messianismo que tinham
na cabeça quando disseram “Tu és o Messias!” foi que, ao ouvir isto, “Pedro
desviou-se com Jesus à parte, e começou a repreendê-lo. Mas Jesus,
voltando-se e olhando para os discípulos, repreendeu Pedro, dizendo-lhe:
Vai-te da minha frente, Satanás, porque os teus pensamentos não são os de
Deus, mas os dos homens” (Mc 8, 32-33).
Só depois da experiência pascal, recriados pela acção reveladora do
Espírito Santo, os discípulos serão capazes de acolher a novidade
messiânica de Jesus e começar a anunciá-lo como o inesperado de Deus a
acontecer na história dos homens.
43 -
Jesus no evangelho de Lucas
Também é um evangelho escrito em contexto pagão, para
comunidades pagãs e, desta vez, até por um evangelista pagão! Com efeito,
Lucas não era judeu, mas grego, e teria sido discípulo de Paulo,
companheiro até em várias das suas viagens missionárias.
Jesus no evangelho de Lucas
Também é um evangelho escrito em contexto pagão, para
comunidades pagãs e, desta vez, até por um evangelista pagão! Com efeito,
Lucas não era judeu, mas grego, e teria sido discípulo de Paulo,
companheiro até em várias das suas viagens missionárias (Col 4, 14).
Muitas vezes é chamado o “evangelho da ternura de Deus”, pelo modo
como é permanente a proclamação da misericórdia e da bondade de Deus,
revelada em Jesus, sobretudo em relação aos pagãos e pecadores, aqueles
que eram, segundo os ditames dos responsáveis religiosos, os esquecidos e
marginalizados do amor de Deus, inacessível para eles. Este jeito ternurento
e amoroso de Deus para com os mais esquecidos e debilitados é
especialmente revelado no capítulo 15 do evangelho no qual Lucas para dizer
esta “bondade e amor de Deus pelos homens” (Tit 3, 4) constrói a grande
Parábola da universalidade da Salvação.
Discípulo de Paulo, aprendeu que em Cristo “não há mais diferença
entre judeu e grego, pois todos têm o mesmo Senhor, rico para com todos os
que o invocam” (Rm 10, 12). Deste modo, Lucas começa o capítulo 15 do seu
evangelho apresentando as três personagens e respectivas atitudes:
“Aproximavam-se de Jesus todos os cobradores de impostos e pecadores
para o ouvirem. Mas os fariseus e doutores da Lei murmuravam entre si,
dizendo: ‘Este acolhe os pecadores e come com eles’. Jesus, então, propôslhes esta parábola” (Lc 15, 1-3). E depois Lucas coloca na boca de Jesus o
que nos parecem ser três parábolas: a da ovelha perdida, da dracma perdida
e do pai bondoso que acolhe o filho pródigo.
No entanto, Jesus diz “esta parábola”, e não “estas parábolas”… Qual
é, então, o fio condutor das três parábolas que as une de modo a formarem,
juntas, como que uma só? A caminhada da diferença para a igualdade pela
simbologia dos números: 99/1 (ovelha perdida), 9/1 (dracma perdida), 1/1 (pai
bondoso).
Diante dos pecadores que acorriam a Jesus “para escutar” e dos
fariseus e doutores da Lei que vinham “para murmurar”, Jesus faz a
caminhada da diferença e da distância (simbolizada no 99/1) até chegar à
proximidade e ao acolhimento dos dois irmãos em pé de igualdade
(simbolizada no 1/1) no coração do pai, representando claramente cada um
dos irmãos uma parte dos que o procuravam: o filho mais novo, eram os
pagãos e os pecadores públicos; o filho mais velho, eram os judeus e
especialmente os seus líderes religiosos, fariseus e doutores da Lei. Assim,
o filho mais velho acaba na parábola a “murmurar” contra o irmão mais novo
e o pai, tal como no início estavam a “murmurar” os fariseus e doutores da
Lei dos pecadores e de Jesus.
Neste coração misericordioso do Pai, Lucas proclama a abertura
universal da Festa do Amor na qual todos têm já lugar, sem distinção de
raça, lei ou cultura, onde a única “lei” é a do Amor que liberta e sara o
homem das feridas do pecado (Lc 7, 47). Coração de tal modo grandioso em
generosidade que por acolher o filho perdido e reencontrado não se esquece
nem distrai do filho mais velho, a ponto de sair por momentos da sala da
festa para “suplicar” ao filho mais velho que também entrasse (Lc 15, 28) no
banquete da alegria do pai.
A universalidade e gratuidade deste amor de Deus revelado em Jesus
chega à máxima expressão quando, já na cruz, ele diz para um dos ladrões
que estava a ser crucificado com ele: “Hoje mesmo estarás comigo no
Paraíso” (Lc 23, 39-43). O mesmo Jesus que dizia “Ai de vós!” aos fariseus e
doutores da Lei, garantia o Paraíso a um bandido! E dizia-lhes também:
“Quando virdes Abraão, Isaac e Jacob e todos os profetas no Reino de Deus,
e vós (judeus) a serdes postos fora… Hão-de vir do Oriente e do Ocidente, do
Norte e do Sul (pagãos) sentar-se à mesa do Reino de Deus (Lc 13, 28-29).
Lucas desenvolve o tema da multidão, a partir de Marcos, utilizando-a
sempre como símbolo da superficialidade no encontro com Jesus, que só se
conhece em intimidade de coração. Esta temática está presente em todo o
evangelho, mas onde é mais clara é no relato da cura de uma mulher que
sofria de graves hemorragias (Lc 8, 40-47). Jesus caminhava com os seus
discípulos, “apertado por numerosa multidão, a ponto de o sufocar”, e chega
uma mulher que lhe toca na orla do manto, por entre a multidão. Jesus pára e
faz uma pergunta aparentemente ridícula: “Quem me tocou?” Os discípulos
dizem-lhe: “Mestre, que pergunta essa… a multidão toda te aperta e
empurra…” Mas Jesus insiste: “Quem me tocou?” E a mulher diz: “Fui eu”.
O simbolismo da multidão para dizer que os encontros com Jesus não
acontecem à flor da pele, mas ao nível do coração. A multidão apertava-o,
mas não lhe “tocava”, ou seja, não comungava com ele ao nível do essencial.
Também no relato de Zaqueu, a multidão era impedimento para Zaqueu ver
Jesus que passava (Lc 19, 1-10). Só quando “correu à frente” e “subiu a um
sicómoro” (ou seja, quando se distanciou e elevou em relação à multidão)
criou a possibilidade para ser visto por Jesus que lhe disse que queria “ficar
em sua casa”. E esta é mais uma expressão-chave para conhecermos o rosto
de Jesus no evangelho de Lucas.
Assim como Marcos para falar da experiência da proximidade e
intimidade com Jesus o colocava muitas vezes a “tocar” naqueles que o
procuravam com Fé, Lucas coloca Jesus a “entrar em casa” deles. A
expressão “entrar em casa”, neste evangelho, está sempre associada a uma
profunda transformação das pessoas dentro dessa casa: a sogra de Pedro
(Lc 4, 38-39), o chamamento de Levi (Lc 5, 27-29), o perdão da prostituta e a
lição do fariseu (Lc 7, 36-49), a reanimação da filha de Jairo (Lc 8, 40-56), a
imprecação mais forte aos fariseus e doutores da Lei (Lc 11, 37-53), a cura de
um hidrópico (Lc 14, 1-3), a conversão de Zaqueu (Lc 19, 5-10), a experiência
pascal dos discípulos no caminho de Emaús (Lc 24, 29-30).
“Jesus entrou em casa” é mais que um pormenor de jornalista. E
ganha uma força especial quando aparece juntamente com outra linguagem
de encontro que é “Sentar-se à mesa com…”. É a linguagem simbólica da
intimidade, do acolhimento daquele que, ressuscitado, já só se conhece e
escuta quando se deixa “entrar em casa para se sentar connosco à mesa do
coração”, quando é abraçado por dentro, ao nível da intimidade pessoal cuja
linguagem é a do amor e a gramática é a da fé.
Este evangelho é aquele no qual Jesus mais vezes se refere a si
próprio como profeta, e é nessa perspectiva que Lucas o apresenta, como
definitivo profeta que interpela e põe em causa os senhores instalados da
religião e do culto judaico. “Ai de vós!”, é uma expressão que muitas vezes
lhes é dirigida por Jesus em Lucas (Lc 6, 24-26).
O texto mais claro e duro nesta condenação profética de Jesus ao
farisaísmo e à opressão das pessoas em nome de uma lei que os líderes
diziam ser de Deus, está no capítulo 11 do evangelho (Lc 11, 37-53). É
também para mostrar Jesus como profeta que Lucas o faz sempre caminhar
em direcção a Jerusalém, como que provocando a própria morte, e dizendo
de si próprio “que não se admite que um profeta morra fora de Jerusalém!”
(Lc 13, 33-34).
Além disso, enquanto Mateus coloca Jesus a proclamar o Sermão da
Montanha, que abre com as Bem-Aventuranças, depois de “ter subido a um
monte, e depois de se ter sentado” (Mt 5, 1) apresentando-o como Mestre e
legislador, novo Moisés prestes a proclamar a nova e definitiva Lei, utilizando
para isso os mesmos sinais que estavam já na narração do Monte Sinai da
Antiga Aliança, Lucas coloca Jesus a proclamá-lo depois de “ter descido do
monte onde estivera em oração e elegera os Doze, e num sítio plano” (Lc 6,
17), não já como legislador, mas em atitude profética, “olhos nos olhos”.
Além disso, a linguagem é bem diferente: em Mateus, Jesus fala na
terceira pessoa (“Felizes os pobres, porque deles é o Reino do Céu…”), e em
Lucas, Jesus fala na segunda pessoa, interpelando em jeito profético
(“Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus…”).
Neste evangelho de Lucas, Jesus não é nunca um Messias distante. É
o profeta que, olhos nos olhos com as multidões que o perseguiam, convida
todos os de coração disponível a passar da exterioridade à intimidade, os
interpela a abrirem as portas para que ele possa “entrar em sua casa e
sentar-se à mesa com eles” como fonte de recriação e Vida Nova e os
conduza às portas universalmente abertas da Casa do Pai, onde o Banquete
e a Festa do Seu Amor são em Plenitude!
44 -
Jesus no evangelho de Mateus
Mateus é normalmente identificado com Levi, o cobrador de impostos
que se tornou discípulo de Jesus. A grande diferença entre o seu evangelho
e os outros dois sinópticos encontra-se no contexto em que nasce e na
comunidade a que se destina.
Jesus no evangelho de Mateus
Mateus é normalmente identificado com Levi, o cobrador de impostos
que se tornou discípulo de Jesus (Mt 9, 9-13).
A grande diferença entre o seu evangelho e os outros dois sinópticos
encontra-se no contexto em que nasce e na comunidade a que se destina.
Enquanto que os evangelhos de Marcos e de Lucas nasceram entre
pagãos e a eles se dirigiam, Mateus escreve para judeus convertidos ao
cristianismo.
Isto é bem claro, ao ler o texto, pelas citações constantes e referências
muitas vezes apenas implícitas do Antigo Testamento, que só os judeus
podiam entender. Estas referências, num evangelho de apenas 28 capítulos,
são mais de 130! Estava também familiarizado com a esperança messiânica
do povo judeu, que se apoiava nas profecias antigas e nelas se alimentava.
Por isso, para apresentar Jesus como o Messias prometido por Deus nas
escrituras e esperado pelo povo, Mateus, ao narrar acontecimentos da vida
de Jesus, termina dizendo: “Assim aconteceu para se cumprir o que o
Senhor anunciou pelo profeta…”, e depois cita as profecias do Antigo
Testamento (Mt 1, 22; 2, 5. 15. 17. 23; 4, 14; 8, 17; 12, 17; 13, 14. 35; 21, 4; 27,
9) que os destinatários do evangelho conheciam bem.
Por se preocupar em manter unidos a Cristo estes judeus convertidos
(que não tinham abandonado a observância da Lei judaica como norma de
vida), Mateus apresenta “o Jesus mais judeu” dos evangelhos, bem diferente
do Jesus muito próximo dos pagãos que reconhecemos em Marcos e Lucas.
Um Jesus que diz claramente que “não veio abolir a lei, mas completá-la, dar-lhe pleno cumprimento” (Mt 5, 17). Apenas a resume nos dois mandamentos
centrados no amor: a Deus e ao próximo.
O jeito de Jesus falar também é mais judeu, não dizendo, por exemplo,
“Reino de Deus”, mas sim “Reino dos Céus”, porque os judeus nunca diziam
o nome de Deus.
E porque testemunhava o Evangelho de Jesus para judeus, que viam
em Moisés a grande figura da história do povo, Mateus apresenta Jesus
como o novo Moisés. Enquanto que no evangelho de Marcos quase não
encontramos diálogos de Jesus, mas narrações, e no de Lucas
superabundam os encontros de Jesus e os seus diálogos breves com
aqueles que a ele se dirigiam, no evangelho de Mateus a predominância da
acção de Jesus está posta nos discursos.
Se no evangelho de Lucas Jesus tinha um rosto de profeta, no de
Mateus tem rosto de Mestre. E ainda mais que Mestre; Jesus é para Mateus o
“novo Moisés”, o legislador que fala ao povo da parte de Deus como arauto
da Sua Lei.
As referências a Moisés são claras, particularmente no modo como
Mateus narra o discurso da montanha (Mt 5-7) e na simbologia dos primeiros
capítulos do evangelho, conhecidos por evangelho da infância (Mt 1-2). A
“Lei é levada à perfeição” (Mt 5, 17) no ensinamento de Jesus, no cimo de um
monte, sentado como um Mestre, transportando os judeus a quem dirigia o
seu evangelho para o acontecimento glorioso do monte Sinai, quando
Moisés, também sobre o monte, é mediação para o povo, que ficara no sopé,
da Lei de Deus. E este “aperfeiçoamento” é manifestado no evangelho pela
repetida fórmula de Jesus: “Ouvistes o que foi dito aos antigos… Eu, porém,
digo-vos…” (Mt 5, 21-22. 27-28. 31-34. 38-39. 43-44), através da qual Jesus
conduz a Lei por um caminho de espiritualização, isto é, aprofunda
radicalmente alguns dos mandamentos centrais no dia-a-dia do povo e
liberta-a da casca dura do legalismo em que os doutores da Lei e fariseus a
haviam fechado.
Por isso, “quando Jesus acabou de falar, a multidão ficou vivamente
impressionada com os seus ensinamentos, porque ele ensinava-os como
quem possui autoridade e não como os doutores da Lei” (Mt 7, 28-29).
Por ter no evangelho de Mateus esta perspectiva de Mestre, a figura de
Jesus é muito menos próxima que nos outros dois sinópticos. A linguagem
de Mateus é pouco colorida, e as narrações de Jesus têm pouca vivacidade
na maior parte dos seus encontros. Ao passo que Marcos e Lucas
privilegiam as obras, milagres e diálogos de Jesus, Mateus privilegia os
discursos como meio por excelência para o anúncio do Reino do Céu.
Importante também é a genealogia que Mateus faz de Jesus (Mt 1, 117), unindo-o a David e a Abraão. “Genealogia de Jesus Cristo, filho de
David, filho de Abraão” (Mt 1, 1), assim começa a genealogia; e termina em
Jesus Cristo, apontando-o como fim das promessas feitas a ambos: em
Jesus nos chega a plenitude das bênçãos prometidas a Abraão, e é ele o
Messias, o Cristo prometido a David. Deste modo, coloca Jesus no centro da
história do povo de Israel como ponto de chegada de todas as promessas do
Deus da Aliança.
É interessante confrontarmos esta genealogia de Mateus com a que
Lucas apresenta também no início do seu evangelho (Lc 3, 23-38). Lucas
começa por “Jesus, filho de José…”, recua até David, até Abraão… e
continua até chegar a “Adão, de Deus”.
Lucas coloca Jesus no centro da história humana, radicada em Adão,
e como ponto de chegada do sonho de Deus para toda a humanidade. A
perspectiva da genealogia de Lucas é universal, enquanto a de Mateus é
judaica.
É à luz desta perspectiva judaica da genealogia de Mateus que se
entende também a preocupação simbólica de contabilizar as gerações: “O
número total das gerações é, desde Abraão até David, catorze; de David até
ao exílio da Babilónia, catorze; e desde o exílio da Babilónia até Cristo,
catorze” (Mt 1, 17).
Na língua hebraica as letras têm valor numérico, e por isso os
números têm grande significado (e não esqueçamos que Mateus, judeu,
escreveu para judeus, bem familiarizados com estas simbologias…). Ora, o
nome de David tem exactamente o valor numérico de catorze (D+V+D=
4+6+4= 14), e é a essa luz que Mateus constrói a genealogia de Jesus ao
ritmo do número 14, vincando-o até explicitamente no fim da genealogia para
o caso de leitores mais distraídos não se terem dado conta…
Também o número 3 é na simbologia bíblica número de perfeição.
Deste modo, empregando 3 vezes o número 14 para chegar a Jesus Cristo,
anuncia-o simbolicamente como a perfeição de David, o Messias prometido e
esperado.
Apesar da sua perspectiva judaica, resultado das características
próprias do seu autor e dos seus destinatários, o evangelho de Mateus não
deixa de abrir horizontes de universalidade, embora de maneira mais velada
que os outros dois sinópticos. Com efeito, a conclusão do evangelho é clara
neste apelo à abertura que brota da experiência pascal de Cristo
ressuscitado, o Emanuel (Mt 1, 23; 28, 20): “Ide, pois, fazei discípulos de
todos os povos… e sabei que Eu estarei sempre convosco!” (Mt 28, 19-20).
45 -
Evangelhos da infância de Jesus
Não são biografias nem crónicas de historiadores, e se quisermos lêlos como escritos de jornalistas, à procura de rigor histórico, o que acontece
é que eles anulam-se um ao outro, de tão diferentes que são.
Evangelhos da infância de Jesus
Apenas nos evangelhos de Mateus e Lucas aparecem o que se chama
os Evangelhos da Infância, ou seja, as narrações referentes ao nascimento e
primeiros anos de Jesus (são os primeiros dois capítulos de ambos os
evangelhos).
Não são biografias nem crónicas de historiadores, e se quisermos lêlos como escritos de jornalistas, à procura de rigor histórico, o que acontece
é que eles anulam-se um ao outro, de tão diferentes que são. O objectivo dos
evangelistas é anunciar a Boa Nova de Jesus como aquele no qual todas as
profecias de Deus chegaram à plenitude da revelação e da realização. Para
tal, utilizam um estilo literário comum na literatura bíblica que é o midrash,
que consiste, em traços largos, na construção da história do nascimento de
alguém à sombra de outros modelos de grandes homens de Deus do
passado.
É pelo facto de Mateus e Lucas utilizarem este estilo literário que
surgem as tão grandes diferenças entre os evangelhos da infância de um e
de outro, já que os modelos do Antigo Testamento nos quais se inspiram e
os destinatários aos quais se dirigem são diferentes. Portanto, ao dizermos
que os evangelhos da infância não são relatos históricos no sentido rigoroso
da palavra, não significa que sejam fábulas; são, isso sim, catequeses para
anunciar a Boa Nova da “plenitude dos tempos” que começa com o
nascimento de Jesus, ponto de chegada de toda a história bíblica.
Unidos no essencial – que é a Boa Nova de Jesus como o Messias
esperado –, divergem os evangelistas nos modos de o transmitir. Assim,
Mateus, por exemplo, narra quatro episódios que não lemos em Lucas: a
vinda dos reis magos seguindo uma estrela, a fuga da Sagrada Família para o
Egipto, a matança dos inocentes decretada por Herodes e o regresso da
Sagrada Família do Egipto para Nazaré depois da morte de Herodes. Ora,
Mateus escrevia para cristãos recém convertidos do judaísmo (e ainda não
totalmente convertidos…), cuja figura de proa era Moisés. Deste modo, no
seu midrash utiliza a história de Moisés como pano de fundo principal ao
nascimento de Jesus, que depois durante o evangelho será também
apresentado como o novo e definitivo Moisés. Por isso, comparando as
aventuras em torno do nascimento de Jesus (Mt 2) com as do nascimento de
Moisés (Ex 1-2) o paralelismo é evidente.
Como outrora o faraó mandara matar todos os bebés varões, matança
da qual escapara Moisés por especial protecção divina, assim ao nascimento
de Jesus também Herodes mandou matar todos os bebés varões, nova
matança da qual Jesus escapou por especial protecção divina que avisou
José num sonho. Assim como Moisés tem as suas raízes no Egipto, também
Jesus Cristo lá passa os primeiros tempos da sua vida. Assim como depois
da morte do faraó Moisés volta ao Egipto para de lá trazer o seu povo até à
Terra Prometida e à fidelidade à Aliança do Sinai, do mesmo modo Cristo,
depois da morte de Herodes, regressa do Egipto para vir proclamar ao seu
povo, uns anos depois, a plenitude da Lei e o dom da Nova Aliança.
Ao escrever para judeus, Mateus coloca como protagonista do
evangelho da infância, não Maria, mas sim José, já que a mulher na cultura
judaica era especialmente subestimada, não servindo sequer de testemunha
em tribunal. Além disso, colocando José como interlocutor do anjo, vinca a
descendência davídica de Jesus da qual o Messias era esperado (Mt 1, 20).
Apresentando-o como “o Esperado” realizador das promessas, vai
encaminhando Jesus ao longo do evangelho pelo trilho de algumas profecias
mais significativas do Antigo Testamento.
No evangelho da infância, as duas mais importantes são a que se
refere ao anúncio de Isaías sobre o Emanuel (Mt 1, 22-23) e a significada no
episódio dos reis magos: “Levanta-te e resplandece, Jerusalém, que está a
chegar a tua luz! A glória do Senhor amanhece sobre ti! Olha: as trevas
cobrem a terra, e a escuridão, os povos, mas sobre ti amanhecerá o Senhor!
(…) Serás invadida por uma multidão de camelos, pelos dromedários de
Madian e de Efá. De Sabá virão todos trazendo ouro e incenso, e
proclamando os louvores do Senhor…” (Is 60, 1-6; Sl 72, 1 0 ss).
No evangelho de Lucas a personagem mais activa é Maria, sendo ela a
interlocutora do anjo da anunciação. São próprias deste evangelho algumas
imagens mais populares relacionadas ao nascimento de Jesus, como sejam
“o menino envolto em panos e recostado numa manjedoura” (Lc 2, 7),
situação que o evangelho de Mateus não narra, dizendo que Jesus nasceu
numa “casa” (Mt 2, 11).
Também a visita e adoração dos pastores ao menino é própria de
Lucas, bem como o coro dos anjos em torno da manjedoura.
Se a figura na qual se inspirou Mateus foi Moisés, já Lucas constrói o
seu midrash apoiando-se na outra grande personagem do povo bíblico:
David.
As palavras da anunciação a Maria (Lc 1, 32-35) estão decalcadas da
promessa de Deus a David, nascente da esperança messiânica (2Sm 7, 1214), dizendo deste modo que o que foi prometido a David realiza-se
plenamente na vida do menino que está para nascer. É também a esta luz de
David que Lucas vinca a importância do nascimento em “Belém, cidade de
David” (Lc 2, 4), a ascendência davídica de José (Lc 1, 27) e a relação de
Jesus com João Baptista.
Ao colocar em paralelo Jesus com David, Lucas coloca João Baptista
em paralelo com o profeta Samuel. Assim como Samuel foi o profeta que
ungiu David (1Sm 16, 1-13), também João irá ser o profeta que ungirá o “novo
David”, Jesus de Nazaré, no rio Jordão (Lc 3, 21-22). Por isso, o nascimento
de João também está narrado sob a forma de midrash, à luz da história do
profeta Samuel: Ana, mãe de Samuel, era estéril (1Sm 1, 5); Isabel, mãe de
João, era estéril (Lc 1, 7). Ana pedia a Deus um filho, e Deus atendeu o seu
pedido (1Sm 1, 10-12); também João é um filho pedido a Deus como dom da
sua bondade (Lc 1, 13). Ao nascer, ambos estão ligados ao Templo do
Senhor: Samuel porque foi para lá para ser sacerdote (1Sm 1, 22) e João
porque era filho do sacerdote Zacarias (Lc 1, 8-9).
Ambos são consagrados pelo Senhor, Samuel no cumprimento da
promessa de Ana de o “consagrar ao serviço do Senhor” (1Sm 1, 11), e João
é logo anunciado como consagrado, “cheio do Espírito Santo desde o ventre
materno” (Lc 1, 15) pelo anjo que falou a Zacarias.
Ao nascer, ambos são celebrados com um hino de louvor e acção de
graças (1Sm 2, 1-10; Lc 1, 67-79). Depois, como já vimos, Samuel ungirá
David, e João ungirá Jesus.
É todo este fundo davídico que está por trás do evangelho da infância
de Jesus escrito por Lucas, que é acentuado ainda pela presença dos anjos
na manjedoura do recém-nascido. A missão dos anjos ( = a mensageiros) na
bíblia é quase sempre comunicar o significado mais profundo e porventura
escondido da realidade na qual se fazem presentes. É exactamente esse o
alcance da missão dos anjos no acontecimento do nascimento de Jesus:
“Anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo. Hoje, na
cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor!” (Lc 1,
10-11).
A presença dos pastores é já um pormenor típico de Lucas, o
evangelista da ternura de Deus para com os mais pobres. Estão com Jesus
desde o início, eles que eram o símbolo por excelência dos pobres e dos
marginalizados, já que a sua profissão os tornava impuros face à Lei.
Um sinal de simbologia muito rica presente em ambos os midrash da
infância é a concepção virginal de Jesus no ventre de Maria. Não estão os
evangelistas minimamente interessados em fornecer um dado biológico, mas
sim teológico: este menino que nasce como realizador das promessas, não
nasce “nem de laços de sangue, nem de um impulso da carne, nem da
vontade de um homem, mas sim de Deus” (Jo 1, 13). A sua vida é vida de
Deus! Não é uma novidade na bíblia. A história bíblica é pródiga em casos de
mulheres estéreis ou idosas que, por puro dom e iniciativa de Deus, deram à
luz quando isso já parecia ser impossível (Gn 17, 17; 25, 21; 30, 22; Jz 13, 2;
1Sm 1, 5 etc.). Sobretudo, trata-se sempre do nascimento de homens que
foram instrumentos privilegiados de Deus junto do Seu povo (Isaac, Esaú e
Jacob, José, Sansão, Samuel…). Ora, o simbolismo do seu nascimento
miraculoso é exactamente para dizer que a vida e acção desse homem é
segundo a vontade de Deus, que o fez nascer.
Jesus, logicamente, é colocado pelos evangelistas no filão destes
instrumentos de Deus, afirmando no simbolismo da concepção miraculosa
no ventre de uma virgem a verdade da sua vida movida por Deus, dizendo
deste modo que quando ele age e fala é por Deus que o faz.
A preocupação dos evangelistas não é destacar a virgindade de Maria
mas sim o milagre que é Jesus. Afirmam o carácter sobrenatural da
concepção de Jesus para dizer que Deus é a causa primeira e principal da
existência daquele menino, é de Deus a iniciativa da sua vida e da sua
missão.
É em função da proclamação desta iniciativa e primazia de Deus que
os evangelistas falam na concepção de Jesus no ventre virginal de Maria.
Chegados aqui, podemos dizer que os evangelhos da infância, não
sendo biografias, têm três objectivos principais:
1. inseri-lo no contexto da história do povo bíblico, como ponto de
chegada de todas as promessas e esperanças;
2. proclamá-lo como Messias revelador e salvador da parte de Deus;
3. e afirmar que a sua vida brota de Deus e tem n’Ele a fonte, de tal
modo que quando age e fala é como instrumento de Deus que o faz.
46 -
Jesus no Evangelho de João
O evangelho de João foi o último a ser escrito, já por volta do ano 100,
e apresenta uma reflexão das comunidades cristãs primitivas sobre Jesus
muito mais elaborada que nos evangelhos anteriores, escritos cerca de 30
anos antes.
Jesus no evangelho de João
Os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas chamam-se sinópticos
porque são de tal modo parecidos que, lendo um, ficamos com uma ideia
geral dos três. Embora tenham três maneiras de dizer a experiência de Jesus
próprias, marcadas pelo próprio evangelista e pelas comunidades no seio
das quais brotam e para as quais se dirigem, estão, no entanto, unidos no
essencial.
Ora, quanto a João, podem-se contar pelos dedos os relatos que são
comuns aos evangelhos sinópticos. Apenas o baptismo de Jesus (1, 32-34), a
expulsão dos vendedores do templo (2, 13-16), a multiplicação dos pães (6, 113), o caminhar sobre as águas (6, 16-21), a unção de Betânia (12, 1-8), a
entrada messiânica em Jerusalém (12, 12-19) e, naturalmente, os relatos da
paixão e da ressurreição. Mas, mesmo assim, as diferenças são claras.
João utiliza os mesmos relatos mas numa perspectiva totalmente
nova. Por exemplo: o episódio da expulsão dos vendedores do templo, igual
nos três sinópticos, é muito diferente em João. Nos sinópticos é
simplesmente um acto profético de Jesus, atitude de purificação da velha Lei
e do velho Templo, com todos os seus vícios. Em João, em contrapartida,
acontece para suscitar o diálogo de Jesus com os judeus aos quais
responde: “Destruí este templo e em três dias eu o levantarei!” Os judeus
não entenderam – nem os discípulos – e João acrescenta que “Jesus, porém,
falava do templo que é o seu corpo” (Jo 2, 19-21).
Por outro lado, nos sinópticos esta atitude profética de Jesus no
templo acontece no fim da sua vida, dias antes de ser morto, e é apresentado
como a final “gota de água” que levou as autoridades judaicas a condená-lo
à morte. Em João, por sua vez, o episódio é relatado no início da vida
pública, para apontar desde logo a orientação e a novidade da revelação que
acontecia em Jesus e que culminaria na ressurreição e no dom do Espírito.
Este relato foi apenas um exemplo tocado ao de leve para entendermos a
profundidade da perspectiva de João em relação aos sinópticos, mesmo
quando utiliza relatos comuns. Entende-se esta diferença na medida em que
o evangelho de João foi o último a ser escrito, já por volta do ano 100, e
apresenta uma reflexão das comunidades cristãs primitivas sobre Jesus
muito mais elaborada que nos evangelhos anteriores, escritos cerca de 30
anos antes.
É o primeiro escrito do Novo Testamento a chegar realmente à
preexistência do Filho Eterno de Deus, à consciência de que Deus, sendo
Um, a sua unidade não é individual, mas comunitária: Pai, Filho e Espírito
Santo. Por isto, é também o primeiro a tocar a maravilha da Encarnação, ou
seja, o Filho Eterno de Deus a revelar e realizar a vontade do Pai “na carne”
(humanamente) de Jesus, e a dar “a toda a carne” (a toda a humanidade) o
Espírito Santo que faz de nós filhos de Deus (Jo 1, 12-13).
Enquanto que nos sinópticos e nas cartas de Paulo “filho de Deus”
significa Messias, o ungido por Deus e entronizado à Sua direita no momento
da Sua ressurreição, em João, Cristo é o Filho Unigénito do Pai, não
chamado Filho de Deus para significar “homem ungido Messias”, mas Eterno
como Ele e com Ele que, por amor e iniciativa gratuita do Pai, “fez-se homem
e veio habitar connosco” (Jo 1, 14) para fazer de nós filhos de Deus-Pai pelo
poder do Espírito Santo (Jo 1,12), passando a ser, Ele que era o Filho
Unigénito (único), por fidelidade ao Pai e pelo amor que nos tem, Filho
Primogénito (primeiro de muitos irmãos).
Esta profundidade do evangelho de João, alcançada na caminhada das
comunidades que celebravam e viviam a experiência de Cristo ressuscitado
no Corpo vivo que era a Igreja, manifesta-se também muito claramente na
diferença de linguagem entre o Jesus que fala nos sinópticos e o que fala em
João. Enquanto os sinópticos são muito ricos em relatos, em João
superabundam os diálogos longos e profundos.
Nos sinópticos, o centro do anúncio de Jesus era o Reino de Deus,
sobre o qual contava parábolas para tornar clara a nova relação de Deus com
os homens, revelada bondade, perdão e salvação.
Em João, por sua vez, o centro do anúncio de Jesus é ele próprio
enquanto Filho Unigénito que revela e realiza à nossa medida (isto é, em
densidade humana, encarnada) o Amor extremo do Pai que “tanto amou o
mundo que lhe entregou o Seu Filho Unigénito a fim de que todo o que nele
crê não se perca, mas tenha a Vida Eterna” (Jo 3, 16). Por isso, em João,
Jesus não conta parábolas sobre o Reino. Usa, antes, alegorias sobre si
mesmo, imagens simbólicas para dizer a sua condição de mediador entre
Deus e os homens: “Eu sou a Videira, vós sois os ramos” (Jo 15, 1-8); “Eu
sou a Porta, quem entrar por mim está salvo” (Jo 10, 1-10); “Eu sou o Bom
Pastor, e dou a vida pelas minhas ovelhas” (Jo 10, 11-18).
O evangelho de João é também muito menos numeroso em milagres.
Em contraponto aos 29 milagres que Jesus faz nos sinópticos, em João são
apenas 7, e, além disso, não há nenhum relato de cura de possessos, como
há vários nos outros evangelhos. Mas não está no número a diferença
fundamental. Está na perspectiva: nos sinópticos, os milagres são actuações
do poder de Jesus para manifestar ao mundo a instauração do Reino e a
intervenção libertadora de Deus a acontecer na vida dos homens.
Em João, por sua vez, os milagres são sinais (é mesmo esta a palavra
utilizada por João para se referir a eles; Jo 2, 11: “Em Caná da Galileia Jesus
realizou o primeiro dos seus sinais miraculosos, com o qual manifestou a
sua glória, e os discípulos creram nele”) que manifestam a condição de
Jesus como Filho Unigénito do Pai e se destinam a suscitar a Fé naqueles
que o vêem. Aliás, numa pequena conclusão de João ao seu evangelho, di-lo
claramente: “Muitos outros sinais miraculosos realizou ainda Jesus na
presença dos seus discípulos, que não estão escritos neste livro. Estes,
porém, foram escritos, para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de
Deus, e, acreditando, terdes a Vida nele” (Jo 20, 30-31).
Nesta primeira conclusão encontramos um tripé muito importante para
compreendermos a acção de Jesus no evangelho de João: Sinal – Fé – Vida.
Os sinais que Jesus faz têm o objectivo de suscitar a Fé naquele que
os faz como Filho de Deus. Desde o início do evangelho: “Assim, em Caná da
Galileia, Jesus realizou o primeiro dos seus sinais… e os discípulos creram
nele…” (Jo 2, 11).
O sinal visa abrir à fé em Jesus e, crendo, receber dele a Vida nova
dos filhos de Deus (Jo 1, 12).
É por apresentar Jesus nesta perspectiva que João, mesmo nos
relatos comuns aos sinópticos, lê toda a realidade em torno de Jesus como
sinal revelador do seu ser de Filho, e transforma muitas vezes uma narração
em catequese simbólica. É assim, por exemplo, com o episódio da “expulsão
dos vendilhões do Templo”, como já vimos, e também com a Última Ceia de
Jesus com os discípulos.
Ao contrário dos sinópticos, João não narra a instituição da
Eucaristia, mas apresenta Jesus a lavar os pés aos discípulos, quando
estava a chegar a Hora de “levar o seu amor por eles até ao extremo” Jo 13,
1-17). Em vez de repetir mais uma vez a instituição da Eucaristia, João faz
dela uma releitura simbólica da presença serviçal do Filho de Deus entre nós,
revelação do “Amor-Primeiro de Deus” (1Jo 4, 10), e une-a ao dom do
Espírito Santo que é verdadeiramente o extremo do amor de Jesus por nós
(Jo 19, 28-30).
Mas, para compreendermos o rosto de Jesus no evangelho de João, o
mais importante é conhecermos algumas palavras-chave que estamos
permanentemente a encontrar enquanto o lemos. Há algumas expressões
utilizadas por Jesus que têm um grande fundo bíblico e um profundo alcance
simbólico. Entrar em contacto com elas é a melhor maneira de percebermos
depois o horizonte dos sinais, das alegorias e dos longos diálogos de Jesus:
- “CONHECER – PERMANECER”
Ao lermos o evangelho de João, bem como a sua Primeira Carta,
estamos continuamente a “tropeçar” nestas duas palavras. Têm um
significado de união íntima e transformante. “Permanecer em…” e “conhecer
a…” implicam uma relação de intimidade fecunda e transformante.
“Conhecer”, na linguagem bíblica, significa exactamente isto, sendo a
palavra usada para dizer, por exemplo, a união sexual entre os esposos (Gen
4, 1: “Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu, e deu à luz…”).
“Permanecer” também significa muito mais do que “estar ao lado de”, ou
“estar com”. É estar unido a alguém por dentro, intimamente, nos vínculos
do amor. E, no caso de Jesus, nos laços do Espírito Santo, como é muito
claro na alegoria da videira em que a palavra “permanecer” superabunda
para dizer dos ramos que permanecem fecundos unidos ao tronco da videira
pela força unitiva e dinamizadora da seiva que corre por dentro, que é o
Espírito Santo (Jo 15, 1-8). É nesta nova relação entre Deus e os homens,
relação de “conhecer – permanecer”, que brota o mandamento novo do
Amor: “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei!” (Jo 15, 9-17), amor
dinamizado pela presença interior do Espírito.
- “VIDA”
Quando lemos “vida” em João, é neste contexto da pessoa animada
pelo Espírito Santo em comunhão filial com o Pai e fraternal com o Filho. No
texto original, em grego, João usa duas palavras para dizer “vida”: Bios, que
significa existência, vida exterior que adoece, envelhece e morre; e Zoê, que
significa vida interior, a caminho da plenitude. Disse Jesus: “Eu vim para que
todos tenham vida (zoê) e a tenham em abundância” (Jo 10, 10).
Esta vida em abundância é o Espírito Santo, dom de Cristo
Ressuscitado, a própria Vida de Deus, como que o Seu sangue que passa a
correr nas nossas veias interiores e nos conduz à Plenitude, que é a Vida
Eterna: “Eu dou-lhes a Vida Eterna! (Jo 10, 28).
- “HORA”
Este dom da Vida Nova fica ao nosso alcance, por dádiva de Amor, no
momento da Hora de Jesus (Jo 7, 39).
O que significa a Hora em João? É o momento da morte-ressurreição
de Jesus. Em João é sinónimo dizer “a Hora” de Jesus, “a glorificação” de
Jesus ou a “morte-ressurreição” de Jesus. É a plenitude da vida de Jesus,
“voltar ao seio do Pai” (Jo 1, 18), e a plenitude do dom. No início do relato do
lava-pés, “sabendo bem Jesus que tinha chegado a sua Hora de passagem
deste mundo para o Pai, ele, que amara os seus que estavam no mundo,
amou-os até ao fim” (Jo 13, 1). E qual é este fim? Qual é o grande
acontecimento da Hora de Jesus?
Do alto da cruz, o sinal visível e doloroso da sua Hora, “disse Jesus:
‘Tudo está consumado’. E, inclinando a cabeça, entregou o Espírito” (Jo 19,
30). Não diz simplesmente “Jesus morreu!”. Diz que Jesus “entregou o
Espírito”. No momento da sua morte-ressurreição, a sua Hora, Jesus entra
nas coordenadas interiores da Vida Eterna e difunde o Espírito nas “veias
espirituais” da humanidade que havia sido já assumida na Encarnação.
A Hora de Jesus é a Hora do começo da Nova Humanidade: de
humanos a humano-divinos, por Amor gratuito do Pai que sonhou, do Filho
que o revelou e realizou em Jesus, e do Espírito Santo que incessantemente
anima esta dinâmica.
- “PARÁCLITO”
O dom da Vida Nova, com toda a densidade que a palavra “vida” tem
em João, brota em nós na medida em que acolhemos a iniciativa amorosa do
Pai que nos quer chamar seus filhos e nos quer fazer renascer pelo Espírito.
“É preciso nascer de novo, da água e do Espírito…” (Jo 3, 1-8). É o “Sangue
de Deus” a correr já nas veias espirituais da Humanidade, a “Seiva da
Videira” que é Cristo e da qual nós somos ramos (Jo 15, 1-6), o vínculo
familiar eterno que diviniza o que humanizamos e nos assume na própria
Família de Deus como filhos de Deus-Pai e irmãos de Deus-Filho!
Este Espírito é oferecido à humanidade como dom na Hora de Jesus.
Por isso, antes da Hora, Jesus promete o Espírito aos discípulos várias
vezes, falando do Paráclito: “O Pai vos dará outro Paráclito para que esteja
sempre convosco, o Espírito da Verdade” (Jo 14, 16).
Os capítulos 14 a 16 do evangelho de João têm por cinco vezes a
promessa do Espírito. “Paráclito” significa defensor, protector (em grego,
língua original do evangelho) e significa também intérprete (em aramaico,
língua falada por Jesus). São exactamente as duas missões que tem o
Espírito Santo no evangelho de João, dom do Ressuscitado, “Deus
connosco” depois da morte de Jesus: “É melhor para vós que eu vá (a Hora),
pois se eu não for, o Paráclito não virá a vós; mas, se eu for, eu vo-lo
enviarei” (Jo 16, 7).
Além disso, os discípulos ainda estavam tão presos à promessa
messiânica judaica de um Messias rei, filho de David, que só o Espírito,
depois da experiência pascal, lhes pode revelar a totalidade da novidade de
Jesus: “Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas não sois capazes de
as compreender por agora. Quando Ele vier, o Espírito da Verdade, há-de
guiar-vos para a Verdade completa. Ele há-de manifestar a minha glória” (Jo
16, 12-14). Por isso, nos relatos da experiência pascal, aparece Jesus
ressuscitado a “soprar sobre” os discípulos reunidos e a dizer-lhes:
“Recebei o Espírito Santo!” (Jo 20, 22).
- “VER” – “CRER”
São duas palavras que estão sempre em relação. Os “sinais
miraculosos” de Jesus têm como objectivo despertar a fé no mistério
daquele que realiza esses sinais. É a lógica do “ver para crer”, que aparece
depois mais claramente no fim do evangelho, no episódio de Tomé: “ Se não
vir não acredito!” (Jo 20, 25). Logo a seguir, o texto continua e coloca Jesus
a aparecer novamente oito dias depois, já com Tomé presente, e a dizer:
“Felizes os que acreditam sem terem visto” (Jo 20, 29).
Tal como em relação à palavra “vida”, para dizer “ver” João também
usa duas palavras diferentes: Blepô, que significa olhar simplesmente, ver
por fora, o exterior; e Oraô, que significa ver por dentro, na Fé, ver a
realidade que só se experimenta com o coração, mas não se vê com os olhos
da cara nem se toca com as mãos. É o Ver da experiência pascal! As
experiências de Jesus Ressuscitado são sempre ditas assim: “Vimos (oraô)
o Senhor!” (Jo 20, 25).
Durante todo o evangelho, em relação aos discípulos João diz sempre
que eles apenas “olhavam” mas ainda não “Viam” (porque usa o verbo
Blepô), e depois da Hora de Jesus, Tomé quer continuar a “olhar” e a
encontrar-se com Jesus assim. Mas já não é possível… Por isso, a partir do
momento em que fazem a experiência pascal, sempre que os relatos dizem
que os discípulos “viram o Senhor”, João usa o verbo Oraô, para significar
que o Viam na fé, como experiência interior possibilitada pelo Espírito Santo,
não ao nível das aparências ou das evidências da exterioridade (blepô).
A experiência pascal é sempre uma Certeza da Fé, não uma Evidência
dos Sentidos. Por isso, a lógica é ao contrário: não é “ver para crer” (porque
Jesus ressuscitado e as realidades da Fé não são físico-biológicas), mas sim
“Crer para Ver”, ou seja, é pela fé animada pelo Espírito Santo que “Vemos”
(oraô, ver interior) a presença daquele que nos ama e nos configura
permanentemente à sua imagem.
Crer é que nos permite Ver. O Espírito Santo a suscitar em nós a Fé é
que nos faz cair “as escamas dos olhos”, como a Paulo, depois de fazer a
experiência de Jesus ressuscitado (Act 9, 18).
- “EU SOU”
Em linguagem bíblica, quando Deus se revelou a Moisés para o enviar
a libertar o povo de Israel do Egipto, Moisés perguntou-lhe qual era o Seu
nome. E Deus respondeu-lhe: “EU SOU Aquele que sou!
Assim dirás aos filhos de Israel: ‘EU SOU’ enviou-me a vós.” (Ex 3, 14).
“Eu Sou” (em hebraico, Javé) era o nome de Deus, que nenhum judeu
jamais se atrevia a pronunciar. Para dizer “Deus” diziam quase sempre
Adonai (Senhor) e nunca Javé, porque só Deus podia dizer “Eu Sou”.
No evangelho de João, uma das maneiras de Jesus se revelar Filho de
Deus-Pai e Um com Ele, é exactamente dizendo “Eu Sou” referido a si
próprio, dizendo-se, portanto, Deus. Onde é mais claro este simbolismo é no
episódio da prisão de Jesus. Quando chegaram os judeus com os soldados
romanos para o prender, “Jesus perguntou-lhes: ‘Quem buscais?’
Responderam-lhe: ‘Jesus, o Nazareno’. Disse-lhes Ele: ‘EU SOU’. Logo que
Jesus lhes disse EU SOU, todos recuaram e caíram por terra” (Jo 18, 4-6).
De igual modo, “Eu Sou” é a fórmula comum de Jesus anunciar a sua
revelação e missão de Filho e mediador entre Deus e os Homens: “EU SOU o
caminho, a verdade e a vida…”; “EU SOU a porta…”; “EU SOU o bom
pastor…”; “EU SOU o pão do Céu…”; “EU SOU a luz do mundo…”
Deus, “Eu Sou”, revelava-se em plenitude e conduzia-nos, por Amor
totalmente gratuito e imerecido, a saborear a alegria da Sua própria Vida, da
Sua própria Festa. Porque já somos da Família de Deus!
Conhecer e saborear a verdade deste Deus que não se guarda para Si
mas se revela e nos faz membros da Sua própria Família, abre-nos a Vida à
Alegria: “Manifestei-vos estas coisas para que esteja em vós a Minha Alegria,
e a vossa Alegria seja completa!” (Jo 15, 11).
O livro dos Actos dos Apóstolos
47 -
O Espírito Santo faz a Igreja
O livro dos Actos dos Apóstolos é a “segunda parte” do evangelho de
Lucas. Podemos chamar-lhe “O Evangelho do Espírito Santo” pelo
protagonismo que Lucas lhe dá na formação e condução da Igreja nascente.
O Espírito Santo faz a Igreja
O livro dos Actos dos Apóstolos é a “segunda parte” do evangelho de
Lucas. É bem visível esta continuidade na própria introdução: “No meu
primeiro livro, ó Teófilo, narrei as obras e os ensinamentos de Jesus, desde o
princípio até ao dia em que, depois de ter dado, pelo Espírito Santo, as suas
instruções aos Apóstolos que escolhera, foi arrebatado ao Céu.” (Act 1, 1-2;
comparar com Lc 1, 1-4)
Podemos chamar-lhe “O Evangelho do Espírito Santo” pelo
protagonismo que Lucas lhe dá na formação e condução da Igreja nascente.
No evangelho, Lucas narrou “os actos de Jesus”, movido e animado
pelo Espírito Santo. Na sua Ressurreição, Jesus promete “revestir com a
força do Alto” (o Espírito Santo) aqueles que são testemunhas destas coisas
(missão-morte-ressurreição de Jesus)” (Lc 24, 45-49; Act 1, 4-8).
Depois, a partir do acontecimento do dia de Pentecostes, Lucas narra
os “actos dos Apóstolos”, movidos e animados pelo mesmo Espírito Santo
de Jesus, agora ressuscitado e glorificado em Deus (Act 2, 1-41).
Como já sabemos, o facto de Lucas narrar o dom do Espírito Santo
apenas cinquenta dias depois da Páscoa tem uma intenção teológica, e não
histórica: é para o fazer coincidir com o dia de Pentecostes, festa judaica que
celebrava o dom da Lei de Deus a Moisés no cimo do monte Sinai.
O Espírito Santo é a Nova “Lei”, não um conjunto de normas e
preceitos externos, mas presença interior acolhida na Fé que inspira novas
atitudes e direcções de vida conformes a Jesus Cristo Ressuscitado, o
“Homem Novo”.
O Espírito Santo é, de facto, a “Lei” da Igreja primitiva que procurava
libertar-se dos ritualismos, preceitos e grilhões da estrutura judaica. Por isso
Ele a conduz, lhe traça caminhos, inspira decisões, aponta futuros…
Este “protagonismo” do Espírito Santo na Igreja primitiva é dito de
maneira muito bonita por Lucas nalgumas expressões que usa ao longo do
livro: “O Espírito disse: …” (Act 8, 29; 10, 19); “Enviados pelo Espírito Santo,
Paulo e Barnabé foram…” (Act 13, 4); “O Espírito Santo e nós próprios
decidimos que…” (Act 15, 28); “Paulo e Silas tentaram dirigir-se à Bitínia,
mas o Espírito de Jesus não lho permitiu…” (Act 16, 7).
É o Espírito quem conduz a Igreja pelo caminho da fidelidade e da
novidade permanente a que Deus convida aqueles que se deixam guiar pela
Sua vontade. Por isso, a Igreja primitiva conheceu também divisões e pontos
de ruptura, porque havia aqueles que, apesar de se terem convertido a Cristo
como Messias de Deus e Salvador, não tinham abandonado a observância
farisaica da Lei de Moisés e o ritualismo cultual do Templo de Jerusalém.
Se, por um lado, Lucas centra o início da Igreja em Jerusalém e na
acção dos primeiros Apóstolos de Jesus, deixa depois claro que uma Igreja
que se fechasse sobre si própria perderia a razão da sua existência, o seu
sentido e a sua força. Porque em nome da tradição ou do já conhecido, não
se pode fechar a porta aos apelos sempre novos do Espírito Santo.
É o espírito quem dá início à acção do Corpo de Cristo no mundo, que
é a Igreja, naquela manhã de Pentecostes em que Deus funda o Novo Povo
da Aliança, não já “da carne” (circuncisão, sinal judaico da antiga Aliança)
mas “do Espírito”; não mais “escrita em tábuas de pedra, mas inscrita nos
corações” (Jer 31, 31-33). Por isso, este Povo não está limitado por questões
de sangue, linhagem, raça, língua ou cultura!
Todos os que tiverem coração capaz de se abrir à Verdade de Jesus
anunciada pelos Apóstolos, todos os que escutarem a sua Palavra e se
deixarem Baptizar (em grego, baptizô: mergulhar, submergir) no seu Espírito,
tornam-se membros do Povo de Deus. É este o sentido das tantas línguas e
dos tantos povos, entendendo-se todos uns aos outros, na manhã radiosa do
Espírito (Act 2, 5-11). O dom do Espírito daquela manhã de Pentecostes
introduz no mundo a dinâmica da comunhão, do diálogo fraterno e do
encontro sem barreiras; na simbólica bíblica, o dom do Espírito Santo é a
possibilidade dada ao Homem de destruir a dinâmica do pecado, que gera o
desencontro, a separação e o desentendimento simbolizados na Torre de
Babel (Gen 11, 1-9). Por isso, as comunidades de discípulos de Jesus são as
primeiras a dar testemunho desta comunhão no Espírito.
Lucas apresenta-nos o modelo ideal da Igreja de Jesus, o sonho da
Igreja de todos os tempos: “Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união
fraterna, à fracção do pão e às orações… todos os crentes viviam unidos e
possuíam tudo em comum… vendiam terras e bens, e distribuíam o dinheiro
por todos, de acordo com as necessidades de cada um… a multidão dos que
tinham abraçado a Fé tinham um só coração e uma só alma… ninguém
chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum…” (Act 2,
42-47; 4, 32-37)
É claro que aqui está traçado o modelo ideal, não a Igreja real, como
facilmente se descobre no próprio relato de Lucas (Act 5, 1-11) e, sobretudo,
nas cartas que Paulo dirigiu às comunidades espalhadas pelo Império, nas
quais trata de vários problemas. Mas os ideais existem exactamente para que
os busquemos, para servirem de orientação e sentido para construirmos as
nossas próprias comunidades na fidelidade ao Espírito Santo de Jesus.
A comunhão da Igreja primitiva era já a sua primeira acção
missionária. O testemunho é sempre a primeira e mais eficaz forma de
missão. Mas Jesus de Nazaré dera à Igreja o mandato do anúncio do
Evangelho: “Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e
Samaria e até aos confins do mundo!” (Act 1, 8). Por isso, o Espírito Santo
prometido por Jesus como “força do Alto” para realização desta missão,
inspira os Apóstolos à Palavra: “De pé, com os Onze, Pedro ergueu a voz e
dirigiu-lhes a Palavra… E todos, ao verem o desassombro de Pedro e João e
percebendo que eram homens iletrados e plebeus, ficaram espantados…”
(Act 2, 14; 4, 13)
48 -
A Igreja da Palavra e do Espírito
A Igreja do Espírito é também a Igreja da Palavra, radicalmente
missionária, não fechada sobre si mas consciente da sua missão de ser voz
da Palavra para o mundo e instrumento eficaz desse Espírito “Amor difusivo
de Deus”.
A Igreja da Palavra e do Espírito
O Espírito Santo é o “Amor difusivo de Deus”, o “Perito divino das
relações e dos encontros íntimos”, o que “nada encerra em si, mas tudo abre
a todos”… Por isso, a Igreja do Espírito é também a Igreja da Palavra,
radicalmente missionária, não fechada sobre si mas consciente da sua
missão de ser voz da Palavra para o mundo e instrumento eficaz desse
Espírito “Amor difusivo de Deus”.
Em toda a bíblia, mas neste livro de maneira especial, o Espírito e a
Palavra têm uma relação muito estreita. Provocam-se mutuamente… O
Espírito Santo a acontecer no íntimo dos crentes provoca neles a experiência
da Palavra de Deus, e consagra-os para os tornar Palavra de Deus para os
irmãos. Estes, por sua vez, na medida em que acolhem a Palavra que lhes é
anunciada, abrem-se à presença e à acção do Espírito Santo neles. Por isso é
que, inundados pelo Espírito, os Apóstolos desbordavam em Palavra. E, se
estivermos atentos, damo-nos conta de que neste “livro dos Actos”, o
“Espírito desce sobre todos quantos escutam a Palavra…” (Act 10, 44).
É pelo acolhimento da Palavra anunciada pelos Apóstolos que
acontece a conversão do coração a Jesus Cristo, que é sempre fruto da
disponibilidade ao Espírito Santo: “Todos os que aceitaram a Palavra
receberam o Baptismo” (Act 2, 41). São muitas as narrações em que Lucas
mostra esta acção da Palavra como caminho para o Espírito: 4, 30-31; 8, 1215. 35-39; 11, 15; 16, 32-33; 18, 8; 19,
1-8…
Nestas narrações torna-se explícita uma das mais utilizadas
simbologias bíblicas em relação à Palavra de Deus: a espada! “Eu vi o Céu
aberto e apareceu um cavalo branco. O cavaleiro chama-se ‘Justo e
Verdadeiro’ (Jesus Ressuscitado), e da sua boca saía uma espada afiada…”
(Ap 19, 11-15). “A Palavra de Deus é a Espada do Espírito Santo”, diz o
Apóstolo Paulo (Ef 6, 17).
Na simbologia bíblica a espada é o que rasga caminho ao Espírito
Santo, o que penetra, fura, abre… a Palavra de Deus acolhida é como uma
espada que rasga o coração, o penetra e nele abre um caminho para que o
Espírito Santo possa actuar como presença transformante de Deus. Por isso
“é uma espada de dois gumes que sai da boca de Jesus” (Ap 1, 16); de dois
gumes porque é mesmo para furar, e não para cortar, como as facas que só
têm um gume. A missão da Palavra é penetrar, rasgar o coração, abrir
caminho à acção fecunda do Espírito Santo em nós (Is 55, 10-11). Por isso é
que nos Actos dos Apóstolos o acolhimento do Espírito Santo é sempre
contextualizado pela escuta da Palavra.
A Palavra é o caminho privilegiado do Espírito: “Os Apóstolos e os
irmãos da Judeia ouviram dizer que os pagãos tinham recebido a Palavra de
Deus. E quando Pedro subiu a Jerusalém, os circuncisos (judeus)
começaram a censurá-lo. Então, Pedro disse-lhes: Quando eu comecei a
anunciar-lhes a Palavra, o Espírito Santo desceu sobre eles, como sobre nós,
no princípio!” (Act 11, 1-15).
Porque a Palavra de Deus não é um “blá-blá-blá” que Deus diz, mas é
o próprio Deus a dizer-Se em nós, abrir-se à Palavra é deixar-se habitar por
Aquele que a diz verdadeiramente dentro de nós. “A Palavra de Deus é a
espada do Espírito”, e nós estamos chamados a duas coisas: a deixarmo-nos
furar por esta espada, deixarmos rasgar-se no nosso peito um caminho para
o Espírito; e, além disso, recriados na Palavra e no Espírito, somos
chamados a ser mediações dessa Palavra e instrumentos desse Espírito que
nos habita.
No fundo, somos chamados a ser bons “espadachins” da espada do
Espírito, que é a Palavra de Deus. Somos chamados a ser Profetas, rasgados
pela Palavra e inflamados no Espírito. E quando as nossas palavras brotarem
da fonte da Palavra, então seremos “voz de Deus” (Jo 1, 23) e instrumento do
Espírito, capazes de dizer com Isaías: “Deus faz das minhas palavras uma
espada afiada, faz da minha mensagem uma seta!” (Is 49, 2). E, acima de
tudo, há que ter a sabedoria dos Apóstolos de Jesus para que, iluminados
pelo Espírito, compreendamos de verdade que a eficácia máxima da Palavra
de Deus é tornarmo-nos Palavra de Deus!
É claro que, chegados aqui, ao ponto de sermos “palavra da Palavra”,
temos que estar preparados para a “sina dos profetas”: “Os judeus
chamaram ao Sinédrio Pedro e João e impuseram-lhes a proibição formal de
falar ou ensinar em nome de Jesus “ (Act 4, 18); “Trouxeram novamente os
Apóstolos e, depois de os mandarem açoitar, proibiram-lhes de falar no
Nome de Jesus” (Act 5, 40); “Ao ouvirem as palavras de Estêvão, encheram-se intimamente de raiva e rangeram os dentes contra ele… soltaram um
grande grito, taparam os ouvidos, e depois atiraram-se a ele; arrastaram-no
para fora da cidade e começaram a apedrejá-lo…” (Act 7, 54-58).
No contexto judaico da Igreja de Jerusalém, o testemunho de Jesus
suscita oposição. O judaísmo estabelecido, ainda lembrado das recentes
“rebeldias” de Jesus, não podia deixar “rédea larga” aos seus incultos mas
entusiasmados discípulos… e, acima de tudo, não podia deixar que se
anunciasse a realização do Sonho Messiânico de Deus num Messias com os
traços de Jesus, um “Salvador crucificado”!
O triunfo de Jesus pelo testemunho dos seus discípulos implicaria
uma mudança radical na existência daqueles que menos estavam dispostos
a mudar, e o anúncio da sua Ressurreição traria a ruína das suas
instituições, seguranças e lógicas de domínio sobre o povo.
Lucas apresenta esta Igreja primitiva, por um lado, ainda não
desligada do contexto judaico, sua Lei e seu culto (“frequentavam
diariamente o Templo… Pedro e João subiam ao Templo para a oração das
três horas da tarde…” Act 2, 46; 3, 1), mas, por outro lado, por ele
perseguida!
Os Apóstolos, judeus, dão testemunho a favor do judeu Jesus, aos
judeus de Jerusalém, anunciando-o como o realizador das promessas feitas
por Deus aos judeus! Mas este testemunho incomoda e não faz sentido para
todos os que continuavam à espera de um Messias de rosto davídico… por
isso impunham aos Apóstolos silêncio.
Dar testemunho de Jesus até ao fim é perigoso… Lucas não se inibe
de o dizer, ele que bem o experimentou nas suas andanças missionárias com
Paulo (Act 21, 1-14). É perigoso sobretudo para aqueles que dominam os
outros em função de princípios e leis que Jesus anulou.
A resposta dos Apóstolos, esses “homens fracos e medrosos” que
fugiram nas últimas horas de Jesus, mostra bem como estavam “revestidos
da força do Alto” que Jesus prometera: “Nós não podemos deixar de afirmar
o que vimos e ouvimos! Saíram da sala do Sinédrio cheios de alegria por
terem sido considerados dignos de sofrer vexames por causa do Nome de
Jesus. E todos os dias, no templo e nas casas, não cessavam de ensinar e
anunciar a Boa Nova de Jesus, o Messias…” (Act 4, 20; 5, 41-42)
49 -
Da "seita dos nazarenos" à Igreja de Jesus
Cristo
O grande “problema” da Igreja primitiva não foi a tensão entre a
comunidade de Jerusalém e o contexto judaico em que se movia, mas sim a
divisão, dentro da própria Igreja, entre a “Igreja judaica” e a “Igreja pagã”.
Da “seita dos Nazarenos” à Igreja de Jesus Cristo
Apesar do que vimos antes, o grande “problema” da Igreja primitiva
não foi a tensão entre a comunidade de Jerusalém e o contexto judaico em
que se movia, mas sim a divisão, dentro da própria Igreja, entre a “Igreja
judaica” e a “Igreja pagã”. Essa “seita dos Nazarenos” (Act 24, 5) não era
mais que um grupo de judeus algo subversivos que reconheciam no
Nazareno Jesus o Messias anunciado e esperado pelos antepassados do
povo bíblico.
Se continuasse fechada em si própria e no seu judaísmo, a Igreja tinha
os dias contados! Mas o Espírito de Jesus não dorme… A Palavra começa a
ser anunciada em contexto pagão, e o Espírito começa a dinamizar
comunidades que se reúnem para celebrar e viver a Ressurreição de Jesus
Cristo, libertos dos atilhos da Lei judaica, desconhecedores da circuncisão e
distantes do Templo de Jerusalém. Nasce a Igreja universal de Jesus Cristo,
aquela dos “confins do mundo” (Act 1, 8), cujo rosto mais visível é o de
Paulo, assim como Pedro e Tiago, “o irmão do Senhor” (Gal 1, 19), são o
rosto mais visível da Igreja de Jerusalém.
A própria estrutura do livro dos Actos dos Apóstolos mostra esta
caminhada: até ao capítulo 12, tudo gira à volta de Jerusalém e da acção de
Pedro. A partir do capítulo 13 tudo passa a girar à volta de Paulo e das suas
viagens missionárias às comunidades pagãs, até ao fim do livro. Dois
capítulos importantes nesta transição são o capítulo 9, com a narração
simbólica da conversão de Paulo, e o capítulo 15, com o encontro entre as
duas tendências da Igreja nascente para procurar caminhos de futuro. Paulo
“entra” no livro no capítulo 9, e Pedro “sai” do livro no capítulo 15… Muda o
rosto da Igreja!
A primeira tensão interna é narrada por Lucas com traços que tentam
amenizar a crueza das divisões no seio da comunidade de Jerusalém.
Conviviam nela judeus convertidos de Jerusalém, e judeus convertidos que
estavam ou tinham estado na Diáspora (na emigração, diríamos hoje). Estes,
pelo contacto com a cultura grega e a distância de Jerusalém, tinham uma
visão mais livre da observância da Lei e relativizavam o culto sacrificial do
Templo. Eram os Helenistas (helenikê: Grécia).
Lucas narra que havia alguma discriminação por parte dos Apóstolos
em relação aos helenistas da comunidade. Por isso, houve a necessidade de
eleger “sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria”
(Act 6, 3).
Sintomaticamente, os sete escolhidos têm nomes gregos, e não
hebraicos! No fundo, eles eram os “apóstolos dos helenistas” (Act 6, 5-6). Foi
a partir deste grupo que o Espírito começou a ter “liberdade de acção” para
inspirar sonhos novos, missões novas e uma nova linguagem para dizer a Fé
na Ressurreição de Cristo. Mas, para estes, os membros do Sinédrio de
Jerusalém (conselho de governo, formado por anciãos zelosos da Lei e
chefes do Templo) não tinham a mesma paciência que para Pedro e João,
também eles discípulos e anunciadores de Jesus, mas “assíduos ao Templo
e observantes da Lei dos antigos”… Por isso, o primeiro Mártir da história da
Igreja é um dos sete apóstolos helenistas: Estêvão (Act 7).
“Transbordava do Espírito Santo” (Act 6, 5) e abertamente proclamava
a Palavra de Jesus Ressuscitado, chegando a compreensões e conclusões
às quais nenhum Apóstolo antes tinha chegado.
O judaísmo oficial sente-se ameaçado, atacado “dentro da sua própria
casa” pela Palavra de Estêvão que põe em causa a Lei antiga e o Templo em
que os judeus querem “fechar Deus”. Mas, pior que tudo, foi Estêvão ter
tocado nas feridas: “Já os vossos pais mataram os que predisseram a vinda
do Justo (Jesus), aquele que vós também traístes e assassinastes, vós que
tendes a Lei mas não a cumpris!” (Act 7, 52-53). Estas palavras precederam o
apedrejamento…
Também a ele, como a Jesus, mataram-no “fora da cidade” (Act 7, 58),
e também ele, como Jesus, morreu pedindo perdão para os seus assassinos
(Act 7, 60). O velho Israel perseguiu e matou Estêvão; mas não podia matar o
Espírito que o animava.
A morte dos profetas é sempre fecunda. Deus não quer a morte dos
profetas, porque Deus não quer o pecado nem o inspira no coração do
Homem. Mas Deus ama a fidelidade dos profetas, aquela que, às vezes, os
faz até aceitar a morte injusta sem se demoverem da Verdade. E dessa
fidelidade, Deus é capaz de fazer maravilhas… É por isso que, para aqueles
que amam a Deus e procuram ser-Lhe fiéis, tudo concorre para o bem! (Rom
8, 28)
Os companheiros de Estêvão, com medo, fogem de Jerusalém,
espalham-se por toda a Judeia e chegam à Samaria, a região dos “pagãos
por natureza” aos olhos dos judeus. Consigo, apesar de todos os medos,
levavam a Palavra e o Espírito de Jesus Ressuscitado (Act 8, 1): “Os que
tinham sido dispersos foram de aldeia em aldeia anunciando a Boa Nova. Foi
assim que Filipe desceu a uma cidade da Samaria e aí começou a anunciar
Cristo” (Act 8, 4).
A Igreja deixou de ser uma “seita judaica de Jerusalém”, e tornou-se a
Igreja de Jesus para o mundo. “A força do Alto” acompanha Filipe, que
anuncia o Evangelho na Samaria, rompendo todas as barreiras do velho
judaísmo oficial.
O acolhimento da Palavra na Samaria é inesperadamente grandioso, o
Espírito faz maravilhas entre aquele povo, Jesus Cristo é anunciado e
acolhido como Salvador e eram muitos os que se faziam baptizar.
Os próprios Pedro e João vieram de Jerusalém à Samaria para impor
as mãos sobre todos eles, como sinais continuadores de Cristo e
instrumentos do Espírito Santo (Act 8, 14-17). Depois, voltaram para
Jerusalém… Mas o Espírito não cessa, e inesperadamente coloca Filipe no
caminho de um “etíope, eunuco e alto funcionário da rainha Candace, da
Etiópia” (Act 8, 26-40). Anunciou-lhe a Palavra e baptizou-o em Nome de
Jesus com água da berma da estrada, sinal do Baptismo no Espírito. O
“eunuco” (castrado, estéril) “seguiu o seu caminho, cheio de alegria”,
símbolo da nova fecundidade do Espírito Santo dada a toda a Humanidade.
A Igreja começa, com a fuga motivada pelo assassínio de Estêvão, a
espalhar-se por todo o Império. Aos olhos da comunidade de Jerusalém, a
Igreja começa a “paganizar-se”… Mas é importante o modo como Lucas
coloca Pedro a abrir-se, ainda que cautelosamente e com incoerências, aos
pagãos, antes de introduzir definitivamente na história o “apóstolo dos
pagãos” (Act 18, 6), Paulo.
Existia em Cesareia um centurião romano chamado Cornélio. As suas
“boas obras eram conhecidas por Deus”, que lhe envia Pedro como
recompensa (Act 10, 1-5). Mas, se Pedro é a recompensa de Cornélio,
Cornélio também é um “grande presente” de Deus a Pedro, uma
oportunidade privilegiada de mudar o coração e reconhecer a novidade de
Deus. Num sonho, Pedro descobre que o mundo não se divide entre puros e
impuros, nada nem ninguém se deve considerar como manchado. Num
sonho, Deus desmorona na mente de Pedro os preconceitos e medos legais
típicos de um judeu observante da Lei: “O que foi purificado por Deus, não o
consideres tu impuro!” (Act 10, 15);
“Deus não faz acepção de pessoas, mas em qualquer povo, quem o
teme e põe em prática a justiça, é-lhe agradável” (Act 10, 35).
Pedro anuncia a Palavra em casa de Cornélio, e “o Espírito desceu
sobre todos quantos escutavam a Palavra”. Imediatamente, Pedro ordenou
que fossem baptizados na água, em Nome de Jesus Cristo, aqueles que já
tinham recebido o Baptismo no Espírito (Act 10, 44-48).
Depois, “os Apóstolos e irmãos da Judeia, ouvindo dizer que também
os pagãos tinham recebido a Palavra de Deus, censuraram Pedro!” (Act 11, 115). Pedro não argumenta! Simplesmente constata o poder de Deus e a
novidade do Espírito: “Eles receberam o Espírito Santo como nós!” Acima de
divergências teológicas, a Igreja tem que permanentemente fundar-se na
fidelidade e obediência à acção do Espírito Santo.
Entretanto, também Paulo anunciava o Evangelho de Jesus aos
pagãos, sem Lei de Moisés nem Templo de Jerusalém. Fundava
comunidades de crentes incircuncisos, que encontravam em Jesus o início
de uma Nova Humanidade.
A “capital” desta Igreja pagã, a “Jerusalém dos pagãos” foi-se
tornando Antioquia. É o rosto visível da Igreja independente, a Igreja livre e
universal de Jesus, aquela em que “os crentes pela primeira vez começaram
a ser chamados Cristãos” (Act 11, 26), ou seja, a ganhar uma identidade
própria, a não ser apenas “uma seita judaica”. Paulo e Barnabé tornaram-se
os líderes da Igreja de Antioquia (Act 11, 19-26), e foi por ela que foram
enviados a anunciar o Evangelho como Apóstolos de Jesus (Act 13, 1-3).
50 -
A primeira refundação da Igreja
A Igreja não pode cristalizar, fechar-se sobre si própria e absolutizar o
seu passado. A Igreja de Jesus, a Igreja fiel aos apelos do Espírito é a Igreja
em permanente Refundação.
A primeira refundação da Igreja
A Igreja não pode cristalizar, fechar-se sobre si própria e absolutizar o
seu passado.
A Igreja de Jesus, a Igreja fiel aos apelos do Espírito é a Igreja em
permanente Refundação. A refundação acontece de maneira particular em
momentos de tensão e divisão de perspectivas no seio da Igreja, em etapas
históricas de crise.
Não há crescimento sem crises neste Corpo Vivo de Cristo no meio do
mundo. Ter medo das crises e das diferenças dos outros é ter medo de
crescer. O primeiro grande momento de refundação da Igreja de Cristo
acontece neste contexto de uma Igreja dividida entre Judeus e Pagãos…
A grande questão era esta: os pagãos acolhiam a Palavra de Deus,
eram baptizados e formavam comunidade crente em Jesus, sem antes serem
instruídos na Lei de Moisés, sem serem circuncidados e sem cumprirem a
observância cultual do Templo. Os irmãos de Jerusalém, judeus tradicionais,
não admitiam este processo! Eles, de judeus tinham-se convertido a Cristo.
Devia acontecer o mesmo processo com os pagãos. Primeiro, convertiam-se
ao judaísmo, à Lei de Moisés e ao culto do Templo, pelo sinal da circuncisão;
e só depois poderiam ser baptizados no Nome de Jesus Cristo. Este era o
grande foco de tensão na Igreja nascente, a Igreja das comunidades.
Paulo é o grande defensor da liberdade do Evangelho vivido pelos
pagãos, o instrumento escolhido pelo Espírito: “Vai, que te vou enviar lá ao
longe, aos pagãos!” (Act 22, 21; 13, 46-48; 28, 25-29).
Esta “tensão de crescimento” da Igreja nascente tem dois rostos
fundamentais, Pedro e Paulo, como nos aparece na carta de Paulo aos
cristãos da comunidade da Galácia: “Quando Pedro veio a Antioquia, opusme frontalmente a ele, porque estava a comportar-se de modo condenável.
Com efeito, antes de terem chegado umas pessoas da parte de Tiago (líder
de Jerusalém), ele comia juntamente com os pagãos. Mas, quando eles
chegaram, Pedro retirava-se e separava-se, com medo dos defensores da
circuncisão. E com eles também os judeus agiram hipocritamente, de tal
modo que até Barnabé foi arrastado pela hipocrisia deles! Mas, quando eu vi
que não procediam bem, de acordo com a Verdade do Evangelho, disse a
Pedro diante de todos: Se tu, sendo judeu, vives segundo os costumes
pagãos e não judaicos, como te atreves a forçar os pagãos a viver como
judeus?!” (Gal 2, 11-14)
A Paulo pouco importava que alguém fosse circunciso ou não, que
fosse um cristão vindo do judaísmo ou do paganismo (Gal 6, 5; 1Cor 9, 20).
Não proibia ninguém de observar a Lei de Moisés, mas não suportava a
pretensão daqueles “super-apóstolos” (2Cor 11, 5) que queriam impor essa
Lei como condição necessária para ser cristão! Por isso se torna o “Apóstolo
da Graça de Deus” revelada e realizada em Cristo para toda a Humanidade,
não segundo o cumprimento da Lei, mas a adesão total a ele pela Fé (Gal 3,
22).
Em Cristo são todos iguais. Tudo o resto, normas, observâncias,
prescrições, passou a ser secundário, faz parte dos meios e instrumentos
para alguns que deles não se conseguiram libertar. Meios para um fim,
instrumentos para viver o essencial! Por isso, quando foi preciso fazer-se
“judeu entre os judeus”, Paulo observou a Lei de Moisés (1Cor 9, 20). Fez até
questão de circuncidar Timóteo, para quebrar barreiras e facilitar o
entendimento com os judeus (Act 16, 3). Mas, por outro lado, recusou-se
energicamente a fazer o mesmo a Tito, quando outros, “falsos irmãos que
furtivamente se intrometem a espiar a nossa liberdade”, queriam fazer da
circuncisão uma questão de princípio (Gal 2, 3-5).
Paulo não suportava pessoas que, por não entenderam nada do
essencial, se levantavam em defesa de coisas secundárias, querendo impor
aos outros as suas próprias limitações!
É tudo isto que vai acabar por ser conversado e resolvido no encontro
que veio a ficar conhecido por “Concílio de Jerusalém” (Act 15). É o primeiro
momento refundador da Igreja, um encontro entre os irmãos de Jerusalém,
encabeçados por Tiago e Pedro, e os irmãos entre os pagãos, encabeçados
por Paulo e Barnabé.
No início do encontro, logo “se levantaram alguns do partido dos
fariseus que tinham abraçado a Fé, dizendo que era preciso circuncidar os
pagãos e impor-lhes a observância da Lei de Moisés. Os Apóstolos e os
Anciãos reuniram-se para examinarem a questão…” (Act 15, 5-6).
“Depois de longa discussão”, Pedro e Tiago falaram. Nenhum deles se
perde em argumentos teológicos.
Pedro segue o caminho da obediência à acção do Espírito de Deus:
“Deus, que conhece os corações, testemunhou a favor dos pagãos, dandolhes o Espírito Santo como a nós!” (Act 15, 8). Tiago, citando uma profecia
universalista do profeta Amós retirando-lhe significativamente as referências
ao passado (Am 9, 11-12), apela à tolerância e ao acolhimento dos irmãos
pagãos sem imposições. Apenas alguns apelos à consciência desses irmãos,
no sentido de não pactuarem com a idolatria (“que se abstenham das carnes
que foram conspurcadas no culto aos ídolos, e da imoralidade”) e não
escandalizarem os irmãos judeus que porventura haja na comunidade (“que
se abstenham das carnes sufocadas e do sangue”, proibidas na ementa de
um judeu); (Act 15, 19-20).
Depois, a Igreja reunida neste importante momento de refundação e
fidelidade ao Espírito sempre Novo do Ressuscitado, enviou alguns irmãos
de Jerusalém à “Jerusalém dos pagãos”, Antioquia, acompanhando Paulo e
Barnabé. Com eles levavam uma carta redigida às comunidades de cristãos
convertidos do paganismo, em que lhes manifestavam a sua comunhão e
lhes faziam os tais apelos propostos por Tiago (Act 15, 23-29).
A Igreja como que nasceu de novo! O seu rosto muda à medida que se
“paganiza”. É o caminho da liberdade. É bonito ver como dos dois enviados
por Jerusalém a Antioquia, Judas e Silas, já só Judas regressou! “Silas
resolveu ficar ali…” (Act 15, 34), certamente conquistado pela liberdade e
pelo entusiasmo dos irmãos de Antioquia. A Igreja de Jesus é enviada ao
mundo! Um dos símbolos que o evangelista Lucas utiliza é geográfico…
Todo o evangelho de Jesus é uma longa viagem da Galileia até
Jerusalém, centro do mundo judaico, centro do povo de Deus e da história da
Revelação. Depois, em Jerusalém consagra e envia os seus Apóstolos com
“a força do Alto”. No livro dos Actos dos Apóstolos, a Igreja faz também uma
significativa “viagem”, de Jerusalém a Antioquia, e de Antioquia até Roma.
Sim, a história só “termina” em Roma, com Paulo “prisioneiro do Evangelho”
na capital do Império, no “centro do mundo” de então!
Esta é a Igreja de Cristo, a enviada a todos os Homens, sem
preconceitos nem barreiras, vocacionada a ir sempre para “o centro do
mundo”, não para governar nem dominar, mas para anunciar de modo audaz
e livre o Evangelho. Esta é verdadeiramente a Igreja de Cristo, aquela que
nunca se fecha em si própria mas se deixa conduzir pelo “Espírito Sempre
Novo”, sem medo de crescer, de mudar, sem medo de sofrer e que nunca
deixa de se refundar! Para que todos os nossos actos sejam continuadores
dos de Jesus, e assim possam também ser actos de Apóstolos…
As Cartas do Apóstolo Paulo
51 -
No início do Cristianismo
As cartas de Paulo são os primeiros escritos do Novo Testamento que
chegaram até nós, ainda anteriores aos Evangelhos. São cartas que Paulo foi
escrevendo às comunidades por onde ia passando na sua actividade
missionária.
As cartas de Paulo, no início do cristianismo
As cartas de Paulo são os primeiros escritos do Novo Testamento que
chegaram até nós, ainda anteriores aos Evangelhos. São cartas que Paulo foi
escrevendo às comunidades por onde ia passando na sua actividade
missionária (excepto a carta aos Romanos, que escreveu antes de ir para
Roma, e as cartas dirigidas a pessoas concretas, no caso, Timóteo, Tito e
Filémon), reanimando a fidelidade ao Evangelho de Jesus que aí havia
anunciado, respondendo a questões que lhe chegavam dessas comunidades
através de enviados, e propondo critérios para resolver alguns problemas
que iam surgindo no seio da jovem Igreja.
Pela ordem que aparecem na Bíblia, as cartas são as seguintes: aos
Romanos (Rom), primeira e segunda carta aos Coríntios (1Cor; 2Cor), aos
Gálatas (Gal), aos Efésios (Ef), aos Filipenses (Flp), aos Colossenses (Col),
primeira e segunda carta aos Tessalonicenses (1Tes; 2Tes), primeira e
segunda carta a Timóteo (1Tim; 2Tim), carta a Tito (Tit) e a Filémon (Flm).
Sabemos que nem todas estas cartas são directamente de Paulo. Dele,
com certeza, são Rom, Gal, 1Ts, 1Cor, 2Cor, Flp e Flm. As restantes, já
escritas entre os anos 70 e 100, são certamente de discípulos de Paulo que
continuam o seu trabalho missionário, não só no acompanhamento directo
das comunidades mas também, como Paulo fazia, enviando cartas de pósmissão. Escreviam-nas com o nome de Paulo, que era algo muito frequente
na literatura antiga, para manifestar o seguimento fiel das suas ideias
fundamentais, e para lhes imprimir alguma autoridade.
De todas as cartas, a primeira aos Tessalonicenses é a mais antiga,
escrita no ano 50, o que faz dela o escrito mais antigo do Novo Testamento.
Exactamente por serem os primeiros escritos do Novo Testamento, neles
estão presentes as grandes temáticas do cristianismo nascente, no seu
confronto com o judaísmo, na busca de todas as consequências da novidade
revelada de Jesus de Nazaré, na adesão de pagãos à Boa Nova, etc. Além
disso, aparecem nas suas páginas as formulações mais antigas a que temos
acesso de realidades centrais como são a proclamação da ressurreição de
Jesus (1Cor 15), a instituição da Eucaristia na última ceia (1Cor 11, 23-26), a
nossa filiação divina (Rom 8, 14-17; Gal 4, 4-7) e a realidade da Igreja como
Corpo de Cristo no mundo (1Cor 12, 12-28).
52 -
Quem é Paulo?
Acima de tudo, Paulo é um apaixonado. Não sabia fazer nada “a meio gás”…
Quem é Paulo?
Antes de continuarmos, é bom lermos o que ele diz de si mesmo:
“Irmãos, eu vos declaro: o Evangelho por mim anunciado não é
invenção humana. E, além disso, não o recebi nem aprendi através de um
homem, mas por revelação de Jesus Cristo.
Certamente ouvistes falar do que eu fazia quando estava no judaísmo.
Sabeis como eu perseguia com violência a Igreja de Deus e fazia de tudo
para a arrasar. Eu superava no judaísmo a maior parte dos compatriotas da
minha idade e procurava seguir com todo o zelo as tradições dos meus
antepassados. Deus, porém, escolheu-me antes de eu nascer e chamou-me
por sua graça.
Quando Ele resolveu revelar em mim o seu Filho, para que eu o
anunciasse entre os pagãos, não consultei ninguém, nem subi a Jerusalém
para me encontrar com aqueles que eram Apóstolos antes de mim. Pelo
contrário, fui para a Arábia e depois voltei a Damasco. Três anos mais tarde,
fui a Jerusalém para conhecer Pedro e fiquei com ele quinze dias. Entretanto,
não vi nenhum outro Apóstolo, a não ser Tiago, o irmão do Senhor.
Deus é testemunha: o que vos escrevo não é mentira. Depois fui para
as regiões da Síria e da Cilícia, de modo que as Igrejas de Cristo na Judeia
não me conheciam pessoalmente. Elas apenas ouviam dizer: «Aquele que
nos perseguia, agora anuncia a fé que antes procurava destruir». E louvavam
a Deus por minha causa.” (Gal 1, 11-24)
Acima de tudo, Paulo é um apaixonado. Não sabia fazer nada “a meio
gás”… no judaísmo em que nasceu e se formou, “ultrapassou a muitos dos
seus companheiros no zelo”, a tal ponto que pela defesa do judaísmo
perseguia os que davam testemunho de Cristo. Depois, renascido pela
experiência desse mesmo Cristo ressuscitado, torna-se o mais radical
apóstolo da novidade de Jesus, diante dos seus irmãos judeus que agora o
insultavam como traidor, e diante dos pagãos que o tinham por louco.
Nasceu em Tarso, que era um importante centro intelectual de então,
no início do séc. I.
A primeira vez que aparece nas páginas da Bíblia é nos Actos dos
Apóstolos, escrito por Lucas, um discípulo e companheiro de algumas
viagens de Paulo. Lucas, ao narrar o martírio de Estêvão à pedrada pelos
judeus, termina o relato dizendo: “as testemunhas depuseram as capas aos
pés de um jovem chamado Saulo” (Act 7, 58). Saulo é o nome hebraico de
Paulo. Depois acrescenta que “Saulo aprovava esta morte”, e que ele
“devastava a Igreja: ia de casa em casa, arrastava homens e mulheres e
entregava-os à prisão” (Act 8, 1-3).
Era o zelo de Paulo em defender a integridade das promessas de Deus
reveladas aos patriarcas do judaísmo e aos profetas que o movia nesta
perseguição aos discípulos de Cristo. Até que… Paulo faz a experiência de
Cristo ressuscitado, plenitude de todas as promessas, revelação da novidade
de Deus, realização inimaginável e surpreendente de todas as profecias que
diziam respeito ao Messias.
Lucas, nos Actos dos Apóstolos (cap. 9), colocando Paulo em viagem
na estrada que levava a Damasco para de lá trazer mais cristãos prisioneiros,
constrói uma narração profundamente simbólica para dizer esta experiência
pascal que desconcertou por completo a vida de Paulo. É esse o significado
profundo da queda e da cegueira nesse relato, de tal modo que tem que ser
erguido e conduzido pela mão, isto é, precisa de mediações para que a
experiência acontece e se compreenda. A partir daqui nasceu um homem
novo (por isso é que acontece a mudança de nome de Saulo para Paulo,
como símbolo desta transformação de vida), já não o judeu zeloso, mas o
cristão apaixonado; não mais o seguidor cego de Moisés, mas o discípulo de
Cristo; não mais o escravo da Lei, mas o dócil à acção do Espírito.
E se antes era com zelo que perseguia, agora é com redobrado zelo e
aumentada paixão que anuncia: “Ai de mim se não evangelizar!” (1Cor 9, 16).
Vai passando de comunidade em comunidade, fundando umas, fortalecendo
outras, escrevendo-lhes depois para as manter na fidelidade ao Evangelho de
Jesus.
No início da sua missão, andava pelas sinagogas, anunciando Cristo
aos judeus, na esperança de que se abrissem à novidade de Deus nele
revelada. Mas a recusa foi de tal modo violenta e permanente (Act 17, 1-13),
que ele se torna o “Apóstolo dos gentios” (Act 18, 6), anunciador aos pagãos
do amor de Deus que o judaísmo lhes negava, de modo que “os pagãos se
enchiam de alegria e glorificavam a Palavra do Senhor” (Act 13, 46-48).
A partir daí, a atitude das autoridades judaicas em relação a Paulo foi
em quase tudo igual à atitude tida uns anos antes com Jesus. O seu dia a dia
torna-se uma luta contínua contra as dificuldades e ciladas que lhe armavam
para o calar.
Paulo ia saltando de cidade em cidade, anunciando o Evangelho à
custa da sua coragem e da sua paixão pelo Cristo que o tinha feito renascer
na estrada de Damasco: “eu sou ministro de Cristo, muito mais pelas
prisões, imensamente mais pelos açoites, muitas vezes em perigo de morte.
Cinco vezes recebi dos judeus os quarenta açoites menos um. Três vezes fui
flagelado com vergastadas, uma vez apedrejado, três vezes naufraguei,
passei uma noite e um dia no alto mar…” (2Cor 11, 21-29).
Até que os judeus conseguiram de facto, como tinham feito com
Jesus, prender Paulo, quando este se encontrava em Jerusalém, e levá-lo às
autoridades romanas pedindo para ele a morte. Em Jerusalém ficou preso,
apesar de o tribuno romano não reconhecer nele motivo para a condenação,
e de lá foi enviado para uma fortaleza em Cesareia. Foi aí que Paulo esteve
preso dois anos, até fazer valer os seus direitos de cidadão romano (título
que tinha por ter nascido em Tarso, cidade querida dos imperadores) e
“apelar a César”, isto é, ser julgado em Roma (Act 25, 12).
A caminho de Roma, de barco, ainda tem um naufrágio, e depois, na
cidade central do império apenas sabemos que estava preso, mas com
facilidade de receber todos os que quisessem visitá-lo ou consultá-lo. E
perdemos-lhe o rasto…
Sabemos que no ano 64 acontece o grande incêndio de Roma,
provocado por Nero, que foi seguido da morte de milhares de cristãos em
espectáculos públicos, uma vez que Nero os apontou diante do império
como culpados do incêndio. Segundo a tradição, nesta altura Paulo teria sido
também ele martirizado em Roma, testemunhando a sua fidelidade ao
Evangelho. Ele que tão zelosamente o combatera, dava agora a vida por ele,
apaixonado pela novidade da experiência de Deus revelada em Cristo que o
fizera renascer para uma vida nova, a ponto de dizer: “Já não sou eu que
vivo, é Cristo que vive em mim!” (Gal 2, 20).
53 -
Da Lei de Moisés ao Espírito de Cristo
Esta é a grande questão sempre presente nas cartas de Paulo. Para os
judeus, Moisés era o grande legislador e o grande profeta da história, aquele
que tinha recebido a lei de Deus no monte Sinai. Em Cristo, Paulo não vê um
novo legislador e profeta, mas o Messias prometido, Salvador.
Da lei de Moisés, ao Espírito de Cristo; das obras da Lei, ao
acolhimento da Fé
Esta é a grande questão sempre presente nas cartas de Paulo.
Para os judeus, Moisés era o grande legislador e o grande profeta da
história, aquele que tinha recebido a lei de Deus no monte Sinai.
Em Cristo, Paulo não vê um novo legislador e profeta, mas o Messias
prometido, Salvador. Cristo não é um novo Moisés, mas o Novo Adão (Rom
5, 12-20), isto é, o início de uma humanidade nova.
No início, Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança. Mas Adão
introduziu o ritmo do pecado na marcha da história humana. Na aliança
sonhada por Deus, o homem (Homem = Adam, em hebraico) introduz a
infidelidade. Mas Deus continua a ser fiel. Escolhe um povo, ao qual vai
revelando a Sua Palavra e a Sua vontade, e dá-lhe uma lei para o preparar
para a “plenitude dos tempos” (Gal 4, 4), isto é, quando Deus iria recriar a
humanidade. Essa plenitude dos tempos aconteceu em Cristo, quando Deus
o instituiu como “cabeça da nova humanidade”, substituindo Adão.
Ora, se a lei tinha como objectivo preparar a vinda de Cristo, como
“um pedagogo até Cristo” (Gal 3, 26), “Cristo é o fim da lei” (Rom 10, 4). Alem
disso, Cristo é cabeça da nova humanidade, não de uma nova raça.
A lei de Moisés, sinal da antiga aliança, estava restrita ao povo judeu.
Mas a Nova Aliança em Cristo, já não está limitada pelo sangue, cor, raça ou
língua. Todos são assumidos a formar parte da nova humanidade, corpo do
qual Cristo é a nova cabeça, e pelo qual já todos podem chamar a Deus:
“Abba! Paizinho!” (Rom 8, 14-16). Isto só é possível porque a Nova Aliança
de Cristo não é uma questão de letra escrita em tábuas, como a antiga, mas é
o próprio Espírito de Cristo a circular nas “veias espirituais” de todos os
homens que o acolhem. “Porque a letra mata, mas o Espírito dá a Vida!”
(2Cor 3, 6).
Paulo fala de Jesus na perspectiva de Adão para anunciar nele o início
(o que ele chama “as primícias” – 1Cor 15, 20) da Nova Humanidade (2Cor 5,
17), mas fala dele também na perspectiva de Abraão como modelo de Fé. Foi
pela Fé que Abraão se tornou instrumento da Bênção de Deus, e não pelas
“obras da Lei” (Rom 4, 1-3), já que a promessa de Deus a Abraão é anterior à
Lei e à circuncisão (Rom 4, 10-11). Assim, “também os que dependem da Fé é
que são filhos de Abraão” (Gal 3, 6-14).
Deus prometera a Abraão uma descendência, a descendência da
Bênção: “a tua descendência” – prometida a Abraão – “é Cristo!” (Gal 3, 16).
Jesus Cristo é a plenitude da revelação e realização da Bênção de Deus
prometida a todas as nações (Gen 12, 2-3), que não depende de Moisés (Lei e
circuncisão) mas de Abraão (Promessa e Fé). É como eleitos desta Nova e
Eterna Aliança de Bênção em Cristo que os cristãos vivem “com os mesmos
sentimentos de Jesus Cristo” (Flp 2, 5), para ser no mundo continuação sua.
“Não sabeis que sois templo de Deus, e que o Espírito Santo habita em
vós?” (1Cor 3, 16).
54 -
O Apóstolo da Graça
Foi a grande descoberta da vida de Paulo: a Graça de Deus como
Amor absolutamente incondicional de salvação. Cristo é o rosto da Graça de
Deus!
O Apóstolo da Graça
Foi a grande descoberta da vida de Paulo: a Graça de Deus como
Amor absolutamente incondicional de salvação. Cristo é o rosto da Graça de
Deus (Col 1, 15).
A lei da antiga aliança assentava nas acções que o homem devia fazer
e não fazer para merecer a benevolência e salvação da parte de Deus. Do
cumprimento ou não das acções prescritas na Lei, dependia o merecimento
ou não dos dons de Deus.
Em Jesus Cristo, Paulo reconhece a novidade da Graça de Deus, que
desmonta a férrea lógica da Retribuição, caudal do Antigo Testamento:
bênção para o justo, castigo para o pecador.
Ao longo da história do povo bíblico da Antiga Aliança, a medida da
justo-pecador começou a ser o critério de “puro-impuro” diante da Lei, ou
seja, “cumpridor-não cumpridor das obras (mandamentos e normas) da Lei”.
Foi esta a lógica que Jesus combateu até à morte, revelando a Graça de Deus
na intimidade com os desprezados e condenados pela Lei dos que se tinham
como puros. A Lei judaica tornara-se uma Lei sem Deus. Por isso os seus
peritos não podiam suportar Jesus de Nazaré, o profeta da “Galileia dos
pagãos” (Mt 4, 15) que anunciava um Deus sem Lei! Esses mesmos foram os
que depois perseguiram Paulo…
Para Paulo, da “observância da Lei” brotam as “obras da Lei”, que não
conduzem o Homem à perfeição revelada em Jesus. Da experiência da Graça
brota a Fé, que é a adesão a Cristo Ressuscitado e o acolhimento do seu
Espírito Santo, que faz de nós filhos de Deus e nos configura à sua imagem:
“Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho. Ele
nasceu de uma mulher, submetido à Lei para resgatar aqueles que estavam
submetidos à Lei, a fim de que fôssemos adoptados como filhos. A prova de
que sois filhos é o facto de que Deus enviou aos nossos corações o Espírito
do seu Filho que clama: Abba, Pai! Portanto, já não és escravo, mas filho; e,
se és filho, és também herdeiro por Graça de Deus.” (Gal 4, 4-7)
É por tudo isto que Paulo fala duramente aos cristãos da Galácia,
porque durante a sua ausência, tinham voltado à observância da Lei judaica
e à prática da circuncisão: “Oh, Gálatas insensatos! Foi pelas obras da Lei
que recebestes o Espírito ou pela pregação da Fé? Sois tão insensatos que,
tendo começado pelo Espírito, quereis agora, pela carne, chegar à
perfeição?!” (Gal 3, 1-3). “Tornastes-vos uns estranhos para Cristo, vós os
que pretendeis ser justificados pela Lei; abandonastes a Graça! Pois, em
Cristo, nem a circuncisão vale alguma coisa, nem a incircuncisão, mas sim a
Fé que actua pelo Amor!” (Gal 5, 2-6).
Esta era a posição clara de Paulo numa questão que deu muito que
falar na Igreja primitiva.
Os Apóstolos e seus primeiros discípulos eram judeus, observantes
das normas da Lei e circuncidados. Quando o Evangelho chegou aos
pagãos, pôs-se o seguinte problema: poderão ser baptizados no nome de
Jesus Cristo sem antes serem judeus? Poderão ser seguidores de Cristo
sem observarem a Lei de Moisés nem serem circuncidados?
A igreja de Jerusalém não era muito a favor desta admissão aos
pagãos sem antes os “judaizar”… mas Paulo, “o Apóstolo dos Pagãos”,
nunca cedeu: “a circuncisão que conta é a do coração, operada pelo Espírito
Santo e não por causa da letra da Lei” (Rom 2, 29).
Nas cartas de Paulo, o fio condutor de toda a história do Amor de Deus
connosco é sempre a linguagem da Graça, contrária à linguagem tipicamente
judaica dos “méritos”. “Somos eleitos pela Graça de Deus. Mas se o é pela
Graça, deixa de ser pelas obras (observância da Lei judaica, com os seus
méritos…); caso contrário, a Graça deixaria de ser Graça” (Rom 11, 6).
E é da experiência da Graça que brotam as consequências da Fé em
Cristo e da Vida Nova no Espírito.
As “obras novas do Homem Novo” não brotam de uma “Lei nova”,
mas da experiência de “conhecer Deus na grandeza da Sua Graça” (Ef 2, 7) e
de “ser conhecido por Deus” pela intimidade do Espírito Santo que em nós
clama “Abba! Papá!” (Rom 8, 15): “Agora, tendo conhecido Deus, ou melhor,
sendo conhecidos por Ele, como é possível que vos convertais outra vez aos
elementos fracos e pobres, querendo novamente ser escravos deles?” (Gal 4,
9).
Livro do Apocalipse
55 -
Um escrito clandestino
Este é um dos livros menos amados (e conhecidos…) da Bíblia. Tem
tantas imagens de difícil compreensão, tantos símbolos estranhos, tantos
monstros e animais com imensas cabeças e uns não sei quantos braços e
asas e olhos em tantos lados, e uma misturada de tantos números… que
quando se chega ao fim dos primeiros capítulos, encosta-se a um canto.
Um escrito clandestino…
Este é um dos livros menos amados (e conhecidos…) da Bíblia. Tem
tantas imagens de difícil compreensão, tantos símbolos estranhos, tantos
monstros e animais com imensas cabeças e uns não sei quantos braços e
asas e olhos em tantos lados, e uma misturada de tantos números… que
quando se chega ao fim dos primeiros capítulos, encosta-se a um canto.
Vamos, primeiro, compreender o contexto do livro. Depois da
experiência pascal do grupo dos Apóstolos, a Boa Nova da ressurreição de
Jesus começa a ser anunciada, e a Igreja começa a dar os primeiros passos
na Palestina.
Passados poucos anos, as dificuldades postas pelos judeus a Jesus
começam a ser repetidas com os seus mais fiéis seguidores, o primeiro dos
quais é o diácono Estêvão (Act 7). Por causa disso, muitos discípulos de
Cristo fugiram para outras paragens, levando consigo a fé em Jesus
ressuscitado (Act 8, 1). Além disso, começa com Paulo o movimento
imparável da propagação da fé em Jesus pelo território não judeu do Império
Romano. As suas cartas são a prova evidente de que, cerca de vinte anos
após a morte de Jesus, já havia comunidades em Roma, Corinto, Éfeso,
Galácia, Tessalónica, etc. todos eles territórios não judaicos.
O cristianismo começa a difundir-se pelo Império, a princípio visto
apenas como uma seita judaica. Mas, depois, começam as grandes
incompreensões… Era obrigatório o culto imperial, ou seja, a veneração de
imagens do Imperador como um ser divino e a veneração dos ídolos
religiosos impostos pelo Império. Os cristãos recusavam-se a ceder a tais
cultos…
Além disso, corriam boatos nas cidades onde eles se implantavam de
que eles se reuniam na madrugada de todos os primeiros dias da semana e
faziam uns cultos muito estranhos onde “comiam carne humana e bebiam
sangue”… Destes boatos desviados da celebração da Eucaristia foi um
saltinho até chegar a outros bem mais graves.
Se quem conta um conto acrescenta um ponto, quem conta um boato
acrescenta um parágrafo, e já se inventava que os cristãos nos seus cultos
nocturnos sacrificavam virgens e bebés para depois comerem a sua carne e
o seu sangue…
Os cristãos não se deparavam com este tipo de acusações em todos
os lados, mas há escritos do tempo que, de facto, ainda fazem eco disso a
acontecer, sobretudo, nas cidades grandes onde as pessoas não se
conheciam. E cidade grande, na altura, é por excelência Roma.
Em Roma, por volta do ano 64, o Imperador Nero decreta a primeira
perseguição organizada do Império aos cristãos, acusando-os de serem os
culpados do incêndio de Roma, que ele próprio tinha ateado! Os coliseus de
Roma divertiam-se vendo cristãos e outros “criminosos” a morrer nos dentes
de leões ou nas espadas dos gladiadores. Apenas trinta anos depois da
morte de Jesus em Jerusalém, ser cristão era crime no Império Romano.
Depois da morte de Nero, houve uma pausa na perseguição. As
comunidades continuavam a ser controladas, mas ser cristão já não era pena
de morte… Até que, por volta do ano 90, o Imperador Domiciano decretou
uma nova perseguição, esta muito maior e mais sangrenta que a de Nero.
Como estes se negavam ao culto imperial, a primeira pena era a tortura
extrema para que eles renegassem a sua fé. Muitos não chegavam a resistir
às torturas; outros, os que não renegavam, eram simplesmente mortos.
Ora, foi neste final do século I, no contexto da perseguição de
Domiciano que foi escrito o livro do Apocalipse, embora uma parte do texto
seja ainda sobre as perseguições de uns anos antes, decretadas por Nero.
Foi escrito para as comunidades que se espalhavam pelo Império e eram
perseguidas mortalmente por causa da sua fé, sobretudo para as da Ásia (Ap
1, 4) como mensagem de esperança e consolação. O objectivo era
reconfortá-las nos seus sofrimentos e renovar-lhes a certeza de que Deus é
Fiel, assim o revelou na ressurreição de Jesus, e por isso também havia de
manifestar a Sua Fidelidade poderosa para com aqueles que eram
perseguidos por continuarem a ser fiéis à sua fé.
Além destas dificuldades “externas” que eram as perseguições, as
comunidades começavam também a enfrentar outros tipos de dificuldades,
mais “internas”: a diminuição do primeiro amor (Ap 2, 2-4), os falsos líderes
que se apresentavam como Apóstolos sem o serem e que com as suas
doutrinas falsas desnorteavam a comunidade (Ap 2, 6. 15-16), o seguimento
por parte de alguns cristãos de outras religiões do Império (Ap 2, 20)…
Enfrentando já tantos anos de perseguição, vendo os irmãos na fé a
ser mortos nos coliseus do Império, os cristãos começavam a perguntar
desesperadamente: “Tu, Senhor, até quando esperarás?!” (Ap 6, 10).
O livro do Apocalipse é a resposta a esta pergunta, a revelação (é
exactamente esta a tradução da palavra grega apocalipse: Ap 1, 1) de que,
apesar de não se ver claramente, a história estava nas mãos de Deus e do
Seu Cordeiro (Jesus Cristo), e que a libertação já não demoraria muito: “O
tempo está próximo…” (Ap 1, 3).
Esta é, com efeito, a Boa Nova do livro do Apocalipse em tempo de
perseguição: O tempo está próximo! Deus tem nas Suas mãos as nossas
vidas e a nossa história!
Entendemos, assim, que o Apocalipse é uma Revelação de Deus ao
Seu povo para lhe dar conforto, esperança e firmeza na certeza absoluta do
Seu Amor poderoso, mais poderoso que o poder de Roma. Por isso, quem o
usar para meter medo ou falar de um Deus que assusta, está a falseá-lo
totalmente!
- Símbolos que são linguagem bíblica
No calor da perseguição, eis que surge esta Revelação (Apocalipse) de
Boa Nova para o povo perseguido: Deus é o Senhor da história! Ele entregou
todo o Seu poder a Jesus, a quem ressuscitou, para agora Ele conduzir o Seu
povo em direcção à festa da vitória final, sonhada, preparada e prometida por
Deus. Os opressores vão ser derrotados e o povo vai ser libertado!
Mas, hoje, ao lermos o livro, esta Boa Nova parece passar-nos ao lado.
Fala numa linguagem que não se entende… linha após linha aparecem visões
de um outro mundo, irreal, impossível! Animais com seis asas, cobertos de
olhos por dentro e por fora (Ap 4, 8), um Cordeiro com sete chifres e sete
olhos (Ap 5, 6), uma besta com dez chifres e sete cabeças (Ap 13, 1) e cujo
número é 666 (Ap 13, 18), uma cidade que desce do céu (Ap 21, 2)...
Além das visões, o texto também está cheio de números, os típicos da
simbologia bíblica mas que a nós hoje muitas vezes nos escapam: 3, 4, 10,
12, 1000, e algumas combinações simbólicas: 7 (3+4), 40 (4x10), 144000
(12x12x1000), etc.
E perguntamo-nos pelo porquê de toda esta linguagem…
Em tempo de perseguição todo o cuidado é pouco. Quando há algo a
comunicar, tem que se ter a certeza que só vão entender as pessoas que
queremos que entendam. Há códigos, tipos de linguagem, símbolos e
imagens que só os “companheiros de caminhada” entendem (Ap 14, 3)…
Dizer que Cristo daria a vitória aos seus, à Igreja, e que Nero era servo
de Satanás, assim às claras, era quase um suicídio… Por isso, no
Apocalipse, Cristo é na maior parte das vezes chamado de Cordeiro (Ap 14,
1), a Igreja é uma Mulher (Ap 12, 1-6), e Nero é chamado de… Besta (Ap 13)!
Para vermos como os símbolos são subtis, diz o texto: “Aqui é preciso
sabedoria… o que é inteligente decifre o número da Besta, que é um número
de homem; o seu número é 666…” (Ap 13, 18). No alfabeto hebraico, a todas
as letras corresponde um número, de modo que uma palavra proporciona
sempre uma soma, que é o valor numérico dessa palavra. Ora, em hebraico,
666 é o valor numérico das palavras Nero César!
De igual modo, quando fala da “grande prostituta”, comparando-a à
Babilónia do Antigo Testamento (Ap 17, 5), o livro fala claramente de Roma.
“Claramente”, como quem diz… “Vi uma mulher montada numa Besta cor de
escarlate, coberta de nomes blasfemos e com sete cabeças e dez chifres (o
chifre é símbolo do poder)… Aqui é preciso inteligência e sabedoria: as sete
cabeças são as sete colinas onde a mulher está sentada…” (Ap 17, 3-9). Para
bom entendedor, meia palavra basta…
Os cristãos das comunidades sabiam muito bem o que significava a
cidade da Babilónia na história do povo bíblico, e sabiam muito bem que
Roma é a cidade das sete colinas…
Este é o estilo de mensagem dos tempos de opressão. Revelam a Boa
Nova aos oprimidos, e fogem ao entendimento dos opressores.
Um dos motivos pelos quais a mensagem escapava aos opressores é
exactamente o mesmo pelo qual escapa hoje à maior parte das pessoas: por
desconhecimento dos símbolos e da linguagem bíblica. O livro do
Apocalipse é o escrito do Novo Testamento que mais recorre a palavras e
imagens do Antigo, sobretudo retiradas dos escritos de tipo apocalíptico
como o livro de Daniel, e partes de Zacarias, Ezequiel e Isaías. Na bíblia, os
números falam e as imagens substituem discursos.
Nós, descendentes do pensamento grego, adoramos definições,
discursos, palavras, argumentos… Mas o estilo bíblico não é esse; a sua
força são as parábolas, os símbolos e as imagens. Para nós podem as
verdades ficar escondidas sob os símbolos e imagens de uma cultura que
não a nossa, porque não as conhecemos ao ponto de as decifrar, mas para
alguém que conheça a fundo determinada cultura, as suas imagens são
muito mais eloquentes que os discursos, e os símbolos ficam melhor
gravados que os argumentos
racionais. Vejamos:
“Voltei-me para ver de quem era a voz que me falava. E, ao voltar-me,
vi sete candelabros de ouro; no meio dos candelabros vi alguém com
aparência humana; estava vestido de uma túnica comprida até aos pés e
cingido com um cinto de ouro em torno do peito; a sua cabeça e os seus
cabelos eram brancos, como a brancura da lã e da neve; os seus olhos eram
como uma chama de fogo; os seus pés assemelhavam-se ao bronze
incandescente numa forja, e a sua voz era como o rumor das águas
caudalosas; Ele tinha na mão direita sete estrelas e da sua boca saía uma
aguda espada de dois gumes; o seu rosto era como o sol resplandecente
com toda a sua força.” (Ap 1, 12-16).
Os sete candelabros são as sete comunidades, no meio das quais está
Jesus Ressuscitado. A túnica longa é símbolo do seu sacerdócio, isto é, da
sua missão de Mediador entre Deus e os Homens; o cinto de ouro em torno
do peito é símbolo da sua realeza; os cabelos brancos simbolizam a sua
sabedoria; os olhos como chamas de fogo simbolizam a profundidade e a
força transformadora do seu olhar e os pés de bronze a sua firmeza e
invencibilidade. A sua voz forte como o rumor das águas caudalosas
simboliza o seu poder e o seu domínio. As setes estrelas simbolizam os
responsáveis das sete comunidades (Ap 1, 20: os “anjos das sete igrejas”
são os Episcopos, os líderes e primeiros responsáveis das comunidades;
literalmente, episcopos significa “o que vê, o que vela”), e a espada que sai
da sua boca é a Palavra de Deus. O rosto como o sol simboliza a sua
autoridade e a supremacia sobre toda a criação.
A partir de cada símbolo, poderíamos agora desenvolver páginas e
páginas, comentando, argumentando, discursando… esse é o nosso estilo!
Mas não o da Bíblia.
Na imagem está tudo dito para aqueles que estão dentro das suas
simbologias. Como era o caso das comunidades às quais o Apocalipse se
dirigia.
56 -
A Palavra definitiva da nossa História é
Jesus Cristo quem a diz
Depois de mandar uma carta para cada comunidade confirmando ou
corrigindo como lá se vivia, o livro introduzia essas comunidades numa
visão na qual lhes seria revelado o sentido da história e a certeza de que era
Jesus Cristo Ressuscitado quem a controlava.
A Palavra definitiva da nossa história é Jesus Cristo quem a diz…
Depois de mandar uma carta para cada comunidade (Ap 2-3)
confirmando ou corrigindo como lá se vivia, o livro introduzia essas
comunidades numa visão (Ap 4, 1) na qual lhes seria revelado o sentido da
história e a certeza de que era Jesus Cristo Ressuscitado quem a controlava.
Era essa a Boa Nova que os cristãos precisavam de escutar, num tempo em
que a história, nos seus acontecimentos e opressões, os esmagava…
O grande símbolo da história a ser revelada é o “livro selado com sete
selos” (Ap 5, 1). Esse livro continha o rumo da história, mas ninguém o podia
abrir, ou seja, ninguém a podia controlar. Até que, na visão, aparece um
Cordeiro, de pé, mas com as marcas de ter sido imolado (Jesus, o
crucificado-ressuscitado), o qual recebeu o livro da mão direita do que
estava sentado no trono, isto é, Deus-Pai (Ap 5, 3-7). É ele, Jesus Cristo que,
pela sua ressurreição, toma nas mãos a nossa história, isto é, abre os selos
(Ap 6, 1). Cada selo corresponde a uma etapa da história.
Os quatro primeiros são abertos, relativos a etapas passadas. Mas o
quinto selo tinha uma importância central para as comunidades que estavam
“imersas na visão”: é neste quinto selo que aparece a perseguição que os
cristãos estavam a viver no fim do século I. Ouviram-se as vozes dos que
sofriam: “Até quando?”, e ouviu-se também a voz da consolação e da
esperança: “Só mais um pouco… está quase a acabar…” (Ap 6, 9-11).
Com a abertura do sexto selo, começam a contemplar o futuro glorioso
que virá depois da perseguição. É este futuro que lhe dá sentido, porque
revela qual vai ser a missão do povo agora perseguido. A etapa deste sexto
selo segue a linha do Dia da Ira de Deus esperado e anunciado pelo Antigo
Testamento como intervenção de Deus na história para condenar os
opressores e glorificar os justos.
Além desta, outra simbologia do Antigo Testamento é a do povo a ser
marcado no Egipto antes do êxodo para que as pragas não atingissem as
suas casas. Agora, também todos os “servos de Deus” (Ap 7, 3-4) serão
marcados para que os executores da Ira Divina decretada na abertura do
sexto selo não lhes toquem.
O número dos marcados, ou seja, dos salvos, é de 144000
(12x12x1000), o que simboliza a multidão incontável (1000) dos justos do
Antigo Testamento (12 tribos de Israel) e do Novo Testamento (12 apóstolos).
Neste sexto selo, imediatamente a seguir ao selo correspondente à etapa da
perseguição, os opressores fogem apavorados, o povo é assinalado por
Deus e libertado, “Deus abriga-os na Sua tenda, não passam nunca mais
fome nem sede, nem o sol nem o calor ardente cairão sobre eles, porque o
Cordeiro que está no meio do trono os apascentará a conduzirá às fontes da
água viva; e Deus enxugará todas as lágrimas dos seus olhos.” (Ap 7, 15-17).
Num tempo de choro, é esta a Boa Nova de consolação que o livro do
Apocalipse revela…
“Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo fez-se no céu um silêncio de
cerca de meia hora…” (Ap 8,1). É o começo do fim! Aparecem sete anjos,
com sete trombetas. Cada uma corresponde a uma praga que vai assolar a
terra para “destruir os que a corrompiam e recompensar os que se
mantiveram fiéis a Deus” (Ap 11, 18). Fazendo o paralelo com as pragas que
Deus enviou ao Egipto, também aqui elas correspondem à última etapa antes
da libertação definitiva. A sétima praga, a última, é a praga da Ira de Deus
contra todos os que lutaram contra os Seus servos na história. Começa a
etapa do julgamento de Deus às nações e a todos aqueles que as
corromperam (Ap 11, 15-18). A partir daqui, o livro desenvolve todo o
julgamento de Deus aos opressores do Seu povo, durante dez capítulos!
São ricos de imagens e simbolismos para demonstrar a vitória do
Cordeiro sobre a Grande Prostituta, a Babilónia (o Império Romano) e o
castigo que Deus aplica ao Dragão (Satanás, símbolo do mal) e a todas as
suas Bestas (servos do Dragão, os Imperadores e todos os que usavam o
seu poder para oprimir).
Ao lerem estes capítulos, o coração daqueles perseguidos certamente
palpitava mais forte na ansiedade de se verem de uma vez libertos da
opressão e do medo…
57 -
"E viveram felizes para sempre..."
O livro do Apocalipse é como uma elaborada história infantil, em que
há reis maus e príncipes bons, bruxas más e inocentes mal tratados, onde
tudo parece correr mal, onde parece que os maus ganham todas as batalhas
e levam sempre a melhor mas… no fim, lá aparece algum cavaleiro
encantado que dá a volta ao texto e castiga os maus, enquanto que ele e os
bons ficam a viver felizes para sempre!
E viveram felizes para sempre…
O livro do Apocalipse é como uma elaborada história infantil, em que
há reis maus e príncipes bons, bruxas más e inocentes mal tratados, onde
tudo parece correr mal, onde parece que os maus ganham todas as batalhas
e levam sempre a melhor mas… no fim, lá aparece algum cavaleiro
encantado que dá a volta ao texto e castiga os maus, enquanto que ele e os
bons ficam a viver felizes para sempre!
Os dois capítulos finais do Apocalipse são autênticas linhas de uma
história encantada. “Eu vi um novo céu e uma nova terra! O primeiro céu
(lugar de silêncio) e a primeira terra (lugar de sofrimento) tinham
desaparecido, e o mar (símbolo do mal) já não existia!” (Ap 21, 1).
O próprio Cordeiro canta a vitória e a alegria de ter consigo o Seu
povo, livre da injustiça e da opressão: “Esta é a morada de Deus entre os
homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo, e o próprio Deus
estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus
olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. Porque as
primeiras coisas passaram! E depois, o que estava sentado no trono,
afirmou: Eu faço novas todas as coisas!” (Ap 21, 3-5)
Na nova criação tudo é Luz naquele que é Luz! Já não existe a noite
(Ap 21, 25), nem a escuridão porque o próprio Deus brilha sobre todos (Ap
22, 5). “Nem a cidade tão pouco precisa de sol ou de lua para a iluminar, pois
a glória de Deus a ilumina e a sua lâmpada é o Cordeiro” (Ap 21, 23).
E “no meio da praça da cidade, nas margens do rio de Água Viva que
saía do trono de Deus e do Cordeiro, está a Árvore da Vida…” (Ap 22, 1-2). Eila aqui, a árvore que nos estava vedada desde o paraíso que abre a Bíblia, a
intimidade com Deus que Adão e Eva tinham impossibilitado pelo seu
pecado (Gen 3, 24). Vida!!! Em abundância para todos e para sempre!!! Eis o
Amor do nosso Deus e a vitória do Seu Cordeiro… Vida em abundância, vida
em plenitude…
Era uma vez um povo e um Deus que o amava profundamente…
Era uma vez um Império mau que fazia sofrer muito esse povo…
Era uma vez um Deus que derrotou os inimigos do Seu povo e
pegou nele ao colo…
Era uma vez um Deus
e um povo que viveram felizes para
sempre!
FI M
Que este trabalho tenha sido proveitoso para ti.
Que te tenha feito gostar, dizemos mais, que te tenha
transformado num apaixonado pela Bíblia.
Fontes:
- Bíblia Sagrada (Franciscanos Capuchinhos)
- O Livro do Leitor (Secretariado Nacional de Liturgia)
- Rui Santiago (Jovens Redentoristas)
- Dei Verbum (Vaticano II)
Colaboração:
- Fernanda Torres e José Meireles (Leigos).
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