Coleção CONPEDI/UNICURITIBA Vol. 15 Organizadores Prof. Dr. Orides Mezzaroba Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr Coordenadores Prof. Dr. Wagner Menezes Profª. Drª. Valesca Raizer Borges Moschen Prof. Dr. Luiz Alexandre Carta Winter DIREITO INTERNACIONAL 2014 2014 Curitiba Curitiba Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE D597 Nossos Contatos São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.br Redes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica Direito internacional Coleção Conpedi/Unicuritiba. Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr. Coordenadores : Wagner Menezes / Valesca Raizer Borges Moschen / Luiz Alexandre Carta Winter. Título independente - Curitiba - PR . : vol.15 - 1ª ed. Clássica Editora, 2014. 500p. : ISBN 978-85-8433-003-4 1. Direitos humanos - econômicos. 2. Normas – meio ambiente. I. Título. CDD 341.16 EDITORA CLÁSSICA Conselho Editorial Allessandra Neves Ferreira Alexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros Vita José Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete Pozzoli Leonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão Equipe Editorial Editora Responsável: Verônica Gottgtroy Capa: Editora Clássica Luiz Eduardo Gunther Luisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-Knoerr Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR MEMBROS DA DIRETORIA Vladmir Oliveira da Silveira Presidente Cesar Augusto de Castro Fiuza Vice-Presidente Aires José Rover Secretário Executivo Gina Vidal Marcílio Pompeu Secretário-Adjunto Conselho Fiscal Valesca Borges Raizer Moschen Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa João Marcelo Assafim Antonio Carlos Diniz Murta (suplente) Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente) Representante Discente Ilton Norberto Robl Filho (titular) Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente) Colaboradores Elisangela Pruencio Graduanda em Administração - Faculdade Decisão Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira Graduada em Administração - UFSC Rafaela Goulart de Andrade Graduanda em Ciências da Computação – UFSC Diagramador Marcus Souza Rodrigues Sumário APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................ 14 A FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO (Alexandre Cardeal de Oliveira Arneiro) 16 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 17 CONCEITUAÇÃO DO DIP ........................................................................................................................... 18 A EVOLUÇÃO DO DIP ................................................................................................................................. 20 OS SUBSISTEMAS EM DIP ......................................................................................................................... 25 O FENÔMENO DA FRAGMENTAÇÃO DO DIP ........................................................................................... 26 CONFLITOS DE NORMAS NO DIP .............................................................................................................. 27 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 29 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 30 A VALIDADE DA NORMA NO DIREITO INTERNACIONAL: BREVES APONTAMENTOS (Gustavo Fernandes Meireles e Renato Barbosa de Vasconcelos) ............................................................................. 33 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................................................ 34 OS VÁRIOS SIGNIFICADOS DE VALIDADE DA NORMA JURÍDICA ........................................................... 35 SOBERANIA E VALIDADE DA ORDEM JURÍDICA ...................................................................................... 39 LEGITIMIDADE COMO CRITÉRIO DE VALIDADE ...................................................................................... 44 LEGITIMIDADE E EFICÁCIA NO DIREITO INTERNACIONAL ..................................................................... 46 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 53 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 54 UMA NOVA ORDEM JURÍDICA A PARTIR DA MUNDIALIZAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS COMO REFLEXO DA SOCIEDADE DO RISCO – O IMPULSO PARA UM DIREITO TRANSNACIONAL E A TRANSFIGURAÇÃO DA SOBERANIA (Adriana Maria Gomes de Souza Spengler) .................................... 57 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 58 A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA COMO MUDANÇA DE PARADIGMA: A SOCIEDADE GLOBAL DE RISCOS DE ULRICH BECK ........................................................................................................................... 59 A INTERFACE ENTRE A SOCIEDADE DO RISCO E A IDÉIA DE SOBERANIA .............................................. 62 UMA NOVA ORDEM JURÍDICA MUNDIAL NA PERSPECTIVA DE JULLIE ALLARD E ANTONIE GARAPON COMO RESPOSTA À SOCIEDADE DO RISCO ............................................................................................. 66 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 69 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 70 AS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS E O PAPEL DO CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS DIANTE DA CONFIGURAÇÃO COSMOPOLITA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS (Vanessa Oliveira Batista e Daniele Lovatte Maia) ...................................................................................................... 72 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 73 A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA COMUNIDADE INTERNACIONAL E O COSMOPOLITISMO ..................... 74 A INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS E O PAPEL DO CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS 79 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 89 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 90 A NATUREZA JURÍDICA DAS DECISÕES DA ASSEMBLEIA GERAL E DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU: A COEXISTÊNCIA ENTRE A OPINIO JURIS E O JUS COGENS (Luísa Cruz Lobato e Rafaela Teixeira Neves) ............................................................................................................................................ 93 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 94 A ESTRUTURA DA ONU ............................................................................................................................. 95 A ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS .......................................................................................... 96 A NATUREZA JURÍDICA E OS EFEITOS DAS RESOLUÇÕES DA ASSEMBLEIA GERAL ............................... 97 O CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU ................................................................................................... 103 O JUS COGENS E AS DECISÕES DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU ............................................. 104 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 109 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 111 O DIREITO INTERNACIONAL E AS ARMAS CONVENCIONAIS: DESAFIOS DE REGULAMENTAÇÃO (Rodrigo Alves Pinto Ruggio) ....................................................................................................................... 113 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 114 A REGULAMENTAÇÃO DAS ARMAS CONVENCIONAIS – AVANÇOS E DESAFIOS ................................... 117 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 127 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 128 A PLURALIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL SOB A PERSPECTIVA DO TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR: O CASO ARA LIBERTAD (Paula Ritzmann Torres e Vivian Daniele Rocha Gabriel) ............................................................................................................................... 130 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 131 DO CASO ARA LIBERTAD E SEUS ANTECEDENTES ................................................................................... 132 O CASO ARA LIBERTAD PERTANTE O TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR ......................... 138 O CASO ARA LIBERTAD COMO LABORATÓRIO PARA A SUPERAÇÃO DA FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL ........................................................................................................................ 146 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 154 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 155 REGIMES INTERNACIONAIS E SOFT LAW: UMA ANÁLISE A PARTIR DA ORGANIZAÇÃO DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA (Carla Cristina Alves Torquato e Erivaldo Cavalcanti e Silva Filho) ........................................................................................................................................................... 159 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 160 REGIME INTERNACIONAL ........................................................................................................................ 160 TEORIAS SOBRE A HEGEMONIA ............................................................................................................... 163 COOPERAÇÃO: SERÁ POSSÍVEL? .............................................................................................................. 164 O TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA ........................................................................................... 166 POSSIBILIDADES DO ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO DENTRO DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA ..................................................................................................................... 171 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 173 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 174 A POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA TRANSFRONTEIRIÇA E O DIREITO INTERNACIONAL AMBIENTAL (Adriano da Silva Felix) .......................................................................................................................... 177 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 177 A POLUIÇÃO DO AR E A PROTEÇÃO DA ATMOSFERA .............................................................................. 180 TEORIA GERAL DA PROTEÇÃO DA ATMOSFERA NO DIREITO INTERNACIONAL AMBIENTAL ................. 182 A POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA ALÉM DAS FRONTEIRAS ............................................................................ 190 AS PRINCIPAIS FONTES INTERNACIONAIS SOBRE POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA TRANSFRONTEIRIÇA ... 193 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 203 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 204 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA BIODIVERSIDADE E SUAS ESPECIFICIDADES: DA INTERNACIONALIZAÇÃO A UM DIREITO COMUM DA HUMANIDADE PELOS INSTRUMENTOS HARD E SOFT LAW (Luize Calvi Menegassi Castro) .................................................................................... 207 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 208 DA PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA BIODIVERSIDADE PELOS INSTRUMENTOS HARD LAW ................. 210 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA BIODIVERSIDADE E SUAS ESPECIFICIDADES DESTINADA A UM DIREITO COMUM PELOS INSTRUMENTOS SOFT LAW ............................................................................ 221 CONCLUSÃO ............................................................................................................................................. 231 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 234 SOBERANIA E DIREITOS HUMANOS: UMA APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA (Ana Paula Morais Galvão e Yara Maria Pereira Gurgel) ....................................................................................................................... 237 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 238 A SOBERANIA COMO ELEMENTO DO ESTADO ........................................................................................ 239 DA EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE SOBERANIA ........................................................................................ 240 RELATIVIZAÇÃO DA SOBERANIA PELA NECESSIDADE DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS ........ 243 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 248 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 250 ASPECTOS DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS SOB O ENFOQUE DO DANO AMBIENTAL (Rosane Sandoval Gonçalves Marini) .................................................................................... 254 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 255 DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS EM GERAL ................................................... 256 DOS SISTEMAS DE RESPONSABILIDADE DOS ESTADOS NO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE – EXCLUDENTES DE RESPOSNSABILIDADE E MEIOS DE REPARAÇÃO ................................. 269 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 280 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 282 OS REFUGIADOS AMBIENTAIS E O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO NA ESFERA DO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE (Diogo Andreola Serraglio e Andréia Mendonça Agostini) ......... 284 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 285 A TUTELA DOS REFUGIADOS PELA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA ..................................................... 285 UMA NOVA CATEGORIA DE REFUGIADOS: OS REFUGIADOS AMBIENTAIS ........................................... 289 O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO NA ESFERA DO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE ....... 295 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 303 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 304 O CASO DAS PAPELEIRAS: A (IM)POSSIBILIDADE DO MEIO AMBIENTE COMO TEMA PRINCIPAL DO LITÍGIO ARGENTINA-URUGUAI (Tatiana de Almeida Freitas R. Cardoso) .......................................... 307 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................... 308 O MEIO AMBIENTE COMO DISCURSO ..................................................................................................... 310 E SE O MEIO AMBIENTE FOSSE UMA REALIDADE? ................................................................................. 320 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 328 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 330 A LEI DE ANISTIA E O CASO ARAGUAIA: ENTRE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (Maurício Gabriele) ......................................................... 335 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 335 TEORIA DO ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO ......................................................................... 342 O JULGAMENTO DA CIDH ......................................................................................................................... 344 O JULGAMENTO DO STF ........................................................................................................................... 347 ENTRE O STF E A CIDH ............................................................................................................................... 349 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 352 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 353 ENTRE COMPROMISSOS CONSTITUCIONAIS E VAZIOS NORMATIVOS: UMA ANÁLISE DA INCORPORAÇÃO DA CONVENÇÃO N.° 169 DA OIT NO DIREITO BRASILEIRO E A PROTEÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS E TRIBAIS (Tatyana Scheila Friedrich e Rafael Soares Leite) ...................................... 358 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 359 A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988: DO MODELO INTEGRACIONISTA PARA UMA PROPOSTA INTERCULTURAL ....................................................................................................................................... 360 A OIT E A PROTEÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS E TRIBAIS ....................................................................... 365 DIÁLOGOS ENTRE O DIREITO BRASILEIRO E A CONVENÇÃO N.° 169 DA OIT ........................................ 372 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 383 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 384 INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA OU RESPONSABILIDADE DE PROTEGER: COMO PARAMETRIZAR TAIS CONCEITOS FRENTE AOS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS (Guilherme Nogueira Soares e Renata Mantovani de Lima) ...................................................................... 387 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 388 OS PARADIGMAS CLÁSSICOS DE CONVIVÊNCIA INTERNACIONAL E SUA INFLUÊNCIA NA CONFECÇÃO DA CARTA DA ONU .................................................................................................................... 389 DO PRINCÍPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO ................................................................................................... 393 INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA OU RESPONSABILIDADE DE PROTEGER? ............................................. 395 DA ANTINOMIA ENTRE NÃO-INTERVENÇÃO E INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA .................................... 398 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 401 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 402 CRIMES FINANCEIROS E A CRIMINALIDADE ORGANIZADA TRANSNACIONAL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A EXPANSÃO INTERNACIONAL DO DIREITO PENAL (Fillipe Azevedo Rodrigues e Kathy Aline de Medeiros Silva) ...................................................................................................................................... 405 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 406 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A ORDEM FINANCEIRA BRASILEIRA ................................................ 407 TUTELA PENAL DA ORDEM FINANCEIRA ................................................................................................. 408 O FENÔMENO DA GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA E A EXPANSÃO INTERNACIONAL DO DIREITO PENAL ........................................................................................................................................................ 415 COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL E O PRINCÍPIO DA COMPLEMENTARIDADE DO DIREITO PENAL ........................................................................................................................................................ 418 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 423 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 424 MERCOSUL E ACORDOS ENTRE BLOCOS: PERSPECTIVAS E NOVAS CLÁUSULAS EM ACORDOS DE COMÉRCIO (Michele Alessandra Hastreiter e Luís Alexandre Carta Winter) .............................................. 428 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 429 PANORAMA ATUAL DA INTEGRAÇÃO REGIONAL ................................................................................... 430 INTEGRAÇÃO NO MERCOSUL E TENTATIVAS DE ACORDO COM A UNIÃO EUROPEIA ............................... 432 NOVOS TEMAS EM ACORDOS DE COMÉRCIO E PERSPECTIVAS PARA OS ACORDOS ENTRE BLOCOS . 437 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 442 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 444 O NOVO REGIME AUTOMOTIVO BRASILEIRO E O ACORDO SOBRE SUBSÍDIOS E MEDIDAS COMPENSATÓRIAS DA OMC (Juliana Marteli Fais Feriato) ...................................................................... 446 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 447 O NOVO REGIME AUTOMOTIVO BRASILEIRO: PROGRAMA INOVAR-AUTO ......................................... 448 INCENTIVOS FISCAIS: CONCEITO E MODALIDADES ................................................................................ 450 SUBSÍDIOS NA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO ..................................................................... 453 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 462 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 464 NATUREZA JURÍDICA DA SOBREESTADIA NO DIREITO BRASILEIRO (Camila Schiffler Nobell Gabardo e Guilherme Dorigo Tomedi) ....................................................................................................................... 468 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 469 NATUREZA JURÍDICA DA SOBREESTADIA ................................................................................................ 470 A NATUREZA JURÍDICA DA SOBREESTADIA NO DIREITO FRANCÊS ........................................................ 483 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 485 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 487 O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO ENTRE OS POVOS EM TEMPOS DE CRISE ECONÔMICA. O MECANISMO EUROPEU DE ESTABILIZAÇÃO E O POSICIONAMENTO DA CORTE CONSTITUCIONAL FEDERAL ALEMà – REFLEXOS NA UNIÃO EUROPEIA E NO BRASIL (Daniel Leão Hitzschky Madeira) .. 491 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 491 BREVE APORTE SOBRE A CONSOLIDAÇÃO DA UNIÃO EUROPEIA E O DIREITO COMUNITÁRIO EUROPEU ................................................................................................................................................... 493 A CRISE ECONÔMICA GLOBAL E SUA INCIDÊNCIA SOBRE O CONTINENTE EUROPEU ............................... 499 O MECANISMO EUROPEU DE ESTABILIZAÇÃO E O POSICIONAMENTO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DA ALEMANHA .......................................................................................................... 501 A COOPERAÇÃO ENTRE OS POVOS COMO PRINCÍPIO DE POLÍTICA INTERNACIONAL DO ESTADO BRASILEIRO ............................................................................................................................................... 504 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 506 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 507 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Caríssimo(a) Associado(a), Apresento o livro do Grupo de Trabalho Direito Internacional, do XXII Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI), realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias 29 de maio e 1º de junho de 2013. O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito, nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas. Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos, tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos. Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2) aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiramnos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores 11 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido mais difícil. Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto para eventos. O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de 2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que inserirem seus dados. Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –, mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da segunda versão, disponível em 2014. Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05, além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07. 12 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras parcerias e editais para a área do Direito. Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro. Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais. Curitiba, inverno de 2013. Vladmir Oliveira da Silveira Presidente do CONPEDI 13 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Apresentação A coletânea dos artigos do GT de direito internacional do XXII Encontro Nacional do CONPEDI, trabalhou com temas atuais e importantes no cenário das relações humanas. Os artigos refletem parte importante do que é pesquisado na academia, no âmbito do direito internacional como estado da arte. Por uma questão didática, estes foram divididos em quatro grandes eixos temáticos, a saber: O primeiro trabalhando o direito internacional como norma, compreendendo os artigos: A FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO; A VALIDADE DA NORMA NO DIREITO INTERNACIONAL: BREVES APONTAMENTOS; UMA NOVA ORDEM JURÍDICA A PARTIR DA MUNDIALIZAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS COMO REFLEXO DA SOCIEDADE DO RISCO – O IMPULSO PARA UM DIREITO TRANSNACIONAL E A TRANSFIGURAÇÃO DA SOBERANIA; AS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS E O PAPEL DO CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS DIANTE DA CONFIGURAÇÃO COSMOPOLITA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS; A NATUREZA JURÍDICA DAS DECISÕES DA ASSEMBLEIA GERAL E DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU: A COEXISTÊNCIA ENTRE A OPINIO JURIS E O JUS COGENS; O DIREITO INTERNACIONAL E AS ARMAS CONVENCIONAIS: DESAFIOS DE REGULAMENTAÇÃO; e A PLURALIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL SOB A PERSPECTIVA DO TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR: O CASO ARA LIBERTAD; REGIMES INTERNACIONAIS E SOFT LAW: UMA ANÁLISE A PARTIR DA ORGANIZAÇÃO DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA. O segundo eixo, trabalha o direito internacional do meio ambiente, compreendendo os artigos: A POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA TRANSFRONTEIRIÇA E O DIREITO INTERNACIONAL AMBIENTAL; A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA BIODIVERSIDADE E SUAS ESPECIFICIDADES: DA INTERNACIONALIZAÇÃO A UM DIREITO COMUM DA HUMANIDADE PELOS INSTRUMENTOS HARD E SOFT LAW; SOBERANIA E DIREITOS HUMANOS: UMA APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA; ASPECTOS DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS SOB O ENFOQUE DO DANO AMBIENTAL; OS REFUGIADOS AMBIENTAIS E O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO NA 14 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional ESFERA DO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE; O CASO DAS PAPELEIRAS: e A (IM)POSSIBILIDADE DO MEIO AMBIENTE COMO TEMA PRINCIPAL DO LITÍGIO ARGENTINA-URUGUAI. O terceiro eixo trabalha sobre direitos humanos e intervenção, compreendendo os artigos: A LEI DE ANISTIA E O CASO ARAGUAIA: ENTRE INTERAMERICANA O DE SUPREMO TRIBUNAL DIREITOS HUMANOS; FEDERAL ENTRE E A CORTE COMPROMISSOS CONSTITUCIONAIS E VAZIOS NORMATIVOS: UMA ANÁLISE DA INCORPORAÇÃO DA CONVENÇÃO N.º 169 DA OIT NO DIREITO BRASILEIRO E A PROTEÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS E TRIBAIS; e INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA OU RESPONSABILIDADE DE PROTEGER: COMO PARAMETRIZAR TAIS CONCEITOS FRENTE AOS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS. Finalmente, o quarto eixo trabalha sobre as vertentes do direito internacional econômico, compreendendo os artigos: CRIMES ORGANIZADA TRANSNACIONAL: FINANCEIROS CONSIDERAÇÕES E A SOBRE CRIMINALIDADE A EXPANSÃO INTERNACIONAL DO DIREITO PENAL; MERCOSUL E ACORDOS ENTRE BLOCOS: PERSPECTIVAS E NOVAS CLÁUSULAS EM ACORDOS DE COMÉRCIO; O NOVO REGIME AUTOMOTIVO BRASILEIRO E O ACORDO SOBRE SUBSÍDIOS E MEDIDAS COMPENSATÓRIAS DA OMC; NATUREZA JURÍDICA DA SOBREESTADIA NO DIREITO BRASILEIRO; e O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO ENTRE OS POVOS EM TEMPOS DE CRISE ECONÔMICA. O MECANISMO EUROPEU DE ESTABILIZAÇÃO E O POSICIONAMENTO DA CORTE CONSTITUCIONAL FEDERAL ALEMà – REFLEXOS NA UNIÃO EUROPEIA E NO BRASIL. Boa leitura. Coordenadoras do Grupo de Trabalho Professor Doutor Wagner Menezes – USP Professora Doutora Valesca Raizer Borges Moschen – UFES Professor Doutor Luiz Alexandre Carta Winter – PUC PR 15 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO FRAGMENTATION OF INTERNATIONAL LAW Alexandre Cardeal de Oliveira Arneiro1 RESUMO A recente proliferação de organizações internacionais implicou na existência de uma pluralidade de regimes jurídicos, situação que é denominada de fragmentação do Direito Internacional Público (DIP). Este artigo tem por objetivo situar o fenômeno da fragmentação do DIP historicamente, problematizá-lo e conceituá-lo. O método adotado foi dedutivo e dialético, o que permitiu o diálogo entre referências das literaturas nacional e estrangeira. O DIP passou por uma mudança de paradigma na segunda metade do século XX: a coexistência cedeu lugar à cooperação, uma vez que as negociações internacionais se tornaram mais frequentes, e as diversas questões precisavam ser tratadas de modo específico pela comunidade internacional, dando lugar à difusão das organizações internacionais. A inerente falta de unidade do DIP se tornou um problema ainda maior, chamado fragmentação do DIP. A conclusão é que as teorias da fragmentação do DIP merecem acolhida, a fim de que a Academia proporcione meios de diálogo entre os subsistemas, conferindo ao DIP maior coerência e, em última instância, a promoção da cooperação internacional. PALAVRAS-CHAVE: Fragmentação do Direito Internacional Público; Direito Internacional Público; Subsistemas de Direito Internacional Público. ABSTRACT Recent proliferation of international organizations has given rise to a plurality of legal regimes, and this situation is entitled as fragmentation of Public International Law. This paper to situate the phenomenon of fragmentation of Public International Law in history, to analyse it and to conceptualise it. The method adopted was deductive and dialectic, and this permitted the dialogue between references of national and foreign literature in Public International Law. Public International Law had a change of paradigm in the second half of 20 th century: coexistence was succeeded by cooperation, because international negotiations became more frequent and plenty of issues needed to be specifically tackled by international community, yielding dissemination of international organizations. The inherent lack of unity in Public International Law became a greater problem, so-called fragmentation of Public International Law. The conclusion is theories on fragmentation of Public International Law should be embraced in order to permit Academia to proportionate dialogue channels amongst systems, giving more coherence to Public International Law and chiefly fostering international cooperation. KEY-WORDS: Fragmentation of Public International Law; Public International Law; Subsystems of Public International Law. 1 Bacharel em Direito pela PUC-SP. Bacharelando em Ciências Sociais pela USP. Advogado em São Paulo 16 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Introdução O Direito Internacional Público (DIP) é uma disciplina que guarda forte correspondência com as relações jurídicas estabelecidas entre os atores da comunidade internacional, na qual o Estado tem papel preponderante, mas não isolado da importância das decisões das organizações internacionais e da atividade dos particulares. Com o advento da globalização, o DIP passou por uma quebra de paradigma: o DIP clássico deu lugar ao DIP contemporâneo (ou moderno), sob influência das relações jurídico-internacionais que se estabeleceram no pós-guerra, marcadas pela emergência das organizações internacionais. No DIP clássico, conflitos entre normas poderiam vir de incompatibilidades entre uma norma estabelecida entre o Estado “A” e o Estado “B” e outra estabelecida entre o Estado “A” e o Estado “C”. Havia apenas um órgão jurisdicional internacional, que era a Corte Permanente de Justiça Internacional. Logo, a possibilidade de conflitos entre normas de DIP ficava restrita a normas bilaterais, numa época em que o Estado tinha um número limitado de contratantes, já que a economia internacional ainda não tinha sido atingida pela globalização. Nem sequer podia-se falar de divergência de entendimento entre tribunais internacionais, pois a justiça internacional estava concentrada na Corte Permanente de Justiça Internacional. No DIP moderno, os conflitos entre normas foram potencializados por uma série de fatores. A setorização do DIP, a criação de organizações internacionais e a globalização influenciaram decididamente a criação de regimes jurídicos dentro do DIP e a existência de diferentes tribunais internacionais. Se o fim da Guerra Fria poderia sinalizar a sistematização das relações jurídicas internacionais, por meio da expansão do capitalismo, e a consequente sistematização das relações jurídico-internacionais, o que se tem visto é o contrário: a criação de novos regimes jurídicos e a submissão de controvérsias a tribunais internacionais específicos têm esvaziado a jurisdição efetivamente exercida pela Corte Internacional de Justiça (CIJ). A motivação deste artigo tem abrigo na importância do tema para uma compreensão holística, mas não pormenorizada, do DIP contemporâneo. É indiscutível que o DIP atual não é o mesmo do modelo clássico, mas certas questões como a resolução de conflitos entre normas do DIP continuam atuais e seu debate segue vivo na Academia. Sumarizar esse debate será o grande desafio desta Monografia. A fragmentação do DIP é um fenômeno recente no DIP, fruto da evolução do DIP no pós-Segunda Guerra Mundial. Investigá-lo necessitará tratar inicialmente da conceituação do 17 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional DIP e de sua evolução. Apresentado o panorama histórico, identificaremos a origem dos subsistemas em DIP, para em seguida caracterizar o fenômeno da fragmentação do DIP e discutir a respeito de conflitos de normas de DIP resultantes desse fenômeno. 1 Conceituação do DIP O DIP é uma matéria que muda conforme a comunidade internacional se transforma, pois são as relações jurídicas nela havidas o objeto do seu estudo. O conceito do DIP jamais conseguirá ser estático, não obstante há elementos informadores da comunidade internacional que dificilmente se alterarão um dia, por lhe serem inerentes. Preliminarmente, cumpre ressaltar que determinar o conceito de um objeto na ciência jurídica significa expressar uma argumento de autoridade sobre o direito e, mesmo assim, não conseguir alcançar qualquer valor legal. Há certas particularidades do DIP que devem ser identificadas para fixação do seu conceito. Em primeiro lugar, a falta de autoridade central e a descentralização das funções legais representam a principal característica do DIP, em oposição ao Direito interno. A figura do Estado, tipicamente, possui monopólio da coerção e abriga a tripartição do Poder. Em oposição, na comunidade internacional, nenhum Estado até o momento é capaz de exercer sua força sobre toda a comunidade internacional, pois o poder é fragmentado e disperso2. As relações entre os Estados permanecem fortemente horizontais, ainda mais atualmente, em que a relação entre os Estados, empresas multinacionais, ONGs e indivíduos é mais intensa e complexa. Os esforços para a construção de uma governança global, como a inserção do princípio do jus cogens na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, não conseguem afastar a relativa anarquia que prepondera sobre as estruturas centrais de gestão. Antonio Cassese3 identifica como principal consequência da estrutura horizontal da comunidade internacional o estágio embrionário em que se situam as regras organizacionais. Não há qualquer norma do DIP que submeta a comunidade internacional a um organismo que concentre as três funções do Estado. Os Estados atuam internacionalmente segundo seus interesses, e não em favor da comunidade internacional, de modo que o DIP é construído, seja por meio de tratados ou do costume, consoante fatores políticos e econômicos. Em função da ausência de uma autoridade central na comunidade internacional, decorrem outros elementos inerentes ao DIP, que permitem associar a ordem jurídica 2 3 CASSESE, Antonio. International Law. 2ª ed. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 7. CASSESE, Ibid., p. 7 18 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional internacional à ordem jurídica primitiva, entre os quais destacamos a aplicação das normas gerais aos casos concretos, pois não há um órgão jurisdicional centralizado com competência universal para dirimir conflitos de interesses entre Estados. Por isso, um Estado que alega ter sido prejudicado pela conduta ilícita de outro Estado, não conseguindo êxito na autocomposição, vê-se livre a coagir o outro Estado a parar de lesioná-lo ou a reparar o prejuízo sofrido, ainda que dessa forma venha a cometer, de sua parte, um ilícito4. O mecanismo de autodefesa ainda é possível, e essa é, precisamente, o principal elemento da ordem jurídica primitiva que o Estado de Direito, em seus primórdios, buscou combater. Diferentemente, no Direito doméstico, as pessoas que alegam ter tido sua esfera de direitos violada podem peticionar perante os órgãos públicos para solução do conflito e aplicação da sanção prevista em lei. Em oposição, no DIP, é o próprio Estado que se sentiu violado que, na maioria das vezes, aplicará a sanção, sem depender do julgamento de um terceiro5. Excepcionalmente, há costumes e tratados do DIP que identificam imediatamente o sujeito dos deveres, sem necessitar de intermédio da ordem jurídica estadual. Nesses casos, as sanções deixam de ser mecanismos de autodefesa, e passam a ser semelhantes àquelas previstas pelo Direito doméstico, com previsão de pena e processo executivo próprio. A responsabilização individual pode ser prevista no DIP ou sua definição é atribuída aos órgãos estatais. Sua aplicação pode se dar pela jurisdição estadual ou por um tribunal internacional específico. Nesse aspecto, Hans Kelsen destaca a criação de órgãos centrais em “comunidades jurídico-internacionais particulares”6 – quis ele se referir às atuais “organizações internacionais” – num movimento de centralização e de estabelecimento de uma jurisdição internacional. Essa observação é da maior importância para a discussão que propomos neste trabalho, pois a perspectiva da 3ª edição de Teoria Pura do Direito não reflete o desenvolvimento do DIP no período pós-guerra. Hans Kelsen previa a centralização da jurisdição internacional, mas a história contemporânea do DIP revela o contrário: a emergência de uma pluralidade de tribunais internacionais, um dos elementos que fazem compor o conceito de “fragmentação do direito internacional”. 4 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006 [1960], p. 357. 5 KELSEN, Ibid, p. 358 6 KELSEN, Ibid, p. 364. 19 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 2 A evolução do DIP O DIP conheceu novos paradigmas com o fim da Segunda Guerra Mundial, dando lugar a uma “nova ordem jurídica internacional”7, com reflexos não só no mundo do Direito, como também na sociedade. Os Estados convieram em abandonar o modelo de sociedade internacional até então vigente, caracterizada como “altamente nacionalista e estatal”8, inaugurando uma ordem jurídica sedimentada pelo pluralismo, respeito aos direitos do Homem e cooperação para o desenvolvimento e a paz. A apresentação da evolução do DIP tem como elementos necessários o período pós-Segunda Guerra Mundial, o surgimento das organizações internacionais e um novo processo de produção normativa. 2.1 O período pós-Segunda Guerra Mundial O período pós-Segunda Guerra Mundial, na perspectiva do DIP, tem início na celebração da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), em São Francisco, Estados Unidos da América (EUA), no ano de 1945. A importância desse ato tem fundamento na criação da primeira organização internacional com vocação universal e com o objetivo de tratar dos problemas mundiais relativos à consecução da paz mundial, ao desenvolvimento e ao respeito aos direitos humanos. Não obstante a anterioridade da Liga das Nações, da Organização Internacional do Trabalho e a da Organização dos Estados Americanos, nenhuma delas poderia ser colocada no mesmo patamar que a ONU, que, em razão dos objetivos estabelecidos em seu tratado constitutivo, permanece singular a nível universal. Na verdade, a criação da ONU é início do movimento de criação de organizações internacionais, a nível universal ou regional. De um modo geral, os tratados constitutivos das organizações internacionais preveem a criação de atos normativos vinculantes aos Estadosmembros e a seus órgãos internos, o que pode ser traduzido num regime jurídico próprio. Por vezes, o tratado constitutivo também prevê uma estrutura interna competente para solução de conflitos entre os seus membros, em relação a direitos e obrigações previstos nos tratados ou atos normativos que compõem esse regime jurídico. Em resumo, uma organização internacional pode trazer consigo regime jurídico e jurisprudência próprios, que podem ser incompatíveis com o regime jurídico e jurisprudência de outra organização internacional, resultando, assim, num risco inafastável à unidade e segurança jurídica no DIP. 7 8 MENEZES, Wagner. Ordem Global e Transnormatividade. Ijuí-RS: Unijuí, 2005, p. 39. MENDEZES, Ibid, p. 40. 20 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A ideia de união ou aliança entre Estados para atender determinados interesses não é próprio da história contemporânea, e um dos primordiais exemplos é a Liga de Delos (476 a 450 a.C.). Entretanto, tomando em consideração a figura do Estado moderno, preconizada pela Paz de Vestefália, só se pode admitir a partir de 1945, quando foi criada a ONU, a existência de uma união entre Estados com caráter universal e com o objetivo de manter a paz mundial, promover o desenvolvimento e o respeito aos direitos humanos e a redução das desigualdades entre os povos. O preâmbulo da Carta da ONU justifica a concepção de uma nova ordem internacional, havendo sido ratificada por todos os Estados-Partes e aberto à adesão de outros Estados. Assim, a Carta da ONU ganhou autoridade ao sedimentar a renúncia à guerra, o respeito aos tratados e outras fontes de DIP, estabelecendo, desse modo, uma ordem mundial assentada sobre o DIP. Nesse sentido, Clarisse Laupman Ferraz Lima observa que: “[p]ara manter a paz, primeiro temos que conquistá-la, o que para a ONU significa buscar solução para os possíveis conflitos através de meios diplomáticos e soluções pacíficas de controversas diversas, de forma que se ponha fim às hostilidades através de acordos e sem a necessidade do que chamaríamos de ‘vias de fato”9 . 2.2 Surgimento das organizações internacionais Wagner Menezes10 afirma que o sucesso das negociações internacionais pela criação da ONU impulsionou a comunidade internacional a criar novas organizações internacionais, no sentido de concertar os Estados para deliberação e cooperação sobre as mais diversas pertinências – militar, política, econômica, técnica, social –, seja a nível universal ou regional. O advento das organizações internacionais se deve, segundo Ricardo Seitenfus11, ao desenvolvimento da cooperação internacional. Com a evolução do comércio internacional, as negociações se intensificaram em periodicidade e aumentaram em número de participantes, dando origem ao modelo do “multilateralismo”. Foi preciso institucionalizar esses foros para a manutenção de órgãos permanentes, com pessoal próprio, para cuidar da preparação da agenda e aspectos da infraestrutura dos eventos. 9 LIMA, Clarisse Laupman Ferraz. Organização das Nações Unidas, ONU: a expressão de um novo tempo. 136 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Curso de Pós-Graduação em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 50. 10 MENEZES, Wagner. Ordem Global e Transnormatividade. Ijuí-RS: Unijuí, 2005, p. 45. 11 SEITENFUS, Ricardo. Manual das organizações internacionais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000, p. 23. 21 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Ricardo Seitenfus12 elenca três principais características das organizações internacionais: multilateralidade, permanência e institucionalização. Multilateralidade remete à pluralidade de membros, seja a nível regional ou a nível internacional. Permanência significa que a organização internacional tem o objetivo de operar indefinidamente (mas não perpetuamente) e que a organização internacional depende de uma estrutura organizacional – o Secretariado – com sede fixa, sendo, ademais, sujeito dos direitos e obrigações das representações diplomáticas. A institucionalização das organizações internacionais se refere à previsibilidade das sanções a que um Estado está sujeito caso descumpre alguma das normas internas, uma vez que o Estado abre mão de parte de sua soberania ao integrar determinada organização internacional, que virá a determinar competências até então pertencentes ao absoluto domínio nacional. O tratado constitutivo de uma organização internacional é expressão concreta do voluntarismo estatal nas relações internacionais, pois o Estado só se submete aos atos normativos que nela têm berço caso faça parte desse tratado. Ricardo Seitenfus13 ressalta que o tratado constitutivo de uma organização internacional tem dupla natureza jurídica: formalmente, tem as características próprias de um acordo e, materialmente, é não só um tratado como também algo assimilável a uma constituição, vez que constitui a base jurídica de um novo ente autônomo. Enfim, organização internacional é uma associação voluntária de Estados, que não é nada mais que “uma sociedade entre Estados, constituída através de um Tratado, com a finalidade de buscar interesses comuns através de uma permanente cooperação entre seus membros”14. As organizações internacionais surgem com o objetivo de institucionalizar os foros multilaterais, de modo que um dos aspectos necessários da sua personalidade jurídica é o exercício de competências normativas, previstas no tratado constitutivo. Diante desse diapasão, é necessário verificar na base jurídica qual a amplitude das competências investidas na organização internacional em questão. Teoricamente, as competências das Organizações Internacionais podem ser dirigidas ao exterior ou ao seu interior. Consideram-se competências dirigidas ao exterior aquelas que se destinam a produzir efeitos fora dos órgãos internos, podendo afetar os Estados-partes, 12 SEITENFUS, Manual das organizações internacionais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000, p. 23 et seq. 13 SEITENFUS, Ibid., p. 26. 14 SEITENFUS, Ibid., p. 26-27. 22 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional outros Estados e outras organizações internacionais, mediante a edição de atos como tratados, regulamentos e recomendações. A competência interna, por sua vez, dirige-se aos órgãos da organização internacional, visando seu aprimoramento. Wagner Menezes avalia que o advento das organizações internacionais representa “fatores de avanço do Direto Internacional e dinamização das relações internacionais contemporâneas”15. O reconhecimento formal das organizações internacionais como sujeitos do DIP, pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1986, é um contraponto ao DIP Clássico, que atribuía essa condição apenas aos Estados. Além disso, as organizações internacionais são foros institucionalizados de discussão e deliberação pelos Estados, segundo o princípio da cooperação, sobre os problemas que permeiam os objetivos nela inscritos. No mais, permitem que Estados periféricos participem em pé de igualdade com os Estados mais poderosos. Vladmir Oliveira da Silveira e Maria Mendez Rocasolano, em síntese, comentam: “As organizações internacionais são a expressão mais visível do esforço articulado e permanente de cooperação internacional, reafirmando a luta pelos direitos humanos e a limitação do poder. Desde o surgimento do Estado Nacional como categoria política básica nas relações entre povos e unidades políticas, ocorreram muitas iniciativas e formulações teóricas relacionadas à formação e estruturação das instituições hoje abrangidas sob a denominação de ‘organizações internacionais” 16. 2.3 Novo processo de produção normativa A consequência principal ao DIP em relação ao escopo deste trabalho consiste no impacto da produção normativa, fruto desse processo de discussão e deliberação na ordem jurídica internacional. Wagner Menezes destaca que as organizações internacionais tornaramse verdadeiras “legisladoras globais”17, pois, à medida em que definem direitos e obrigações comuns aos Estados, mediatamente investem os indivíduos de direitos que podem ser invocados em face do Estado. Antonio Cassese18 comenta que, no DIP clássico, os Estados não eram impedidos por qualquer barreira para a construção de normas internacionais. Tinham uma liberdade ainda maior que os particulares no âmbito do Direito Privado, onde há normas de ordem pública que limitam a livre iniciativa das partes. O DIP clássico, diante da ausência de verticalidade, era marcado pela regulação negativa, o que permitia os Estados exercerem ampla liberdade. Tal 15 MENEZES, Wagner. Ordem Global e Transnormatividade. Ijuí-RS: Unijuí, 2005, p. 39. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos Humanos: conceitos, significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 85. 17 MENEZES, Wagner. Ordem Global e Transnormatividade. Ijuí-RS: Unijuí, 2005, p. 39. 18 CASSESE, Antonio. International law. 2ª ed. Oxford: OUP, 2005, p. 12. 16 23 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional modelo apenas favoreceu as grandes potências, para as quais o DIP era uma forma de legitimar seus interesses. Contudo, tal liberdade de ação tem sofrido uma progressiva limitação desde a Primeira Guerra Mundial, pelo conjunto de três fatores, nomeadamente: (1) o conjunto crescente de tratados internacionais; (2) a crescente restrição jurídica sobre o uso da força; e a (3) construção do ius cogens. Em primeiro lugar, verifica-se, atualmente, que a maioria dos Estados é parte de um vasto número de tratados sobre variadas matérias, que implicam em efeitos nos sistemas domésticos e resultam na limitação da liberdade de ação dos Estados na esfera internacional. A amplitude existente de tratados internacionais abrange incontáveis matérias, por exemplo, comércio internacional, domínio dos mares, direitos humanos, internacional criminal. Assim, em razão das intrincadas relações entre os tratados que compõem esse complexo, por mais que os Estados, teoricamente, possam denunciá-los, desfazer-se dos compromissos internacionais é um ato cada vez mais difícil de ser concretizado. Em segundo lugar, o uso da autotutela por meio da guerra encontra-se vedado pelo DIP. O direito de guerra teve início com a Convenção de Genebra sobre o Comitê Internacional da Cruz Vermelha de 1836 e as Conferências de Haia sobre a Paz de 1899 e 1907. Seguidamente, o Pacto Briand-Kellog de 1828, promovido pelos EUA e França, ampliou o número de Estados submetidos a uma limitação do uso da força. Com maior e decisiva importância, a Carta da ONU de 1945 impôs aos Estados-partes a obrigação de não utilizar a força, regra elevada a princípio do Direito internacional. Em terceiro lugar, um costume internacional se desenvolveu na comunidade internacional, no sentido de conferir maior estatura jurídica a determinadas normas gerais que as demais regras, de modo a impedir que os Estados as derroguem em seus compromissos internacionais. Isso compreende o chamado jus cogens, conjunto de normas peremptórias que vinculam os Estados a não firmar acordos com objeto contrário a elas, sob pena de nulidade. Carlos Roberto Husek, por sua vez, avalia que: “Há uma mudança sensível no Direito Internacional que tem duas faces bem distintas e que, de certa forma, se complementam, em relação ao ser humano e suas organizações (Direitos Humanos) e em relação à área econômica (Direito Econômico de Cooperação), com a contenção do domínio capitalista dos países mais fortes e busca de ajuda aos países mais pobres”19. Em suma, o advento das organizações internacionais, propulsionado pelo fenômeno da globalização, quebrou o paradigma do Direito Internacional clássico, que só admitia os Estados enquanto sujeitos, e deu azo a uma concepção institucionalizada da comunidade 19 HUSEK, Carlos Roberto. Curso de Direito Internacional Público. 10ª ed. São Paulo: LTr, 2010, p. 388. 24 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional internacional, até então atribuída de um caráter tão somente interestatal. Contudo, a mera sistematização da prática das organizações internacionais e dos Estados não faz as vezes, por si só, do DIP objetivo: é apenas a sua fonte. Com efeito, o DIP de dimensão universal vale-se mais da consciência das organizações internacionais do que o consentimento sobre elas20. É a reflexão da comunidade internacional, sobre os problemas mundiais, numa estrutura institucionalizada, que tem permitido o desenvolvimento do DIP, no sentido de alcançar uma comunidade internacional mais desenvolvida. 3 Os subsistemas em DIP Imaginava-se que com o fim da Guerra Fria, em 1989, haveria condições de implementar o projeto de grandes mestres, como Kelsen, Scelle e Lauterpacht, no sentido de construir o centralismo no DIP. Pelo contrário: o liberalismo e a globalização, longe de terem trazido coerência, aproximaram o DIP da figura de um caleidoscópio, em que os atores se esforçam para criar sistemas normativos para escapar das estruturas do “DIP geral”, conjunto de direitos e deveres atribuíveis a todos os Estados, como os princípios gerais de direito e os princípios gerais do DIP. O DIP, na década de 1980, já identificava problemas como a gradual e diluída normatividade por meio do jus cogens. Ainda assim, isso não impediu os especialistas em direitos humanos, em direito do comércio internacional e direito do mar de desenvolver novas práticas normativas sobre seus campos de atuação, dando origem a subsistemas: regimes jurídicos com princípios e regras próprios a fim de dar consistência aos seus objetivos. Pode-se falar da existência de subsistemas dentro da própria ONU, que é dotada de órgãos especializados nas matérias de sua atenção. Na matéria de Direito Internacional, destacamos a Comissão de Direito Internacional. Em meio ambiente, destacamos o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). Em direitos humanos, destacamos a Comissão de Direito Internacional, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, e os comitês baseados em tratados (Treaty-bodies), como o Comitê sobre Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Comitê CEDAW). Cada órgão acima mencionado tem um sistema próprio de deliberação, com regras e atos próprios. Com efeito, cada um compõe um subsistema, ou um regime jurídico próprio. 20 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direito das organizações internacionais. 4ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 628. 25 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional No Comitê CEDAW existe um mecanismo próprio do acompanhamento das políticas do governos em relação à eliminação da discriminação contra as mulheres, chamado de “diálogo construtivo”, no qual os Estados apresentam o trabalho feito num dado período, sendo interpelados pelos membros do Comitê e por ONGs interessadas. Em meus estágios naquele Comitê, no verão de 2009 e na primavera de 2010, não pude conhecer referência a outros tratados. Com efeito, notei que os diálogos circunscrevem-se ao próprio tratado que dá origem ao comitê. Os direitos das mulheres poderiam ser mais bem protegidos caso houvesse um diálogo em relação a outros documentos, como a relevante Resolução do Conselho de Segurança da ONU n. 132521. Subsistemas não ficam restritos à estrutura da ONU. Com o advento de inúmeras outras organizações internacionais, de índole universal ou regional, cada qual com sua própria base jurídica, abriram-se as portas para novos regime jurídicos dentro do DIP. Como a base jurídica da organização internacional pode prever a criação de atos normativos em seu âmbito, conforme o processo deliberativo específico, surge a possibilidade da emergência de regras e princípios próprios a cada organização internacional. Assim, um dos efeitos jurídicos da pluralidade de organizações internacionais atuais é o enclausuramento de cada uma a seu próprio subsistema. É dizer: o subsistema da OMC corre o risco de ficar alheio a normas importantes ao desenvolvimento entre as nações – que é um dos seus objetivos -, como aquelas relativas ao direito internacional do trabalho, direito internacional dos direitos humanos ou direito internacional do meio ambiente. De igual modo, uma organização internacional corre o risco de ficar alheia a normas que não foram emanadas em seu bojo. É como se a OMC admitisse não conhecer de nenhuma outra norma que não aquelas oriundas de sua estrutura, como decisões judiciais de outros tribunais internacionais ou resoluções da assembleia de alguma outra organização internacional. A origem dos subsistemas em DIP está ligada à necessidade de especialização dos seus estudiosos, por força do pragmatismo dos advogados internacionalistas, que, decerto, não têm como dominar a crescente normativa internacional. À segunda vista, a origem dos subsistemas em DIP tem proporcionado o que a doutrina contemporânea chama de “fragmentação”, objeto da próxima seção. 4 O fenômeno da fragmentação do DIP 21 Palestra intitulada “Security Council Resolution 1325 Ten Years On: Critical Reflections”, proferida por Carol Cohn, no Graduate Institute de Genebra, em 8 de outubro de 2010. 26 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Segundo o DIP clássico, conflitos entre sistemas normativos são algo patológico 22. Diante dessa preocupação constante dos internacionalistas, a relevância da proliferação de tribunais internacionais ganhou destaque no âmbito da ONU em 1999, quando o então presidente da Corte Internacional de Justiça, juiz Stephen M. Schwebel 23, em discurso anual à Assembleia Geral da ONU, expressou preocupação sobre a criação de novos tribunais, o que, no seu entender levaria a conflitos substanciais entre eles e ao esvaziamento das funções da Corte de Haia. A solução apontada pelo juiz Schwebel24 para a solução de eventuais conflitos entre decisões dos tribunais internacionais seria a criação de mecanismos para que outros tribunais internacionais pudessem consultar a opinião da Corte Internacional de Justiça sobre matérias do DIP que tenham sido ventiladas e que sejam importantes para a unidade do DIP. Tal solução no nosso entender não se mostra adequada, pelo simples fato de não haver qualquer hierarquia entre as cortes internacionais. Tribunais especializados em direito internacional dos direitos humanos, direito internacional do mar e direito internacional do meio ambiente, entre outros, cederam lugar a regimes jurídicos especiais, aparentemente apartados um do outro. Soma-se a isso o fato de que questões envolvendo diretamente indivíduos, como os direitos humanos e o direito do meio ambiente, vêm sendo tratados por outros órgãos que não a CIJ. Frente a essas constatações, nota-se a marginalização da CIJ em relação à discussão de assuntos triviais ao sistema do DIP, por conta da forma com que a proliferação de tribunais internacionais tem sido feita – sem qualquer planejamento –, o que poderia tornar o DIP totalmente fragmentado e inoperante. Na opinião do juiz Guillaume, o DIP realmente precisa mudar, mas não ser quebrado25. 5 Conflitos de normas no DIP 22 KOSKENNIEMI, Martti; LEINO, Päivi. Fragmentation of International Law? Postmodern Anxieties. Leiden Journal of International Law, Leida, v. 15, 2002, p. 560, 23 SCHWEBEL, Stephen M. Discours prononcé devant l'Assemblée Générale de l'Organisation des Nations Unies réunie en session plénière. 26 de outubro de 1999. http://www.icjcij.org/court/index.php?pr=87&pt=3&p1=1&p2=3&p3=1. Acesso em 18/05/2012. 24 SCHWEBEL. Ibid. 25 SCHWEBEL. Ibid. 27 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Joost Pauwelyn26 aponta que o conflito não é uma anomalia no ordenamento jurídico e que isso não significa, necessariamente, contradição na intenção do legislador. Com efeito, é algo inerente a um sistema jurídico, em razão de sua pretensão de tutelar os fatos sociais juridicamente relevantes mediante a criação de normas gerais e abstratas. O conflito de normas de DIP é inevitável, não só por conta do processo de criação de suas normas – sejam estas tratados ou costumes –, mas também pela sua forma de aplicação. Nesse sentido, Joost Pauwelyn27 identifica uma série de razões inerentes ao conflito de normas, algumas decorrentes da natureza do DIP, outras advindas do DIP contemporâneo. Quanto às causas para conflitos inerentes ao DIP, destaca-se, inicialmente, a pluralidade de legisladores a nível internacional, uma vez que não há no DIP um único órgão legislativo nem executivo – como vimos na seção 1.1. O Estado é o seu próprio legislador, e por isso, a relação jurídica entre os Estados depende profundamente dos ordenamentos jurídicos internos. No contexto atual, caracterizado pela expressiva expansão de organizações internacionais e pelo nascimento de novos Estados, há uma grande pluralidade de legisladores que cria uma infinitude de relações jurídicas. Em segundo lugar, Joost Pauwelyn28 aponta que o DIP não carece apenas de um órgão legislativo e de um órgão administrativo centralizados: falta-lhe também um sistema judicial centralizado que exerça jurisdição geral e compulsória – o que chamamos, no sistema brasileiro, de jurisdição una. Caso houvesse um sistema análogo ao doméstico no DIP, que contasse também com a organização do regime de sanções, é possível que o processo de elaboração do direito tivesse alcançado alguma ordem. Nem a existência da Corte Internacional de Justiça, categorizada como o “principal órgão judiciário das Nações Unidas” (Carta da ONU, art. 92), é capaz de suprir essa deficiência (inerente) do DIP, pois a Corte exerce jurisdição compulsória apenas em relação a Estado que tenham voluntariamente aceito a jurisdição da Corte para julgar determinadas contendas (artigo 36 (2) do Estatuto da Corte Internacional de Justiça). Há, na verdade, uma pluralidade de mecanismos de controvérsias, muitos deles previstos em tratados “guarda-chuvas” ou estabelecidos ad hoc. A ausência de jurisdição una no DIP significa que não há um juiz natural para impor ordem às inúmeras relações jurídicas internacionais. A pluralidade de tribunais internacionais potencializa a possibilidade de 26 PAUWELYN, Joost. Conflicts of norms in public internacional law. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 10. 27 PAUWELYN, Ibid., p. 12. 28 PAUWELYN, Ibid., p. 16. 28 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional conflitos em razão de diferentes interpretações e aplicações de uma mesma norma de DIP, de modo que num eventual conflito de normas de DIP, um tribunal pode aplicar uma norma e afastar outra, bem como outro tribunal pode fazer o contrário. O DIP contemporâneo, segundo Joost Pauwelyn29, trouxe a lume outros motivos ensejadores de conflitos. De início, o DIP mudou de paradigma: de um direito de coexistência passou a um direito de cooperação. O DIP clássico caracterizava-se principalmente por normas bilaterais que versavam sobre as matérias de soberania territorial, relações diplomáticas e direito de guerra, no sentido de estabelecer obrigações recíprocas para a coexistência dos Estados. Por sua vez, o DIP contemporâneo é marcado pela evolução do direito de cooperação entre os Estados, visto que a busca de objetivos comuns deu lugar ao advento – destacadamente, no período pós-Guerra Fria – de organizações internacionais. Nesse sentido, a globalização tem importância fundamental, vez que a necessidade de cooperação entre os Estados para persecução dos seus objetivos comuns tem resultado na integração da comunidade internacional e, ao mesmo tempo, na proliferação dos subsistemas de DIP. As relações de interdependência30 proporcionadas pela globalização também refletem no DIP, pois a norma de um subsistema pode vir a dialogar com uma outra norma de um outro subsistema – notadamente no subsistema da OMC, cujas regras têm por objetivo a liberalização do comércio, o que, por vezes, coloca em detrimento outras normas de DIP, como aquelas relativas aos direitos humanos e ao meio ambiente. Conclusão Há quem esperava do fim da Guerra Fria possibilidades de conferir maior coerência ao DIP, porém o que efetivamente se constata hoje é uma dificuldade de diálogo entre esses diferentes regimes jurídicos para evitar conflitos entre suas normas e, em última instância, conferir maior consistência e coerência ao DIP. Significa dizer que a fragmentação do DIP, ao invés de corrigir suas falhas inerentes, potencializou conflitos aparentes entre suas normas, em especial, entre aquelas pertencentes a diferentes regimes jurídicos. Com a mudança de paradigma do DIP, que resultou na emergência de uma pluralidade de organizações internacionais e na intensificação de celebração de tratados multilaterais, houve um aumento significativo do número de normas internacionais sobre 29 PAUWELYN, Joost. Conflicts of norms in public internacional law. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 16. 30 SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos Humanos: conceitos, significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 84. 29 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional diferentes matérias, e, por consequência, o risco de conflito entre essas normas se potencializou. Assim, o conflito de normas em DIP tornou-se mais recorrente e se dá entre normas oriundas de diferentes subsistemas baseados em tratados, como ocorre entre normas do direito da OMC e do direito internacional do meio ambiente. Ambas as normas são válidas, mas uma é invocada por um Estado para justificar sua conduta, enquanto que outra é posta em questão pelo outro Estado para dar proteção ao seu direito violado. Diferentemente do conflito de normas do DIP clássico, que colocava em questão diferentes tratados “contratos”, no DIP contemporâneo os conflitos podem envolver normas das quais uma pluralidade de Estados são partes. Os Estados litigantes são vinculados a todos os tratados. Tal incompatibilidade se assemelharia à hipótese de num mesmo Estado haver dois órgãos legisladores, cada qual legiferando em sentido diferente. O DIP contemporâneo dá lume, também, a um aumento no número de disputas judiciais. Os sistemas de solução de controvérsias internacionais aumentaram em número, concomitantemente a uma tendência de submeter a cortes ou tribunais internacionais a resolução ad hoc de disputas. Uma vez que esses órgãos têm sido cada vez mais convocados para solução de disputas, o conflito entre normas de DIP tem se demonstrado in concreto. A expansão em número e em competências das organizações internacionais conduziu também a uma situação de fragmentação do direito internacional, consistente na difusão de regimes jurídicos e de sistemas de deliberação e resolução de controvérsias próprios a cada organização internacional. É desejável que num mundo globalizado conflitos de normas sejam evitados, a fim de dar estabilidade às relações jurídicas internacionais, nas suas mais variadas dimensões – direitos humanos, meio ambiente, comércio, etc. Por isso, as teorias da fragmentação do DIP merecem acolhida, a fim de que a Academia proporcione meios de diálogo entre os subsistemas, conferindo ao DIP maior coerência e, em última instância, a promoção da cooperação internacional. Referências CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direito das organizações internacionais. 4ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. CANERO, Carla Amaral de Andrade Junqueira. A técnica interpretativa do órgão de apelação da Organização Mundial do Comércio. São Paulo: Singular, 2011. 30 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional CASSESE, Antonio. International Law. 2ª ed. Oxford: Oxford University Press, 2005, 558 p. COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. 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Saraiva: São Paulo, 2010. 32 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A VALIDADE DA NORMA NO DIREITO INTERNACIONAL: BREVES APONTAMENTOS Gustavo Fernandes Meireles1 Renato Barbosa de Vasconcelos2 Resumo: O reconhecimento da validade da norma e do ordenamento jurídico é fundamental para identificar sua aptidão para produzir efeitos no mundo fático. No âmbito do ordenamento jurídico nacional a validade é concebida, sobretudo em termos formais, com base no escalonamento das normas, tendo como ápice uma norma fundamental, acima da Constituição. Essa verticalização é possível porque a soberania é exercida pelo Estado. No âmbito da sociedade internacional a concepção de um ordenamento escalonado encontra óbices, haja vista que várias soberanias convivem, não se sobrepondo umas às outras. Por conseguinte, a aplicação de conceitos teóricos para o reconhecimento da validade jurídico-formal do Direito internacional leva a problemas de interpretação. O presente artigo tem por objetivo discutir questões relativas à validade do Direito internacional e a formas alternativas de se abordar o tema, tomando-se outros conceitos de validade como meio para identificála. Palavras-chave: Teoria geral do Direito. Validade jurídica. Direito Internacional. LEGAL VALIDITY OF INTERNATIONAL LAW: SOME NOTEWORTHY POINTS Abstract: Validity is a key concept to identify the capacity of Law in enforcing its rules, producing effects in real world. In domestic legal system validity is considered most in its formal concept, based on hierarchy of norms where the Constitution is in the top of the system. This vertical hierarchy is possible due to State’s sovereignty. On the other hand, in the international society, the idea of a hierarchic legal system finds obstacles, since in the international scenario many sovereignties coexist in the same level. Hence, the utilization of theoretical concepts 1 Mestrando em Direito da Universidade Federal do Ceará. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará. Bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Membro do “Mundo Direito: Grupo de Estudos em Direito Internacional da UFC”. Membro do projeto: “Possibilidades e Riscos de Políticas Comuns de Direitos e Garantias Fundamentais nos Estados Integrantes da UNASUL na Perspectiva de uma Constituição Sul-americana” (PROCAD/CAPES). Advogado. Email: [email protected]. 2 Mestrando em Direito da Universidade Federal do Ceará, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Membro do projeto “Possibilidades e Riscos de Políticas Comuns de Direitos e Garantias Fundamentais nos Estados Integrantes da UNASUL na Perspectiva de uma Constituição Sul-americana” (PROCAD/CAPES). Membro do “Mundo Direito: Grupo de Estudos em Direito Internacional da UFC”. Membro do grupo de pesquisa “Filosofia dos Direitos Humanos” (UFC). Membro do grupo de pesquisa “Democracia e Finanças Públicas” (UFC). Pesquisador do Centro de Direito Internacional (CEDIN). Advogado. Email: [email protected]. 33 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional aiming to verify formal legal validity of International Law leads to misinterpretation. This paper aims to discuss issues concerning the validity of International Law and alternative approaches in this field, considering other concepts of legal validity as confirming evidences. Key-words: General Theory of Law. Legal validity. International Law. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Questão pertinente no âmbito da Teoria Geral do Direito é discutir a validade de suas normas, a qual, segundo algumas correntes teóricas, relaciona-se estreitamente com outros conceitos tais como legitimidade e eficácia (NINO, 2010, p. 154-5). Do conceito de validade das normas, pode-se derivar a constatação da existência de todo um ordenamento jurídico. Por conseguinte, também se pode pensar, conjuntamente a essas categorias, o conceito de eficácia jurídica. Nesse amplo espaço de discussão, o Estado é comumente apontado como ente que confere validade ao Direito. De sua soberania extrai-se a autoridade pública para o ordenamento da sociedade. As concepções contratualistas de Estado atribuem a este ente a congregação de forças sociais e o desempenho de funções de controle que incluem a elaboração de normas a serem por todos observadas e cumpridas e um aparato de força para o caso de descumprimento das normas prescritas. Considerando-se a soberania e a institucionalização do poder de fato exercido sobre determinado território, não é difícil conceber um poder jurídico no âmbito interno de cada Estado. Seja essa soberania legítima, legítimo será, pois, o exercício do poder dela decorrente, assim como as normas estabelecidas nesse contexto. Entretanto, o que se pode dizer acerca das normas que obrigam os Estados? Normas assim limitariam a soberania dos Estados? Seriam tais normas válidas, ainda que não haja um ente superior que as chancele? O que poderia ser apontado como elemento que lhes confira identidade jurídica? Essas são algumas das questões que frequentemente voltam à baila quando se discute Direito Internacional comparando-o com o Direito interno. A afirmação de existência de um Direito Internacional não é novidade. Entretanto, ainda se percebe certa resistência na sua admissão como Direito. A emergência do Direito Internacional nos dias atuais nos convida a uma reflexão mais acurada acerca de categorias um tanto quanto cristalizadas pela Teoria Geral do Direito. Um aprofundamento dessas categorias à luz da prática jurídica internacional assim como de disciplinas correlatas – como 34 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional as Relações Internacionais –, pode suscitar uma melhor compreensão do Direito em si. No mínimo, amadurece-se a compreensão dos fenômenos jurídicos internacionais, cada vez mais presentes no contexto de globalização em que vivemos. O presente artigo se propõe a discutir brevemente a validade do Direito Internacional, relacionando-a a outras categorias de análise tais como legitimidade e eficácia. Para tanto, tomaremos diretamente as acepções conceituais clássicas de validade, legitimidade e eficácia jurídica, buscando apontar pontos de distinção quando se trata de Direito internacional. 2 OS VÁRIOS SIGNIFICADOS DE VALIDADE DA NORMA JURÍDICA A validade do ordenamento jurídico pode ser aferida pela validade das normas que o compõem. Santiago Nino parte de um questionamento a respeito da existência do sistema jurídico como um todo. Embora versando sobre todo o sistema normativo, o autor reconhece a aplicabilidade dos conceitos ao seu elemento fundamental: a norma. Para tanto, o autor toma o conceito de validade em seis diferentes acepções. A primeira delas reconhece a identidade entre a validade e a existência de uma norma, havendo superposição entre os critérios de validade e de existência. Há ainda a concepção de validade enquanto justificação última para o que é permitido ou obrigatório. Nino cita ainda a concepção (adotada por Kelsen) que reconhece a validade de uma norma jurídica em outra norma jurídica que a declara como de aplicação obrigatória. A validade pode ainda determinar o pertencimento de uma norma a um determinado sistema jurídico. Sob um outro prisma, há quem aproxime o conceito de validade de vigência, e até mesmo eficácia. O autor argentino ressalta que esses “focos de significado” não são “significados autônomos da palavra ‘validade’, já que, em geral, eles se apresentam combinados de alguma maneira [...]” (idem). Desse ponto de partida, podemos observar o posicionamento dos demais autores a respeito do conceito de validade. Tércio Sampaio Ferraz Jr. a validade é a integração de uma norma ao ordenamento jurídico 3. Por certo que essa integração deve ser feita pelos meios estabelecidos normativamente pelo próprio sistema jurídico. Esse seria, sem maiores detalhes, 3 FERRAZ JR., Tércio Sampaio Ferraz. Introdução ao Estudo do Direito. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 165. 35 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional o que Pontes de Miranda chama de “colorir” um fato do mundo para torná-lo jurídico através de uma norma jurídica (MIRANDA, 1999, p. 51-67)4. Do ponto de vista dogmático, tal como é a opção metodológica de Ferraz Jr. em sua abordagem, a validade é considerada do ponto de vista do direito positivo. Portanto, para o direito positivo, existe a norma que foi reconhecida pelos meios juridicamente hábeis a fazêlo. Embora reconheça a dimensão deontológica e fenomenológica da norma jurídica, Bobbio reforça o entendimento de que a validade, enquanto dimensão ontológica da norma, diz respeito à sua existência no sistema jurídico (BOBBIO, 2001, p. 47). Nesse sentido, é o direito posto quem reconhece (ou não) uma norma como válida. Sob esse ponto de vista, normas não válidas não existem para o sistema jurídico. Hugo Machado é mais cauteloso ao expressar, de início, que uma norma pode existir sem ser válida, ou seja, se estiver em desacordo com a Constituição ou outra norma que lhe seja fundamento de validade (MACHADO, 2004, p. 95). Ponto importante ao tratar-se da validade das normas é abordar a vigência. A vigência é conceito mais estreito do que a validade, pois é a “aptidão para incidir” (idem, p. 98). Esta aptidão é determinada temporalmente. Dentro das balizas temporais em que a norma passou a viger até que ela seja revogada, ela está apta a incidir. Questão diversa é saber se ela incide ou não, ainda que esteja vigente. Esta seria uma abordagem acerca da eficácia da norma. Trata-se de questão de sociologia jurídica, tal como reconhecem Bobbio (op. cit., p. 48) e Machado (op. cit., p. 99). Para Kelsen, que identifica Direito e Estado, a validade da norma jurídica encontra seu fundamento em outra norma que lhe é hierarquicamente superior, até que se chega a uma norma pressuposta (KELSEN, 2009, p. 215-217). Sem adentrar discussões referentes à possibilidade e à existência de uma Norma Hipotética Fundamental, importa ressaltar que, na concepção de Kelsen, o Estado é o ente autorizador da validade das normas, inclusive daquelas decorrentes de relações jurídicas privadas. Apesar do destaque que se dá em sua teoria ao ordenamento jurídico interno, Kelsen afirmou a existência de uma ordem jurídica internacional e do Direito Internacional 4 Pontes de Miranda destaca a existência de um mundo jurídico que “está no conjunto a que se chama mundo” no qual alguns dos fatos que se passam no mundo são “coloridos”, tornando-os fatos jurídicos. O jurista chama esse processo de juridicização. As regras jurídicas desempenham papel fundamental nesse processo, pois são elas que incidem sobre os fatos do mundo, fazendo-os “fatos jurídicos”: a “regra jurídica colore [o suporte fático], fazendo-o entrar no mundo jurídico”. Dessa forma, a juridicização é um processo de entrada do “suporte fático” no mundo jurídico. Cf. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller, 1999, pp. 51-67 (passim). 36 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional propriamente dito, na medida em que medidas coercitivas podem ser previstas e adotadas por parte de outros Estados participantes da sociedade internacional (KELSEN, 1998, p. 468). Assim, para Kelsen, “o Estado é uma ordem jurídica. Mas nem toda ordem jurídica é um Estado” (KELSEN, 2009, p. 317). Todavia, tomando-se a concepção kelseniana de validade da ordem jurídica, encontra-se dificuldades para se afirmar a validade – e, portanto a existência – do Direito Internacional. Isso porque, para o pensador alemão, a validade de uma ordem jurídica encontra seu fundamento em uma cadeia hierarquicamente organizada, até chegar-se a uma norma-ápice. No direito interno essa norma seria a Constituição, cuja validade fundamentarse-ia em uma outra norma, pressupostamente superior (idem, p. 221). Assim é que o positivismo afirma com veemência a primazia do Estado como irradiador do Direito através de sua função legislativa. Além desta função precipuamente exercida pelo Poder Legislativo, Hugo Machado (2004, p. 74 e ss.) observa que o direito também deflui da jurisprudência, de sentenças e de atos administrativos – e há quem diga que, no Brasil, a burocracia legisla quase que substituindo o legislador (STRECK, 2012). Entretanto, além das fontes formais estatais, fontes outras (não estatais), também contribuem para a construção do direito (e.g. contrato, doutrina, costume). O Estado é destarte o meio pelo qual essas formas jurídicas são autorizadas a produzir efeitos. Como que numa estamparia de linha de produção, o Estado reconhece como juridicamente válido um “produto” que, embora não tenha sido elaborado em sua “fábrica”, ganha as feições de um produto seu por ter passado pelo seu crivo de aprovação. Nesse sentido, para Kelsen, mesmo as relações privadas seriam autorizadas pelo Estado. O autor critica veementemente as propostas de dicotomia entre direito público e direito privado. E é exatamente na identidade entre Direito e Estado que Kelsen fundamenta sua crítica. Para ele, o Estado é uma entidade metajurídica, sendo ao mesmo tempo pressuposto do Direito e sujeito que pressupõe o Direito (KELSEN, 2009, p. 315). Nesse sentido, o dualismo entre direito privado e público não se justificaria, pois o Estado participa na formação e na defesa de relações jurídicas privadas. Para Kelsen, os atos que formam o fato produtor do Direito apenas são, em ambos os casos, o prolongamento do processo da chamada formação da vontade estadual, e de que, precisamente, como no comando da autoridade, também no negócio jurídico privado apenas se realiza a individualização de uma norma geral. (idem, p. 312) 37 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Assim, o Estado “filtra” a totalidade das relações jurídicas – públicas e privadas – perfectibilizando-as sob sua chancela. No direito nacional, em que se tem a soberania como elemento de poder que confere ao Estado a capacidade de estabelecer a ordem jurídica, fundando-a com base em uma Constituição (o que, nas teorias contratualistas, seria justamente o contrato social estabelecido) isso parece mais fácil de justificar do que em uma ordem internacional. No âmbito dos Estados, com base na soberania, é possível estabelecer uma hierarquia mais clara na produção normativa. Dentre as “marcas da soberania” apresentadas por Jean Bodin em sua clássica obra (BODIN, 1993, p. 162), o poder de estabelecer e impor a lei a todos e a cada um em particular figura em primeiro lugar, dele decorrendo todas demais marcas. Embora a soberania descrita por Bodin concentre-se ainda na figura de alguém que detém o poder soberano, a ideia foi atualizada para a soberania da sociedade, depositada no Estado. Descrevendo um caso hipotético (da dinastia dos reis Rex), H. L. A. Hart observa que as normas jurídicas produzidas por um determinado soberano permanecem após o exercício de seu poder (HART, 2009, p. 83 e ss.). Ou seja, a soberania por ele exercida – que lhe confere o poder de criar o Direito –, não perece após sua morte, a menos que seja expressamente revogada. Da mesma forma ocorre no caso em que a soberania é do povo, e não de um soberano em seu exercício absoluto. Nesse caso, a soberania permanece soberana (com a licença da tautologia) até que a sociedade que a conferiu aos poderes do Estado seja desfeita ou constitua um novo pacto. Essa instituição centralizadora dos poderes, mas já despersonalizada – em comparação com a autoridade que se prendia à pessoa do governante, do monarca, do príncipe – tem na soberania o sustentáculo maior de sua constituição. Esse atributo seria, segundo a doutrina contratualista da formação do Estado, fruto da vontade humana que escolheu abrir mão de sua liberdade em troca de proteção provida por uma entidade suprahumana. A respeito da soberania, elemento distintivo do Estado Moderno, Bonavides assevera que […] foi [ela], por sem dúvida, o grande princípio que inaugurou o Estado Moderno, impossível de constituir-se se lhe falecesse a sólida doutrina de um poder inabalável e inexpugnável, teorizado e concretizado na qualidade superlativa de autoridade central, unitária, monopolizadora de coerção. (BONAVIDES, 2004, p. 29) Nesse sentido, a soberania fundamenta a subordinação de poderes privados a um ente centralizador dos interesses coletivos. A miríade de arranjos jurídicos de caráter familiar, 38 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional feudal, corporativo e religioso era contrária à ideia de certeza jurídica trazida pela representatividade estatal como fonte única do direito. A existência desse ente centralizador viria a garantir o princípio da igualdade jurídica formal. Essa concepção de soberania perene fundamenta a criação do Direito positivo como obra estatal – tal como concebe Kelsen mesmo para as relações privadas. Através dela estabelece-se uma hierarquia no ordenamento interno que parte das pressupostas intenções contidas no contrato que funda a sociedade, irradiando em cadeia para conferir validade às normas mais específicas do ordenamento. Há, portanto, uma verticalização na construção do ordenamento, tendo no Estado o garante do cumprimento das ordens por ele estabelecidas em nome dos participantes da sociedade. Contudo, estabelecer semelhante raciocínio para justificar a validade do Direito Internacional parece caminho mais árduo. Como pensar a validade de um ordenamento jurídico em uma sociedade de entes formalmente iguais, os quais não se submetem a nenhum ente externo que lhe seja superior? As especificidades do Direito Internacional requerem um olhar próprio para sua adequada compreensão. 3 SOBERANIA E VALIDADE DA ORDEM JURÍDICA No âmbito interno, o Direito tem no Estado sua fonte legitimada pela soberania da desse ente centralizador do poder político. A soberania estatal confere força jurídica às ordens que emanam do Estado, na figura do soberano ou do governante. Vê-se aí que no âmbito interno do Estado, ou seja, dentro dos seus limites territoriais, o poder soberano é superior a todos os demais, tanto dos indivíduos quanto dos grupos sociais existentes no âmbito do Estado. A questão central é que tais normas restringem-se ao território em que o Estado é soberano. A concepção de soberania no Estado moderno passa a sofrer profundas alterações na medida em que fatores externos passam a repercutir na atuação dos Estados. A intensificação dos contatos entre Estados em grande parte estimulada pela crescente atividade comercial para além das fronteiras, bem como pelos conflitos bélicos, levou à existência de uma sociedade internacional semelhante à que conhecemos hoje e cujos principais atores nesse contexto histórico eram os Estados5. 5 Muito se discute acerca dos sujeitos da sociedade internacional. Algumas correntes das Relações Internacionais consideram que os atores não estatais, como as ONGs e as empresas multinacionais, são também protagonistas 39 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Após a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e da guerra entre espanhóis e flamengos (1568-1648), uma série de tratados de paz compôs o que viria a ser conhecido por Paz de Westphalia. A Paz de Westphalia representou um marco histórico que reconheceu o Estado como poder supremo dentro de suas fronteiras, definindo conceitualmente a ordem internacional daí nascida e seu elemento básico, a soberania no âmbito internacional. Anderson Teixeira destaca a importância da Paz de Westphalia na resignificação do conceito de soberania: Se internamente a necessidade de regulação jurídica concentrada em uma única autoridade política foi satisfeita pelo fortalecimento da soberania do Estado decorrente da Paz de Westphalia, externamente este momento representou a possibilidade de as relações internacionais começarem a se pautar pous uma disciplina eminentemente jurídica, definida em regras esabelecidas a priori e não tendo mais base exclusiva nas necessidades momentâneas que determinada situação apresentava. (TEIXEIRA, 2011, p. 84) A soberania westfaliana baseia-se na territorialidade e no princípio da não intervenção. Diversamente das consequências lógicas da soberania no plano interno – em que ela assegura a supremacia do poder estatal diante dos cidadãos ou outros possíveis poderes sociais concorrentes –, a soberania traduz, no âmbito externo, a igualdade dos Estados na comunidade internacional. Em outras palavras, a soberania significa, no plano internacional, a igualdade jurídica entre aqueles que são soberanos nas suas relações entre si. Se internamente a construção de ordenamentos jurídicos se fortalecia como meio de resolução de conflitos a serem mediados por um ente supremo e despersonalizado, o desenvolvimento de relações mais próximas entre Estados (juridicamente iguais, porque igualmente soberanos) demandava também a criação de um ordenamento jurídico supraestatal. A ruptura com o modelo westfaliano, que reconhece o Estado como exclusivo sujeito de direito internacional, a inserção de atores como ONGs, organizações internacionais, e grandes corporações transnacionais, e o complexo de constantes mudanças trazidas pelo processo de globalização tem trazido inúmeros desafios para o direito internacional e para a ideia de soberania tal como engendrada ao longo da construção do Estado moderno. Nesse sentido, Anderson Teixeira discorre argutamente acerca de fatores que têm contribuído para a relativização da soberania no contexto global contemporâneo. Por um lado nesse cenário. Cf. KARNS, MINGST, 2010, p. 222. No Anuário das Organizações Internacionais, editado pela União das Associações Internacionais, mais de 25.000 são listadas como ONGs internacionais. Cf. UNION OF INTERNATIONAL ASSOCIATIONS, 2012. 40 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional (no âmbito interno) fala-se em crise do Estado; de outra banda (no âmbito internacional) falase em surgimento e fortalecimento de novos atores globais, tais como organizações internacionais, ONGs e empresas multinacionais que também participariam da criação do direito internacional (idem, p. 131)6. Os diferentes matizes que a soberania assume no âmbito internacional e no âmbito interno atuam para tornar distintas as ordens jurídicas em cada um desses ambientes. Se no âmbito interno prevalece a hierarquia da ordem emanada do Estado, ente legitimado ao uso da força7, na sociedade internacional prevalece – segundo teóricos realistas das Relações Internacionais, tais como Carl von Clausewitz, Raymond Aaron e Keneth Waltz (ROCHE, 2008, p. 29) – a anarquia, no sentido de que os Estados agem de acordo com seus próprios interesses, não havendo nenhum ente superior que os obrigue a agir. Isso não quer dizer que não haja uma ordem (ou ordens) nas relações internacionais, mas não se trata da mesma ordem hierarquicamente determinada dos Estados em seu âmbito interno. Não há, no direito internacional, portanto, uma norma superior que possa validar outras normas inferiores em cadeia, tal como ocorre no plano interno, ordenado de forma escalonada, segundo a proposição de Kelsen8. Mesmo que no âmbito internacional existam normas costumeiras, de caráter pretensamente obrigatório (jus cogens), não se pode (por ora) apontar uma norma que sirva de fundamento de validade jurídico-formal para a ordem jurídica internacional. Entretanto, Kelsen esforça-se por apontar a existência de uma norma fundamental do direito internacional (idem, p. p. 239-242). Para o jurista, pode-se considerar o direito internacional em duas distintas situações: como validado pela soberania dos Estados, tendo seu fundamento de validade nas Constituições estaduais; ou como “ordem jurídica soberana, supra-ordenada a todas as ordens jurídicas estaduais, delimitando-as, uma em face das outras, nos respectivos domínios de validade [...]” (idem, p. 239). No primeiro caso, o fundamento de validade seria o mesmo da ordem jurídica interna, pois que o direito internacional seria validado pela própria Constituição (norma posta) e esta seria validada por uma norma pressuposta. No segundo caso, o direito internacional seria validado por uma norma pressuposta. Nesse caso, a ordem jurídica dos Estados não seria validada por uma norma 6 Cf. também CONDORELLI; CASSESE, 2012, p. 14-25. Para Max Weber, “[o Estado] é a única fonte do ‘direito’ de exercer coação” (WEBER, 1999, p. 525). 8 “A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas n mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental – pressuposta.” (KELSEN, 2009, p. 247). 7 41 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional pressuposta, mas sim por uma norma posta: a norma de direito internacional, esta sim pressuposta. Por sua vez, a norma de direito internacional teria seu fundamento de validade em uma norma fundamental, na qual, como no âmbito interno, “não está contida qualquer afirmação de um valor transcendente ao Direito positivo; nem mesmo do valor paz [...]” (idem, p. 241). Nessa segunda hipótese, a ordem jurídica internacional é concebida como ordem jurídica soberana, alterando o significado de soberania dos Estados, e estabelecendo-os como “comunidade jurídico-internacionalmente imediatas”, uma vez que sua “soberania” está subordinada à ordem jurídica internacional (idem, p. 242)9. Vê-se que Kelsen tenta conciliar a convivência das ordens jurídicas internas e internacional com a ideia de uma norma fundamental que confira validade última à normaápice do ordenamento e ainda com a ideia de que o locus da soberania é de onde irradia a norma fundamental. Assim, se a soberania é dos Estados, a norma fundamental será do âmbito interno e este é que irá validar o direito internacional, por meio de sua Constituição; porém, se a ordem internacional é soberana per se, então as normas-ápice dos ordenamentos internos (Constituições) é que encontrarão fundamento de validade em uma norma fundamental internacional. Apesar de apresentar as hipóteses, Kelsen não aponta qual das duas aplica-se à realidade global contemporânea10. H. L. A. Hart refuta veementemente a pretensa necessidade que se atribui ao direito internacional de possuir uma norma fundamental. Para Hart, as especificidades do direito internacional são de forma não de conteúdo. Não se pode, portanto, querer estabelecer análises do direito internacional a partir de comparações com estruturas assemelhadas (mas não iguais) do direito interno. O autor britânico observa que a ausência de um poder legislativo internacional, de tribunais com jurisdição compulsória e sanções centralmente organizadas faz com que o direito internacional não tenha normas secundárias 11 de modificação e julgamento nem uma norma de reconhecimento unificadora que especifique as 9 O mesmo argumento é apresentado no texto “Porque a lei deve ser obedecida?”. O texto é parte da obra “O que é justiça?”, publicado pela primeira vez em 1952. No texto, Kelsen reafirma que a validade de uma norma no direito positivo, e a razão pela qual ela deve ser obedecida, deve-se à norma hierarquicamente superior, chegando-se a uma norma fundamental pressuposta. Da mesma forma, o motivo para a validade do Direito internacional será uma norma pressuposta, a qual institui o costume como fato criador do Direito. Esta será, em última análise, também o motivo da validade das ordens jurídicas nacionais. Cf. KELSEN, 2001, p. 251-259. 10 Importa destacar que Kelsen adota a teoria monista com prevalência do Direito internacional. Segundo essa concepção, a ordem jurídica internacional complementa o Direito nacional, abrangendo todas as ordens jurídicas nacionais. Cf. KELSEN, 1998, p. 516 e ss. 11 Para Hart, as normas primárias (embora na denominação de Hart ele sempre se refira a “regras”) são aquelas que determinam uma obrigação (“regras de obrigação”). Ocorre que o ordenamento jurídico não pode contar apenas com essas normas pois estas têm “defeitos” que lhes são inerentes. Assim, o ordenamento conta ainda com normas secundárias, as quais dizem respeito às normas primárias, estabelecendo exceções, formas de aplicação e a alteração destas (HART, 2009, p. 105 e passim). 42 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional fontes do direito e forneça critérios gerais para a identificação de suas normas (HART, 2009, p. 277)12. Contudo, Hart sustenta que não se pode com isso afirmar a inexistência do direito internacional, ou tente conciliar sua existência (evidente) com uma norma fundamental. Para Hart, trata-se de um direito distinto, mas ao qual não se pode negar o estatuto de Direito. O autor critica as tentativas de estabelecer analogias do direito internacional com o direito interno na tentativa de afirmá-lo como “direito”: Como já dissemos, [a estrutura do direito internacional] se assemelha na forma embora não no conteúdo, a um regime simples de direito primário ou consuetudinário. Entretanto, alguns teóricos, ansiosos por defender contra os céticos o título do direito internacional a ser chamado “direito”, sucumbiram à tentação de minimizar essas diferenças formais e de exagerar as analogias que podem ser encontradas no direito internacional com a produção de leis ou outras características formais desejáveis do direito interno. (idem, p. 301) Para Hart a pergunta a fazer não é qual a norma fundamental do direito internacional, mas sim porque fazer essa suposição a priori. O autor defende a possibilidade de existirem conjuntos de normas que não necessariamente precisam ser validadas por uma norma unificadora. A crítica de Hart à Kelsen é expressa: Kelsen e muitos teóricos modernos insistem em que o direito internacional, como o interno, possui, e de fato precisa possuir, uma “norma fundamental”, aquilo que chamamos de norma de reconhecimento, em relação à qual se avalia a validade das outras normas do sistema e em virtude da qual as normas constituem um único sistema. (idem, ibidem) Nesse sentido, a validade do direito internacional, para Hart, não necessariamente reside em uma norma fundamental (ou em uma norma de reconhecimento, segundo seus conceitos teóricos). Para o autor, o direito internacional é um conjunto de normas os quais se assemelham ao direito interno quanto ao conteúdo, e não à forma, não havendo portanto, uma norma fundamental que ofereça critérios gerais de validade para suas normas. Hart não afasta a possibilidade de o direito internacional se desenvolver a ponto de assemelhar-se a um sistema como o direito interno. Nesse caso as analogias que ele refuta passariam a ser válidas; mas afirmá-las no contexto contemporâneo é ainda precipitado (idem, p. 305)13. 12 Para Hart a regra máxima do ordenamento é a norma de reconhecimento, a qual conte os fundamentos da validade de todas as demais regras. Em Hart também existe a concepção de um sistema jurídico escalonado, cujo ápice é ocupado pela norma de reconhecimento. Entretanto, para o britânico essa norma é explicada pela prática (fundamento empírico da norma fundamental). Cf. HART, 2009, p. 129 e ss. 13 A veemência da crítica de Hart aos teóricos que buscam enquadrar o direito internacional em formas e conceito teóricos típicos do direito interno é ainda ironicamente explicitada pelo autor na seguinte passagem: 43 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Com isso, Hart desvia a validade do direito internacional de aspectos formais para aspectos factuais. Nesse sentido, é importante considerar outros critérios de validade das normas e do ordenamento jurídico para além de abordagens meramente formais. A legitimidade e a eficácia do direito internacional podem ser critérios elucidativos para o reconhecimento da validade das normas de direito internacional. 4 LEGITIMIDADE COMO CRITÉRIO DE VALIDADE É bem verdade que o conceito de validade por meio do qual refletimos as questões apresentadas até então não considera aspectos importantes como o conteúdo ético e a repercussão social das normas jurídicas. Robert Alexy chama a atenção que a validade do Direito pode ser pensada em correspondência aos conceitos de Direito (ALEXY, 2009, p. 101 e ss.). O autor destaca os conceitos sociológico e ético de validade, além do conceito jurídico. Pelo conceito de validade ética, as normas são válidas quando moralmente justificadas. Por sua vez, a validade sociológica levaria em conta a efetiva repercussão da norma na sociedade. Sob esse viés, uma norma seria válida se fosse observada ou se, no caso de sua inobservância, haja a punição estabelecida (idem, p. 102). A questão da legitimidade da norma jurídica ressoa como essencial nas discussões de Teoria Geral do Direito. Uma das razões aparente é o fato de esse elemento propor uma aproximação, ainda que tímida, das teorias juspositivistas a explicações que consideram alguma justificativa para validade do Direito que foge ao próprio sistema. Chega-se a um limiar em que se questiona donde deriva o fundamento de validade da norma jurídica. Nesse ponto, muitos autores tergiversam em considerar, ou não, a importância de fatores “externos ao sistema” (BOBBIO, 1995, p. 63). De onde advém a legitimidade é questão que os juristas, notadamente os positivistas, preferem desviar, sob a alegação de que esta não é função de uma teoria cientifica do Direito. Embora o fundamento da legitimidade em si seja relegado a segundo plano, o da função que ela exerce não o seja. Assim é que os autores consideram a legitimidade como fundamento de “Há algo de cômico nos esforços para encontrar uma norma fundamental nas formas mais simples de estrutura social, que existem sem necessitar dela. É como se afirmássemos com insistência que um selvagem nu na realidade está vestido com um tipo invisível de roupa moderna.” (HART, op. cit., p. 304). 44 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional validade da norma jurídica (KELSEN, 2009, p. 233; BOBBIO, 1995, p. 60; VASCONCELOS, 2000, p. 235). A concepção de ordenamento jurídico escalonado de Kelsen aponta para a norma imediatamente superior em hierarquia como fundamento de sua validade. Assim, a norma é válida por ser autorizada por uma norma superior no ordenamento escalonado. Chega-se assim, à Constituição e, acima dela, a uma norma pressuposta (KELSEN, 2009, p. 225). Nesse aspecto, Kelsen mantém sua proposta de neutralidade axiológica na concepção do principio da legitimidade. Daí sua afirmação: Dum ponto de vista jurídico, é indiferente que esta modificação da situação jurídica seja produzida através de um emprego da força dirigida contra o governo legítimo ou pelos próprios membros deste governo, através de um movimento de massas populares ou de um pequeno grupo de indivíduos. (idem, ibidem) De certa forma, essa concepção da legitimidade do ponto de vista pretensamente neutro em busca de uma afirmação da ciência do Direito é defendida por Bobbio. O autor, demonstrando a dependência de uma norma fundamental para justificar o poder constituinte e a unidade do sistema jurídico, postula que desta norma fundamental deriva a legitimidade de todo o sistema. Assim, uma norma é válida se tiver sido criada em obediência às regras do ordenamento. Ou seja, a pertinência ao ordenamento é que a caracteriza como válida e, portanto, apta a produzir efeitos. Bobbio simplifica a questão ao afirmar: “Significa que consideramos legítima a Constituição porque foi legitimamente estabelecida.” (BOBBIO, 1995, p. 60). O autor chega a reconhecer que a questão da norma fundamental leva, por fim, a uma discussão acerca do fundamento do poder, elencando três respostas mais frequentes: todo o poder advém de Deus; o dever deriva de uma lei natural; o poder constituinte deriva de uma convenção originária (idem, p. 64). Arnaldo Vasconcelos, por sua vez, trata a legitimidade sob um viés axiológico, considerando-a como uma “instância de valor”, reconhecendo que, por meio da legitimidade, “verifica-se a preeminência do fato político sobre o jurídico, colocando-se a legitimidade por cima da justiça” (VASCONCELOS, 2000, p. 234). O autor faz tal afirmação sob a observação de que, no sistema jurídico positivista, “a justiça não integra o conceito essencial de Direito” (idem, ibidem). Vasconcelos enfrenta a questão sobre a autoridade do poder que instaura uma ordem jurídica, reconhecendo que esse, para se impor, necessita ser legítimo. 45 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Parece correta a abordagem do autor, que reconhece a legitimidade como elemento fundamental para que o poder soberano se imponha. Desta forma, a legitimidade é reconhecida em seu aspecto social e político (idem, p. 246). Entretanto, isso não quer significar que todo governo legitimado pelo contexto histórico que o reconhece como soberano seja justo. Nesse aspecto, o autor é claro ao enfatizar preliminarmente que “a norma pode ser justa, sem ser legítima, legítima, sem ser justa e, ao mesmo tempo, justa e legítima ou injusta e ilegítima” (idem, p. 234). 5 LEGITIMIDADE E EFICÁCIA NO DIREITO INTERNACIONAL A compreensão da validade do direito internacional deve considerar, como alerta Hart, que características da norma diferenciam o direito internacional do direito interno. Essas características decorrem do meio onde são produzidas as normas internacionais, ou seja, no seio da sociedade internacional. Como visto, a visão clássica incluía apenas os Estados como legítimos sujeitos de direito internacional. Ainda no contexto pós-westfaliano os Estados são os principais construtores dessa ordem jurídica, contudo novas modalidades de arranjos jurídicos têm surgido – tais como acordos bilaterais ou multilaterais envolvendo pessoas jurídicas de direito privado. Apesar de o sistema jurídico internacional apresentar caracteres comuns ao direito interno por se tratar de uma ordem normativa, dotado de sanção em decorrência a um fato ilícito, outras características o distinguem. Mello, citando Aguilar Navarro, aponta algumas como o fato de as normas no sistema jurídico internacional apresentarem poucas normas em número, ter normas extremamente abstratas e serem atributivas, “no sentido de darem uma competência sem assinalarem a materialidade da ação a executar” (MELLO, 2004, p. 83). A essas características, outras podem ainda ser acrescidas como o faz o mesmo autor referindo-se a Serge Sur: relatividade, uma vez que cada Estado desenvolve a sua concepção sobre ela e o fato de que a mudança das normas internacionais é mais ampla do que o que se observa no direito interno (idem, p. 84). Como expressão do Direito (lato sensu), o direito internacional necessita de força jurídica para estabelecer limites à ação dos membros da sociedade internacional e cumprir seu objetivo de ordenar essa convivência global14. Para tanto, retomando as lições de Miguel 14 Não se quer com isso dizer que a validade da norma resida na força. Contudo, esse elemento indica a validade da norma, embora seja possível existir norma válida que não requisite força para seu cumprimento. 46 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Reale, é necessário que a regra de direito seja formalmente válida e socialmente eficaz (REALE, 2002, p. 113). Esse requisito aponta à condição da legitimidade na produção e aplicação da norma. Da legitimidade depende a efetividade do direito, o que não é diferente no âmbito do direito internacional. Legitimidade, todavia, não é conceito uníssono. Sob um ponto de vista clássico, legitimidade tem sido definida como justificação de autoridade, em termos mais precisos, a capacidade de tomar decisões obrigatórias ou de prescrever regras cujo cumprimento deve ser obrigatoriamente respeitado (WOLFRUM, 2006, p. 6). Para além da visão clássica, Bodansky busca superar a legitimidade normativa, elegendo uma abordagem que inclui dois tipos de legitimidade: política e social. Para o autor, legitimidade social é aquela atribuída pela aceitação dos atores de uma dada sociedade. Em se tratando da sociedade internacional, esses atores são os Estados, mas aí também inclusos as ONGs, as corporações e os indivíduos que crescentemente tem tomado parte no concerto internacional (BODANSKY, 2008, p. 313). Interessante observar que a própria inclusão desses últimos atores, não legitimados pela clássica ordem westfaliana, ocorre também pela via da legitimidade que a eles tem sido atribuída. Essa legitimidade social tem ganhado peso com a inclusão de novos atores além dos Estados nas relações internacionais. Também as organizações internacionais, compostas eminentemente por Estados, mas com muitos organismos já incluindo representantes da sociedade civil – como faz a OIT desde sua fundação, pautada no princípio do tripartismo – tem sido legitimadas para atuar autonomamente no cenário internacional, inclusive como produtores e executores de normas. Nesse contexto, a legitimidade que se atribui a um organismo ou outro sujeito de direito internacional depende do exercício de autoridade que ele exerce. Assim, “instituições exercendo diferentes tipos de legitimidade necessitam de diferentes bases de legitimidade” (idem, p. 316). Obviamente que ao exercício da autoridade exercida por determinado sujeito internacional, deve-se adicionar que a soberania clássica ainda repercute como uma fonte de legitimidade para atuação dos Estados no cenário internacional, tendo habilidade para negociar e para aderir a acordos internacionais (WOLFRUM, 2006, p. 6). Não se pode olvidar que o direito internacional é (ainda) bastante dependente da ordem jurídica interna de cada Estado. Tomando-se a análise da aplicação de tratados da atual ordem jurídica internacional, vê-se que o plano internacional submete-se ao interesse interno, ainda que no plano externo haja uma base de consensualidade para aprovação e adoção de um 47 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional determinado acordo. Há, portanto, uma importante “cadeia de legitimidade” conectando ordem jurídica interna e externa (idem, p. 7). Nesse sentido, Wolfrum questiona a legitimidade de tal corrente quando se estabelece relações com Estados não-democráticos, sobretudo porque o direito internacional não é provido de sanções automáticas contra Estados organizados em estrutura diferente daquela que vem sendo crescentemente exigida, qual seja, uma democracia representativa liberal de tipo ocidental. Acrescente-se que este aspecto tem sido utilizado como argumento para intervenções internacionais violentas no âmbito interno de vários países, como se tem observado desde a Guerra do Golfo até a mais recente operação da OTAN contra o ditador líbio Muammar Gadafi. Isso evidencia a dificuldade de se estabelecer um sistema jurídico uno onde os sujeitos legitimados a construí-lo estão em igualdade jurídica, mas não de fato. De fato, existe uma enorme disparidade de poder entre os países, daí decorrendo uma imposição de vontade por parte das grandes potências. Paralelamente a tais importantes questões acerca da legitimidade, a eficácia do direito internacional encontra ainda obstáculo na heterogeneidade do sistema internacional. Matz-Lück aponta para o crescente estabelecimento de cortes internacionais e outros mecanismos de regulação de disputas na ordem internacional como causa de uma fragmentação do direito internacional (MATZ-LÜCK, 2008, p. 99-121, passim). A instalação de tribunais especializados e a superveniência de competência entre um tribunal e outro – sem que seja claramente atribuída uma competência para resolução de conflitos de competência entre tais tribunais – pode ensejar por parte do jurisdicionado a escolha do órgão jurisdicional que lhe possa ser mais benéfico15. Em 2006, o Grupo de Estudos da Comissão de Direito Internacional da ONU apresentou relatório acerca da fragmentação do direito internacional. Não obstante o reconhecimento por parte da comissão da multiplicação de órgãos jurígenos e jurisdicionais no âmbito internacional, o relatório reconheceu a existência de um sistema legal internacional. Para a comissão, “o sistema internacional não é uma coleção aleatória de normas” (apud MATZ-LÜCK, op. cit., p. 105). Daí é que o autor reconhece, como o faz Bodansky (2008), a existência de diferentes bases de legitimidade na ordem jurídica internacional. Todavia, ainda que esse sistema não 15 Matz-Lück justifica a possibilidade de tal prática pelo fato de no sistema jurídico internacional não haver uma norma genérica de litispendência que impeça ou dificulte a proposição de ação da mesma lide em diferentes tribunais. Cf. MATZ-LÜCK, op. cit., p. 102. 48 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional seja dotado da unidade e hierarquia no que concerne a produção e aplicação de normas, não se pode negar a sua existência. Para Matz-Lück, a fragmentação é inerente ao direito internacional. As regras são mais genéricas e aplicáveis, na maioria dos casos, entre as partes que se submeteram a adotá-las. Dessa forma, não se pode falar de um corpus normativo como se pode observar em ordenamentos jurídicos internos (MATZ-LÜCK, op. cit., p. 107). Apesar das limitações da fragmentação do direito internacional para sua legitimidade e eficácia, a crescente atividade jurisdicional tem levado a uma experiência de operacionalização do direito internacional que aponta para a construção de uma jurisprudência minimamente coerente (ibidem). Mesmo com os riscos de competição entre regras e organismos jurisdicionais no âmbito internacional, há também um importante desenvolvimento do internacionalismo jurídico e conseqüências a nível interno de cada país. Justifica-se, portanto, a prática do direito internacional na medida em que ela proporciona legitimidade a um sistema jurídico em constante construção e que tem apontado gradualmente a uma conformação coerente. Assim observa Matz-Lück analisando a adoção de precedentes por diferentes cortes, e mesmos sistemas, do direito internacional (idem, ibidem). Em consonância com esse posicionamento, Wolfrum entende que o direito internacional tem desenvolvido formas sutis de influenciar a organização jurídica e administrativa dos Estados, ainda que de forma indireta. Sob uma visão alargada do conceito de eficácia jurídica, esta seria já uma eficácia indireta do direito internacional (WOLFRUM, 2008, p. 10). Por certo que estamos longe da construção de um sistema unificado de normas (substantivas e adjetivas) no âmbito internacional. Porém, muitos passos tem sido dados na construção de uma governança global que seja capaz de conferir legitimidade suficiente para operacionalização de um tal sistema. Diante da intensificação da vida social global e da afirmação de sujeitos de direito internacional que não os Estados, não há falar-se em retrocesso no que concerne à construção de um sistema de direito internacional. Essa expansão foi tema do X Congresso Brasileiro de Direito Internacional, em 2012. Para Wagner Menezes, presidente da Academia Brasileira de Direito Internacional, organizadora do evento, o fenômeno da internacionalização não é um ‘modismo’ do Direito e, sim, decorrência de uma nova realidade global, consolidada a partir da sociedade internacional contemporânea, que evolui para a maior institucionalização das 49 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional relações entre os Estados e engloba uma dinâmica agenda internacional, na qual são incorporados novos temas, mecanismos e atores. (MENEZES, 2011, p. 27) A expansão do direito internacional acompanha o impulso dado pelo fenômeno da juridicização das relações sociais. Emmanuelle Jouannet argumenta que o direito e, nessa toada, o direito internacional têm-se expandido sobremaneira, alcançando o que a autora chama de “panjuridismo”, na medida em que o Direito é chamado a regular os mais diversos domínios da vida social. Jouannet alerta para o fato de que replicação de normas já em vigor no direito interno pelo direito internacional além das promessas ambiciosas que se tem defendido pode levar ao enfraquecimento do próprio direito internacional no que concerne à sua legitimidade e eficácia (JOUANNET, 2007, passim). Certamente que o alerta de Jouannet não se aplica apenas ao direito internacional, podendo estender-se ao direito interno diante de fenômenos contemporâneos como a judicialização da política. Contudo não se pode deixar de considerar o fato de que o direito internacional tem realmente se desenvolvido a ponto de regular cada vez mais matérias, antes consideradas específicas demais para serem universalizadas por normas internacionais. De toda forma, não se pode dar as costas para o avanço do direito internacional e sua paulatina presença do cotidiano forense. Recair na postura dos céticos apontados por H. L. A. Hart que não consideram o direito internacional “direito” ou de adotar subterfúgios teóricos para justificar a validade do direito internacional com base em concepções construídas para explicar o direito interno não parece adequado. Malgrado a evidente expansão do direito internacional, a pergunta lançada por Anthony D’Amato – a qual intitula célebre artigo de 1984 – ainda é respondida por muitos de forma negativa. D’Amato lança seu questionamento – “Direito internacional é realmente ‘Direito’?” – argumentando que os processos de aplicação do direito internacional são distintos, e contam muito mais com ações políticas para alcançar eficácia, o que não quer dizer que o Direito internacional não seja “Direito” (D’AMATO, 1985, passim). O autor refuta a argumentação genericamente apresentada contra a juridicidade do direito internacional com base na alegada falta de eficácia coativa. Para D’Amato coação não é marca distintiva do Direito, portanto, não se pode argumentar pela inexistência do direito (internacional ou qualquer outro) pelo fato de não alcançar os fins pretendidos pelas normas estabelecidas. O autor sustenta que é possível imaginar uma sociedade idílica em que haja Direito e que não haja uso da força, nem mesmo sequer os aparelhos estatais para uso da força. Não havendo necessidade da coação, ela resta apenas como uma possibilidade, logo a coação não é intrínseca nem necessária à existência do Direito (idem, p. 1297). 50 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Juntamente com esse argumento – e também o argumento de linguagem segundo o qual o autor afirma que as discussões jurídicas em torno do direito internacional já o conferem existência16 – D’Amato defende que a aplicação do direito deve ser observada sob o viés das prerrogativas que são conferidas aos participantes da sociedade jurídica (entitlements17) e que lhes são restringidos caso uma dessas partes violem as normas. Nesse sentido, torna-se mais fácil pensar em outras formas de sanção além da coação física, tais como sanções sociais, morais e políticas. Em seu raciocínio, D’Amato considera os Estados como um conjunto de prerrogativas (entitlements) de diferentes matizes, dentre os quais os mais importantes são a inviolabilidade de fronteiras, o exercício da jurisdição e a proteção de seus nacionais quando estes estão além das fronteiras18. Cada novo Estado na sociedade internacional consente na aceitação do conjunto de prerrogativas (entitlements) que é inerente a cada Estado, de forma igualitária. Entretanto, as prerrogativas de um podem ser violadas por outro (e.g. violação da imunidade diplomática ao se atacar uma embaixada). Nesse contexto, D’Amato sustenta que um Estado atingido em um de suas prerrogativas pode retaliar em outra frente, visando a comprometer outra prerrogativa do Estado que o atacou. Como exemplo, o autor apresenta o caso da ocupação da embaixada dos Estados Unidos, em Teerã (capital do Irã), em 1979. Esta foi considerada uma violação à prerrogativa imunidade diplomática. Como retaliação, os EUA não restringiram a mesma prerrogativa do Irã, ocupando sua embaixada em Washington ou expulsando os diplomatas iranianos do território estadunidense. Os EUA optaram por responder ao ataque restringindo (violando) a prerrogativa do Irã no que concerne ao uso de depósitos bancários no exterior. Dessa forma, os EUA “congelaram” aproximadamente treze bilhões de dólares iranianos depositados em bancos estadunidenses (idem, p. 1312). Essa é uma forma muito comum de se atuar no âmbito do direito internacional, em que muitos aspectos de relações internacionais estão em jogo. D’Amato defende que é juridicamente possível a retaliação contra a violação de uma prerrogativa com a violação de uma prerrogativa de natureza diversa. D’Amato chama esse processo de “violação recíproca de prerrogativas” (reciprocal-entitlement violation), o qual seria o meio de coação do Direito internacional, que só em última instância opera com o uso da força. Isso não quer dizer que o Direito internacional seja ineficaz por isso. 16 Idem, p. 1301-1302. Também se pode traduzir entitlement por “direito subjetivo”. 18 Idem, p. 1308. 17 51 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Abordagens mais recentes têm buscado compreender a legitimidade e a eficácia do Direito internacional com base em critérios próprios a esse ramo do Direito. Nesse sentido, Andrew Guzman defende que o Direito internacional não pode ser dissociado da política internacional. O autor destaca que “o direito internacional tem o potencial de influenciar o comportamento dos Estados, mas ele sempre o faz em um contexto político.” (GUZMAN, 2008, p. 217) Segundo a tese defendida por Guzman, uma violação ao Direito internacional pode custar ao Estado três custos, na seguinte ordem de grau de intervenção: reputação, reciprocidade e retaliação (os três Rs) (idem, p. 33-48). Essas formas de aplicação do Direito internacional coadunam-se com a ideia de violação recíproca de prerrogativas de D’Amato e colocam a questão da eficácia do Direito internacional em termos bem mais complexos do que a simples mensuração da aplicação de sanções diretamente previstas para o caso de inobservância a uma norma de suas normas. Do ponto de vista da validade do Direito internacional, é mister lançar mão de concepções e fontes outras que não as estritamente jurídico-formais. A atribuição imperativa de uma norma fundamental como unificadora do ordenamento jurídico tem-se mostrado problemática. Ao contrário, a legitimidade e a eficácia dessas normas no contexto da sociedade internacional, compreendida com auxílio do olhar das relações internacionais, são conceitos de validade que se mostram apropriados. Análises factuais, que busquem descrever o Direito internacional a partir de suas práticas, de sua forma e de sua eficácia específica, contribuem para amadurecer a compreensão dos fenômenos do Direito internacional e certamente refutarão muitas das atribuições teorísticas que foram construídas sem o devido cotejo com a realidade. Diante de todo o exposto e do irrefreável avanço do processo de internacionalização do Direito – consequência da intensificação dos processos de globalização e relativização da(s) soberania(s) – é desarrazoada qualquer tentativa de negar validade ao Direito internacional. E tão insensata quanto essa atitude é valer-se de instrumentos teóricos construídos para a análise do direito doméstico no intuito de compreender o Direito internacional. É preciso compreender esse ramo jurídico em suas especificidades. 52 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A validade da norma jurídica (e do ordenamento jurídico) é conceito caro à Teoria Geral do Direito. Pela validade, pode-se afirmar a vigência da norma, ou seja, sua aptidão para incidir determinando uma conduta. Também pela via da validade busca-se chegar ao fundamento da norma, a razão pela qual ela encontra sua força para incidir. Outra importância atribuída à validade é o estabelecimento de critérios de unificação do ordenamento, a partir de um ponto de irradiação de normas. O positivismo jurídico ressalta o conceito formal de validade como critério primordial. A partir da concepção de ordenamento jurídico escalonado, as normas encontram fundamento de validade naquelas que estão hierarquicamente acima, até alcançar a Constituição, norma que rege as demais no ordenamento. Acima da Constituição, haveria uma norma fundamental, pressuposta, que por sua vez lhe conferiria validade. A compreensão da validade do Direito internacional requer um entendimento da soberania como o poder inerente ao Estado, a partir do qual a norma fundamental é engendrada. No âmbito interno, é possível estabelecer uma hierarquia de produção normativa a partir do Estado, haja vista que não há outras soberanias a competir com o poder Estatal (conferido pelo povo, por meio do contrato social). Assim, justifica-se conceber uma normaápice que coordena a produção e aplicação das demais. Todavia, afigura-se mais complexo o estabelecimento de um sistema jurídico hierarquicamente ordenado no âmbito da sociedade internacional – em que várias soberanias convivem no mesmo patamar hierárquico. Uma análise da validade do Direito internacional – assim como de outras características desse ramo do Direito – devem levar em conta suas especificidades. A comparação do Direito internacional com o Direito doméstico no que concerne a sua estrutura e funcionamento (em suma, à sua forma) pode conduzir a equívocos. Nesse contexto, outros conceitos de validade do Direito além dos critérios meramente formais são de grande relevância para identificar a validade das normas de Direito internacional. Os critérios social e ético apontados pela legitimidade e pela eficácia devem ser considerados. Ademais, é importante ter em mente uma abordagem que considere as relações internacionais e suas peculiaridades. Nesse sentido, Anthony D’Amato (1985) e Andrew Guzman (2008) contribuem com a indicação de formas de aplicação do Direito internacional que demonstram sua eficácia, mas que não necessariamente seguem a lógica aplicada ao Direito interno. 53 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A expansão do Direito internacional é fenômeno que se intensifica a cada dia, impulsionado pela intensificação do processo de globalização. A negação da validade do Direito internacional ou sua limitação a um modelo teórico estabelecido para explicar o Direito nacional padecem não apenas de insensatez, mas também de pungente anacronismo. 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Trad. Gercélia Bastista de O. Mendes. São Paulo: Martins Fontes, 2009. BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Tradução de Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. São Paulo: Edipro, 2001. ________. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 6.ed. Brasília: UnB, 1995. BODANSKY, Daniel. The concept of legitimacy in Internacional Law. In: WOLFRUM, R.; ROBEN, V. (orgs.). Legitimacy in International Law. Heidelberg: Springer, 2008, pp. 309317. BODIN, Jean. Les six livres de la République. Édition et présentation de Gérard Mairet. Paris: Librairie générale française, 1993. BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. 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A partir da análise da teoria da Sociedade do Risco e seu alcance, a concretização da esfera de proteção dos chamados novos riscos pode encontrar um caminho na chamada mundialização dos juízes, tida como uma nova ordem jurídica capaz, até mesmo, de transfigurar a soberania dos Estados e possibilitar o surgimento de um verdadeiro Direito Transnacional capaz de responder aos novos anseios globais. Palavras-chave: Decisões Judiciais; Ordem Jurídica; Sociedade do Risco; Direito Transnacional ABSTRACT El presente artículo aborda las tendencias de ampliación de la esfera del Intercambio de las decisiones judiciales como preâmbulo de un efectivo Derecho Transnacional en la sociedad actual. Se busca hacer un diálogo entre la teoria de la Sociedad del Riesgo de Doutoranda em Ciências Criminais na Universidade do Minho,UMINHO, Portugal. Mestre em Ciências Jurídicas pela UNIVALI, Brasil. Especialista em Direito Penal Empresarial pela UNIVALI, Brasil. Professora de Direito Penal da Graduação e Pós-graduação na UNIVALI. 1 57 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Ulrich Beck y la mundializacion de las decisiones judiciales propuesta por Jullie Allard y Antonie Garapon. A partir del análisis de la teoria de la Sociedad del Riesgo y su alcance, la concretización de la esfera de protección de los llamados nuevos riesgos puede encontrar un camino en la llamada mundialización de los jueces, tenida como una nueva orden jurídica capaz, hasta mismo, de una transfiguración de la soberania de los Estados y posibilitar el surgimiento de un verdadero Derecho Transnacional capaz de responder a los nuevos deseos globales. PALABRAS-CLAVES: Decisiones Judiciais; Orden Juridica; Sociedad del Riesgo; Derecho Transnacional INTRODUÇÃO O novo contexto global e a necessidade de “descrever um espaço judicial que nasça independentemente da referência a um sistema jurídico homogêneo e vinculativo”2, típicos do Estado Moderno mas que não mais pode perdurar, tem na chamada mundialização das decisões judiciais sua via de concretização, pois, coloca em questão não só a posição dos juízes frente o poder público mas as restrições próprias de um julgamento, a possibilidade de modificar o estilo judicial e aumentar a racionalidade das decisões da justiça. Desafia a uma “coexistência” harmoniosa entre os vários sistemas jurídicos. Se vincularmos essa tendência na perspectiva da sociedade pós-industrial, tendo como base a teoria da sociedade do risco, mais claramente surge a possibilidade de flexibilização de um marco ideológico firmado no Estado Moderno: a idéia de Soberania e mais próximo se estará de um Direito Transnacional. A sociedade industrial e o desenvolvimento da idéia de Estado nacional estão em xeque no novo contexto global de uma sociedade tecnológica e de riscos que superam a idéia de territorialidade tipicamente relacionada ao conceito de soberania. 2 ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. Os juízes na mundialização. A nova revolução do Direito. Lisboa: Editora do Instituto Piaget. p.05 58 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Os antigos perigos que, anteriormente, atingiam somente os países periféricos e de forma regionalizada, vêm sendo substituídos pela idéia de riscos, mais amplos e de alcance global. Neste novo formato de sociedade, ao contrário da racionalidade controladora da sociedade industrial, aflora a incerteza, a ambivalência. O Direito diante desse novo paradigma pós-moderno deve ser repensado. Para tanto, o presente artigo enfatiza a necessidade de harmonizar as exigências de eficácia na proteção dos riscos tendo como base o intercâmbio das decisões judiciais a propiciar não somente a proteção jurídica dos riscos globais mas como impulso de um Direito Transnacional. 1. A revolução tecnológica como mudança de paradigma: A Sociedade global de riscos de Ulrich Beck No entender de Boaventura de Souza Santos 3 a sociedade está posta em cheque por novos paradigmas, e o paradigma da modernidade só estaria a perdurar como dominante em função da inércia histórica. Nesse contexto, a teoria da Sociedade do Risco4 formulada pelo teórico alemão Ulrich Beck analisa a produção dos riscos5 e seus desdobramentos, como determinantes 3 SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, vol.1, 3ªed. São Paulo:Cortez, 2001. p.15 (prefácio) 4 Explica WERNECK, Alexandre. ( sociólogo e pesquisador (de pós-doutorado) do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ). O horizonte de "Sociedade de risco" é o da “sociedade industrial”, ou seja, ele parte de uma tese sobre a própria modernidade (e, portanto, sobre a própria sociologia), afirmando o papel de protagonista – que classicamente é apontado por vários autores, como Durkheim – da industrialização na diferenciação entre os mundos pré-moderno e moderno. E a extensão mais poderosa disso seria o poder da tecnologia e do desenvolvimento industrial nas próprias relações sociais. Beck afirma que elas foram profundamente transformadas por seu próprio desenvolvimento, que produziu o risco global. E se na década de 1980 em que o sociólogo escreveu seu livro o cerne desse desenvolvimento era a produção centrada na transformação de formas de energia (as grandes industrias do século XX são a do automóvel, a da produção de recursos energéticos e a militar), nesse quarto de século desde o lançamento original, essa transformação se mudou para o plano informacional, para uma, digamos, sociedade (digital) de risco. São as tecnologias comunicacionais, a internet, a telefonia móvel, etc. Tudo configurando um conjunto de “incertezas fabricadas” (aquelas criadas pelo próprio movimento da vida social) ainda mais intensas, que se não aparecem concretamente descritas no livro, diante dele adquirem uma nova luz. 59 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional dessa mudança paradigmática na sociedade, afirma que a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos; a distribuição dos riscos não obedece proporcionalmente a distribuição de riquezas e se irradia para todos os grupos sociais; o desmoronamento dos esquemas tradicionais da sociedade industrial foi impulsionado por uma forte onda de individualismo nascida no pós-guerra; o individualismo mina de inseguranças o processo de modernização, através de diversos fatores decorrentes, a modernização é um processo complexo, sujeito a constantes (re) avaliações e transformações em que o desenvolvimento democrático destrona o saber científico e a ação política de seus respectivos monopólios e, por fim, caracteriza-se pela relativização do saber científico e da ação política formando um ciclo vicioso na produção dos riscos.6 O teórico alemão não olvida a existência de diferenças entre níveis sociais distintos no tocante à exposição aos riscos na vida cotidiana, nos estudos, saúde, e demais aspectos da vida em geral – aludindo aos riscos específicos de classes. Percebe, da mesma forma, a existência de novas desigualdades internacionais, registrando neste sentido que as indústrias geradoras de maior risco se deslocaram para os países em que se pagam os menores salários7 . Segundo Beck os riscos atuais se diferenciam pela globalização de sua ameaça e por suas causas modernas, são os riscos da modernização. É um produto global da maquinaria do progresso industrial e são acentuados sistematicamente por seu desenvolvimento posterior. São problemas decorrentes do próprio progresso científico. Dessa forma o processo de modernização se torna reflexivo, e torna a si mesmo como tema e problema.8 5 Ulrich Beck denominou em 1986, a sociedade em que vivemos de “sociedade do risco”. Outros autores conceberam diferentes expressões como :”sociedade pós-moderna”, “sociedade da informação”, “sociedade tecnológica”, “sociedade pós-industrial”. Anthony Giddens, refere-se a uma “modernidade amadurecida”. O uso dessas diferentes expressões para designar a sociedade atual justifica-se desde que se queira dar ênfase a uma ou algumas características, já que estas são as mesmas, independentemente da variação nominativa. Todas, têm em comum a conexão com a idéia de risco global assim como Beck sustenta. 6 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia uma nueva modernidad. Barcelona: Paidós Ibérica S.A., 2002. p.25 7 BECK, Ulrich. Op.Cit., p.47 8 BECK, Ulrich. Op.cit., p.26. Importante destacar que o conceito de modernidade reflexiva é estruturante da obra de Beck e esta, por sua vez, oferece sustentáculo teórico ao marco doutrinário representado pela sociedade do risco. 60 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Além disso, os riscos também adotaram feições bastante particulares quanto às proporções em que se apresentam. Uma atitude ou comportamento tomado em um determinado local do planeta pode ter suas consequências estendidas a uma grande quantidade de países, ou até mesmo, somente se fazerem sentir em local diverso daquele em que foi praticada sua ação desencadeadora. Desse modo, as populações locais têm que se preocupar com as ações praticadas em seus territórios, mas também com as executadas em qualquer outra parte do mundo. Mesmo em relação aos supostos riscos aos quais não deu causa, a população se sente na obrigação de ficar alerta. Tem lugar aqui o conceito utilizado por Ulrich Beck9 de glocalidade, que agrega a possibilidade de riscos simultaneamente sentidos em perspectiva local e global. A percepção dos riscos ambientais, por exemplo, faz com que muitos adotem uma posição fatalista, que segundo Beck10, gera uma percepção pública dos riscos, emergindo daí uma sociedade autocrítica disposta a reações e reformulações. Nessa atual configuração dos riscos, as ações hoje perpetradas possuem efeitos que podem perdurar por muito tempo. Durante esse período, a população padece sempre sob o medo de que os efeitos prejudiciais sejam por ela sofridos, vivendo em uma angustiante incerteza. Compreendidas, assim, as bases da teoria de Ulrich Beck, no entender de André Luiz Callegari11 torna-se fácil perceber a Sociedade do Risco como aquela em que os constantes avanços tecnológicos, científicos e econômicos propiciam um crescimento do conforto e do bem-estar individual da vida humana, porém, também trazem aspectos negativos, como incremento dos riscos a que estamos submetidos, o que acarreta uma demanda por segurança. BECK, Ulrich. Op.Cit., p. 60. BECK, Ulrich. O que é Globalização? Equívocos do Globalismo. Respostas à Globalização. Trad. André Carone – São Paulo:Paz e Terra, 1999. p.175 11 CALLEGARI, Luiz André. Direito Penal e Globalização – Sociedade do Risco, Imigração Irregular e Justiça Restaurativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.p.15 9 10 61 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional E em determinado momento essa junção de fatores é percebida e torna-se objeto de consideração pública, política, científica e do próprio Direito. Esse mecanismo faz toda a sociedade se movimentar. O que, anteriormente, parecia funcional e racional, agora, aparece como uma ameaça produzindo e legitimando uma disfuncionalidade e irracionalidade nas instituições, impelindo-as a uma transição. 3. A interface entre a Sociedade do Risco e a idéia de Soberania. O conceito de soberania sempre causou, e ainda hoje causa, inúmeras divergências. As definições elaboradas no século XIX, por exemplo, traziam com muito mais freqüência o termo "ilimitada" associado à idéia de soberania”. Arthur Machado Paupério definiu soberania como "a autoridade suprema, irresistível, absoluta, ilimitada"12, identificou-a como "o poder originário, absoluto, ilimitado e universal sobre os súditos individualmente e sobre as associações de súditos"13 Na atualidade, há os que afirmem que o significado moderno de soberania diz respeito a um "poder independente, supremo, inalienável e exclusivo."14 A soberania sempre esteve ligada à idéia de territorialidade, já que é o território um dos elementos formadores do Estado. Os limites de uma soberania frequentemente têm sido definidos por fronteiras geográficas; o controle do seu território é um dos mais importantes elementos que compõem a soberania. Na perspectiva pós-moderna e diante dos riscos globais, a natureza e a importância da soberania parecem estar a caminho de sofrer flexibilizações. Nesse contexto, a tendência atual é no sentido de que o Estado não pode tomar qualquer decisão que lhe aprouver, simplesmente levando em consideração os benefícios que lhe trará; atualmente, ao contrário, o Estado soberano parece dever cada vez mais satisfações no que concerne às suas decisões, satisfações estas devidas não só 12 PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder: Teoria Democrática da Soberania. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 145-147, 3ed., vol.2, 1997.p.146. 13 PAUPÉRIO, Arthur Machado. Op.cit. p.146 14 FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 17, 62 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional à sua população, mas também a outros Estados soberanos e a órgãos internacionais. O poder de julgar sem ser julgado – que integra o poder soberano – vem diminuindo consideravelmente. A globalização, no entender de Paulo Márcio Cruz15, rompeu a unidade do Estado Constitucional moderno, estabelecendo novas relações de poder e competitividade, com conflitos internos e transnacionais. Daniel Sarmento16, em estudo sobre o tema, dispõe que a globalização vem alimentando o processo de esfacelamento do Estado-Providência, na medida em que vai corroendo o seu poder de efetivamente subordinar, de modo soberano, os fatores econômicos e sociais que condicionam a vida de cada comunidade política. Cada vez mais avulta a importância de variáveis exógenas sobre a economia nacional, sobre as quais o Estado-nação não exerce nenhum poder. Se as fronteiras são construções artificiais criadas pelos Estados, nos dias de hoje, mais do que nunca, há necessidade de se enfrentar os desafios decorrentes desse fato e seus reflexos no direito17. A idéia de repensar as fronteiras, como decorrência do efeito globalização, que provocou o desenvolvimento da tecnologia, a expansão das comunicações e o aperfeiçoamento do sistema de transportes, têm permitido a integração de mercados em velocidade avassaladora e tem propiciado uma intensificação da circulação de bens, serviços, tecnologias, capitais, culturas e informações em escala planetária. Isso tudo provocou, no entender de José Eduardo Faria18, "a desconcentração, a descentralização e a fragmentação do poder." Essa intensificação da interdependência em escala mundial desterritorializa as relações sociais, e a multiplicação de reivindicações por direitos de natureza 15 CRUZ, Paulo Márcio. Da Soberania à Transnacionalidade. Itajaí: UNIVALI Editora, 2011. p.97 SARMENTO, Daniel. Os direitos fundamentais nos paradigmas liberal, social e pós-social- (PósModernidade Constitucional?). In: FERRAZ Jr., Tércio Sampaio (Coord.). Crises e desafios da Constituição brasileira. Rio de Janeiro, 2002, p. 398 17 BERARDO, Telma. Soberania, um Novo Conceito?, Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 40, p. 40, julho/set. 2002. 18 FARIA, José Eduardo. Op.cit. p.07. 16 63 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional supranacional relativiza o papel do Estado-nação, que tem como uma de suas características principais a territorialidade. Na mundialização dos juízes o que se visualiza, como bem sustentam, Jullie Allard e Antonie Garapon19 é o” intercâmbio de decisões”. A ocorrência de "associações" entre Estados, como no caso da União Européia, por exemplo, têm forçado os Estados, no entender de Cláudio Finkelstein20, a uma compartilhação das soberanias dos Estados-membros. Isto implicou, no momento considerado oportuno, na cessão de parcelas de soberania dos estados aos órgãos comunitários supranacionais. A soberania compartilhada exprime um desejo e um anseio dos próprios Estados-membros e a parcela desta cedida ao órgão supranacional refletiu as vontades soberanas das nações21.Nesse mesmo sentido Jullie Allard e Antonie Garapon22 afirmam que a chamada comunicação entre os juízes pode tomar formas muito diversas que vão da relação vertical – em caso de criação de um tribunal supranacional – à relação horizontal ou à coordenação operacional. Claúdio Finkelstein defende, ainda, que a interpretação do conceito de soberania deve sofrer uma flexibilização, para viabilizar o movimento integracionista atual e que as definições clássicas de soberania já não prevalecem no Estado de Direito imposto pela nova ordem mundial23. Também Manoel Gonçalves Ferreira Filho24 defende a idéia da superação do Estado-Nação, com a conseqüente necessidade de associação entre os Estados, e da necessidade de revisão da soberania. ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. op.cit., p.09 FINKELSTEIN, Cláudio. Integração Regional: o Processo de Formação de mercados de Bloco. p. 64 - 72, 2000. 21 Os autores chamam de “comércio entre juízes”, e também ressaltam essa cooperação inédita entre as democracias, mas que também faz nascer uma competição entre poderes políticos, através da intervenção de juízes. Nesse contexto as figuras emblemáticas do “juiz-tenente”, aquele que tende a um patriotismo espontâneo por estar familiarizado com as instituições e métodos nacionais, o “juiz-embaixador”, o qual se torna uma espécie de embaixador na cena internacional, exercendo uma influência cultural considerável, inspirando os direitos estrangeiros. 22 ALLARD, Jullie e GARAPON. Antonie. op.cit. p.19 23 FINKELSTEIN, Cláudio. op.cit. p. 64 – 72. 24 FERREIRA FILHO. Manoel Gonçalves In: O Estado do Futuro. Martins, Ives Gandra (Coord.), São Paulo: Pioneira, 1998. p. 102-113. 19 20 64 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Jurgen Habermas25 defende uma vinculação da comunidade estatal em processos de colaboração implicados no plano político interno, para assim possibilitar aos Estados que se transformem em verdadeiros espaços públicos de colaboração. Daí a necessidade não só de um conhecimento, mas também de um reconhecimento mútuos, os quais constituem, de alguma forma, a condição prévia de qualquer intercâmbio. Os sistemas não entram em concorrência mas sim numa situação de avaliação recíproca permanente. Torna-se, portanto, difícil a cada um deles reivindicar o isolamento supremo que a soberania nacional outrora procurava alcançar26. Paulo Márcio Cruz27 afirma ser possível que o movimento de globalização, com a intervenção de novos pressupostos democráticos, impulsione outras formas de integração que permitam o início de uma caminhada em direção a uma maior solidariedade universal e um desenvolvimento comum solidário. Embora o princípio de não-interferência nos assuntos internos de um poder soberano seja um dogma da legislação internacional, sempre que há um problema envolvendo, por exemplo, a violação de direitos humanos e destruição do meio ambiente, a opinião pública acaba pressionando os outros países para que interfiram e resolvam o problema. Tem-se, inclusive, questionado o conceito do que seriam assuntos internos e vem-se construído um argumento no sentido de que a comunidade internacional tem a obrigação de intervir em defesa desses direitos em qualquer lugar do mundo. Essa idéia é impulsionada, sem dúvida, pela revolução da informação, que traz seres humanos que sofrem a milhares de quilômetros de distância para dentro das salas do mundo todo. Além disso, a poluição não respeita os limites territoriais do Estado, o ecossistema global é interligado, interdependente, e a destruição de uma floresta não prejudica apenas o ecossistema em cujo território está inserido, mas os povos de todo o globo. Nesse exemplo pode-se dizer que os riscos passam a ser globais. 25 HABERMAS.Jurgen. Más allá del Estado nacional. Ciudad de Mexico:Fondo de Cultura Econômica, 1998. P.14 26 ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. op.cit. p.27 27 CRUZ, Paulo Márcio. op.cit. p.87 65 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional No que se refere à clássica concepção de soberania, percebe-se que a abrangência deste princípio é invocada até hoje como uma premissa intocável e incontestável. Alguns sequer conseguem vislumbrar o funcionamento de um Estado sem esta prerrogativa histórica de que não pode haver interferência externa no "domínio reservado" deste Estado, fundamentando-se numa premissa que foi concebida em um contexto histórico próprio, e que não mais condiz com a realidade atual, como se pretende demonstrar. Por outro lado, tal tipo de intervenção confronta-se de forma irremediável com o conceito tradicional de soberania, o qual, conforme já foi dito, pressupõe que a última palavra nos assuntos internos seja sempre a do Estado soberano, sem interferência de outros Estados. Para Arthur Machado Paupério28 supremo não quer dizer ilimitado, pois não há nenhum poder que possua tal qualidade e citando Brucculeri, referido autor lembra que o Estado não é o criador do Direito, ele apenas determina-o e aplica-o, não passa de instrumento de revelação das normas jurídicas. Assim, essas normas jurídicas estatais obrigam, da mesma forma, governantes e governados.Valerio de Oliveira Mazzuoli 29 ensina que não existem direitos globais, internacionais e universais, sem uma soberania flexibilizada, o que impediria a projeção desses direitos na agenda internacional. Nesse sentido, e levando em consideração que o Estado, e, por conseguinte, a soberania, devem existir em prol do bem comum, é que se pode partir para uma justificativa das interferências, de um Estado em outro, que vêm acontecendo, por exemplo, quando direitos humanos são desrespeitados ou o meio-ambiente é prejudicado. 4. Uma nova ordem jurídica mundial na perspectiva de Jullie Allard e Antonie Garapon como resposta à Sociedade do Risco. 28 PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder: Teoria Democrática da Soberania. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 145-147, 3ed., vol.2, 1997 29 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Soberania e a proteção internacional dos direitos humanos:dois fundamentos irreconciliáveis. Revista de Informação Legislativa, n.156, p. 169-177, out/dez., 2002 66 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Na constatação feita por Beck et al de que “a reflexividade da modernidade produz não somente uma crise cultural de orientação, como alegam os comunitaristas mas uma crise institucional fundamental e mais extensivamente profunda na sociedade industrial tardia, todas as instituições fundamentais, como partidos políticos e os sindicatos, mas também os princípios causais da responsabilidade na ciência e no direito, as fronteiras nacionais, a ética da responsabilidade individual, a ordem da família nuclear, e assim por diante, perdem suas bases e sua legitimação histórica. Por isso a reflexividade da modernidade é equivalente ao prognóstico dos conflitos de valor de difícil resolução sobre os fundamentos do futuro”30 O intercâmbio entre as cortes abordado por Jullie Allard e Antonie Garapon pode ser útil e necessário nesse novo contexto global e se baseia, sobretudo, nas funções que esses órgãos vêm desempenhando entre si a partir da análise de vários casos concretos, tais como, mediação, admoestação, estímulo, avaliação, colaboração e neutralização. “Até muito recentemente confinados ao território nacional, os juízes passam, de agora em diante, a estabelecer entre eles, e através das fronteiras, relações cada vez mais sólidas e confiantes. Estas relações podem tomar as formas mais diversas: referência a julgamentos estrangeiros em decisões de âmbito nacional, intercâmbio de argumentos, formações comuns, diálogo entre tribunais, criação de associações transnacionais, de clubes ou sindicatos de juízes, capitalizações informais de jurisprudências, etc.”31 Numa interface com a sociedade do risco, é possível se estabelecer, como uma espécie de “pedra fundamental” a proposta de mundialização das decisões judiciais, tratando-se de um mecanismo de impulso, pois, segundo Allard e Garapon “Esta nova comunicação entre os juízes pode tomar formas muito diversas que vão da relação vertical – em caso de criação de um tribunal supranacional – à relação horizontal ou à coordenação operacional”32 30 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; lash, Scott. Op.cit. p.211-212 Allard, Jullie e Garapon, Antonie. op.cit. p.09 32 ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. op.cit. p.19 31 67 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A emergência de riscos incontroláveis, nesse panorama moderno de busca por controle, cooperação e ordem, aponta a possibilidade de ter havido uma falha no funcionamento das normas e instituições desenvolvidas na sociedade industrial. Em contrapartida, esse desencadeamento atinge a burocracia racional tradicional – a administração estatal, a política e o Direito – que acabaram, sem intenção, legitimando a criação desses riscos. Justamente a partir dessa constatação da ineficácia dos instrumentos usuais de controles institucionais, imprescindíveis se tornam os argumentos de Allard e Garapon quando apontam que “O comércio entre juízes vai-se intensificando impelidos pelo sentimento ou a consciência crescente de um patrimônio democrático ou civilizacional comum, por determinados silêncios do direito positivo, pelas necessidades dos tribunais internacionais, pela construção europeia ou ainda pela procura de garantias e de segurança para o comércio internacional, os juízes afirmam-se como agentes de primeiro plano na mundialização do direito.”33 A dinâmica e ágil sociedade global do risco obterá, na chamada dimensão funcionalista do intercâmbio entre juízes, sua justificação e possível proteção, pois para Allard e Garapon “A primeira dimensão deste comércio entre juízes é, portanto, funcionalista: é necessário acompanhar as evoluções do mundo e adotar um Direito mais móvel quando os objetos também o são.”34 O padrão de decisão e os mecanismos de proteção e controle ainda estão organizados no nível do Estado-Nação e da atuação racional individual e é, justamente a partir dessa constatação, exsurge claro que, no atual sistema de riscos globais nenhuma estratégia eficiente para se garantir a segurança pode ser manejada isoladamente, dentro dos limites de um só Estado. Uma nova ordem global exigirá, ou acarretará, numa nova ordem jurídica, eis que “A mundialização da justiça funciona, por conseguinte, como um princípio de estabelecimento de relações no termo do qual nenhum tribunal poderá permanecer indiferente aos seus homólogos, sem que, para tal, intervenham quaisquer vínculos ou 33 34 ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. op.cit. p.30 ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. op.cit. p.38 68 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional instâncias físicas de coordenação, normalmente considerados como critérios de juridicidade.”35 De outro lado, verificam-se dificuldades em coordenarem políticas globais eficazes na prevenção desses riscos. “Não se espera que os juízes e os tribunais sejam, como se verifica num sistema, os agentes passivos de uma ordem jurídica, mas sim, pelo contrário, os intervenientes ativos num comércio em constante evolução na medida em que são os juízes uma espécie de embaixadores na cena internacional, exercem, com efeito, uma influência cultural considerável, inspirando, por conseguinte, profundamente os direitos estrangeiros.”36 “A competição que advém do comércio entre juízes não visa unicamente a defesa dos interesses econômicos ou políticos de uma nação. Tem igualmente por objetivo a promoção de uma cultura jurídica considerada mais adaptada aos desafios da mundialização ou mais favorável a valores universais O impulso para um Direito Transnacional não poderá jamais se confundir com um “direito de ingerência” que parece surgir quando se fala em meio-ambiente e, sobretudo, em direitos humanos, podendo gerar – e tem gerado – abusos, fazendo com que alguns Estados assumam o papel de "policiais do globo" para, na realidade, proteger interesses particulares seus, que não têm nada a ver com a prevalência dos direitos humanos. CONSIDERAÇÕES FINAIS A constatação do modelo de sociedade que vivenciamos atualmente tem propiciado a percepção de determinados riscos advindos dos avanços tecnológicos que colocam em questão os mecanismos de controle existentes e sua eficácia. 35 36 ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. op.cit. p.35 ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. op.cit. p.53 69 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A sociedade do risco transita entre o aumento incessante das brechas entre as particularidades nacionais que se enfraquecem dia a dia e as aspirações universais que se ampliam a cada dia com a lente focando as futuras gerações, na nítida idéia de prevenção. Os aspectos essenciais decorrentes da moderna sociedade do risco vem suscitando ao Direito, por consequência, problemas novos e incontornáveis. Desta forma, a proposta de Jullie Allard e Antonie Garapon vem ao encontro da idéia de que os riscos que afrontam a humanidade é problema de todos, e não de cada Estado individualmente. Ademais, da necessidade de se repensar o conceito de soberania, para que se possa adequá-lo a um mundo altamente globalizado, interdependente e de riscos, o intercâmbio de decisões judiciais torna-se uma ferramenta útil, senão necessária para, num cenário de justiça globalizada, propiciar uma nova ordem jurídica com um efetivo Direito Transnacional capaz de responder aos anseios de uma sociedade em constante transição. BIBLIOGRAFIA ALLARD, Jullie, GARAPON, Antoine. Os juízes na mundialização. A nova revolução do Direito”. Lisboa: Editora do Instituto Piaget. 2005 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia uma nueva modernidad. Barcelona: Paidós Ibérica S.A., 2002. p.25 ____________O que é Globalização? Equívocos do Globalismo. Respostas à Globalização. Trad. André Carone – São Paulo:Paz e Terra, 1999. ____________ ; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização Reflexiva: Política, Tradição e Estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. BERARDO, Telma. Soberania, um Novo Conceito? in Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 40, p. 40, julho/set. 2002. 70 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional CALLEGARI, André Luiz. Direito Penal e Globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2011. CRUZ, Paulo Márcio; BODNAR, Zenildo. A transnacionalidade e a emergência do Estado e do Direito Transnacional. v. 14, n. 1, jan./jun. 2009 CRUZ, Paulo Márcio. Da Soberania à Transnacionalidade. Democracia, Direito e Estado no Século XXI. Itajaí: UNIVALI Editora, 2011. DIAS, Jorge de Figueiredo. O Direito Penal entre a "sociedade industrial" e a "sociedade do risco", in RBCCrim. São Paulo: RT, n. 33, 2001 FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999. FERREIRA FILHO. Manoel Gonçalves O Estado do Futuro. (Coord.) Ives Gandra da Silva Martins, São Paulo: Pioneira, 1998. p. 102-113. FINKELSTEIN, Cláudio. 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Crises e desafios da Constituição brasileira. Rio de Janeiro, 2002. 71 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional As Intervenções Humanitárias e o Papel do Conselho de Segurança das Nações Unidas diante da Configuração Cosmopolita das Relações Internacionais The Humanitarian Intervention and the role of United Nations Security Council in a Cosmopolitan Configuration of International Relations Vanessa Oliveira Batista1 Daniele Lovatte Maia2 RESUMO O presente trabalho pretende fazer uma leitura da teoria cosmopolita proposta por Jürgen Habermas, ressaltando as peculiaridades e diferenças desta com relação à república mundial proposta por Immanuel Kant, como condição necessária ao alcance da paz perpétua na ordem internacional. Após apresentar críticas a esse modelo de organização estatal, por meio de autores realistas como Danilo Zolo, se propõe uma reflexão acerca da possível parcialidade das intervenções humanitárias aprovadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU). Para tanto, será analisado o funcionamento do CSNU e de sua competência estabelecida na Carta das Nações Unidas e das Resoluções destinadas a efetivar intervenções humanitárias em casos específicos. PALAVRAS-CHAVE: Cosmopolitismo; Intervenções Humanitárias; Conselho de Segurança das Nações Unidas. ABSTRACT This work intends to expose a reading of the cosmopolitan theory of Jürgen Habermas, showing its differences when compared with Immanuel Kant proposal of a world republic. After explaining the critics to this model of states organization, with realistic theory’s like Danilo Zolo’s, it will be expose a reflection about the possible partiality that the institution of humanitarian intervention might have when been or not approved by the United Nations Security Council. In order to do so, it will be made an analysis of this Council function and its competence gave by the United Nations Charter. Besides, some of its Resolutions approved to deal with the humanitarian intervention problem will be shown. 1 Professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Pesquisadora do CNPq; Coordenadora do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ 2 Advogada, graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestranda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ. 72 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional KEYWORDS: Cosmopolitanism; Humanitarian Intervention; United Natios Security Council. 1. Introdução É antiga a discussão sobre como deveria ser a organização política internacional, permeada pelas mais diversas teorias e modos de pensar a realidade moderna. A criação da Organização das Nações Unidas (adiante ONU), fortemente inspirada no modelo Kantiano de federação mundial, seguida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, consagram o ideal de paz perpétua a ser buscado por todas as nações civilizadas, exaltando o sentimento de igualdade entre os povos e a necessidade de universalização de direitos. Contudo, o sentimento de euforia do fim da 2ª Grande Guerra durou pouco. A bipolarização do mundo caminhou com muito mais força e ênfase que a tão sonhada busca pela paz, e os conflitos armados que se seguiram à posterior criação da ONU evidenciaram a fragilidade do sistema. Durante a Guerra Fria, a comunidade internacional assistiu à inação das Nações Unidas – na maioria dos casos impedida de atuar em função do Conselho de Segurança – diante de graves e massivas violações de direitos humanos, tais como as ocorridas em Bangladesh, Camboja e Uganda. Com a vitória do capitalismo, especialmente a partir da Guerra do Golfo, teve início a prática das chamadas intervenções humanitárias, um direito de ingerência das grandes potências em países que sofrem de graves crises sociais ou políticas. Na sequência, puderamse presenciar os horrores cometidos na Somália e em Ruanda, e a reação da comunidade internacional, por muitos considerada tardia. A segunda metade do século XX foi, portanto, marcada pelo debate em torno das intervenções humanitárias, sua legitimidade, seus requisitos, sua necessidade, e, principalmente, os possíveis interesses políticos e econômicos por trás daqueles países que, sob o pretexto de proteção dos direitos humanos, ingressavam no território de outro país soberano no intuito de levar a paz. Nesse sentido, o papel do Conselho de Segurança das Nações Unidas (adiante CSNU) é digno de nota. Muito criticado em função de suas decisões casuísticas, fortemente marcadas por um viés político que direta ou indiretamente favorece as grandes potências com poder de veto, fato é que somente com sua autorização uma intervenção humanitária pode ser considerada legal (no sentido estrito do termo), ainda que sua legitimidade seja extremamente 73 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional questionada. Os debates em torno da relativização do conceito de soberania receberam de igual modo, grande destaque. Devido às incontáveis mudanças ocorridas na realidade mundial desde a paz de Vestefália, de 1648, os três famosos elementos para a caracterização do conceito de soberania (povo, território e governo efetivo) são hoje, para muitos, somados a um quarto, qual seja, a proteção dos direitos humanos, como dever precípuo de qualquer Estado Nacional. Portanto, é patente a importância de um exame da estrutura político-jurídico das relações internacionais para a proteção dos direitos humanos. Para tanto, este trabalho se divide em duas partes: primeiramente, pretende-se fazer uma leitura da Teoria Cosmopolita proposta por Jürgen Habermas, ressaltando as peculiaridades e diferenças desta com relação à república mundial proposta por Immanuel Kant, como condição necessária ao alcance da paz perpétua na ordem internacional. Em seguida, será feito um panorama da atuação do CSNU, com especial ênfase nas resoluções aprovadas no pós Guerra Fria, no que diz respeito ao tema das intervenções humanitárias. Para tanto, será utilizado o método de pesquisa qualitativo, com análise e raciocínio indutivo dos institutos e conceitos do direito internacional, através do método de procedimento técnico de levantamento bibliográfico e levantamento de documentos oficiais (principalmente resoluções) das Nações Unidas. 2. A organização política da comunidade internacional e o cosmopolitismo Pode-se dizer que, dentro do pensamento político filosófico internacionalista, existem três correntes tradicionais que procuram explicar a formação da ordem internacional (TEIXEIRA, 2011, p. 238-239): i) a hobbesiana (realista) – sustenta que os Estados vivem em uma anarquia, similar ao estado de natureza no qual viviam as pessoas antes da formação do Estado Nacional, em uma espécie de guerra de todos contra todos; ii) a kantiana (universalista/cosmopolita), na qual a ênfase não é no Estado, mas sim no cidadão, no civitas maxima, pertencente a uma República mundial, decorrente de uma federação de Estados; iii) a grociana (internacionalista) – corrente que nega as anteriores, pressupondo regras de coexistência que preservariam a autonomia de cada Estado, que somente seria quebrada com relação àquele que se opusesse violentamente à ordem internacional. Sustenta Anderson Teixeira que a forma em que se encontra hoje a comunidade internacional traduz um processo de lutas e evoluções históricas, o que não permite que ela 74 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional seja caracterizada nem como anárquica, nem como cosmopolita, nem como internacionalista (TEIXEIRA, 2011, p. 241), pois se encontra em pleno desenvolvimento. Apesar disso, fato é que a corrente cosmopolita das relações internacionais, cuja origem remonta ao célebre ensaio de Kant “A Paz Perpétua e outros opúsculos”, possui uma força notória, já que frequentemente é utilizada como analogia para justificar a organização mundial em torno das Nações Unidas. No entanto, essa analogia deve ser feita com muitas ressalvas. No modelo de organização proposto por Kant, a paz mundial somente será alcançada através da junção de uma constituição republicana mundial com a construção de uma federação de estados livres e iguais. Isso porque a junção da população mundial em um único Estado impossibilitaria que ele fosse governado, dada sua enorme extensão territorial, além de aniquilar as particularidades de cada cultura (NOUR, 2003, p. 18). Em uma leitura do pensamento kantiano, Habermas propõe a criação de um Estado mundial (ao invés de uma República mundial), tendo em vista sua descrença na capacidade do Estado de lidar sozinho com problemas modernos, como globalização da economia, catástrofes ambientais ou guerras nucleares (GREIFF, 2002, P. 428). Para o autor, a fragilidade do Estado impõe a existência de uma autoridade central externa para que se possa realmente resolver os problemas internos. No intuito de viabilizar seu projeto de Estado Cosmopolita, Habermas sugere que sejam aproveitadas as instituições já existentes, começando por uma reforma da ONU, capaz de dotá-la de força política e militar necessária para possíveis intervenções rápidas, no intuito de criar uma ordem cosmopolita justa e pacífica (HABERMAS, 1999, p. 451-452). Essa força militar viria através de uma polícia internacional, a ser formada ou pelo financiamento dos Estados, ou pela cessão de parte do poderio militar desses Estados à ONU. Vale ressaltar, que Habermas não faz referência à possível parcialidade que estaria presente nas ações dessa polícia mundial, vez que financiada pelos Estados. Do mesmo modo, se omite quanto ao fato de ser remota a possibilidade de um Estado soberano abrir mão de seu poderio militar para que este, cedido a uma autoridade supranacional, pudesse, em determinada oportunidade, ser utilizado em seu desfavor. É possível perceber, por outro lado, que a organização do pensamento habermasiano se baseia em uma visão de mundo ocidental, marcadamente europeia (NOUR, 2003, p. 27), dando pouco ou nenhum papel aos Estados do Sul. Essa desigualdade entre os Estados, especialmente a exclusão do Sul, afasta sua teoria do modelo cosmopolita pensado por Kant, haja vista ter este vislumbrado uma espécie de direito de hospitalidade universal entre os 75 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional povos (KANT, 2008, p. 37-41), no qual todos teriam os mesmos direitos, e cada federação teria prioridade sobre o seu próprio território. Desse modo, Kant condena todo o processo de conquista/colonização dos europeus (da forma como ocorrido em sua época) em relação aos demais países do globo. Além disso, Habermas desconsidera as peculiaridades culturais de cada país. Seu universalismo propõe uma clara “ocidentalização do mundo” (ZOLO, 1999, P. 441), já que se mostra indiferente com relação às tradições culturais, políticas e jurídicas distintas dessa realidade ocidental, sobretudo quanto a países como os asiáticos ou os africanos. A falta de menção a um possível choque ideológico intercultural parece sugerir que somente existe uma realidade: o homem branco, europeu (ou norte-americano), católico, heterossexual, padronizado em um estereótipo bastante conhecido, principalmente por aqueles que nele não se enquadram. Como fundamento base do funcionamento de sua teoria, se utiliza do conceito de “opinião pública mundial”, vislumbrado por Kant (HABERMAS, 2002, p. 186) . Para Habermas, a organização política cosmopolita das relações internacionais já não é mais uma utopia. O desenvolvimento da tecnologia, e o aperfeiçoamento dos meios de comunicação em massa fizeram com que os acontecimentos em torno do globo, quaisquer que fossem, não estivessem mais concentrados dentro das fronteiras de um país. Assim, podem ser classificados como “acontecimentos cosmopolitas”, capazes de estabelecer uma “razão comunicativa” entre os povos, ou seja, um diálogo no plano internacional entre todos os seus participantes, norteada pela defesa dos direitos humanos, juntamente com todo o peso da tradição ocidental que esta doutrina carrega. Propõe, ainda, que o antigo patriotismo nacional - que ele chega a chamar de “fora de moda” - seja substituído por um “patriotismo constitucional” (GREIFF, 2002, p. 430), em que os cidadãos não mais poderiam estar ligados por valores e ideais comuns, inerentes a cada cultura, mas por um consenso sobre a legitimidade das instituições políticas e da lei. Dessa forma, estaria resolvido o problema do pluralismo das sociedades modernas, que seria voluntariamente abandonado por um sentimento coletivo de legitimar uma nova ordem de integração supranacional, que supostamente atuaria em defesa da paz mundial e da preservação dos direitos humanos. Nesse sentido, todo cidadão do mundo seria dotado de uma representação democrática em nível supranacional, através de uma instituição que englobasse os poderes executivo, legislativo e judiciário (HABERMAS, 2002, p. 426). Surgiria então a figura de um parlamento supranacional, concentrado nas Nações Unidas, a ser composto através do sistema de one man 76 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional one vote. Se esquece o autor, no entanto, que os países possuem densidades demográficas distintas, o que ocasionaria uma desigualdade de representação até mesmo para países poderosos, como Japão e França. Além disso, é remota a viabilidade de ser realizada de forma neutra e efetiva uma eleição que abrangesse toda a população mundial. Danilo Zolo, mediante uma analise crítica do pensamento acima exposto, define a filosofia cosmopolita através de quatro premissas (ZOLO, 1999, p. 443): i) Pretensão de manter a paz através do poder centralizado em determinadas potências; ii) Uso de força coercitiva coletiva; iii) Pelo uso da força se garante o poder das super potências; iv) A “paz duradoura” buscada pelo sistema se baseia num modelo preparado para o cenário sócio, político e econômico existente no momento de sua criação. Sintetiza assim sua clara oposição à necessidade de um governo central, afirmando que sua ausência não gera automaticamente uma anarquia em âmbito internacional (GALABERT, 2009, p. 191). Ao contrário do que frequentemente sustentam aqueles que estão no topo desse sistema cosmopolita, regulando a autoridade central existente no mundo, qual seja, a ONU, através dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Além disso, com o fim da guerra fria e a afirmação do poderio unilateral militar, político e econômico dos EUA, a autoridade central supranacional apta a ditar a última palavra, parece ter se deslocado do Conselho de Segurança. Dado importante, porém pouco divulgado, é que os EUA gastam mais com armamento militar do que todos os outros países do globo considerados em seu conjunto (WEISS, 2004, p. 140), podendo-se afirmar que a guerra do Iraque em 2002 serviu como ótima oportunidade para afirmar seu poderio bélico, sob o manto da defesa da segurança mundial ameaçada pelo terrorismo e pela produção de armas nucleares. Estima-se hoje que o cenário internacional está composto por duas autoridades supranacionais: a ONU (superior em número de membros) e os EUA (superiores em riqueza e poder). Essa constatação demonstra uma real dependência da ONU em relação aos EUA, sendo certo que qualquer operação sua depende da aprovação de Washington. E pior, as operações militares efetivadas pelas nações unidas através do auxílio forças militares de outros países como França e Inglaterra são dotadas de uma ajuda muito mais política do que propriamente operacional(WEISS, 2004, p. 141). Diante dessa realidade, não é razoável pensar na viabilidade de uma reforma das Nações Unidas como meio para minimizar as tensões entre os Estados, tendo em vista a falta de autonomia dessa organização. Nesse diapasão, Danilo Zolo, após afirmar ser o cosmopolitismo – da forma como 77 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional hoje é posto – uma teoria extremamente invasiva, intervencionista e ameaçadora da diversidade cultural, sugere que seja adotada, no cenário mundial, uma “ordem política mínima”, da forma como proposto por Hedley Bull (ZOLO, 2002, p. 217). Assim, seria respeitada a jurisdição interna dos Estados, dotando todos os países de igual soberania, através de uma subsidiariedade das normas de direito internacional. É preciso deixar claro que não se trata de uma inércia da comunidade internacional frente à realidade interna dos países, mas sim de um direito supranacional mínimo, exercido através de uma regionalização policêntrica do direito internacional. Esse quadro, ao respeitar a jurisdição interna de cada país, evitaria uma espécie de revolta dos países periféricos, já que possuiriam eles seu espaço e o direito às suas peculiaridades assegurados (ZOLO, 2002, p. 217). Anderson Teixeira vai além da ideia de regionalização policêntrica proposta por Zolo. Utilizando-se de forma analógica da “teoria dos grandes espaços” proposta por Carl Schmitt3, propõe que os países do globo se organizem através de “espaços regionais”, dentro do qual haveria uma supremacia da tradição histórico-cultural de determinado povo (TEIXEIRA, 2011, p. 285). Nesse modelo, somente um Estado exerceria a função simbólica de representante externo do espaço regional, podendo desempenhar em nome deste uma atitude proeminente no cenário internacional, sem, contudo, submeter os demais Estados ao seu poder sob qualquer forma. Isso porque, dentro desses espaços, os Estados seriam dotados de uma condição de igualdade formal. Além disso, possíveis divergências entre eles poderiam ser discutidas em âmbito interno (dentro do espaço regional) antes que pudessem ser analisadas externamente (TEIXEIRA, 2011, p. 286). Para o mencionado autor, a identidade histórico-cultural de diversos países vizinhos, com origens comuns e processos de formação similares, facilitaria sua organização em torno desse representante externo, já que compartilhariam de uma mesma identidade, ou de uma identidade muito similar. Isso daria a eles voz diante da comunidade internacional, pois estariam fortalecidos, ao mesmo tempo em que preservaria as particularidades culturais da região. 3 Para combater a ideia universalista, frequentemente objetivada pelas relações internacionais, Carl Schmitt propõe um “pluriverso”, a ser buscado através dos grandes espaços organizados em torno do globo. Esses grandes espaços, que podem ser comparados a uma espécie de Império, seriam dotados de um universalismo internamente, já que a soberania dos países que o compõe seria relativizada em prol de uma organização política em torno do Estado mais forte daquela região. Externamente, o princípio da não intervenção seria responsável por manter o equilíbrio entre os grandes espaços, tornando-se norma fundamental de direito internacional. Para Schmitt, a doutrina Monroe, desenvolvida pelos EUA em 1823 é o mais feliz exemplo de grande espaço de que se pode ter notícia. Para maiores detalhes ver: TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Teoria Pluriversalista do Direito Internacional. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. 78 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional As teorias descritas acima são de enorme importância como forma de questionamento ao monopólio cosmopolita presente nas relações internacionais. Contudo, a elas, do mesmo modo, é possível fazer uma série de questionamentos, oportunos e razoáveis, que as tornam de certa forma tão utópicas quanto o cosmopolitismo puro, extraído da Paz Perpétua kantiana. Nesse sentido, é possível destacar que a teoria de Danilo Zolo, por exemplo, focada na importância das particularidades culturais de cada país e na crítica à ocidentalização do mundo, se abstém de problematizar a influência da política e da economia no andamento das relações internacionais. Esse fato lhe ocasiona uma série de criticas, chegando a afirmar-se que o Autor padeceria de um realismo reducionista (GALABERT, 1999, p. 193), ao sugerir uma igualdade formal entre os Estados no plano internacional, unicamente através da importância do nacionalismo e das diferentes formas de organização social interna de cada Estado, deixando de lado a força dos problemas decorrentes da globalização e da movimentação de capitais no mundo. Portanto, diversas são as teorias que procuram explicar a organização da ordem internacional e os mecanismos a serem usados pelos Estados como forma de coexistência pacífica. A realidade moderna, a ocorrência das duas grandes guerras e, em especial os acontecimentos das últimas décadas do século XX e a primeira do século XXI, põem em cheque as formas clássicas de estruturação dos Estados nas relações internacionais. A proteção de direitos e garantias fundamentais de qualquer indivíduo, e a doutrina dos direitos humanos – com toda carga ocidental, ambígua e falaciosa que possa trazer – remodelam a forma de ver o mundo e trazem à tona um novo conceito de soberania dos Estados. Dentro desse debate, e diante da possível parcialidade existente nos pronunciamentos da ONU e, principalmente das decisões Conselho de Segurança, é que se faz necessária a análise do tema das intervenções humanitárias. Destinam-se elas à efetiva proteção dos direitos humanos, diante de graves e massivas violações perpetradas por parte de um Estado nacional? Ou as intervenções ditas humanitárias somente retratam a nova forma encontrada pelas grandes potências de promover a manutenção do status quo, por meio do controle do governo de Estados mais fracos? 3. A intervenções humanitárias e o papel do Conselho de Segurança das Nações Unidas Os direitos humanos tem sido o principal argumento para justificar as intervenções humanitárias do CSNU, muitas vezes ferindo princípios básicos do direito internacional, 79 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional como o da soberania, não intervenção e autodeterminação dos povos. A discussão é repleta de polêmicas e contradições justamente porque esses princípios, na ordem westfaliana, podem muitas vezes representar paradoxos diante da adoção dos direitos humanos como valor fundamental. Por isso, faz-se importante compreender como a busca pelos direitos humanos tornou-se, supostamente, a base da atuação Nações Unidas. Dentre os objetivos da ONU, prescritos no artigo 1º da Carta, destacam-se a manutenção da paz e segurança - com a possibilidade de tomar medidas para reprimir atos de agressão e a proposta de conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário - com o propósito de fomentar o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. Datadas nos anos 1940, a Carta da ONU (1945), a carta que funda o Tribunal de Nuremberg (1945/1946) e a Declaração Universal dos Direitos da ONU (1948) são os desdobramentos normativos da aspiração de se criar um sistema jurídico internacional de proteção dos direitos humanos. Este, fortemente baseado em uma realidade cosmopolita de organização dos Estados, unificado em torno de uma autoridade central. Atentando para os objetivos declarados no Capítulo VII da Carta da ONU, pode-se verificar que o princípio constitutivo da ONU, em sua tarefa de manter e promover a paz e a segurança internacionais se baseia no elemento humanitário, traduzido na possibilidade de intervenção quando for necessário mitigar o sofrimento humano por meios imparciais e não coercitivos, desde que haja violação extrema de direitos e liberdades fundamentais. É esse elemento humanitário, intrinsecamente ligado ao reconhecimento internacional dos direitos humanos a partir do final da II Grande Guerra, que fundamenta as intervenções humanitárias. Na última década do século XX acentuou-se a relevância do debate sobre os direitos humanos e tomaram corpo vários projetos que os coloca no centro das decisões. O reforço do Direito Internacional Humanitário, a discussão e regulamentação do genocídio, os resultados da Conferencia de Viena de 1993, são consequências de um processo que indica o princípio da universalidade como premissa para a proteção dos direitos, que passam a ser caracterizados como indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. Ademais, em Viena, ressalta-se a conexão entre desenvolvimento, democracia e direitos humanos. Com isto, eles passam a ser considerados e validados pela política internacional, o que leva ao uso crescente da força em ações internacionais de cunho humanitário, que passam a ser perpetradas tanto pelas Nações Unidas quanto unilateralmente por Estados dotados de poderio econômico, político e militar. 80 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A responsabilidade do Conselho de Segurança das Nações Unidas está expressa no artigo 24 da Carta, que diz ser seu dever a “manutenção da paz e da segurança internacionais”, cabendo-lhe determinar, com base em decisões orientadas politicamente, os casos de ‘ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão’ (artigo 39). O CSNU pode também criar órgãos subsidiários, na forma do artigo 29, como as operações de manutenção da paz. Ademais, os membros da ONU têm a obrigação de cumprir as determinações do Conselho (artigo 25). Desde 1992 a prática de atuação do CSNU vem sendo ampliada, em função da Declaração Presidencial adotada pelos Chefes de Estado e de Governo dos Estados membros do Conselho4, que flexibilizava a interpretação da expressão “ameaça à paz” ao afirmar que (ONU, 1992, P. 3): A ausência de guerra e de conflitos militares entre Estados não assegura por si só a paz e a segurança internacionais. As fontes não militares de instabilidade nas esferas econômica, social, humanitária e ecológica têm-se convertido em ameaças à paz e à segurança. Institucionalmente, a atuação do Conselho em operações de manutenção da paz se dá em duas etapas: primeiro, por meio de votação, é criada a operação, sendo necessários nove votos afirmativos, incluídos os dos membros permanentes, que podem se abster de votar. Nesse primeiro momento os membros permanentes procuram estabelecer uma coordenação entre si5, depois estendem o debate aos demais segmentos do CSNU6, através de consultas informais. Num segundo momento é feita a convocação formal do Conselho, com a finalidade de referendar a resolução acordada previamente e, eventualmente, modificar a linguagem ou parágrafos secundários e se apresentar posições nacionais7. O processo de implementação das resoluções é supervisionado pelo CSNU, por meio da adoção de resoluções que são executadas pelo Secretário-Geral da organização. É importante frisar que essas decisões compreendem atividades multidisciplinares nos campos militar, eleitoral, policial e humanitário. 4 Declaração adotada por ocasião da reunião de cúpula de 31/1/92. A dos P-3 (Estados Unidos, Reino Unido e França), a dos P-4 (os três anteriores e a Federação da Rússia) e a dos P-5 (os cinco permanentes) 6 o “caucus Não-Alinhado”– membros do Movimento Não-Alinhado (MNA) – e os “Non-Non” – membros do CSNU que não são membros permanentes, nem pertencem ao MNA 7 Desde 1987 as operações tem sido aprovadas por votações unanimes, as únicas exceções são a da UNIKOM entre Kuaite e Iraque, em 1991, e a UNMIK no Kosovo, em 1999. 5 81 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A questão que aqui se coloca é a tensão entre duas correntes de pensamento: de um lado temos os que entendem que os direitos humanos representam uma possibilidade de mudança da lógica competitiva dos Estados; e de outro temos aqueles que entendem que os direitos humanos são irrelevantes para a compreensão dos processos políticos internacionais. Esse debate, na verdade, coloca a proteção dos direitos humanos no centro da discussão acerca do próprio sistema internacional, pois trata-se de saber se são necessários mecanismos coercitivos mais fortes e capazes de promover uma garantia eficaz dessa proteção (REIS, 2006, p. 35). É nesse nível da discussão que se encontra a polêmica sobre as intervenções humanitárias, pois essas são a expressão de uma política de direitos humanos ativa e concreta, determinada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. O sistema internacional é dotado de um poder assimétrico, verticalizado, no qual acontecem com frequência dissensos acerca das intervenções humanitárias, causados em função de violações graves e sistemáticas de direitos humanos. As intervenções são conduzidas por valores morais, legitimados e reconhecidos pela sociedade internacional. E aqui nos deparamos com outras divergências, expressas em três correntes (PUGH, 2001, p. 118-122): a) as intervenções surgem a partir da vontade de alguns atores do sistema internacional de se beneficiar das desigualdades internacionais. Para manter o status quo, se utilizam das intervenções para fazer com que os Estados mais pobres e marginalizados economicamente sejam vistos como os maiores violadores de direitos humanos e, consequentemente, alvo das intervenções. Essa corrente contraria a perspectiva de que as intervenções humanitárias se destinem aos povos vitimados por políticas totalitárias ou conflitos étnicos. b) o uso de força em intervenções humanitárias é o resultado da convergência de interesses dos Estados mais ricos e poderosos do sistema. c) as intervenções humanitárias são fruto da polarização entre direitos humanos e interesses geopolíticos, sendo que os últimos seriam o motivo da implementação de normas internacionais de direitos humanos. Em documento datado em 1998, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) (SASSÒLI, 1999, p. 482-492) aborda o tema da “falência dos Estados”, definindo a ocorrência da desintegração das estruturas estatais quando um dos elementos do Estado, a existência de um governo em efetivo controle das situações em seu território, não é suficiente 82 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional ou, simplesmente, sucumbe. Nesse caso, o problema é mais grave que uma mera rebelião ou um coup d’état, pois se pressupõe o desmoronamento das instituições nacionais, da autoridade, da lei e da ordem, enfim, da entidade política organizada como um todo. Na esteira desse fracasso, o Estado entra em colapso, com a ruptura de valores sobre os quais se assenta a legitimidade do poder estatal levando, consequentemente, a manifestações de ordem étnica, religiosa, nacionalista, que se expressam de forma residual para a afirmação de uma identidade. Por ausência do Estado, embora ele possa persistir fisicamente, deve-se entender, portanto, sua incapacidade de exercer autoridade e de manter a lei e a ordem através dela. Com isso, o Estado perde gradualmente a condição de exercer com normalidade a atividade governamental. A desintegração do Estado pode variar de nível e intensidade, afetando uma ou diversas áreas de seu território. O que caracteriza a situação de desestrutura é o fato do governo não mais exercer um incontestável poder e o monopólio do uso da força. Um dos sintomas mais frequentes desse desmantelamento estatal é o surgimento de milícias, de grupos armados paralelos, representando interesses econômicos à margem da atuação oficial do poder público. O nível mais agudo da falência do Estado é a implosão total das estruturas governamentais, a tal ponto que a comunidade internacional não mais reconhece a autoridade do Estado como legítima para representá-lo. Nessa circunstância, observa-se a proliferação da criminalidade e da desordem, com a pulverização do comando de facções e ausência de representantes válidos (SASSÒLI, 1999, p. 483). É no último estágio da desestruturação do Estado que se encontra a catástrofe humanitária, que desafia a comunidade internacional a enfrentar dificuldades crescentes para prestar assistência às vítimas e para garantir a proteção aos direitos humanos consagrados nos documentos internacionais. No entanto, o grande impasse do instituto é inexistência de regulamentação internacional, ou seja, de um tratado ou convenção que defina seus limites e objetivos. Dada essa ausência, não há como se exigir dos Estados – seja do Estado que supostamente está ferindo os direitos humanos de sua população, seja do Estado ou organismo internacional que supostamente está tentando eliminar ou minimizar esse sofrimento – o respeito a determinados princípios ou padrões de conduta. Na imensa maioria dos países do globo, para não dizer que em todos, existe algum tipo 83 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional de violação de direitos humanos. Problemas como saúde, previdência, educação, segurança pública, controle da criminalidade, fome, são comuns, e frequentemente traduzem-se em graves violações de direito, mas nem por isso se sugere que sejam feitas intervenções humanitárias em todos eles. A questão que aqui se propõe para ensejar uma intervenção é quando o desrespeito aos direitos mais básicos e fundamentas de uma população, efetuado por parte do governo de seu Estado, deixa de ser uma exceção e passa a ser uma regra geral, explicitamente praticada sem qualquer pudor, dando a impressão de tratar-se da mais pura normalidade. Junto ao problema dos limites da legalidade e legitimidade de uma intervenção, vem à tona o debate sobre a seletividade e a parcialidade da sua autorização pelo Conselho de Segurança da ONU. A falta de regulamentação faz com que as intervenções sejam aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU através de um julgamento caso a caso, deixando ao puro arbítrio de seus cinco membros permanentes e com poder de veto a sua efetivação. Daí a necessidade das superpotências propagarem o cosmopolitismo como única forma válida de organização dos Estados, tendo as Nações Unidas como centro decisório legítimo dos problemas mundiais. A Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, por sua vez, ao abordar o tema da proteção de pessoas em situações de catástrofe, entende que uma “catástrofe natural” compreende situação de urgência mais ampla, que exige atividade de prevenção e atenuação de suas consequências, o que justifica o desenvolvimento e sistematização do direito internacional sobre o tema. A Comissão entende que catástrofes naturais abrangem as “catástrofes antrópicas” e outras “catástrofes tecnológicas”, e reconhece que se pode distinguir entre as situações de urgência decorrentes de um só acontecimento (um terremoto, por exemplo) ou de casos complexos, como um conflito armado, que pode resultar em crises humanitárias envolvendo, inclusive, mais de um país, mais de uma região e até mesmo situações de total anarquia, levando à necessidade do envolvimento da comunidade internacional e/ou das agências das Nações Unidas (COMITION DE DROIT INTERNATIONAL, 1994). Não obstante a ausência normativa de uma definição de catástrofe, entre os anos de 1988 e 2005, o CSNU realizou quarenta e sete operações de paz no mundo. Essas ações se 84 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional caracterizaram pela interação entre as tarefas militares e as de caráter civil e humanitário 8. Esse tipo de atuação do CSNU se chama de “intervenção humanitária”, com toda a polêmica que, como já explicitado, este instituto carrega. Isso porque, abriga discussões que a caracterizam de formas distintas, ora como forma de ingerência internacional, ora como um “neo-colonialismo” disfarçado de assistência humanitária no mundo contemporâneo ou, ainda, como ação necessária para a preservação dos direitos humanos em zonas de conflito (SANTOS, 2009, p. 385-386). De toda sorte, o debate sobre a legitimidade da intervenção acaba ganhando menor destaque que o tema da legalidade que, por outro lado, acaba resumido à autorização ou não do CSNU diante do caso concreto. No que tange a sua inação em determinados casos, entende-se que o veto injustificado ao pedido de intervenções humanitárias ofende as regras e princípios de direito internacional, desrespeitando tanto aqueles países com intenção de ajudar quanto a população que está sofrendo pela crise (MACKLEN, 2008, p. 369-379). Para exercer o direito de veto, o país deveria suscitar pontos como a proporcionalidade, a contemporaneidade da intervenção, a possibilidade ou não de sucesso, a existência de meios alternativos, e não simplesmente afirmar que o assunto se encontra dentro da jurisdição interna do Estado em questão (MACKLEN, 2008, p. 389). Na realidade, em virtude da omissão dos instrumentos jurídicos internacionais, a intervenção humanitária se consolidou a partir de reivindicações das Organizações Não Governamentais (ONGs) atuando em defesa das vítimas de catástrofes naturais, especialmente quando ocorridas em países atribulados por guerras civis, étnicas ou caracterizadas como calamidade pública. Nesses casos, via de regra, os Estados se recusam a impedir que seja prestado auxílio médico e/ou alimentar à população, muitas vezes calcados nos princípios da soberania, da não intervenção ou da autodeterminação dos povos. Uma das dificuldades vivenciada pelas ONGs na última década do século XX era justamente a definição do direito de assistência humanitária. Esse direito atinge diretamente a responsabilidade dos Estados que devem se pautar pela obediência às regras de proteção aos direitos humanos, ainda que esteja em situações de conflito ou atingido por catástrofes naturais. Porém, embora o Estado onde ocorre a catástrofe seja, preferencialmente, aquele que deve prestar assistência, compete também aos Estados estrangeiros, Organizações Internacionais e Organizações Não Governamentais prestar, subsidiariamente, a assistência 8 Destaque-se as intervenções no Iraque (1991), na Bósnia-Hezergóvina (1992), na Somália (1992), em Ruanda (1993-1994), no Timor Leste (1999), em Kosovo (1999) e em Darfur (2006). 85 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional humanitária. Nesse sentido, a Resolução 43/131 da Assembleia Geral da ONU se baseia no princípio da subsidiariedade para determinar responsabilidades. No caso de resistência a esse ditame, o CSNU tem legitimidade para usar medidas coercitivas ou empregar a força, sempre em conformidade com o direito internacional (artigos 55 e 56 da Carta das Nações Unidas). Envoltas em polêmicas entre os internacionalistas acerca de um “novo direito internacional consuetudinário” 9 , podemos elencar as ações baseadas nos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade perpetradas pela ONU nas duas últimas décadas, determinando intervenções e assistência humanitária em regiões onde ocorreram catástrofes. Adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1988, a Resolução 43/131 insta os Estados, em seu artigo 5, a dar suporte para as organizações de assistência humanitária, especialmente para as vítimas de desastres naturais em situações de emergência e similares10. O instrumento citado foi bastante aplicado ao longo dos anos 1990, podendo ser destacada a intervenção na Guerra do Golfo (1991), que trouxe à luz as Resoluções 688 e 706 do CSNU. A primeira estabeleceu a operação Provide Comfort, que agregava tropas britânicas, estadounidenses e francesas, cujo objetivo era garantir o auxílio humanitário na região do conflito (Capítulo VII da Carta das Nações Unidas), e reconheceu que a comunidade internacional tem o direito/dever de intervir nos Estados nacionais que estejam em situações de emergência humanitária. Por sua vez, a Resolução 706 determina que o CSNU deve disponibilizar os meios para que seja prestada assistência humanitária. Ao longo da década dos 1990 o CSNU adotou diversas resoluções com o intuito de garantir a segurança e assistência às vítimas de crises humanitárias, valendo-se, para isso, tanto de medidas coercitivas quanto do uso da força armada: Bósnia_Herzegovínia (19901992); Somália (1992); Ruanda (1994); e Haiti (1994 e 2004)11. 9 Para abordar esse tema sugerimos consultar AMARAL JÚNIOR, Alberto do. O direito de assistência humanitária. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; EVANS, Gareth; SAHONOUN, Mohamed. The responsibility to protect., Foreign affairs, nov./dec.2002. Disponível em: http://www//foreignaffairs. org/20221101faessay9995.html.; MACHADO, Jonatan E. M. Direito internacional: do paradigma clássico ao pós 11 setembro. Coimbra: Ed. Coimbra, 2003; e ROGERS, A.P.V. Humanitarian Intervention and International Law, 27 Harv. J.L. & Pub. Pol'y 725 (2003-2004). 10 Resolução de 25 de outubro de 1988, a partir da ação da ONG Médicos Sem Fronteiras nas guerras civis da Ásia e África e, particularmente, no conflito do Afeganistão de 1979. Seu conteúdo versa sobre o apoio aos grupos atingidos por catástrofes naturais e situações similares, e consagra o direito de livre acesso às vítimas de catástrofes, bem como o dever do Estado de facilitar a assistência humanitária. Estabelece, ainda, o princípio da subsidiariedade, conferindo aos Estados o protagonismo no auxílio às vítimas, ao lado de ONGs e organismos internacionais, que teriam um papel complementar. A partir dessa Resolução, aumentou significativamente o número de operações de paz da ONU, não previstas expressamente na Carta de São Francisco. Para mais detalhes sobre o tema, conferir SANTOS, Raquel Magalhães Neiva, op. cit., p. 393. 11 Ainda foi autorizada assistência humanitária na Libéria (1993 a 1995); em Angola (1993 a 1995); na Geórgia (1993), em Moçambique (1993 a 1994); e no Iêmen (1994). 86 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Contudo, essas intervenções, apesar de necessárias, são por muitos consideradas tardias e muitas vezes ineficazes (WEISS, 2004, p. 141). A demora na aprovação pelo CSNU, demonstrando mais uma vez o caráter político do instituto, somente afasta essas intervenções ditas humanitárias do que deveria ser o seu principal objetivo: a proteção dos direitos mais básicos e fundamentais da pessoa humana. Além disso, representam uma séria ameaça à paz e a segurança internacional. O Brasil participa de operações de paz do Conselho de Segurança da ONU desde 1957. Entre os anos de 1989 e 2006, contribui com vinte dessas operações, tanto com contingentes militares quanto com apoio à população civil e como facilitador do diálogo político, podendo ser destacada sua atuação no Timor Leste, Moçambique e Angola. Porém, sua mais importante atuação foi no Haiti, quando assumiu o controle das tropas da ONU. A operação no Haiti (2004-2006) foi criada pela Resolução 1.542 de 2004, do Conselho de Segurança, e a MINUSTAH substituiu a força multinacional de emergência (CONSELHO DE SEGURANÇA, 2004), reunida depois da vacância do poder em virtude da partida o Presidente Jean-Bertrand Aristide, em fevereiro de 2004. A atuação brasileira no Haiti destaca-se porque esse país sempre foi avesso às intervenções em assuntos internos dos Estados. Dessa vez, porém, compartilhou da decisão do CSNU. O Haiti ocupa o posto de país mais pobre das Américas e tem problemas extremamente complexos, o que enseja que seja mantida a cooperação internacional nos seguintes assuntos: a) segurança – não há Forças Armada ou Polícia organizada; b) infraestrutura – não há redes de comunicações, geração de energia, saneamento básico ou rodovias; a higiene e saúde públicas são precárias e a expectativa de vida é severamente reduzida. Note-se que este quadro se agravou depois do terremoto de 2010; c) refundação do Estado – não há instituições estatais, como sistema judicial ou órgãos públicos; d) garantias e liberdades democráticas – não houve no Haiti uma transferência do poder por meio de um pacto de governabilidade, não havendo, portanto, a prática do convívio democrático, com alternância do poder. O problema do Haiti aponta para uma incômoda questão relativa às intervenções humanitárias: a consciência de que o sistema de solução de conflitos nas Nações Unidas é uma construção político-diplomática, ou seja, ajurídica. A necessidade de eficácia desse 87 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional sistema se faz mais relevante no Hemisfério Sul, em boa medida porque a maioria dos conflito pós-Segunda Guerra ocorreram nesta parte do planeta, em contraponto à estabilidade relativa vivida no Norte. Assim, os países desenvolvidos, dotados de instrumentos de dissuasão e intervenção, atuam sempre em conformidade com seus interesses nacionais. Isto gera uma série de soluções casuísticas que se aplicam ad hoc, levando à necessidade de se repensar os próprios mecanismos de solução e mediação de conflitos (SEITENFUS, 2008). O número crescente de intervenções humanitárias legitimadas pela ONU traz à tona a discussão acerca do delicado equilíbrio entre ordem e soberania, elementos essenciais do sistema internacional (NOGUEIRA, 2000, p. 142). As intervenções estariam presentes no debate sobre a reconfiguração do sistema, representando, ao mesmo tempo, a iniciativa para a preservação da soberania territorial como elemento central da regulação da ordem internacional (GODOY, 2007, p. 7). Outro aspecto relevante a ser considerado é que, se a adoção de um nível de respeito aos direitos humanos vem a se configurar como elemento determinante do modo de produção do Estado soberano depois da Guerra Fria, a intervenção humanitária pode ser vista como resposta à necessidade de ordenar e estabilizar a política internacional contemporânea. E, nesse caso, seria uma forma de garantir a própria sobrevivência do Estado soberano como solução para a pacificação das zonas de conflito. Na tensão entre a lógica estadista e a pretensão universalizante estaria o discurso ético-normativo dos direitos humanos (GODOY, 2007, p. 10). A partir da reflexão sobre a integridade territorial dos Estados, a análise das intervenções humanitárias suscita também outros temas, como a validade de regras e procedimentos que propiciam a violação da soberania de um Estado tanto para remediar uma crise humanitária quanto para impor condições de reconstrução. As diretrizes da intervenção indicam a relação entre as concepções liberais que devem estar na base do projeto de estabilização do país, sem se considerar o que interessa ao país (NOGUEIRA, 2000, p. 146). Nessa lógica, as intervenções humanitárias perpetradas pelo CSNU se encontram, definitivamente, relacionadas com a manutenção da ordem internacional, dentro de um sistema que busca permanecer como está, ou seja, fundado numa ideologia neokantiana cosmopolita das relações internacionais, sendo a ONU seu órgão central. Por traz da organização, estão as grandes potências como Estados Unidos que, indiretamente, possuem o 88 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional poder de ditar a última palavra sobre a legalidade, ou não, de determinada intervenção humanitária. 4. Conclusão A teoria do cosmopolitismo de Kant é uma das mais célebres a explicar a organização política dos Estados Nacionais em torno do globo. A criação de uma federação de Estados, dotados de igualdade formal e unidos através de uma República mundial é, segundo ele, a única forma de se atingir a paz mundial. Em uma releitura desse pensamento, Habermas propõe que seja criado um governo mundial, com a abolição de qualquer tipo de soberania ou divisão entre os Estados, seja uma divisão territorial, seja uma divisão étnico-cultural. Assim, unidos por uma constituição, todos os cidadãos do mundo fariam parte de uma só nação, governada por um parlamento central, a ser inicialmente exercido pela ONU. Apesar de todas as críticas que o pensamento de Habermas possa gerar, principalmente por autores realistas como Danilo Zolo, que advogam pelo fortalecimento de instituições regionais, com a valorização da diversidade cultural, é inegável que a ONU aparenta ser hoje, através do Conselho de Segurança, a instituição supranacional com maior poder no mundo. Conforme visto, essa aparência cede sob um olhar mais profundo da estrutura das relações internacionais, especialmente quando se analisa o papel unilateral dos EUA no pós-guerra fria, e seu poderio político, econômico e, principalmente, bélico. A análise da estrutura política das relações internacionais teve como objetivo iniciar um debate sobre a proteção internacional dos direitos humanos, notadamente em situações de sistemáticas e massivas violações de direitos individuais perpetuadas pelo governo de um Estado. Nesses casos, a polêmica sobre a legitimidade e a legalidade de uma intervenção humanitária é interminável. A falta de regulamentação do instituto, a indefinição de seu conceito e a sua aprovação casuística pelo CSNU somente corroboram o argumento de que as intervenções, supostamente efetuadas para a proteção dos direitos humanos, são na verdade uma decisão política que reflete os interesses daqueles países localizados no topo do sistema internacional. Portanto, para além do medo de uma dominação ocidental sobre o mundo, ou da existência de excessivas intervenções pelas potências mundiais em países menos desenvolvidos, deve-se estar atento para que a inação do Conselho de Segurança não continue a gerar o problema contrário, a ausência de intervenções. Isso porque essa postura inativa 89 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional somente faz com que a comunidade internacional permaneça assistindo à prática de genocídios, crimes de guerra e crimes contra a humanidade sendo praticados em determinados países, sem que a devida proteção à pessoa humana seja efetivada. 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Palavras-Chave: Organizações Internacionais; ONU; Assembleia Geral; Conselho de Segurança; Opinio Juris; Jus Cogens. THE LEGAL NATURE OF THE DECISIONS OF THE UN GENERAL ASSEMBLY AND SECURITY COUNCIL: THE COEXISTENCE BETWEEN OPINIO JURIS AND JUS COGENS. ABSTRACT From the analysis of UN structure and of the decisions made by its General Assembly and its Security Council, this article has per objective to understand the effects and the legal nature of these decisions. Starting from the study of the powers and purposes of the two main organs, it is emphasized the differences between the decisions made by both of them, following the thesis of the International Court of Justice which considers that the General Assembly recommendations has, in its majority, the nature of an opinio juris, and by its imperative nature, the Security Council decisions may acquire the nature of jus cogens. Key-Words: International Organizations; UN; General Assembly; Security Council; Opinio Juris; Jus Cogens. 1 Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade da Amazônia – UNAMA, acadêmica de Direito do Centro Universitário do Pará – CESUPA. Pesquisadora da Clínica Jurídica de Direitos Humanos do CESUPA. E-mail: [email protected]. 2 Acadêmica de Direito do Centro Universitário do Pará – CESUPA, pesquisadora da Clínica Jurídica de Direitos Humanos do CESUPA. E-mail: [email protected]. 93 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 1. INTRODUÇÃO A tentativa de solucionar conflitos entre os países e amenizar os problemas causados pela Primeira Guerra Mundial, em meados de 1914 a 1918, provocou na sociedade um sentimento de mudança em relação aos outros povos, ou seja, exsurge a necessidade de criação de um organismo que viesse a intervir e promover a paz entre as nações originou-se aí a Liga das Nações, também denominada Sociedade das Nações, em 1919. Tal sociedade foi o primeiro organismo internacional com o objetivo de manter a paz e a segurança da coletividade, buscando a cooperação internacional entre os países no âmbito econômico e social, sendo formada pela Itália, França, Rússia e Inglaterra (países vencedores da Primeira Guerra Mundial). Todavia, em que pese o nobre sentimento e intenção de manter a paz mundial, as sanções impostas aos países vencidos nesta catástrofe, Alemanha e Império Austro-Húngaro, provocaram um sentimento de vingança que futuramente teria consequências inefáveis, ou melhor, ocasionaria na Segunda Guerra Mundial (1939/1945) que causou danos diretos em todos os continentes. Nesse contexto, a Liga das Nações mostrou-se mal sucedida, uma vez que conseguia cumprir com seu objetivo principal por não reprimir os embates mundiais. Restou a organização, desse modo, desacreditada por ter sido considerada ineficaz. Diante disso, houve a necessidade de criação de uma organização internacional mais efetiva, que viesse a suprir as demandas deixadas pela Liga das Nações a fim de evitar outra guerra e que pudesse intervir nos conflitos entre os países de maneira conciliatória, objetivando sempre a paz e a segurança coletiva, originando-se assim em 1945, a Organização das Nações Unidas (ONU). É reconhecida à ONU a competência e legitimidade para atuar em conflitos entre os países, por meio da Carta das Nações Unidas, que também reconheceu a obrigação dos Estados de manter a segurança internacional, a paz e a praticar a tolerância e o respeito. Logo, a ONU passou a ser vista como o órgão central da nova ordem mundial. A ONU é formada por vários órgãos, quais sejam: o Conselho Econômico e Social; Conselho de Tutela; a Corte Internacional de Justiça (CIJ); o Secretariado e a Assembleia Geral das Nações Unidas (AG), composta por todos os Estados-membros e o Conselho de Segurança 94 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional (CS), que receberão maior destaque neste trabalho, por ser a força motriz da ONU e aperfeiçoarem, na prática, a manutenção da paz e da segurança internacional. Sendo assim, o estudo visado neste trabalho tem o fito de analisar a Assembleia Geral da ONU e o Conselho de Segurança através de uma explanação da estrutura e características de ambas, a fim de identificar a existência de opinio juris nas resoluções emanadas da Assembleia Geral e do jus cogens em decisões pronunciadas pelo Conselho de Segurança e quais os seus efeitos no cenário político mundial. 2. A ESTRUTURA DA ONU A criação da ONU obedeceu ao contexto histórico e político das necessidades de manutenção de segurança do pós-Segunda Guerra Mundial. Essa necessidade se materializou institucionalmente por meio da criação do Conselho de Segurança, órgão de composição restrita no qual se reuniram as potências vencedoras do último grande conflito do século XX. Paralelamente à necessidade de manutenção da paz e da segurança internacionais, verificou-se novamente a difusão dos valores pertencentes à teoria idealista das relações internacionais (dentre os quais se inserem a paz democrática, a cooperação, o respeito ao direito internacional e a interdependência), que antes da guerra haviam inspirado a criação da Sociedade das Nações (SDN). Trindade (2002) atesta que a existência de uma personalidade jurídica própria possibilita à ONU atuar no cenário internacional como entidade distinta, independentemente dos Estadosmembros considerados individualmente. Em 1949, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) estabeleceu que a personalidade jurídica da ONU está pautada na doutrina dos poderes implícitos, por meio da qual entende-se que o tratado constitutivo da organização confere-lhe os poderes ali acordados. Trata-se de personalidade jurídica derivada, distinta daquela dos Estados, mas que, no entanto, visa o alcance do propósito para o qual foi criada a organização. Em outras palavras, os poderes implícitos decorrem automaticamente do tratado que institui a organização, não se tratando de mera competência legislativa. A personalidade jurídica se estende inclusive ao âmbito interno da organização no momento em que esta exerce o poder de estabelecer um sistema jurídico próprio e independente dos ordenamentos estatais, a fim de reger condições de trabalho e funcionalismo. A ONU é composta por distintos órgãos – estatutários e subsidiários. Os principais órgãos estatutários são: a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança, a Corte Internacional de Justiça, o 95 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Conselho de Tutela, o Secretariado e o Conselho Econômico e Social e estão previstos no artigo 7° da Carta de São Francisco. A criação dos órgãos subsidiários tem vez quando estes forem necessários ao exercício das funções dos primeiros. Seitenfus (2003) aponta que a materialização das preocupações com a manutenção da paz e com a participação democrática dos países membros culminou na divisão institucional inicial da ONU em duas câmaras: o CS e a AG. Enquanto o primeiro se volta primordialmente para as questões concernentes à segurança internacional, a segunda atende ao disposto no artigo 1° da Carta de São Francisco, referente ao desenvolvimento de relações amistosas entre as nações, tendo por base o respeito aos princípios da igualdade de direito, autodeterminação dos povos e fortalecimento da paz universal. Cabe acrescentar que, nas Nações Unidas, o universalismo teve muito mais força do que na SDN. Para Mazuolli (2009), a AG é o principal órgão da ONU, dispondo de competência para discutir e fazer recomendações relativas a qualquer matéria da Carta ou relativas às atribuições e funções dos demais órgãos da organização. O CS, por sua vez, tem como principal atribuição a manutenção da paz e da segurança internacional e se compõe dos países vencedores da Segunda Guerra Mundial mais a China, de forma permanente, e de dez outros membros rotativos, eleitos pela AG. A seguir, serão exploradas as principais características e atribuições da AG. 3. A ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS Para Campos (1999), há uma enorme semelhança entre a estrutura e o funcionamento da Assembleia Geral das Nações Unidas e os parlamentos, tanto no que diz respeito às regras de debate quanto com relação a seus regimentos e processos internos. A AG é o órgão central e o pleno da ONU. É também o órgão mais democrático da instituição, prevalecendo em seu processo de votação a perspectiva do “um homem, um voto”, que diz respeito ao mesmo peso dos votos dos países, independentemente de seu poder político. Os processos de votação obedecem à maioria simples de presentes, salvo quando as questões em debate dizem respeito a segurança, paz ou assuntos financeiros, para os quais se exige maioria de 2/3. As reuniões no seio da AG podem ter caráter ordinário ou extraordinário. No primeiro caso, são regulares e anuais, tendo lugar normalmente nos últimos meses do ano (setembrodezembro). No segundo caso, pode ser convocada tanto pelo CS quanto pelos próprios Estadosmembros da AG. 96 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional De acordo com o artigo 10 da Carta da ONU, a AG pode discutir quaisquer questões que se insiram nas finalidades do documento ou que digam respeito a funções e atribuições dos órgãos criados a partir dela. Pela resolução n°377 da Assembleia Geral, o órgão passou a ter competência para tratar de questões relativas à paz e à segurança internacionais, que até 1950 eram prerrogativas unicamente do CS. A resolução em questão teve origem na paralisia em âmbito do CS, provocada pelo veto da União Soviética, durante a Guerra Fria. Graças à Resolução Acheson3, a AG se muniu de competência para, na eventualidade de o CS encontrar-se incapaz de fazer frente à sua responsabilidade de manter a paz e a segurança internacionais, conferir a seus membros o poder de fazer recomendações referentes às medidas a serem adotadas. Portanto, a partir desta resolução, entende-se ser relativizada a segunda parte do artigo 10 da Carta da ONU, que excetua o artigo 12 do âmbito de competências da Assembleia Geral. Seitenfus (2003) critica essas denominadas prerrogativas, considerando-as extremamente amplas e escassamente ineficientes. A crítica tem relação com a natureza das resoluções proferidas no âmbito da AG. Para o autor, resoluções consistem na materialização das manifestações de vontade do órgão contrapondo-se às decisões do CS, que são impositivas e forçam todos os Estados-membros a acatá-las. Há, na doutrina, um debate relativo à capacidade vinculatória das resoluções da AG. Em razão da amplitude de assuntos que lhe são de competência e de correntes que acreditam que não atribuir nenhuma importância legal a esses documentos faria apenas com que os Estados passassem a ignorá-los, questiona-se: qual a natureza e os efeitos das resoluções proferidas em âmbito da Assembleia Geral da ONU? Teriam elas, em algum momento, o poder de vincular um organismo internacional ou um Estado a adotá-la? Caso positiva a resposta, em quais situações? 4. A NATUREZA JURÍDICA E OS EFEITOS DAS RESOLUÇÕES DA ASSEMBLEIA GERAL As decisões proferidas pela AG da ONU tendem a serem chamadas de recomendações. Tais decisões tem caráter político e advém de um intenso debate no seio do órgão, tal como um Parlamento Nacional. No entanto, distintamente das normas materializadas em sede de 3 O nome da resolução faz alusão a Dean Acheson, ex-Secretário de Estado dos Estados Unidos e responsável pela proposta. 97 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional legislativos nacionais, as decisões da AG não costumam vincular os Estados membros a adotálas, razão pela qual são chamadas de recomendatórias, constituindo parte do soft law do direito internacional. Apesar disto, não podem ser consideradas menos complexas que as suas correlatas proferidas pelo Conselho de Segurança, a despeito das evidentes distinções em matéria de efeitos. Tendo isto por base, a presente seção tem por escopo abordar a natureza jurídica das resoluções da AG da ONU, bem como seus efeitos. Para tanto, faz-se uma breve e superficial comparação com os efeitos das decisões do Conselho de Segurança. 4.1. RESOLUÇÕES DA ASSEMBLEIA GERAL VS RESOLUÇÕES DO CONSELHO DE SEGURANÇA Inicialmente é importante traçar a distinção entre as resoluções proferidas em âmbito do CS e as resoluções oriundas da AG. Na ONU, o termo resolução é igualmente utilizado para se referir às decisões de ambos os órgãos. Para Öberg (2005), a capacidade vinculatória de uma resolução diz respeito à possibilidade do documento em criar obrigações para seus destinatários. Öberg (2005) estabelece que há uma diferença de efeitos para cada tipo de resolução. Portanto, não é possível entendê-las sob o aspecto genérico do termo, sendo necessário especificar em quais casos a resolução contará com uma força de decisão e em quais disporá de caráter recomendatório. De acordo com o autor, uma resolução tem caráter de decisão quanto é vinculante. Por vinculante, entende-se sua capacidade de criar obrigações entre seus destinatários. Para Cretella Neto (2007), a decisão é o ato jurídico oriundo da manifestação de vontade de um organismo internacional e tem o condão de criar obrigações entre aqueles a que se destina. Sua finalidade é encerrar uma discussão e servir como meio de materializar uma deliberação. Em sentido distinto, recomendações são os atos que emanam, a princípio, de um órgão intergovernamental, que se propõe a determinar um comportamento aos seus destinatários. Seitenfus (2003) considera que as resoluções da AG são meras recomendações dirigidas quer aos Estados membros, quer ao Conselho de Segurança, que não dispõem de poder coercitivo para obrigar um Estado a adotá-las. Cretella Neto (2007), por sua vez, acredita que as resoluções produzidas pelas organizações internacionais podem constituir uma espécie de norma. Em particular, tratando-se 98 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional das resoluções da assembleia Geral da ONU, o autor afirma que, por envolverem uma multiplicidade de questões, o sistema normativo advindo de suas resoluções é bastante complexo. Este poder normativo diferiria do poder de legislar que se conhece dentro dos Estados nacionais. Para o autor, a AG dispõe da capacidade de formular comandos, em sua maioria, de natureza administrativa, voltados para decidir acerca do funcionamento da própria organização. Apesar de considerar algumas resoluções da AG como normas, Cretella Neto (2007) reconhece que a grande maioria delas é recomendatória. Nesse diapasão, as recomendações da AG não dispõem de capacidade vinculante, ou seja, não obrigam o Estado a adotá-las. Para o autor, estes são os exemplos dos artigos 10 a 14 da Carta de São Francisco, que se referem a algumas atribuições da AG. O autor distingue as resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança. O alcance jurídico das decisões proferidas pelo CS tem poder vinculante, ao passo que quando se trata das resoluções da AG, o mesmo não é observado. Isto porque não é possível entender o órgão como dotado de autoridade legislativa internacional. Seitenfus (2003) compartilha do posicionamento. Para o autor, as resoluções da AG se contrapõem às decisões do CS, pois “estas últimas são impositivas, e todos os Estados-Membros devem acatá-las. Caso não o fizerem, correrão o risco de sofrer sanções por parte da ONU” (SEITENFUS, 2003, pg.25). Adicionalmente, de modo a provar a força impositiva das decisões do CS, o artigo 103 da Carta da ONU estipula a obrigação de os Estados-membros adotarem suas decisões. Öberg (2005) afirma que a diferença entre as resoluções dos órgãos da ONU residem no fato de que as da AG voltam-se às questões organizacionais internas à ordem onusiana, ao passo que o CS possui poder de decisão no que concerne o âmbito operacional relativo à paz e segurança internacionais. Ao traçar essa análise, o autor leva em questão apenas os efeitos vinculantes possivelmente atribuídos a cada resolução. Para o autor, as decisões da AG possuem um efeito vinculante limitado aos temas organizacionais, enquanto que as do CS vinculam universalmente todos os membros da organização. Öberg (2005) acredita que as resoluções da AG são regras recomendatórias, particularmente no que tange a relação externa do órgão com seus Estados-membros. O autor aponta que a AG pode construir decisões quando se tratar de admissão de novos membros, do 99 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional procedimento de votação e a repartição do orçamento. Além disso, de acordo com Öberg (2005), as resoluções da Assembleia Geral não possuem efeito vinculante em outras áreas além destas: Resolutions of the GA have no binding effect in the operational realm of international peace and security. Neither the GA’s budgetary powers in this area, nor its enforcement powers to suspend or expel UN Members, fall outside of the organizational sphere. (ÖBERG, 2005, pg.884) No entanto, tais posicionamentos por si só não esclarecem a natureza jurídica das resoluções da AG. Como será exposto adiante, ainda há uma lacuna a ser preenchida, relativa à natureza dessas resoluções, em se considerando, particularmente, as incertezas oriundas do conteúdo de algumas resoluções, bem como às decisões da CIJ. Aludido tribunal, por exemplo, ainda não deixou clara a existência ou inexistência de poderes de decisão referentes a assuntos de tutela e governança. Cretella Neto (2007) aponta que pode haver outras instâncias, além daquelas relativas aos assuntos internos da ONU, nas quais as resoluções da AG teriam condão vinculante. Adicionalmente, as resoluções teriam valor para a formação do costume internacional. Para o autor, afirmar que as resoluções não possuem valor jurídico é simplificar a amplitude de seu poder normativo. Assim, apesar de as visões apresentadas acima convergirem para aceitar a natureza de recomendação de algumas resoluções da AG, e, portanto, concordarem em seu caráter não vinculatório, ainda se faz necessário determinar quais seriam os efeitos desses documentos. 4.2. A CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA (CIJ) E A NATUREZA DE OPINIO JURIS Para Cretella Neto (2007), grande parte da doutrina costuma abordar o significado das resoluções das organizações internacionais sob o prisma do direito internacional costumeiro, em particular no caso da ONU. De acordo com essa perspectiva, as resoluções não vinculantes, ou aquelas que enunciam normas gerais de comportamento, teriam a potencialidade de adquirir valor de codificação ou cristalização de um costume internacional, ou mesmo de ser fundamento da origem de determinado costume. No Direito Internacional, a proclamação de uma norma de comportamento tende a preceder sua consolidação como norma jurídica. As normas de comportamento não dispõem de força jurídica obrigatória. Cretella Neto (2007) afirma que o processo de formação de uma norma jurídica tem vez quando os Estados passam a adotar sistematicamente o comportamento descrito 100 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional na recomendação constante na norma de comportamento. Nesse momento, ocorre a formação de um costume internacional que, por consequência, poderá vir a ser consolidado e codificado. Na década de 1970, no Caso Namíbia4, a CIJ identificou as resoluções da AG como estágios importantes no desenvolvimento do direito internacional, indicando que normas importantes poderiam derivar desses documentos. No entanto, a menção à razão e ao modo de fazer isto restou em aberto até que a Corte se manifestasse no Caso Nicarágua5. Para Öberg (2005), o caso esclareceu bastante o aspecto da natureza jurídica de boa parte das decisões da Assembleia Geral. Adotando a seguinte postura, alegou a Corte que: The Court has however to be satisfied that there exists in customary law an opinio juris as to the binding character of such abstention. It considers that this opinio juris may be deduced from, inter alia, the attitude of the Parties and of States towards certain General Assembly resolutions, and particularly resolution 2625 (XXV) entitled “Declaration on Principles of International Law concerning Friendly Relations and Co-operation among States in Accordance with the Charter of the United Nations”. (CIJ, 1986, pg.89-90). Na decisão, a Corte alegou que é possível inferir a existência de determinada opinio juris a partir do comportamento dos Estados ou partes a respeito de determinadas resoluções da AG, em específico a resolução 2625 (XXV), denominada “Declaração sobre os Princípios do Direito Internacional relativos às relações amigáveis e de Cooperação entre Estados nos termos da Carta das Nações Unidas”. Em particular, a Corte se referiu a uma forma de opinio juris relativa ao princípio do não uso da força. É certo, portanto, que do ponto de vista jurídico, as decisões da AG da ONU, a despeito de sua importância e significado político, não contam com uma força vinculante capaz de atrelar os Estados-membros a seu cumprimento. Portanto, seus efeitos imediatos se veem, muitas vezes, restritos à boa vontade dos Estados. Tanto é que tais decisões são costumeiramente denominadas “recomendações”, ou seja, não dispõem de caráter mandatório, tampouco efeito vinculante, mas apenas buscam sugerir determinado comportamento, norma ou tendência a ser adotada. O caráter recomendatório, porém, não retira a importância de tais decisões na construção das normas de direito internacional. Sem muito exagero, podem ser tidas como tendências 4 O caso é denominado “Legal Consequences for States of the Continued Presence of South Africa in Namibia” e teve por origem uma solicitação do Conselho de Segurança à Corte Internacional de Justiça a respeito das consequências legais da permanência da África do Sul na Namíbia, diante da recusa daquele país em retirar sua administração deste. 5 Atividades militares e paramilitares no interior, e voltadas contra a Nicarágua, levaram o país a demandar contra os Estados Unidos, país este que havia promovido incursões militares no interior do país para depor o então presidente José Santos Zelaya. 101 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional vanguardistas que precedem um comportamento futuramente majoritário. Seus efeitos de prolongam e reiteram no tempo, servindo de base para a institucionalização das normas. Distintamente, os efeitos das decisões do órgão político mais restrito da organização tendem a atrelar os Estados-membros a seguir as normas e decisões propostas em seu âmbito. É o que será estudado no próximo tópico. 4.3. VARIAÇÃO NA NATUREZA JURÍDICA DAS RESOLUÇÕES DA ASSEMBLEIA GERAL: A RESOLUÇÃO UNITING FOR PEACE DE 1959. É importante ressaltar que, a despeito de a doutrina majoritária entender que as decisões da AG são recomendações não vinculantes, no curso da Guerra Fria a atuação do órgão tomou outros rumos, os quais se mantêm presentes na atualidade. Azambuja (1995) afirma que em 1959, ante a paralisação das atividades do Conselho de Segurança, causado pelo impasse de origem ideológica, relacionado à Guerra Fria, geraram a necessidade de se buscar, dentro das próprias Nações Unidas, uma solução para os conflitos internacionais. É nesse sentido que a AG, na época, recebeu novas atribuições: Desfeitas as esperanças de que o Conselho de Segurança pudesse atuar como harmonizador e enforcer das principais divergências internacionais, procurou-se, no âmbito das próprias Nações Unidas, através de uma valorização da Assembléia Geral, à qual, especialmente através da Resolução Uniting for Peace de 1959, foram conferidas atribuições não previstas na letra da Carta: encontrar capacidade supletiva de agir em situações que requeriam um tipo de ação de peacekeeping e outras que pertenciam, a rigor, ao âmbito privilegiado do Capítulo VII da Carta, que trata, como se sabe, de ações relativas a ameaças à paz, ruptura da paz ou atos de agressão, terreno reservado naquele documento exclusivamente ao Conselho de Segurança. (AZAMBUJA, 1995, pg.142) O aspecto mais importante da resolução n°377 (V) de 1959, conhecida como Uniting for Peace, foi o fato de a mesma conferir à Assembleia Geral o poder de, diante da ausência de unanimidade dos membros permanentes e a falha na responsabilidade da manutenção da paz e segurança internacionais, trazer para si tais atribuições. Constitui tal atribuição uma espécie de usurpação das prerrogativas originalmente previstas para o CS. Neste aspecto, há possibilidade legal de, em determinadas situações, a AG atuar em situações que envolvam, por exemplo, operações de manutenção de paz. 102 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Evidentemente a resolução dispunha de um cunho primordialmente político. Na época, tratou-se de manobra da coalização Ocidental para contornar o veto soviético no Conselho de Segurança, enquanto podia-se contar com maiorias significativas em sede de AG. Muito embora posteriormente a AG tenha igualmente enfrentado um impasse, devido a tendências de não-alinhamento dos países em desenvolvimento e movimentações anti-Primeiro mundistas, permanecem os efeitos da Resolução n°377, conferindo à AG da ONU atribuições específicas do CS em caso de impasse político em seu âmbito. Apesar de exceção, trata-se de uma das situações em que as decisões da AG perdem o caráter recomendatório, passando a ser vistas como vinculantes. Distintamente, é regra que os efeitos das decisões do órgão político mais restrito da organização tendam a atrelar os Estados-membros a seguir as normas e decisões propostas em seu âmbito. É o que será estudado no próximo tópico. 5. O CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU De acordo com o artigo 24, da Carta da ONU, as atribuições dadas ao CS, são: manter a paz e a segurança internacionais, investigar toda e qualquer situação que enseje conflito internacional, recomendar métodos de ajustes de controvérsias e condições que promovam o acordo, criar planos para o estabelecimento de um sistema que regule os armamentos. O CS é formado por quinze membros, sendo cinco permanentes (EUA, França, Inglaterra e China) que possuem poder de veto e os outros dez membros não permanentes que são eleitos pela Assembleia Geral para um período de dois anos, sendo impossível ocorrer a reeleição no mandato seguinte. Para o país ser eleito é levada em consideração a contribuição do país para a manutenção da paz e segurança coletiva, tendo como base os objetivos previstos pela Carta das Nações Unidas, pois o CS possui duas ordens, quais sejam: dirigir recomendações aos Estados em conflito, com a finalidade de solucionar pacificamente, casos de perturbação e/ou ruptura da paz; e formular recomendações, tomar decisões que podem ocasionar na intervenção militar nos países em litígio. Vale ressaltar que o CS não se submete ao domínio reservado dos Estados membros, tendo competência para atuar em toda e qualquer situação na qual ocorra ameaça à paz, sendo o 103 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional responsável por qualificar quando uma situação configurará ameaça à paz e a segurança internacional. O CS sempre deve buscar resolver os conflitos de maneira pacífica utilizando-se da negociação, investigação, conciliação, entretanto, restando tais medidas insuficientes, o Conselho pode, com o intuito de amenizar as tensões, intervir através de forças de manutenção da paz da ONU criando condições para a formalização de um acordo de paz. Todavia, se o sinistro ainda vier a subsistir, o CS poderá impor sanções – como embargos ou bloqueios – ou até mesmo utilizar-se da força através da intervenção por militares dos membros da ONU. Observado tais considerações, resta claro que o CS e a AG são órgãos distintos e com finalidades distintas e atuam em âmbitos diversos, logo, as recomendações e decisões proferidas por ambos não terão as mesmas características. E é sobre a natureza jurídica da decisão do CS, bem como suas características, que o próximo tópico tratará. 6. O JUS COGENS E AS DECISÕES DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU Como visto anteriormente, as decisões emanadas do CS possuem um caráter obrigatório e impositivo, de modo que vinculam universalmente a todos os membros por tratar-se de assuntos de extrema relevância à ordem mundial, quais sejam: a paz e a segurança internacional. Por outro lado, as resoluções proferidas pela AG não gozam de um status coercitivo como as do CS, pois, por ser um órgão deliberativo há uma discussão voltada mais para as questões internas e organizacionais da própria ONU, conquanto as decisões do CS tenham seus efeitos recaídos por todos os membros. Efeitos estes vinculantes, impositivos e obrigatórios. Quando a isto, resta claro que um descumprimento de uma decisão do CS acarreta a sanções estabelecidas pela ONU. E é aí que se inicia a discussão sobre a natureza jurídica dessas decisões, tendo em vista que por tratarem de matérias de extrema relevância e complexidade, impositiva a todos os membros, vinculante, acarretando em repressões com o seu não cumprimento, constituem caráter de normas jus cogens, sendo isto possível devido a ausência de quantificação do conteúdo de tais normas. 104 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Portanto, faz-se necessário que haja, primeiramente, uma análise no que consiste ser o jus cogens e, logo após, sua identificação nas decisões do CS. Ambas explicitadas nos tópicos seguintes. 6.1. O JUS COGENS NO DIREITO INTERNACIONAL Enquanto categoria normativa reconhecida na esfera do Direito Internacional, o jus cogens, representa um conceito incerto e de conteúdo não preciso, pois há o reconhecimento da existência de regras internacionais obrigatórias e que, por isso, não poderiam ser contrariadas. Tanto é que a Convenção de Viena dispõe em seu artigo 53 que um tratado não pode contrariar o jus cogens, ou melhor, as normas jus cogens. Boa parte dos estudiosos atribuem que o conceito foi designado por Francisco de Vitória (1483-1546), teólogo espanhol neoescolástico, um dos fundadores da tradição filosófica da Escola de Salamanca, teorizador da Guerra Justa, também conhecido como um dos criadores do Direito Internacional moderno. Mazzuoli (2009) explica que a emergência pela criação e reconhecimento do jus cogens é perceptível em meados da década de 60, decorrente da pressão dos países socialistas em via de desenvolvimento de firmar a ideia de que algumas normas fundamentais (formadas por costumes) deveriam estar situadas em uma posição hierarquicamente superior aos dispositivos legais e espécies normativas convencionais, de modo que tornariam nulos os tratados que com elas contrastassem. No entanto, atesta-se a sua “existência” representativa e, portanto, em consequência, um plexo de discussões a propósito da matriz conceitual e concepção enquanto categoria jurídica, com a inclusão do mesmo na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, valendo lembrar que dantes já havia sido reconhecido pela Comissão de Direito Internacional. Neste sentido, o termo jus cogens, ainda que de matriz controvertida, pode ser entendido como um núcleo duro e relativamente inflexível de normas jurídicas que, em âmbito internacional, condicionam a validade e eficácia de todas as demais que com ela forem incompatíveis. Sendo assim, conglobam princípios, costumes e normas de grande relevância para os entes em âmbito internacional. Não se tratam, portanto, de meras obrigações bilaterais, porque possuem caráter erga omnes (BRITO, 2008, pg.598). 105 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional No entanto, em contrapartida ao entendimento do mencionado autor, Mazzuoli (2009) entende que haja a obrigatoriedade das normas jurídicas, todavia, somente as que têm conteúdo de jus cogens possuem a imperatividade, a saber: Em princípio, toda norma jurídica é obrigatória, mas nem todas são imperativas, como é o caso do jus cogens. A imperatividade das normas de jus cogens passa, assim, a encontrar o seu fundamento de validade na sua inderrogabilidade. (MAZZUOLI, 2009, pg.134). Assim, pelo que fora dito, é possível afirmar que as normas jus cogens são insuscetíveis de submissão pela vontade das partes, ou melhor, consistem na ordem pública internacional, grosso modo, conforme salienta Mazzuoli (2009). Além disso, Mazuolli (2009) ainda afirma que o procedimento normativo do jus cogens está a indicar a existência de uma nova e soberana fonte do Direito Internacional, formada por normas imperativas reconhecidas pela sociedade internacional como um todo, e que não constam no rol das fontes clássicas do direito Internacional estabelecido pelo art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, cuja disposição é: Artigo 38. 1. A Corte, cuja função seja decidir conforme o direito internacional as controvérsias que sejam submetidas, deverá aplicar; (...) 2. As convenções internacionais, sejam gerais ou particulares, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; 3. O costume internacional como prova de uma prática geralmente aceita como direito; 4. Os princípios gerais do direito reconhecidos pelas nações civilizadas; 5. As decisões judiciais e as doutrinas dos publicitários de maior competência das diversas nações, como meio auxiliar para a determinação das regras de direito, sem prejuízo do disposto no Artigo 59.6. A presente disposição não restringe a faculdade da Corte para decidir um litígio ex aequo et bono, se convier às partes. Em suma, com base no exposto e considerando a disposição acima, passou-se a existir normas hierarquicamente superiores aos tratados internacionais e aos costumes, de modo a serem aplicadas com prelazia. Entretanto, há uma resistência por parte dos Estados quanto à aceitação do jus cogens e isso, dar-se-á nos dizeres de Varella (2012) por dois aspectos: o primeiro consiste no receio por parte dos Estados em relação “à imposição de limites ao direito de fazer tratados” (VARELLA, 2012, p.104), inclusive, o autor explica ser esse uma das principais razões da Convenção de Viena não ter sido ratificada por um considerável número de países; e o segundo versa na ausência de determinação de quais seriam as disposições consagradas no direito internacional, um 106 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional exemplo disso é a França que pela inexistência de uma organização internacional ou tribunal internacional competente para determinar quais seriam, de fato, as normas jus cogens em vigor. O entendimento deve seguir o raciocínio de TRINDADE (2004, pg.206), segundo o qual “não se pode visualizar a humanidade como sujeito de Direito a partir da ótica do Estado; impõese reconhecer os limites do Estado a partir da ótica da humanidade”, isto é, os Estados, neste sentido, por força do jus cogens (direito internacional), devem ser limitados em seus poderes como forma de garantia da tutela da humanidade dos homens. E é a partir dessa discussão sobre o conteúdo dos “jus cogens” que as decisões proferidas pelo CS serão analisadas no próximo tópico. 6.2. A ESTRUTURA DAS DECISÕES DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU A Carta da ONU dedicou ao CS quatro capítulos, quais sejam: V, VI, VII e VIII, sendo que no exercício desta atribuição possui duas questões, sendo elas; o CS pode dirigir recomendações aos Estados em litígio, para a solução pacífica dos conflitos que maculem – ou venham a perturbar – a paz mundial; bem como decidir/ recomendar o uso de forças armadas que podem intervir nos países em disputa. Além disso, preleciona ainda o artigo 12 (1) que quando o CS estiver exercendo suas funções, cabe a AG abster-se de propor qualquer recomendação a respeito, salvo quando solicitada. É cediço que o CS dispõe de competência para atuar em todas as situações nas quais ameacem a paz, consistindo em uma das suas especificidades, a aplicação de medidas referenciadas no Capítulo VII, a sua não submissão ao domínio reservado dos Estados, tendo o condão de qualificar se uma situação constitui uma ameaça à paz e à segurança internacional (artigo 39), e a oportunidade de agir exclusivamente, conforme os termos do artigo 11, § 2º. No que tange as questões processuais, as decisões do CS são realizadas pelo voto positivo de 09 (nove) membros, conquanto que todos os demais assuntos fazem-se imprescindíveis os mesmos nove votos, com o adicional de todos os membros permanentes deverem proferir voto afirmativo, exceto o Estado-parte da controvérsia. Ainda nessa seara e partindo para os meios de solução pacífica dos litígios adotados pelo CS, tem-se que (a) a negociação, consiste em um meio de solução pacífica de entendimento 107 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional direto das partes; (b) o inquérito, é a intervenção de uma comissão de inquérito ou inquiridor particular; (c) a mediação que é a intervenção de terceiro com a propositura de uma solução concreta; (d) a arbitragem que versa sobre a entrega da solução para o litígio para terceiros através do compromisso arbitral; e a (e) solução judicial que consiste na delegação da questão a um tribunal já existente. São esses os vários meios de solução pacífica dos conflitos que podem ser utilizados pelo CS, devendo sempre manter a sua capacidade impositiva, que conforme ensina o artigo 41 da Carta, já é dotado dessa função. Ora, entra aqui a discussão sobre a identificação do conteúdo da natureza jurídica das decisões emanadas do CS quando estas forem impositivas que nas palavras de Campos (2006): As decisões imperativas são aquelas cujos não acatamento constitui uma violação de direito internacional e podem sujeitar ao Estado infrator as sanções pelo seu não cumprimento. A Carta só atribui o poder de tomar de as tomar ao Conselho de Segurança e têm caráter excepcional. (CAMPOS, 2006, pg.286). Logo, as decisões provenientes do Conselho de Segurança, com base no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas tem caráter obrigatório e vinculante, por isso, a partir da sua criação, os países não podem deixar de cumpri-las, sendo estas as decisões adotadas com base no Capítulo VII das Nações Unidas. E isso nada mais constitui como sendo a natureza jurídica da decisão do CS, como normas jus cogens, tendo em vista que (1) não estão acima ou a margem da Lei, (b) tem caráter vinculante e obrigatório a todos os atingidos e não possui um conteúdo restrito por serem analisadas casuisticamente, tais quais as normas jus cogens que não podem ser desrespeitadas pela sua força imperativa no âmbito do espaço político-internacional. Os jus cogens são normas imperativas de direito internacional público, como a boa-fé objetiva, a não intervenção, a dignidade da pessoa humana, que por serem normas imperativas de direito internacional geram obrigações erga omnes, impostas a toda a comunidade internacional, mesmo que não sejam ratificadas em Tratados, ou seja, os Estados não podem ir contra essas normas. Nessa mesma linha de raciocínio, Kamel (2012) afirma que o CS fez da atuação da ONU mais forte que a da já extinta Liga das Nações, por ter sua base na carta constitutiva, todavia com muito mais propriedade na prática de organização e inclusive confere às normas do CS o mesmo 108 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional status de jus cogens, a saber “sendo capaz de criar normas gerais de direito internacional, desde que não viole norma de jus cogens nem as próprias normas do Conselho e da ONU”. Portanto, a atuação/decisão do CS pode até ser advinda de países distintos preestabelecidos no Conselho, entretanto, tal decisão representa o órgão central da nova ordem mundial, ou seja, a decisão do CS é a materialização da ONU que tem como razão teleológica, a própria proteção dos Direitos Humanos, especificamente, resguardando a paz e a segurança internacional, daí a sua natureza jurídica ser de normas jus cogens, pois são insuscetíveis de submissão pela vontade das partes, submetem os Estados ao seu conteúdo, vinculando estes ao seu cumprimento por serem decisões obrigatórias que garantem a segurança coletiva, e além de proporcionar legitimidade coercitiva à própria ONU. 7. CONCLUSÃO A criação da ONU acompanhou a tendência multilateralista criada com a Liga das Nações e trouxe ao Direito Internacional novos campos de estudo e novas problemáticas, tanto no que concerne as discussões relativas à própria natureza jurídica da organização e de suas agências especializadas, quanto com a criação de novos mecanismos jurídicos para resolver questões insurgentes no cenário internacional, vide a necessidade da criação de uma Corte Internacional de Justiça. Em primeiro lugar, é necessário enfatizar que a complexidade com a qual se remonta ao sistema atinge, igualmente, seus principais órgãos deliberativos: a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança. É cediço que ambos possuem atribuições e composição distintas e sua atuação em questões de política internacional variam em razão da variedade de sua composição. Enquanto a AG segue uma tendência mais pluralista e tem ampla composição, o CS mantém a composição criada após a Segunda Guerra Mundial, sendo esta mais restrita, englobando tão somente os atores que, na época do conflito, foram consagrados vencedores. Em segundo lugar, é exatamente pelas finalidades históricas, pelas distinções na composição, bem como dos fins de cada um desses órgãos, é que os efeitos de suas decisões para os Estados-membros irão variar. Por isto, como a AG tradicionalmente lida com questões majoritariamente internas à própria ONU, suas decisões externas, principalmente no campo da Segurança Internacional, são vistas como recomendações não vinculantes. 109 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A Corte Internacional de Justiça, nesse sentido, considerou serem tais recomendações dotadas de natureza de opinio juris, ou, em outras palavras, precederem ao surgimento de um direito costumeiro internacional. O direito costumeiro é visto, sob o prisma do Estatuto da CIJ, como direito aplicável, mas as opinio juris não o são por ainda não gozarem de tal status. Nesse diapasão, a CIJ determinou que as recomendações prolatadas pela AG da ONU tem caráter de elemento constitutivo do direito internacional costumeiro. A exceção a essa determinação é quando as decisões da AG versarem a respeito de questões internas organizacionais, principalmente: admissão de novos membros, procedimento de votação e repartição do orçamento. Em terceiro lugar e por lidar com segurança internacional, guerra e paz e possibilidades de interferência na soberania dos países, as decisões do CS são vinculantes a todos os Estados membros da ONU, distinguindo-se da abordagem conferida às decisões da Assembleia Geral. Nesse aspecto, o descumprimento de uma decisão do CS acarreta a sanções estabelecidas pela ONU. Tendo isto por base, salienta-se a possibilidade de as decisões do Conselho de Segurança da ONU terem a natureza jurídica de jus cogens, que corresponde a normas imperativas e gerais de direito internacional. Dispondo deste poder de criar normas vinculantes, tanto de caráter específico, quanto de caráter geral, é que se atribui às decisões emanadas pelo órgão referida natureza. Em quarto lugar, tem-se que as decisões do Conselho de Segurança podem ter natureza de jus cogens, com base em sua finalidade teleológica, qual seja, a proteção dos direitos humanos e o resguardo à paz e segurança internacionais. Adicionalmente, é a possibilidade de vinculação e a obrigatoriedade de cumprimento que atribui legitimidade coercitiva ao CS da ONU. Não sendo referente, portanto, a norma ao capítulo IV da Carta da ONU, ela perderá a sua força vinculante em relação às questões externas da organização com seus países membros. Finalmente, muito embora, haja distinções relativas aos efeitos das decisões dos dois principais órgãos das Nações Unidas, é necessário salientar que não deve ser estabelecida escala de importância entre as decisões emanadas por ambos. Isto porque, preferindo um em relação ao outro, corre-se o risco de simplificar demasiadamente a importância e relevância da AG, em face da não obrigatoriedade de suas recomendações. 110 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A Assembleia Geral exerceu papel fundamental, ao lado do Secretário-Geral da ONU, durante a Guerra Fria, quando ficou caracterizado o impasse no Conselho de Segurança. As questões relativas ao Canal de Suez, ao Líbano (1958) e ao conflito entre as Coreias, por exemplo, não foram solucionadas isoladamente pelo CS, que encontrava-se dividido em razão da Guerra Fria. O CS e a AG são órgãos complementares da ONU e atuam em áreas específicas na seara da política internacional, não existindo hierarquia entre eles. Possuem finalidades e composição distintas e, a princípio, tem área de atuação delimitada, no entanto, são ambos componentes essenciais e complementares para a construção de um mecanismo de segurança coletiva, de fato, eficaz. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZAMBUJA, Marcos Castrioto de. As Nações Unidas e o conceito de segurança coletiva. Estudos avançados. 1995, vol.9, n.25. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340141995000300011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 18 jan. 2013. BRASÍLIA. DECRETO Nº 56.435, DE 8 DE JUNHO DE 1965. Promulga a e Viena sobre Relações Diplomáticas. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D5 6435.htm>. Acesso em 5 mar 2013. BRITO, Wladimir. Direito internacional público. 1 ed. Lisboa: Coimbra, 2008. CAMPOS, João Mota de. Organizações internacionais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. ______________________. 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São Paulo: Saraiva, 2012. 112 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional O DIREITO INTERNACIONAL E AS ARMAS CONVENCIONAIS: Desafios de Regulamentação INTERNATIONAL LAW AND CONVENTIONAL WEAPONS: Regulatory Challenges Rodrigo Alves Pinto Ruggio1 RESUMO Armas Convencionais, sobretudo de pequeno porte, como pistolas e fuzis, desempenham um papel central em praticamente todos os conflitos e crises ao redor do planeta. Sua praticidade e ampla disponibilidade favorecem as inúmeras violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, além de facilitar o tráfico ilícito. Ao contrário das armas químicas, biológicas e nucleares, que são reguladas por tratados internacionais proibindo suas transferências, não existem convenções ou tratados proibindo ou restringindo as transferências de armas convencionais. Ciente das nefastas consequências da falta de regulamentação sobre o uso, fabricação e o comércio destes produtos, a sociedade internacional vem construindo um arcabouço normativo com vistas a disciplinar a utilização indiscriminada das armas convencionais. Apesar dos esforços envidados, há ainda muito que ser feito para alcançar uma efetiva regulamentação dos armamentos. PALAVRAS CHAVE: Armas Convencionais; Direito Internacional; Desafios. ABSTRACT Conventional weapons, especially small sized, such as pistols and rifles, play a central role in almost all conflicts and crises around the globe, insofar as its practicality and wide availability favor the numerous violations of human rights and international humanitarian law, besides facilitating the smuggling. Unlike chemical, biological and nuclear, which are regulated by international treaties banning their transfers, there are no conventions or treaties prohibiting or Advogado, Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – IEC PUCMINAS, Mestrando em Direito Internacional do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PPGD – PUCMINAS, Professor da Faculdade Arquidiocesana de Curvelo - FAC e da Faculdade da Cidade de Santa Luzia – FACSAL. 1 113 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional restricting transfers of conventional arms. Aware of the dire consequences of the lack of regulation on the use, manufacture and marketing of these products, the society is building an international normative framework aimed at regulating the indiscriminate use of conventional weapons. Despite efforts, there is still much to be done to achieve effective regulation of armaments. KEYWORDS: Conventional Weapons; International Law; Challenges. 1. Introdução As armas convencionais, suas munições e materiais correlatos estão plenamente disponíveis para aquisição ao redor do mundo, seja pelas vias legais, sob a ótica dos Estados exportadores ou importadores, ou ilegais, no chamado “mercado negro”, que tem origem no tráfico ilícito destes produtos. Ao contrário do comércio de outros tipos de mercadorias, que se submetem a regras previamente acordadas entre os Estados participantes das transações internacionais, o comércio internacional de armas segue carente de regulamentação específica. Até o presente momento não existe um conjunto global de normas que rege de forma adequada o comércio de armas convencionais além das fronteiras nacionais de um Estado. Algumas tentativas de estabelecer regras, parâmetros e diretrizes com vistas a regular o comércio destas mercadorias foram feitas e alguns instrumentos foram criados, mas a ausência de um tratado global, dotado de força vinculativa para todos os Estados que aderirem, ainda não foi alcançado em razão da falta de acordo que prevalece entre os países nas negociações, a exemplo do recente fracasso de uma conferência sobre o tema promovido pelas Nações Unidas e ocorrido em julho de 2012, o que demonstra, desde logo, o poder que está por trás deste mercado desregulado. O problema é que esta falta de regulamentação favorece a falta de transparência entre os Estados sobre suas exportações ou aquisições de armas, o que, por sua vez, facilita as transferências ilícitas ou irresponsáveis, que são aquelas cujas armas são destinadas para áreas em conflito ou atingidas por graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, ou que envolvem o risco significativo de desvio ou contrabando para organizações criminosas ou terroristas. Neste particular, o tráfico ilícito de armas de fogo vem sendo amplamente discutido e avanços na regulamentação para coibir esta prática vêm sendo alcançados, a exemplo da 114 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional criação do Protocolo Contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, Suas Peças, Componentes e Munições, Complementando a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional e a Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e Materiais Relacionados. Armas podem ser usadas de forma legal, em respeito ao direito interno e internacional, mas a ausência de regras sobre o seu comércio, as tornam instrumentos de repressão política, prática de crimes, atentados terroristas, enfim, são instrumentos que podem causar sofrimento humano desnecessário. Além disso, transferências ilícitas ou irresponsáveis de armas convencionais podem desestabilizar a segurança em uma região, comprometendo a paz e a segurança internacional, bem como facilitar a violação dos embargos de armas impostos pelo Conselho de Segurança da ONU o que leva, consequentemente, às violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, já que referidos embargos são aprovados em razão das constantes violações a estes direitos. Importante citar ainda que transferências de armas destinadas a regiões em conflitos e atingidas por graves violações das normas internacionais, na maioria das vezes agravam o conflito, ao invés de contribuir para a sua solução. Desse modo, agravar um conflito significa prejudicar o desenvolvimento da região, dos povos que ali habitam, na medida em que o investimento é desencorajado e as condições normais de trabalho, saúde e educação são comprometidas em razão da falta de segurança e estabilidade, o que compromete o desenvolvimento dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, tal como previsto na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento das Nações Unidas de 1986 (Resolução Nº 41/128 da Assembleia Geral). É justamente em razão destas nefastas consequências que a Organização das Nações Unidas, juntamente com instituições da sociedade civil, vem desenvolvendo um trabalho junto aos Estados Membros para negociar a elaboração de um Tratado Internacional regulamentando o Comércio de Armas. As negociações para a elaboração deste importante instrumento tiveram início em 2006, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas votou esmagadoramente a favor da Resolução 61/89, que, entre outras questões, solicitou aos Estados Membros que apresentassem suas opiniões sobre a viabilidade, escopo e parâmetros acerca da criação de um tratado internacional regulamentando a importação, exportação e transferências de armas convencionais. Além disso, criou um Grupo de Especialistas Governamentais para analisar a questão. 115 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Com base no relatório apresentado pelo grupo, a Assembleia Geral aprovou em 2009 a Resolução 64/48, que decidiu convocar uma Conferência das Nações Unidas para a elaboração de referido tratado em 2012. A resolução fixou também a criação de um Comitê Preparatório para discutir a matéria antes da data prevista, suas reuniões ocorreram em julho de 2010, fevereiro – março de 2011 e julho de 2012. Apesar dos esforços dedicados pelas delegações na última negociação, ocorrida em julho de 2012, os Estados Membros não conseguiram chegar a um acordo e a conferência fracassou. Assim a Assembleia Geral das Nações Unidas decidiu convocar uma nova conferência, a ser realizada em março de 2013, na esperança de concluir o trabalho. Segundo um relatório divulgado pela organização Oxfam International em 2009, denominado “Dying for Action”, desde a primeira votação da Assembleia Geral pela aprovação da Resolução 61/89, em 2006, aproximadamente 2,1 milhões de pessoas morreram direta ou indiretamente por decorrência de violência armada. É o equivalente a mais de 2.000 (duas mil) pessoas por dia, sem contar as inúmeras mortes ocorridas até o presente momento (OXFAM INTERNATIONAL, 2009). Tal fato evidencia a necessidade e urgência no estabelecimento de normas juridicamente vinculantes aos Estados sobre o controle do comércio internacional de armas. Um dos pontos chaves nas negociações sobre o tratado é a criação de um sistema de transparência no qual os países serão obrigados e, não somente, convidados, a fornecer informações detalhadas sobre suas transferências de armas, assim como de suas partes, acessórios e munições. Espera-se com isso que com a criação de referido tratado e a adesão pelo Brasil, o País passe a cumprir com a transparência no comércio internacional de armas, já que sequer possui um relatório nacional sobre suas exportações e nem mesmo cumpre satisfatoriamente com o Registro das Nações Unidas sobre o comércio de armas convencionais (UNROCA). Apesar das dificuldades na elaboração de um tratado global que estabeleça regras comuns sobre o comércio internacional de armas, alguns avanços no que tange à regulamentação dos armamentos convencionais já foram alcançados, fixando-se regras, parâmetros e diretrizes sobre o uso destas armas, o comércio, a transparência nas vendas e aquisições, bem como medidas para evitar o tráfico ilícito. Desse modo, cumpre no capítulo a seguir abordar os principais instrumentos internacionais criados, bem como o trabalho desenvolvido pela ONU, por meio de seus órgãos, a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança, com destaque para os diversos 116 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional desafios que se apresentam no caminho do alcance de uma efetiva regulamentação dos armamentos. 2. A Regulamentação das Armas Convencionais – Avanços e Desafios Na tentativa de limitar os efeitos nocivos do uso indiscriminado das armas convencionais, a sociedade internacional tem progredido na criação de alguns tratados internacionais fixando regras sobre a utilização, fabricação e comércio destas armas, bem como também documentos de política contendo diretrizes e parâmetros sobre estes produtos, os quais cumpre destacar: Convenção sobre a Proibição ou Limitação do Uso de Certas Armas Convencionais que podem ser consideradas excessivamente nocivas ou terem efeitos indiscriminados2 – (Entrada em vigor: 02 de dezembro de 1983); Convenções sobre Munições Cluster – (Entrada em vigor: 01 de agosto de 2010); Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e Materiais Relacionados – (Entrada em vigor: 01 de julho de 1998); Convenção Interamericana sobre Transparência nas Aquisições de Armas Convencionais – (Entrada em vigor: 21 de novembro de 2002); Convenção Centro – Africana para o Controle de Armas Pequenas e Leves, suas munições e todas as peças e componentes que podem ser usados para sua Fabricação, Reparação e Montagem – (Entrada em vigor: Ainda não está em vigor); Convenção sobre a Proibição do Uso, Armazenamento, Produção e Transferência de Minas Antipessoal e sobre sua Destruição – (Entrada em vigor: 02 de março de 1999); Tratado sobre Forças Armadas Convencionais na Europa – (Entrada em vigor: 09 de novembro de 1992); 2 Esta Convenção possui 2 (duas) emendas e 5 (cinco) protocolos adicionais. 117 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Convenção Internacional sobre a Supressão de Atentados Terroristas com Bombas – (Entrada em vigor: 23 de maio de 2001); Protocolo Contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, Suas Peças e Componentes e Munições, Complementando a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional – (Entrada em vigor: 30 de abril de 2006); Programa de Ação para a Prevenção, o Combate e a Erradicação do Comércio Ilícito de Armas Leves e Pequenas (PoA) – (Aprovado na Conferência das Nações Unidas sobre o Tráfico Ilícito de Armas Pequenas e Leves em todos os seus Aspectos, ocorrida em Nova York de 09 a 20 de julho de 2001); Código de Conduta da União Europeia para Exportação de Armas – (Aprovado pelo Conselho Europeu em 1998 e alçado ao status de Posição Comum em 2008); Estratégia da União Europeia para o Combate à Acumulação e ao Tráfico Ilícito de Armas Pequenas e Leves e suas Munições – (Adotada pelo Conselho Europeu em 15-16 de dezembro de 2005); Organização para a Segurança e Cooperação da Europa – OSCE – da qual se destaca o Document on Small Arms and Light Weapons3 – (Aprovado na plenária da 308ª Reunião do Fórum de Cooperação de Segurança da OSCE, em 2000); Acordo de Wassenar – (Celebrado em uma reunião na Holanda, envolvendo diversos países exportadores de armas, dos quais estranhamente não se encontra incluído o Brasil, em 19 de dezembro de 1995. Sua declaração foi emitida no Palácio da Paz de Haia). Imperioso destacar ainda o esforço da Organização das Nações Unidas por meio de seus principais órgãos, a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança, no sentido de efetivar os dispositivos previstos na Carta das Nações Unidas sobre desarmamento e regulamentação dos armamentos, notadamente os artigos 11 e 26, bem como suas relações com a manutenção da paz e segurança internacional. 3 Documento sobre Armas Pequenas e Leves. 118 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Inicialmente cumpre informar que a ONU possui uma Comissão de Desarmamento (UNDC), que foi criada em 1952 pela Assembleia Geral, possuindo um mandato geral para discutir questões de desarmamento e regulamentação dos armamentos. Reúne-se a cada ano, durante um período de três semanas, entre os meses de abril e maio. Além disso, a Assembleia Geral já realizou três sessões especiais sobre desarmamento (SSOD), em 1978, 1982 e 1988, sendo que desde 1995, o órgão tem solicitado a realização de mais uma sessão especial sobre o assunto. Grupos de trabalho foram criados em 2003 e 2007 para discutir a agenda e a possibilidade de criação desta quarta sessão. A Assembleia possui ainda, conforme ressaltado, um grupo de trabalho específico, criado em 2008, sobre a elaboração do aguardado Tratado sobre Comércio de Armas. Desse modo, a Assembleia Geral tem enfrentado diversas questões relacionadas à regulamentação dos armamentos e materiais correlatos. Esta preocupação não está relacionada somente às armas convencionais propriamente ditas, mas também à situação das munições que são usadas nas mesmas. Estoques de munições podem ser extremamente perigosos se não forem devidamente armazenados. Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Questões de Desarmamento, explosões inesperadas de depósitos de munições têm afetado mais de 60 países em todo o mundo, causando inúmeras mortes nos últimos 15 anos. (UNODA, 2012). Cite-se o exemplo da Ucrânia, cujas Forças Armadas possuíam em 2007, 771.400 toneladas de munições consideradas excedente inutilizável, incluindo 392.800 toneladas cujo período de armazenagem já havia expirado e que exigiam reciclagem. (GENERAL ASSEMBLY, 2007). Noutro prisma, estoques de munições geridos de forma incorreta podem se tornar fontes de desvio de munições para o mercado ilegal, abastecendo organizações criminosas, grupos terroristas e a criminalidade em geral. Por estes motivos, foram emitidas diversas resoluções pela Assembleia Geral abordando o tema, dentre as quais cumpre destacar as Resoluções 60/74 - (A/RES/60/74 – 2006); 63/61 – (A/RES/63/61/ - 2009); 64/51 - (A/RES/64/51/ - 2010); 66/42 - (A/RES/66/42/ - 2012), dentre outras. Entretanto, ainda não foi possível a criação de um tratado vinculativo fixando regras gerais sobre a gerência e administração dos estoques de munições, desafio este que se apresenta atualmente à sociedade internacional. A criação de um tratado global que aborde este tema é importante na medida em que estabelecerá normas internacionais vinculativas a todos os Estados, reduzindo o risco de que estes produtos sejam desviados para o mercado 119 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional ilegal ou então que possam causar ferimentos desnecessários derivados de sua má administração. Outra preocupação das Nações Unidas que é de extrema importância neste esforço de regulamentação dos armamentos convencionais é a questão das armas pequenas e leves. O tráfico ilícito destas armas desestabiliza comunidades e afeta a segurança e o desenvolvimento em todas as regiões do mundo. Criminosos, piratas, terroristas, insurgentes, todos eles têm seu poder ampliado diante de um fluxo de armas de pequeno calibre à disposição no mercado ilegal. Basta analisar o problema que enfrenta o Brasil, um país que possui um alto índice de criminalidade em praticamente quase todos os seus Estados e que possui grandes organizações criminosas, como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), este último que recentemente aterrorizou o Estado de São Paulo, travando uma guerra com a polícia que sacrificou a vida de inúmeros policiais, criminosos e civis. Segundo dados apurados pela OSCIP Viva Comunidade, estima-se que circulem no País entre 16 e 18 milhões de armas de fogo; das quais aquelas de uso legal estejam nas faixas de 7,5 e 8,4 milhões, sendo que as ilegais se concentram entre 7,6 e 10,7 milhões. (VIVA COMUNIDADE, 2010). Importante destacar que neste último enfrentamento em 2012, entre o PCC e a Polícia do Estado de São Paulo, dezenas de civis foram assassinados indiscriminadamente pela organização criminosa com o uso de armas pequenas e leves, como pistolas, metralhadoras e fuzis. Estas armas são baratas, leves e fáceis de manusear, transportar e esconder. Por óbvio, não podem por si só criar os conflitos em que são utilizadas, mas a sua acumulação excessiva, que tem origem em sua ampla disponibilidade, agrava a tensão e torna a violência mais letal e prolongada, o que leva a uma maior aquisição de armas pelas pessoas para se defenderem, gerando um ciclo vicioso. Além disso, a maioria dos conflitos atuais envolve principalmente o uso de armas de pequeno porte, sendo, portanto, responsáveis por um grande número de mortes em todo o mundo. Desse modo, armas pequenas e leves são amplamente utilizadas na violação dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, por meio da prática de assassinatos, mutilações, estupro e outros tipos de violência sexual, desaparecimento forçado, tortura e recrutamento forçado de crianças por grupos armados, que são posteriormente usadas como soldados, a exemplo do que ocorre com frequência na África. Neste caso em particular, das chamadas crianças soldados, segundo a ONG Human Rights Watch, em 2001 foi divulgado um relatório no qual foram identificados 30 países ao redor do mundo no qual crianças estavam participando de conflitos armados. Atualmente este 120 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional número reduziu para 15. Em alguns países o uso destas crianças termina com o fim do conflito e muitas vezes elas ficam totalmente desamparadas, suportando sozinhas os danos causados pelo constante abuso e violência a que são submetidas. O fim das guerras civis em países como Serra Leoa, Libéria, Nepal e Sri Lanka permitiu a desmobilização de dezenas de milhares de crianças soldados. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2012). É justamente em razão destas mazelas que têm como instrumento principal armas pequenas e leves que a Assembleia Geral das Nações Unidas tem envidado esforços para regulamentar as transferências destes produtos, como forma de evitar o desvio e contrabando para o mercado ilegal, bem como seu fornecimento para regiões em conflito e atingidas por graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário. Daí a necessidade de criação de um tratado global regulamentando o comércio destes produtos. Cumpre destacar algumas Resoluções do órgão abordando o tema, são elas, Resolução 60/68 – (A/RES/60/68 – 2006); 64/50 - (A/RES/64/50 – 2010); 65/50 – (A/RES/65/50 – 2011); 66/47 – (A/RES/66/47 – 2012); entre outras. Na sequência deste esforço das Nações Unidas para regular a utilização das armas convencionais, é fundamental destacar o trabalho desenvolvido com relação às minas terrestres. As minas terrestres são de duas espécies: antipessoais e antiveículos, ambas causam terrível sofrimento às pessoas tanto durante, quanto depois de encerrado os conflitos. Minas antipessoais são proibidas desde 1999, quando entrou em vigor a Convenção sobre a Proibição do Uso, Armazenamento e Transferência de Minas Antipessoal e sobre sua Destruição, também conhecida como Convenção de Proibição de Minas, ratificada pelo Brasil em 30 de abril de 1999 (Decreto n. 3.128, de 5 de agosto de 1999). Mais de 150 países aderiram ao Tratado. Segundo o Escritório das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento, os resultados positivos alcançados incluem a destruição de mais de 40 milhões de minas armazenadas, uma redução acentuada no número de mortes, um aumento de Estados livres de minas e uma melhor assistência às vítimas. Apesar dos avanços, pessoas ainda morrem ou perdem membros todos os dias ao redor do mundo por pisarem em minas, incluindo grande número de crianças, já que muitas vivem próximas a campos minados. Mais de 10 milhões de minas estão armazenadas aguardando destruição e enormes extensões de terras ainda estão infestadas e, portanto, inutilizáveis. (UNODA, 2012). E o que é pior, não existe qualquer regulamentação quanto às minas antiveículos, que são usadas livremente nos conflitos. Estas armas, que podem restar utilizáveis por mais de 50 anos, provocam inúmeras vítimas, a grande maioria civis, e ainda, restringem a circulação de pessoas e ajuda humanitária, tornam terras improdutivas para o cultivo e negam aos cidadãos 121 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional de determinado local acesso à água, comida, cuidados médicos e ao comércio, impedindo o desenvolvimento econômico e social. Em razão disso, o Secretário – Geral da ONU tem por diversas vezes solicitado aos Estados que envidem esforços para também regulamentar o uso destas minas. Espera-se com isso que a sociedade internacional se empenhe na criação de uma nova convenção, desta vez proibindo a utilização das minas antiveículos, como forma de proporcionar uma maior proteção dos direitos humanos, livrando os civis desta arma que não distingue combatentes de não combatentes. Semelhante ao problema representado pelas minas tem-se também os problemas representados pelas denominadas “munições cluster”, ou “bombas de fragmentação”, que são armas compostas por uma caixa que se abre no ar e espalha inúmeras sub-munições explosivas ou “sub-bombas” sobre uma ampla área. Dependendo do modelo, o número de sub-munições pode variar de dezenas a mais de 600. Estas munições podem ser lançadas de aeronaves, ou por artilharia e mísseis. A maior parte deveria explodir no momento do impacto, entretanto, segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a história tem mostrado que um grande número destas munições falha e não explode no momento da colisão. As taxas verossímeis de falha destas armas nos conflitos variam entre 10% a 40%, razão pela qual o uso em larga escala das mesmas resultou em regiões e países infestados com dezenas de milhares, às vezes milhões de sub-munições não detonadas e altamente instáveis. (COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA, 2010). Como a maioria das sub-munições não é de precisão, sua exatidão pode ser afetada pelas condições de tempo e outros fatores ambientais, o que pode fazer com que elas atinjam alvos fora da área previamente planejada. Quando tais armas são usadas em áreas povoadas ou próximas a elas, podem representar um perigo significativo para os civis, tanto durante o ataque, quanto depois, quando então as pessoas retornam às suas casas e à rotina normal do cotidiano. Segundo a Human Rights Watch, são 34 os países conhecidos por terem produzido mais de 210 tipos diferentes de munições cluster, dos quais se inclui o Brasil. Dentre eles, projeteis, bombas, foguetes, mísseis e dispensers. Pelo menos 87 países estocam estas munições atualmente ou o fizeram no passado, dos quais também se inclui o Brasil, sendo que os estoques atuais totalizam milhões de bombas de fragmentação, contendo bilhões de submunições individuais. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2010). 122 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Interessante destacar como os principais conflitos das últimas décadas envolveram a utilização destas armas, causando inúmeras mortes de civis e representando até os dias atuais constante perigo para as populações situadas nos locais atingidos, conforme informa a ONG Human Rights Watch em seu excelente trabalho de monitoramento do uso destas armas, que apesar de representarem todo este dano à segurança das pessoas, muitos países ainda insistem em manter os estoques e produções, bem como não assinar a Convenção Internacional sobre Munições Cluster, dos quais, inclusive, também se inclui o Brasil. Informa a ONG que quando uma de suas equipes entrou no Kosovo em 1999, constatou-se que mais de 500 civis haviam morrido no bombardeio da OTAN, sendo que dessas vítimas, entre 90 e 150 haviam sido mortos em ataques de munições cluster. Além disso, como os pesquisadores visitaram áreas densamente povoadas por civis, eles encontraram muitas sub-munições que não explodiram. Da mesma forma a organização informou sobre o alto número de vítimas destas munições na guerra do Iraque em 2003 e também no conflito entre Israel e o Hezbollah em 2006. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2009). Desse modo, em resposta às mortes, ferimentos e sofrimentos causados pelas munições cluster, 107 Estados negociaram e adotaram a Convenção Internacional sobre Munições Cluster em uma conferência diplomática ocorrida em Dublin, na Irlanda em maio de 2008. A Convenção consiste em importante evolução do Direito Internacional Humanitário, já que estabelece novas regras para garantir que estas armas não voltem a ser usadas e que os problemas humanitários existentes associados ao uso das mesmas serão devidamente tratados. A Convenção tem disposições jurídicas específicas que visam atender às necessidades das vítimas e comunidades afetadas, o que reforça também a proteção dos direitos humanos e contribui para efetivar a evolução do direito ao desenvolvimento nestas comunidades. Sua entrada em vigor ocorreu no dia 1º de Agosto de 2010. Abordar este esforço da sociedade internacional em torno da proibição e eliminação das bombas de fragmentação adquire significativa importância tendo em vista que ressalta o descompromisso do Brasil com a defesa dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, já que, apesar de ser parte na Convenção sobre a Proibição ou Limitação do Uso de Certas Armas Convencionais que podem ser consideradas excessivamente nocivas ou terem efeitos indiscriminados, bem como ser parte também do Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949, relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais, o país possui histórico de armazenamento e produção destas bombas, e o que é pior, ainda não assinou a Convenção Internacional sobre Munições Cluster. 123 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Ora, como se sabe, dois princípios basilares do direito internacional humanitário são os de que, primeiro, o direito das partes em um conflito armado de escolher os métodos ou meios de guerra não é ilimitado e, segundo, é proibido em conflitos armados o emprego de armas, projeteis, materiais e métodos de guerra que por sua natureza sejam suscetíveis de causar danos supérfluos ou sofrimento desnecessário às pessoas envolvidas nas hostilidades. Estes princípios estão previstos na Convenção sobre a Proibição ou Limitação do Uso de Certas Armas Convencionais que podem ser consideradas excessivamente nocivas ou terem efeitos indiscriminados, bem como no artigo 35º do Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949, relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais, ambos os instrumentos assinados e ratificados pelo Brasil. Desse modo, pergunta-se, por que o Brasil até o presente momento não assinou a Convenção sobre Munições Cluster, de 2008? E Também, por que o Brasil possui referidas munições em seus armamentos? Ora, conforme se pode verificar pelas Convenções acima mencionadas o País se obrigou perante a sociedade internacional a obedecer ao princípio geral de proteção da população civil em caso de conflitos armados, razão pela qual é óbvio que o mesmo deve envidar todos os esforços para fazer valer esta norma basilar do direito internacional humanitário. As respostas para estas indagações perpassam pelo que ACCYOLI, SILVA e CASELLA, vão definir como um dos grandes desafios do Direito Internacional pós-moderno, o resgate da dupla dimensão do alcance teórico – conceitual e da efetividade de sua implementação: Justamente ao Direito Internacional pós-moderno caberá resgatar a dupla dimensão do alcance teórico – conceitual e da efetividade da implementação. Essa tarefa é enorme e põe-se como exigência para a sobrevivência da humanidade, aponta Christian TOMUSCHAT (1999), ao enfatizar o papel do direito, para evitar que a humanidade soçobre no caos e na anarquia: “pode ser não tenha sido dada resposta definitiva a tal indagação”, porquanto, de um lado, a “humanidade desenvolveu considerável aparato jurídico, para exprimir a conscientização de que estreita cooperação internacional é necessária para desempenhar extenso número de tarefas de dimensões mundiais. Garantir a paz e a segurança internacionais, defender os direitos humanos, bem como a proteção do meio ambiente, estão na linha de frente desses reclamos. Mas também vimos que os mecanismos institucionais estabelecidos para tais fins deixam muito espaço para aperfeiçoamentos. Será o desafio das próximas décadas fortalecer os sistemas existentes de cooperação”. (CASELLA, ACCYOLI, SILVA, 2010, p. 126). Pois bem, na sequência da análise sobre o trabalho desenvolvido pela ONU em torno do desarmamento e regulamentação dos armamentos, cumpre ainda mencionar o sistema de transparência nas transferências de armas criado pela Organização, com o objetivo de 124 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional construir uma maior confiança entre os Estados e ajudar na prevenção de conflitos. Para tanto, foi criado no âmbito da Organização o Registro das Nações Unidas de Armas Convencionais (UN Register of Conventional Arms - UNROCA), ferramenta extremamente importante que exorta os Estados a informarem sobre suas exportações e importações de armas convencionais, com a finalidade principal de determinar acumulações excessivas ou desestabilizadoras em determinadas regiões, o que atribui maior responsabilidade às mesmas, sobretudo quando se tratam de vendas efetuadas para regiões atingidas por conflitos e graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário. Apesar de o mecanismo ter sido criado no início dos anos 90, relatórios atuais têm demonstrado que o Brasil e diversos outros países não são totalmente transparentes, uma vez que não fornecem informações suficientes sobre suas transações. (SMALL ARMS SURVEY, 2012). Por fim, cumpre ressaltar o trabalho do Conselho de Segurança das Nações Unidas, órgão responsável pela manutenção da paz e segurança internacional dentro do sistema de segurança coletiva criado pela Carta da ONU. Conforme visto, em razão da estreita relação entre armas, paz e segurança internacional, o artigo 26 da Carta das Nações Unidas atribui ao Conselho o encargo de formular os planos a serem submetidos aos Membros das Nações Unidas para o estabelecimento de um sistema de regulamentação dos armamentos. Esta tarefa tem sido desenvolvida de forma bastante tímida pelo órgão, que desde a sua criação não conseguiu efetivar um dos principais objetivos da ONU que é o desarmamento geral e completo, tal como definido na Resolução 1378 (XIV) da Assembleia Geral, o que denota a incompetência deste órgão no cumprimento da responsabilidade de manutenção da paz e segurança internacional que lhe foi atribuída. Esta incompetência deriva de questões geopolíticas e, portanto, de difícil solução pela sociedade internacional que se vê refém de algumas poucas potências que ainda insistem em manter uma ordem internacional baseada na força e na dissuasão. Basta lembrar que os cinco membros permanentes do órgão são potências nucleares e no que tange à produção e exportação de armas convencionais suas empresas dominam o ranking de vendas no mundo, conforme divulgado pelo Stockholm International Peace Research Institute4 (SIPRI). Os Estados Unidos, que é o maior produtor e exportador mundial de armas, lidera o ranking com a famosa Lockheed Martin, fabricante de aviões de combate e mísseis, seguido pela Inglaterra, com a chamada BAE Systems, fabricante de aviões, artilharia, mísseis, veículos, navios de guerra, armas leves, dentre outros. Após os Estados Unidos 4 Instituto Internacional de Pesquisas para a Paz de Estocolmo. 125 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional figurarem nas terceira, quarta, quinta e sexta posições, com suas empresas, Boeing, Northrop Grumman, General Dynamics, Raytheon e BAE Systems Inc., destaca-se a empresa fruto de um consórcio envolvendo diversos países europeus, no qual figura outro membro permanente do Conselho, a França, com a chamada EADS, seguida também da Thales. A Rússia também se destaca com sua empresa Almaz – Antey figurando na 20ª posição. A China, apesar de ser também um grande produtor e exportador de armas convencionais, não figura no Ranking em razão do extremo sigilo em torno de sua indústria de defesa. (SIPRI, 2010). Certamente que estas questões estão por trás da ineficiência do órgão em efetivar o desarmamento geral e completo e estabelecer um sistema de regulamentação dos armamentos realmente eficaz, que fixe regras sobre as exportações e importações de armas, o que, por sua vez, reflete em sua obrigação principal de assegurar a manutenção da paz e segurança internacional, razão pela qual sua reforma é extremamente urgente e necessária. Contudo, apesar desta ineficiência, o Conselho de Segurança tem desenvolvido um trabalho relevante no que concerne à prevenção de conflitos, e seu não agravamento, por meio dos chamados embargos de armas, que são impostos pelo órgão com base no Capítulo VII, artigo 41 da Carta das Nações Unidas. A relevância destas medidas deriva do fato de que proíbem o fornecimento de armas para regiões em conflito, atingidas por graves violações dos direitos humanos ou do direito internacional humanitário, contribuindo para o fim do conflito ou das violações ou então evitando o seu agravamento, além de contribuírem com a não proliferação das armas convencionais. Embora sejam relatadas violações aos embargos impostos, tal fato não retira a importância destas medidas que configuram a nítida relação entre o comércio de armas para regiões atingidas por conflitos e o consequente agravamento, sobretudo tendo em vista que estes embargos envolvem a proibição do fornecimento de armas pequenas e leves, naturalmente mais utilizadas na violação dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, bem como mais fáceis de serem contrabandeadas para atores não estatais, como organizações criminosas e terroristas. Isso coloca para os Estados produtores e/ou exportadores de armas, parâmetros de fornecimento para outras regiões em situações semelhantes, mas que ainda não foram impostos embargos, seja por questões políticas dentro do órgão ou por demora na atuação, o que é extremamente relevante frente a um mercado carente de regulamentação específica como é o caso. Desse modo, cumpre destacar algumas destas medidas impostas pelo Conselho de Segurança, que evidenciam uma atuação efetiva do órgão no controle dos fluxos de armas 126 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional destinadas para regiões em conflito ou atingidas por graves violações de normas internacionais, tais como, Resolução 181 (1963) – Embargo de armas, munições e veículos militares para a África do Sul (Apartheid); Resolução 733 (1992) – Embargo de armas e equipamentos militares para a Somália; Resolução 1011 (1995) – Embargo de armas para forças não governamentais em Ruanda; Resolução 1390 (2002) – Embargo de armas e materiais conexos para atores não estatais (Al Qaeda e Taliban); entre outras. Este, portanto, o papel mais relevante desempenhado pelo Conselho de Segurança da ONU no que tange ao controle e tentativa de regulamentação do comércio internacional de armas, papel este que não é suficiente para eliminar as consequências de um mercado internacional de armas desregulado, no qual se tem um alto índice de tráfico lícito e ilícito de armamentos, que muitas vezes se destinam a regiões atingidas por conflitos ou graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, contribuindo para o agravamento destas tensões e violações destes direitos. 3. Conclusão Diante do exposto, verifica-se que a sociedade internacional ainda tem muito que avançar para conseguir efetivar uma regulamentação realmente eficaz das armas convencionais, reduzindo os riscos inerentes. Esta regulamentação deve contemplar a elaboração do aguardado Tratado sobre Comércio Internacional de Armas, a criação de regras sobre gerência e administração dos estoques de munições, a proibição do uso das minas antiveículos nos conflitos, a adesão geral à Convenção sobre Munições Cluster e, por fim, a adesão de todos os países de forma plena ao sistema de transparência no comércio internacional de armas convencionais, criado pela ONU e denominado UNROCA. Especificamente no que diz respeito ao comércio internacional, é importante esclarecer que enquanto não ocorre a aprovação e criação de um tratado global que fixe normas específicas regulando as exportações e importações, os governos nacionais permanecem os principais responsáveis por suas transferências de armas em observância aos compromissos mais gerais de respeito aos direitos humanos e ao direito internacional humanitário. A grande maioria dos Estados controlam os fluxos de armas através de suas fronteiras, sejam as exportações ou importações. É por isso que os governos devem ser responsáveis em suas transferências, ou seja, antes de aprovar uma exportação de armas as autoridades nacionais devem avaliar o risco de que esta transferência possa agravar um conflito existente 127 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional no país importador, ser utilizada para violar direitos humanos ou o direito internacional humanitário ou então, que envolva o risco de que as armas sejam desviadas para o mercado ilegal. A observância destes parâmetros não decorre somente de boas práticas que os Estados podem ou não escolher adotar, mas sim de obrigações internacionais assumidas quando da assinatura e ratificação dos diversos tratados que versam sobre a defesa e respeito aos direitos humanos e ao direito internacional humanitário, assim como as obrigações decorrentes dos Princípios Gerais de Direito Internacional, dos quais se destacam os princípios de jus cogens, tais como, o Princípio da Cooperação, o Princípio da Proteção das Vítimas de Guerras e Conflitos e o Princípio da Garantia dos Direitos “Inderrogáveis” enunciados no art. 4º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e demais tratados sobre direitos do homem. Ocorre que, dado o grande poder que a indústria de defesa exerce nos países que a possuem, esta responsabilidade sobre as transferências fica mais no plano da retórica, com a grande maioria dos países produtores e exportadores de armas exercendo pouco controle sobre suas vendas e aquisições de armas. O Brasil, por exemplo, figura neste rol de países que exercem pouco controle sobre sua indústria de defesa, possuindo um histórico vergonhoso de exportações de armas para regiões em conflito e atingidas por graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário. Esta atitude do País viola o direito internacional, sobretudo as obrigações derivadas da assinatura e ratificação de diversos instrumentos relacionados à proteção daqueles direitos, bem como derivadas de outras fontes, obrigações estas que a duras penas veem sendo construídas pela sociedade internacional. REFERÊNCIAS CASELLA, Paulo Borba, ACCIOLY, Hildebrando, SILVA, G.E. do Nascimento e. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Munições Cluster: O que são e qual é o problema? 2010. Disponível em: http://www.icrc.org/por/resources/documents/legal-factsheet/cluster-munitions-factsheet-230710.htm. Acesso em 19 de jan. de 2013. GENERAL ASSEMBLY. Problems arising from the accummulation of conventional ammunition stockpiles in surplus. Report of the Secretary – General. (A/62/166/Add.1). 2007. Disponível em: http://www.un.org/disarmament/convarms/Ammunition/. Acesso em 15 de jan. de 2013. 128 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional HUMAN RIGHTS WATCH. Getting children off the battlefield. 2012. Disponível em: http://www.hrw.org/news/2012/02/13/getting-children-battlefield. Acesso em 16 de jan. de 2013. HUMAN RIGHTS WATCH. Cluster Munition Information Chart. 2010. Disponível em: http://www.hrw.org/en/news/2009/07/17/cluster-munition-information-chart. Acesso em 19 de jan. de 2013. HUMAN RIGHTS WATCH. Cluster Weapons: Scourge of Civilians. 2009. Disponível em: http://www.hrw.org/news/2009/03/02/cluster-weapons-scourge-civilians. Acesso em 19 de jan. de 2013. OXFAM INTERNATIONAL. Dying for Action. Decision time for an urgent, effective Arms Trade Treaty. Oxfam International: 2009. Disponível em: http://www.oxfam.org/en/policy/dying-for-action. Acesso em 13 de jan. de 2013. SIPRI. The SIPRI Top 100 Arms – producing and military services companies, 2010. 2010. Disponível em: http://www.sipri.org/research/armaments/production/Top100. Acesso em 21 de jan. de 2013. SMALL ARMS SURVEY. The Transparency Barometer. 2012. Disponível em: http://www.smallarmssurvey.org/weapons-and-markets/tools/the-transparencybarometer.html. Acesso em 15 de fev. de 2012. UNITED NATIONS. Programme of Action to Prevent, Combat and Eradicate the Ilicit Trade in Small Arms and Light Weapons in All Its Aspects. 2001. Disponível em: http://www.poaiss.org/poa/poahtml.aspx. Acesso em 14 de jan. de 2013. UNODA. Landmines. 2012. Disponível em: http://www.un.org/disarmament/convarms/Landmines/. Acesso em 16 de jan. de 2013. VIVA COMUNIDADE. Seguindo a Rota das Armas: Desvio, Comércio e Tráfico Ilícitos de Armamento Pequeno e Leve no Brasil. Projeto: Mapeamento do Comércio e Tráfico Ilegal de Armas no Brasil. Rio de Janeiro: 2010. 129 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A PLURALIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL SOB A PERSPECTIVA DO TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR: O CASO ARA LIBERTAD THE PLURALIZATION OF INTERNATIONAL LAW ON THE PERSPECTIVE OF THE INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA: THE ARA LIBERTAD CASE Paula Ritzmann Torres1 Vivian Daniele Rocha Gabriel2 RESUMO: O hodierno fenômeno da proliferação das Cortes Internacionais, especializadas para tratar de determinados temas, ascende questionamentos sobre a possível fragmentação do Direito Internacional. Nesse cenário, destaca-se o Tribunal Internacional do Direito do Mar, o qual, por sua ampla competência, mostra-se adequado ao julgamento de assuntos relacionados à diversas áreas do Direito, tais como, meio ambiente, direitos humanos, delimitação territorial, soberania estatal e direito internacional do investimento estrangeiro. Destarte, o presente artigo objetiva descrever alguns desses aspectos evidentes na contenda do caso ARA Libertad, entre Argentina e Gana, que foi levado, ao final do ano de 2012, ao Tribunal Internacional do Direito do Mar. Em simples acepção, o caso versa sobre a detenção de um navio de guerra argentino, em um porto ganês, em decorrência de uma decisão local que determinou, o arresto da embarcação como pagamento de dívida do país platino com investidores estrangeiros privados, contornando, assim, a tradicional regra da imunidade de jurisdição. Para contextualizar o desencadeamento de tal certame jurídico, expor-se-ão alguns dos fatores históricos, políticos e econômicos vivenciados na Argentina nas décadas de 1990 e 2000, bem como decisões de cortes estrangeiras sobre a questão, que contribuíram, ainda que indiretamente, para a constituição do referido caso. A seguir, trar-se-á os principais argumentos das partes perante o Tribunal Internacional do Direito do Mar, assim como a solução jurídica dada por este órgão jurisdicional. Por fim, visando afastar o dogma da fragmentação, explicitar-se-á a contribuição do caso ARA Libertad para o fortalecimento do pensamento sistêmico do Direito Internacional. PALAVRAS-CHAVE: Tribunal Internacional do Direito do Mar; Caso ARA Libertad; fundos de investimento; imunidade de jurisdição; unidade sistêmica do Direito Internacional. 1 Advogada, graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e graduada em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Mestranda em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo (USP).E-mail: [email protected]. 2 Advogada, graduada em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Mestranda em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo (USP).E-mail: [email protected]. 130 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional ABSTRACT: The proliferation of specialized International Courts raises the concern about the potential fragmentation of International Law. In this scenario, the International Tribunal for the Law of the Sea is highlighted. Because of the width of its competency, it may judge subjects related to Environmental Law, Human Rights, sovereignty and territorial delimitation and Foreign Investment Law. Thus, the present article aims towards the description of some of these aspects, that are evident in the ARA Libertad Case, between Argentina and Ghana, which was taken to the International Tribunal for the Law of the Sea in the end of 2012. In summary, the case concerns the detain of an Argentine warship, located in a port of Ghana, because of an order from the local court of Ghana in respect of the payment of the Argentine debt with foreign private investment fund, that brought to discussion the traditional rule of sovereign immunity. To contextualize the case, it is important to explain the historic, political and economic facts occurred in Argentina from 1990 to 2000, the decisions from foreign courts about litigation that contributed, even in an indirect process building the arguments of the case. Hereafter, it will be explained the main arguments of each part in the International Tribunal for the Law of the Sea, and the jurisdictional solution made for this court. Finally, in order to dispel the dogma of fragmentation, it will be described the contribution of the case ARA Libertad to the fortification of the systemic doctrine of International Law. KEYWORDS: International Tribunal for the Law of the Sea; ARA Libertad Case; investment funds; sovereign immunity; systemic unity of International Law. INTRODUÇÃO Na nova ordem mundial, principalmente após a segunda metade do século XX, houve uma crescente necessidade de se tutelar e normatizar uma grande extensão de áreas da vida social. Cada vez mais amplos, esses novos temas e domínios acabaram indo além da circunscrição do direito estatal, passando a ser disciplinados também pelo Direito Internacional. A multiplicação de normas legais no plano internacional, em claro processo de evolução e ampliação da abrangência deste ramo do direito, foi acompanhada pela especialização normativa, que passou a organizar o sistema internacional em microssistemas jurídicos, que refletem um direito concreto e especializado, adaptado a objetivos e contextos particulares. Conectado a esse fenômeno, destaca-se o surgimento dos processos de institucionalização e jurisdicionalização do Direito Internacional. O primeiro refere-se ao advento de diversos foros de discussão internacionais, que visam analisar os novos enfoques de interesse que, a partir de então, passaram a ser afetos ao domínio da ordem jurídica internacional. Já o segundo, versa sobre a proliferação dos Tribunais Internacionais que, de maneira a operacionalizar este ramo do direito, garante a aplicação prática das diretrizes 131 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional externas estabelecidas, respaldando, preservando e auxiliando no alcance da justiça em âmbito internacional. Nesse cenário, o presente artigo visa ilustrar o caso ARA Libertad, litígio entre a Argentina e Gana, iniciado no ano de 2012, e que transcorre perante o Tribunal Internacional do Direito do Mar, com sede em Hamburgo, Alemanha. Em um primeiro momento, o trabalho pretende demonstrar os precedentes históricos, políticos e econômicos que ensejaram o embate entre a República platina e os fundos de investimentos internacionais possuidores de títulos da dívida pública argentina em cortes distintas. Frisar-se-á, nesse tópico, a ocorrência da crise econômica de 2001, que trouxe a necessidade de reestruturação da dívida estatal, bem como a tentativa de aplicação de sentença estrangeira proferida por tribunal americano, a fim de executar a dívida pública contraída. Em um segundo momento, almejar-se-á o mandado de aprisionamento de embarcação argentina e o encaminhamento da questão ao Tribunal Internacional do Direito do Mar, bem como os argumentos de ambas as partes e os fundamentos e interpretações utilizados pela Corte Internacional para dirimir a contenda. Posteriormente, traz-se à tona o advento da fragmentação do Direito Internacional, de modo a explanar se o enquadramento do caso estudado dá-se nesse paradigma internacional ou se corresponde ao fortalecimento de um pensamento funcionalizado sistêmico do ordenamento jurídico internacional. Por fim, considera-se a aplicação jurisdicional do pensamento sistêmico por intermédio da dialética harmonizadora entre as fontes do Direito Internacional, de modo a aplicá-lo como sistema unitário. 1 DO CASO ARA LIBERTAD E SEUS ANTECEDENTES O caso ARA Libertad, submetido ao Tribunal Internacional do Direito do Mar, no ano de 2012, demonstra-se como litígio complexo e interdisciplinar. Envolvendo questões plurais, como investimentos privados, renegociação de dívida pública estatal e imunidade de jurisdição de possessões bélicas, pontos que, apesar de distintos entre si, comunicam-se dentro de uma mesma contenda, este faz com que sejam analisados desde o panorama político e econômico da Argentina diante da crise econômica de 2001 e a sua relação com os fundos de investimentos privados detentores dos títulos da dívida pública desse país até o aprisionamento de patrimônio argentino por Gana. Este último fato culminou na posterior 132 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional discussão levada à corte internacional com sede em Hamburgo, que teve de pronunciar-se de modo incisivo e claro sobre as questões, pelo que passa a expor. 1.1 Da Crise argentina e da reestruturação dos débitos externos No mundo contemporâneo, diversos foram os fatos políticos ou econômicos que, devido à sua grande importância, desencadearam ações pertinentes com o campo do Direito Internacional. No início dos anos 1990, o fim da Guerra Fria fez com que o mundo passasse por uma grande mudança de paradigma, o que para vários países implicou na necessidade de reorientação de seu marco político-econômico. Nesse contexto, tem-se que as crises econômicas foram recorrentes, principalmente nos países em desenvolvimento, deixando marcas que duram até hoje, como grande endividamento externo, redução do fluxo de investimentos e do crescimento econômico, desvalorização das moedas nacionais e moratórias3. Dentre as crises ocorridas, como é o caso da mexicana, em 1994, da asiática, em 1997, e da brasileira, em 1999, uma em especial merece destaque: a crise argentina. O colapso argentino de 2001 teve como principal antecedente o Plano Cavallo, reforma implantada pelo Governo Carlos Menem que, ao se coadunar com os objetivos previstos no Consenso de Washington, promoveu, dentre outras medidas, privatizações, livre fluxo de capitais e liberalização comercial. Ademais, à época foi implantada a conversibilidade da moeda nacional em dólar, a fim de aumentar a credibilidade internacional do país, bem como controlar a inflação. Ainda durante esse panorama econômico-financeiro, salienta-se que foram recorrentes os empréstimos externos argentinos para que a balança de pagamentos se mantivesse positiva, visto que o processo de desindustrialização argentino e a redução de competitividade acelerara-se nos anos 90, prejudicando as exportações desse país. A despeito disso, a entrada de capital especulativo e de investimentos externos diretos4 fazia com que a 3 PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 662-673. Nesse sentido, vale a pena destacar a diferença entre investimento direto e indireto. O primeiro refere-se basicamente à criação de uma empresa, possuída e controlada por um investidor, na qual se visa a obtenção de ganhos mediante o exercício da atividade produtiva continuada e duradoura, sem a intenção imediata de transferir a propriedade da empresa. O segundo corresponde ao investidor que, ao adquirir algumas ações de uma companhia no mercado de valores imobiliários, tem a finalidade de lucro com a venda desses papeis por maior preço. Cf.: COSTA, José Augusto Fontoura. Direito internacional do investimento estrangeiro. Curitiba: Juruá, 2010, p.33. 4 133 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional conta capital e financeira se mantivesse positiva, o que somado ao financiamento externo mantinham a balança de pagamentos superavitária. Nesse sentido, com o advento da crise brasileira e da desvalorização do real o país platino foi afetado brutalmente, fazendo com que se deteriorasse ainda mais a competitividade da indústria nacional, agravando sua balança comercial e esgotando suas reservas internacionais. Houve grande fuga de capitais, crise bancária, redução do crédito, do consumo e dos investimentos e, por fim, uma forte recessão no país. Destarte, a Argentina declarou a moratória de sua dívida, encerrou a aplicação da taxa de câmbio fixa, gerando a desvalorização da moeda, crescente inflação e o encolhimento de seu Produto Interno Bruto (PIB).5 Essa crise também trouxe instabilidade para o plano político, pois culminou na renúncia do presidente Fernando de La Rúa e na designação de um novo chefe de Estado até novas eleições. Em 2003, Néstor Kirchner foi eleito governante e, na busca por medidas de estabilização econômica, criou um plano de reestruturação de débitos, aplicado em um primeiro momento em 2005 e, posteriormente, em 2010. Tal proposta consistia no oferecimento aos credores da oportunidade de trocar suas dívidas antigas por débitos externos renovados, em uma proporção que equivaleria a 25 a 29 centavos de dólar. Desse modo, para pressionar os investidores a aderirem a tal medida, a Argentina emitiu uma prospecção de riscos da não participação dos credores em tal plano, alegando que caso estes não aceitassem, correriam o risco de não receber qualquer pagamento referente aos seus montantes no futuro, em razão do valor milionário de U$$ 102,6 bilhões correspondente à dívida pública argentina. Além disso, o país promulgou a Lei 26.017/2005 que declarava que o Poder Executivo argentino não iria reabrir posteriormente o processo de troca e reestruturação da dívida, estabelecido em 2005, bem como este poderia remover as dívidas de uma listagem em todos os mercados de seguro domésticos e estrangeiros. Ainda, o Estado também estaria proibido de conduzir qualquer tipo de ação judicial pública ou em cortes privadas, referente a esses débitos.67 O resultado disso foi a adesão de 76% dos credores ao supracitado plano de débitos, totalizando U$$ 62,3 bilhões. Entretanto, houve empresas que decidiram não participar de tal 5 DI BIASE, Francisco Roland. Argentina: da crise ao sucesso. Disponível em: <http://www.globalresearch.ca/argentina-da-crise-ao-sucesso/28130>. Acesso em: 15 mar 2013. 6 ESTADOS UNIDOS. CORTE DE APELAÇÃO DE SEGUNDA INSTÂNCIA. 12-105(L). Relator Barrington Disponível em: <http://www.shearman.com/files/upload/second-circuit-decision-11-05D.Parker. 12.pdf>.Acesso em: 15 mar 2013. 7 Ressalta-se que essa lei foi temporariamente suspensa em 2010, visto que nesse ano iniciou-se um segundo plano de reestruturação dos débitos externos, nos mesmos moldes do de 2005. 134 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional medida, como é o caso da NML Capital Ltd., fundo de investimento sediado nas Ilhas Cayman e com base nos Estados Unidos, pertencente ao Elliot Capital Management, e ao especulador internacional Paul Singer, que, diante do pagamento preferencial das dívidas referentes aos planos de reestruturamento, sentiu-se prejudicada. Nessa seara, em razão da ausência de pagamentos, o fundo de investimentos buscou a satisfação dos valores devidos pela Argentina (além dos juros correspondentes) em diversas cortes estatais, como é o caso da Corte Americana de Apelações (US Court of Appeals), do Tribunal de Suprema Instancia de Paris (Tribunal de Grande Instance de Paris) e da Suprema Corte do Reino Unido (United Kingdom’s Supreme Court). As decisões resultantes desses tribunais foram todas em favor da NML Capital Ltd., pelo que se destaca a sentença americana, em grau de apelação, que determinou ao governo argentino o tratamento igual a todos os credores, em respeito à cláusula pari passu, que protege as partes de qualquer forma de discriminação no pagamento dos débitos por parte do Estado devedor.8 Assim sendo, a Argentina foi condenada a pagar o valor de U$S 1,3 bilhões9 imediatamente aos respectivos credores, contudo, tem-se que a execução dessa decisão não pôde ser realizada, em razão da imunidade soberana do Estado argentino, que protege o governo e sua propriedade de ações judiciais em cortes de outras nações.10 1.2 Da manifestação da corte nacional de gana e do aprisionamento da fragata de guerra argentina ARA Libertad No dia 01 de outubro de 2012, a fragata de guerra argentina denominada ARA Libertad adentrou o Porto de Tema, próximo à cidade de Accra, Ghana. Símbolo da marinha argentina, o navio é utilizado para treinamentos de guerra, por conseguinte, este era o principal objetivo do capitão e dos 326 tripulantes, dentre marinheiros de Argentina, Brasil, 8 ESTADOS UNIDOS. CORTE DE APELAÇÃO DE SEGUNDA INSTÂNCIA. 12-105(L). Relator Barrington D.Parker. Disponível em: <http://www.shearman.com/files/upload/second-circuit-decision-11-0512.pdf>.Acesso em: 15 mar 2013. 9 REUTERS. Detained Argentine naval ship leaves Ghana. Disponível em: < http://www.reuters.com/article/2012/12/19/us-ghana-argentina-ship-idUSBRE8BI1AF20121219>. Acesso em: 15 mar 2013. 10 A decisão proveniente da Suprema Corte do Reino Unido determinou que a sentença americana é plenamente aplicável e que a Argentina não goza de imunidade estatal. Cf. GANA. DIVISÃO COMERCIAL DA CORTE SUPERIOR DE GANA. SUIT NO.RPC/343/12. Relator Richard Adjei-Frimpong Disponível em: <http://www.creditslips.org/creditslips/Ruling%2011-Oct-12%201%20(3).pdf>.Acesso em: 15 mar 2013. 135 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Chile, Uruguai, Paraguai, Venezuela, Equador, Bolívia e África do Sul11. A partida da embarcação estava agendada para o dia 04 de outubro de 201212, porém, no dia 02 de outubro de 2012, o governo de Gana aprisionou a fragata por meio de um mandado de injunção, proveniente da Divisão Comercial da Corte Superior de Gana.13 Essa medida judicial foi resultado da ação ajuizada pelo fundo de investimentos NML Capital Ltd., que, sentindo-se prejudicado pelo não pagamento dos débitos argentinos, moveu o tribunal ganês para impedir que a embarcação e sua tripulação saíssem do porto, para assim satisfazer a dívida contraída e ainda não paga. O resultado foi o reconhecimento da jurisdição de Gana para a execução da sentença estadunidense, bem como a restrição da movimentação da embarcação argentina do porto de Tema. Isso, pois, a embarcação argentina fazia parte da propriedade do Estado devedor e, como se encontrava nas águas territoriais do país africano, fazia-se necessário retê-la para que se pudesse cumprir ao menos parte dos débitos reconhecidos em sentença estrangeira. A Argentina, por sua vez, peticionou à Corte de Gana alegando que o ato realizado por Gana, em atenção ao referido fundo de investimentos, correspondia a uma violação do Direito Internacional e, em particular, à imunidade de jurisdição. O Ministro das Relações Exteriores da Argentina, Hector Timerman, se manifestou sobre o caso alegando que o aprisionamento da fragata foi um ataque extorsivo, chegando a comparar a ação a um ato de pirataria contra uma nação soberana, que estaria sendo obrigada a negociar com uma “entidade financeira inescrupulosa” dedicada à “pirataria financeira”.1415Ademais, em nota publicada pela chancelaria argentina em 03 de outubro de 2012, afirmou-se a ocorrência violação da Convenção de Viena sobre Imunidade Diplomática. Quanto à questão da imunidade de jurisdição, Argentina afirma ser um Estado soberano e que, portanto, possui imunidade contra a execução de sentença estrangeira. 11 BELFAST TELEGRAPH ON LINE. Argentina evacuates crew from ship. Disponível em: <http://www.belfasttelegraph.co.uk/news/world-news/argentina-evacuates-crew-from-ship-28876176.html >. Acesso em: 15 mar 2013. 12 INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Tribunal orders release of argentine frigate “ARA Libertad”. Disponível em: http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/press_releases_english/PR_188_E.pdf. Acesso em: 15 mar 2013. 13 Tradução livre do inglês Ghana Superior Court Judicature (Commercial Division). 14 BELFAST TELEGRAPH ON LINE. loc.cit 15 Salienta-se que, em 2007, um mesmo fundo possuidor de bônus argentinos descobriu que a aeronave presidencial Tango 01 iria aos Estados Unidos para manutenção e treinamento de pilotos, pelo que acionaram a corte dessa país para que a aeronave fosse arrestada após seu pouso, bem como o dinheiro trazido pelos pilotos para o pagamento do combustível. O governo Kirchner foi alertado e cancelou a viagem, obtendo também um mandado do juiz da Califórnia, William Alsup, que declarou que a aeronave era imune ao arresto. Cf. DEFESANET DEFESA ESTRATÉGIA INTELIGÊNCIA SEGURANÇA. ARA LIBERTAD – Veleiro argentino é arrestado em Gana. Disponível em: <http://www.defesanet.com.br/geopolitica/noticia/8062/ARALIBERTAD---Veleiro-argentino-e-arrestado-em-Gana>. Acesso em: 15 mar 2013. 136 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Entretanto, o Tribunal de Gana reconheceu que o país platino renunciou à sua imunidade de jurisdição expressamente na cláusula 22, do Acordo de Organização Fiscal16, que estabelecia a venda de títulos da dívida para instituições financeiras. Esse fato foi ressaltado, inclusive, no julgamento realizado pela Suprema Corte do Reino Unido17, em que ficou estabelecido que o devedor renunciou expressamente à sua imunidade de jurisdição.18 Nesse sentido, a redação da cláusula é a seguinte: Para o alcance que a republica ou qualquer de seus ativos ou propriedades devem ser intitulados, em qualquer jurisdição ou corte local, em que qual seja o procedimento atinado, este pode a qualquer tempo ser trazido para efeitos de execução ou aplicação em qualquer julgamento relacionado, qualquer imunidade processual, seja na jusrisdicao de qualquer corte, do apego antes do julgamento, do apego em ajuda de execução de sentença, a partir de execução de uma sentença ou de qualquer outro processo tal legal ou judicial ou recurso e na medida em que, em qualquer jurisdição não deve ser atribuída tal imunidade, a República irrevogavelmente concordou em não reclamar e irrevogavelmente renunciado à máxima extensão permitida pelas leis da jurisdição ... unicamente com a finalidade de permitir que ... um detentor de títulos desta série para aplicar ou executar um julgamento relacionado19. Observa-se, portanto, que Gana adotou posição semelhante à britânica, afirmando que a Argentina, ao utilizar os termos “pode a qualquer tempo ser trazido para efeitos de execução ou aplicação, qualquer julgamento relacionado”,20 renunciou à sua imunidade de jurisdição, logo, a decisão americana pode ser perfeitamente executada em corte estrangeira, qual seja a de Gana. Devido à improcedência da petição argentina no Tribunal de Gana, em 30 de outubro de 2012, o país decidiu instaurar procedimentos arbitrais contra Gana, em conformidade com 16 Tradução livre do termo em inglês Fiscal Agency Agreement (FAA). REINO UNIDO. U.K. SUPREME COURT. 2011 UKSC 31. Relator Lord Phillips. Disponível em: <http://www.supremecourt.gov.uk/docs/UKSC_2010_0040_Judgmentv2.pdf>.Acesso em: 15 mar 2013. 18 GANA. DIVISÃO COMERCIAL DA CORTE SUPERIOR DE GANA. SUIT NO.RPC/343/12. Relator Richard Adjei-Frimpong. Disponível em: <http://www.creditslips.org/creditslips/Ruling%2011-Oct12%201%20(3).pdf>.Acesso em: 15 mar 2013. 19 Tradução livre do inglês: “to the extend that the republic or any of its assets or properties shall be entitled, in any jurisdiction in which any specified court is located, in which any related proceeding may at any time be brought against it or any of its revenues, assets or properties, or in any jurisdiction in which any specified court or other court is located in which any suit action or proceeding may at any time be brought solely for the purpose of enforcing or executing any related judgment, to any immunity from suit, from the jurisdiction of any such court, from set-off, from attachment prior to judgment, from attachment in aid of execution of judgment, from execution of a judgment or from any other such legal or judicial process or remedy and to the extent that in any such jurisdiction there shall be attributed such an immunity, the Republic has irrevocably agreed not to claim and has irrevocably waived such immunity to the fullest extent permitted by the laws of such jurisdiction… solely for the purpose of enabling… a holder of securities of this series to enforce or execute a related judgment”. CAMBRIDGE JOURNAL OF INTERNATIONAL AND COMPARATIVE LAW. Argentina v Ghana at ITLOS. Disponível em: <http://www.cjicl.org.uk/index.php/component/easyblog/entry/argentina-v-ghana-atitlos?Itemid=101> Acesso em: 15 mar 2013. 20 Tradução livre do ingles: “(…) may at any time be brought solely for the purpose of enforcing or executing any related judgment (…)”. 17 137 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional o Anexo VII da Convenção das Nações Unidas do Direito do Mar, a fim de obter, por meio de medida provisória, a liberação do navio. Observa-se que, em 07 de novembro de 2012, oficiais do porto ganês indicaram esforços para uma mudança de ancoradouro para a embarcação, dentro do Porto de Tema, concomitantemente a implementação de uma ordem judicial, em que foram cortadas água e eletricidade da fragata, afetando, consequentemente, a tripulação, a qual, em resposta a esse ato, ordenou que seus marinheiros dirigissem-se ao convés e preparassem suas armas 2122. 2 O CASO ARA LIBERTAD PERTANTE O TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR Diante da detenção, em 02 de outubro de 2012, no porto de Tema, em Gana, da embarcação argentina ARA Libertad, bem como de sua tripulação, o Estado platino ingressou, embasado no artigo 290 da III Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CONVEMAR) 2324 , com um pedido de medidas cautelares no Tribunal Internacional do Direito do Mar, visando a sua liberação imediata. 21 Durante a audiência no Tribunal do Mar, Gana expressou seu arrependimento com o episódio, acrescentando que as autoridades do porto aplicaram a ordem judicial em desconformidade com as obrigações contidas no direito doméstico de fazê-lo. 22 BLOG OF THE EUROPEAN JOURNAL OF INTERNATIONAL LAW. ITLOS order Ghana to release argentine navy ship. Disponível em: <http://www.ejiltalk.org/itlos-order-ghana-to-release-argentine-navyship/> Acesso em: 15 mar 2013. 23 A Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (CONVEMAR), também chamada de Convenção de Montego Bay, foi incorporada no ordenamento jurídico brasileiro como Decreto n°1.530, de 22 de junho de 1995. Tal Convenção entrou em vigor em 16 de novembro de 1994, após a reformulação do Acordo sobre implementação da Parte XI, responsável pelas modificações substancialmente às propostas originais. 24 Article 290. Provisional measures “1. If a dispute has been duly submitted to a court or tribunal which considers that prima facie it has jurisdiction under this Part or Part XI, section 5, the court or tribunal may prescribe any provisional measures which it considers appropriate under the circumstances to preserve the respective rights of the parties to the dispute or to prevent serious harm to the marine environment, pending the final decision. 2. Provisional measures may be modified or revoked as soon as the circumstances justifying them have changed or ceased to exist. 3. Provisional measures may be prescribed, modified or revoked under this article only at the request of a party to the dispute and after the parties have been given an opportunity to be heard. 4. The court or tribunal shall forthwith give notice to the parties to the dispute, and to such other States Parties as it considers appropriate, of the prescription, modification or revocation of provisional measures. 5. Pending the constitution of an arbitral tribunal to which a dispute is being submitted under this section, any court or tribunal agreed upon by the parties or, failing such agreement within two weeks from the date of the request for provisional measures, the International Tribunal for the Law of the Sea or, with respect to activities in the Area, the Seabed Disputes Chamber, may prescribe, modify or revoke provisional measures in accordance with this article if it considers that prima facie the tribunal which is to be constituted would have jurisdiction and that the urgency of the situation so requires. Once constituted, the tribunal to which the dispute has been submitted may modify, revoke or affirm those provisional measures, acting in conformity with paragraphs 1 to 4. 6. The parties to the dispute shall comply promptly with any provisional measures prescribed under this article”. United Nations Convention on the law of the sea. Disponível em: <http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 22 out 2012. 138 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Com o intuito de facilitar a compreensão do deslinde dessa contenda no Tribunal Internacional do Direito do Mar, inicialmente esclarecer-se-ão alguns aspectos relativos à jurisdição, à competência e ao funcionamento dessa Corte Internacional, para, em seguida, passar, respectivamente, ao exame dos argumentos argentinos, da resposta ganesa e da solução jurídica do caso. 2.1 Aspectos gerais do Tribunal Internacional do Direito do Mar: jurisdição, competência e estrutura. A criação do Tribunal Internacional do Direito do Mar foi fruto da evolução internacional do espaço dos oceanos. Extensão das Convenções sobre o Direito do Mar de 1958 e 1960 e da declaração do embaixador de Malta, Arvid Pardo, em reunião preparatória de 197025, a CONVEMAR, finalizada em 1982, foi responsável pela grande compilação da disciplina jurídica relacionada ao Direito do Mar. A referida Convenção abarcou várias facetas relacionadas aos espaços marítimos que antes estavam esparsas em diversos instrumentos internacionais multilaterais, bem como transformou costumes internacionais em direito escrito e introduziu novos conceitos e instituições jurídicas. Caracterizado por sua abrangência e especificidade, esse texto internacional buscou proteger, de modo geral, os interesses da humanidade através do estabelecimento de uma ordem jurídica para os oceanos, pautada na comunicação internacional, na utilização eficiente e equânime dos recursos naturais e na preservação do ambiente marinho, considerando os interesses e necessidades comunitárias dos seres humanos26. Ademais, nele foram normatizados importantes institutos, como o mar territorial, a zona contígua, a zona econômica exclusiva, a plataforma continental e o alto mar, além de terem sido estabelecidos os limites da jurisdição nacional dos Estados no espaço marítimo. Para solucionar as controvérsias instaladas no âmbito das normas desse tratado, foram criados quatro meios alternativos, de livre adesão e escolha pelos Estados membros. 25 Foi o embaixador de Malta, Arvid Pardo, na supracitada reunião preparatória para a III Conferência das Nações Unidas sobre Direito do Mar, quem primeiro suscitou a questão de considerarem-se os recursos dos oceanos como patrimônio comum da humanidade, ainda sem usar tal denominação. SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente. São Paulo: Atlas S.A, 2003, p. 327. 26 OXMAN, Bernard. H. Human Rights and the united nations convention on the law of the sea. In Helkin, L. Charney, J. I. Anton D. K. and O’Connell, M. E (eds). Politics, values aand functions international law in the 21th century, essays in honor of professor Louis Henkin. The Hague: Kluwer Law International: 1997, p. 2-10 e RANGEL, Vicente Marotta. A problemática contemporânea do Direito do Mar. In O Brasil e os novos desafios do direito internacional. Coord. Leonardo N. C. Brant. Rio de Janeiro: Forense: 2004, p. 328. 139 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional São eles: o Tribunal Internacional do Direito do Mar, a Corte Internacional de Justiça, o Tribunal Arbitral constituído de acordo com o Anexo VII da própria Convenção e um Tribunal Arbitral Especial constituído de acordo com o Anexo VIII do mesmo texto normativo. O Tribunal Internacional do Direito do Mar constituiu-se como órgão judicial responsável pela interpretação e aplicação da CONVEMAR. A sua jurisdição, tida como a expressão da atribuição de poder a essa Corte Internacional para que ele resolva conflitos pautados pelo Direito27, decorre da vontade dos Estados, manifestada na ratificação da aludida Convenção. O poder desse órgão jurisdicional é imperativo nos casos reacionados à liberação de embarcações e tripulação, excetuados aqueles em que os Estados elejam outro mecanismo para solucionar a disputa, bem como nas demandas que questionem à submissão a sua própria jurisdição. Deve-se frisar, também, que tal Tribunal Internacional pode, igualmente, emitir opiniões consultivas relacionadas aos temas afetos à sua alçada. A partir de sua entrada em vigor, em 1996, definiu-se que o seu escopo de competência – entendida como a determinação da sua esfera de atribuições jurisdicionais e do âmbito de exercício de sua jurisdição28 - relacionar-se-ia com a temática estabelecida na Convenção supramencionada, bem como a outros instrumentos normativos internacionais que expressamente conferirem jurisdição a este órgão internacional. Dentre eles, cita-se o Protoloco de 1996 da Convenção sobre a prevenção da poluição marinha por alijamento de resíduos e outras matérias, o acordo-quadro para a conservação dos recursos marinhos vivos no alto mar e no sudeste do pacífico, a Convenção sobre a conservação e a gestão dos cardumes de peixe altamente migratórios do pacífico central e ocidental, a Convenção para a conservação e gestão dos recursos pesqueiros do sudeste do oceano atlântico, a Convenção sobre a proteção do patrimônio cultural subaquático, a Convenção Internacional de Nairóbi sobre a remoção de destroços de naufrágios de 200729. No tocante à sua estrutura, o Tribunal Internacional do Direito do Mar é constituído por vinte e um juízes independentes, de nacionalidades equitativa e geograficamente distribuídas, divididos em câmaras de julgamento formadas por onze membros. Essa Corte Internacional possui largo poder de atuação, uma vez que é acessível tanto a Estados, quanto a 27 MENEZES, Wagner. A Jurisdicionalização do Direito Internacional: Conflitos de competência entre Tribunais Internacionais, mecanismos de prevenção e resolução. Tese de Livre-docência apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). 2012, p. 386-388. 28 MENEZES, Ibid., p.391-392. 29 INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Relevant provisions of international agreements conferring jurisdiction on the tribunal. Disponível em: <http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/basic_texts/Relevant_provisions.12.12.07.E.pdf>. Acesso em: 10 mar 2013. 140 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional órgãos governamentais, pessoas físicas, empresas privadas e outras entidades com personalidade jurídica. As disputas instituídas perante tal Corte Internacional seguem o rito estabelecido em seu Estatuto, iniciando-se com uma petição escrita ou notificação de acordo especial e findando-se com uma sentença definitiva, irrecorrível e plenamente executável no território dos Estados-membros. 2.2 Os argumentos argentinos no caso ARA Libertad A detenção do navio argentino ARA Libertad pelas autoridades ganesas levou este Estado latino-americano a requerer, em 29 de outubro de 2012, a instauração de um Tribunal Arbitral, nos termos do anexo VII da CONVEMAR, para tratar da controvérsia. Na pendência da instauração de tal instituto jurisdicional, a Argentina requereu, em 14 de novembro de 2012, com fulcro no parágrafo 5 do artigo 290 do mesmo diploma legal, que o Tribunal Internacional do Direito do Mar, devido à urgência da situação, ordenasse medidas cautelares para garantir a liberação imediata da embarcação e sua tripulação30. O requerente afirmou, em síntese, que o navio de guerra ARA Libertad, de nacionalidade e bandeira de pavilhão platinas, bem como sua tripulação, esta composta por marinheiros de nacionalidades variadas, foram ilegalmente detidos no porto de Tema, permanecendo apreendidos no local desde 02 de outubro de 2012. Para os argentinos, a embarcação estava realizando visita oficial ao Estado africano, com a devida autorização do governo local para aportar na referida data31 e promover o treinamento militar previsto. Alegou-se que a ordem proferida pelo tribunal ganês, que autorizou a detenção do navio, infringira as regras de Direito Internacional, especialmente as afetas à imunidade de jurisdição e execução dos navios de guerra, provenientes da leitura conjunta dos artigos 29 32, 30 INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Request for provisional measures submitted by Argentina in a dispute over the frigate ARA Libertad. Disponível em: <http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20-Request_for_official_website.pdf>. Acesso em: 14 jan 2013. 31 Ibid. 32 Article29. “Definition of warships. For the purposes of this Convention, "warship" means a ship belonging to the armed forces of a State bearing the external marks distinguishing such ships of its nationality, under the command of an officer duly commissioned by the government of the State and whose name appears in the appropriate service list or its equivalent, and manned by a crew which is under regular armed forces discipline”. UNITED NATIONS CONVENTION ON THE LAW OF THE SEA. Disponível em: <http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 22 out 2012. 141 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 3233 e 23634 da CONVEMAR, bem como consolidada nos costumes e na jurisprudência internacional - a partir dos casos Schooner Exchange35 (Suprema Corte dos Estados Unidos) e Jurisdictional Immunities of the State36 (Corte Internacional de Justiça). Asseverou-se, também, que houve violação ao exercício do direito de passagem inocente e do direito de liberdade de navegação, descritos nos artigos 18, p.1(b)37, 87, p.1(a)38 e 9039 dessa Convenção internacional40. Por esses motivos, as autoridades argentinas pleitearam, em seu pedido de medidas cautelares, a cessação da ofensa às regras de Direito Internacional, mediante a liberação imediata do navio e tripulação detidos, bem como o seu necessário reabastecimento para deixar o porto41. 33 Article 32. “Immunities of warships and other government ships operated for non-commercial purposes. With such exceptions as are contained in subsection A and in articles 30 and 31, nothing in this Convention affects the immunities of warships and other government ships operated for non-commercial purposes”. United Nations Convention on the law of the sea. Disponível em: <http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 15 mar 2013. 34 Article 236. ”Sovereign immunity. The provisions of this Convention regarding the protection and preservation of the marine environment do not apply to any warship, naval auxiliary, other vessels or aircraft owned or operated by a State and used, for the time being, only on government non-commercial service. However, each State shall ensure, by the adoption of appropriate measures not impairing operations or operational capabilities of such vessels or aircraft owned or operated by it, that such vessels or aircraft act in a manner consistent, so far as is reasonable and practicable, with this Convention”. UNITED NATIONS CONVENTION ON THE LAW OF THE SEA. Disponível em: <http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 22 out 2012. 35 O caso Schooner Exchange v. M’Faddon, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1812, é tido como o primeiro caso jurisprudencial a abordar a imunidade de jurisdição dos Estados. 36 O caso Jurisdictional Immunities of the State, envolveu Alemanha versus Itália, e foi julgado em 2012 pela Corte Internacional de Justiça. 37 Article 18. “Meaning of passage. 1. Passage means navigation through the territorial sea for the purpose of: (…) (b) proceeding to or from internal waters or a call at such roadstead or port facility”. UNITED NATIONS CONVENTION ON THE LAW OF THE SEA. Disponível em: <http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 22 out 2012. 38 Article87 “Freedom of the high seas 1. The high seas are open to all States, whether coastal or land-locked. Freedom of the high seas is exercised under the conditions laid down by this Convention and by other rules of international law. It comprises, inter alia, both for coastal and land-locked States: (a) freedom of navigation (…)”.UNITED NATIONS CONVENTION ON THE LAW OF THE SEA. loc. Cit. 39 Article 90. “Right of navigation. Every State, whether coastal or land-locked, has the right to sail ships flying its flag on the high seas”. United Nations Convention on the law of the sea. Disponível em: <http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 22 out 2012. 40 INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. loc.cit. 41 No pedido dirigido ao Tribunal Arbitral, além desses requerimentos, a Argentina solicitou, também, o pagamento de uma compensação pelos prejuízos materiais sofridos, um pedido formal de desculpas como satisfação ao dano moral e a imposição de sanções disciplinares aos funcionários ganeses diretamente responsáveis pelas decisões que acarretaram a detenção da embarcação ARA Libertad. Cf. INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Order of 15 of december of 2012 in the case Request for provisional measures submitted by Argentina. Disponível em: <http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20_Order_15.12.2012.corr.pdf>. Acesso em: 11 fev 2013. 142 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 2.3 A resposta ganesa no caso ARA Libertad Em sua réplica, Gana levantou inúmeros argumentos jurídicos com o intuito de afastar qualquer direito pleiteado pela Argentina. Inicialmente, os requeridos alegaram que o Tribunal Arbitral a ser instituído não teria jurisdição sobre a disputa, uma vez que a matéria a ser discutida, a qual diz respeito à imunidade de navios de guerra em águas interiores, referese ao Direito Internacional geral e não propriamente à temática abarcada pela CONVEMAR. Consequentemente, asseverou-se que, no caso em tela, o Tribunal Internacional do Direito do Mar não possuiria jurisdição para prescrever medidas cautelares. A seguir, o demandado declarou que os artigos 18, 32, 87 e 90 citados no pedido platino não se aplicariam ao certame, pois tais dispositivos referem-se apenas ao mar territorial dos Estados. Tendo em vista que o ato de detenção em discussão ocorreu nas águas internas do Estado africano, território de soberania administrativa, legislativa e judicial local plena, as regras da CONVEMAR, seriam, portanto, inaplicáveis ao caso. Para embasar tal posicionamento, compararam-se os artigos 32 e 9542, ambos da supraindicada Convenção, com o intuito de evidenciar que, ao contrário do que ocorre neste dispositivo, que expressamente prevê a imunidade de jurisdição em alto-mar, aquele silencia sobre sua aplicabilidade nas águas internas dos Estados, motivo que justificaria a rejeição da demanda argentina43. Outra objeção trazida à baila por Gana relaciona-se com a renúncia à imunidade de jurisdição por parte da Argentina, reconhecida nas já citadas decisões das Cortes de Gana, Estados Unidos e Reino Unido. Nesse diapasão, afirmou-se que a CONVEMAR é totalmente omissa sobre a possibilidade de um Estado abdicar de sua imunidade de jurisdição. Ademais, o fato de a matéria ser pertinente ao Direito Internacional Privado, resolvida pela simplesmente pela identificação das regras aplicáveis ao caso, corroboraria para o afastamento tanto da utilização da normativa do texto internacional sobre os mares e quanto da sujeição ao Tribunal Internacional do Direito do Mar. Consequentemente, para Gana, as medidas cautelares requisitadas pela Argentina não seriam apropriadas para preservar os direitos das partes, pois inexistiria urgência que justificasse a sua aplicação na pendência da constituição de Tribunal Arbitral. Igualmente, a 42 Article 95. “Immunity of warships on the high seas. Warships on the high seas have complete immunity from the jurisdiction of any State other than the flag State”. UNITED NATIONS CONVENTION ON THE LAW OF THE SEA. Disponível em: <http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 22 out 2012. 43 INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. loc.cit. 143 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional liberação da embarcação argentina poderia ser efetuada sem a prescrição de tais medidas, bastando o pagamento de U$ 20 milhões como caução à Corte Superior de Gana, o que evidenciaria a desnecessidade do pedido do Estado platino. Logo, com fundamento nesses argumentos, o Estado requerido pediu a rejeição da requisição argentina. 2.4 A solução jurídica dada ao caso ARA Libertad Há de se destacar que a decisão do Tribunal Internacional do Direito do Mar no caso ARA Libertad tocou em diversos aspectos de Direito Internacional. De início, a Corte abarcou a problemática da jurisdição do Tribunal Arbitral a ser instituído nos termos do anexo VII, bem como da satisfação, pela Argentina, dos requisitos para a prescrição da requisitada medida cautelar. Após esta fase preliminar, o Tribunal tratou da questão da imunidade de jurisdição dos navios de guerra, e, por fim, chegou à imposição da ordem. Primeiramente, o Tribunal esclareceu que, como tanto Argentina quanto Gana são membros da CONVEMAR, tendo, porém, eleito procedimentos diferentes para a resolução de disputas afetas a temática desse instrumento normativo, o Tribunal Arbitral, previsto no anexo VII, é o procedimento adequado a ser instituído. Explanou, igualmente, que, na pendência da constituição dessa corte arbitral, o Tribunal Internacional do Direito do Mar poderia, desde que considere que o órgão jurisdicional a ser instaurado possua potencial jurisdição sobre o caso, prescrever medidas cautelares urgentes, mesmo que ainda existam discussões sobre os direitos das partes44. Ainda, a Corte Internacional afastou a apreciação dos artigos 18, 87 e 90 da aludida Convenção internacional, sob a alegação de que tais dispositivos não se relacionavam a imunidade de jurisdição dos navios de guerra em águas internas dos Estados, sendo, desse modo, irrelevantes para a definição da jurisdição prima facie do Tribunal a ser instituído. A seguir, o Tribunal elucidou o sentido do artigo 32 do texto internacional em comento, explicitando que a divergência das partes sobre a essência desse dispositivo corrobora para que o entendimento de que a Corte em questão possui jurisdição para o exame do caso. Para o Tribunal Internacional do Direito do Mar, a ausência especificação do escopo geográfico para a utilização do referido artigo, evidencia a sua aplicabilidade também nas 44 INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Order of 15 of december of 2012 in the case Request for provisional measures submitted by Argentina. Disponível em: <http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20_Order_15.12.2012.corr.pdf>. Acesso em: 11 fev 2013. 144 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional águas internas dos Estados. Assim o é, porque o fato de o artigo integrar a Parte II da Convenção, intitulada Mar Territorial e Zona Contígua, não leva a interpretação taxativa de que todas as disposições ali constantes aplicam-se apenas a estas áreas, já que algumas delas podem se referir a todas as áreas marítimas45. Ao reconhecer que a problemática da imunidade de jurisdição dos navios de guerra nas águas internas dos Estados é abarcada pela CONVEMAR, a Corte Internacional confirmou a jurisdição prima facie do Tribunal Arbitral previsto no anexo VII. A Corte tratou, ainda, do artigo 283, p. 1º46, da supraindicada Convenção, explicitando que a Argentina cumpriu com o seu dever de intentar a solução pacífica de controvérsias, satisfazendo, também, esse requisito para a prescrição de medida cautelar47. Superando essas questões introdutórias, o Tribunal analisou a adequação, necessidade e urgência da medida requisitada pelo demandante, condições previstas no artigo 290, p. 1, da CONVEMAR. Devido às alegações argentinas de que houve ato de manifesta violação aos direitos de soberania e à imunidade de jurisdição do Estado platino nas tentativas de mover o navio e de embarcar mediante o uso da força - as quais aumentam o risco de conflito, colocando, inclusive, vidas em risco - bem como que as condições na embarcação se deterioram diariamente, a Corte considerou preenchidos os requisitos à concessão de medida cautelar. Sobre a imunidade de jurisdição dos navios de guerra, o Tribunal, levando em consideração o artigo 29 da aludida Convenção, declarou que tais embarcações são expressão da soberania do Estado da bandeira de seu pavilhão e, por este motivo, possuem imunidade de jurisdição, mesmo dentro das águas internas dos Estados. A Corte enfatizou que Gana, não nega este argumento, pois o que alega o Estado africano não é a existência de uma exceção à regra da imunidade de jurisdição em águas internas, mas sim que a Argentina teria renunciado a esse direito - além, logicamente, do já discutido silencio à imunidade de jurisdição nesse território interno do Estado na temática do texto internacional ora em glosa, o que afastaria a aptidão da Corte para analisar o caso48. Ao final, o Tribunal considerou que qualquer ato que, mediante força, impeça que embarcações protegidas pela imunidade de jurisdição cumpram sua missão, pode prejudicar o 45 INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. loc.cit. Article 283.”Obligation to exchange views. 1. When a dispute arises between States Parties concerning the interpretation or application of this Convention, the parties to the dispute shall proceed expeditiously to an exchange of views regarding its settlement by negotiation or other peaceful means (…)”.UNITED NATIONS CONVENTION ON THE LAW OF THE SEA. Disponível em: <http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 22 out 2012. 47 INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. loc.cit. 48 INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. loc.cit. 46 145 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional relacionamento amistoso entre Estados. Destarte, visando, primordialmente, evitar animosidades, o Tribunal Internacional do Direito do Mar, em 15 de dezembro de 2012, prescreveu as seguintes medidas cautelares: a) Gana deve incondicionalmente liberar a embarcação ARA Libertad, sua tripulação e capitão, para que, após terem reabastecido, deixem o porto de Tema; b) cada parte deve arcar com seus custos despendidos no procedimento perante à Corte. Ainda, vale ressaltar que a medida cautelar foi integralmente cumprida, tendo a embarcação e sua tripulação retornado à Argentina em 13 de janeiro de 201349. Além disso, no que concerne ao mérito, o Tribunal Arbitral encontra-se, atualmente, em fase de constituição. 3. O CASO ARA LIBERTAD COMO LABORATÓRIO PARA A SUPERAÇÃO DA FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL Até o presente momento, esta pesquisa realizou uma análise dos antecedentes históricos, políticos e econômicos do caso ARA Libertad, abarcando as decisões de cortes domésticas americanas, britânicas e ganesas sobre o litígio, bem como examinou os argumentos das partes e a solução jurídica dada ao caso no Tribunal Internacional do Direito do Mar. Transladada essa fase, questionamentos ascendem: o fato de um caso que versa sobre questões afetas a investimentos privados, renegociação de títulos de dívida pública estatal e imunidade de jurisdição de possessões bélicas de um Estado a ser aventado no Tribunal Internacional do Direito do Mar evidencia uma usurpação da jurisdição e competência de outras cortes, num processo de fragmentação do Direito Internacional? Ou, em contraposição, tal situação contribui para o fortalecimento de um pensamento funcionalizado sistêmico do ordenamento jurídico internacional? Cabe frisar que o objetivo desse trabalho não é, de forma alguma, solucionar esse grande embate que permeia o Direito Internacional contemporâneo, mas, somente, traçar alguns indicativos de um percurso a ser trilhado. Com esse desígnio, far-se-á uma breve menção aos principais apontamentos das teorias fragmentária e unitária, posicionando-se 49 FINANTIAL TIMES. Argentine naval frigate returns home. Disponível em: <http://www.ft.com/intl/cms/s/0/a6dfae3a-5abb-11e2-b60e-00144feab49a.html#axzz2NkWWtyOk>. Acesso em: 15 mar 2013. 146 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional nessa contenda, e, subsequentemente, tratar-se-á do caso ARA Libertad como um laboratório para a aplicação jurisdicional do pensamento sistêmico. 3.1 O embate entre a fragmentação e o pensamento sistêmico no Direito Internacional Orientado pela revolução globalizante50 vivenciada nas últimas décadas, o processo de expansão do Direito Internacional promoveu intensas mutações em sua concepção jurídiconormativa, como por exemplo, reformulações em seu fundamento, em suas fontes, em seus sujeitos e em suas instituições. Essa interconexão jurídica das esferas locais, regionais e globais suscitou uma multiplicação e diversificação dos ramos regulados pelo ordenamento internacional, acarretando no aumento da sua densidade normativa, bem como na proliferação de instituições e cortes aptas a garantirem a aplicação prática dessas regras. No diapasão da jurisdicionalização do Direito Internacional brotou a preocupação com a manutenção da coerência desse sistema normativo. Isto porque, com a gradativa especialização das regras internacionais, somada à ausência de organismos com corpo legislativo central para dirimir possíveis conflitos de competência, poder-se-ia estar minando a conformidade e a homogeneidade desse todo unitário, levando a sua completa erosão 51. A partir do ano 2000, a Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, em atenção a essa problemática, decidiu pesquisar os riscos que a possível fragmentação traria ao Direito Internacional. Todavia, durante a evolução das pesquisas, este grupo de estudos acabou por adotar, no relatório de 2006 - intitulado “Fragmentação do Direito Internacional: dificuldades advindas da diversificação e expansão do Direito Internacional” - a compreensão de que tal fenômeno teria extrapolado o status de temeridade, tornando-se uma realidade no sistema internacional hodierno5253. 50 MENEZES, Wagner. Ordem Global e Transnormatividade. Injuí: Unijuí, 2005, p. 27. RAO, Pemmaraju Sreenivasa. Multiple International Judicial Forums: a reflection of the growing strength of international law or its fragmentation? In Michigan Journal of International Law. Vol: 25/929, 2003-2004, p. 929-961. Disponível em: <https://www.copyright.com/ccc/basicSearch.do?&operation=go&searchType=0&lastSearch=simple&all=on&ti tleOrStdNo=1052-2867>. Acesso em: 12 jan 2013. 52 MENEZES, loc.cit., p. 352-354. 53 Os principais aspectos aventados no referido relatório, respectivamente, são: a função e o âmbito de aplicação da regra lex specialis; a questão do self-contained regimes; a interpretação dos tratados a luz do direito internacional, incluindo a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, as modificações dos tratados multilaterais entre certas partes e a hierarquia existente entre tratados; e o artigo 103 da carta da ONU como norte na resolução de conflitos normativos. Cf. KOSKENNIEMI, Martti. Fragmentation of international law: difficulties arising from the diversification and expansion of International Law. In Report of the study 51 147 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Consolidou-se, portanto, nesse momento, a corrente fragmentária do Direito Internacional. A principal característica desse pensamento é o reconhecimento da existência de regimes auto contidos (self-contained regimes) como consequência benéfica da diferenciação funcional (functional differentiation54) ocasionada pela globalização. Dito de outro modo, a realidade multifacetada do sistema internacional requereria, para desenvolverse, a divisão do sistema em “caixas autônomas”, as quais, por pautarem-se por princípios e regras específicas, restritivamente aplicáveis somente a uma determinada área do Direito Internacional, sobrepujariam a desconexão entre esses diversos campos especiais e o Direito Internacional geral55. Ademais, a construção jurídica internacional, por não ser homogênea e tampouco possuir coerência sistêmica, necessitaria desses regimes jurídicos separados e desunidos para combater o rompimento da unidade, a insegurança normativa e a anarquia normativa, decorrências da proliferação dos tribunais internacionais56. A despeito das questões trazidas à tona por esta vertente teórica, ela recebeu austera censura da doutrina jusinternacionalista. Dentre suas principais críticas, destaca-se o equívoco epistemológico existente em sua base, uma vez que, ao partir-se de uma análise ontológica da realidade jurídica, desvirtua-se o dualismo metodológico de Radbruch57, subjulgando o Direito à dinâmica política e social. Para exemplificar tem-se a própria nomenclatura dessa proposta ideológica que se utiliza essencialmente do conceito de “regime”, termo este oriundo das elucubrações de autores da Teoria das Relações Internacionais, tais como Krasner, Nye e Keohane58. Acaba-se, desse modo, por retomar os ideais dos negadores do Direito Internacional que recusavam a essa matéria um papel transformador da realidade, sendo, portanto, incoerente enquanto proposição eminentemente jurídica. Outro problema diz respeito à excessiva comparação entre os sistemas internacional e interno, como referencial para aceitação da fragmentação, pois é inegável a grande distinção entre ambos os campos jurídicos. Considerar que o Direito Internacional é fechado e hierarquizado com o âmbito interno equivaler-se-ia a desprezar toda a construção do sistema group of the International Law Comission. A/CN.4/L.682. Disponível em: http://untreaty.un.org/ilc/documentation/english/a_cn4_l682.pdf . Acesso em: 01 out 2011. 54 A diferenciação funcional diz respeito ao aumento da especialização das partes da sociedade e a sua consequente autonomização. KOSKENNIEMI, loc. cit, p. 18. 55 VUKAS, Budislav. The law of the sea. Selected writings. Boston: Martinus Nijhoff, 2004, p. 3-20. 56 MENEZES, loc.cit., p. 373. 57 RADBRUCH, Gustav. O conceito de Direito. Trad. Antonio de Oliveira. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 45. 58 KRASNER, Stephen D. Causas estruturais e consequências dos regimes internacionais: regimes como variáveis intervenientes. In International Organization (Cambridge (MA), v. 26, n. 2, p. 185-205, Spring, 1982. Tradução de Dalton Guimarães, Feliciano Guimarães e Gustavo Biscaia de Lacerda. Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 20, n. 42, p. 93-110, jun. 2012. 148 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional normativo internacional, o qual, diferentemente do direito doméstico, se baseia na cooperação e na vontade coletiva dos Estados59. Em suma, o sustentáculo da fragmentação é a incoerência do sistema jurídico internacional, causada pela existência de antinomias e conflitos incuráveis, o que supostamente destruiria não somente a sua unidade e completude, como a própria a noção de Direito. Logo, para evitar o fenecimento do Direito Internacional, tem-se que conjeturá-lo de maneira coerente e completa, nos moldes pleiteados por Bobbio60 e Losano61, qual seja o de um sistema, onde normas apenas existem quando fazem parte de um agregado de preceitos e instituições com uma origem comum, formando uma totalidade ordenada. Destarte, como proposta de superação da fragmentação, ganha espaço o pensamento sistêmico do Direito Internacional, que, de forma lógica, vislumbra positivamente a ampliação e a especialização dessa disciplina. Os seguidores da doutrina da unidade sistêmica asseveram que as cortes internacionais são importantes mecanismos de amparo e implementação de direitos, pois, além de ampliar o acesso aos órgãos internacionais, aumentam a adjudicação jurídica e estabelecem diretrizes para a sua aplicação pelos Estados, expandindo o respeito e a aceitação do Direito Internacional. O maior número de temas julgados por cortes internacionais contribui, ainda, para que, na escolha dos meios de solução de litígios internacionais, os mecanismos jurídicos preponderem sobre os políticos, bem como colabora para o desenvolvimento de mais regras e princípios internacionais, enraizando o sentimento de pertencimento a uma comunidade jurídica. Ressalta-se que isso fortalece, ainda mais, o conjunto uniforme do Direito Internacional62. Assim, a existência de situações que não podem ser resolvidas, a não ser pela consideração da interação de diversas áreas, concomitantemente torpedeia o dogma da fragmentação e corrobora para a afirmação da necessidade de desenvolvimento de uma estrutura unitária do Direito Internacional. Quando se entrevê o Direito como um todo, tornase manifesto que a multiplicação de microssistemas jurídicos não representa uma fragmentação, mas sim uma pluralização endógena63. Isto porque todas estas áreas especializadas estão interligadas, utilizando-se das mesmas fontes normativas e axiológicas, 59 MENEZES, loc.cit., p. 373. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. Trad. Denise Agostinetti. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 173. 61 LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no Direito: das origens à escola histórica, v. 1, trad. Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. I-XXV. 62 SANG WOOK, Daniel H. Decentralized proliferation of international judicial bodies. Disponível em: <http://www.law.fsu.edu/journals/transnational/vol16_1/Han.pdf>. Acesso em 04 mai 2012. 63 MENEZES, loc.cit., p. 365-372. 60 149 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional para obter, como fim último, o ideal de justiça e equidade nas relações internacionais64. Não há, dessa forma, uma real concorrência entre tribunais internacionais ou sequer uma competição para abarcar mais competências, pois, pressupõe-se a boa-fé dos Estados, os quais se submetem às cortes internacionais para resolver de modo efetivo suas controvérsias internacionais65. Nesse mote, cumpre apontar que a teoria sistêmica não ignora que a proliferação das Cortes Internacionais pode acarretar alguns empecilhos, tais como o fórum shopping e a possibilidade de decisões conflitantes. Todavia, compreende-se que os aspectos positivos da atuação de múltiplos tribunais sobrepõem-se a tais obstáculos, os quais, inclusive, podem ser suplantados com a utilização de ferramentas de harmonização inerentes ao próprio sistema jurídico66. Assim, alude-se que todos os sistemas que atingem um determinado nível de sofisticação enfrentam a questão do conflito de jurisdição e, consequentemente, o perigo de jurisprudência contraditória. Nesse sentido, os problemas do Direito Internacional são mais um sinal do aumento de sua maturidade do que de uma crise endêmica67. A sobrevivência do Direito Internacional como sistema jurídico requer, portanto, o desenvolvimento de mecanismos que evitem a ocorrência de uma usurpação desconjuntada de jurisdição e competência entre as diversas cortes que convivem no cenário internacional. Igualmente, deve-se impedir que, em desconsideração à racionalidade integradora que conforma o conjunto internacional, temas sejam abordados de forma distinta e estilhaçada em cada tribunal. Logo, tem-se obrigatoriamente que objetivar a coexistência coesa e coordenada dos órgãos jurisdicionais como membros de uma só totalidade normativa. Com o intuito de ratificar a inerente interconexão entre as diversas áreas do sistema unitário jurídico internacional, bem como confirmar a necessidade de harmonização para a sua manutenção, utilizar-se-á como exemplo o caso ARA Libertad, evidenciando-se, consequentemente, imperiosidade na adoção do posicionamento sistêmico como único hábil a estruturar o Direito Internacional. 64 RAO, loc. cit., p. 961. MENEZES, loc.cit., p. 380. 66 VUKAS, loc.cit. 67 Tradução livre do inglês: “All systems that reach a certain level of sophistication are faced with the question of competing jurisdictions and its consequence, the danger of contradictory case-law. In that sense, the problems encountered by the international legal order are more a sign of its increasing maturity rather than endemic crisis”. DUPUY, Pierre-Marie. The Unity of Application of International Law at the Global Level and the Responsibility of Judges. Disponível em: <http://www.ejls.eu/2/21UK.htm>. Acesso em: 15 mar 2013. 65 150 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 3.2 Do caso ARA Libertad: a aplicação jurisdicional do pensamento sistêmico através da dialética harmonizadora entre as fontes do Direito Internacional A despeito do modelo unitário do Direito Internacional possuir a capacidade de concretização da integração normativa e da cooperação orgânica do ordenamento universal, atualmente tal sistema ainda não possui todas as engrenagens necessárias a uma total cooperação das jurisdições internacionais. Essa coordenação jurisdicional internacional depende, deste modo, que as autoridades judiciais, na avaliação de sua competência - com flexibilidade e autoridade - sopesem uma análise conjunta, pois as leis especificamente afetas aos casos que lhe serão submetidos fazem parte tanto de microssistemas particulares, como também de um panorama geral do Direito Internacional68. Tal lição aplica-se ao Tribunal Internacional do Direito do Mar, uma vez que não se deve perder de vista o fato de que o Direito do Mar sempre foi, e sempre será, uma parte integral do Direito Internacional como um todo. O Direito do Mar deve ser interpretado à luz do desenvolvimento uniforme da jurisprudência da comunidade internacional e não deve ser pensado de forma fragmentária. Se o desenvolvimento do Direito do Mar fosse separado das regras gerais de direito internacional e colocado sob a jurisdicao de uma autoridade judicial separada, isso 69 poderia levar a uma destruição da própria fundação do Direito Internacional . Pautando-se por essa cultura de acreditar que se faz parte de uma mesma ordem jurídica internacional, nos casos de potencial divergência sobre a jurisdição e a competência das Cortes Internacionais, esses órgãos visam afastar os conflitos mediante a alusão aos princípios gerais do Direito Internacional, ao costume, à legislação e à doutrina especializada, bem como ao diálogo com a jurisprudência de outros tribunais domésticos e internacionais. Assim, tais elementos, que se demonstram inspiradores para a sistematização e formação de entendimentos internacionais, contribuem como complementadores das lacunas jurídicas, instrumentalizando o sistema internacional organizado70. A utilização dessas técnicas de harmonização foi vislumbrada no julgamento do litígio ARA Libertad pelo Tribunal Internacional do Direito do Mar, tanto no corpo da Ordem de 15 68 DUPUY, loc. cit. Tradução livre do inglês: “One should not lose sight of the fact that the law of the sea always has been, and always will be, an integral part of international law as a whole. The law of the sea must be interpreted in the light of the uniform development of jurisprudence within the international community and must not be dealt with in a fragmentary manner (…) If the development of the law of the sea were to be separated from the general rules of international law and placed under the jurisdiction of a separate judicial authority, this could lead to the destruction of the very foundation of international law”. Shigeru Oda. Dispute Settlement Prospects in the Law of the Sea. International and Comparative Law. Quarterly, v.44, issue 4, 1995, p. 863-872. 70 MENEZES, loc.cit., p. 427-430. 69 151 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional de dezembro de 2012 de liberação imediata da embarcação argentina, quanto nas opiniões em separado dos juízes Rao Chandrasekhara, Lucky, Wolfrum, Cot e Paik, que participaram da deliberação do referido caso71. Sobre a referência aos princípios gerais de direito, à doutrina, ao costume e à legislação internacionais frise-se que os juízes dessa Corte se utilizaram de ponderações do Instituto de Direito Internacional (Institut de Droit Iinternational) e da Comissão de Direito Internacional (International Law Comission) no que concerne à imunidade dos navios de guerra, além de citarem, na discussão desse mesmo tópico, o costume internacional e a legislação internacional geral. Foram citados, ainda, no supra-aludido certame, autores específicos de Direito Internacional como John Colombos, Bernard H. Oxman, e Bowett, bem como a tradicional doutrina estoppel. Vários instrumentos normativos internacionais foram igualmente lembrados, tais como o artigo 2, p. 3, da Carta das Nações Unidas sobre a resolução pacífica de controvérsias, os artigos 4 e 6 do rascunho sobre a responsabilidade dos Estados da International Law Comission e a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969. No que concerne à utilização da jurisprudência doméstica dos Estados, a decisão proferida no caso entre Argentina e Gana corrobora para a superação da clássica dicotomia entre monismo e dualismo, mediante o simplificado e harmônico relacionamento do Direito Internacional e dos aplicadores do Direito dentro dos Estados72. Apreende-se, assim, a compatibilização entre ambas as ordens, com a integração de normas nacionais e internacionais e a consequente substituição do enfoque de primazia de uma delas para a sua influencia mútua e recíproca. 71 INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Separate Opinion of Judge Lucky in the Order of 15 of December of 2012 in the provisional measures submitted by Argentina. Disponível em: <http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20_Ord_15.12.2012_SepOp_Lucky_E_orig -no_gutter.pdf>. Acesso em 03 jan 2013; INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Separate Opinion of Judge Paik the Order of 15 of December of 2012 in the provisional measures submitted by Argentina. Disponível em: <http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20_Ord_15.12.2012_SepOp_Paik_E_origno_gutter.pdf>.Acesso em 03 jan 2013; INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Separate Opinion of Judge Rao in the Order of 15 of December of 2012 in the provisional measures submitted by Argentina. Disponível em: <http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20_Ord_15_12_2012_SepOp_Ch_Rao_E_. pdf>.Acesso em 03 jan 2013; INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Separate Opinion of Judge Wolfrum and Judge Cot in the Order of 15 of December of 2012 in the provisional measures submitted by Argentina. Disponível em: <http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20_Ord_15.12.2012_SepOp_WolfrumCot_E_corr.pdf>.Acesso em 03 jan 2013. 72 DUPUY, Loc. cit. 152 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Tendo em vista que o sistema jurídico internacional necessita do auxílio dos órgãos internos estatais para garantir sua ampla efetividade, é de se aplaudir a atitude do Tribunal Internacional do Direito do Mar de mencionar a Superior Court of Judicature in the High Court of Justice (Commercial Division) of Accra, a Suprema Corte Norte-Americana (no caso The Schooner Exchange v. McFaddon, U.S, 1812) e a Corte de Apelação de Paris (na liberação do navio russo Sedov, em 2000). O diálogo entre os Tribunais Internacionais também está presente na decisão do caso ARA Libertad. Dentre os precedentes da Corte Permanente de Justiça e da Corte Internacional de Justiça aludidos em diversos momentos, merecem menção os casos: Mavrommatis Palestine Concessions (CPJI, 1824), Certain German Interests in Polish Upper Silesia (CPJI, 1926), South West Africa, Preliminary Objections (CIJ, 1962), Temple of Preah Vihear (CIJ, 1962), North Sea Continental Shelf (CIJ, 1969), Delimitation of the Maritime Boundary in the Gulf of Maine Area (CIJ, 1984), Military and Paramilitary Activities in and against Nicaragua (CIJ, 1984), Land, Island and Maritime Frontier Dispute (CIJ, 1990), Request for an Examination of the Situation in Accordance with Paragraph 63 of the Court’s Judgment of 20 December 1974 in the Nuclear Tests (CIJ, 1995), Fisheries Jurisdiction case (CIJ, 1998), Difference Relating to Immunity from Legal Process of a Special Rapporteur of the Commission on Human Rights (CIJ, 1999), Arrest Warrant of 11 April 2000 (CIJ, 2002), Territorial and Maritime Dispute between Nicaragua and Honduras in the Caribbean Sea (CIJ, 2007), Application of the Convention on the Prevention and Punishment of Crime of Genocide (CIJ, 2007) e Sovereignty over Pedra Branca/Pulau Batu Puteh, Middle Rocks and South Ledge (CIJ, 2008). A utilização de precedentes de outros órgãos jurisdicionais pelo Tribunal Internacional de Direito do Mar fortalece a constatação de que esta Corte está atenta para a necessária relação de dialeticidade entre os fóruns de discussão. Nessa senda, na opinião em separado do Juiz Lucky, perfilha-se, expressamente, com a imperiosidade em considerar os temas afetos a deliberação pelo Tribunal como parte de um sistema: Eu penso que o direito internacional e os relevantes artigos da Convenção deveriam ser considerados como um todo e que as circunstancias do artigo 32 podem incluir as águas internas; não somente porque este artigo explicitamente não exclui a imunidade dos navios de guerra nas águas internas, mas também porque ele deve ser lido em congruência com outras regras de Direito Internacional que garantem tal imunidade. Assim, onde o direito silencia, um Tribunal deve realizar uma 153 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional abordagem pragmática, interpretando e construindo o direito levando em 73 consideração as circunstancias do caso . No caso em comento, o Tribunal Internacional do Direito do Mar abarcou aspectos do Direito Internacional do Investimento, da imunidade de jurisdição de navios de guerra, do direito processual internacional e do Direito Internacional dos Direitos Humanos, respondendo, por meio da coordenação e da harmonização sistêmica, a algumas das preocupações de decorrentes da criação de novos Tribunais Internacionais e da multiplicação dos regimes especiais, tais como o Direito do Mar74. A análise teleológica realizada pelos juízes do Tribunal Internacional do Direito do Mar ratifica o entendimento de que, em um contexto globalizado no qual as controvérsias jurídicas envolvem temas das mais diversas áreas, esta Corte, mediante a busca de elementos norteadores nos princípios, na doutrina, nos costumes, na legislação e na jurisprudência internacional, é capaz de aplicar o Direito Internacional sem colocar em risco a sua unidade enquanto sistema. CONCLUSÃO Trasladada a explicação do contexto e do caso ARA Libertad, aclararam-se alguns aspectos relativos ao embate entre a fragmentação e a sistematicidade no Direito Internacional e foram estabelecidas algumas relações entre o entendimento unitário e a sua aplicação na decisão ora estudada. O objetivo primordial dessa pesquisa foi evidenciar, por meio da recente decisão do Tribunal Internacional do Direito do Mar, que, no panorama contemporâneo onde as controvérsias internacionais envolvem temas de diversas áreas do Direito Internacional, a atuação coordenada e harmonizada das Cortes Internacionais contribui para a manutenção 73 Tradução livre do inglês: “I think that international law and the relevant articles in the Convention should be considered as a whole and in these circumstances article 32 can be deemed to include internal waters; not only because it does not explicitly exclude the immunity of warships in internal waters, but because it should be read in congruence with other rules of international law which guarantee such immunity. Therefore, where the law is silent a tribunal ought to take a pragmatic approach and, bearing in mind the circumstances of the case, interpret and construe the law accordingly. I would hold that the ARA Libertad has the right of immunity in the internal waters of Ghana, and that a wide interpretation of the article is suitable”. INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Separate Opinion of Judge Lucky in the Order of 15 of December of 2012 in the provisional measures submitted by Argentina. Disponível em: <http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20_Ord_15.12.2012_SepOp_Lucky_E_orig -no_gutter.pdf>. Acesso em 03 jan 2013. 74 WOLFRUM, Rudiger. International Tribunal for the Law of the Sea. Informal Meeting of Legal Advisers of Ministries of Foreign Affairs. New York, 29 out 2007. Disponível em: <http://www.itlos.ogr/fileadmin/itlos/...of.../wolfrum/dakar_311006_3ng.pdf>. Acesso em 13 mar 2013. 154 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional dessa totalidade sistêmica. Cumpre grifar que o caso ARA Libertad trouxe à baila outras questões – não abarcadas no escopo temático dessa pesquisa – que necessitam ser examinadas, tais como a possível concorrência de atribuições entre o Tribunal Internacional do Direito do Mar e a Corte Internacional de Justiça, o regramento da prescrição de medidas cautelares e a possibilidade de renúncia à imunidade de jurisdição. Nesse ínterim, em que pese o progresso acarretado pela multiplicação dos Tribunais internacionais, os quais colaboraram para ampliar a efetividade do Direito Internacional, não se pode olvidar que essa disciplina é um continuum inacabado, dinâmico e em constante evolução. Visando aprimorar a realização prática do Direito Internacional, deve-se chamar atenção para a necessidade de se estabelecer um debate sobre a clara delimitação das competências das Cortes Internacionais, bem como de se discutir uma teoria para a prevenção de eventuais conflitos, com o intuito de facilitar a aplicação do Direito Internacional. Em epítome, essas pretensões nada mais são do que reflexo da preocupação com a busca pelo ideal máximo da justiça na sociedade internacional. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BELFAST TELEGRAPH ON LINE. Argentina evacuates crew from ship. Disponível em: <http://www.belfasttelegraph.co.uk/news/world-news/argentina-evacuates-crew-from-ship28876176.html >. BLOG OF THE EUROPEAN JOURNAL OF INTERNATIONAL LAW. ITLOS order ghana to release argentine navy ship. Disponível em: <http://www.ejiltalk.org/itlos-orderghana-to-release-argentine-navy-ship/> BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. Trad. Denise Agostinetti. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 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Disponível em: <http://www.itlos.ogr/fileadmin/itlos/...of.../wolfrum/dakar_311006_3ng.pdf>. 158 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional REGIMES INTERNACIONAIS E SOFT LAW: UMA ANÁLISE A PARTIR DA ORGANIZAÇÃO DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA Carla Cristina Alves Torquato1 Erivaldo Cavalcanti e Silva Filho2 RESUMO O conceito de regime internacional e a forma pela qual ele é observado pelas escolas de pensamento das relações internacionais e de que maneira ele afeta a Organização do Tratado de Cooperação AmazônicaOTCA e quais os motivos que levam a mudanças dentro do mesmo constituem-se o objetivo deste artigo. Utilizou-se como ponto de partida a cooperação entre os Estados como sendo a principal meta a ser obtida dentro de um regime internacional e as negociações que os envolvem para alcançar tal objetivo. Usamos como exemplo o Tratado de Cooperação Amazônica, pacto este que une os países da bacia Amazônica: Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, que através deste dispositivo normativo firmaram o compromisso de promover o desenvolvimento harmônico da região por meio da cooperação e reciprocidade de esforços em prol do crescimento econômico região atrelado a proteção do meio ambiente. Através da leitura de autores que lidam com matérias relativas às relações internacionais, jurificação, soft law, temas Amazônicos e a legislação afeita ao Tratado, analisamos a possibilidade do Estado constitucional cooperativo ser a garantia da união destes Estados, contudo ao priorizarem suas políticas internas as formas de integração mais consistente ficam relegadas ao segundo plano. Palavras-chave: Organização do Tratado de Cooperação Amazônica. Soft Law. Regimes Internacionais. INTERNATIONAL LAW AND SOFT LAW: AN ANALYSIS OF AMAZON COOPERATION TREATY ORGANIZATION. ABSTRACT The concept of international regime and the way he is observed by schools of thought in international relations and how it affects the Amazon Cooperation Treaty Organization -ACTO and the reasons that lead to changes within the same constitute the objective this article. It was used as a starting point to cooperation between states as the main goal to be achieved within an international regime and negotiations involving them to achieve that goal. We use the example of the Amazon Cooperation Treaty, this pact that unites the countries of the Amazon basin: Brazil, Bolivia, Colombia, Ecuador, Peru and Venezuela, through this device that signed the normative commitment to promote the harmonious development of the region through cooperation and reciprocal efforts towards economic growth region linked to environmental protection. By reading authors who deal with matters relating to international 1 Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Professora do Centro Universitário do Norte (Uninorte/Laureate). 2 Professor Doutor dos Programas de Mestrado em Segurança Pública e de Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Professor do Centro Universitário do Norte (Uninorte/Laureate). 159 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional relations, jurification, soft law, issues and legislation Amazon accustomed to the Treaty, we analyze the possibility of the state constitutional guarantee to be cooperative union of these States, however when prioritizing its internal forms more consistent integration are relegated to second place. Key-Words: Amazon Cooperation Treaty Organization. Soft Law.International Regimes. INTRODUÇÃO A cooperação e a coexistência entre os Estados são uma necessidade em vista da interdependência dos seus atores sociais indispensável para a sua sobrevivência e desenvolvimento. Mediante tal necessidade os mesmos promovem constantes mudanças em suas estruturas para que possam melhor se adequar as exigências políticas nacionais e internacionais. Através da criação de inúmeras organizações intergovernamentais, o mundo tornou-se cada vez mais institucional. Um exemplo é a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica – OTCA, cujo objetivo é unir os países que compartilham a bacia Amazônica, para que em conjunto possam associar-se em projetos e ações nos seus respectivos territórios. Tal cooperação pode ser ou não concretizada ou até mesmo desejada, de acordo com a posição que cada Estado participante do tratado ocupa no cenário internacional e é claro, dentro do seu próprio espaço, o mesmo entendido no contexto político, social e econômico. Assim, o objetivo deste artigo foi buscar nos conceitos de regimes internacionais e da soft law possíveis explicações para a cooperação, palavra cuja etimologia inspira benefícios, como por exemplo instituições trabalhando em prol de uma ação, que pode ser boa para alguns e nem tanto para a maioria. Utilizamos para tanto levantamento bibliográfico e documental, além da legislação acerca do tema para subsidiar a pesquisa e indagamos o seguinte problema: até que ponto o Tratado de Cooperação Amazônica pode se ser considerado uma espécie de regime internacional? 1 Regime Internacional Krasner define regime internacional como um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisões em torno dos quais convergem as expectativas dos atores em uma área específica das relações internacionais (2013). 160 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Para Hasenclever, Mayer e Rittberger os regimes são instituições de caráter não hierárquico em torno das quais as expectativas dos atores convergem. Eles são deliberadamente construídos pelos atores com o propósito de mitigar o caráter de autoajuda das relações internacionais ao demonstrar aos Estados a possibilidade de obter ganhos conjuntos por meio da cooperação (2013, p. 12). Esta análise parte da concepção adotada pelas escolas de pensamento das relações internacionais dentro do sistema internacional, como uma estrutura anárquica, isto é, sem a existência de um órgão supranacional que regule as relações entre os Estados, dentre eles o realismo. Os regimes são aqui conceituados como variáveis intervenientes, que intermedeiam a relação entre fatores causais como poder, valores, interesse e os resultados e/ou comportamentos alcançados por eles (KRASNER, 2013). As variáveis causais, os fatores que possibilitam a formação dos regimes são: a. O interesse (desejo de maximizar a função de uma parte quando esta função não inclui a utilização de outra parte); b. O poder político (que segue duas orientações, uma que persegue o bem comum, e outra, que procura maximizar interesses particulares dos atores); c. Normas e princípios (características definidoras de um regime); d. Os usos e costumes (padrões regulares de comportamento atuais e práticas antigas); e. O conhecimento científico (que permite um consenso em torno do assunto objeto de negociação) Os princípios, sendo a razão de ser de um regime internacional, não estão, em si, sujeitos a negociação ou alteração direta. A principal fonte de alteração de um regime é, segundo o supracitado autor, sua forma estrutural, ou seja, suas regras e procedimentos de tomada de decisão. A Escola realista observa o modo como os Estados usam suas capacidades de poder em situações que requerem coordenação para influenciar a natureza dos regimes e o modo pelos quais os custos e benefícios advindos da formação dos regimes são divididos. Os Estados aceitam os regimes porque eles estão operando em uma situação de coordenação, e uma falha nesta coordenação pode levá-los a uma situação menos vantajosa. Modificações só ocorrem, portanto, quando o comportamento e os resultados alcançados por seus membros tornam-se inconsistentes com as normas, princípios e 161 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional regras estabelecidas pelos mesmos, abrindo caminho para alterações nas regras e procedimentos ou nas normas e princípios. Hasenclever, Mayer e Rittberger (2013, p. 12) dividem as teorias de regimes em três perspectivas teóricas: baseada no poder, baseada no interesse e baseada no conhecimento ou comportamento. Tais perspectivas originam três escolas de pensamento: a realista, a neoliberal e a cognitiva. A diferença marcante, segundo os autores, entre as três é o grau de institucionalismo que elas tendem a considerar, ou seja, a visão do quanto às instituições são importantes para a formação dos regimes (HASENCLEVER, MAYER E RITTBERGER, 2013, p. 14-15). Segundo os realistas, a distribuição de poder entre os atores afetam fortemente o formato para a emergência e persistência de regimes efetivos e a natureza destes que resultam, especialmente quando a preocupação é com a distribuição dos benefícios da cooperação. Os neoliberais, por sua vez, enfatizam o papel dos regimes internacionais em ajudar os Estados a realizarem interesses comuns de forma que eles vejam os regimes como uma via para facilitar a cooperação internacional. Na visão neoliberal as instituições permitem que os atores racionais contribuam uns com os outros no sentido de realizar seus interesses comuns, pois os regimes aumentam a transparência das relações entre os variados agentes internacionais, permitindo que se reduza a incerteza nessa interação, assim diminuindo o medo de trapaça e a possibilidade de exploração dos demais participantes (HASENCLEVER, MAYER e RITTBERGER, 2013, p. 14). Os cognitivistas focam na origem dos interesses e na ideia do Estado como um jogador no sistema internacional. Com uma visão dualista estes se dividem em duas categorias: fracos e fortes. Os “frMcos” compartilham com realistas e neoliberais uma preocupação com mecMnismos cMusais, tentando explicMr “por que” Mlgum regime internacional é criado a partir da pressuposição de que os atores podem ser racionais (HASENCLEVER, MAYER e RITTBERGER, 2013, p. 16). Já os “fortes” dão ênfase no caráter social do conhecimento procurando entender como Ms regrMs e concepção eu “nós” e “eles” compõem os contextos em que é criado de um determinado regime, assim descartando a pretensão de desvendar alguma suposta racionalidade atemporal por trás das ações internacionais. Ademais, os atores dessa vertente, também chamada de construtivista, consideram que as identidades dos 162 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Estados são construídas socialmente, de modo que as preferências dos agentes também estão em constante mutação (AMARAL, 2013). Hasenclever, Mayer e Rittberger ponderaram que a diferença entre regimes e organizações internacionais está no fato de que os regimes, como um conjunto de regras e normas aceitas pelos Estados não tem a capacidade de agir, enquanto que as organizações podem responder a eventos, e até mesmo dar o suporte institucional a um regime (2013, p. 13). 2 Teorias sobre a hegemonia Os regimes surgem, permanecem e afetam a atuação dos estados participantes na medida em que são impostos pelos entes que possuem mais poder e riqueza. Antes de chegamos ao que seria poder e riqueza, fica entendida a visão de que a liderança de um estado hegemônico é uma das condições para que haja cooperação internacional. Keohane conceitua hegemonia como uma situação em que um Estado é poderoso o suficiente para manter as regras essenciais que regem as relações entre outros Estados, e os que estão dispostos a fazê-lo. Segundo ele, as estruturas hegemônicas de poder dominadas por um só país conduzem à formação de regimes internacionais fortes, com regras precisas e obedecidas por todos (KEOHANE, 2013, p. 111). Os regimes econômicos internacionais fortes dependem de um poder hegemônico, ao passo que a fragmentação do poder entre países em competição leva à fragmentação do regime. A concentração de poder indica, portanto, estabilidade. As duas maiores escolas do pensamento hegemônico possuem diferentes visões acerca da provisão do bem público (passível de ser objeto de um regime, ou não). Uma seria Mvisão “má”, onde MhegemoniMé vista como proveniente de uma direção, um comando coercitivo. Isso seria feito através de um regime que teria sanções negativas ou positivas. Eventualmente os Estados menores custeariam a manutenção desse regime. ÍM visão “boM” da OegemoniM, os “hegemônicos” constituem um privilegiado grupo onde os custos no suporte dos bens públicos são maiores que os advindos dos mesmos. Esse tipo de estratégia ou contribuição dentro do sistema incentiva a permanência dos free riders, ou caronistas, isto é, Estados mais fracos que se 163 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional beneficiam de políticas mais fortes e que em troca concedem posições de apoio e ajuda, sendo aliados quando forem solicitados (KEOHANE, 2013, p. 111). Haggard e Simmons (2013, p. 494) fizeram um estudo sobre diferentes contribuições teóricas acerca dos regimes. Segundo eles, na visão estruturalista sobre a teoria da estabilidade hegemônica, sempre vai haver, dentro de um sistema, um Estado forte que dominará os mais fracos e que devido a essa força dominará as regras do jogo. As teorias funcionais explicam a força do regime, em especial o porquê do regime persistir mesmo quando a sua estrutura começa a sofrer mudanças. As teorias funcionais ilustram o comportamento ou instituições nos termos dos seus efeitos. O regime tem uma estrutura pronta, assim pode reduzir custos em informações e transações entre seus participantes. A recompensa é o fortalecimento do regime (HAGGARD e SIMMONS, 2013, p. 499). Os cognitivistas exploram como as teorias estruturais, teoria dos jogos e as funcionais estão ligadas. Para os cognitivistas, a cooperação não pode ser explicada sem a referência a ideologia, os valores dos atores, a crença que possuem sobre a interdependência dos resultados e o conhecimento disponível sobre como podem alcançar objetivos específicos. Sendo assim a cooperação pode ser afetada pela percepção ou a falta dela. O cognitivismo argumenta que o aprendizado de diferentes modos e ideologias afetam as regras internacionais de cooperação, sejam elas por mérito ou não, estabelecendo linhas de ação. 3 Cooperação: Será possível ? Para melhor entender o que é de fato cooperação, se faz necessário examinar seu conceito: Como qualquer termo de uso comum com carga emotiva elevada, cooperação tende a ser polissêmico e, ao mesmo tempo, de contornos semânticos imprecisos. Qualquer situação em que dois ou mais atores agem de maneira coordenada para promover maiores benefícios, mesmo que para um único ator, pode ser chamada de cooperação (GONÇALVES e COSTA, 2011, p. 147). Como na teoria dos jogos, onde um jogo pode se desdobrar em um sub-jogo, que mais a frente pode ser ligado a outro jogo num processo continuo e dinâmico a busca pelo poder e pela riqueza e entre o poder e a riqueza apresenta uma interação ativa 164 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional porque ambos são continuamente modificados, bem como as conexões entre eles (HAGGARD e SIMMONS, 2013, p.505). Como bem observou Keohane, no mundo da política a incerteza é abundante, há uma grande dificuldade em fazer acordos, não existem barreiras militares seguras como também não são seguras as questões econômicas. Ousamos dizer que tudo poderia ser resumido num jogo onde atores perseguem seus próprios interesses, não se importando com os demais atores e estes ajustam seu comportamento e interesses aos interesses dos outros, nem que para isso seja necessário arcar com alguma espécie de ônus. Dessa forma chegamos a três conceitos (KEOHANE, 1984, p. 51): a harmonia, a cooperação e a discórdia. A harmonia ocorre quando há uma situação onde a política dos atores automaticamente facilita a realização do objetivo dos outros atores. É importante ressaltar que eles estão perseguindo seus próprios interesses e “placidamente” cedem espaço para os objetivos dos outros. Na cooperação, os atores ajustam seu comportamento de acordo com as preferências atuais ou futuras dos outros, através de um processo de coordenação política e o supracitado continua afirmando que a cooperação intergovernamental se faz quando a política seguida por um Estado e é respeitada por seus parceiros como facilitadora dos objetivos de todos, sendo o resultado de uma política de coordenação. Na discórdia não há um ajuste entre as políticas dos atores, assim não há redução de nenhum tipo de consequências adversas das políticas de um ator para outro (KEOHANE, 2013, p. 51-52). Ao pensar se é possível a cooperação para a proteção da biodiversidade nos países amazônicos, podemos dizer que sim. Todavia, essa não é uma pergunta fácil de ser respondida, entendemos que esta resposta positiva é um tanto hesitante. Qualquer ato de cooperação, mesmo aparente, precisa ser interpretado dentro de um quebra-cabeça, afinal o que mais pode ser desafiador do que entender as intenções dos atores, no caso em tela, saber o que pensam os países da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica em relação as suas regiões Amazônicas? Para um observador ingênuo é claro que a cooperação é algo fácil e desejável. Diríamos que desejável é mais simples, pois manter um regime, por mais complexo que seja, é melhor do que não haver nenhum, pois geraria dificuldades na qual cada ator teria ao agir sozinho ou instituir outro regime (KEOHANE, 2013, p. 60). 165 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional O fácil não existe, o que existe são barganhas e diálogo, e dentro destes termos qual seria o princípio, dentro de um regime chamado Organização do Tratado de Cooperação Amazônica? A conservação e o desenvolvimento da bacia Amazônica. E quais seriam as normas? A cooperação, respeitando os limites impostos pelo desenvolvimento sustentável e harmônico da região. Complicando um pouco mais e nos inspirando na teoria dos jogos, vamos criar um sub-jogo: Pode haver uma gestão conjunta nas áreas protegidas Amazônicas? Para tentar responder essa pergunta, vamos voltar um pouco, pensando no poder e na riqueza. A riqueza possui vários conceitos. Ela pode significar os meios materiais para obter satisfação, qualquer coisa que tenha utilidade em forma de investimento, consumo ou como estoque de recursos. A riqueza tem haver com tudo aquilo que tem valor de mercado, mas não só isso tem haver com aquilo que é escasso. Se um Estado possuir um recurso que é escasso nos demais pode usar esta condição para obter poder. Dessa forma, o poder fica diretamente ligado a ter riqueza. A Amazônia é rica em recursos naturais que possuem valor econômico, sejam recursos em valor direto, como madeira, matéria prima para medicamentos ou opções turísticas e, também, produtos de custo zero, tais como serviços ecológicos insubstituíveis, manutenção dos ciclos hídricos e proteção da bacia hidrográfica, bem como a manutenção do equilíbrio carbono-oxigênio (FONSECA, 2003, p. 44). 4 O Tratado de Cooperação Amazônica No final dos anos 60 e na primeira década dos anos 70, o surgimento do movimento ambientalista fez dos recursos naturais, da energia e do ambiente em geral, um tema de importância econômica, social e política. Trouxe a crítica ao modelo de desenvolvimento econômico vigente, apontando para um conflito, senão uma possível incompatibilidade, entre crescimento econômico e preservação dos recursos ambientais. A primeira Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente, em Estocolmo, no ano de 1972, desenvolveu a tese do ecodesenvolvimento, segundo o qual desenvolvimento econômico e preservação ambiental não são incompatíveis, e sim interdependentes para um efetivo desenvolvimento (FONSECA, 2005, p. 42). 166 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A partir deste momento consolida-se a definição de desenvolvimento sustentável, segundo a qual o desenvolvimento deve ser entendido pela eficiência econômica, equilíbrio ambiental e também pela equidade. No mesmo período, o mundo estava embalado pela ideia de que os países do terceiro mundo, incluídos aí os latino-americanos, eram os grandes responsáveis pelo desequilíbrio econômico mundial. Ora, para os países em desenvolvimento realmente havia outras prioridades, tais como resolver o problema da fome, da falta de moradia, e da construção de estradas, o maior símbolo do crescimento econômico na época (CERVO, 2013, p 103). Diante de tal cenário, os países amazônicos se comprometeram a colaborar com metas de desenvolvimento sustentável, além de reafirmarem suas soberanias nacionais utilizando alguns instrumentos, sendo um deles o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), assinado em 03 de julho de 1978 por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela com o objetivo de promover ações conjuntas para o desenvolvimento da Bacia Amazônica, inclusive em qualquer território de uma parte contratante cujas características estejam estreitamente vinculadas à mesma (TRATADO, 2013). O Tratado de Cooperação Amazônica incentiva os processos de cooperação regional entre seus participantes, prevê o incremento da pesquisa científica e tecnológica, o intercâmbio de informações, bem como a utilização racional dos recursos naturais, liberdade de navegação, preservação do patrimônio cultural, o estabelecimento de uma adequada infraestrutura de transportes e comunicações, e o incremento do turismo e do comércio fronteiriço (TRATADO, 2013). Em 1995, os países amazônicos decidiram fortalecer institucionalmente o Tratado com a criação de uma secretaria permanente dotada de personalidade jurídica. A decisão foi levada adiante em 1998, com a aprovação do Protocolo de Emenda ao TCA que instituiu oficialmente a Organização do Tratado de Cooperação AmazônicaOTCA como mecanismo responsável pelo aperfeiçoamento e fortalecimento do processo de cooperação desenvolvido no âmbito do tratado (ANTIQUERA, 2013, p.58). Este instrumento jurídico de cooperação regional se propõe a melhorar a qualidade de vida dos povos amazônicos, aproveitando de forma sustentável a rica herança cultural e natural da região. Aí perguntamos: de que forma? Qual o formato do TCA dentro do Direito Internacional? 167 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Se as alterações sentidas no plano das relações internacionais são elementos que condicionam outras modificações em níveis instrumentais, assim, como vimos, para o direito também surge a necessidade de se adaptar às transformações ocorridas nas relações internacionais, e o Tratado de Cooperação Amazônica é um exemplo dessa dinâmica. Os países que compõe a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, OTCA, compartilham a região amazônica, mas não possuem as mesmas políticas econômicas de desenvolvimento. Cada um tem sua política nacional e, mesmo levando em conta a prioridade que a questão ambiental possui como se pode vincular Estados tão diversos a um mecanismo coercitivo? No seu plano estratégico, a secretaria da OTCA se define como um instrumento estratégico a serviço de seus países membros, na defesa de interesses comuns e como foro de consulta e articulação consensual de posições regionais nas negociações globais. Por outro lado, a organização desempenha um papel crucial no fomento da cooperação horizontal entre os países, o que favorece os intercâmbios institucionais, assim como uma maior interação com outros organismos regionais e internacionais. A OTCA participou da Conferência RIO + 20, gerando a Declaração dos Ministros de Relações Exteriores dos seus Países Membros para a Conferência , onde os chanceleres reconheceram que a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento significou a consolidação do paradigma de desenvolvimento sustentável que integra, com o mesmo nível de importância, os pilares social, ambiental e econômico do desenvolvimento, sendo ressaltada a transcendência do Tratado de Cooperação Amazônica, como instrumento para o desenvolvimento sustentável da região amazônica (TRATADO, 2013). Em suma, o Pacto de Cooperação Amazônica é um instrumento normativo onde não são previstas obrigações e, muito menos, qualquer tipo de coerção, ele é uma espécie de guia de procedimentos, de diretrizes e princípios. Para o direito ambiental internacional o tratado é uma fonte fundamental, por duas principais razões: primeiro pelo fato de que neles são dispostos direitos e obrigações dos signatários e, depois, pelo fato da existência de poucos costumes internacionais relacionados ao meio ambiente. Mas, de onde partimos para fazer tal análise? A resposta pode ser encontrada nos estudos sobre a soft law. O que seria a soft law ? 168 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A soft law é um direito brando, elaborado pelos Estados, sobretudo quando tratam de suas relações multilaterais, e ao mesmo tempo um direito forte, muito forte, até mesmo pétreo, que diretamente e de maneira incontornável, obriga os Estados e se coloca acima das suas vontades (NASSER, 2006, p. 25). Vemos a aplicação da soft law relacionada a temas como regimes regulatórios, entendidos de forma mais geral como ordem internacional ou governança, ou mais especificamente em determinadas áreas, como por exemplo, o meio ambiente e o comércio internacional. A soft law é o exemplo concreto de jurificação, que consiste em: [...] uma forma especial de institucionalização aquela que lança mão de instrumentos especificamente jurídicos para buscar estabelecer um âmbito de ações possíveis. Escolheu-se nomear tal ação “jurificar”, de juris e efficere, que significa literalmente, tornar jurídico. [...] entende-se jurificar como a ação de criar uma instituição jurídica, cujas características são a referência a um corpo normativo específico voltado a produção de julgamentos mediante órgãos marcados pela imparcialidade e a ausência de interesses mediatos no resultado (GONÇALVES, COSTA, 2011, p. 160). Na língua inglesa o termo correspondente a jurificação é legalization, cujo conceito se apresenta como uma peculiar forma de institucionalização cujas características são a obrigação, precisão e delegação (ABBOTT et al 2013, p. 400): 1) Obrigação: significa que os estados estão limitados legalmente por regras ou compromissos e se sujeitam as mesmas e aos procedimentos gerais da lei internacional; 2) Precisão: as regras são definitivas, não ambíguas, definindo a conduta que requerem, autorizam, ou prescrevem; 3) Delegação: concede autoridade/poder para criar, interpretar e aplicar as regras, para resolver disputas e a possibilidade de elaborar regras complementares. Ainda de acordo com os autores acima, o conceito do soft law e do hard law é apresentado desta forma ( 2013, p. 402) : a) Hard law – É o direito em sua forma positivada. Temos aqui uma conduta de fazer ou não fazer bem definida, quem são os atores aos quais estão direcionadas as condutas e se em nome à obediência das determinações impostas, normas ou outros atores deverão ser criados para garantir o total cumprimento das mesmas, com possíveis sanções civis ou penais. 169 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional b) Soft law – Não há obrigatoriedade de todos esses elementos descritos acima, normalmente elas são bem descritivas, com princípios vagos, algumas vezes com textos bem detalhados de procedimentos e cuja aplicação depende muitas vezes da diplomacia. Falta na soft law a coerção, o poder de sanção, ou seja, exigir e/ou punir aquele que não seguir suas determinações. Assim não podem ser chamadas de normas, regras ou leis, e sim de guias de procedimentos ou guidelines. No entanto a soft law pode delegar poderes, isto é, resolver e arbitrar disputas e fazer regras e colocá-las em prática, envolvendo outros atores, incluindo tribunais, árbitros e organizações internacionais para coordenar padrões pré-estabelecidos em suas diretivas. A soft law apresenta um caráter inteiramente voluntário e é consistente com o princípio da subsidiariedade, que vem a ser o incentivo ao alojamento das competências em vários campos da política nos níveis mais apropriados do governo. Seu foco é estabelecer diretrizes deixando a escolha da estratégia nacional mais apropriada à disposição dos estados-membros. O direito soft visa à aprendizagem mútua entre os membros, que discutem interesses comuns, trocam o conhecimento e a experiência que permite que compilem as melhores soluções a seus problemas regulatórios. Assim, trata-se de um artifício útil, utilizado como meio de coordenação de relações entre os estados-membros, observando tanto a unidade quanto a diversidade entre eles. Considerando as propriedades ou dimensões da juridificação, conforme as dimensões de Abbott et al, é possível concluir que o OTCA se enquadra como soft law, a partir do momento que encontramos nela essas três dimensões, tratadas da seguinte forma: 1) Obrigação - O TCA possui artigos precisos e elaborados, mas em nenhum momento eles são coercivos, eles são entendidos como um guia de cooperação entre as partes, onde fica bem clara a afirmação da soberania e responsabilidade dos países contratantes sobre suas respectivas bacias amazônicas. Por exemplo, o art. 25 diz que as partes contratantes se esforçarão por manter um intercâmbio permanente de informações e colaboração entre si e com os órgãos de cooperação latinos - americanos, nos campos em que se relacionam com as matérias que são objeto deste tratado, contudo, se algum país se recusar ou não tiver interesse 170 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional em fazer o intercâmbio em determinada área, o tratado não possui nenhum mecanismo que o obrigue a cumpri-lo. 2) Precisão - O Tratado é claro nas suas intenções, dispostas no art. 11, que apresenta o propósito do TCA: incrementar o emprego racional dos recursos humanos e naturais dos seus respectivos territórios e estimular a realização de estudos e a adoção de medidas conjunta (TRATADO, 2013). Assim todos os seus artigos giram em torno destes objetivos de forma concisa, sem dar margem pra nenhum tipo de ambiguidade ou diferentes formas de interpretação. 3) Delegação – Não se pode dizer que o TCA possua uma forte delegação, porque ele não concede autoridade para criar, interpretar e aplicar regras. Porém, a OTCA funciona articulada com agências e órgãos responsáveis pela coordenação, fomento e implementação de programas e projetos de cooperação técnica dos países membros, que por sua vez interagem com as unidades executoras ou coordenadoras nacionais, além de poder atuar como mediadora e conciliadora. Assim, podemos enquadrar o TCA desta maneira: Obrigação – fraca/ Precisão – forte/ Delegação-moderada. Com essa descrição não resta dúvida acerca de constituir-se o TCA em soft law sendo uma espécie de guideline, não trazendo nenhum tipo de sanção ou coerção em caso de descumprimento de suas recomendações, delegando funções, mas não criando nenhum tipo de regra. 5 Possibilidades do Estado constitucional cooperativo dentro do Tratado de Cooperação Amazônica Derani (2001, p.162) estabelece que o princípio da cooperação admite normas de incentivo a ciência e tecnologia a serviço da proteção ambiental, abrindo espaço para a cooperação entre Estados e Municípios, como também para uma cooperação de âmbito internacional, superando fronteiras. Ao pensar em cooperação ligada ao meio ambiente lembramos os princípios do Direito Ambiental, o princípio do poluidor-pagador, da 171 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional precaução e da cooperação. O princípio da cooperação orienta a realização de políticas publicas, fazendo parte da estrutura do estado social. A nossa Constituição federal de 1988 estabelece: Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações (BRASIL, 2013). Os países da OTCA são em grande parte os mesmos do MERCOSUL, atualmente, o Mercado Comum do Sul é formado por quatro membros plenos: Argentina, Brasil, Uruguai e Venezuela; cinco países associados: Chile, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia; e dois países observadores: Nova Zelândia e México. O Paraguai, um dos signatários do Tratado de Assunção, teve sua adesão suspensa de 29 de junho de 2012 a abril de 2013 (SOCIAL MERCOSUL, 2013). Mesmo havendo diferenças, já que o MERCOSUL é um tratado eminentemente comercial, o TCA pode ser visto como mais um fator de união entre os países latinoamericanos. Com uma boa dose de otimismo podemos pensar numa reestrutura dos Estados amazônicos, como por exemplo, dentro da perspectiva do estado constitucional cooperativo (HARBËLE, 2007, p.12). Segundo Harbële, a estrutura do estado constitucional é a garantida pela democracia pluralista, por direitos fundamentais, por elementos da divisão dos poderes que devem ser ampliados no âmbito da sociedade e por um poder judiciário independentes. O Estado cooperativo encontra sua identidade também no Direito Internacional, no entrelaçamento das relações internacionais e supranacionais, na percepção da cooperação e responsabilidade internacional bem como no campo da solidariedade. Dessa forma ele corresponde à necessidade internacional de políticas de paz (HARBËLE, 2007, p.15-20). Ao discorrer sobre o Estado cooperativo, o referido autor utiliza como exemplo a União Europeia, mas nada impede que seus ideais sejam empregados nos países da 172 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional AméricMI Mtina, porque se o “ideMl” dos Estados é a cooperação, esse pode ser seu caminho natural. O interessante é que ele assume que sua visão de Estado cooperativo é “modestamente otimista”, Mo descreQer o papeÕque o mesmo desempenOMMtraQés da sua concepção ideal, ou seja, um efeito positivo diretamente na realidade, ainda que esta esteja por vir (HARBËLE, 2007, p.20-22). Derani (2001, p.75) afirmou que a possível internacionalização do conceito de meio ambiente devia-se ao fato de que as sociedades contemporâneas estão de certo modo unificadas culturalmente, sobretudo motivadas pela unidade da produção, o que nivela a cultura e assim também o modo de relacionar-se com a natureza das sociedades que integram o mercado mundial. Como anteriormente dito, para que haja a cooperação deve haver conflito. Se há conflito é porque existe algum tipo de choque de interesses. As áreas protegidas e toda a sua bagagem de sócio biodiversidade ultrapassam as fronteiras latino-americanas. Harbële (2007, p. 13) cita algumas formas de manifestação e vinculação constitucional que não são difíceis de serem alcançadas. As formas de manifestação são múltiplas, elas alcançam expressões, que por ele são denominadas de “frouxMs”, que são refMs Mções coordenMdas e mMis “densas”, que partem dMconcepção e da reMlizMção de PM comunitárias. O mais interessante é que Harbële fala claramente que estas formas de cooperação são soft law, pois não são vinculantes. Portanto o Estado constitucional tem como característica básica a consciência de que a cooperação é necessária, seja no plano econômico, social ou humanitário. Dentro da comunidade europeia, o Estado cooperativo significa uma abdicação parcial da soberania em favor do poder comunitário. Considerações Finais Para que haja uma verdadeira cooperação entre os países da OTCA, dentro da perspectiva desta investigação, o Tratado de Cooperação Amazônica não pode ser visto apenas como um tratado regional, restrito a abrangência amazônica e sim respaldado por uma política mais ampla. A América Latina vive hoje um período democrático, e mesmo com algumas exceções, a região vem sendo impulsionada pela integração econômica, o nacionalismo e a mobilização política das identidades étnicas. 173 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Particularmente não observamos, neste momento, como falar em uma grande cooperação entre os Estados da OTCA, uma vez que a integração e a cooperação implicam em uma real convergência política e econômica. A urgência da gestão das áreas protegidas amazônicas não pode ser trabalhada de forma unilateral, pois que o tema ultrapassa as fronteiras regionais. Em comum, além de compartilharem a mesma bacia hidrográfica, existe o fato de usarem o mesmo sistema de classificação de áreas protegidas, que é o proposto pela União Internacional de Conservação da NaturezaUICN. Ao priorizar questões de política interna, as formas de integração mais consistentes no que diz respeito à algum tipo de harmonização ou unificação num sistema integrado de proteção nas áreas protegidas na bacia amazônica ficam relegadas a segundo plano. O Brasil pode e deve oferecer coordenação numa ação coletiva dos países sulamericanos nas arenas multilaterais, globais e regionais e disponibilizar-se como mediador de eventuais situações de conflito dentro dos países do TCA e a partir daí construir instituições regionais fortes com soberanias compartilhadas em paralelo das instituições democráticas. REFERÊNCIAS ABBOTT, Kenneth W; KEOHANE, Robert O; MORAVCSIK, Andrew; SLAUGHTER Anne-Marie; SNIDAL, Duncan. 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O trabalho apresenta descrição das características fáticas da poluição atmosférica, traçando um breve histórico sobre a evolução do tema para o próprio direito internacional do meio ambiente. Faz-se proposta de uma teoria geral de proteção do sistema atmosférico, discutindo-se a natureza jurídica da atmosfera, seu aspecto multidimensional para o direito internacional e os fundamentos principiológicos de sua proteção. Também se faz uma classificação da poluição atmosférica transfronteiriça para, em seguida, expor-se as fontes jurídicas que tratam da matéria. Palavras-chave: Poluição atmosférica transfronteiriça; fundamentos; fontes jurídicas. ABSTRACT This article treats, from the perspective of international environmental law, about the air pollution which exceeds state borders, the so-called transboundary air pollution. The paper presents factual description of the characteristics of air pollution, tracing a brief history on the evolution of the theme for the international environment law. It is proposed a general theory of atmospheric protection system, discussing the legal nature of the atmosphere, its multidimensional aspect to international law and the foundations of its principles of protection. It also makes a classification of transboundary air pollution and, to the end, exposes the legal sources dealing with these matter. Keywords: transboundary air pollution; fundamentals; legal sources. INTRODUÇÃO O ar é precioso para o homem vermelho, porque todas as criaturas respiram em comum - os animais, as árvores, o homem. O homem branco parece não perceber o ar que respira. Como um moribundo em prolongada agonia, ele é insensível ao ar fétido. Mas se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar reparte seu espírito com toda a vida que ele sustenta. O vento que deu ao nosso bisavô o seu primeiro sopro de vida, também recebe o seu último suspiro. E se te vendermos nossa terra, deverás mantê-la reservada, feita 1 Mestrando em Direito Agroambiental junto à Universidade Federal de Mato Grosso. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso. Professor de Direito e Coordenador do Núcleo de Práticas Jurídicas do Centro Universitário de Várzea Grande. Advogado. Email: [email protected]. 177 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional santuário, como um lugar em que o próprio homem branco possa ir saborear o vento, adoçado com a fragrância das flores campestres.2 A poluição atmosférica, desde a década de quarenta do século XX, tem sido preocupação em destaque para o direito internacional, dando origem a algumas das mais importantes disputas internacionais (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 505). O tema, na contemporaneidade, faz parte da vasta disciplina denominada Direito Internacional Ambiental, a qual, por sua vez, constitui, juntamente com os Direitos Humanos, um dos principais temas do direito internacional público contemporâneo (MAZZUOLI, 2012a, p. 990). Antes de adentrarmos, alguns parágrafos adiante deste introito, no objeto deste estudo, preferimos sistematizar o assunto descrevendo, inicialmente, o meio que, no tocante à poluição em análise, ao mesmo tempo a dispersa e é por ela atingido. Trata-se da atmosfera, fina camada de gases que circunda a superfície de nosso planeta, a qual possibilita o suporte da vida pela presença de certos elementos químicos essenciais e pela manutenção da temperatura média do globo em um nível adequado (ROBBINS, 2007, p. 80-81), além de proteger a Terra da intensa e nociva radiação solar (DESONIE, 2007, p. 3-10). A atmosfera é um complexo sistema composto de uma combinação de gases, tais como o nitrogênio e o oxigênio, bem como partículas, como poeira, gotículas de água e cristais de gelo (BORRERO, 2008, p. 282), e é impedida de escapar para o espaço pela força da gravidade (ROBBINS, 2007, p. 81). Suas propriedades, a exemplo da temperatura, pressão do ar e umidade, determinam as condições de tempo e clima do nosso planeta (BORRERO, 2008, p. 280). A composição e forma atuais dessa estrutura vital que encobre a Terra foram alcançadas por processos químicos complexos, aproximadamente, há mais de quatrocentos milhões de anos atrás (BARRY; CHORLEY, 2003, p. 1). Ocorre que, por volta do século dezoito (POLLOCK, 2005, p. 60), a humanidade passou a explorar, mais intensamente, a vastidão do delicado e complexo sistema atmosférico de maneira nociva, usando-o como repositório de resíduos gasosos produzidos abundantemente pela nova sociedade industrial (DESONIE, 2007, p. 11), especialmente em decorrência da queima de combustíveis fósseis, de florestas e pela emissão de substâncias 2 Trecho do discurso pronunciado pelo Cacique Seattle, em 1854, em resposta à proposta do Presidente dos Estados Unidos da América de compra das terras da tribo Duwamish. Disponível em < http://www.ufpa.br/permacultura/carta_cacique.htm> Acesso em: 22 Fev. 2013. 178 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional que, ao atingirem a atmosfera, produziam fumaças e névoas tóxicas que pairavam, inicialmente, sobre grandes polos industriais (POLLOCK, 2005, p. 65) e, posteriormente, transporiam barreiras atingindo Estados distantes das fontes poluentes, causando certas reações químicas deletérias (DESONIE, 2007, p. 11) às construções e recursos naturais (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 505), bem como danos à saúde pública (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 504) e, em âmbito mais global, ocasionando a degradação da camada de ozônio da estratosfera e, ainda, o acréscimo de gases de efeito estufa (MILLER; SPOOLMAN, 2009, p. 24) responsáveis pelo aquecimento do planeta. A poluição da atmosfera terrestre produz múltiplos efeitos destrutivos para além de suas camadas, já que o ar é essencialmente um ambiente de trânsito: gases e partículas poluentes permanecem na atmosfera temporariamente e manifestam muitos de seus impactos apenas após retornarem ao solo; serem absorvidas pelas plantas; atingirem águas marinhas, lagos e rios (KISS; SHELTON, 2004, p. 555), sem olvidar a recente constatação científica sobre o já mencionado aumento da concentração de gases de efeito estufa por ações antropogênicas (MOLLES, 2006, p. 245). Ademais, os poluentes da atmosfera, comparados com os poluentes diretamente inseridos nos cursos d’água ou nos ambientes marinhos, movem-se mais rapidamente e cobrem grandes distâncias (KISS; SHELTON, 2004, p. 555). Este trabalho circunscreve-se aos aspectos transfronteiriços, bilaterais e regionais, da poluição atmosférica, sendo que o âmbito que aqui nomeamos de dimensão global da atmosfera, a abarcar os problemas da mudança climática e da degradação da camada de ozônio, não será esmiuçado neste texto. Também não trataremos da temática nuclear, por entendermos abranger matéria mais específica do direito internacional, já que se insere na seara do desarmamento e segurança coletiva internacionais (MAZZUOLI, 2013, p. 299-345). Ocupar-nos-emos basicamente da natureza jurídica da atmosfera, conforme a previsão normativa internacional, bem como trataremos dos fundamentos principiológicos da proteção internacional do sistema atmosférico em face da poluição em exame e, em sequência. Em sequência, apresentaremos a as características e classificação da poluição atmosférica transfronteiriça, consoante o tratamento do tema nas fontes do direito internacional ambiental, em duas dimensões: a poluição atmosférica transfronteiriça de curto alcance e a de longo alcance. Por fim, dedicar-nos-emos ao estudo de casos emblemáticos, para o direito internacional, a envolver a poluição transfronteiriça, adentrando a análise das fontes jurídicas 179 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional da temática. A partir desta abordagem fática, dirigiremos nossa atenção para a análise dos tratados internacionais sobre poluição atmosférica transfronteiriça, de curto e de longo alcance, dos Estados Unidos da América, Canadá e Europa. Assim é que concluímos essa introdução destacando os esclarecimentos da Comissão sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, apresentados pelo Relatório Brundtland, de 1987, sobre os impactos do desenvolvimento na qualidade do ar, já que este, conforme o Relatório, antes era considerado um bem gratuito, de livre fruição, mas deve ser considerado, em verdade, um recurso natural e, portanto: “O desenvolvimento sustentável demanda que os impactos adversos na qualidade do ar [...] sejam minimizados de modo a sustentar a integridade global do ecossistema.” (ONU, 1987a, p. 38, tradução nossa). 1 A POLUIÇÃO DO AR E A PROTEÇÃO DA ATMOSFERA Conforme a descrição da geóloga Dana Desonie: Os poluentes do ar são substâncias encontradas em quantidades não naturais na atmosfera ou em uma região da atmosfera à qual eles não pertencem, ou substâncias que são produzidas pelo homem e que não integram, de maneira natural, a composição da atmosfera terrestre. (DESONIE, 2007, p. 3, tradução nossa). Nem todos os poluentes do ar resultam de atividades humanas (STAPLETON, 2004, p. 32). Sob este critério, podemos classificar a poluição do ar em poluição atmosférica natural, oriunda de fontes naturais, tais como o dióxido de enxofre produzido por atividades vulcânicas, e em poluição atmosférica antropogênica, sendo esta a resultante de atividades humanas, a exemplo do dióxido de enxofre produzido pela queima de combustíveis fósseis (STAPLETON, 2004, p. 32). Historicamente, a poluição atmosférica antropogênica teve início com a evolução tecnológica e cultural do gênero Homo (BORSOS, 2003, p. 5). Há milhares de anos atrás, quando nossos ancestrais aprenderam a produzir fogo, a fumaça decorrente deste, provavelmente, foi a primeira forma de poluição antropogênica a atingir a atmosfera (BORSOS, 2003, p. 5). 180 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Algumas paredes de cavernas habitadas por ancestrais da raça humana, há milhares de anos atrás, revelam espessas camadas de fuligem sugerindo o uso do fogo nestes ambientes internos, provavelmente para cozinhar alimentos, aquecer o ambiente e até mesmo servir como repelente de insetos, fazendo-se supor, desta feita, que tal contaminação do ar, já àquela época, dificultava a respiração dos homens das cavernas e provavelmente irritava seus olhos (BORSOS, 2003, p. 5). De acordo com Guido Soares, o conceito legal de poluição, para o direito internacional do meio ambiente, foi apresentado pela primeira vez, em texto escrito, na Recomendação do Conselho da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico), em 14 de novembro de 1974, e consistiria na: [...] introdução pelo homem, direta ou indiretamente, de substâncias ou de energia no meio ambiente, que causem conseqüências prejudiciais, de modo a colocar em perigo a saúde humana, prejudicar recursos biológicos ou sistemas ecológicos, atentar contra atividades recreativas (agréments) ou prejudicar outras utilizações legítimas do meio ambiente. (SOARES, 2001, p. 128). Delimitando a questão, citamos a alínea “a” do artigo 1º da Convenção de Genebra sobre Poluição Atmosférica Transfronteiriça de Longo Alcance, a qual descreve que poluição do ar consiste: [...] na introdução pelo homem, direta ou indiretamente, de substâncias ou energias no ar resultando em efeitos deletérios capazes de por em perigo a saúde humana, prejudicar recursos vivos e ecossistemas, a propriedade material e prejudicar ou interferir com atividades recreativas e outras formas legítimas de uso do meio ambiente, e os “poluentes do ar” devem ser interpretados em conformidade. (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011b, p. 74, tradução nossa). A partir destas explanações, apresentaremos, a seguir, a proposta de sistematização de uma teoria geral da proteção da atmosfera no direito internacional ambiental. 181 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 2 TEORIA GERAL DA PROTEÇÃO INTERNACIONAL AMBIENTAL DA ATMOSFERA NO DIREITO Na seara do direito internacional ambiental, sobreleva destacar que os danos ambientais causados pela poluição atmosférica fomentaram, a partir de 1979, a criação de considerável conjunto de fontes jurídicas (SANDS, 2007, p. 317), atualmente abrangendo questões como a poluição transfronteiriça por dióxido de enxofre, óxidos de nitrogênio e compostos orgânicos voláteis; além de questões a ultrapassarem os aspectos transfronteiriços dessa poluição, ingressando-se na esfera dos danos globais concernentes à busca internacional pela proteção da camada de ozônio e pela prevenção das mudanças climáticas (SANDS, 2007, p. 317) causadas pelo aquecimento global, apesar de, na prática, os instrumentos jurídicos internacionais desta última ainda deixarem a desejar em termos de eficácia (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 342). A pretensão de se proteger a atmosfera por tais fontes jurídicas, como se verá, faz parte da própria gênese do direito internacional ambiental ao modo de ramo cientificamente autônomo e teve como grande influência o avanço do conhecimento científico a respeito da poluição do ar, acima já destacado (BODANSKY, 2011, p. 19). Um dos desafios ao instrumental normativo do direito internacional é abranger, em proteção, as várias dimensões que compõem a complexa estrutura da atmosfera, enfrentandose, nesta matéria, a difícil tarefa de caracterização da sua natureza jurídica a fim de se obter amparo mais ajustado às peculiaridades fáticas do sistema atmosférico. Por conseguinte, a seguir procederemos à análise mais detida de tal problemática. 2.1 A natureza jurídica da atmosfera e as suas quatro dimensões de proteção Nesta vereda, a primeira análise a ser feita é se a atmosfera, para o direito internacional, deveria ser equiparada ao espaço aéreo. Em 1919, a Convenção de Paris foi produzida para tratar, internacionalmente, do espaço aéreo, na qual se adotou a tese da soberania completa e exclusiva de cada Estado sobre o espaço atmosférico acima de seu território (MAZZUOLI, 2012, p. 811-812). Ocorre que o objeto dessa Convenção era regular a navegação aérea, não tratando de aspectos a envolver a poluição atmosférica. A Convenção 182 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional de Chicago de 1944 manteve a tese da soberania completa e exclusiva do Estado (MELLO, 2004, p. 1310), também nada tratando sobre poluição atmosférica. Ocorre que não poderia a atmosfera ser equiparada como sinonímia de espaço aéreo, este uma simples dimensão espacial sujeita à soberania de determinado Estado, pois consiste a atmosfera numa flutuante e dinâmica massa de ar que ultrapassa fronteiras legais (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 337). A atmosfera também não poderia ser juridicamente tratada como um bem comum ou espaço internacional comum (SOARES, 2001, p. 99), o qual estaria além da jurisdição de qualquer Estado, comparável, neste sentido, ao alto mar. A percepção de que a poluição do ar acaba por causar, em menor ou maior escala, danos ambientais dentro e fora da jurisdição dos Estados possibilitou uma evolução ao tratamento do tema. Os efeitos nocivos decorrentes do avanço da industrialização acabaram por demonstrar que a poluição do ar pode atingir recursos naturais atmosféricos compartilhados por mais de um Estado, denominados bacias atmosféricas, repercutindo em danos bilaterais ou regionais para além do Estado de origem da fonte poluente, indicando a necessidade de proteção jurídica mais adequada ao tema, ultrapassando o direito interno de cada Estado soberano (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 338). Neste contexto, enfim surgiram fontes internacionais, inicialmente bilaterais e posteriormente regionais, a cuidarem do tema denominado poluição atmosférica transfronteiriça (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 145). Obviamente, apesar de não ser objeto deste trabalho, a poluição do ar não cria apenas danos aos ambientes locais ou regionais, mas também danos globais ao meio ambiente (DESONIE, 2007, p. 12). As descobertas científicas revelaram danos ambientais mais abrangentes, muito além de aspectos meramente transfronteiriços e que atingiriam toda a humanidade: a destruição da camada de ozônio e o aquecimento global causados, principalmente, pela poluição atmosférica antropogênica (GURUSWAMY, 2012, p. 205/265). Ainda em relação à natureza jurídica da atmosfera para o direito internacional do meio ambiente, também não seria adequado classificá-la como um patrimônio comum da humanidade, mesmo que vista sob a dimensão global acima levantada, pois tal terminologia estaria mais relacionada a recursos minerais dos fundos marinhos e ao espaço sideral, cujos status legais no direito internacional permanecem controversos (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 338). Neste ponto, é de se ressaltar, inclusive, que o uso da expressão 183 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional patrimônio comum da humanidade não foi empregado na Convenção de Viena, de 1985, de Proteção da Camada de Ozônio, ou na Convenção Sobre Mudanças Climáticas de 1992 (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 338). A alternativa mais consentânea em relação às peculiaridades de tais problemas de dimensão global seria tratar a atmosfera ao modo de unidade global, com o status legal de preocupação comum da humanidade (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 459/508), ou, como defendido por Guido Soares, espaço ambiental internacional (SOARES, 2001, p. 99). Segundo Guido Soares, os espaços ambientais internacionais seriam: [...] aqueles que não têm referencial necessário aos limites do Estado, mas que se definem em função de normas ambientais internacionais, tais como o habitat de animais protegidos, o clima, o ozônio que envolve a atmosfera terrestre e outros fenômenos tipificados pela norma jurídica internacional. (SOARES, 2001, p. 99). Todavia, destacamos que as fontes internacionais que separadamente tratam do problema não se excluem ou se sobrelevam umas perante as outras, mas se completam multidimensionalmente, seja referindo-se à eliminação, diminuição, mitigação dos danos, prevenção e precaução da poluição atmosférica urbana nas cidades; da poluição atmosférica bilateral entre dois Estados; da poluição atmosférica regional entre vários Estados; e da poluição atmosférica cujos efeitos repercutem globalmente. Destarte, preferimos considerar, juridicamente, a atmosfera como preocupação comum da humanidade, mas não restringindo tal natureza jurídica apenas à dimensão global de proteção (normas jurídicas sobre proteção da camada de ozônio e sobre o problema do aquecimento global), mas percebendo a multidimensionalidade de sua proteção jurídica, a qual abrange também a dimensão local (v.g. as normas jurídicas que tratam do problema das poluições urbanas nas cidades); a bilateral (as normas jurídicas que tratam da poluição transfronteiriça entre dois Estados, denominada de curto alcance ou curta distância) e a regional (as normas jurídicas que tratam da poluição transfronteiriça entre mais de dois Estados, denominada de longo alcance ou longa distância). Em apoio à tese da natureza jurídica da atmosfera como preocupação comum da humanidade, o preâmbulo da Convenção Quadro das Nações Unidas Sobre Mudança do Clima, de 1992, caminhou neste sentido, apesar de ter se restringido aos aspectos climáticos 184 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional da proteção atmosférica: “[...] a mudança do clima da Terra e seus efeitos negativos são uma preocupação comum da humanidade [...]” (MAZZUOLI, 2013, p. 1163). Neste ponto, em consonância com o aspecto multidimensional da proteção da atmosfera, estabelece o item 9.1 do Capítulo 09, intitulado “Proteção da Atmosfera”, da Agenda 21: “A proteção da atmosfera é um empreendimento amplo e multidimensional, que envolve vários setores da atividade econômica.” (ONU, 1992). De acordo com Alexandre Kiss e Dinah Shelton, o capítulo nove da Agenda 21 tratou de três principais preocupações internacionais pertinentes à atmosfera: poluição transfronteiriça, proteção da camada de ozônio e mudança climática (KISS; SHELTON, 2004, p. 556). No entanto, em coerência com a sistematização da proteção atmosférica em quatro dimensões, conforme defendemos, acrescentamos que a Agenda 21 também incluiu a dimensão local de proteção da atmosfera, qual seja, o problema da poluição urbana industrial nas cidades, tratada em seu Capítulo seis, intitulado “Proteção e promoção das condições de saúde humana” (ONU, 1992). Do mesmo modo, o próprio Capítulo 09 da Agenda 21, no item 9.7, ao cuidar do aperfeiçoamento da base científica para tomada de decisões a respeito da proteção da atmosfera, também acrescentou a dimensão local, além de enfatizar sua interligação para com as outras esferas de proteção, quando enuncia que o objetivo básico do referido aperfeiçoamento é “[...] melhorar a compreensão dos processos que afetam a atmosfera da Terra em escala mundial, regional e local e são afetados por ela [...]”. (ONU, 1992). Entretanto, em decorrência da delimitação científica aqui efetuada, o cerne desta pesquisa direciona-se para a descrição das dimensões bilaterais e regionais de proteção jurídica da atmosfera, as quais se referem ao tema da poluição atmosférica transfronteiriça. Mas antes de adentrarmos nesta análise, apresentaremos, em sequência, os fundamentos principiológicos de proteção da atmosfera, considerando-a ainda multidimensionalmente, em suas quatro dimensões. 185 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 2.2 Princípios internacionais de proteção jurídica da atmosfera Optamos por sistematizar em ordem cronológica os princípios em exame. Inicialmente, analisaremos os fundamentos principiológicos de proteção da atmosfera extraídos da Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, de 1972. Esta Declaração No Princípio nº 2 dessa Declaração, o ar é apontado, entre outros, como um recurso natural que deve ser preservado em benefício das atuais e futuras gerações, “[...] mediante um cuidadoso planejamento ou administração adequada.” (MAZZUOLI, 2013, p. 1138). E o Princípio nº 6 da Declaração de Estocolmo preceitua: Deve-se por fim à descarga de substâncias tóxicas ou de outras matérias e à liberação de calor, em quantidade ou concentrações tais que não possam ser neutralizadas pelo meio ambiente de modo a evitarem-se danos graves e irreparáveis aos ecossistemas. Deve ser apoiada a justa luta de todos os povos contra a poluição. (MAZZUOLI, 2013, p. 1139). Por tratar da poluição de maneira geral, obviamente a proteção da atmosfera inserese no referido postulado, inclusive a questão das mudanças climáticas decorrentes do aquecimento global, propalada justamente pela liberação de calor, em efeito estufa, no sistema atmosférico, encaixando-se, portanto, na proteção intentada pelo enunciado do Princípio supracitado (MILLER; SPOOMAN, 2009, p. 94). O princípio nº 21 da Declaração de Estocolmo, mais precisamente na sua última parte, dispõe: Os Estados têm, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e os princípios do direito internacional, [...] a responsabilidade de garantir que as atividades produzidas dentro de sua jurisdição ou controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados [...]. (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011b, p. 24, tradução nossa). Outra fonte internacional que fez menção principiológica à proteção da atmosfera foi a Carta Mundial pela Natureza (KISS; SHELTON, 2004, p. 94), de 1982, formalmente apresentada em anexo à Resolução nº 37/7 da Assembleia Geral da ONU, na qual seu Quarto Princípio Geral de Conservação dispôs: 186 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional [...] os recursos atmosféricos utilizados pelo homem devem ser administrados de forma a se alcançar e manter-se uma produtividade sustentável ideal, mas não de tal maneira que possa pôr em perigo a integridade de outros ecossistemas e espécies com as quais coexistem. (ONU, 1982, tradução nossa). Em 1992, sobreveio a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (MAZZUOLI, 2013, p. 1141). O disposto suprarreferido do Princípio nº 21 da Declaração de Estocolmo, de 1972, tem previsão muito semelhante na segunda parte do enunciado do Princípio nº 2 da Declaração do Rio (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 29): Os Estados, de acordo com a Carta das Nações Unidas e com os princípios do direito internacional, têm [...] a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou seu controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional. (MAZZUOLI, 2013, p. 1141). O Princípio nº 13 da Declaração do Rio enunciou que: Os Estados irão desenvolver legislação nacional relativa à responsabilidade e à indenização das vítimas de poluição e de outros danos ambientais. Os Estados irão também cooperar, de maneira expedita e mais determinada, no desenvolvimento do direito internacional no que se refere à responsabilidade e à indenização por efeitos adversos dos danos ambientais causados, em áreas fora de sua jurisdição, por atividades dentro de sua jurisdição ou sob seu controle. (MAZZUOLI, 2013, p. 1142-1143, grifo nosso). Como percebemos, o Princípio nº 21 da Declaração de Estocolmo, de 1972, e os Princípios nº 02 e 13 da Declaração do Rio, de 1992, reconheceram a factibilidade da ocorrência de danos ambientais transfronteiriços, o que serviu também como suporte para a criação de tratados internacionais, específicos, de proteção às dimensões bilaterais, regionais e globais da atmosfera. Em relação à específica proteção contra os efeitos negativos da mudança climática, a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, de 1992, teve como objetivo final “[...] alcançar [...] a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na 187 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional atmosfera num nível que impeça uma interferência antrópica perigosa no sistema climático.” (MAZZUOLI, 2013, p. 1166). Em 1992, o Capítulo 9 da Agenda 21 apresentou, ao modo de recomendação, quatro áreas de programas, em relação à proteção da atmosfera: consideração das incertezas: aperfeiçoamento da base científica para a tomada de decisões; promoção do desenvolvimento sustentável; prevenção da destruição do ozônio estratosférico; poluição atmosférica transfronteiriça (ONU, 1992). Para o aperfeiçoamento da base científica para a tomada de decisões a respeito da proteção da atmosfera, a Agenda 21 recomendou, sobretudo, que os Governos, “[...] com a cooperação dos organismos competentes das Nações Unidas e das organizações intergovernamentais e não-governamentais, conforme apropriado, juntamente com o setor privado [...]” (ONU, 1992), promovessem pesquisas, cooperação e capacitação científica para a compreensão dos processos que afetam a atmosfera e os efeitos desta afetação nos ecossistemas, na saúde humana, em setores econômicos e na sociedade; para a detecção e identificação de poluentes atmosféricos; dos padrões de mudanças no clima e prevenção destas mudanças e das flutuações atmosféricas, bem como para avaliar os impactos ambientais e socioeconômicos decorrentes destas alterações e oscilações na atmosfera (ONU, 1992). Em relação à promoção do desenvolvimento sustentável em busca da proteção da atmosfera, a Agenda 21 especialmente recomenda, em síntese, que: “Todas as fontes de energia deverão ser usadas de maneira a respeitar a atmosfera, a saúde humana e o meio ambiente como um todo.” (ONU, 1992). A respeito da prevenção da destruição do ozônio estratosférico, a Agenda 21 recomenda, em resumo, que os Governos ratifiquem os tratados internacionais sobre proteção da camada de ozônio, além de buscarem reduzir e substituir o uso do CFC (compostos clorofluorcarbonados) e outras substâncias que também destroem a referida camada atmosférica (ONU, 1992). E sobre a poluição atmosférica transfronteiriça, a Agenda 21 recomendou, em síntese, que os Governos fortaleçam os acordos internacionais regionais para o controle deste tipo de poluição, além de cooperarem principalmente com os países em desenvolvimento para 188 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional que estes possam adquirir o auxílio científico e tecnológico necessário para o controle da poluição atmosférica transfronteiriça (ONU, 1992); também deverão os Governos: [...] Estabelecer ou fortalecer sistemas de pronto alerta e mecanismos de reação à poluição atmosférica transfronteiriça decorrente de acidentes industriais e desastres naturais e da destruição deliberada e/ou acidental dos recursos naturais; (c) Facilitar as oportunidades de treinamento e o intercâmbio de dados, informações e experiências nacionais e/ou regionais; (d) Cooperar em bases regionais, multilaterais e bilaterais para avaliar a poluição atmosférica transfronteiriça, e elaborar e implementar programas que identifiquem ações específicas para reduzir as emissões atmosféricas e fazer frente a seus efeitos ambientais, econômicos, sociais e outros. (ONU, 1992). Importante ressaltar o disposto no item 9.2 do Capítulo 9 da Agenda 21: 9.2. Reconhece-se que muitas das questões discutidas neste capítulo também são objeto de acordos internacionais como a Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio, de 1985; o Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio, de 1987, em sua forma emendada; a Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima, de 1992; e outros instrumentos internacionais, inclusive regionais. No caso das atividades cobertas por tais acordos, fica entendido que as recomendações contidas neste capítulo não obrigam qualquer Governo a tomar medidas que superem o disposto naqueles instrumentos legais. Não obstante, no que diz respeito a este capítulo, os Governos estão livres para aplicar medidas adicionais compatíveis com aqueles instrumentos legais. (ONU, 1992). No ano de 2000, a Carta da Terra elencou, no Princípio da Justiça Econômica e Social, a garantia do direito ao ar puro, dentre outras, como elemento para a erradicão da pobreza, esta vista como um imperativo ético, social e ambiental (EARTH CHARTER COMMISSION, 2000). No que diz respeito às fontes consuetudinárias do direito internacional, a doutrina costuma citar, mais especificamente para a temática da poluição atmosférica transfronteiriça, o princípio de que nenhum Estado tem o direito de usar ou permitir o uso de seu território (KISS; SHELTON, 2004, p. 562) de tal maneira que venha a causar danos ao território de outro Estado (SOARES, 2001, p. 215), norma costumeira internacional reconhecida na decisão arbitral final do caso Trail (KISS; SHELTON, 2004, p. 558). 189 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Assim sendo, após a proposta da sistematização de uma teoria geral da proteção atmosférica, passaremos a análise da poluição atmosférica transfronteiriça, dimensão de proteção para a qual delimitamos nosso estudo. 3 A POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA ALÉM DAS FRONTEIRAS Consoante já referido acima, os poluentes do ar podem viajar por longas distâncias em consequência da ação dos ventos e da baixa densidade da atmosfera comparada, por exemplo, com os sistemas hídricos (KISS; SHELTON, 2004, p. 555). Desta maneira, a poluição do ar, por repercutir além dos limites territoriais da fonte poluidora, atraiu a atenção da sociedade internacional proporcionando a criação de um corpo específico de normas internacionais ambientais. Bacias atmosféricas não obedecem às fronteiras políticas, por isto a preocupação internacional no tocante à poluição designada de transfronteiriça (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 505). Tal espécie de poluição enquadra-se na tipificação de impacto ambiental transfronteiriço, de acordo com conceito previsto na Convenção sobre Avaliação de Impacto Ambiental num Contexto Transfronteiriço, de 1991 (SOARES, 2001, p. 214): [...] ‘impacto transfronteiriço’ significa qualquer impacto, não exclusivamente de natureza global, dentro de uma área sob a jurisdição de uma Parte, causado por uma atividade controlada, cuja origem física se encontra situada totalmente ou em parte dentro da área sob a jurisdição de outra Parte. (SOARES, 2001, p. 215). Em continuidade, conforme esclarece Guido Soares: [...] a poluição transfronteiriça supõe a ação do homem, ao introduzir elementos prejudiciais (substâncias ou energias, como sons, ruídos, calor, radiações ionizantes ou não ionizantes, como luminosidade excessiva) aos bens protegidos pelo Direito Internacional do Meio Ambiente: a saúde humana, os recursos biológicos ou os sistemas ecológicos (ou seja, as relações entre os seres vivos e seu ecossistema), os lugares belos ou 190 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional horrendos (mas que constituem atrativos ao homem) e, ainda, [...] “outras utilizações legítimas do meio ambiente”. (SOARES, 2001, p. 215). Destacam-se entre os principais poluentes transfronteiriços da atmosfera as partículas em suspensão, os óxidos de nitrogênio, o dióxido de enxofre, os compostos orgânicos voláteis e os poluentes orgânicos persistentes (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 506/507). 3.1 Classificação da poluição atmosférica transfronteiriça De acordo com a dimensão do dano ambiental, a poluição transfronteiriça atmosférica pode ser de curta ou de longa distância, conforme atinja, respectivamente, ambientes localizados próximos ou distantes de fronteiras internacionais, mas sempre a envolver mais de um Estado além daquele onde se localiza a fonte poluidora, incentivando a produção, por uma escolha política internacional, de decisões arbitrais internacionais bilaterais e ou tratados bilaterais com o propósito de se evitar ou solucionar o problema de curto alcance; ou, no caso da poluição atmosférica de longo alcance, incentivando a produção de tratados multilaterais regionais com o objetivo de se evitar ou solucionar o problema sob uma perspectiva geográfica mais extensa de proteção (SANDS, 2007, p. 323). A poluição transfronteiriça de curta distância é considerada precursora do próprio Direito Internacional Ambiental e teve como leading case a sentença arbitral final, de 11-31941, sobre o caso da Fundição Trail, nascendo, desde então, interesses internacionais para combater uma poluição que desrespeita fronteiras jurídico-políticas entre Estados (SOARES, 2001, p. 211). Muitas disputas internacionais importantes envolveram o tema da poluição transfronteiriça (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 505). Além de aludida sentença arbitral, na dimensão bilateral da poluição atmosférica transfronteiriça de curta distância destaca-se o tratado bilateral denominado Acordo sobre Qualidade do Ar entre os Estados Unidos da América e Canadá (KISS; SHELTON, 2004, p. 572). Os tratados bilaterais, segundo Valerio Mazzuoli (2011, p. 69), são “[...] aqueles celebrados apenas entre duas partes contratantes, ou entre vencedores e vencidos.” Por conseguinte, tal espécie de tratado, não olvidando a relevância de decisões arbitrais internacionais, como no caso supracitado da Fundição Trail e que será mais a frente pormenorizado, foi utilizada para tratar da poluição transfronteiriça que circunscreve apenas o 191 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional meio ambiente entre dois países vizinhos e cuja fonte poluidora é mais facilmente identificável (HUNTER; SALMAN; ZAELKE, 2011a, p. 505). A respeito da poluição atmosférica de longa distância, o problema da deposição ácida, especialmente a chuva ácida, a ser adiante explanada, tem sido o foco dos tratados multilaterais sobre poluição transfronteiriça de longo alcance, apesar do tema também envolver Estados vizinhos, mas com o diferencial de ser dano a ultrapassar sobremaneira as regiões de fronteiras das partes afetadas, atingindo grandes extensões territoriais e gerando enorme dificuldade de identificação individual das fontes ou grupos de fontes emissoras dos poluentes (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 344). Vislumbrando tais infortúnios de maior amplitude do que a poluição de curta distância, alguns Estados se uniram para criar uma convenção que pudesse abranger inúmeras partes, ao modo de tratado multilateral, por interesse comum considerando a ocorrência de danos que ultrapassavam o aspecto geográfico de países meramente fronteiriços (GURUSWAMY, 2012, p. 502), atingindo bacias atmosféricas que permeiam vários Estados, fenômeno denominado de poluição atmosférica transfronteiriça de longo alcance ou de longa distância. Nos anos de 1970, os impactos causados pelos poluentes de longo alcance ganharam mais destaque no cenário internacional, especialmente diante do problema da deposição ácida causada pelas chuvas, neves e poeiras poluídas por emissões de dióxido de enxofre e óxidos de nitrogênio, o que propiciou a criação, na Europa, de um tratado multilateral regional denominado de Convenção de Genebra sobre Poluentes do ar Transfronteiriços de Longo Alcance, de 1979 (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 505). Os tratados multilaterais “[...] são os tratados celebrados por mais de duas partes, ou seja, entre três ou mais partes, com base nas suas estipulações recíprocas.” (MAZZUOLI, 2011, p. 70). De antemão destaca-se que o referido tratado multilateral não apenas foi ratificado por Estados europeus, mas posteriormente os Estados Unidos da América e o Canadá também aderiram ao instrumento (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 526). Em atinência à poluição atmosférica transfronteiriça de longa distância, seu conceito jurídico pode ser extraído da definição inserida no enunciado da alínea “b” do artigo 1º da Convenção sobre Poluentes do ar Transfronteiriços de Longo Alcance HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011b, p. 74), a qual emprega a terminologia poluição do ar em vez de poluição atmosférica, o que não impede a proteção deste sistema em nível regional, tendo 192 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional em vista o objetivo do tratado como um todo. Talvez por isto Guido Soares preferiu, na tradução, utilizar a expressão poluição atmosférica: A expressão “poluição atmosférica transfronteiriça de longa distância” designa a poluição atmosférica cuja fonte física se situa total ou parcialmente numa zona submetida à jurisdição nacional de um Estado e que produz efeitos danosos numa zona submetida à jurisdição de outro Estado, numa distância tal que geralmente não é possível distinguir as contribuições de fontes individuais ou de grupos de fontes de emissão. (SOARES, 2011, p. 214). Eis uma das diferenças entre a poluição transfronteiriça de curta distância para a poluição transfronteiriça de longo alcance, conforme o direito internacional: naquela mais facilmente se identifica a fonte poluidora, já na de longa distância, tendo em vista a extensão da poluição pelas bacias atmosféricas, há maior dificuldade de identificação da fonte ou grupo de fontes poluidoras responsáveis (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 505). 4 AS PRINCIPAIS FONTES INTERNACIONAIS ATMOSFÉRICA TRANSFRONTEIRIÇA SOBRE POLUIÇÃO Partindo-se, como premissa, do art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, destacam-se, no âmbito da poluição atmosférica transfronteiriça, três tipos de fontes formais do Direito Internacional do Meio Ambiente: o costume internacional, a jurisprudência internacional e os tratados internacionais bilaterais e regionais (MAZZUOLI, 2012, p. 998). O costume internacional já foi externado no tópico sobre fundamentos principiológicos sobre a proteção contra a poluição atmosférica, desenvolvido acima, já que, particularmente no tocante às normas costumeiras internacionais, a decisão arbitral no caso Trail, a ser abaixo esmiuçada, é exemplo do reconhecimento do direito consuetudinário como fonte do direito internacional do meio ambiente. Os tratados internacionais sobre poluição atmosférica transfronteiriça são divididos em bilaterais ou regionais, conforme a dimensão da poluição atmosférica enfatizada, qual seja, de curto ou de longo alcance, sendo que os regionais encampam o típico sistema das convenções-protocolo, compondo-se de uma convenção-quadro, contendo princípios gerais, além de protocolos e anexos para que estes possam conferir suplementos específicos à concretização dos preceitos genéricos contidos na mencionada convenção (GURUSWAMY, 2012, p. 8). 193 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Abaixo serão inicialmente analisados, em sequência, casos célebres em importância internacional para a formação de um sistema de proteção das bacias atmosféricas, em âmbito bilateral e regional, e que despontam como veementes fontes materiais do direito internacional do meio ambiente e, no caso da Fundição de Trail, como parte da jurisprudência internacional sobre poluição atmosférica transfronteiriça, além do já mencionado reconhecimento de norma costumeira internacional por tribunal arbitral. 4.1 A arbitragem internacional, de 1941, sobre o caso da Fundição Trail O caso a ser analisado é considerado o primeiro e mais famoso julgamento ambiental internacional (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 509) produzido por um tribunal arbitral anunciando o dever de todos os Estados em não causar ou permitir que se cause poluição transfronteiriça a outros Estados (KISS; SHELTON, 2004, p. 558). Em 1896 uma fundição de zinco e chumbo (KISS; SHELTON, 2004, p. 558) foi instalada em Trail, Columbia Britânica, no Canadá, tendo sido posteriormente adquirida, em 1906, pela companhia denominada Consolidado de Mineração e Fundição do Canadá (VARGAS; CASTAÑEDA, 2010, p. 160), localizada apenas a algumas dezenas de quilômetros da fronteira com os Estados Unidos (KISS; SHELTON, 2004, p. 558). Esta companhia fez com que a referida fundição se tornasse uma das maiores e mais bem equipadas de todo o continente americano, mas as consequências ambientais de tal empreendimento acabaram por ultrapassar a referida fronteira, atingindo o território estadunidense (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011, p. 509). Tal poluição transfronteiriça passou a ocorrer com maior intensidade após 1925 e 1927, quando a citada companhia instalou duas chaminés na fundição com mais de cento e vinte e quatro metros de altura, aumentando a produção e, consequentemente, a emissão de poluentes na atmosfera (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, p. 509). Em 1930 a fundição chegou ao ponto de exalar, diariamente, cerca de seiscentas a setecentas toneladas de dióxido de enxofre no ar (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 509). Nuvens poluentes da citada fundição passaram a ultrapassar a fronteira territorial entre os dois países (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 509), vindo a causar danos às culturas, pastagens, árvores e à agricultura nos Estados Unidos, principalmente a produtores de maçã do Estado de Washington (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 509). Os prejuízos causados propiciaram a submissão do assunto à Comissão Internacional Mista dos EUA-Canadá, criada pelo Tratado bilateral de Águas Transfronteiriças de 1909, entre os mesmos países (SANDS, 2007, p. 318). A citada Comissão iniciou seus trabalhos em sete de agosto de 1928 (VARGAS; CASTAÑEDA, 2010, p. 160) e em fevereiro de 1931 apresentou relatório que, por unanimidade de seus membros, quantificou os prejuízos sofridos pelos Estados Unidos da América, até janeiro de 1932, no valor de trezentos e cinquenta mil dólares (SANDS, 2007, p. 194 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 318). A Comissão também apresentou recomendações em relação à prevenção de danos após janeiro de 1932, além do uso de equipamentos para reduzir futuras emissões de dióxido de enxofre (SANDS, 2007, p. 318). Ocorre que, em fevereiro de 1933 os EUA apresentaram outra queixa à Comissão denunciando a ocorrência de novos danos ambientais (SANDS, 2007, p. 318). Por conseguinte, em abril de 1935 os dois países assinaram um tratado no qual o Canadá se comprometeria a pagar aos Estados Unidos a quantia apurada pela Comissão Mista (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 510), além de submeter a disputa envolvendo os danos posteriores a janeiro de 1932 perante um tribunal arbitral composto de três árbitros assistidos por dois cientistas designados, respectivamente, pelos países signatários (SANDS, 2007, p. 318). A principal questão que deveria ser resolvida pelo tribunal era a de estabelecer se a fundição canadense havia ou não causado danos a partir de janeiro de 1932 ao território dos Estados Unidos da América e, em caso de ser afirmativa, estabelecer uma quantia para a reparação a este último, assim como determinar as medidas e o regime que a fundição deveria adotar para evitar a ocorrência de futuros prejuízos (VARGAS; CASTAÑEDA, 2010, p. 160161). O tribunal arbitral apresentou sua decisão final aos governos dos países litigantes em onze de março de 1941 (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 512), apontando que estavam provados os danos causados pela fundição e determinou que esta implantasse medidas de controle ambiental para as suas operações com o objetivo de evitar novos danos, o que custou à Companhia, na época, cerca de vinte milhões de dólares em gastos com medidas preventivas (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 514/515). A doutrina costuma enfatizar que a fundamentação mais importante extraída da sentença arbitral do caso Trail foi a conclusão explanada pelos árbitros de que, sob os princípios do direito internacional, nenhum Estado tem o direito de usar ou permitir o uso de seu território de tal maneira que venha a causar danos por emissão de gases dentro ou para o território de outros Estados, ou às propriedades de pessoas nestes localizadas, quando o caso for de graves consequências e o dano puder ser demonstrado por evidências claras e convincentes (SANDS, 2007, p. 318). Em vista disto, a sentença do tribunal arbitral que julgou o caso da Fundição Trail é frequentemente citada para sustentar a tese de que princípios gerais de direito internacional impõem obrigações aos Estados para prevenir a ocorrência de poluição transfronteiriça (SANDS, 2007, p. 318). A decisão, destarte, foi um marco para o próprio direito internacional do meio ambiente, sendo um importante precedente para o desenvolvimento do princípio da soberania territorial limitada, essencial para a determinação da proteção ambiental transfronteiriça (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 4). Infelizmente a fundição canadense continua a causar sérios prejuízos ambientais. Em 1995 a fundição Trail estava inserida na lista dos maiores poluidores da Columbia Britânica e outra preocupação passou a ser destacada: a emissão de chumbo na atmosfera acima dos limites legais, a qual foi relacionada com as altas concentrações de chumbo no sangue testado de crianças que moravam em Trail ou nos seus arredores (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 195 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 2011a, p. 515). Apesar dos esforços da fundição para reduzir as emissões tóxicas, a concentração de chumbo no sangue das crianças da região continua alta e outros impactos são apontados como decorrentes de sua conduta poluente, tais como permanente perda de níveis de QI e contaminação nos solos, lagos, rios e poluição sonora (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 515), propiciando a criação, em Trail, de um comitê de saúde e meio ambiente para acompanhar o problema (THE TRAIL HEALTH & ENVIRONMENT PROGRAM, 1999). 4.2 A acidificação dos lagos da Escandinávia e os incêndios nas florestas da Indonésia Mais de oitenta por cento dos lagos europeus se localizam na bela Península da Escandinávia e são todos de origem glacial (JORGENSEN, 1997, p. 23). As águas da grande maioria destes lagos têm baixa dureza, o que implica em pouca capacidade de tamponamento do pH e, portanto, maior suscetibilidade de acidificação por poluentes atmosféricos acidificantes, tais como o dióxido de enxofre e o óxidos de nitrogênio, que contaminam corpos d’água por meio de precipitação em chuvas (JORGENSEN, 1997, p. 23). A combinação destes poluentes com a água presente na atmosfera produz ácido sulfúrico e ácido nítrico que atingem o meio ambiente ao chegarem à superfície terrestre na forma do fenômeno denominado deposição ácida, cuja forma mais comumente conhecida é a chuva ácida (POLLOCK, 2005, p. 17). A deposição ácida causada por chuvas poluídas é formada principalmente pela emissão de dióxido de enxofre através da queima de combustíveis fósseis em usinas termelétricas e da fumaça exalada pelas chaminés de fundições de metais, além da emissão de óxidos de nitrogênio oriunda de outras atividades industriais e de veículos automotores (GURUSWAMY, 2012, p. 497). Apesar das chuvas ácidas também terem origem em emissões naturais de gases ácidos, noventa por cento ou mais das emissões poluentes acidificantes da região do hemisfério norte são de fontes antropogênicas (JORGENSEN, 1993, p. 11). As chuvas ácidas provocadas por atividades humanas que vêm degradando a composição química dos lagos escandinavos são procedentes, principalmente, da poluição atmosférica advinda de outros países localizados nas áreas mais industrializadas da Europa, tais como Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo, Alemanha e Inglaterra, especialmente na região sul desta última, alcançando os ares da Escandinávia devido a direção dominante dos ventos europeus ser proveniente do sudoeste (JORGENSEN, 1997, p. 23). A acidificação antropogênica em análise acarreta, nos lagos afetados, maior concentração de gás carbônico na água, intoxicando peixes, além de afetar o ciclo natural biológico do fitoplâncton e zooplâncton, essenciais para a cadeia alimentar aquática, que decai com a acidificação do pH, elevando também o aumento da presença de íons de metais pesados por serem liberados em maior quantidade em virtude do decréscimo do pH, causando graves danos à biodiversidade lacustre (JORGENSEN, 1997, p. 24). 196 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Nos anos de 1970 os problemas causados à Escandinávia pelas chuvas ácidas estavam no centro das discussões ambientais envolvendo a poluição atmosférica transfronteiriça (KISS; SHELTON, 2004, p. 558). A ligação apontada por cientistas suecos entre as emissões de enxofre na atmosfera pela Inglaterra e Alemanha e a chuva ácida na Escandinávia foi um grande impulso para a Conferência de Estocolmo em 1972 e, mais tarde, em 1979, para a criação da Convenção de Genebra sobre Poluição Atmosférica Transfronteiriça de Longa Distância (BODANSKY, 2011, p. 19), denominada, por alguns especialistas, de “Convenção sobre as Chuvas Ácidas” (LYSTER; BRADBOOK, 2006, p. 41). Outra fatuística ambiental emblemática no cenário internacional ocorreu nos anos de 1997 e 1998 e trata-se dos incêndios das florestas da Indonésia causados por desflorestamentos através da prática da queimada agravados pela gravidade do período de seca desencadeado por uma das mais severas ocorrências do fenômeno El Niño já registrada (GLOVER; JESSUP, 2006, p. 13). As florestas do sudeste da Ásia se desenvolvem sobre depósitos de solo turfoso que podem atingir mais de doze metros de profundidade, o que agrava os riscos de incêndios já que a turfa, quando seca, é inflamável e torna difícil o controle das queimadas (RICKLEFS, 2010, p. 506). Os incêndios do final da década de noventa foram propalados, predominantemente, por queimadas para o plantio de Palma cultivada com o intuito de extração de óleo utilizado na culinária, em cosméticos e em biodiesel para veículos automotores (MILLER JR; SPOOLMAN, 2009, p. 94). Tais incêndios produziram extensas neblinas de fumaça que poluíram não só a atmosfera que permeiava o território da Indonésia, mas atingiram a Malásia, Mianmar, Singapura e Tailândia (KISS; SHELTON, 2004, p. 571), acarretando sérios problemas à saúde da população humana destes Estados, além de destruição de propriedades, mortes de seres humanos causadas pelo fogo e graves impactos na biodiversidade da fauna e flora indonésias (LEVINE et. al., 1999, p. 10-11). Em resposta ao problema, a Associação das Nações Asiáticas do Sudeste adotou um plano de ação regional seguido, em 2002, pelo Acordo Internacional sobre Neblinas Poluentes Transfronteiriças (KISS; SHELTON, 2004, p. 571). O acordo definiu as neblinas poluentes como fumaças resultantes de incêndios florestais ou de outras áreas terrestres que causem efeitos deletérios de tal natureza que venham a por em perigo a saúde humana; a prejudicar recursos biológicos, ecossistemas e propriedade material; e a prejudicar ou interferir nos usos recreativos do meio ambiente ou outros usos legítimos (KISS; SHELTON, 2004, p. 571). O referido acordo internacional foi assinado em dez de junho de 2002, pelos dez Estados que compõem a Associação das Nações Asiáticas do Sudeste e, conforme o artigo 29 do acordo, este entraria em vigor internacional a partir do sexagésimo dia após a sexta ratificação por um dos Estados partes, sendo que para os demais Estados remanescentes, entraria em vigor internacional somente após o sexagésimo dia da ratificação por cada um deles (ASEAN AGREEMENT ON TRANSBOUNDARY HAZE POLLUTION, 2002). O aludido acordo internacional entrou em vigor em 23 de novembro de 2003, após a ratificação dos seis primeiros países membros, nomeadamente: Brunei Darussalam, Malásia, 197 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Mianmar, Cingapura, Tailândia e Vietnã (ASEAN ANNUAL REPORT 2003-2004, Chapter 04). Para se ter noção da importância deste instrumento internacional, o acordo é o primeiro tratado da Associação das Nações Asiáticas do Sudeste, juridicamente vinculativo, a entrar em vigor, tendo sido considerado pelas Nações Unidas como um modelo global a tratar de questões transfronteiriças (ASEAN ANNUAL REPORT 2003-2004, Chapter 04). O acordo visa mitigar os efeitos nocivos das neblinas poluentes transfronteiriças através da cooperação regional e internacional para a implantação de medidas de precaução e prevenção com o intuito de evitar os incêndios, bem como intensificar as medidas de contenção destes quando de sua ocorrência, e, para tanto, criou um órgão auxiliar denominado Centro de Coordenação sobre Neblinas Poluentes Transfronteiriças da Associação das Nações Asiáticas do Sudeste (KISS; SHELTON, 2004, p. 571). 4.3 O Tratado sobre Qualidade do Ar entre Canadá e Estados Unidos da América, de 1991 Na América do Norte as maiores ocorrências de deposição ácida por poluição atmosférica antropogênica concentram-se nos Estados Unidos da América e Canadá, sendo historicamente antiga a ocorrência de danos transfronteiriços por poluição do ar entre estes dois países e ainda vigente em pleno século XXI (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 521). A disputa a envolver os citados Estados provém desde os anos de 1930, mas não se refere apenas aos efeitos causados pela emissão de fumaça tóxica pela Fundição Trail, pois o problema que passou a ter maior ênfase e que gerou a necessidade da criação de um tratado bilateral entre os dois países foi a problemática da deposição ácida transfronteiriça de origem antropogênica, causada pela emissão de dióxido de enxofre e óxidos de nitrogênio na atmosfera (SANDS, 2007, p. 339-340). Após o estudo do caso da Fundição Trail, poderia se presumir que o Canadá é o maior poluidor atmosférico transfronteiriço da região, mas ao contrário, não há país no mundo que receba tamanha proporção de deposição ácida transfronteiriça tal qual o Canadá recebe dos Estados Unidos da América, já que pelo menos cinquenta por cento da deposição ácida que atinge aquele país é proveniente do território estadunidense (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 521). Contudo, o impacto transfronteiriço causado pelo Canadá aos Estados Unidos da América também é significativo, já que vinte por cento da deposição ácida que afeta este último Estado é proveniente do território canadense (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 521). No decurso dos danos ambientais causados pela poluição atmosférica transfronteiriça entre os dois Estados, após mais de uma década de negociações mais intensas e proveitosas, 198 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional precedida de um período de insucesso negocial entre os anos de 1970 até início dos anos de 1980 quando os Estados Unidos apenas se predispuseram a estudar mais o problema (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 521), os países finalmente assinaram, em 13 de março de 1991, um Tratado sobre Qualidade do Ar cujo tema principal envolveu a degradação ambiental pelas chuvas ácidas causadas por impactos ambientais de origem humana (GURUSWAMY, 2012, p. 509). A poluição atmosférica que desencadeia a deposição ácida não se circunscreve à geografia meramente atinente às proximidades de fronteiras, pois é transportada a distâncias muito maiores, além de gerar difícil possibilidade de identificação individual da fonte ou grupo de fontes poluentes, sendo apenas identificável o Estado emissor. Portanto, o tratado bilateral em análise foi instituído com o propósito de controlar a poluição atmosférica transfronteiriça de longo alcance entre os dois países, especialmente pela limitação das emissões de dióxido de enxofre e óxidos de nitrogênio através da criação de metas de redução destes poluentes, acompanhadas por um sistema de monitoramento da qualidade do ar (SANDS, 2007, p. 339-340). Importante ressaltar, por serem as grandes precursoras do sucesso no alcance da negociação entre os dois países, a elaboração e aprovação das emendas de 1990 à Lei do Ar Puro dos Estados Unidos da América, legislação federal estadunidense cujas emendas referidas determinaram várias restrições para a obtenção da redução de poluentes do ar, principalmente os responsáveis pela chuva ácida, o que retirou as dificuldades para a criação de um tratado sobre poluição transfronteiriça entre os dois países, já que as reduções previstas neste instrumento internacional entraram em consonância com o prévio compromisso normativo interno estadunidense (BODANSKY, 2011, p. 11). Ambas as partes, no transcurso progressivo das metas do Tratado, conseguiram reduzir significativamente a emissão dos poluentes desencadeadores das chuvas ácidas desde 1991, sendo que, a exemplo de resultados apresentados em 2009, a emissão de dióxido de enxofre pelos Estados Unidos da América decaiu em mais de 52% em comparação com os índices de 1991 e, de outro lado, também ocorreu redução em mais de 55% na emissão de óxidos de nitrogênio em contraste com os níveis de 1991, índices de redução similarmente atingidos também pelo Canadá (BYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 154). Em 2010, a Comissão Internacional Mista dos EUA-Canadá apresentou relatório a respeito do Tratado sobre Qualidade do Ar entre os dois países e constatou que os índices de redução continuam significativos, pois em 2008 o Canadá conseguiu reduzir em mais de 63% a emissão anual de dióxido de enxofre em comparação aos níveis de 1980 e os Estados Unidos, em 2010, conseguiram reduzir a emissão anual do citado poluente, emanado de termoelétricas, abaixo do limite de oito milhões e noventa e cinco mil toneladas por ano estabelecido pelo Tratado (GURUSWAMY, 2012, p. 511-512). 199 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 4.4 A Convenção de Genebra sobre Poluentes do Ar Transfronteiriços de longo alcance, de 1979, e seus protocolos Consoante já explanado, uma das dimensões do problema da poluição atmosférica envolve os danos ambientais causados por emissões poluentes de longo alcance, muito além das áreas geográficas entre fronteiras e, por isto, apresentando grande dificuldade de individualização das fontes poluidoras, sendo apenas possível apurar, por exemplo, em estimativas, o percentual anual de produção total dos poluentes de longo alcance emitidos pelo território de determinado Estado (SANDS, 2007, p. 325-326). Desde os anos de 1970 o monitoramente europeu das concentrações de dióxido de enxofre e óxidos de nitrogênio, principais responsáveis pelo fenômeno da deposição ácida antropogênica, vem ocorrendo, o que possibilitou a obtenção de estimativas a respeito da emissão de tais poluentes para a maioria dos Estados europeus, indicando, inclusive, quais destes Estados são os potenciais importadores ou exportadores de poluentes atmosféricos transfronteiriços de longo alcance (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 525). Por conseguinte, a necessidade de um tratamento internacional regional ao problema, evidentemente, surgiu em decorrência da enorme quantidade de Estados europeus a compartilhar a mesma bacia atmosférica, sujeitando-os, destarte, a maior incidência de danos causados pelos poluentes de longo alcance disseminados nos ares da Europa (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 525). Nessa vereda, percebendo-se a importância do tratamento jurídico internacional sobre a poluição atmosférica de longa distância, especialmente os prejuízos decorrentes das chuvas ácidas, e enfatizando-se o Princípio 21 da Declaração de Estocolmo de 1972, além do capítulo sobre meio ambiente do Ato Final da Conferência de Segurança e Cooperação Europeia, de 1975, foi criada a Convenção de Genebra sobre Poluentes do Ar Transfronteiriços de longo alcance (SANDS, 2007, p. 324-325), em 13 de novembro de 1979, entrando em vigor internacional em dezesseis de março de 1983 (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 149). Esta Convenção tem como partes não só Estados europeus, mas também os Estados Unidos da América e o Canadá (GURUSWAMY, 2012, p. 502). A Convenção de Genebra detém natureza de convenção-quadro ou moldura (MAZZUOLI, 2012, p. 998) e tem como propósito a prevenção, redução e controle da poluição atmosférica transfronteiriça de longo alcance oriunda de fontes poluentes novas ou já existentes dos Estados signatários, mas não contendo previsão de responsabilidade jurídica por danos decorrentes de tal poluição (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 344). Apesar da natureza de convenção-quadro, englobando padrões de conduta mais genéricos e com pouca força em termos de eficácia jurídica, destaca-se o importante papel desse tratado para a coordenação e cooperação científica entre as partes, bem como a institucionalização da prática de constantes consultas e trocas de informações entre os 200 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional membros e, talvez o mais importante, a criação de um programa de cooperação para o monitoramento e avaliação dos poluentes atmosféricas de longo alcance na Europa (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 526). Ademais, a Convenção foi a base para a elaboração de protocolos que permitiram, enfim, a obtenção de maior eficácia e desenvolvimento das diretrizes gerais do tratado (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 344). A essência da Convenção de Genebra em termos de objetivos foi estabelecer compromissos gerais aos Estados partes para, na medida do possível, reduzirem gradualmente e prevenirem a poluição da atmosfera, apesar de não ter estabelecido estimativas ou prazos para tais metas (SANDS, 2007, p. 325). Outro fator relevante que não pode ser ignorado são as definições constantes da Convenção, as quais foram importantes para a obtenção de consensos internacionais sobre temas como “poluição do ar” e “poluição transfronteiriça de longo alcance”, além de servirem de ponto de partida para os protocolos à Convenção de Genebra (SANDS, 2007, p. 325). Segundo Birnie, Boyle e Redgwell, a Convenção de Genebra seria o único tratado multilateral regional dedicado a regular e controlar a poluição transfronteiriça (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 344). No entanto, não se deve esquecer que, mais precisamente, não há a exclusividade apontada, pois, de acordo com o já acima mencionado, em 2002 a Associação das Nações Asiáticas do Sudeste adotou o Acordo Internacional sobre Neblinas Poluentes Transfronteiriças (KISS; SHELTON, 2004, p. 571), o qual, apesar de tratar especificamente da prevenção e solução de danos provenientes de neblinas tóxicas causadas por queimadas, não deixa de ser um instrumento regional de grande importância no tratamento do tema. Aspectos significativos que merecem ser destacados são não apenas o fato da Convenção de 1979 ter sido a primeira a tratar especificamente da poluição atmosférica transfronteiriça de longo alcance, mas também o fato de ter sido o primeiro tratado sobre meio ambiente assinado conjuntamente pelo Leste e Oeste, o que, segundo alguns autores, auxiliou na redução das tensões da Guerra Fria na Europa (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 526). Por fim, apesar do tratado não exprimir nenhum compromisso mais específico e cronológico para a gestão da qualidade do ar, as partes signatárias se comprometeram, sob a necessária cooperação internacional entre ambas especialmente gerenciada por um órgão executivo (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 150), em desenvolver as melhores políticas e estratégias para a concretização dos compromissos gerais assumidos, incluindo, para tanto, o uso da melhor tecnologia disponível e economicamente factível existente (SANDS, 2007, p. 326), de acordo com o disposto nos artigos 2 a 5 da Convenção (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 150). Considerando a generalidade temática da Convenção de Genebra ao modo de moldura, sua eficaz implementação foi reforçada por Protocolos específicos, sequencialmente 201 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional produzidos a partir de 1984 (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 150) e com prazos e estimativas a serem atingidas, totalizando oito até o corrente ano de 2012. O primeiro protocolo, designado Protocolo de Genebra sobre Financiamento de Longo Prazo para o Programa de Cooperação para Monitoramento e Avaliação da Emissão de Poluentes Atmosféricos de Longo Alcance na Europa, de 28 de setembro de 1984 e em vigor desde 28 de janeiro de 1988, fornece condições para o financiamento dos custos de tais monitoramentos e avaliações, consistindo em contribuições financeiras obrigatórias dos signatários, suplementadas por contribuições financeiras voluntárias (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 150). O segundo protocolo, nominado Protocolo de Helsinque sobre Redução da Emissão de Enxofre ou de seus Fluxos Transfronteiriços em Pelo Menos Trinta Por Cento, de 8 de julho de 1985 e em vigor desde 2 de setembro de 1987, determinou que as partes aderentes deste Protocolo deveriam reduzir suas emissões anuais de enxofre em pelo menos trinta por cento, o mais rapidamente possível e até o final de 1993, usando como base, para o cálculo das reduções, os níveis de 1980 (SANDS, 2007, p. 327). O terceiro protocolo, denominado Protocolo de Sofia Concernente ao Controle de Emissões de Óxidos de Nitrogênio ou de seus Fluxos Transfronteiriços, de 31 de outubro de 1988 e em vigor desde 14 de fevereiro de 1991, cuidou de problema mais difícil de se resolver, pois a principal fonte antropogênica de óxidos de nitrogênio é o tráfego motorizado (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 150). Por isto, o Protocolo de Sofia estabeleceu um esquema de redução de emissões mais flexível do que o Protocolo de Helsinque, circunstância claramente perceptível presente em seu artigo segundo, item um, o qual prescreve que os Estados signatários do novo instrumento deverão, o mais breve possível e como uma primeira etapa, tomar medidas efetivas de controle e ou redução de suas emissões nacionais anuais de óxidos nitrosos, ou de seus fluxos transfronteiriços, aos níveis de emissão de 1987, metas a serem atingidas até pelo menos 31 de dezembro de 1994 (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 150). O quarto protocolo, produzido em 18 de novembro de 1991 e em vigor desde 29 de setembro de 1997, designado Protocolo de Genebra sobre o Controle de Emissões de Compostos Orgânicos Voláteis ou seus Fluxos Transfronteiriços, estabeleceu três opções de redução destes compostos conforme critérios estipulados no próprio Protocolo, tendo como meta preponderante a redução de, pelo menos, em trinta por cento a emissão desses poluentes até 1999 (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 150). Em 1994 foi produzido o Protocolo de Oslo sobre Futuras Reduções das Emissões de Enxofre, o qual entrou em vigor em 05 de agosto de 1998 (SANDS, 2007, p. 332). O aludido Protocolo, diferentemente do Protocolo de Helsinque, explicitamente enfatiza, de maneira inovadora, a precaução em relação a redução e limitação da poluição atmosférica por enxofre (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 151). 202 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional O sexto protocolo, produzido em 24 de junho de 1998 e em vigor desde 29 de dezembro de 2003, nomeado Protocolo de Aarhus sobre Metais Pesados, foi criado com o objetivo de obter, pelos Estados signatários, a redução de emissões anuais de três metais pesados particularmente nocivos, quais sejam: chumbo, cádmio e mercúrio emitidos na atmosfera por fontes industriais e processos de combustão e incineração de resíduos (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 152). Também em 24 de junho de 1998 foi produzido o Protocolo de Aarhus sobre Poluentes Orgânicos Persistentes, em vigor internacional desde 21 de outubro de 2003, cujo objeto é a eliminação, restrição e redução das emissões destes poluentes específicos, os quais foram elencados em uma lista de dezesseis substâncias tóxicas, a exemplo de pesticidas, contaminantes e produtos químicos industriais (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 152-153). Por fim, o último Protocolo até o momento produzido foi o Protocolo de Gotemburgo sobre a Eliminação da Acidificação, Eutrofização e do Ozônio Troposférico, de 30 de novembro de 1999 e em vigor internacional desde 17 de maio de 2005, o qual tem como objetivo o controle e redução da emissão de enxofre, óxidos de nitrogênio, amônia e compostos orgânicos voláteis (GURUSWAMY, 2012, p. 508-509) por atividades antropogênicas, sendo tais substâncias apontadas como causadoras de efeitos nocivos à saúde humana e aos ecossistemas naturais e cujas concentrações na atmosfera deveriam, segundo o Protocolo, não ultrapassar, até o ano de 2010, certos níveis críticos específicos e, pela primeira vez dentre todos os Protocolos, exigiu dos fazendeiros que tomassem medidas de controle em relação à exalação de amônia na atmosfera (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 153). Este último Protocolo é extremamente importante, principalmente por três razões: primeiramente, é o único Protocolo do regime da Convenção de Genebra sobre Poluentes do Ar Transfronteiriços de longo alcance que aborda mais de uma natureza de poluente; em segundo, por incluir padrões para a emissão de combustíveis de fontes móveis e estacionárias; e, em terceiro, por englobar as atividades agrícolas ao inserir determinações ao setor para o controle da emissão de amônia (GURUSWAMY, 2012, p. 509). CONSIDERAÇÕES FINAIS O meio ambiente, sob o ângulo do direito internacional público, é percebido enquanto interconexão ecológica que permeia mais de um Estado em termos de causas, efeitos e relações que estão além de interesses e aspectos meramente locais ou nacionais. A proteção da atmosfera ingressa neste aspecto e inicia a complexa e ardorosa discussão internacional sobre a necessidade, dever e responsabilidade quanto à redução de emissões poluentes enquanto interesse de nações vizinhas, próximas e, por fim, de todo o planeta. 203 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Despontou deste modo, no cenário internacional, a identificação de certa forma de poluição do ar que perpassa fronteiras territoriais, merecendo, assim, tratamento diferenciado e específico a fim de solucionar ou mitigar efeitos que ultrapassam do âmbito nacional de origem da fonte poluidora: a poluição atmosférica transfronteiriça. A poluição atmosférica enfocada, não adentrando nos pormenores da dimensão global a envolver a degradação da camada de ozônio e a mudança climática decorrentes de ações antropogênicas, foi dividida, neste trabalho, em duas dimensões de análise: a poluição atmosférica transfronteiriça de curto alcance a poluição atmosférica transfronteiriça de longo alcance, sendo que preferiu-se abordar a proteção da atmosférica de forma multidimensional, não optando pela exclusividade da natureza jurídica da atmosfera, já que esta transpõe não só barreiras jurídico-territoriais, mas faz parte também dos espaços locais e regionais. Priorizando a conexão do tema com o direito internacional público, fez-se a opção de apresentar casos representativos e simbólicos sobre a proteção da atmosfera na esfera internacional e, em sequência, foram comentados os principais aspectos do Tratado sobre Qualidade do Ar entre Canadá e Estados Unidos da América, de 1991 e da Convenção de Genebra sobre Poluentes do Ar Transfronteiriços de longo alcance, de 1979, e seus protocolos, revelando a intrincada estrutura e organização do direito internacional do meio ambiente na proteção das bacias atmosféricas, tanto bilateralmente quanto em instrumentos multilaterais regionais. As bacias atmosféricas da troposfera, vistas como dimensões de uma estrutura global, são mais sensivelmente e rapidamente afetadas pelas ações antropogênicas, o que as diferem da dimensão planetária da atmosfera como um todo, cujos efeitos deletérios à humanidade, em certas circunstâncias, agregam dezenas de anos de acúmulo de poluentes para ocorrem, mas, não obstante, as consequências desveladas são muito piores, a exemplo do aquecimento global e da destruição da camada de ozônio. A compreensão do sistema de proteção transfronteiriça da atmosfera indica o avanço evolutivo da percepção humana sobre a temática e, também, externa a viabilidade da utilização de restrições do consumo de energia poluente e da emissão de resíduos tóxicos, apesar do interesse econômico de desenvolvimento ainda ser, muitas vezes, contraditoriamente importuno perante os prejuízos a serem suportados pelos que mais poluem. REFERÊNCIAS ASEAN AGREEMENT ON TRANSBOUNDARY HAZE POLLUTION. 2002. 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Considerando a rapidez com que se desenvolvem tecnologias e formas de extração e utilização dos recursos ambientais, e ainda, diante da fragilidade e da urgência do direito ambiental, tornou-se imprescindível uma releitura e a construção de uma nova forma (sustentável) de pensar sobre a efetiva proteção ao meio ambiente. Assim, imerso em uma nova concepção, e envolto no dever da cooperação entre os Estados, o presente artigo propõe uma análise à proteção da biodiversidade e as suas especificidades à luz de um diálogo global, e assim, tanto por meio de medidas proibitivas, cogentes, como de medidas flexíveis e sem qualquer vinculação jurídica, uma vez que o dever de cooperar e visar o bem comum se concretizaria com a comunicabilidade e complementariedade entre as normas em busca da proteção e preservação do meio ambiente, do desenvolvimento sustentável e da equidade intergeracional rumo a um direito comum da humanidade. PALAVRAS-CHAVE. Proteção internacional; Biodiversidade; Dever de cooperação; Diálogo Global; Soft Law; Hard Law; Direito comum da humanidade. ABSTRACT. Considering how quickly develop technologies and forms of extraction and use of environmental resources, and yet, given the fragility and urgency of environmental law, became indispensable rereading and construction of a new form (sustainable) to think about effective protection of the environment. So immersed in a new design, and wrapped the duty of cooperation among States, this article proposes an analysis of the protection of biodiversity and its specifics in light of a global dialogue, and so, both by prohibitive measures, cogent as flexible measures and without any legal binding, since the duty to cooperate and seek the common good would be accomplished with the communicability and complementarity between the rules in pursuit of protection and preservation of the environment, sustainable development and intergenerational equity towards a common right of humanity. KEY-WORDS. International protection; Biodiversity; Duty to cooperate; Global Dialogue; Hard Law; Soft Law; Common humanity. 1 Luize Calvi Menegassi Castro. Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Candido Mendes (UCAM), Mestranda em Direito Agroambiental pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso (UFMT), Professora da Universidade de Cuiabá (UNIC), Advogada. 207 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional INTRODUÇÃO Depreende-se desde a idade média, a implementação de regras com o fito de “proteção ambiental para assegurar a caça ou as águas”,2 entretanto, tão somente em meados do século passado, diante das reiteradas agressões e lesões aos direitos humanos, bem como das suas consequências, vislumbrou-se ser imprescindível uma análise global e integrada das dificuldades enfrentadas pela sociedade acerca das necessidades de consumo frente ao crescimento da população, em detrimento dos recursos naturais. A partir de então, e por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, concebeu-se a ideia de “indivisibilidade dos direitos humanos”,3 ou seja, a necessidade da interpretação integrada dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, como forma de análise e formulação de rascunho de soluções oriundas de um panorama mais globalizado, para as dificuldades enfrentadas pela sociedade. “Ideia esta que foi reafirmada pela Resolução 32/130 de 1977 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas”.4 Com a construção de um panorama macro para a apreciação e entendimento da problemática no que se referia aos desrespeitos e maus tratos aos direitos humanos mais básicos, restou assente que a adoção de medidas dentro de determinada fronteira não seriam capazes de solucionar e elucidar as dificuldades que insistiam em desafiá-las. Assim, quando a sociedade se voltou para a “gravidade das consequências que estavam enfrentando e as que ainda estariam por enfrentar”,5 oriundas do desrespeito quando da utilização dos recursos da biodiversidade, a constatação não foi diferente, isso porque a situação posta se mostrava límpida: a adoção de medidas pelos países dentro de suas fronteiras não seriam suficientes para a solução das querelas ambientais. Tal constatação revelava-se premente e incontroversa, vez que as “consequências das lesões ambientais ignoram as fronteiras das jurisdições Estatais”,6 não se tratando mais de problema regionalizado, mas sim de toda a humanidade, oportunidade em que se iniciou um novo ciclo, um novo momento, e, para a sua completa compreensão é imperioso o entendimento do princípio da cooperação globalizada de toda a sociedade. 2 BEURIER, Jean-Pierre; KISS, Alexandre. Droit international de l’environnement. Paris: Pedone, 2006. p.5 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. p. 41. 4 Ibid., p. 42. 5 FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.p.68-70. 6 BIRNIE, Patricia; BOYLE, Alan; REDGWELL, Catherine. International Law & the environment. 3.ed. New York: Oxford University Press, 2009.p.104-105. 3 208 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Assim, houve a ruptura de vários paradigmas tidos até então como suficientes para a proteção do meio ambiente, nascendo a ideia da necessária cooperação dos Estados, da transnacionalidade, centrada, pois, na consciência da necessidade de uma governança de riscos, onde todos os “Estados possuem obrigações”,7 para a completa proteção dos interesses comuns da humanidade. A partir do momento que foi possível verificar a necessidade da ruptura dos antigos hábitos no que se refere à maneira de utilização dos recursos naturais e a urgente necessidade no cuidado com a biodiversidade, isto é, fauna, flora, e florestas, “como forma de preservar a vida das próximas gerações”,8 desenhou-se no ordenamento internacional uma lógica que “privilegia a cooperação entre os Estados”,9 de modo que todos os entes direta ou indiretamente revelam-se detentores de obrigações. Naturalmente, diante dessa nova concepção de cooperação como forma de diálogo entre os Estados, percebeu-se que para a regulamentação e normatização dos tratados internacionais mostravam-se imprescindíveis longos debates e especialmente maturidade dos Estados no que se refere aos direitos internos para a formulação e contratação de obrigações. De outra banda, o direito ambiental clama por medidas emergenciais, considerando a rapidez com que se desenvolvem tecnologias e formas de extração e utilização dos recursos ambientais, dentre eles, especialmente a biodiversidade, assim, “tão somente a confecção de tratados formais, com a assunção de obrigações e previsão de penalidades ante o seu descumprimento, não se mostravam instrumentos suficientes para a preservação e conservação do meio ambiente”.10 Toda essa problemática, refletiu diretamente quando se verificou que o direito internacional e aqui, especialmente na seara ambiental, prescindia de técnicas mais flexíveis, menos rígidas, que através de técnica normativa diferenciada fosse possível, imbuídos do propósito de cooperação para a preservação ambiental, os Estados pactuassem medidas sem exigibilidade jurídica internacional, mas que possibilitassem o avanço e enfrentamento dos temas mais delicados para a comunidade internacional. 7 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. p. 41. 7 Ibid., p. 41-50. 8 Ibid., p. 45-50. 9 SOARES, Guido Fernando Silva. Dez anos após Rio-92: o cenário internacional, ao tempo da cúpula mundial sobre desenvolvimento sustentável (Joanesburgo, 2002). In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; IRIGARAY, Carlos Teodoro José Hugueney (orgs.) Novas Perspectivas do Direito Ambiental Brasileiro: Visões Interdisciplinares. Cuiabá: Carlini & Caniato: Cathedral Publicações.2009. p.31. 10 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001.p.35-37. 209 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional É nesse sentido, que se pretende analisar os instrumentos postos que visam a proteção internacional da biodiversidade. O presente estudo não tem o escopo de apresentar as convenções pactuadas internacionalmente de forma cronológica. Pelo contrário, a análise da cooperação e do diálogo entre os Estados se dará primeiramente através dos instrumentos de normas cogentes, juridicamente vinculantes, sejam eles destinados a proteção setorial ou global, e, após, por meio dos pactos firmados sobre o primado da soft law, rumo a um direito comum da humanidade. 1 Da Proteção internacional da biodiversidade pelos instrumentos hard law De forma preambular, o presente tópico tem o escopo de analisar a como a proteção internacional da biodiversidade se estruturou por meio dos instrumentos de intenção vinculatória, com regulamentação de obrigações específicas para aqueles que se colocavam à disposição para trabalhar pelo resguardo dos recursos naturais, de forma a preservá-los para a atual e para as futuras gerações, bem como no que se refere aos cuidados para a minimização dos impactos oriundos da atividade e desenvolvimento humano. Não se pode perder de vista, que a pactuação de instrumentos em nível internacional dotados de capacidade jurídica, força de vinculação e deveres a serem cumpridos, não se revela atividade isenta de inúmeras discussões e enfrentamentos de temas imbuídos de reservas, especialmente porque via reflexa, os seus membros pretendem a formulação de regramentos que lhes favoreçam economicamente, ou a rigor, mantenha-os em situações confortáveis. Nesta senda, na primeira parte deste tópico, abordaremos instrumentos dotados de exigibilidade jurídica, burocráticos e rigorosos, com foco determinado, setorial, e, após, os que preveem deveres vinculantes, mas se revelam de proteção global à toda biodiversidade. Senão vejamos. A comunidade internacional, após constatar as necessidades urgentes de meios de proteção da biodiversidade, organizou-se por meio de instrumentos com caráter específico, “de cunho intimamente utilitarista e direcionados à proteção de determinada espécie, seja da fauna ou da flora”.11 A intenção baseava-se na proteção aos danos emergentes que insistiam em surgir, tais como determinadas espécies em extinção, consequências dos desmatamentos, desertificação, dentre outras. 11 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001.p.393. 210 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional No universo de bens a serem tutelados a fim de garantir a sobrevivência da presente e das futuras gerações, inexistem questionamentos acerca da importância da fauna, flora e da biodiversidade, constituindo, pois, elementos insubstituíveis e fontes de vida. “Elementos estes que são componentes do patrimônio ambiental natural, e, cúmplices entre si, entrelaçados na teia da vida”.12 Vislumbrando a necessidade de pacto obrigatório, com deveres urgentes dos países da América, a Convenção para a proteção da fauna, flora e das belezas cênicas naturais dos países da América foi firmada em 1940, em Washington, sendo, pois, pioneiro instrumento com previsões que vinculavam a tomada de providências pelos países da América, sendo cunhada pela referência de “Convenção Panamericana”. No Brasil, foi promulgada pelo Decreto nº 58.054 de 23.08.1996, revestindo-se de caráter fechado, da qual somente poderão ser partes Estados Americanos. Possui como objetivo primordial a preservação no seu ambiente natural das espécies de fauna, flora indígena e aves migratórias, bem como a preservação da geologia, regiões naturais, lugares em condições primitivas, idealizando e cunhando conceitos de parques nacionais, reservas nacionais e regiões virgens, regulamentando a obrigação pioneira dos Estados criarem suas próprias reservas, locais estes que devem ser zelados de forma a proibir qualquer ação do homem no que se refere à pesca, caça, captura, excetuando situações em que se submeterão à pesquisa científica. Visando a proteção da fauna, flora e das belezas cênicas regionais, regulamenta a importação e exportação das espécies por meio da emissão de certificados, vedando o transito sem a sua presença. A intenção da vedação às ações humanas advém do consignado no Art. VIII, que preleciona que as espécies aí incluídas serão protegidas tanto quanto possível e somente as autoridades competentes do país poderão autorizar a caça, matança, captura ou coleção de exemplares de tais espécies. Sem olvidar que a proteção tão somente será concedida para estudos científicos ou quando o Estado membro entender ser importante para a manutenção da região. Outrossim, já quando da pactuação da referida convenção, o Art.VI previu a ideia de cooperação entre os Estados membros, como mecanismo de fortalecimento operacionalização dos objetivos comuns dos Estados membros, in verbis: 12 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 249. 211 e COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Art. VI: Os Governos Contratantes resolvem cooperar uns com os outros para promover os propósitos desta Convenção. Visando este fim, prestarão o auxílio necessário, que seja compatível com a sua legislação nacionais, aos homens de ciência das repúblicas americanas que se dedicam às investigações e explorações; poderão, quando as circunstâncias o justifiquem, celebrar convênio uns com os outros ou com instituições científicas das Américas que tendam a aumentar a eficácia de sua colaboração; e porão ao dispor de todas as Repúblicas, igualmente, seja por meio de sua publicação ou de qualquer outra maneira, os conhecimentos científicos obtidos por meio deste trabalho de cooperação.13 Neste ínterim, vê-se da previsão convencional o dever de colaboração no sentido de que cada Estado membro implemente legislação e concretize condutas a fim de direcionar e realizar efetiva proteção da fauna, flora e das belezas cênicas naturais da América. Almejando a proteção, a convenção panamericana, indica em documento anexo que a acompanha, as espécies sob as quais recaem os seus cuidados, sendo, pois, “neste ponto que se pauta específica crítica”,14 no sentido de inexistir na convenção artigo que autorize a alteração do anexo criado à época da pactuação, detalhe este que impede o acréscimo de novas espécies da fauna, flora e belezas cênicas, formalizando rigidez que não coaduna com a rapidez com que novas necessidades surgem nos Estados membros. Igualmente, não há no instrumento outrora firmado a constituição de secretariado, previsão de órgão executor e de fiscalização das obrigações contraídas, nem qualquer regulamentação acerca de fundo de financiamento das ações que devem ser desenvolvidas. Em minuciosa análise, constata-se que a Convenção Panamericana, enquanto instrumento de proteção regional, apesar de pioneira no aspecto de prever responsabilidades comuns entre os países da América e ainda, consignando obrigações direcionadas enquanto instrumento hard Law, pouco avançou concretamente rumo a um direito aplicado comum à toda humanidade, realizando avanço teórico, mas não perpetuando na ordem prática os seus ideais. Também de cunho regional, a Convenção europeia sobre a conservação da vida selgavem e habitats naturais nasceu eminentemente fechada, de forma que somente os países da Europa Ocidental podiam ser membros. Entretanto, após a observância das rotas das espécies, verificou-se que para alcançar os objetivos almejados, mostrava-se imprescindível que os países do norte da África e do leste europeu fossem convidados também. 13 BRASIL. Decreto-lei n 58.054, de 23 de agosto de 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D1570.htm>. Acesso em: 14 mar. 2013. 14 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p.340 212 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Neste ínterim, a Convenção foi firmada em Berna, na Suiça, em 19.09.1979 e tem como pretensão a adoção de medidas de proteção da fauna, flora selvagens, dos habitats, e ainda, impor restrições e vedações à caça dos animais. Assim, reconhecendo o papel essencial da fauna e da flora para a manutenção do equilíbrio da biodiversidade, e ainda, considerando a verificação da diminuição das espécies ante as ações humanas, pactuou-se a obrigação de proteção e cuidado dos recursos através da conservação de zonas protegidas, proibição de captura, detenção, abate, deterioração, destruição, perturbação e comercialização. A pactuação de promoção de medidas pelos Estados membros no que concerne a políticas no sentido de zelar, e promover a interdição de períodos, exploração e controle, foram todos firmados sob à égide do dever mútuo de cooperação. Assim, vislumbrou-se à época, o desejo do Conselho da Europa no sentido de cooperar para a preservação da biodiversidade, coordenando esforços rumo ao mesmo objetivo, qual seja, de proteção e preservação da fauna e flora selvagem e seus habitats. Em todo o mundo, as florestas sempre foram objeto de inúmeras discussões e questionamentos, dessa forma, imperioso se faz o presente tópico, para que os instrumentos, que em verdade se revelam regionais, sejam analisados à luz dos objetivos de cooperação e deveres mútuos, em busca da almejada proteção, concreta e eficaz capaz de salvaguardar o futuro das seguintes gerações. Os primeiros instrumentos regionais sobre florestas a serem analisados serão os Acordos Internacionais firmados até então especificamente sobre madeiras tropicais, todos, frise-se, de cunho eminentemente comercial. É uníssona a importância e a necessidade de preservação das florestas, especialmente em razão da “manutenção do ciclo hidrológico, conservação do solo, preservação contra a desertificação, diversidade biológica”,15 dentre outros. Entretanto, vislumbra-se do teor dos acordos firmados, tanto o de 1983, 1994, bem como o de 2006 a intenção da manutenção do comércio entre os países que dependem dos recursos retirados das florestas para a manutenção da atividade de exploração. Neste ínterim, o acordo firmado em 1983, em Genebra, do qual o Brasil também foi signatário, teve sua vigência prorrogada até 1994, quando foi firmado novo pacto ratificado pelo Brasil através do Decreto Legislativo de nº 68, em 4/11/1997 e devidamente promulgado pelo DEC nº 2.707, em 04/08/1998 com explícitos objetivos de cooperação na expansão e 15 Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). State of the World’s Forests 2005. Roma: Publicações oficiais da FAO, 2005. p.137. 213 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional diversificação do comércio entre os países, visando impedir a escassez dos recursos através de visão compartilhada entre os países consumidores e os fornecedores. Da análise aos acordos firmados em 1983 e 1994 percebe-se mínimo avanço no aspecto da intenção da cooperação e preservação, especialmente pela não inclusão dos outros tipos de florestas existentes em nossa biosfera, e ainda, o que se revela mais grave, “a inexistência de visão cooperada no que se refere à política de utilização sustentável entre os seus atores”.16 Acerca do acordo internacional sobre madeiras tropicais de 2006, concluído em Genebra, em 27 de janeiro de 2006, que atualmente guarda votação pelo plenário da Câmara dos Deputados através do PDC 560/2012, constata-se percentual de avanço quando prevê a inclusão social e geração de renda para os povos da floresta, uso sustentável dos recursos naturais, incentivo ao manejo florestal comunitário, entretanto, a visão compartilhada e cooperada se vê prejudicada quando o instrumento, ainda em seu preâmbulo, item b, visa a promoção do comercio internacional de madeiras das áreas tropicais provenientes de fontes geridas de forma sustentável, revelando assim, o nítido intuito de desenvolver e possibilitar ainda mais a exploração dos recursos provenientes das florestas tropicais, e tão somente de maneira indireta, a proteção dos recursos florestais. Tal como produtos acabados, os pactos internacionais sobre madeiras tropicais firmados nos anos de 1983, 1994 e 2006 estabelecem obrigações recíprocas rigorosas para os países consumidores e fornecedores, consignando metas a serem alcançadas, vinculando a exploração à execução destas, a exemplo podemos citar o desenvolvimento do manejo sustentável, utilização dos recursos para pesquisas científicas, o reflorestamento, restando assim, o límpido caráter vinculativo e de rigor que as normas hard law possuem. A dificuldade em se formular instrumento de vinculação e imposição de obrigações rígidas sobre a proteção de todos os tipos de florestas, não só as tropicais, foi identificada a partir das reuniões que antecederam a Conferência do Rio-92, quando se verificou nitidamente a inexistência de consenso sobre o comércio, oferecimento de recursos para a manutenção e formas de desenvolver o manejo sustentável. Não havendo alternativa no que se refere às obrigações a serem contraídas, tão somente foi formulado uma declaração sobre os princípios, intitulada de “Declaração de autoridades não-legalmente vinculante sobre princípios para um consenso global sobre o manejo, conservação e desenvolvimento 16 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001.p. 391. 214 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional sustentável de todos os tipos de florestas”, que será oportunamente analisado neste artigo quando do enfrentamento dos instrumentos sem exigibilidade jurídica. Contudo, parece que o objetivo de explorar por meio de atividades sustentáveis e compartilhadas, desafia ainda e muito a humanidade, a medida que o capítulo 11, B, 11.13, (a) e (b) da Agenda 21 prevê como o maior objetivo da sustentabilidade a estratégia de reconhecimento e classificação dos diversos tipos de florestas, e, por meio de um longo plano de conservação, a realização do manejo sustentável dos recursos florestais, demonstrando assim, a dificuldade que o planejamento, implantação e execução deste objetivo comum exigirá de todos os envolvidos, tarefa essa ainda a ser rascunhada e implementada por toda a humanidade. Considerando as consequências inevitáveis da utilização desenfreada da terra, situação esta que deu origem à sua degradação e a outros processos, tais como a perda ou a redução da sua produtividade, da vegetação, erosão, e queimadas dentre outras, viu-se a necessidade de pactuar objetivos internacionais no combate à desertificação, contudo, de cunho específico, por meio de instrumento com previsão direcionada aos países afetados pela seca, e em especial à África. Firmada em Paris, em 18.06.1994, sendo, pois, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo de nº 28, de 12/06/1997 e devidamente promulgada pelo Decreto de nº 2.741, em 20/08/1998, teve o início de suas discussões no final dos anos 80, e, com a consolidação da Agenda 21, mais precisamente no capítulo 33, n.13, bem como da Declaração do Rio de Janeiro sobre Ambiente e Desenvolvimento em 1992, no princípio 2º, sedimentando assim a necessidade de um instrumento voltado para a prevenção dos efeitos da seca e degradação da terra, ainda que vinculativo e de direcionamento específico e não global. Tem como objetivo primordial a implementação de políticas publicas internas capazes de prevenir, reabilitar a terra já degradada e mitigar os efeitos da seca, através de medidas de desenvolvimento das capacidades, educação e conscientização pública. Consignou previsão pioneira quando a partir do Art.6º instituiu diferentes obrigações aos países membros, distinguindo os encargos gerais, dos países afetados e dos desenvolvidos, de forma a atender às realidades fáticas daqueles que realmente necessitam de direcionamento maior de recursos, e, especialmente tecnologia. Tudo isso fundamentado na solidariedade internacional e dever de cooperação entre os países para o alcance dos objetivos firmados. Embora deixe límpida a intenção de impulsionar as propostas e a implementação dos objetivos por meio da cooperação dos países signatários, a convenção se revela de cunho 215 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional obrigatório e com caráter de vinculação às obrigações assumidas, fator esse que desencadeou outras discussões, como por exemplo, a necessidade de pactuação de normas hard law para que seja possível que os países alavanquem os investimentos e a adoção das medidas internas de educação, conscientização, prevenção, reabilitação e mitigação dos efeitos da seca, ponto este que será enfrentado a seguir. Seguindo a análise que propõe o presente estudo, no que tange aos instrumentos de proteção da biodiversidade rígidos, inflexíveis, que estabelecem obrigações com caráter de vinculação, passa-se a enfrentar os instrumentos firmados que visam proteção de cunho global, “especialmente diante da inequívoca certeza de que a dimensão espacial dos efeitos da incorreta utilização dos recursos naturais são transfronteiriços”.17 Vale registrar que a ideia de que a proteção e preservação do meio ambiente para as futuras gerações “constitui responsabilidade de todos os Estados já havia sido promulgada na Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados das Nações Unidas em 1976”,18 reforçando assim, a necessidade do enfrentamento das questões ambientais de forma global, ou seja, com regramentos de caráter geral, com previsões para todos os Estados, diante da fragilidade dos instrumentos de cunho específico. A respeito do sistema jurídico de proteção escolhido pelos Estados, vale dizer que a Convenção da Diversidade Biológica firmada durante a Eco/92 no Rio de Janeiro, ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 2 de 03.02.1994 e promulgada pelo Decreto nº2.519 de 16.03.1998, trouxe uma nova roupagem, uma vez que até então pairava sistematização que separadamente previa a proteção de determinada zona, espécies e ecossistemas. Nesta senda, a Convenção da Diversidade Biológica, pode ser indicada como parâmetro e modelo de instrumento rígido, com imposições de obrigações e de caráter global, uma vez que visa a proteção da biodiversidade como um todo, desde as suas espécies, ecossistemas, recursos genéticos, biológicos até a utilização sustentável dos recursos e a distribuição justa e igualitária dos benefícios trazidos através das pesquisas científicas, de forma a equilibrar as diferenças existentes entre os países que possuem a biodiversidade e os que detêm a tecnologia adequada para o seu desbravamento. Depreende-se dos termos da referida convenção, a nítida intenção da cooperação entre os países como forma de empreender a preservação da biodiversidade como um todo inter-relacionado, sem excetuar os diplomas que preveem medidas protecionistas específicas, 17 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. p. 46. 18 Ibid., p. 43. 216 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional mas de forma a complementar toda a estrutura da teia de proteção dos recursos naturais para as futuras gerações. Entretanto, o conjunto de princípios normativos consagrados na convenção, em que pese contenha imposição de obrigações para os seus membros, os seus prazos e conteúdos se revelam vagos, remetendo-nos a uma convenção tipo quadro – umbrella convention – “oportunizando a complementação por protocolos adicionais”.19 Assim, toda a relevância da Convenção da Diversidade Biológica se verifica justamente pela intenção de proteção e preservação da biodiversidade como um todo, integrando todos os demais instrumentos rígidos globais que visam a proteção de zonas especiais, carecedoras de atenção mais intensa, pactos esses que se passa a enfrentar, especialmente os instrumentos que de maneira rígida e setorial, primam pela preservação das zonas úmidas, espécies, ecossistemas e recursos advindos do mar. A Convenção relativa a zonas úmidas de importância internacional, nominada de Convenção de Ramsar, entrou em vigor no Brasil a partir de 16.05.1996 por meio do Decreto de nº1.905, é baseada no dever de cooperação para a transferência de informações, e, especialmente na proteção e conservação dos habitats aquáticos. Teve importância impar quando da sua pactuação em 02.02.1971, e, posteriormente quando entrou em vigor, em 1975. Especialmente porque entre os seus postulados, a Convenção de Ramsar demonstra intensa preocupação para com o ecossistema aquático, dada a relevância que essas áreas úmidas representam quando realizam a interação dos seus componentes físicos, biológicos e químicos presentes no solo, na água, nas plantas e nos animais, controlando assim as margens dos rios, lagos, protegendo das erosões, estabilizando fluxos de águas, chuvas, lençóis freáticos, “além de propiciar ambiente extremamente favorável para a reprodução e sobrevivência dos pássaros, mamíferos, répteis, anfíbios e peixes”.20 Acerca da interpretação do termo utilizado pela convenção para designar as áreas de proteção, qual seja, zonas úmidas, tem-se que compreendem as zonas úmidas de pântano, charco, turfa ou água natural ou artificial, permanente ou temporária, doce, saloba ou salgada, incluindo as áreas de água marítima com menos de seis metros de profundidade na maré baixa, e, devem ser indicadas pelos países onde se situam, para após competente apreciação e aprovação do corpo técnico designado pela estrutura da convenção, serem consideradas sítios Ramsar. 19 SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento. Direito Internacional Ambiental. 2. ed. rev., atual. Rio de Janeiro: Thex Ed., 2002.p. 133. 20 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p.343. 217 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Como premissas de trabalho, a Convenção de Ramsar elencou o uso racional das zonas úmidas como forma de empreender a proteção desejada, o dever dos países membros elencarem as zonas úmidas sob a sua soberania para que integrem a listagem oficial dos sítios protegidos, e, o dever de cooperação entre os membros, tanto no que concerne a recursos para a preservação dos ecossistemas úmidos, compartilhamento de tecnologias, informações, como também no sentido de integração e diálogo para com as outras convenções vigentes. Para a implementação das mencionadas premissas, o instrumento prevê duas formas de financiamento, quais sejam, o Fundo de Pequenas Subvenções (Small Grant Fund – SGF) e o Fundo Zonas Úmidas para o Futuro (Wetlands for the Future – WFF). Considerando toda a estrutura criada pela convenção de Ramsar, além do secretariado e do comitê permanente, foi criada em 1980, órgão de extrema importância para a criação, aprovação, desenvolvimento e acompanhamento dos projetos e políticas que visam à proteção das áreas úmidas, denominada de “Conferência das Partes Contratantes – COP, que por meio de suas reuniões a cada três anos, empreende medidas para a concreta realização dos objetivos traçados pelos seus membros. Da leitura do texto pactuado, bem como dos documentos emitidos pela COP, vislumbra-se de maneira inequívoca a intenção da preservação das zonas úmidas por meio da sua utilização sustentável, com a conscientização da população acerca dos riscos e danos que a lesão aos habitats aquáticos podem ocasionar, e em especial, a maneira como se intenciona a cooperação. Isto porque, ainda que a Convenção de Ramsar seja perceptível instrumento hard law, contendo regras sólidas de condutas e obrigações, vê-se a inequívoca ideia da solidariedade, parceria para o alcance dos objetivos. Nesse sentir, “a convenção ainda que considerada rígida, obteve sucesso, pois baseiase na cooperação e não em coerção ou penalidades previstas”,21 contando com as conferências realizadas pela COP para a criação e o desenvolvimento de medidas estratégicas que visivelmente vem influenciando as legislações internas nos países membros, trabalhando por meio de ações cooperadas entre os seus membros e dialogando com outras convenções que possuem objetivos comuns, tais como a Convenção da Diversidade Biológica (CDB), Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas (CITES), dentre outras. Conhecida como Convenção de Montego Bay, foi firmada em 10.12.1982 e adentrou no ordenamento jurídico brasileiro por meio pelo Decreto Legislativo de nº 5, de 09.11.987 e 21 FORTER , M.J., OSTERWOLDT. R. U. Survey of Existing International Agreements and Instruments: Nature Conservation and Terrestrial Living Resources, n.25, UNCED Secretariat, 1992 apud SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p.349. 218 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional promulgada pela Decreto nº 99.263 de 24.05.1990, com vistas a preservar e proteger o meio ambiente marinho, englobando a fauna, flora e ambientes, inclusive os minerais sólidos, líquidos, gasosos, seja no leito do mar ou no seu subsolo. Partindo da ideia de que os recursos marinhos também se esgotam, e detectando situações que estariam acelerando o processo de degradação, tais como, a poluição causada pelas embarcações, explorações do ambiente para extração de recursos, esgotos e outros detrimentos depositados nos mares, o Art.14 da referida convenção regulamenta tanto os espaços oceânicos, reconhecendo a inexistência de fronteiras para a extensão das lesões quando se trata do meio ambiente, idealizando ações integradas e cooperadas entre os Estados para a prevenção e controle das fontes de contaminação. Assim, definiu conceitos de mar territorial, zona contigua, plataforma continental, zona econômica exclusiva e alto mar, indexando a ideia de fundos marinhos como patrimônio comum da humanidade – res communis, identificando competência para a autoridade internacional nomeada por si para regulamentar as atividades desenvolvidas pelos Estados, sob o enfoque a preservação e manutenção do ambiente marinho. Em sua estrutura, prevê a responsabilização da pessoa física e jurídica pelos possíveis danos ocasionados ao habitat marinho, e classifica os deveres e responsabilidades de prevenção e proteção de acordo com as espécies de recursos biológicos marinhos e sua localização, “prevendo ainda, de forma pioneira, certos direitos especiais para os Estados sem litoral ou geograficamente desfavorecidos”.22 Como se vê, a Convenção de Monte Bay, ao reconhecer a importância do equilíbrio do meio ambiente marinho para a manutenção da vida humana, por meio de enfoque solidário, preceitua a conservação, a utilização sustentável e direitos aos países membros, inclusive àqueles que geograficamente se mostram em desvantagem, donde se conclui ser imprescindível a cooperação, ainda que por via reflexa, para a concretização dos seus objetivos frente ao combate aos danos e para a efetiva transferência de informações e tecnologias. Deixando de lado as previsões setoriais, e partindo para o estudo dos instrumentos de cunho cogente, e agora especialmente aos que visam proteção global, especialmente pela rapidez, urgência e interligação da atividade do homem para com os efeitos produzidos, passa-se ao estudo dos instrumentos com indexação de obrigações e direitos de proteção universal relativos à fauna e flora. 22 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 409. 219 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A preocupação com a preservação da fauna e flora selvagem há muito já se revelava tópico das discussões nas convenções mundiais, a exemplo o parágrafo quarto da Declaração de Estocolmo datada de 1972 preceituou que: O homem tem a responsabilidade especial de preservar e administrar judiciosamente o patrimônio representado pela flora e fauna silvestres, bem assim o seu habitat, que se encontram atualmente em grave perigo, por uma combinação de fatores adversos.23 Foi nesse contexto em que a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Extinção, denominado de CITES, foi firmada na Cidade de Washinton, em 03.03.1973, e posteriormente alterada em 22.06.1979 e 30.04.1983, desenhando nova roupagem normativa para o enfoque da proteção da fauna e flora silvestre que se encontravam em grave ameaça pelas atividades degradantes desenvolvidas pelo homem, em especial, pelo comércio da biodiversidade silvestre. Assim, no Brasil, a CITES foi promulgada pelo Decreto de nº 76.623 em 17.11.1975 e suas emendas respectivamente pelos Decretos de nº 92.446/86 em 1983 e nº 133/91 em 1989, “e regulamenta a exportação e importação das espécies silvestres, promovendo, via reflexa”24 a desejada preservação da fauna e flora silvestre, uma vez que impõe a necessidade de emissão de certificados e licenças pelos órgãos oficiais dos países membros para a movimentação internacional, e por meio de iniciativa inovadora, regulamenta e nivela as espécies ameaçadas através de anexos, contendo regras rígidas, regulares, e, listagem das espécies que merecem maior cuidado e proteção. Sua estrutura possui secretariado, comitê permanente, comitê de animais, plantas e de nomenclatura, e, conferência das partes (COP), que em reuniões bienais administra, formula e fiscaliza o cumprimento das obrigações dos países que realizam movimentação internacional de plantas e animais silvestres. Por fim, deve ser consignado que a normatização da CITES vincula juridicamente os seus membros, e da leitura atenta dos seus dispositivos, extraí-se a intenção de que os seus membros cumpram os regramentos consubstanciados no dever de cooperação, uma vez que as penalidades para o inadimplemento cingem-se basicamente na retirada de privilégios, pressões diplomáticas, sanções unilaterais e comerciais. 23 SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento. Direito Internacional Ambiental. 2. ed. rev., atual. Rio de Janeiro: Thex Ed., 2002. p.117. 24 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 350. 220 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 2 A proteção internacional da biodiversidade e suas especificidades destinada a um direito comum pelos instrumentos soft Law. Extraí-se da história da humanidade, que após a Declaração Universal dos Direito Humanos em 1948, as discussões acerca da necessidade de confecção e implementação de medidas capazes de alterar o curso da degradação ambiental, evitando o aumento dos desastres e consequências que estavam sendo suportadas por todos, aumentaram de tal maneira que restou sedimentada a ideia de que não só a permanência, mas a continuidade da vida é de inteira responsabilidade do homem. Foi constatada de maneira uníssona a inexistência de barreiras físicas entre os Estados, ainda que o homem as tenha pavimentado de forma irreal e simbólica, as consequências das atividades humanas degradantes realizadas em uma determinada localização, inequivocadamente transferiam, e ainda transferem, a todos os outros Estados, vizinhos ou não, a obrigação de suportar os seus ônus. Nesse contexto, “se observa dos instrumentos firmados à época uma lógica que privilegia a cooperação em detrimento do conflito entre os Estados”.25 Ou seja, a busca pelo equilíbrio entre os conceitos de preservação e desenvolvimento, tendo como fatores chave a sustentabilidade, uso racional dos recursos ambientais, por meio da conscientização e cooperação dos Estados. Assim, primando pelo fundamento da sustentabilidade como norte para o alcance do equilíbrio e preservação do meio ambiente para a presente e futuras gerações, não se pode ignorar que a pactuação de regramentos visando a proteção da biodiversidade por instrumentos de natureza cogente, com vinculação jurídica e providos de sanções significativas, sempre se mostrou técnica normativa perfeitamente apta a atender ao fim a que se destinam as normas internacionais ambientais. Desta forma, diante de pontuais discordâncias para a pactuação de normas rígidas para a proteção que se deseja as normas não tradicionais, sem postura de vinculação avançam, e possuem duas especiais qualidades, a saber: “fixam metas para as futuras ações políticas nas relações internacionais e recomendam a adequação das normas internas às regras contidas em caráter flexível”.26 25 NASSER, Salem Hikmat. Direito Internacional do meio ambiente, direito transformado, jus cogens e soft Law. In: _________; REI, Fernando (organizadores). Direito internacional do meio ambiente: Ensaios em homenagem ao prof. Guido Fernando Silva Soares. São Paulo: Atlas, 2006. p. 21. 26 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p.92. 221 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Assim, para a exata compreensão da estrutura normativa posta nos dias atuais que tutelam a biodiversidade, revela ser imprescindível o estudo dos instrumentos, que mesmo sem força cogente, são capazes de estabelecer e propiciar condições para a evolução e amadurecimento dos instrumentos até a sua concreta edificação por meio de normas rígidas e vinculantes. O que nas palavras de Pierre-Marie Dupuy “constitui um verdadeiro fator de realização de progresso culminando na convergência de que toda a atmosfera da terra faz parte do patrimônio comum da humanidade”.27 Entre os dias 5 e 16 de junho de 1972, na cidade de Estocolmo, Suécia, como conclusão dos seus trabalhos, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano promulgou, entre outros documentos, a Declaração de Estocolmo, “documento este que revelou a tomada de consciência da humanidade sobre os grandes problemas que deveriam ser enfrentados”.28 Não se valendo de normas de caráter vinculante, e partindo da premissa de que o “meio ambiente não é matéria reservada ao domínio exclusivo da legislação interna dos Estados, mas sim dever de toda a comunidade internacional”,29 a Declaração de Estocolmo lançou conceitos de primeira ordem para o cenário mundial, tais como, bem comum da humanidade, responsabilidade na defesa e administração da biodiversidade, utilização racional dos recursos naturais, educação ambiental, dentre outros. Nesta senda, a Declaração de 1972, previu obrigações e consolidou a responsabilidade solidária entre todos os Estados membros, no sentido de esforços, recursos e tecnologias, entretanto, o distanciamento da teoria para com a concretização das metas, culminou na necessidade de um estudo detido e focado, com o fito de detectar as barreiras existentes no caminho traçado, bem como as soluções para um novo ciclo de intenções. Amplamente consubstanciada em postulados principiológicos sem qualquer força de vinculação, a Declaração de Estocolmo representou para o cenário mundial à sua época grande marco para uma nova leitura do direito ambiental, que até então, não fazia parte das discussões internacionais. Assim, partindo de ideais comuns à todos os povos, por meio da cooperação de investimentos financeiros, tecnológicos, científicos, informacionais, e ciente das 27 DUPUY, Pierre Marie. Soft Law and the International Law on the Environment. In: Michigan Journal of International Law. vol. 12. n. 2. Michigan: University of Michigan Law School, 1991. p. 425/427. 28 SOARES, Guido Fernando Silva. O cenário internacional, ao tempo da cúpula mundial sobre desenvolvimento sustentável (Joanesburgo, 2002). In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; IRIGARAY, Carlos Teodoro José Hugueney (orgs.).Direito ambiental brasileiro: visões interdisciplinares. Cuiabá: Carlini & Caniato: Cathedral Publicações, 2009. p.16. 29 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos Humanos e meio ambiente: Um diálogo entre os sistemas internacionais de proteção. In: _________; IRIGARAY, Carlos Teodoro José Hugueney (orgs.). op.cit. p. 70. 222 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional responsabilidades, a Declaração de Estocolmo visou alcançar o direito comum do homem. Já no seu preâmbulo, precisamente no item 2, dispõe ser ponto fundamental a proteção e o melhoramento do meio ambiente humano, já que afeta o bem-estar dos povos e o desenvolvimento econômico da humanidade, constituindo, pois, desejo e dever de todos os governos. Contudo, para o alcance dos objetivos firmados, especialmente o reconhecimento dos problemas ambientais, o dever de preservação dos recursos da biodiversidade, adoção de medidas visando a diminuição da poluição dos recursos marinhos, utilização e compartilhamento das informações e tecnologias para a proteção do meio ambiente, e ainda, o dever de educação ambiental, a Declaração de Estocolmo anunciou a obrigação que paira sobre todos os Estados, qual seja, de cooperar, em pé de igualdade, para então controlar, evitar, reduzir e eliminar eficazmente os efeitos prejudiciais que as atividades que se realizem em qualquer esfera, mediante acordos multilaterais ou bilaterais, ou por outros meios apropriados, respeitados a soberania e os interesses de todos os estados. Assim, depreende-se das obrigações impostas aos Estados, o caráter de solidariedade, de forma que todos são responsáveis diretamente e indiretamente pelo cumprimento das metas estabelecidas, sedimentando obrigações comuns a toda a humanidade para o alcance da preservação do meio ambiente. Passados mais de dez anos da Declaração de Estocolmo, a comunidade internacional, diante dos avanços do desenvolvimento mundial desregrado, que só aumentavam ainda mais as tensões entre o homem e a natureza, reacendeu as necessidades de novas pactuações para reafirmar os postulados, bem como para idealizar um novo modelo de ação global. Diante das novas necessidades, “a Assembleia Geral da ONU requereu perante a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento estudo que propusesse uma agenda global para mudança”,30 analisando as causas da ineficiência das medidas adotadas e grupo de estratégias a serem criadas, ocasião em que a Presidente da referida comissão, Sra. Gro Harlen Brundtland liderou a confecção do documento, “sintetizando com maestria os grandes problemas ambientais à época existentes, apresentando minucioso repertório de estratégias para os seus enfrentamentos”.31 30 COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso futuro comum, 2.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, p. XI. 31 SOARES, Guido Fernando Silva. O cenário internacional, ao tempo da cúpula mundial sobre desenvolvimento sustentável (Joanesburgo, 2002). In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; IRIGARAY, Carlos Teodoro José Hugueney (orgs.). Direito ambiental brasileiro: visões interdisciplinares. Cuiabá: Carlini & Caniato: Cathedral Publicações, 2009. p.23. 223 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Em síntese, o Relatório de Brundtland, intitulado de “Nosso Futuro Comum”, após três anos de observação, classificou em três grandes grupos os problemas ambientais, quais sejam, “a poluição ambiental, a utilização inadequada dos recursos naturais e as questões sociais relacionadas aos problemas ambientais, tais como uso da terra, ocupação, abrigo, dentre outros”.32 Não há dúvidas em afirmar que todo o estudo realizado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento foi essencial para a preparação da Conferência de 1992, na cidade do Rio de Janeiro, especialmente quando afirmou que “a humanidade é capaz de tomar o desenvolvimento sustentável de garantir que ele atenda as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras atenderem também às suas”,33 formulando, portanto, o conceito do desenvolvimento sustentável. Conceito este que foi difundido em toda a comunidade internacional, se posicionando como fundamento para o chamamento da cúpula mundial para a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, onde seriam discutidos os meios de interação do desenvolvimento e da preservação dos recursos naturais. Assim, a pauta da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como a ECO-92, que ocorreu entre os dias 3 a 14 de junho de 1992, na cidade do Rio de Janeiro e as discussões partiram dos problemas detectados e rumaram para as maneiras de se desenvolver as atividades humanas de forma sustentável. O contexto em que a proteção às florestas entrou na pauta da ECO-92, não foi, nem de longe, o mais favorável. Isto porque, a comunidade internacional ainda amargava recente fracasso das negociações para o novo Acordo sobre Madeiras Tropicais, tendo, pois, a sua vigência estendida até 1994 e a partir de então, sedimentava-se a ideia de constituir, por meio de consenso entre os países, convenção que sacramentasse, em definitivo, a proteção à essas zonas de fundamental importância para a humanidade. As florestas, enquanto arcabouço da biodiversidade, já possuíam proteção, via reflexa, por meio das outras Convenções com previsões específicas de zelo para com a fauna e a flora. Contudo, “considerando que florestas são vivas e constituem sistemas de suporte à vida de outras partes da biosfera, interagindo com o clima, particularmente os climas locais, e 32 SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento. Direito Internacional Ambiental. 2. ed. rev., atual. Rio de Janeiro: Thex Ed., 2002. p. 35. 33 COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso futuro comum, 2.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, p. 9. 224 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional ajudando a direcionar a circulação dos ventos”,34 prescindiam, no entendimento de diversos Estados, de proteção própria, abarcando também as mediterrâneas, temperadas, boreais, dentre outras. A intenção à época era a pactuação durante a ECO-92 de competente pacto “convencionando regramentos internacionais para todos os tipos de florestas, e não somente direcionado às tropicais”.35 A base sob a qual Declaração de Princípios sobre as Florestas se fundamenta é a que todos os Estados membros, sejam desenvolvidos ou não, devem empreender esforços no sentido de implementar medidas de recuperação das florestas, por meio da atividade de manejo sustentável e o reflorescimento, contudo, não preve deveres e vontades expressas. Ainda que de cunho soft law, as nações detentoras de florestas lograram êxito ao prever a compensação direta e indireta para a manutenção das referidas áreas, especialmente em razão dos custos desta preservação em detrimento do desenvolvimento do setor econômico, prevendo assim, compensação através do envio de recursos para a manutenção de programas de conservação, bem como para os outros setores da economia. Empreendendo ações visando a elaboração e a condução de acordos que “respeitem os interesses de todos e protejam a integridade do sistema global de meio ambiente e desenvolvimento”,36 a ECO-92, também denominada de Cúpula da Terra, emanou após a conclusão dos seus trabalhos, documento compreendendo 27 (vinte e sete) princípios, postulados estes condutores de toda a convenção e ideais a serem alcançados pela humanidade, nominado de Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Já em seu segundo princípio, a declaração explicita o direito dos Estados em explorarem os seus próprios recursos segundo suas próprias políticas de meio ambiente e desenvolvimento, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob a sua jurisdição ou controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados. Consignou de modo singular, dentre os seus postulados, que para o alcance do desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental deve ser parte integrante do processo de desenvolvimento dos Estados, não podendo, em hipótese alguma, ser considerada de forma isolada, prevendo ainda no corpo do seu texto, deveres de cooperação para a conservação, 34 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p.250. 35 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p.392. 36 Preâmbulo da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1992. 225 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional proteção, restauração da saúde e integridade do meio ambiente, prevenção de danos, redução da pobreza, participação social nas questões ambientais, desenvolvimento de legislação relativa à responsabilização, dever de precaução de acordo com as capacidades dos Estados, reconhecimento dos povos indígenas e suas comunidades, dentre outros. Dos princípios elencados na referida Declaração, vê-se a intenção de cooperação entre os Estados em um espírito de parceria global, e imbuídos de boa-fé para o desenvolvimento progressivo do direito internacional no campo do desenvolvimento sustentável. Partindo da abstração da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, e visando realmente concretizar os ideais lançados pela Declaração de Estocolmo e vastamente discutidos à luz da sustentabilidade, a Agenda 21 sobreveio com a intenção de passar exatamente do conceito à prática, disciplinando todas as ações que devem ser empreendidas pelos Estados. Desta feita, a Agenda 21 “é documento de natureza programática, uma verdadeira e auspiciosa posição consensual”,37 constituindo, pois, em um programa global de políticas de desenvolvimento e planejamento ambiental, compreendendo diretrizes para o desenvolvimento econômico-social e suas dimensões, “conservação e administração de recursos para o desenvolvimento, papel dos novos atores e formas de implementação dos projetos”.38 Em acurada análise, as prioridades elencadas pela Agenda 21 foram o crescimento de maneira sustentável, combate a pobreza, medidas para que o mundo de amanhã seja habitável sob a ótica da poluição do ar, água e outros recursos, gerenciamento das florestas, ecossistemas, biodiversidade, resíduos químicos, nucleares, concretização de sistema de financiamento flexível por meio de cooperação global, tanto para a obtenção dos recursos como para a implementação dos objetivos primordiais firmados. Diante de inúmeras diretrizes a serem implementadas, pode-se constatar dos anos que se seguiram, o avanço do crescimento econômico e a evidente dificuldade encontrada pelos Estados em colocar em prática por meio de políticas publicas o que outrora haviam convencionado nos instrumentos, ainda que inexistente qualquer vinculação jurídica. Assim, foi sob um clima de difícil consenso, e, por meio de longas discussões que a Cúpula Mundial 37 MILARÉ, Édis. Agenda 21 a cartilha do desenvolvimento sustentável. In: ___________; MACHADO, Paulo Affonso Leme (orgs). Direito Ambiental: direito ambiental internacional e temas atuais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p.114. 38 Ibid., p.114. 226 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional sobre Desenvolvimento Sustentável se reuniu de 26.08.2002 a 04.09.2002, na cidade de Joannesburgo, na África do Sul. Passados 20 (vinte) anos da Declaração de Estocolmo, e diante do inequívoco crescimento da economia mundial, culminando em inúmeros retrocessos e dificuldades para viabilizar o progresso na proteção ambiental via cooperação entre os Estados, notou-se o aumento das preocupações diante das constatações de escassez de água, degradação dos solos, aumento do desmatamento, erosões, condições precárias de saúde, higiene, moradia, revelando, pois, a dificuldade em praticar os planos alinhavados anos atrás. Desta feita, ainda que os avanços em Joannesburgo não tenham ocorrido a contento, a renovação dos compromissos outrora pactuados, bem como a realização de plano detalhado de ação, revelam importância impar no contexto em que o mundo estava vivendo, especialmente pela considerável mudança de foco de alguns países, ainda assustados com a barbárie cometida em 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos da América. No entanto, ainda que sem evolução de cunho notório, o que levou as organizações não governamentais, bem como alguns atores do cenário mundial indicarem relativo retrocesso. Entretanto, não se pode deixar de considerar que no lapso temporal entre a realização da ECO-92 e a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio+10, diversas negociações foram levadas adiante e algumas inclusive se consolidaram,39 a exemplo, o Acordo relativo à Implementação da Parte XI da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 10 de dezembro de 1982, adotada em Nova York, em 28 de julho de 1994; Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação Naqueles Países que Experimentam Sérias Secas e/ou Desertificação, Particularmente na África, na sede da Unesco, com abertura para assinaturas em 17 de julho de 1994; Protocolo de Quioto à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, em Quioto, em 10 de dezembro de 1997; Protocolo de Cartagena sobre Bio-Segurança, à Convenção sobre Diversidade Biológica, em Montreal, em 20 de janeiro de 2000, dentre outros. A busca pela participação mais efetiva de outros atores da sociedade nas discussões e metas tais como as ONGs, a iniciativa privada, os cidadãos, foi um traço marcante, que não pode ser desconsiderado, mas não isento de pontuais questionamentos, para a consolidação do entendimento que não seria possível atingir o nível de progresso esperado sem a cooperação de outras entidades não pertencentes aos governos dos Estados. 39 SOARES, Guido Fernando Silva. O cenário internacional, ao tempo da cúpula mundial sobre desenvolvimento sustentável (Joannesburgo, 2002). In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; IRIGARAY, Carlos Teodoro José Hugueney (orgs.). Direito ambiental brasileiro: visões interdisciplinares. Cuiabá: Carlini & Caniato: Cathedral Publicações, 2009. p.32-35. 227 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Assim, a Cúpula emanou documento intitulado de Declaração Política de Joannesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável, com 37 (trinta e sete) afirmações, repactuando os compromissos, que em suma, se voltam às ações em solidariedade para a implementação do desenvolvimento sustentável do planeta terra. Dividida em quatro frentes, a Declaração Política, indica os seus principais objetivos, enquanto requisitos a serem alcançados para a implementação do desenvolvimento sustentável, como a erradicação da pobreza, mudança dos padrões de consumo, produção e a proteção e manejo da base de recursos naturais para o desenvolvimento econômico e social. Identificando elementos causadores do aumento da degradação ambiental, tais como a pobreza, a globalização, bem como as suas consequências, como a perda da biodiversidade, desertificação, alterações climáticas, poluição do ar, das águas, as lideranças reconheceram que o desenvolvimento sustentável requer uma perspectiva de longo prazo e participação ampla na formulação de políticas, tomada de decisões e concretização em todos os níveis. Merece destaque ainda, o reconhecimento constante no item 17, donde se extrai o valor da solidariedade humana e a necessidade que a Cúpula Mundial asseverou existir em envidar esforços para que fosse ela ampliada, por meio da promoção do diálogo e da cooperação entre os povos e civilizações do mundo, a despeito de raça, deficiências, religião, idioma, cultura ou tradição, emanando, assim, ondas de fortalecimento na busca contínua de um direito capaz de atingir a todos. Cientes de que a promulgação da Declaração Política não seria suficiente para concretizar os valores reafirmados, bem como as metas repactuadas, as discussões voltaramse para a confecção de um Plano de Implementação dos ideais, um verdadeiro roteiro global de ação. Dessa forma, dando atenção especial aos itens constantes da Agenda 21, e utilizandose da técnica já conhecida da soft law, o referido plano global enfrentou delicados temas e definiu estratégias de combate, especialmente acerca da erradicação da pobreza, da necessidade da implementação de saneamento básico, acesso aos serviços de energias renováveis de diferentes espécies, redução da perda da biodiversidade até 2010, dentre outras previsões. Atenção singular foi dispensada também para o incentivo ao consumo e produção sustentável, consignando a necessidade da promoção de novos padrões sustentáveis, pontuando a inequívoca distância que separa os países desenvolvidos, em processo de desenvolvimento e os que ainda não apresentam previsões de alavanque, indicando o esforço mútuo de cooperação internacional nas áreas da finança, transferência de tecnologias e 228 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional comércio, e consequente aplicação do princípio da responsabilidade comum, porém diferenciadas, como solução para o eficaz e concreto alcance das metas consignadas. Passados dez anos da ocorrência da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio+10, somando, portanto, trinta anos da Declaração de Estocolmo, em 1972, mais uma vez, os Estados se reuniram para tratar de assuntos afetos à almejada sustentabilidade. O referido encontro foi sediado pelo Brasil, na cidade do Rio de Janeiro entre os dias 13 e 22 de junho de 2012, recebendo o nome de “Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável”, mais conhecida como Rio+20. Extrai-se do texto do rascunho zero, documento apresentado como proposta para ser adotado na conferência, bem como do documento final, redigido em conjunto pelos Estados participantes, a intenção de não só, mais uma vez, reafirmar os compromissos já assumidos, mas de avançar na identificação das causas e proposição de soluções para os maus que ainda assolam a comunidade internacional, a exemplo, a pobreza. Em análise aos objetivos propostos pela comunidade internacional, verifica-se a renovação do compromisso político com o desenvolvimento sustentável, por meio da avaliação do progresso e das lacunas na implementação das decisões adotadas pelas principais cúpulas sobre o assunto, e, do tratamento de temas novos e emergentes, culminando, pois, na elaboração de documento extremamente esclarecedor, intitulado de: O futuro que queremos. Com espeque na ideia do ecodesenvolvimento outrora lançada na Rio-92, nasceu na comunidade internacional uma onda de estudos voltados à uma nova roupagem para o alcance do desenvolvimento sustentável por meio dos instrumentos verdes da economia, enquanto fatores de impulsão às metas de integração entre economia, sociedade e desenvolvimento. Assim, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) lançou em 2008 o chamado Green Economy Iniciative (GEI) com tradução: Iniciativa de uma Economia Verde, tendo como principal objetivo apoiar o desenvolvimento de um plano global de transição para uma economia limpa por meio de investimentos e consumo de bens e serviços de promoção ambiental.40 Partindo dessa premissa, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, responsável pela pasta do meio ambiente perante a ONU, desenvolveu uma definição de trabalho concluindo, que uma economia verde pode ser 40 PAVESE, Helena Boniatti. Delineamentos de uma economia verde. Net, Belo Horizonte, jun.2011. Política Ambiental Conservação Internacional. Disponível em: <http://www.conservation.org.br/publicacoes/files/politica_ambiental_08_portugues.pdf>. Acesso em 04 set.2012, 16:04:35. 229 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional pensada pela conjugação dos seguintes fatores: tecnologia de baixa emissão de carbono, uso eficiente de recursos e socialmente inclusiva.41 No entanto, foi no Relatório emanado um ano antes da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio+20, que desencadeou inúmeras discussões e novas perspectivas acerca do tema, documento este nominado de: Rumo à Economia verde: caminhos para o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza. O referido relatório prioriza a desconstrução da ideia de uma permuta inevitável entre o desenvolvimento social e a sustentabilidade ambiental, logrando êxito em defender que a implementação da economia verde não se traduz em meta ideológica com custos altos e que somente os países desenvolvidos possuem condições de arcar.42 Neste ínterim, o relatório direciona a atenção para “os projetos de baixa emissão de carbono, eficiência energética, energia renovável, promoção de empregos decentes, redução de pobreza, agenda verde e governança global”.43 Como soluções facilitadoras para o enfrentamento dos desafios que esta transição a um modelo verde de sustentabilidade impõe, o relatório emanado pela PNUMA em 2011 propõe a confecção de legislações mais rígidas, a priorização dos investimentos nos setores que primam pelo esverdeamento da economia, redução dos impostos com o fito de incentivar as novas tecnologias verdes, investimento em capacitação, treinamento e educação da população, e ainda, o fortalecimento da governança global. Todos os estudos desenvolvidos acerca do tema possuíam o condão de aquecer e fortalecer as discussões para o desenvolvimento do tema perante a Rio+20, e foi exatamente o que aconteceu. Em 14 de junho de 2012, na Conferência, foi lançada pela Parceria Pobreza e Ambiente – PEP, o Relatório Construindo uma Economia Verde Inclusiva para Todos, formulou conceito mais abrangente e com o fito de integração da economia, meio ambiente e sociedade. Em seu texto, o relatório, em suma, prioriza a criação de bases políticas fortes, incluindo reformas fiscais, investimentos públicos e privados, e uma política verde inclusiva, 41 UNEP. What is Green economy? Disponível em: <http://www.unep.org/greeneconomy/AboutGEI/WhatisGEI/tabid/29784/Default.aspx>. Acesso em 04 set.2012, 17:37:23. 42 PAVESE, Helena Boniatti. Delineamentos de uma economia verde. Net, Belo Horizonte, jun.2011. Política Ambiental Conservação Internacional. Disponível em: <http://www.conservation.org.br/publicacoes/files/politica_ambiental_08_portugues.pdf>. Acesso em 04 set.2012, 16:04:35. 43 SAWYER, Donald. Economia verde e/ou desenvolvimento sustentável? Net, Belo Horizonte, jun.2011. Política Ambiental Conservação Internacional. Disponível em: <http://www.conservation.org.br/publicacoes/files/politica_ambiental_08_portugues.pdf>. Acesso em 04 set.2012, 17:07:27. 230 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional especialmente para a classe mais pobre, como soluções para a economia, o meio ambiente social, setor ambiental e governança, visando assim, o desenvolvimento sustentável. Considerando tratar-se de documento confeccionado sem força de vinculação, concluiu sem apresentar modelo novo, limitando-se a asseverar que para acelerar a transição da gestão atual para uma economia verde inclusiva, necessita-se de inovações em todas as partes do mundo, fato este que clama por novos modelos de cooperação global entre os governos, partes interessadas, organizações locais, ONGs, setor privado, todos unindo forças e buscando novas e inovadoras formas de trabalharem juntos para a construção de uma economia verde inclusiva para todos. Dessa forma, após a realização da Rio+20, vê-se que o quadro institucional para o desenvolvimento sustentável se firmou sob a integração e equilíbrio entre a economia, social, ambiental e novo modelo de governança, bem como sob o papel dos governos e de todos os atores não governamentais nos processos de democratização das tomadas de decisões e no monitoramento das ações propostas, uma vez que se verifica inviável a análise do desenvolvimento sustentável sem precisar a dinâmica da sociedade e as desigualdades que a assolam. CONCLUSÃO: A caminho do direito comum a partir dos instrumentos hard e soft law Diante da então preocupação com a qualidade de vida e dignidade do ser humano frente ao progresso econômico e social, a lição de Cançado Trintade ensina que assim como há poucas décadas atrás houve questões que foram retiradas do domínio reservado dos Estados para se tornarem matérias de interesse internacional a exemplo, os direitos humanos e a auto-determinação dos povos, há hoje questões globais, como a mudança de clima e a diversidade biológica, que estão sendo erigidas como de interesse comum da humanidade,44 prescindindo, portanto, de instrumentos capazes de coordenar os programas criados e gerir os regramentos internacionais de proteção. E justamente neste ponto, qual seja, regular um direito comum frente ao desenvolvimento da sociedade é que se encontra o maior obstáculo da humanidade. Nascendo assim, a necessidade de uma nova dimensão do constitucionalismo e do garantismo: a longo prazo, além de global, “para além da lógica individualista dos direitos e da miopia e do estreito localismo da política das democracias nacionais”.45 44 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direito das organizações internacionais. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. P.50. 45 FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p.70. 231 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Desde os primeiros instrumentos internacionais, e inclusive durante a ECO-92, vê-se a proposta da cooperação entre os Estados como solução para a regulamentação e concretização da proteção não só dos recursos naturais, mas do futuro da humanidade. Como forma de enfrentamento às dificuldades percebidas pela comunidade internacional em proteger os bens comuns, a lição de Luigi Ferrajoli propõe o desenvolvimento em conjunto de um constitucionalismo de direito privado e de um constitucionalismo de direito internacional. O primeiro para a imposição constitucional de regras, limites, vínculos de controle pelos poderes econômicos privados, visando evitar os danos irreversíveis provocados aos bens comuns pelos exercícios dos direitos civis; e o constitucionalismo internacional, para em conjunto, estabelecer normas, limites rígidos e proteções normativas planetárias, missão esta que seria confiada a autoridades e órgãos internacionais.46 No entanto, “este desafio global de regulamentação impõe sem embargos uma política global, baseada numa cooperação mundial à qual nenhuma potência poderá subtrair-se”.47 Neste espeque, o dever de cooperação entre os Estados surge como fator imprescindível para a compreensão da mudança do paradigma, qual seja, a normatização dos interesses comuns da humanidade: fauna, flora, biodiversidade e florestas. Outrossim, após o estudo acurado dos inúmeros instrumentos sedimentados, percebese que a medida que o homem foi se compreendendo enquanto elemento integrante do sistema que, por si só interage sem qualquer pudor diante das fronteiras (inexistentes) dos Estados, os instrumentos foram deixando de ser regionais, com proteção específica, determinada, passando, pois, para uma formatação global, considerando a biodiversidade como um todo interconectado. Entretanto, essa progressão por vezes se mostra dúbia, não podendo ser entendida como certa, pois muitas vezes os instrumentos se revelam, em verdade, de projeção não linear, especialmente quando se coloca em análise o nível de cogencia havido em cada um deles. Isto porque, por vezes o enfrentamento das matérias se mostra tortuoso, fazendo com que a comunidade internacional lance mão de instrumentos flexíveis, sem vinculação jurídica, conhecidas como soft law, auxiliando e incentivando assim, a pactuação de inúmeras regulamentações. 46 FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p.71-72. 47 Ibidem., p.73. 232 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional O que se percebe é que na busca pela implementação de um direito comum, e diante da dificuldade do consenso acerca de pontuais matérias para a confecção dos tratados formais (hard Law), opta-se pelo caminho da diplomacia, da mutua cooperação no sentido de emanar declarações, recomendações de comportamentos, sem vinculação jurídica, como forma de atender a emergência dos novos temas do direito internacional ambiental. Assim, com a intenção de preservar os recursos naturais para as futuras gerações, e conceber um planeta digno de habitação, a humanidade vem se adaptando, convivendo harmoniosamente com os instrumentos de proteção de natureza cogente e flexível, seja de proteção voltada para zona especialmente protegida ou para a biodiversidade como um todo. Emana desses instrumentos a necessidade do dever de cooperação entre os Estados, para que seja possível a concreta proteção e equilíbrio do meio ambiente. Assim, o direito à proteção da fauna, flora, biodiversidade e florestas passou pelo momento da internacionalização, e, com o passar do tempo, diante da sua relevância para a sociedade global, passou a ser tratada como um direito comum da humanidade. Na verdade, o que se vê é a intenção global de conduzir a humanidade através de um dever mútuo de cooperação para a preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável. Partindo, então, de uma inequívoca multiplicidade de regulamentação, visando a proteção e o equilíbrio do meio ambiente, com regramentos vinculantes, cogentes, e principiológicos, fomentadores de bons comportamentos, vê-se que ao contrário do que se poderia supor, a proliferação de normas de soft law, que veiculam princípios, como o que foi analisado durante o presente trabalho, qual seja, a cooperação entre os Estados, não mitiga, senão expande, a capacidade de influência do Direito Internacional do Meio Ambiente, que se dá, entretanto, “sob a forma de relações jurídicas de qualidade distinta daquelas, associadas à aplicação das normas de hard Law”.48 À luz do ensinamento de Brunnée, ao admitirmos que os processos que permeiam as relações internacionais são complexos, e que a dependência de modelos compostos de hierarquização diminui ao mesmo tempo em que “se projetam os modelos de poderes horizontais, constata-se, portanto, não o fim dos processos normativos internacionais, mas na verdade, o seu início”.49 48 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. AYALA; Patryck de Araújo. Cooperação internacional para a preservação do meio ambiente: o direito brasileiro e a convenção de aarhus. IN: ___________ (org.) O novo direito internacional do meio ambiente. Curitiba: Juruá, 2011. p. 479. 49 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. AYALA, Patryck de Araújo. op. cit. apud BRUNNÉE, Jutta. The Stockholm declaration and the struture and processes of international environmental Law. In: CHIRCOP, Aldo; MCDORMAN, Ted; ROLSTON, Susan (Eds.). The future of ocean regime building: essays in tribute to Douglas M. Jonhnstons. Doordrecht: Martinus Nijhoff, 2008.p.42. 233 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Assim, em situação análoga enfrentada por Erick Jayme,50 para que os Estados logrem êxito na regulamentação de um direito comum para a humanidade afeto ao direito internacional do meio ambiente, mostra-se imprescindível o diálogo (direito e concreto) entre os instrumentos hard e soft law, sejam eles de proteção à zona, espécie determinada ou de cunho global, tanto no aspecto normativo quanto interpretativo do direito externo e interno dos Estados. O dialogismo entre os instrumentos cogentes e flexíveis consiste especialmente na interação da necessidade de regulamentações visando a proteção e preservação do meio ambiente por meio de convenções com previsões rígidas e a inequívoca importância dos pactos mais brandos sem níveis consideráveis de cogencia, a exemplo, as convenções, relatórios, declarações promulgadas nos encontros mundiais, que visam a identificação dos problemas mundiais que ainda dificultam a implementação das normas hard laws, e a orientação para a adoção de estratégias que visam a erradicação desses obstáculos, a exemplo, a pobreza, degradações dos solos, escassez de água, alterações climáticas, condições de saúde, alimentação, empregos decentes, dentre outros. Nesta linha, o direito comum partiria de um diálogo global, e assim, tanto por meio de medidas proibitivas, cogentes, como de medidas flexíveis e sem qualquer vinculação jurídica, uma vez que o dever de cooperar e visar o bem comum se concretizaria com a comunicabilidade e complementariedade entre as normas, coexistindo, portanto, todas elas cooperativamente51 em busca da proteção e preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável à luz da equidade intergeracional. Restando, portanto, na condição de tarefa para o futuro52 o desafio de coordenar a implementação e a efetividade do diálogo dos instrumentos normativos, rumo a um direito comum da humanidade. REFERÊNCIAS BARROS, Wellington Pacheco. Curso de direito ambiental.2. ed. São Paulo: Atlas, 2008. BIRNIE, Patricia; BOYLE, Alan; REDGWELL, Catherine. International Law & the environment. 3.ed. New York: Oxford University Press, 2009. 50 JAYME, Erick. Identité culturelle ET intégration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours, v. 251, p.259, 1995. 51 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno. São Paulo: Saraiva, 2011. p.227. 52 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direito das organizações internacionais. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p.50. 234 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional BEURIER, Jean-Pierre; KISS, Alexandre. Droit international de l’environnement. Paris: Pedone, 2006. COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso futuro comum, 2.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. DUPUY, Pierre Marie. Soft Law and the International Law on the Environment. In: Michigan Journal of International Law. vol. 12. n. 2. Michigan: University of Michigan Law School, 1991. FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado.2011. 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Com essa mudança de perspectiva o sentido de soberania também foi alterado, sendo averiguado a evolução do conceito, havendo quem fale, inclusive, em um esvaziar completo do seu sentido e em uma crise do Estado nacional. Após as graves violações de direitos humanos ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial e a importância adquirida pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, a ideia de soberania ligada a superioridade, a um poder absoluto e ilimitado, que não reconhece nenhum outro acima de si não mais atende ao compromisso internacionalmente estabelecido de proteger a dignidade do ser humano. Por isso, se proporá uma relativização da soberania que garanta a proteção dos direitos inalienáveis dos cidadãos. Abstract: This paper will seek for a concept of the state that includes all the needs of a democratic society, which has people as holder of sovereign power. So, will be defended that the guarantees model of Constitutional State of Law, major achievement of contemporary society, has as limits to the performance of his power, element of the state, the observance of law, especially the Constitution, fundamental rights, the principle of legality and necessity of separtion of powers. With this new perspective, the meaning of sovereignty has also changed, and will be examined the evolution of the concept, considering those who even talk about his meaning being completely empty and defend the crisis of the nation state. After the serious human rights violations that occurred during the Second World War and the importance acquired by the Human Rights International Law, the idea of sovereignty linked to superiority, absolute and unlimited power which recognizes no other above himself no longer meets the internationally established commitment to protect human dignity. So, will be propose a relativization of sovereignty that guarantees the protection of the inalienable rights of the citizens. Palavras-chaves: Soberania. Direitos Humanos. Relativização. Keywords: Sovereignty. Human Rights. Relativization Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Especialista em Direito e Jurisdição pela Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte; Assistente Ministerial da Coordenadoria Jurídica do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. Doutora em Direito, subárea Direito do Trabalho, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Professora Adjunto II da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 237 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 1- INTRODUÇÃO A soberania é objeto, até hoje, de muito debate e estudo. A clássica noção de poder ilimitado não é mais capaz de se compatibilizar com a necessária proteção do ser humano assumida perante a comunidade internacional. Ocorre que muito se questiona se seria possível uma aproximação desses dois conceitos, considerando esse clássico conceito, ainda mais se levado em consideração o aumento gradativo da participação dos Estados na comunidade internacional, seja pela globalização, pela intensificação das relações comerciais, pelos blocos econômicos ou pela participação em organizações internacionais. O presente estudo, então, busca repensar o conceito de Estado para comportar todas as necessidades de uma sociedade democrática, que tem o povo como detentor do poder soberano, levando-se em conta ainda o modelo garantista do Estado constitucional de direito e o compromisso internacional de proteção aos direitos humanos. Em seguida, analisa a soberania como elemento do Estado e a evolução de seu conceito, buscando uma forma de limitar a soberania pela necessidade de resguardar a dignidade da pessoa humana. Vale ressaltar que o debate sobre a relativização da soberania foi intensificado após o mau uso do poder nos regimes totalitaristas, as barbáries ocorridas no nazismo, que geraram a necessidade de se reconstruir uma proteção efetiva para os direitos inalienáveis dos seres humanos, e fez com que diversos Estados se comprometessem, através de declarações e tratados, a assegurar, em seus ordenamentos, os direitos criados na ordem internacional, tornando os indivíduos sujeitos de direito. Com isso, consagrar e efetivar os direitos humanos se tornou o principal objetivo da comunidade internacional, uma obrigação e preocupação comum dos Estados. Por isso, será verificada a possibilidade de abrandar o conceito de soberania, para se proteger a dignidade dos cidadãos nacionais, observando os valores básicos dos Tratados e Declarações Internacionais sobre o tema e da Constituição Federal, permitindo uma proteção mais ampla ao ser humano. 238 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 2- A SOBERANIA COMO ELEMENTO DO ESTADO. A palavra “Estado”, no sentido em que atualmente é compreendida, surgiu na obra “O Príncipe” de Maquiavel, o qual se referia ao Estado de Florença, cidade independente, centro do poder, em uma Itália que ainda não era unificada (COSTA, 2011). Assim, o termo só era usado para determinadas sociedades com características bem definidas e organizadas, contendo, ao menos, três elementos básicos, quais sejam, povo, território (elementos materiais) e soberania ou algum tipo de poder (elemento formal)1. O momento em que o Estado aparece também não é consenso entre os doutrinadores. Segundo Rafael Luchini Alves, pode-se dividir em três principais correntes (COSTA, 2011, p. 390-391). A primeira acredita que ele sempre existiu, assegurando-lhe uma acepção ampla, em que o que realmente interessa é a base organizadora e unificadora da sociedade, e, sendo o ser humano um ser social, que vive integrado em grupos, o Estado sempre esteve presente. Para o segundo grupo, ele não surgiu de uma única vez, concomitantemente, mas apenas quando o homem percebeu que era necessário formar uma organização social e política que atendesse suas necessidades. Por fim, a terceira corrente sustenta que só pode ser considerado Estado as sociedades políticas dotadas de certas características, como as mencionadas acima, sendo necessário, para o seu surgimento, que a soberania tenha se tornado uma prática (é o caso de Karl Schmitt, por exemplo). Para esses estudiosos, a Paz de Westfália foi essencial, sendo um marco do surgimento dos Estados, pois definiu limites territoriais e reconheceu um poder soberano às nações envolvidas (COSTA, 2011, p. 390-391). É certo, contudo, que o Estado sofreu várias alterações, não se podendo comparar o Estado Grego (para aqueles que entendem que ele poderia ser assim considerado) e o Moderno. Tanto que se vem repensando o conceito de Estado para comportar todas as necessidades de uma sociedade democrática, que tem o povo como detentor do poder soberano. Nesse sentido, o modelo garantista do Estado constitucional de direito é uma grande conquista, pois traz como limites, para a atuação do poder, a observância do ordenamento 1 Alguns autores ainda acrescentam elementos outros, como: governo ou pessoa estatal ou poder de império, finalidade ou mesmo vínculo jurídico. Há também quem exclua alguns deles. Mazzuoli (2005, p. 331) afirma que a noção de soberania sequer é inerente à concepção do Estado, sendo, na verdade, uma conquista dos Estados nacionais após anos de lutas contra a Igreja e os senhores feudais. 239 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional jurídico, em especial da Constituição, dos direitos fundamentais, do princípio da legalidade e da necessidade de divisão dos poderes. Para Ferrajoli (2007, p. 28), aliás, essa mudança de perspectiva é responsável por esvaziar completamente o sentido de soberania, e gerar uma crise do Estado nacional. Nas suas palavras: (...) Com a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, e depois com as sucessivas cartas constitucionais, muda a forma de Estado e, com ela muda, até se esvaziar, o próprio princípio da soberania interna. De fato, divisão dos poderes, princípio da legalidade e direitos fundamentais correspondem a outras tantas limitações e, em última análise, a negação da soberania interna. Graças a esses princípios, a relação entre Estado e cidadãos já não é uma relação entre soberano e súditos, mas sim entre dois sujeitos, ambos de soberania limitada. Considerando o exposto, pode-se definir o Estado como sendo a “ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território” (DALLARI, 1993, p. 64). Essa soberania, como se verá, é relativizada, pois deve observar os limites traçados. Ademais, essa finalidade especial seria, segundo Dallari, “o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana” (DALLARI, 1993, p. 91-92), ou seja, requer a efetivação dos direitos fundamentais. 3- DA EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE SOBERANIA. Até muito recentemente, a ideia de soberania estava ligada a superioridade, ao topo, a um poder absoluto e ilimitado, o qual não reconhece nenhum outro acima de si. Bodin é tido como precursor no desenvolvimento desse conceito, afirmando-o como sendo o “poder absoluto e perpétuo de uma República” (Apud COSTA, 2011, p. 399), ou seja, do Estado. Para ele, o poder deveria ser incondicionado, submetido apenas às leis divinas e naturais, podendo criar livremente o ordenamento jurídico para ser seguido por seus súditos ou anular qualquer ato normativo que entender inútil, estando o príncipe (no caso, o soberano) isento da autoridade da lei. Hobbes, por outro lado, entende que, como os homens decidiram ingressar em um Estado Político, precisam entregar ao Leviatã, poder soberano e absoluto, suas liberdades 240 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional irrestritas, obtendo, em troca, segurança e paz. O fundamento do poder absoluto estaria no fato de ter sido obtido por um ato de liberdade, dado por todos, pelo receio que cada um tem dos demais seres humanos, e, portanto, não poderia ser revertido (MENDONÇA, 2011). Rousseau, por outro lado, propõe uma mudança na titularidade da soberania, deixando de ser da pessoa do governante e residindo-se no povo. O contrato social serviria, nesse caso, para permitir a troca do direito ilimitado a tudo e da situação de liberdade natural, absoluta, em prol de um convívio social mais harmonioso, da liberdade civil e da propriedade do que é seu. Segundo seus ensinamentos, a soberania seria, então, a vontade geral, sendo um poder inalienável e indivisível, limitado, contudo, pelas convenções gerais, ou seja, pela vontade do corpo político. Jellinek (Apud COSTA, 2011, p. 402) defende que a noção de soberania surge com o Estado moderno, sendo uma característica essencial a ele, baseando-se na afirmação do poder supremo e exclusivo do monarca sobre o povo e seu território. Ela seria o poder jurídico de autodeterminar-se e se auto obrigar, ou seja, seria o poder do Estado de se impor limites pela Constituição ou pelas leis, não podendo ser acionado, salvo por si próprio. Não poderia faltar, nessa análise dos muitos conceitos de soberania, a importante contribuição de Kelsen. Para ele, o conceito de soberania estatal precisa ser abolido, pois os ordenamentos jurídicos nacionais são apenas parciais em relação ao Direito Internacional, retirando dele seu fundamento de validade. Como o sistema jurídico é formado pelo conjunto de normas, a regra, para ser soberana, precisa ser fonte de valor do sistema. Não seria possível, portanto, admitir vários ordenamentos de Estados igualmente soberanos vigorando, pois não haveria como solucionar uma possível colisão de sistemas jurídicos, bem como não há, em sua concepção, como a soberania pertencer a vários sujeitos (Apud COSTA, 2011, p. 405). Para facilitar a compreensão, interessante o resumo trazido por José Jardim Rocha Júnior (1993, p. 126-127), que aponta: Finalmente, em A Paz por Meio do Direito, Kelsen, impactado pelos horrores das duas guerras mundiais, radicaliza as suas posições, passando a defender abertamente integração dos Estados em uma federação que exerceria um governo mundial submetido a leis editadas por um Legislativo igualmente mundial, e em cujo âmbito os Estado nacionais seriam apenas estados-membros. Isso conduziria às seguintes implicações: a) a plena juridicidade de uma ordem normativa internacional depende de que ela possa disciplinar o uso da força e, a partir daí, qualificar o seu uso entre Estados ou como uma sanção permitida pelo direito ou como um ilícito internacional; ii) 241 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional a superação da concepção westfaliana do ius ad bellum, uma vez que a guerra é um fenômeno intrinsicamente ético, que só pode ser admitido como sanção jurídica (iusta causa belli) contra uma conduta violadora do ius gentium; iii) os Estados são formalmente iguais no âmbito do ordenamento internacional até o momento da sua absorção na ‘comunidade universal de Direito mundial’; e iv) recusada, de um lado, a ideia moderna de soberania e, de outro lado, afirmada a unidade moral da espécie humana, resulta inevitável a rejeição da tese de Grocio de que apenas os Estados são sujeitos do ius gentium, devendo, ao contrário, ser aí também incluídos os cidadãos dos Estados nacionais, que são também destinatários das disposições de Direito Internacional. Acreditando também em um direito internacional, Francisco de Vitoria defende as seguintes ideias basilares: “a) a configuração da ordem mundial como sociedade natural de Estados soberanos; b) a teorização de uma série de direitos naturais dos povos e dos Estados; c) a reformulação da doutrina cristã da “guerra justa”, redefinida como sanção jurídica às iniuriae (ofensas) sofridas” (FERRAJOLI, 2007, p. 7). Na temática proposta, fato é que anuncia um “fundamento democrático da autoridade do soberano, antecipando o princípio moderno da soberania popular (...)”(FERRAJOLI, 2007, p. 8), propondo que o soberano deve atuar em função do bem da república. Necessário, nesse momento, diferenciar a soberania interna da externa para poder compreender melhor a noção que se seguirá. Segundo Mazzuoli (2005), a soberania interna é aquela que, dentro do território do Estado, não encontra outro poder mais alto, é o poder de criar o Direito Positivo, ou, segundo Goffredo Telles Júnior, é o “poder incontrastável de decidir, em última instância, sobre a validade jurídica das normas e dos atos, dentro do território nacional” (Apud MAZZUOLI, 2005, p. 331). Para Ferrajoli, é aquela capaz de por fim ao estado de natureza do homem, transformando a sociedade e lhe garantindo paz e civilidade, pois cria os direitos-deveres dos seus indivíduos. A soberania externa, por outro lado, significa, não exatamente um poder, mas a igualdade perante outros Estados, uma situação de coordenação entre eles. Em outras palavras: “‘soberania interna’ é o império que o Estado exerce, coercitivamente, sobre o seu território e a sua população; e ‘soberania externa’ é a sua independência e igualdade perante outros Estados, o seu poder de autodeterminação” (GUIMARÃES, 1999, p. 503). Para Ferrajoli, os Estados, por gozarem na ordem internacional de soberania e liberdade absoluta, representariam os homens no estado de natureza, ou seja, seria uma sociedade selvagem que estaria em constante estado de guerra, justamente por não existir uma lei superior para lhe regulamentar. 242 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Fica agora mais clara a compreensão de Ferrajoli sobre a mudança na noção de soberania, demonstrando ainda a desconfiança desse pesquisador, que não visualiza uma relativização da soberania (por vê-la como a ausência total de regras ou limites), e, por isso, lhe impõe um completo esvaziamento. Como já mencionado, esse autor entende que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi responsável por dissolver completamente a soberania, em seu âmbito interno, bem como a criação das Organizações das Nações Unidas impôs a falência da soberania externa, pois retirou os Estados desse estado de natureza, passando-os para o civil, em que devem obedecer ao plano normativo internacional, em especial às suas duas normas fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos fundamentais (FERRAJOLI, 2007, p. 40-41). Segundo seus ensinamentos: A Carta da ONU assinala, em suma, o nascimento de um novo direito internacional e o fim do velho paradigma – o modelo Vestfália –, que se firmara três séculos antes com o término de outra guerra européia dos trinta anos. Tal carta equivale a um verdadeiro contrato social internacional – histórico e não metafórico, efetivo ato constituinte e não simples hipótese teórica ou filosófica –, com a qual o direito internacional muda estruturalmente, transformando-se de sistema pactício, baseado em tratados bilaterais inter pares (entre partes homogêneas), num verdadeiro ordenamento jurídico supra-estatal: não mais um simples pactum associationis (pacto associativo), mas também pactum subiectionis (pacto de sujeição). Mesmo porque a comunidade internacional, que até a Primeira Guerra Mundial ainda era identificada com a comunidade das ‘nações cristãs’ ou civilizadas – Europa e América –, é estendida pela primeira vez a todo mundo como ordem jurídica mundial. (...) A soberania, que já se havia esvaziado até o ponto de dissolver-se na sua dimensão interna com o desenvolvimento do estado constitucional de direito, se esvanece também em sua dimensão externa na presença de um sistema de normas internacionais caracterizáveis como ius cogens, ou seja, como direito imediatamente vinculador para os Estados-membros.(...) Percebe-se, então, uma superação da clássica noção de poder ilimitado ou, se quiser, seu completo esvaziamento, assumindo o direito internacional um papel de destaque. 4- RELATIVIZAÇÃO DA SOBERANIA PELA NECESSIDADE DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. Após as graves violações de direitos humanos ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial, ganha destaque o Direito Internacional dos Direitos Humanos2. Segundo Flávia 2 Mazzuoli (2005) defende que o Direito Internacional dos Direitos Humanos “é o direito do pós-guerra”. 243 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Piovesan (2000), após esse período, os diversos Estados se comprometeram, através de declarações e tratados, a assegurar, em seus ordenamentos, os direitos humanos criados na ordem internacional, garantindo ainda uma igualdade material a todos os indivíduos, em contraponto à lógica da “destruição e descartabilidade” da pessoa humana do nazismo, em que só eram titulares de direitos as pessoas integrantes de determinado grupo. “É neste cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Se a 2ª Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução”. Com isso, consagrar os direitos humanos se torna o principal objetivo da comunidade internacional e uma preocupação comum dos Estados. Esse processo de internacionalização provocou grandes mudanças na comunidade internacional. Primeiro, porque colocou o indivíduo na posição de sujeito de direitos e o dotou de mecanismos de defesa deles; segundo, pelo fato de ter, como visto, afastado o velho conceito de soberania estatal absoluta, tendo agora a obrigação de efetivar os direitos pactuados (MAZZUOLI, 2005, p. 328). Ao lado dessa consagração internacional, o “novo” constitucionalismo (ou neoconstitucionalismo, segundo alguns doutrinadores) vive a necessidade de assegurar de forma mais ampla os direitos humanos, propondo, inclusive, uma “constituição invasora”, regulando diversos aspectos da vida social. Nesse modelo, há uma reaproximação entre Direito e Moral, pois, para abarcar os valores da sociedade, a Constituição se torna o resultado do compromisso de uma pluralidade de interesses, ficando mais ampla e aberta. Ganha destaque, assim, os direitos fundamentais, as diretrizes e programas a serem realizados. É, por essa razão, que Ferrajoli alega que a consagração desse Estado Constitucional de direito, com a Carta Maior atuando nos moldes propostos, restringe, demasiadamente, a soberania interna. Não se nega, contudo, a dificuldade em conceituar esses direitos. Para Comparato (1999, p.1): O que se conta, nestas páginas, é a parte mais bela e importante de toda a História: a revelação de que todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza. É o reconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – pode afirmar-se superior aos demais. 244 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional De acordo com as lições de Flávia Piovesan (2005), os direitos humanos, por serem fruto de reivindicações morais, só surgem e são consagrados quando devem e podem. Para ela, eles são um construído axiológico, estando ainda em processo de consagração. Segue, então, os ensinamentos de Noberto Bobbio (1992, p. 5), para quem os direitos humanos são direitos históricos, “(...) ou seja, nascidos em certas circunstancias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. Dalmo de Abreu Dallari (1998, p.7) afirma que os direitos humanos são “uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são considerados fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e participar plenamente da vida”. Os direitos humanos, ademais, são frutos da dignidade da pessoa humana, sendo um valor intrínseco dela, e configuram um “mínimo ético irredutível” (PIOVESAN, 2006, p. 22). Por isso se diz que são universais, pois procuram proteger o indivíduo, independentemente do contexto em que está inserido, tendo cada ser humano um conjunto de direitos fundamentais inderrogáveis, pelo simples fato de ter nascido assim. As “normas universais protetoras de direitos humanos é uma exigência do mundo contemporâneo” (GUIMARÃES, 2006, p. 63), e os diversos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelos mais diferentes Estados demonstrariam o consenso sobre o conteúdo deles. Como conciliar, então, a soberania e os direitos humanos sem esvaziar o conteúdo dela? Segundo Artur Cortez Bonifácio (2008), a soberania necessita do compromisso constitucional de preservação da unidade material da Constituição. Assim, em sua concepção, Cai por terra o discurso de defesa da rigidez da soberania, em desfavor da política constitucional e internacional de defesa dos valores e direitos fundamentais. A formulação teórica do Estado soberano, construído com fundamento nos ensinamentos de Bodin, Hobbes, Maquiavel, Schmitt e Kelsen, entre outros, comporta ajustes decorrentes da abertura da sociedade universal, proveniente, entre outros, da globalização. (BONIFÁCIO, 2008, p. 295-296) Portanto, se propõe uma superação do conceito clássico de Estado-Nação, considerando que a Teoria Geral do Estado e o Direito Constitucional foram afetados pela nova sociedade global, pelos processos de integração e pela formação de uma comunidade internacional ou regional, considerando ainda que, conforme ensinamento do professor 245 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Bonifácio, o fundamento de uma Constituição Internacional encontra-se em laços econômicos, étnicos, sociais, históricos, políticos, entre outros. Os princípios que regem as relações internacionais e a política universal de proteção dos direitos do homem acabam por ser as reais bases jurídicas do texto político. Isso implica ainda no reconhecimento do caráter universal do Homem, principal elo de ligação das diversas Constituições estatais à nova ordem jurídica, e que harmoniza os sistemas No primeiro bordo, os princípios da soberania, da reciprocidade, da nãointervenção e da resolução pacífica dos conflitos e da igualdade entre os Estados de há muito fundamentam as relações entre os Estados e representam pilares no estudo do direito internacional público. De outro lado, havemos que nos quedar a um truísmo contemporâneo, no caso o dever incumbido aos Estados de tutelar os direitos humanos, como algo que se situa acima das concepções clássicas de enfrentamento das questões internacionais. (BONIFÁCIO, 2008, p. 300) No mesmo sentido é o ensinamento de Rogério Taiar (2010). Para ele, a soberania, prevista no artigo 2º, item 1, da Carta das Nações Unidas, que se funda na igualdade soberana de todos os membros, continua sendo o “poder supremo que qualifica determinado Estado diante dos demais” (TAIAR, 2010, p.11). Contudo, entende que, dentro desse conceito, houve a inserção da proteção dos Direitos Humanos, em especial da dignidade da pessoa humana. Em suas palavras: Desse modo, a necessidade da intervenção humanitária relativizaria os predicados internacionais da soberania e autodeterminação atribuídos ao Estado, mas seria um procedimento legítimo diante da outra face da situação, constituída pela necessária garantia internacional dos direitos humanos (...) A primeira premissa tem como base a relativização da soberania em face da necessária proteção dos direitos humanos. A segunda autoriza a intervenção internacional para garantir a tutela dos direitos humanos quando do nãoexercício ou má-gestão da devida proteção pelo Estado, pois, embora a soberania permaneça como poder estatal em um primeiro momento, a partir do instante em que o Estado deixa de atender aos direitos humanos, abdica da sua soberania nesse particular. O objetivo é apresentar um entendimento no sentido de uma relativização da soberania dos Estados em face da efetivação da proteção internacional dos direitos humanos, em razão da soberania trazer em seu conceito o elemento ‘dignidade humana’, sendo que sua proteção é inerente. (TAIAR, 2010, p. 273-274) O respeito aos direitos humanos não é assunto de interesse exclusivo do âmbito interno dos Estados, sendo uma preocupação mundial. Por isso, a dignidade é proclamada como valor supremo que alicerça a ordem jurídica democrática e permite o intercâmbio entre os ordenamentos jurídicos no plano internacional. 246 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A ideia de uma concepção idêntica acerca da dignidade que seria atribuída a todo ser humano, pelo simples fato de pertencer a essa espécie, foi concebida inicialmente pelo cristianismo, se desenvolvendo pela filosofia, especialmente entre os teóricos modernos, como Hobbes, Locke e Kant. Esse último, ressalte-se, entendia que, no mundo social, existiria duas categorias de valores, quais sejam, o preço, valor exterior e que se manifesta nos interesses particulares, comum nas coisas; e a dignidade, valor interior, fruto da moral, e que seria de interesse geral, sendo encontrado nas pessoas. O valor moral, diferentemente da mercadoria, não pode ser substituído por outro equivalente, de modo que se defende a exigência de nunca transformar o homem em um meio para se atingir um determinado fim (MORAES, 2006, p. 115-116). Vigora, nos dias atuais, o entendimento de que o princípio da dignidade da pessoa humana é um conceito aberto, com conteúdo impreciso (NOVAIS, 2011, p. 61), merecendo destaque a lição produzida por Jorge Novais (2011, p. 53), para quem: A dignidade da pessoa humana do Estado social e democrático de Direito é circunstancial e temporalmente determinada e, nesse sentido, é própria de um indivíduo comunitariamente integrado e condicionado, titular de direitos fundamentais oponíveis ao Estado e aos concidadãos, mas socialmente vinculado ao cumprimento dos deveres e obrigações que a decisão popular soberana lhe impõe como condição da possibilidade de realização da dignidade e dos direitos de todos. Para melhor compreender esse conceito, sugere Maria Celina Bodin de Moraes (2006, p. 119) que essa dignidade, como substrato material, teria quatro postulados, quais sejam, o sujeito deve reconhecer a existência dos demais sujeitos como iguais a si; portanto, merecedores do mesmo respeito e proteção de sua integridade psicofísica; com a verificação de que todos são dotados de vontade livre, podendo se autodeterminar; e, por fim, por ser parte de um grupo social, possuem a garantia de não serem marginalizados. Para Jorge Miranda (2000, p. 183-184), a dignidade da pessoa humana, mesmo se reportando a todas as pessoas, é sempre de uma pessoa individual e concreta; surge desde a concepção; é da pessoa enquanto ser da espécie humana, se referindo a homens e mulheres; que mesmo vivendo em relação comunitária, deve ser reconhecida a dignidade de cada pessoa pelos demais membros do grupo; ela é da pessoa e não do grupo comunitário ou da situação em que vive; o primado é do ser, prevalecendo a liberdade sobre a propriedade; ela justifica a busca pela qualidade de vida; a proteção deve se dar não apenas internamente, mas universalmente; pressupõe, por fim, a autonomia vital da pessoa. 247 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Mesmo que seja difícil compreender qual seria o seu conteúdo inerente, deve-se resguardar o valor da pessoa humana e o incondicional respeito a sua dignidade. Assim, é possível falar-se em um abrandamento ou relativização da soberania, para se proteger a dignidade do ser humano, sem que isso imponha a falta de defesa dos valores básicos da Constituição Federal, mas sim de uma complementação dos enunciados, permitindo uma proteção mais ampla. Como a soberania é popular, ou seja, o poder advém do povo, nada mais justo que se exija do Estado a proteção dos direitos inalienáveis de seus cidadãos. Este abrandamento é um meio de permitir a efetivação dos valores e direitos fundamentais, pois “a proteção da dignidade humana é função do Estado soberano traduzida no bem-estar dos seus cidadãos” (MIRANDA, 2000, p. 12). Ademais, os princípios que regem as relações internacionais e a política universal de proteção dos direitos do homem são as reais bases jurídicas do texto político, conforme concluiu Cortez. Por todo o exposto, é que não é necessário esvaziar a soberania, transferindo-a para uma comunidade global que teria como órgão jurisdicional a Corte Internacional de justiça de Haia (com algumas alterações), como proposto por Ferrajoli. Pode-se adotar uma posição mais conciliatória, como a de Taiar, que entende que a ONU deve entrar em ação, com todos os seus meios de intervenção, sempre que o Estado não observar os limites propostos, ou mesmo a do professor Bonifácio, que vê, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma instância revisional das decisões contrárias aos valores propostos adotadas pelo Supremo Tribunal Federal. 5- CONCLUSÃO. Pelo exposto, conclui-se que a soberania continua sendo um dos elementos do Estado. Contudo, sua clássica concepção de poder absoluto e ilimitado, o qual não reconhece qualquer outro acima de si, foi claramente se transformando, ao longo dos anos, para encontrar sua restrição na própria proteção ao ser humano, detentor do poder soberano, havendo ainda quem diga que seu conteúdo foi esvaziado. 248 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional O Estado, então, pode ser visto como o sujeito de direito internacional com uma ordem jurídica determinada e soberana, mas que tem por fim o bem comum de seu povo, também sujeito de direitos, o qual está situado em determinado território. Essa soberania, pelo visto, foi relativizada pela necessidade de proteger os direitos humanos, em especial, assegurar o valor da dignidade da pessoa humana, encontrando-se nela a finalidade especial que deve ser perseguida, o valor supremo que alicerça a ordem jurídica democrática e permite o intercâmbio entre os ordenamentos jurídicos no plano internacional. Esse limite não ameaça a soberania nacional, apenas sendo um elemento intrínseco do conceito de soberania. Assim, a comunidade internacional deve atuar apenas subsidiariamente, quando o Estado não puder assegurar os direitos humanos consagrados. O sistema de proteção internacional dos mencionados direitos, conforme estabelecido pelas Nações Unidas, vem complementar o sistema interno, lhe garantindo maior legitimidade. Claro que esse sistema de proteção internacional precisa ser revisto, com a criação de um verdadeiro regramento, impositivo, garantista, e que imponha maior adesão e respeito, respeitando os avanços já alcançados como a Declaração Universal dos direitos do homem e do cidadão, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos e o dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A partir daí, pode-se pensar em um órgão jurisdicional para revisar as decisões estatais que visam assegurar a dignidade humana, sendo a Corte Internacional de Justiça de Haia a mais adequada, por sua competência global. 249 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Legal Principles: On the structure of Legal Principles. In: Ratio Juris, Vol. 13, No. 3, September 2000. BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. A nova interpretação constitucional dos princípios: Ponderação, argumentação e papel dos princípios. In: LEITE, George Salomão (org.). Dos princípios constitucionais: Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003. BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 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A responsabilidade internacional dos Estados ganha visibilidade com os estudos elaborados pela Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas, que resultou no Projeto de Artigos sobre a Responsabilidade dos Estados por Ato Internacionalmente Ilícitos, que embora ainda se encontre sujeito a recomendações e alterações, constitui importante fonte da doutrina, bem como, não raras às vezes, seus dispositivos são invocados pela Corte Internacional de Justiça. O presente artigo visa destacar alguns aspectos da responsabilidade internacional dos Estados, em especial na esfera ambiental, considerando os limites, dificuldades e perspectivas de sua aplicação. Palavras-chave: Responsabilidade internacional dos Estados; Projeto de artigos; Comissão de Direito Internacional; Dano ambiental. ABSTRACT A State held responsible for a wrongful act should, according to international law, compensate or make reparation for the damage caused to the State which endured it, which ensures international legal order. Hence, in case of environmental damage, the interdependence is enhanced by the nature of the resources, which are scarce. International responsibility of States gains visibility with the research carried out by International Law Commission of the United Nations Organization, which resulted in the Draft Articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts, which, despite still being subject to recommendations and alterations, constitutes important legal doctrine and its articles are often quoted by the International Court of Justice. The present study aims to highlight some aspects of International responsibility of States, especially in the environmental area, considering limits, difficulties and perspectives of its application. Keywords: International responsibility of the States; Draft articles; International Law Commission; Environmental damage. 1 Mestranda em Direito Agroambiental (UFMT). Pós-graduada em Direito Ambiental com ênfase em Desenvolvimento Sustentável (Universidade de Cuiabá – UNIC). Graduada em Direito (Universidade de Cuiabá – UNIC) e em Letras (UFMT). Servidora do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. Professora universitária da disciplina de Direito Ambiental (Universidade de Cuiabá-MT). E-mail: [email protected] 254 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional INTRODUÇÃO O estudo do tema da responsabilidade internacional por dano ambiental, embora tratado de maneira superficial pelas diversas doutrinas de direito internacional, se mostra de alta relevância, inclusive com tendência de destaque nos fóruns de discussão, porque, a cada dia mais, os atos praticados pelos Estados geram consequências que fogem dos seus limites territoriais, sobretudo se considerar que não raras às vezes, a degradação ambiental deriva de atividades lícitas e necessárias ao desenvolvimento de determinado Estado. Aliás, não se pode perder de vista que o meio ambiente não tem fronteiras, caso em que o dano ambiental, por diversas vezes, não se circunscreve a este ou aquele Estado da comunidade internacional. Por sua vez, no Direito Internacional, a responsabilidade por dano ambiental, além de ser uma garantia da ordem jurídica, mantém possível a cooperação, entendida não como troca de interesses ou trocas compensatórias entre Estados, mas sim, cooperação em função de um direito de todos ao meio ambiente saudável e propício a vida. Considerada a importância na ordem internacional, o tema da responsabilidade internacional dos Estados, passou a ser discutido e estudado pela Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas (CDI), desde a década de 1950, o que resultou no Projeto de Artigos denominado Responsabilidade dos Estados por Atos Internacionalmente Ilícitos, que foi aprovado em 2001, na 53ª sessão daquela Comissão, porém, ainda sujeito a recomendações e alterações. Desta feita, este artigo tem por objetivo apresentar breves considerações acerca do instituto da responsabilidade internacional dos Estados, utilizando como base o Projeto de Artigos elaborado pela CDI, com destaque na responsabilização por degradação ambiental, suas consequências, e ainda, de que forma o tema tem se manifestado nas declarações e convenções internacionais, que implica, frisa-se, na responsabilidade internacional dos Estados no âmbito do Direito Internacional do Meio Ambiente. Nessa linha, o trabalho se divide em duas partes principais: na primeira parte será feita uma brevíssima análise histórica e dos fundamentos da responsabilidade internacional dos Estados de uma maneira geral; no segundo momento, serão feitas algumas considerações sobre as teorias da responsabilidade internacional dos Estados, as excludentes de responsabilidade e os meios de reparação do dano, sob o enfoque do meio ambiente internacional. 255 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 1 - DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS EM GERAL A presente análise recai sobre a responsabilidade internacional dos Estados quando nas suas relações com outros Estados, notadamente no que toca ao Direito Internacional do Meio Ambiente, sem querer, portanto, avançar nos estudos sobre a responsabilidade internacional por violação dos direitos humanos. A responsabilidade internacional busca a reparação de uma ofensa cometida por um Estado às normas de Direito Internacional, em oposição a outro Estado. Ou seja, assim como no direito interno, um Estado responsável pela prática de um ato ilícito, segundo o Direito Internacional, deve reparação ao Estado que sofreu o dano, situação que tem efeito garantidor da ordem jurídica. Sobre o tema, André de Carvalho Ramos, elucida: No caso do Direito Internacional, a responsabilidade é uma garantia da ordem jurídica como um todo, já que possibilita a manutenção do equilíbrio e da equivalência entre os Estados-membros da comunidade internacional, o que, de resto, mantém possível a cooperação em um mundo de Estados interdependentes.2 E, em se tratando de dano ambiental, a interdependência dos Estados, que motiva a cooperação, é ressaltada em função da natureza dos recursos, por sinal, escassos, que diretamente se pretende proteger. Nessa linha, se na ordem interna, o Estado responde pelo prejuízo causado por atos ou omissões praticados por seus órgãos ou agentes, na ordem internacional não é diferente, vale dizer, os Estados também respondem por seus atos que lesem direitos de outro Estado, responsabilidade esta extensível às organizações internacionais, seja na figura de autora, quanto como vítimas do ato ilícito.3 Desta feita, o instituto da responsabilidade internacional se revela como um instrumento de regulação necessário às relações mútuas, inclusive a título de bem garantir o respeito à igualdade soberana dos Estados. 2 RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional por violação de direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.65. 3 REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 9. ed., São Paulo: Saraiva, 2002. p. 261. 256 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 1.1 BREVE HISTÓRICO DA TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS Desde Hugo Grotius (1583/1645), passando pelos autores dos séculos XVII e XVIII, já se discutia acerca da violação dos direitos dos Estados, no qual, nesse período, a resposta ao ato ilícito dava ensejo a duas situações: legitimar ações de represália contra o violador da norma e dar causa a uma obrigação de reparar. Nesse período, a violação da norma estava associada à noção de culpa, no sentido de ligação psicológica entre o agente e o resultado da ação, o que praticamente tornava impossível atribuir um ato de efeitos danosos ao Estado, porque este se confundia com a pessoa do governante, que nada fazia de errado.4 Ainda, segundo a tradição do direito natural de Grotius, os reis têm direito de punir não somente em razão dos danos cometidos contra eles mesmos ou seus súditos, mas também, em razão de danos que não os afetam diretamente, mas que violam o direito natural ou das nações em respeito a qualquer outra pessoa. Porém, tal posicionamento sofre mudança com o entendimento de Emer de Vattel (1758), para o qual nenhum soberano tem o direito de fazer represália contra uma nação em benefício de uma terceira parte, porque seria o mesmo que fazer o papel de juiz entre a nação e o terceiro.5 Esta concepção, no sentido de que a responsabilidade somente pode ser invocada pelo Estado que teve seus direitos infringidos, foi adotada pela maioria dos autores do século XIX, até ser aperfeiçoada por Dionizio Anzilotti. Aliás, a teoria de Anzilotti, ‘Teoria generale della responsabilità dello Stato nel diritto internazionalde’, de 1902 e notadamente o artigo ‘La responsabilité internacionale des Etats’, de 1906, são considerados como a primeira interpretação sistemática deste ramo do direito internacional antes da Primeira Guerra Mundial. Com a teoria geral de responsabilidade do Estado de Dionizio Anzilotti (1902), a noção de culpa perde o liame psicológico entre o agente e o resultado da ação ou omissão, anteriormente entendido, para configurar-se como um nexo de causa e efeito entre ambos, admitindo-se, assim, a imputabilidade do Estado.6 4 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 710/711. 5 NOLT, George. From Dionísio Anzilotti to Roberto Ago: The classical international Law of state responsability and the traditional primacy of a bilateral conception of international relations. Europian Journal of International Law. Vol. 13, n. 5, 2002. p. 1083/1098. 6 SOARES, G. F. S. op.cit., p.711. 257 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Por sua vez, apregoa que a violação de uma norma de direito internacional enseja a reparação, tida como obrigação primária da responsabilidade dos Estados. Acrescenta que somente atos entre Estados ensejam a responsabilização perante o direito internacional, não atos entre particulares. Pela sua importância, após a Segunda Guerra Mundial, a Assembleia-Geral da ONU requereu a CDI, estudos que levassem a codificação da matéria, o que resultou, após quase 55 anos, no Projeto de Artigos sobre a Responsabilidade dos Estados por Atos Internacionalmente Ilícitos. Com os estudos realizados pela comissão, sob a relatoria do Professor Roberto Ago, a responsabilidade dos Estados é entendida como a consequência de um ilícito internacional, caracterizada pela violação de uma norma primária, sendo o dever de reparar, uma obrigação secundária.7 Por fim, não se pode deixar de anotar que se de um lado o pós-Segunda Guerra fez alavancar os estudos acerca da responsabilidade internacional dos Estados, de outro, é certo que os diversos casos de desastres ambientais que resultaram em litígios internacionais, calcados em decisões judiciais e arbitrais, como o caso da Fundição Trail, revelaram a ausência de normas para a responsabilização dos danos cometidos, seja por ato ilícito ou lícito, bem assim a necessidade de sua elaboração. 1.1.1 Casos que revelam a importância da responsabilização internacional É certo que somente após a Segunda Guerra Mundial, por conta das nefastas violações aos direitos humanos, bem como em razão de acontecimentos e litígios internacionais, especialmente no campo dos desastres ambientais, é que a responsabilidade internacional ganhou impulso e novos direcionamentos, inclusive quanto à natureza da responsabilização, no sentido de se reconhecer a responsabilidade objetiva. Assim, impende registrar alguns casos relevantes para a construção da responsabilidade civil internacional que, se não revelam a existência de uma norma violada, contribui para a sua regulamentação, inclusive com vistas ao aspecto preventivo. Por sua vez, anota-se que muitos dos casos ocorridos foram solucionados pela via negocial extrajudicial, mas, mesmo com esse viés, configuram-se relevantes à contextualização do tema tratado. 7 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 712. 258 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Um primeiro evento, citado por grande parte da doutrina especializada, diz respeito ao caso da Fundição Trail, considerado como a primeira manifestação do Direito Internacional Ambiental. No caso, uma grande fundição de chumbo e zinco localizada em Trail, na Columbia Britânica, no Canadá, emitiu extensas colunas de fumaça tóxica, composta por partículas sólidas e gases sulfurosos (chuva ácida), que atravessando o Canadá, atingiu os moradores de Newport, no Estado de Washington, região noroeste dos Estados Unidos, causando toda sorte de prejuízos nas plantações e nas florestas, um típico caso de poluição transfronteiriça. Os fazendeiros americanos buscaram uma compensação pelos danos econômicos sofridos e convenceram o governo americano a intervir em seu favor. Levado o caso a um tribunal arbitral constituído entre os Estados, o Canadá foi responsabilizado pelos danos sofridos. A sentença arbitral dispôs, ainda, acerca de comportamentos futuros a serem adotados pela Fundição Trail, a título de prevenir novos danos, bem como estabeleceu uma série de regulamentos, inclusive com direito de inspeção às instalações da empresa poluidora e modificação ou suspensão de suas regras. Assim, a sentença arbitral prolatada em 1941, considerada por alguns doutrinadores como um caso clássico do direito internacional ambiental, estabeleceu que: Nenhum Estado tem o direito de usar seu território ou de permitir o uso de seu território de maneira tal que emanações de gases ocasionem danos dentro do território de outro Estado ou sobre as propriedades ou pessoas que aí se encontrem, quando se trata de consequências graves e o dano seja determinado mediante prova certa e conclusiva.8 Seguramente o caso é sempre lembrado por ocasião do preceito registrado, que, aliás, se encontra em diversos instrumentos e decisões internacionais, como no Princípio 21 da Declaração de Estocolmo9, reiterado no Princípio 2 da Declaração do Rio de Janeiro10, bem 8 SILVA, G. E. do Nascimento e; ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. 15 ed., São Paulo: Saraiva, 2002. p. 322. 9 Princípio 21 da Declaração de Estocolmo - De acordo com a Carta das Nações Unidas e com os princípios do direito internacional, os Estados têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos, de acordo com a sua política ambiental, desde que as atividades levadas a efeito, dentro da jurisdição ou sob seu controle, não prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda a jurisdição nacional. 10 Princípio 2 da Declaração do Rio de Janeiro – Os Estados, de conformidade com a Carta das Nações Unidas e com o princípios de Direito Internacional, têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas próprias políticas de meio ambiente e desenvolvimento, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional. 259 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional como foi confirmado pela Corte Internacional de Justiça, quando do julgamento do caso do Estreito de Corfu e Gabcikovo-Nagymaros, casos que serão relatados mais a frente. É de notar que a solução ao caso retratado tem relação com o Projeto de Artigos da Comissão de Direito Internacional, no ponto em que determina a infração de uma obrigação pré-existente e avalia as consequências legais que surgem dessa infração.11 Por sua vez, o caso do petroleiro Torrey Canyon, de bandeira liberiana, fretado a uma sociedade californiana e subfretado a uma sociedade britânica, em 1967, ao colidir com um recife liberou no oceano toneladas de petróleo, atingindo, de início, a Cornualha e depois o litoral francês, caso de poluição do meio marinho, as chamadas marés negras. Embora na época já existisse duas Convenções relativas à prevenção de poluição do mar por óleo, a de Londres de 1954 e a emenda de 1962, com previsão de aplicação de sanções indenizatórias semelhantes as dos Estados-partes, a Libéria e os Estados Unidos não eram signatários. Por sua vez, nem o direito francês, nem o inglês, poderia dar a solução adequada ao caso posto, porque limitavam as indenizações a serem pagas pelos responsáveis do dano, de sorte que não atingiria a extensão do dano ocasionado. Dois pontos importantes do caso exposto. O primeiro diz respeito à adoção, dois anos após o acidente, em 1969, em Bonn, do Acordo para Cooperação no Trato com a Poluição do Mar do Norte por Óleo, e ainda, da Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil sobre Danos Causados por Poluição por Óleo e da Convenção Internacional relativa à Intervenção em Alto-Mar em casos de Baixas por Poluição de Óleo, firmadas em Bruxelas. Outro fato importante desencadeado pelo acidente foi que o governo britânico decidiu bombardear o casco do navio avariado, ato até então proibido, mas frente a grave situação do desastre, tornado legítimo.12 Outro acidente, tão importante na construção da responsabilidade internacional quanto os anteriores, ocorreu em 26 de abril de 1986, em um dos reatores da usina de Chernobyl, na União Soviética, que acabou por atingir e ocasionar danos na Áustria, Hungria, 11 DRUMBL, Mark A.. Trail Smelter and the International Law Comission’s Work on State Responsability for Internationally Wrongful Acts and State Liability. Washington & Lee Public Law and Legal Theory Research Paper Series. n. 03-06. May 2003. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract_id=411764>. Acesso em: 21.07.2012. 12 De acordo com o Professor Guido Soares, tal decisão “(...) foi citada pela Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas como um exemplo moderno da prática de um ato proibido pelo Direito Internacional (intervenção de forças armadas, em alto-mar, contra um navio mercante estrangeiro), mas tornado legítimo pela ocorrência da circunstância de um ‘estado de necessidade’, uma vez que representou ‘o único meio de resguardar um interesse essencial do Estado contra um perigo grave e iminente’, que teria sido a invasão das praias galesas por uma onda devastadora de petróleo bruto, ainda maior que aquela que inevitavelmente veia a ocorrer.”(op. cit, p.692). 260 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Itália, Iugoslávia, Reino Unido, Alemanha, Suécia e Suiça. A relevância do caso se apresenta não em relação às indenizações pelos danos, que, aliás, não mereceram grande atenção da doutrina, mas sim, repousa na adoção, pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), de duas Convenções: a Convenção sobre pronta notificação de acidentes nucleares, que cria a obrigação dos Estados de notificar prontamente aos outros Estados que possam ser atingidos pelo dano, e a Convenção sobre Assistência no caso de Acidente Nuclear ou Emergência Radiológica, na qual os Estados se comprometem em cooperar entre si e prestar pronta assistência em caso de acidente nuclear. Porém, embora importantes, não tratam do tema da responsabilidade internacional dos Estados. Voltando ao caso Estreito de Corfu, localizado entre a ilha de Corfu, na Grécia, e a costa da Albânia, em 1946, foi palco da explosão de dois navios de guerra britânicos, por conta de minas ali instaladas. A Corte Internacional de Justiça entendeu que a Albânia, por não dar conhecimento do perigo que significava a navegação naquelas águas, violara o direito internacional. Aqui também, como no caso da Fundição Trail, não foi tratado, propriamente, das questões ambientais, mas a importância se dá à medida que a sentença aplicada dita limites de soberania dos Estados.13 Por fim, o caso Gabcikovo-Nagymaros é considerado pela jurisprudência internacional, como o mais importante julgamento em que a Corte Internacional de Justiça se pronunciou sobre o direito ambiental internacional. Trata-se o caso de uma disputa que envolveu a construção de uma série de usinas hidrelétricas no rio Danúbio, no qual a Hungria sustentou que a Eslováquia não considerou as questões ecológicas, tampouco realizou um estudo sobre impacto ambiental. A Corte Internacional de Justiça entendeu que incumbiam as partes a aplicação das normas de direito internacional do meio ambiente, de sorte que a negociação se desse em harmonia com os objetivos dos tratados celebrados, com os princípios do direito internacional, bem como em razão do direito dos cursos de água internacionais. Observa-se, assim, que embora os casos demonstrem, em parte, a ocorrência de indenizações pelos danos causados a particulares, em nenhum deles houve providências de responsabilização, de fato, do Estado envolvido, para fins de reparação do meio ambiente prejudicado, o que não afasta a importância dos estudos e o fortalecimento do instituto, se não 13 SILVA, Geraldo Eulálio Nascimento e. Direito ambiental internacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Thex, 2002. p.16. 261 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional para regulamentar os comportamentos a título de evitar a ocorrência de dano a pessoas e ao meio ambiente, ao menos para propiciar a criação de um sistema de reparação. 1.2 OS ESTUDOS DE CODIFICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS NA COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL Os estudos da responsabilidade internacional dos Estados provêm dos trabalhos realizados pela Comissão de Direito Internacional da ONU, numa tentativa de promover a codificação e o desenvolvimento progressivo do Direito Internacional. Em 1955, a Comissão de Direito Internacional deu início aos estudos da responsabilidade do Estado com a nomeação do relator especial, o cubano Francisco Garcia Amador, que, durante o período de 1956 a 1961, apresentou seis relatórios ou propostas para discussão, cujo enfoque se ateve a questão da responsabilidade por danos as pessoas ou a propriedades de estrangeiros, matéria um tanto quanto limitada.14 O segundo relator nomeado, Roberto Ago (1963), em sintonia com o propósito de se empenhar a apresentar um trabalho substantivo, propôs uma mudança de foco, no sentido de que os estudos deveriam abarcar as regras gerais regentes da responsabilidade internacional. Em 1970, o relator Roberto Ago apresenta o relatório intitulado “A origem da responsabilidade internacional”, que analisou os princípios do ato internacionalmente ilícito como fonte de responsabilidade, as condições essenciais para a existência de um ato internacionalmente ilícito e da capacidade a cometer tais atos. A ele se deve, também, a estrutura e concepção geral que o projeto passaria a ter, como esquematizado: a primeira parte centrada na origem da responsabilidade internacional, a segunda parte nos conteúdos, formas e graus da responsabilidade internacional e a terceira, na aplicação das regras sobre responsabilidade internacional e resoluções de controvérsias.15 No total, foram oito os relatórios apresentados por Ago, no período de 1963 a 1979, e embora os avanços nos estudos, não foram suficientes para se proceder a sua codificação. Da definição de ato ilícito por ele apresentada, impende anotar que sobreviveu a diferentes propostas, bem como que seu plano de trabalho foi mantido pelos relatores que lhe sucedeu, 14 GARCIA, Márcio P.P. Responsabilidade internacional do Estado: atuação da CDI. Revista de Informação Legislativa. Brasília, a.41, n. 162, abr./jun.2004. p.279. 15 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 719. 262 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional sujeito apenas a pequenas alterações, o que revela a importância do trabalho realizado nesse período. Com a saída de Roberto Ago da relatoria, porque eleito para a Corte Internacional de Justiça, em seu lugar, em 1979, foi nomeado o jurista Wilhem Riphagen, sucedido por Gaetano Arangio Ruiz, em 1987, que por sua vez foi substituído pelo jurista britânico James Crawford, em 1996, em cuja relatoria deu-se a conclusão do projeto de artigos sobre a responsabilidade internacional dos Estados. Na 53ª sessão, em 2001, a CDI aprovou o conjunto final de projeto de artigos sobre a responsabilidade dos Estados por atos internacionalmente ilícitos, porém ainda se encontra sujeito a novo período de sessões e rodadas de debates, o que pode levar a novas recomendações da CDI para se atender aos anseios dos Estados.16 Embora a obra da CDI seja considerada como uma importante fonte doutrinária da atualidade, não se preocupou em dar ênfase ao Direito Internacional do Meio Ambiente. Não por isso, seguramente, o projeto de artigos exerce relevância na determinação, ainda que de modo subsidiário, no conteúdo do Direito Internacional. Aliás, não são raras às vezes em que são invocados pela Corte Internacional de Justiça. Contudo, há que se registrar que ainda não há consenso entre os Estados de que o projeto de artigos possa convergir a uma Convenção ou um Tratado. Aliás, de sua aprovação pela Comissão até os dias atuais, não se verifica qualquer movimento nesse sentido. O projeto de convenção sobre responsabilidade internacional dos Estados, adotado em 2001, é composto por 59 artigos que têm aplicação geral em todas as áreas do Direito Internacional. Por sua vez, o projeto de artigos desenvolve uma estrutura regulatória de obrigações de um Estado para com outro. Apresenta como tema, dentre outros, a conduta atribuída ao Estado, determinação da infração, responsabilidade de um Estado em conexão com atos de outro Estado, excludentes do ilícito, segurança de não repetição, reparação, compensação, contramedidas, etc. Nessa linha, o texto encontra-se dividido em quatro partes: Parte I – O ato internacionalmente ilícito (arts. 1º a 27); Parte II – O conteúdo da Responsabilidade 16 O texto adotado pela Comissão na 53ª sessão, em 2001, e submetido à Assembleia Geral , contém comentários dos artigos e consta do Yearbook of the international law comission. Vol. II, Part I e II, 2001. Disponível em:<http://untreaty.un.org/ilc/publications/yearbooks/2001.htm>.Acesso em 24.04.2012. 263 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Internacional do Estado (arts. 28 a 41); Parte III – Implementação da Responsabilidade do Estado (arts. 42 a 54) e, Parte IV – Disposições Gerais (arts. 55 a 59).17 Impende registrar que o projeto de artigos não estabelece obrigações primárias que definem padrões de conduta. Na verdade, eles estabelecem obrigações secundárias que nascem de uma infração de uma obrigação primária independente e preexistente e legitimam o Estado a pedir a reparação pela violação da norma primária. Esta distinção entre obrigações primárias e secundárias foi impulsionada por Roberto Ago (1963/1979) que entendeu ser impossível a elaboração do projeto de artigos sem tal distinção. Sobre o tema, esclarece Guido Soares: Posto isto, a responsabilidade, no entender daquele pranteado professor da Universidade de Milão, seria a consequência de um ilícito internacional, este configurado como uma violação de uma obrigação primária, sendo o dever de reparar uma obrigação secundária emergente da violação da primeira.18 Nessa linha de entendimento, a distinção entre normas primárias e secundárias reside em dizer que as primeiras representam as regras de conduta, que uma vez violadas, fazem surgir às obrigações secundárias, possibilitando, nos dizeres de André de Carvalho Ramos, na possibilidade de se “extrair regras gerais de responsabilidade internacional utilizáveis em todos os ramos do Direito Internacional”19. 1.3 ASPECTOS GERAIS DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS O estabelecimento da responsabilidade internacional dos Estados passa necessariamente pelo estudo de alguns de seus elementos essenciais, sem os quais não se configura o instituto. Nessa linha, por primeiro, mister apresentar o conceito de responsabilidade, para então, se chegar em suas características elementares, típicas do mecanismo de responsabilização. 17 SALIBA, Aziz Tuffi. Projeto da comissão de Direito Internacional das Nações Unidas sobre responsabilidade internacional dos Estados. Disponível em: < http://novodireitointernacional.com.br/wpcontent/uploads/2012/02/Projeto-da-CDI-sobre-Responsabilidade-Internacional-dos-Estados.pdf>. Acesso em: 15.06.2012. 18 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 712. 19 RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional por violação de direitos humanos: seus elementos, a reparação devida e sanções possíveis: teoria e prática do direito internacional Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.76. 264 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional O termo responsabilidade vem do verbo latim respondere, que se traduz em um direito a determinada resposta frente a uma violação da norma jurídica. A respeito, Hildebrando Accyoli anota que para a Corte Internacional de Justiça, a responsabilidade internacional é um princípio de direito internacional, uma concepção geral do direito e que, qualquer violação de um compromisso implica na obrigação de reparar. 20 Para o jurista português, Jorge Miranda, responsabilidade internacional é: Sempre que um sujeito de direito viola uma norma ou um dever a que está adstrito em relação com outro sujeito ou sempre que, por qualquer forma, causa-lhe um prejuízo, incorre em responsabilidade; fica constituído em dever específico para com o lesado, Nisto consiste, muito em resumo, a responsabilidade.21 Conquanto de valia os diversos conceitos trazidos pela doutrina internacional, o projeto da CDI adotado em 2001, não se preocupou em definir o conceito de responsabilidade internacional, mas sim, em determinar seu nascimento e suas consequências. Nesse sentido, expressa o art. 1º: Art. 1º A responsabilidade do Estado por seus atos internacionalmente ilícitos. Todo ato internacionalmente ilícito de um Estado acarreta sua responsabilidade internacional.22 Dessa forma, acerca do conceito, pode-se concluir que caso um Estado pratique ato ou fato ilícito contra uma norma jurídica ou obrigação internacional que venha a afetar outro Estado ou a comunidade internacional como um todo, especialmente se tratar de dano ambiental, incorrerá em responsabilidade internacional. Dentre os elementos para a caracterização da responsabilidade internacional, estão à existência de um ato ou omissão que viole uma obrigação estabelecida por uma norma de Direito Internacional e que tal ato ou omissão seja imputado ao Estado ou a uma organização internacional. 20 ACCIOLY, Hildebrando. Príncipes Généraux de La Responsabilité Internacionale D’Après La Doctrine et La Jurisprudence. Recueil des Cours, vol.96 (1959-I), p.353. 21 MIRANDA, Jorge. Sobre a responsabilidade internacional. Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, ano 10, v. 20, jul./dez. 2002, p.305/317. 22 No texto original: Article 1 - Responsibility of a State for its internationally wrongful acts. Every internationally wrongful act of a State entails the international responsibility of that State. Disponível em: <untreaty.un.org/ilc/texts/instruments/english/draf20%articles/9_6_2001.pdf>. Acesso em : 15.06.2012. 265 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Para a caracterização do ilícito (ação ou omissão) impõe-se a afronta a uma norma de Direito Internacional: um princípio geral, uma regra costumeira, um dispositivo de tratado em vigor, dentre outros. Porém, para ensejar a responsabilidade, o ato deve ser ilícito perante o Direito Internacional. Assim, não serve de escusa ao Estado, o fato do ilícito internacional ser ato lícito no direito interno. Acerca do ato ilícito, anota-se o artigo 2º do projeto da CDI: Art. 2º. Há um ato internacionalmente ilícito do Estado quando a conduta, consistindo em uma ação ou omissão: a) é atribuível ao Estado consoante o Direito Internacional; e b) constitui uma violação de uma obrigação internacional do Estado. Por sua vez, dispõe o artigo 3º, in verbis: Art. 3º. A caracterização de um ato de um Estado, como internacionalmente ilícito, é regida pelo Direito Internacional. Tal caracterização não é afetada pela caracterização do mesmo ato como lícito pelo direito interno. A consequência de tal regra, aplicada às questões ambientais, é que um ato ou omissão plenamente justificados pelo direito interno pode ser considerado ilícito pelo Direito Internacional, desde que contrário as suas normas escritas ou costumeiras.23 Nessa situação, o Estado será responsabilizado, quer no caso de inexistir norma interna que regule uma atividade de resultados lesivos em outros Estados, quer no caso de um particular, que embora siga a risca a legislação local, venha a causar dano no território de outro Estado, como no citado caso da Fundição Trail. No que toca a imputabilidade, a doutrina entende como sendo o nexo causal que liga o ato ilícito ao sujeito de direito responsável pela violação. Mister observar se o ato foi praticado por um sujeito do Direito Internacional e, bem assim, se há o nexo de causalidade que liga este sujeito ao ato considerado ilícito. Segundo Valerio de Oliveira Mazzuoli, a imputabilidade é “o vínculo jurídico que se forma entre o Estado (ou organização internacional) que transgrediu a norma internacional e o Estado (ou organização internacional) que sofreu a lesão decorrente de tal violação”24. 23 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 730. 24 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 577. 266 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Não se confunde com a autoria, porque nem sempre o autor do ilícito é o responsável por este perante a ordem internacional. Nessa ordem de ideias, o ilícito praticado pelos funcionários do Estado, gera responsabilidade internacional para este e não àqueles. Por sua vez, a atribuição da conduta a um Estado é tratada no projeto da CDI no Capítulo II, da Parte I, nos artigos 4º a 11: Art. 4º Conduta dos órgãos de um Estado 1. Considerar-se-á ato do Estado, segundo o Direito Internacional, a conduta de qualquer órgão do Estado que exerça função legislativa, executiva, judicial ou outra – qualquer que seja sua posição na organização do Estado e independentemente de se tratar de órgão do governo central ou de unidade territorial do Estado. 2. Incluir-se-á como órgão qualquer pessoa ou entidade que tenha tal status de acordo com o direito interno do Estado. Ressalta-se, ainda, que o artigo 2º, já citado, não fala em imputabilidade, mas em atribuição do Estado. Isso se dá, segundo Guido Soares, porque em alguns sistemas jurídicos, a expressão “imputável” significa avaliar o agente, sua vontade, a título de determinar a responsabilidade criminal, situação que, pelo projeto, não foi alvo de codificação. Segundo ainda o citado professor, o projeto também não emprega a expressão culpa, porque, no entender da CDI, o ato gerador da responsabilidade deriva da oposição ao próprio direito internacional e não de um ato culposo.25 Aliás, tal linha de posicionamento foi objeto de registro pelo Relator James Crawford, quando da revisão da primeira parte do Projeto de Artigos, no sentido de que este tem como ponto central em seu capítulo um, que a infração a uma obrigação internacional impõe a responsabilidade ao Estado, porém, a matéria é tratada sem qualquer outro elemento adicional, tal como a culpa ou o dano.26 Assim como a culpa, o projeto da CDI não fez menção à ocorrência de dano como um dos elementos constitutivos do ilícito ambiental. Na visão da CDI, o dano é consequência do próprio ilícito internacional e se mostra relevante tão somente no momento de determinar o quantum debeatur. Na verdade, o projeto não levou em conta a prática internacional no sentido de entender a ocorrência do dano como elemento fundamental da responsabilidade. 25 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 726. 26 CRAWFORD, James. Revising the Draft Articles on Sate Responsibility. European Jornal of International Law. Vol. 10, n. 2, 1999. p.438. 267 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Vale dizer, o dano não seria um elemento independente, porque contido nas normas primárias e não nas secundárias, que geram a responsabilidade. Porém, como anotado por Luis Cesar Ramos Pereira: A doutrina mais recente assim não entende, tendo em vista ser o inadimplemento de uma obrigação internacional um elemento necessário, mas isoladamente sem a demonstração do dano sofrido, não é suficientemente forte para caracterizar um delito internacional.27 Nessa linha, “se não existe direito lesado, não se pode falar em responsabilidade, no sentido em que aqui é tomada a palavra”.28 Embora o projeto de artigos aprovado pela CDI não trate expressamente do dano como elemento da responsabilidade, o art. 31 trata da reparação do prejuízo29, que compreende tanto o dano material, como o moral causado pelo ato internacionalmente ilícito de um Estado. Por este viés, impende anotar que o dano nem sempre será material, ou seja, em nem todos os casos haverá uma expressão econômica. Há também casos de dano imaterial, ou moral, que leva o Estado faltoso a uma reparação, porém, destituída de valor econômico. Nesse contexto, a doutrina recente, em sua grande maioria, define o dano como o terceiro elemento constitutivo da responsabilidade internacional, contudo, vale frisar que o dano a um sujeito de direito internacional, por si só, não configura a responsabilidade internacional, porque, para esta, faz-se necessário, por evidente, que o dano seja decorrente de um ato ilícito internacional cometido por um Estado ou organização internacional. Por fim, não se pode deixar de ressaltar a importância do reconhecimento do dano como elemento da responsabilidade internacional, especialmente em se tratando de degradação ambiental, onde o dano ambiental gerado assume o papel preponderante na responsabilização, especialmente na reparação ao status quo ante, ou se impossível, na indenização. 27 PEREIRA, Luis Cezar Ramos. Ensaio sobre a responsabilidade internacional do Estado e suas consequências no direito internacional: a saga da responsabilidade internacional do Estado. São Paulo: Ltr, 2000. p. 95. 28 ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1961. p.63. 29 Art. 31. Reparação 1. O Estado responsável tem obrigação de reparar integralmente o prejuízo causado pelo ato internacionalmente ilícito. 2. O prejuízo compreende qualquer dano, material ou moral, causado pelo ato internacionalmente ilícito de um Estado. 268 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 2 DOS SISTEMAS DE RESPONSABILIDADE DOS ESTADOS NO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE – EXCLUDENTES DE RESPOSNSABILIDADE E MEIOS DE REPARAÇÃO Visto os elementos da responsabilidade internacional, cumpre analisar as teorias aplicáveis a responsabilidade internacional, ou melhor, a natureza jurídica deste instituto. Neste ponto, duas teorias procuram explicar a responsabilidade internacional dos Estados, a primeira calcada na teoria da responsabilidade subjetiva, ou com culpa, e a outra, teoria da responsabilidade objetiva, na qual a responsabilidade advém pela só infração da norma internacional, sem se perquirir acerca da culpa. Por sua vez, fixados os termos da responsabilidade, seja por culpa ou objetiva, passase a analisar as excludentes de responsabilidade e os meios passíveis de reparação. 2.1 RESPONSABILIDADE SUBJETIVA OU POR CULPA A responsabilidade do Estado no sistema da responsabilidade subjetiva decorre do ato ilícito, advindo de uma conduta culposa praticada por um Estado ou organização internacional e que se constitui na causa da obrigação de reparar. É a mais antiga das teorias que tem sua origem no direito romano, segundo o qual que in culpa non est, natura ad nihil tenetur. No Direito Internacional a sistematização, na linha do princípio do direito romano, foi desenvolvida por Hugo Grotius, para o qual a culpa se insere no conceito de responsabilidade internacional do Estado, concepção esta ainda admitida por alguns autores. Sua característica fundamental reside na violação da norma internacional (constante em uma proibição) centrada na noção de culpa. Nesse sentido, um Estado para ser responsável perante o Direito Internacional precisa não somente violar uma norma internacional, mas fundamental violá-la com culpa ou dolo. Vale dizer, para que haja a responsabilidade do Estado, necessário que exista a intenção ilícita ou a negligência. Nesse sentido, esclarece Luis Cesar Ramos Pereira: O fato que gera ou origina a Responsabilidade Internacional deve se basear não só na quebra de uma obrigação internacional anteriormente assumida, mas, também, deve constituir uma falta ou uma ausência, com base na omissão, dolo, negligência, imprudência ou imperícia. Ou seja, a doutrina ‘antiga’, admitia comumente que uma violação do Direito Internacional, só 269 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional faz responsável o Estado quando tenha havido, por parte do órgão estatal infrator, uma ação ou omissão culpável.30 Por sua vez, importa ressaltar que o sistema da responsabilidade subjetiva não se encontra regulamentado por normas escritas especiais, mas sua regulamentação se dá por meio de normas esparsas, costumes internacionais, jurisprudências de tribunais e arbitrais, além dos princípios gerais do direito e da própria doutrina. Conclui-se, assim, que o elemento essencial que configura a responsabilidade internacional do Estado no sistema da responsabilidade subjetiva é a ocorrência de um ato ou omissão culposa atribuível a um Estado ou organização internacional que viole uma norma de Direito Internacional. Embora consagrada na jurisprudência internacional, a responsabilidade subjetiva baseada no elemento da culpa acaba por tornar complicada a responsabilização do Estado que praticou o ilícito, principalmente em caso de dano ambiental. Veja-se que nesse sistema cabe à vítima fazer prova de todos os elementos necessários à questão da responsabilidade. Porém, a prova de uma intenção, do elemento volitivo em Direito Internacional, muitas vezes é impossível, em virtude da soberania ou poderio exercido pelo Estado ofensor. Na verdade, a situação de provar a culpa de um Estado por determinado ato ou omissão tido por ilícito, acaba por criar uma limitação quase que intransponível ao Estado ofendido, notadamente se a prova que se pretende levantar diz respeito a ato ou omissão oriundo de agentes do Estado ou de sua Administração.31 Ademais, não se pode esquecer de que em se tratando de responsabilidade por dano ambiental, em muitas das vezes, o fato ilícito deriva de uma atividade lícita, o que revela, com maior expressão, a dificuldade na aplicação desse sistema. Assim é que, considerada a evidente dificuldade na prova da culpa do Estado infrator, um novo sistema surge como reação ao anterior, no sentido de não mais utilizar o elemento culpa na composição da responsabilidade. 30 PEREIRA, Luis Cezar Ramos. Ensaio sobre a responsabilidade internacional do Estado e suas consequências no direito internacional: a saga da responsabilidade internacional do Estado. São Paulo: Ltr, 2000, p. 102. 31 Idem, p. 103. 270 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 2.2 RESPONSABILIDADE OBJETIVA O sistema da responsabilidade subjetiva, defendida por Hugo Grotius, sofreu forte reação de Triepel, que instituiu à responsabilidade uma base objetivista.32 Tal orientação foi seguida por Dionzio Anzilotti, considerado o maior difundidor desta teoria, cujo dever de reparação nasce toda vez que houver uma violação da norma internacional. Assim é que para a corrente objetivista, a responsabilização do Estado tem sua base tão somente na violação de normas de Direito Internacional, observado o nexo causal entre a atividade do Estado e o ato ou omissão contrário ao Direito Internacional, não se perquirindo acerca da culpa ou de qualquer elemento psíquico. Nesse viés, a regulamentação se dá por meio de normas escritas e precisas, delimitada dentro de um campo de assunto determinado e que instituem a obrigação de reparação do dano independente do ato (omissão) que lhe deu causa ser lícito ou ilícito. Vale dizer, ocorrido o dano surge o dever de reparar.33 Nessa linha, o ensinamento de André de Carvalho Ramos A responsabilidade objetiva é caracterizada pela aceitação da ausência da prova de qualquer elemento volitivo ou psíquico do agente. Bastaria a comprovação do nexo causal, da conduta e do dano em si.34 Desta feita, nesta base de fundamento, a CDI adotou a responsabilidade objetiva no art. 3º (já transcrito), ao indicar os dois elementos do fato ilícito internacional, vale dizer, a conduta (ação ou omissão) e o fato (violação da norma de Direito Internacional). De outro lado, parece ser crescente a admissão de uma responsabilidade internacional por ato lícito, especialmente no campo do Direito Internacional do Meio Ambiente, na qual o Estado responde pelos danos causados independente das precauções tomadas, o que, em tese, afasta qualquer cláusula de exoneração de responsabilidade. Do mesmo modo que a CDI estudou e adotou o projeto de artigos sobre a responsabilidade internacional do Estado por atos ilícitos, também adotou uma codificação só para eventos lícitos, provocadores de danos transfronteiriços. 32 ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1961. p. 64. SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 134/135. 34 RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional por violação de direitos humanos: seus elementos, a reparação devida e sanções possíveis: teoria e prática do direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.75. 33 271 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Daí se vê a importância e o crescimento do regime de responsabilidade objetiva por ato lícito do Estado. Por sua vez, frisa-se que tal sistema de responsabilidade objetiva por risco, por ser exceção ao sistema geral do Direito Internacional, que segue a regra subjetiva, deve ser regulado por normas escritas e precisas35, como a que se deu, por exemplo, com a Convenção sobre responsabilidade civil contra terceiros no campo da Energia Nuclear, adotada em Paris em 1960, sob a égide da OCDE. Vale ressaltar que a previsão desse tipo de responsabilidade expressamente nos textos do jus scriptum é condição sine qua non para a responsabilização, independentemente, ainda, de se tratar de ato lícito ou ilícito. Assim, embora ainda carecedora de maiores estudos pela CDI, a responsabilidade internacional do Estado por ato lícito, regida pelo sistema da responsabilidade objetiva por risco, tem sido objeto de convenções em casos especiais que necessitam de um tratamento diferenciado acerca da responsabilidade internacional, como, por exemplo, as atividades, que apesar de serem lícitas, são consideradas extremamente perigosas: as que tratam de lançamentos espaciais, energia nuclear, bem como aquelas que dizem respeito a transporte e uso de hidrocarbonetos. Sobre o tema, Rezek esclarece: Igualmente certo, contudo, é que não se admite em direito das gentes uma responsabilidade objetiva, independente da verificação de qualquer procedimento faltoso, exceto em casos especiais e tópicos, disciplinados por convenções recentes. ‘Assim as atividades nucleares de índole pacífica, bem como as atividades espaciais, embora perfeitamente lícitas, podem causar danos que o Estado responsável deve reparar. Seria, entretanto, mais apropriado entender que neste caso a responsabilidade resulta não dos empreendimentos espaciais ou nucleares, lícitos em si mesmos, mas da recusa de compensar danos causados a outrem’.36 Pode-se dizer, então, que neste sistema (por risco) a responsabilidade não depende da ilicitude do ato, nem se o Estado tomou ou não as precauções exigidas, mas tem por pressuposto a responsabilidade do agente fundada em bases escritas e bem definidas. 35 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2001. p.134. 36 REZEK, José Francisco. Direito internacional público. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p.263. 272 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Há que se anotar, porém, que não há, ainda, consenso acerca deste regime de responsabilidade entre os doutrinadores. André de Carvalho Ramos entende que “a teoria absoluta como uma teoria criadora de novas obrigações primárias – convencionais ou costumeiras – e não uma autêntica teoria de responsabilidade internacional do Estado”37. Por seu turno, para Luis Cezar Ramos Pereira, não se mostra necessária a separação da responsabilidade, se oriunda de um ato ilícito ou lícito, porque, no seu pensar, em ambos os casos, a ofensa recai em normas de Direito Internacional.38 No ponto, vale lembrar que o julgado do caso da Fundição Trail, cujo trecho da sentença já foi objeto de citação, é utilizado largamente em diversos outros casos de julgamento, seja pela Corte Internacional de Justiça, seja pelos Estados, justamente em situações que envolvem atos lícitos, porém, danosos. Mister ponderar, por fim, que a responsabilidade internacional do Estado, sob a modalidade do risco, surge especialmente no Direito Internacional do Meio Ambiente, em razão da regra tradicional (subjetiva) não se mostrar suficiente a solução das responsabilidades derivadas da degradação ambiental, porque, não é demais frisar, que o dano ambiental, por demais das vezes, reflete além dos limites territoriais de um Estado e advém de atividades lícitas. Nessa linha, ressalvadas as dificuldades no avanço da codificação, por despeito dos próprios Estados que não aderem à norma escrita que, em tese, significaria o “destronamento” de sua soberania, certo é que já são diversas as convenções que tratam da responsabilidade internacional do Estado por ato lícito. Assim, em que pese o sistema da responsabilidade objetiva ser a melhor expressão para a pronta reparação do dano ambiental, não se pode olvidar de que só tem aplicação quando prevista em normas escritas, claras e precisas. Ocorre que, por força do avanço da tecnologia, não se pode prever e responsabilizar todas as situações passíveis de gerar dano ambiental. De sorte que, se não previstas, não se pode aplicar a responsabilidade objetiva, o que leva, nesses casos, a aplicação da 37 RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional por violação de direitos humanos: seus elementos, a reparação devida e sanções possíveis: teoria e prática do direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.34. 38 PEREIRA, Luis Cezar Ramos. Ensaio sobre a responsabilidade internacional do Estado e suas consequências no direito internacional: a saga da responsabilidade internacional do Estado. São Paulo: Ltr, 2000. p. 118. 273 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional responsabilidade subjetiva, onde se faz necessário apurar a culpa do suposto Estado ofensor, o que, como vimos, é altamente comprometedor em se tratando de efetividade na reparação do dano. 2.2.1 Convenções e Tratados do Direito Internacional do Meio Ambiente que contemplam normas de responsabilidade objetiva De acordo com Guido Soares, a responsabilidade objetiva nasceu com os textos jus scriptum, notadamente quanto à regulamentação de atividades danosas ao meio ambiente, sendo a Convenção sobre Responsabilidade Civil contra Terceiros no Campo da Energia Nuclear, adotada em Paris, em 1960, a primeira a versar sobre a responsabilidade internacional do Estado, frisa-se, no sistema da responsabilidade objetiva. Alguns autores, no entanto, consideram como primeira manifestação da responsabilidade objetiva por dano ambiental, os casos da Fundição Trail e do Estreito de Corfu. Observa-se, por sua vez, que a idéia de responsabilizar e indenizar um dano ecológico se encontra prevista no Princípio 22 da Declaração de Estocolmo39, entendimento corroborado no Princípio 13 da Declaração do Rio de Janeiro40. Além da Convenção sobre Responsabilidade Civil contra Terceiros no Campo da Energia Nuclear, adotada em Paris, em 1960, anota-se alguns Tratados e Convenções que se encontram em vigor internacional e que versam sobre responsabilidade objetiva, de maneira específica sobre: a) danos nucleares – Convenção de Viena sobre Responsabilidade Civil por Danos Nucleares, de 1963, promulgada no Brasil em 03.09.1993; b) dano à poluição marinha por óleo – Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil por Danos Causados por Poluição por Óleo, Bruxelas, 1969, promulgada no Brasil em 28.03.1977; c) danos causados 39 Princípio 22 da Declaração de Estocolmo. Os Estados devem cooperar para o contínuo desenvolvimento do Direito Internacional no que se refere à responsabilidade e à indenização, às vítimas de contaminação e de outros danos ambientais por atividades realizadas dentro da jurisdição ou sob o controle de tais Estados em zonas situadas fora de sua jurisdição. 40 Princípio 13 da Declaração do Rio de Janeiro. Os Estados devem desenvolver legislação nacional relativa à responsabilidade e indenização das vítimas de poluição e outros danos ambientais. Os Estados devem ainda, cooperar de forma expedita e determinada para o desenvolvimento de normas adicionais de direito ambiental internacional relativas à responsabilidade e indenização por efeitos adversos causados por danos ambientais em áreas fora de sua jurisdição, por atividades dentro de sua jurisdição ou sob seu controle. 274 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional por objetos espaciais – Convenção sobre Responsabilidade Internacional por Danos Causados por Objetos Espaciais, Londres, 1972, promulgada em 22.03.1972.41 Ainda, no campo das Convenções que têm papel fundamental no sistema da responsabilidade objetiva e no Direito Internacional do Meio Ambiente, no quadro do Conselho da Europa foi adotada a Convenção Européia sobre Responsabilidade Civil dos Danos resultantes de Atividades Perigosas para o Meio Ambiente (Lugano, 1993). Cabe aqui sua referência, em especial, porque surge após o impacto gerado pela poluição gerada no rio Reno pelo incêndio da fábrica Sandoz42. É considerada a primeira Convenção Internacional que tratou do tema da responsabilidade internacional por atividades perigosas ao meio ambiente, com declaração expressa de sua finalidade preservacionista. Referida Convenção (Lugano) adota a regra da responsabilidade objetiva no artigo 6º, no qual o operador será responsável pelo dano causado pelas atividades resultantes de incidentes ocorridos no período em que encontrava no controle das atividades, e no art. 7º, que trata da responsabilidade em relação a locais para depósito permanente de resíduos. Traz, ainda, como ponto inovador, a possibilidade de se restringir o conceito de coisa julgada, no sentido de que ao Estado ofensor não é dado o direito de continuar a poluir, ainda que paga a indenização em processo judicial anterior (art. 10). Também de caráter moderno, o disposto no art. 3º ao inserir no rol das atividades perigosas, as manipulações com microorganismos geneticamente modificados, quando destas resultem situações de risco para o homem e o meio ambiente. De modo não diferente, a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (Montego Bay, 1982) adotou a responsabilidade internacional objetiva por risco no caso de poluição dos mares por vazamento de petróleo (art. 235). Por sua vez, a Convenção de Bamako (1991), que diz com a interdição da importação de rejeitos perigosos para a África e ao controle da movimentação transfronteiriça e a gestão desses rejeitos na África, impõe a responsabilidade objetiva e ilimitada, assim 41 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2001. p.778/ 780. 42 Trata-se, na verdade, dos efeitos que um incêndio numa das fábricas da Sandoz gerou ao meio ambiente. O problema se deu porque a água utilizada para combater o incêndio num dos depósitos da fábrica que continha vários produtos químicos, foi lançada diretamente no rio Reno, num período de 24 horas, o que gerou uma onda tóxica que atravessou o Reno e deixou marcas danosas não só a pessoas, mas principalmente ao meio aquático e, por conseqüência, ao abastecimento de águas de cidades de outros Estados. Embora a doutrina entenda pela responsabilidade internacional do Estado Suíço, que foi omisso na supervisão no que respeita as normas de estocagem de produtos tóxicos, bem como pelos métodos de combate ao incêndio, as indenizações se resolveram extrajudicialmente, seja com o envio de reclamações diretamente a empresa Sandoz, seja a seguradora. 275 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional como a responsabilidade conjunta e solidária aos produtores de rejeitos perigosos (art. 4º, alínea 3, letra “b”). Não excluindo a importância para o Direito Internacional do Meio Ambiente, bem assim para o instituto da responsabilidade internacional, certo é que tais convenções e tratados surgem de uma necessidade de adequar situações contraditórias, ou melhor, embora a atividade seja de risco, não se pode proibir a atuação, por força de sua essencialidade. Todavia, conquanto tais convenções não signifiquem a efetiva proteção do meio ambiente, não se pode afastar que a instituição de uma responsabilidade objetiva, por risco, venha a significar um equilíbrio dos interesses dos Estados em razão de atividades potencialmente causadoras de danos transfronteiriços, forte nos princípios da cooperação e da precaução. 2.3 AS EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE NO PROJETO DE CONVENÇÃO DA COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL A Parte I, Capítulo V, do Projeto da CDI trata das circunstâncias que excluem a responsabilidade nos artigos 20 a 25. Frisa-se que as circunstâncias elencadas são causas de exclusão de ilicitude, porém não isentam, salvo no caso de legítima defesa, o Estado do dever de indenizar por razões de justiça, igualdade ou de segurança internacional.43 A primeira situação trazida diz respeito ao consentimento (art. 20). Este se dá quando um Estado consente a outro a prática de um ato que em condições normais seria tido por ilícito internacional, como no caso do envio de forças por um Estado ao território de outro, com a permissão deste, para o fim de reprimir alguma atividade terrorista. Contudo, o ato praticado deve se ater aos limites do que foi consentido. A legítima defesa (art. 21) pressupõe uma reação imediata a uma agressão injusta, desde que dentro dos limites da autodefesa permitida pelo art. 51 da Carta das Nações Unidas, que expressa: Art. 51 Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha 43 MIRANDA, Jorge. Sobre a responsabilidade internacional. Revista Fundação Escola Superior Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, vol. 20, jul/dez. 2002. p.311. 276 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao ao Conselho de Segurança e não deverão de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais.44 De maneira a esclarecer: Frisa-se que a legítima defesa pressupõe sempre uma agressão injusta (sem causa) e uma reação estatal imediata, levada a efeito pela necessidade de defesa, necessária à preservação de pessoas e da dignidade do Estado. Essa reação do Estado deve dar-se por meio de uma medida lícita de defesa, manifestada de maneira adequada, proporcional ao ataque ou ao perigo iminente.45 Por sua vez, a contramedida (art. 22) constitui num ato ilícito, porém justificado por ser o único meio de combate a outro ato igualmente ilícito praticado por outro Estado, e que, por essa característica, perde o caráter de ilícito. A título de exemplo, citam-se como formas de contramedida as restrições unilaterais e discriminatórias ao comércio internacional. No ponto, Guido Soares lança uma crítica que merece o respeito da comunidade internacional: O exercício de medidas ilícitas, que se tornem lícitas, porque tomadas em face da ilicitude de outrem, é por demais excepcionador dos princípios gerais do Direito, para que possa ser utilizado sem grandes reservas ou condicionamentos. O grande perigo de permitir ilícitos de maneira não limitada e, sobretudo de maneira unilateral por parte dos Estados é que poderia servir de pretexto para a comissão de determinados ilícitos, sob a capa de proteção de outros valores menos nobres que o princípio da nãointervenção.46 O autor, alerta, ainda, que em se tratando de proteção ao meio ambiente, a contramedida utilizada por determinado Estado contra outro e que venha a refletir no comércio internacional, revela-se, nada mais que uma forma de mascarar uma política protecionista e discriminatória. 44 ONU. Carta das Nações Unidas. Disponível em: < http://www.oas.org>. Acesso em 20.06.2012. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.592. 46 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2001. p.862. 45 277 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Assim, embora prevista a contramedida como forma excludente de responsabilidade, há que se ponderar sua aceitação, em especial a justificar a real necessidade de aplicação. A excludente de força maior (art. 23) é aceita quando o ato ilícito ocorre em razão de um evento externo imprevisto e fora de controle do Estado. Nesse caso, não há manifestação de uma vontade ilícita de um Estado, mas o ilícito configura-se por circunstâncias alheias à vontade do Estado, sem que lhe seja oportunizado qualquer tipo de previsão e resistência a sua ocorrência. O artigo explicita, ainda, os casos em que a força maior não será aplicada: quando a força maior se deve exclusivamente ou em conjunto de fatores a própria conduta do Estado que a invoca ou quando o Estado assumiu o risco para que a situação ocorresse.47 A excludente do perigo extremo (art. 24) é invocada quando não se tem outro modo razoável de salvaguardar vidas que estejam confinadas aquele Estado ou a título de proteção do meio ambiente. A título de exemplo, registra-se que tal circunstância encontra-se prevista em dois artigos da Convenção de Montego Bay: no art. 18, § 2º, que trata da paragem e fundeamento no caso de passagem inocente48 e art. 142, § 3º, que estabelece os direitos dos Estados costeiros em tomar medidas para prevenir, atenuar ou eliminar um perigo grave e iminente em seu litoral, resultantes de poluição ou de ameaça de poluição ou outros acidentes causados por qualquer outra atividade49. O artigo também aponta duas situações em que a excludente não pode ser aplicada. Caso a situação de extremo perigo é devida em razão da conduta do próprio Estado que a invoca e se o ato criar um perigo comparável ou maior (art. 24, § 2º). Por fim, o art. 25 dispõe acerca do estado de necessidade, que se dará somente quando não houver outro meio de resguardar o interesse numa situação de perigo iminente e 47 Art. 23. Força maior. 1. A ilicitude de um ato de um Estado em desacordo com uma obrigação internacional daquele Estado será excluída se o ato se der em razão de força maior, entendida como a ocorrência de uma força irresistível ou de um acontecimento imprevisível, além do controle do Estado, tornando materialmente impossível, nesta circunstância, a realização da obrigação. 2. O parágrafo 1º não se aplica se: a) a situação de força maior é devida, por si só ou em combinação com outros fatores, à conduta do Estado que a invoca; ou b) o Estado assumiu o risco daquela situação ocorrida. 48 Art. 18, § 2º. A passagem deverá ser contínua e rápida. No entanto, a passagem compreende o parar e o fundear, mas apenas na medida em que os mesmos constituam incidentes comuns de navegação ou sejam impostos por motivos de força maior ou por dificuldade grave ou tenham por fim prestar auxílio a pessoas, navios ou aeronaves em perigo ou dificuldade grave. 49 Art. 142, § 3º. Nem a presente Parte nem quaisquer direitos concedidos ou exercidos nos termos da mesma devem afetar os direitos dos Estados costeiros de tomarem medidas compatíveis com as disposições pertinentes da Parte XII que sejam necessárias para prevenir, atenuar ou eliminar um perigo grave ou iminente para o seu litoral ou interesses conexos, resultantes de poluição ou de ameaça de poluição ou de outros acidentes resultantes ou causados por quaisquer atividades na Área. 278 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional desde que não produza ofensa grave a um interesse essencial do Estado a qual existia a obrigação. Aqui vale lembrar, que no estudo do projeto de artigos da responsabilidade internacional pela CDI, muito se utilizou dos precedentes judiciais e arbitrais, além dos costumes para sua formulação, incluído aí, as causas excludentes de ilicitude. Propriamente quanto à excludente neste ponto tratada, foi caracterizada no Caso Torrey Canyon, quando o Governo inglês queimou parte do óleo derramado em suas águas ao bombardear o superpetroleiro a fim de evitar a invasão das suas costas por uma onde de maré negra de proporções maiores do que até então havia sido atingida. Quanto à aplicação das excludentes, parece não haver dificuldade nos casos de responsabilidade subjetiva. Porém, quando se trata da responsabilidade objetiva, que tem por fundamento o ferimento de normas claras e precisas de Direito Internacional e tem sua base tão somente na comprovação do nexo causal entre a atividade do Estado e o ato (ou omissão) contrário ao Direito Internacional, afastado o elemento da culpa, a aplicação das excludentes também deverá observar essa característica, vale dizer, observar o disposto na norma escrita, se há ou não previsão para tanto. 2.4 DOS MEIOS DE REPARAÇÃO PELO ATO INTERNACIONALMENTE ILÍCITO Como visto, o descumprimento de uma norma de Direito Internacional gera o dever de reparar. Pode-se dizer que a reparação de forma adequada e justa é o corolário da responsabilidade internacional50, como, inclusive, disposto no art. 3151. No campo do Direito Internacional Ambiental tal dispositivo merece especial atenção, porque constitui um importante instrumento na proteção do ambiente e no comprometimento dos Estados no sentido de obstarem novas ocorrências do ato ilícito anteriormente perpetrado. De acordo com o projeto da CDI, o primeiro requisito a ser observado pelo Estado quando do descumprimento da obrigação é a cessação da conduta, ou seja, a intenção primeira 50 PEREIRA, Luis Cezar Ramos. Ensaio sobre a responsabilidade internacional do Estado e suas consequências no direito internacional: a saga da responsabilidade internacional do Estado. São Paulo: Ltr, 2000. p. 382. 51 Ver nota 29. 279 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional é por um fim à violação de sorte a salvaguardar os interesses do Estado ofendido, bem como a validade da norma primária violada. Constam do projeto de artigos as seguintes formas de reparação: restituição, indenização e satisfação (arts. 35 a 37). Contudo, quando se fala em dano ambiental e reparação/indenização, um problema se avizinha. Vale dizer, a dificuldade está justamente em estabelecer parâmetros de valores para o dano que pode ter trazido sérios prejuízos, inclusive para mais de um Estado. A questão que surge está na possibilidade ou não de se aferir, em termos financeiros, o dano material e moral, por exemplo, pela perda da biodiversidade. Não se pode afastar, ainda, a possibilidade de o dano ambiental gerar em determinados casos, efeitos que se prolongam no tempo, a exemplo de Chernobyl, ou mesmo no caso dos graves desastres dos petroleiros nas costas dos Estados (Torrey Canyon, Amoco Cádiz), para não dizer que em determinadas situações o dano pode não ser notado de imediato. Aliás, impende registrar que no caso Amoco Cádiz, embora acolhido diversos pedidos de indenização, o pedido pela perda da biomassa, um dano eminentemente ao meio ambiente, foi indeferido, pela impossibilidade de avaliação do dano e por se tratar de res nullius.52 Por fim, não se pode olvidar de que a ausência de normas específicas sobreleva a dificuldade da aferição da responsabilização, o que dirá do próprio dano e, em especial, o dano ambiental. CONCLUSÃO Conquanto a importância do tema da responsabilidade internacional, certo é que há grande resistência dos Estados e suscita imperiosas dificuldades. A discussão acerca da violação dos direitos dos Estados, que gera alguma reparação, tem suas reminiscências com Hugo Grotius, passando pelos estudos de Dionizio Anzilotti, mas foi somente após a Segunda Guerra Mundial, com a ocorrência de barbáries humanas, que a Assembleia Geral da ONU requereu à Comissão de Direito Internacional a codificação 52 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2001.p.701. 280 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional da matéria, resultando, após 55 anos, em 2001, no Projeto de Artigos sobre Responsabilidade dos Estados por Atos Internacionalmente Ilícitos. O projeto de artigos, conquanto ainda esteja aberto a discussões, tem sido utilizado como importante fonte doutrinária e jurisprudencial na atualidade. Porém, de outro turno, não afastada sua relevância, observa-se que não se preocupou em dar ênfase ao Direito Internacional do Meio Ambiente. De maneira geral, nos termos do disposto no projeto de artigos da CDI, caso um Estado pratique ato contra uma norma jurídica ou obrigação internacional que venha a afetar um outro Estado, incorrerá em responsabilidade internacional. A regra é da responsabilidade subjetiva, na qual se afere a conduta culposa praticada por um Estado ou organização internacional, que viole uma norma de Direito Internacional e constitui no dever de reparar. Sua regulamentação não se encontra em normas escritas especiais, mas sim por meio de normas esparsas, costumes internacionais, jurisprudências de tribunais e arbitrais, além dos princípios gerais do direito e da própria doutrina. Porém, embora consagrada na jurisprudência internacional, a regra da responsabilidade subjetiva se apresenta de difícil aplicação, em razão das limitações que surgem ao tentar atribuir a culpa ao Estado ofensor. Para tanto, encontra-se em franco desenvolvimento o sistema da responsabilidade objetiva, onde se prescinde o elemento culpa. Nesse caso, a regulamentação se dá por meio de normas escritas especiais, delimitada dentro de um campo de assunto determinado e que instituem a obrigação de reparar o dano independente da culpa, ou ainda, do ato que deu causa ser ilícito ou lícito. Tal sistema vem de encontro à necessidade de responsabilização quando se trata de dano ambiental, que, como anotado, muitas vezes procede de atividades lícitas praticadas pelo Estado. Problema que se aponta, está no fato de que tal sistema de responsabilidade somente pode ser aplicado quando devidamente previsto em norma específica. Em especial quando se fala em meio ambiente, não se pode prever todos os casos passíveis de gerar dano ambiental. Assim é que, ainda hoje, na falta de normas específicas, aplica-se a regra geral, com suas limitações. Outra dificuldade que se verifica no sistema de responsabilização, seja subjetiva ou objetiva, notadamente em caso de dano ambiental, quando se consegue responsabilizar, está em se estabelecer parâmetros de valores quanto ao dano praticado. 281 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Por fim, na realidade posta, foge as evidências de que o projeto de artigos da CDI possa convergir a uma Convenção ou a um Tratado, forte nas razões de que o direito discutido envolve Estados livres e soberanos, não há uma jurisdição obrigatória e, por fim, não há um consenso entre os Estados. Daí porque, ainda numa visão um tanto quanto longínqua, uma provável solução satisfatória para o intrincado sistema, notadamente da responsabilidade internacional objetiva por dano ambiental, esteja na preponderância da cooperação, na negociação e na regulamentação pelo conjunto dos Estados. REFERÊNCIAS ACCIOLY, Hildebrando. 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Manual de Direito Internacional Público. 15 ed., São Paulo: Saraiva, 2002. SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2001. 283 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional OS REFUGIADOS AMBIENTAIS E O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO NA ESFERA DO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE LES RÉFUGIÉS ENVIRONNEMENTAUX ET LE PRINCIPE DE LA COOPÉRATION DANS LE DROIT INTERNATIONAL DE L’ENVIRONNEMENT Diogo Andreola Serraglio1 Andréia Mendonça Agostini2 RESUMO: O presente artigo visa investigar a necessidade da inclusão dos refugiados ambientais, por intermédio do princípio da cooperação internacional, nos institutos que garantem os direitos fundamentais à pessoa humana. Para isso, analisar-se-ão os acontecimentos que resultaram na Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, em 1951, bem como os acordos que foram posteriormente elaborados. A mais disso, far-se-á um breve relato de como a mudança climática no planeta Terra provocou o aparecimento desta nova categoria de refugiados, a qual carece de tutela jurídica. Com o intuito de encontrar soluções para esta questão, utilizar-se-á o fundamento da cooperação internacional em matéria ambiental como forma de mobilizar a sociedade contemporânea da urgência no amparo àqueles que se vêem obrigados a se deslocar em razão das alterações no meio ambiente. PALAVRAS CHAVES: Refugiados, Refugiados ambientais, Eco-refugiados, Princípio da cooperação internacional. RESUMÉ: Cet article a pour but étudier le besoin de l’intégration des refugiés de l’environnement, à travers le principe de la coopération internationale, dans les instituts qui garantissent les droits fondamentaux de la personne humaine. Alors, nous analyserons les événements qui ont entraîne la Convention des Nations Unies sur le Statut des Réfugiés, en 1951, ainsi que les accords qui ont été développés dans les annés suivantes. De plus, nous exposerons la façon dont le changement climatique sur la Terre a amèné à l’apparition de cette nouvelle catégorie de réfugiés, qui n’ont pas de protection juridique. Afin de trouver des solutions à cette question, nous analyserons les fondements de la coopération internationale en matière de l’environnement pour vérifiér la mobilisation de la socété contemporaine face à l’urgence de soutenir ceux qui sont forcés de se déplacer en raison des changements de l’environnement. MOTS-CLÉS: Réfugiés, Réfugiés environnementaux, Eco-réfugiés, Principe de la coopération internationale. 1 Advogado. Mestrando em Direito Econômico e Socioambiental na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). Bolsista CAPES. Pesquisador no Grupo de Pesquisa “Meio Ambiente: Sociedades tradicionais e sociedade hegemônica”. Membro da Rede Latino-Americana de Antropologia Jurídica. 2 Assessora de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Mestranda em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Especializada em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Pesquisadora no Grupo de Pesquisa: “Meio Ambiente: sociedades tradicionais e sociedade hegemônica”. Membro da Rede Latino-Americana de Antropologia Jurídica. 284 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 1 INTRODUÇÃO O tema central deste projeto tem por objetivo verificar o tratamento dado pelo Regime Internacional para Refugiados das Nações Unidas a esta nova categoria de refugiados – refugiados ambientais –, enfatizando-se a imprescindibilidade de inclusão deste grupo, através do princípio da cooperação internacional, nos conceitos que versam sobre a proteção internacional dos Direitos Humanos, com especial enfoque na elaboração e adoção de políticas migratórias que acolham e forneçam a devida tutela a estes refugiados. Pretende-se, primeiramente, uma rápida pincelada nos fatores históricos que ensejaram no advento da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, em 1951, assim como uma análise minuciosa dos conceitos e estatutos elaborados a partir de então para assegurar a todos o direito de buscar asilo. Da mesma forma, procurar-se-á compreender como as intervenções humanas no meio ambiente agravaram a questão da mudança climática no globo, propiciando o surgimento desta nova categoria, a qual se encontra fora do ordenamento jurídico internacional. Para tanto, buscar-se-á a identificação de elementos que evidenciam a mobilização entre os Estados na tentativa de agir em conjunto diante dos problemas de cunho ambiental, em especial nos documentos resultantes das conferências internacionais com vistas à cooperação internacional. Por iguais razões, interessa-nos mensurar a conscientização e a relevância deste princípio na sociedade contemporânea. Por fim, a proposta deste tema é averiguar como o princípio da cooperação internacional pode ser utilizado para solucionar os deslocamentos humanos provocados por alterações no meio ambiente. 2 A TUTELA DOS REFUGIADOS PELA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Relevante sublinhar, inicialmente, que as atrocidades cometidas ao longo da Segunda Guerra Mundial conscientizaram a comunidade internacional da necessidade de universalizar a proteção das garantias fundamentais do homem, sendo considerado, desta forma, o marco histórico que possibilitou o surgimento de uma nova ordem, a qual objetivava a conquista dos direitos humanos. Em suma, [...] terminando o profundo abalo que representou a Segunda Grande Guerra, assistimos a esforços no sentido de trabalhar por um mundo mais justo e 285 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional evitar que se repetissem os horrores pelos quais tinha passado a humanidade ao longo do conflito. Fazia-se necessário reconquistar a dignidade humana.3 Com efeito, inúmeras estruturas internacionais foram criadas desde então para efetivar a proteção da pessoa humana. Cai a lanço notar que a proteção internacional dos Direitos Humanos passou a ser dividida doutrinariamente em três vertentes que convergem de forma inequívoca, quais sejam, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Internacional Humanitário e o Direito dos Refugiados. Verifica-se que a Organização das Nações Unidas (ONU), criada para promover a paz da humanidade, incumbiu ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) a criação da Comissão de Direitos Humanos que, por sua vez, em 1948, elaborou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual se caracteriza como um “instrumento de civilização internacional que dispôs direitos que devem ser usados no mundo contemporâneo, como os individuais, os coletivos, civis, políticos e socioeconômicos, que norteiam a dignidade da pessoa humana.” 4 Surge, assim, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o qual confirma a universalidade dos direitos fundamentais e reconhece que a dignidade é inerente a todos os seres humanos, os quais são titulares de direitos iguais e inalienáveis. Posto isso, a busca de meios capazes de assegurar o cumprimento de seus dispositivos nos anos subseqüentes ensejou na negociação de dois tratados de caráter vinculante e obrigatório a todos os Estados: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos firmados em 1966, promovendo a formação de um regime normativo internacional dos Direitos Humanos. 5 Ressalta-se que a Declaração Universal de 1948, somada aos dois pactos internacionais de 1966, constituem a Carta Internacional de Direitos Humanos, a qual representa [...] o amplo consenso alcançado acerca dos requisitos minimamente necessários para uma vida com dignidade. Os direitos enumerados nessa Carta Internacional podem ser concebidos como direitos que refletem uma 3 ARAUJO, Nadia de. O direito internacional dos refugiados: uma perspectiva brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 19. 4 MENEZES, Wagner (Coord.). ESTUDOS DE DIREITO INTERNACIONAL: Anais do 2° Congresso Brasileiro de Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2004. 1 v. p. 201. 5 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2008. 9 ed. p. 161-163. 286 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional visão moral da natureza humana, ao compreender os seres humanos como indivíduos autônomos e iguais, que merecem igual consideração e respeito.6 Por seu turno, o Direito Internacional Humanitário anseia a proteção dos Direitos Humanos nos casos de conflitos armados. Observa-se que este ramo do direito emerge com a criação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, em 1863, sendo esta instituição considerada a principal responsável pela elaboração, disseminação, bem como a aplicação das normas humanitárias pelo globo. Percebe-se que [...] o direito internacional humanitário (DIH) é um conjunto de normas internacionais, de origem convencional ou consuetudinária, cuja finalidade especial é solucionar os problemas de índole humanitária diretamente derivados dos conflitos armados, internacionais ou não internacionais, e que restringem, por razões humanitárias, o direito das partes em conflito a utilizar os métodos e meios de guerra de sua eleição, ou que protegem as pessoas e os bens afetados, ou que possam ser afetados pelo conflito. O DIH costuma chamar-se também de “direito de guerra” e “direitos dos conflitos armados”. 7 Assevera-se, assim, que esta vertente da proteção humana se propõe a regulamentar o caos jurídico nos casos de conflitos armados para que os danos e estragos sejam os menores possíveis, assegurando a sobrevivência da humanidade e, conseqüentemente, promovendo a paz mundial. 8 Indubitável é a importância dos dois ramos apresentados acima para a internacionalização dos Direitos Humanos. Todavia, este projeto ater-se-á a uma análise pormenorizada dos Direitos dos Refugiados, cujo quadro institucional foi elaborado ao longo das décadas de 50 e 60, destacando-se o Estatuto do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), de 1950; a Convenção sobre Refugiados, firmada em 1951; e o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, elaborado em 1967. Após a derrota dos países do Eixo, em setembro de 1945, não restavam dúvidas de que a Europa encontrava-se extremamente devastada, sem as mínimas condições para produzir o essencial à sobrevivência de sua população. Os episódios bélicos ocorridos no continente europeu, os quais tiveram alcance mundial, evidenciaram a necessidade de se criar 6 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2008. 9 ed. p. 162. 7 Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Direitos do Homem e Direitos Humanitários em Conceitos de Policiamento Profissional. Genebra, Suíça: 2002. p. 09. 8 MENEZES, Wagner (Coord.). ESTUDOS DE DIREITO INTERNACIONAL: Anais do Congresso Brasileiro de Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2010. 1 v. p. 837. 287 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional um organismo capaz de solucionar os problemas relacionados às milhares de pessoas que permaneciam sem lar, sem país e até mesmo sem nacionalidade. Cumpre assinalar que, até então, as instituições formalizadas com o objetivo de proteger estas pessoas, além de possuir um caráter não vinculante, apresentavam mandatos temporários, e freqüentemente eram extintos antes que todas as prerrogativas que lhe haviam sido atribuídas pudessem ser cumpridas. Em virtude dessas considerações, “era necessário que uma agência ou organização fosse criada para ficar à frente e ser responsável por orientar tanto os indivíduos refugiados quando os países que lhe concediam asilo”. 9 Como resposta, em 1950, foi aprovado o Estatuto do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiando (ACNUR). Um ano mais tarde, em Genebra, a comunidade internacional firmou a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, com o intuito de garantir o bem-estar e a proteção aos refugiados, os quais passaram a ser definidos como qualquer pessoa [...] que, em conseqüência de acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951, e receando com razão ser perseguida em virtude de sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar.10 Faz-se necessário mencionar que o referido acordo apresentava eficácia limitada, tendo em vista que era aplicado tão somente àqueles que adquiriam tal condição antes da ratificação deste. Ademais, “limitava-se quanto à origem ao determinar a aplicação aos refugiados europeus. Acreditava-se que a situação dos refugiados não iria atingir os demais continentes e nem teria importância após 1951.” 11 Nesse lanço, convém ressaltar a importância do Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, elaborado em 1967, uma vez que possibilitou a aplicação deste conceito a qualquer refugiado do mundo e a casos futuros, e não mais tão somente para os eventos ocorridos antes do dia 1 de Janeiro de 1951. 9 SILVA, Camilla Rodriguez Braz. A questão dos refugiados ambientais: Um novo desafio para o direito internacional. Disponível em: [http://www.egov.ufsc/br]. Acesso em: 20 jul. 2012. 10 SUÍÇA, Genebra. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. 1951. Disponível em: [http://www.fd.uc.pt/]. Acesso em: 15 jul. 2012. 11 GALLI, Alessandra. Direito Socioambiental: Homenagem a Vladmir Passos de Freitas. Curitiba: Juruá, 2011. p. 53. 288 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Posta assim a questão, observa-se que os refugiados ambientais, por não se caracterizarem como vítimas de conflitos, não se encontram sob a tutela do ACNUR. Admitese, assim, a necessidade de se reestruturar o conceito de refugiado para que este novo grupo de pessoas também possam ter o direito ao asilo reconhecido: [...] cabe ao ACNUR, que tem como missão assegurar a todos o direito de procurar asilo e encontrar refúgio, estender seu mandato àqueles que precisam de refúgio permanente. O ACNUR deve auxiliar aquelas pessoas que se tornaram refugiadas por razões ambientais, ele deve acolher esses refugiados e garantir-lhes o direito de encontrar refúgio.12 3 UMA NOVA CATEGORIA DE REFUGIADOS: OS REFUGIADOS AMBIENTAIS É indubitável que as mudanças climáticas contribuíram para o surgimento dos refugiados ambientais do clima, os quais se caracterizam pela carência de proteção jurídica. De fato, [...] a questão dos refugiados não é nova no mundo. O que é novo é o aparecimento de refugiados que saem de seus países por motivos outros que perseguições. Calcula-se que cerca de 25 milhões de pessoas deixaram seus lares devido à secas, desertificação, erosão do solo, acidentes industriais e outras causas ambientais. 13 Cumpre observar, inicialmente, que o aumento da temperatura média do nosso planeta mostra-se como um dos problemas ambientais mais preocupantes deste século. Não restam dúvidas que este fenômeno foi acelerado devido à emissão desenfreada de gases de efeito-estufa na atmosfera decorrentes das ações antropogênicas na busca do desenvolvimento econômico. Assim, muito embora a qualidade de vida do ser humano tenha melhorado ao longo dos anos, verifica-se que a velocidade com a qual a sociedade consome os combustíveis fósseis ultrapassa de longe o tempo necessário para a sua recomposição na natureza, evidenciando, desta forma, que o planeta Terra é incapaz de absorver toda a poluição gerada 12 SILVA, Camilla Rodriguez Braz. A questão dos refugiados ambientais: Um novo desafio para o direito internacional. Disponível em: [http://www.egov.ufsc/br]. Acesso em: 15 jul. 2012. 13 PENTINAT, Suzana Borràs. Refugiados Ambientales: El nuevo desafio del derecho internacional del médio ambiente. Disponível em: [http://www.scielo.cl/]. Acesso em: 15 jul. 2012. 2006, p. 88. 289 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional pelo homem.14 De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), [...] a principal fonte de aumento da concentração atmosférica de dióxido de carbono desde o período pré-industrial se deve ao uso de combustíveis fósseis, [...]. As emissões fósseis anuais de dióxido de carbono aumentaram de uma média de 6,4 Gt. por ano na década de 90 para 7,2 Gt. por ano no período de 2000 a 2005.15 Posta assim a questão, não observa-se que a sobrecarga ocasionada pelo constante aumento da poluição atmosférica tem provocado reações adversas no meio ambiente, trazendo em pauta um novo problema para a sociedade internacional: a necessidade de se regulamentar a situação das vítimas destes eventos naturais. Isto é, [...] surge perante a sociedade internacional um novo tipo de refugiado: o ambiental. Este não sai de seu país devido a perseguições políticas, conflitos armados, guerra civil, instabilidade sociopolítica. Ele é obrigado a deixar o país de origem porque o seu habitat sofreu tanta alteração que não é mais possível sustentar a vida. 16 Nota-se que Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, ratificada em 1951, limita a sua proteção às pessoas que possuem seus direitos violados devido a problemas de raça, religião, nacionalidade, convicção política ou ainda àqueles que pertencem a um grupo social específico. Impõe-se registrar, portanto, que estes novos refugiados, também chamados de refugiados ambientais ou ecológicos, carecem de proteção para que tenham seus direitos garantidos. Em outras palavras, [...] a referida Convenção não previu situações que possam fazer com que pessoas sejam deslocadas em decorrência de calamidades naturais e, portanto, que envolvam o meio ambiente, isto é, além dos casos que estão devidamente arrolados no documento internacional que regula a matéria, não se pode olvidar que hoje existe uma nova categoria de refugiados que se 14 BRADBROOK, Adrian. OTTINGER, Richard. Energy Law and Sustainable Development. Genebra, Suíça: IUCN, 2003. p. 13-14. 15 Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climática (IPCC). Mudança do Clima 2007: a Base das Ciências Físicas. Genebra, Suíça: 2007. p. 07. 16 GALLI, Alessandra. Direito Socioambiental: Homenagem a Vladmir Passos de Freitas. Curitiba: Juruá, 2011. p. 38. 290 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional manifestam em razão dos mais diversos problemas pertinentes aos fenômenos da natureza: o refugiado ambiental.17 Convém ressaltar a urgência na elaboração de estatutos que possibilitem a tutela aos eco-refugiados, uma vez que tal migração não ocorre de forma voluntária e por motivos econômicos, mas sim por questões de sobrevivência, ou seja, há que se falar na migração obrigatória decorrente do surgimento de condições adversas ao habitat humano. Corroborando o assunto, [...] ainda que seja difícil elaborar políticas para lidar com os efeitos da mudança climática, essas são necessárias, afinal, ilhas estão desaparecendo, países costeiros vêm sua terra cultivável desaparecer devido à elevação do nível do mar e diversas áreas do mundo passam por processo de desertificação.18 O Princípio 1 da Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano dispõe que: O homem tem direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras. A este respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o apartheid, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira são condenadas e devem ser eliminadas.19 Muito embora esses “novos refugiados” não possuam um status jurídico definido, conceitos têm sido elaborados com o objetivo de tentar resolver o impasse referente à definição de quem seriam essas pessoas. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), [...] refugiados ambientais são pessoas que foram obrigadas a abandonar temporária ou definitivamente a zona tradicional onde vivem, devido ao visível declínio do ambiente (por razões naturais ou humanas) perturbando a 17 GUERRA, Sidney. Direito internacional ambiental. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2006. p. 110. SILVA, Camilla Rodriguez Braz. A questão dos refugiados ambientais: Um novo desafio para o direito internacional. Disponível em: [http://www.egov.ufsc/br]. Acesso em: 15 jul. 2012. 19 SUÉCIA, Estocolmo. Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, 1972. Disponível em: [http://www.mma.gov.br]. Acesso em: 15 set. 2011. 18 291 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional sua existência e/ou a qualidade da mesma de tal maneira que a subsistência dessas pessoas entra em perigo. 20 A mais disso, diante da imprescindibilidade de um estatuto jurídico capaz de promover a proteção que se encontram nesta situação em razão de catástrofes naturais, o professor egípcio El-Hinnawi, baseado no fato de que os descolamentos ocorrem devido à degradação ambiental ocasionada pela ação humana, podendo ser de caráter temporário ou permanente, define esta nova categoria de refugiados como sendo “[...] aquelas pessoas que foram obrigadas a abandonar o seu habitat tradicional de forma temporária ou permanente, por causa de uma evidente perturbação ambiental, que ameaça a sua existência e/ou afeta gravemente a qualidade da sua vida.” 21 Não menos importante, a fim de contribuir com o desenvolvimento desta nova definição, Myers22 elenca as pessoas que estariam abrangidas por este conceito: [...] refugiados ambientais são pessoas que não podem mais ter um meio seguro de vida em suas pátrias tradicionais por causa de fatores de abrangência incomum, seca acentuada, desertificação, desmatamento, erosão de terra, escassez de água e mudança de clima, também desastres naturais como ciclones, ondas de tempestades e inundações. Em face dessas ameaças ambientais, as pessoas sentem que elas não tem alternativa senão buscar amparo em outro lugar, dentro de seus próprios países ou além e seja em uma base semi-permanente ou permanente. Por isso, mostra-se urgente a necessidade de amparo jurídico para esses refugiados, o qual só será possível através de mudanças legislativas, bem como através da ampliação de conceitos, possibilitando assim, que um número maior de indivíduos sejam protegidos ao deixar seu país de origem. Impende observar que, além dos eco-refugiados, os quais necessitam se deslocar de seus países de origem por questões de sobrevivência, há que se falar ainda do contingente populacional que migra internamente dentro de um Estado em busca de melhores condições de vida diante dos desastres naturais. São os chamados “deslocados internos” que, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, 20 LISER. Enviromnetal Refugees. Disponível em: [http://www.liser.org/liser_portuguesa.htm]. Acesso em: 15 jul. 2012. 21 GALLI, Alessandra. Direito Socioambiental: Homenagem a Vladmir Passos de Freitas. Curitiba: Juruá, 2011. p. 52. 22 MYERS, Norman. Environmental Exodus: an emergent crisis in the global arena. Washington DC: Climate Institute, 1995. p. 19. 292 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional [...] são pessoas, ou grupo de pessoas, forçadas ou obrigadas a fugir ou abandonar as suas casas ou seus locais de residência habituais, particularmente em conseqüência de, ou com vista de evitar, os efeitos dos conflitos armados, situações de violência generalizada, violações dos direitos humanos ou calamidades humanas ou naturais, e que não tenham atravessado uma fronteira internacionalmente reconhecida de um Estado. 23 Em verdade, como já mencionado nesta obra, certifica-se que este fenômeno decorre das manifestações provocadas pelas mudanças climáticas, que atinge, em sua grande maioria, as populações dos países pobres. Nesse sentido, [...] as conseqüências das alterações climáticas na migração apresentam à humanidade desafios sem precedentes. O número de tempestades, secas e inundações triplicaram nos últimos 30 anos, com devastadores efeitos sobre as comunidades vulneráveis, em particular no mundo em desenvolvimento. Em 2008, 20 milhões de pessoas foram deslocadas por fenômenos meteorológicos extremos, em comparação a 4,6 milhões de deslocados internos por conflitos e violência no mesmo período. Quantas pessoas serão afetadas pela mudança climática até 2050? As previsões variam de 25 milhões a 1 bilhão de pessoas, sendo o número de 200 milhões o mais amplamente citado como estimativa. 24 Constata-se que a inserção desta nova categoria de refugiados gera a violação de direitos sociais, civis e econômicos, uma vez que estas pessoas acabam por ocupar camadas menos favorecidas do local de destino. Ademais, verifica-se que as nações com maiores incidências de desastres naturais, os países subdesenvolvidos, apresentam condições precárias no que diz respeito à proteção das garantias individuais. Desta feita, [...] deve-se considerar que não basta tutelar os que migram, mas, também, é necessário proteger os que não tiveram condições de mudar e permaneceram na mesma localidade com o diferencial que o seu habitat sofreu degradação, pois, houve a diminuição da quantidade de água, perda do acesso à terra agricultável, o declínio da produtividade, entre outras conseqüências. 25 Indaga-se, desde logo, a responsabilidade dos países desenvolvidos pelas mudanças climáticas no planeta Terra. Não se pode olvidar que o surgimento desses refugiados 23 UNRIC. Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Disponível em: [http://www.unric.org]. Acesso em: 15 jul. 2011. 24 IOM. Migration, Environment and Climate Change: Assessing the evidence. Disponível em: [http://publication.iom.int/bookstore/free/migration_and_environment.pdf]. Acesso em: 15 jul. 2012. 25 GALLI, Alessandra. Direito Socioambiental: Homenagem a Vladmir Passos de Freitas. Curitiba: Juruá, 2011. p. 56. 293 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional ambientais implica na violação de Direitos Humanos por parte dos países desenvolvidos. Sabe-se que o aumento da média global das temperaturas desde a metade do século XX, ocorreu, certamente, devido ao nítido aumento nas concentrações de dióxido de carbono, emitidas por ações humanas, as quais têm contribuído para o aumento das temperaturas e, conseqüentemente, para a elevação significativa do nível do mar.26 Roborando o assunto, destaca-se que todo ser humano possui o direito a um nível adequado de vida que lhe garanta saúde e bem-estar. Assim, vale lembrar que tanto os tratados de Direitos Humanos quanto aqueles que versam sobre a proteção ambiental não se destinam aos Estados, mas sim ao homem e ao seu direito à vida. Convém notar, neste passo, que a vida humana mostra-se como o principal fundamento da proteção ambiental. Ou seja, “a vida humana pertence a uma categoria de valores de dimensão puramente qualitativa e indivisível, servindo de fundamento dos demais valores”. 27 Diante do exposto, a combinação destes dois direitos pode ser considerada como pressuposto para a continuidade da vida humana, uma vez que o equilíbrio ambiental é essencial para o desenvolvimento das garantias fundamentais do homem, as quais inexistiriam diante de um meio ambiente degradado que não promovesse uma qualidade de vida sadia. Como se pode notar, alguns conceitos básicos do direito internacional devem ser repensados para que se chegue a soluções viáveis: [...] o próprio conceito de refugiado deve ser reconstruído. Assim como também as características básicas de sua estrutura. O status de refugiado foi criado para ser temporário, para que a pessoa pudesse retornar ao seu país de origem quando cessassem os conflitos ou as perseguições. 28 Impõe-se abordar, neste momento, como a noção de sociedade e natureza na comunidade internacional encontram-se enraizadas nos problemas ambientais, dificultando o reconhecimento da identidade das populações atingidas por desastres naturais. Não restam dúvidas de que as relações internacionais dificultam a transgressão das fronteiras, uma vez que a soberania estatal é cada vez mais reafirmada. Assim, há que se falar em outros desdobramentos desta nova realidade, como a organização político-espacial humana, visto que a integração destes refugiados a outros 26 MENEZES, Wagner (Coord.). ESTUDOS DE DIREITO INTERNACIONAL: Anais do Congresso Brasileiro de Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2010. 1 v. p. 906. 27 BOITEUX, Elza (Coord.). FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS: Estudos em Homenagem ao Professor Fábio Koner Comparato. Salvador: Podivm, 2009. p. 41. 28 SILVA, Camilla Rodriguez Braz. A questão dos refugiados ambientais: Um novo desafio para o direito internacional. Disponível em: [http://www.egov.ufsc/br]. Acesso em: 15 jul. 2012. 294 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional territórios implica no desaparecimento de culturas e na possível relativização da soberania estatal: [...] os refugiados são destituídos de Estado, mas num novo sentido; sua condição sem Estado é alçada a um nível totalmente inédito graças à inexistência de uma autoridade estatal à qual sua cidadania pode referir-se. São [...] fora da lei. Não desta ou daquela lei, deste ou daquele país, mas da lei como tal. São proscritos e fora-da-lei de um novo tipo, produtos da globalização e principal síntese e encarnação do seu espírito de terra de fronteira. [...] Mesmo que fiquem parados num lugar por algum tempo, estão numa jornada que nunca chega ao fim, que seu destino (de chegada ou de retorno) permanece eternamente incerto, enquanto um lugar que pudessem chamar de “terminal” permanece eternamente inacessível. 29 Pelo exposto, uma vez verificada a necessária relação existente entre os Direitos Humanos e o Direito Internacional Ambiental, oportuno se torna averiguar em que as migrações ambientais se distinguem daquelas já regulamentadas pela sociedade contemporânea. Em outras palavras, deve-se buscar a verificação dos parâmetros que definem o termo “refugiado ambiental” e que visam a formulação de um novo estatuto jurídico para amparar este grupo de pessoas. Não restam dúvidas de que o desenvolvimento de um conceito para os ecorefugiados mostra-se imprescindível para que haja a elaboração de um ordenamento jurídico apropriado e garantidor dos direitos fundamentais para aqueles que sofrem, de modo direto ou indireto, as conseqüências das mudanças do clima no globo, uma vez que a maior parte dos refugiados do mundo aguardam soluções para melhorar a sua atual condição. Inobstante “a questão dos refugiados ambientais represente mais um novo desafio para o direito internacional e seja uma obrigação de todos os envolvidos a busca de uma solução para este problema”, deve-se almejar meios tornem possível a existência de uma proteção mínima, em escala global, a ser respeitada por todos os Estados, a qual pode se dar através da cooperação internacional, analisada no item a seguir exposto. 4 O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO NA ESFERA DO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE 29 BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 96. 295 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Verifica-se que a tutela dos direitos se modifica em prol das necessidades e interesses do homem em face dos acontecimentos que marcam a sua história, possibilitando assim, a evolução e a proteção dos direitos e garantias fundamentais do ser humano. Verdade seja, a intensificação da degradação ambiental ao longo do último século demonstrou que este problema não se encontrava apenas circunscrito às fronteiras nacionais, mas sim disseminado por todo o globo, tornando-o, desta forma, uma questão de caráter internacional que proclamava pela elaboração de cuidados específicos. Registra-se, assim, que as proporções alarmantes das questões ambientais despertaram o entusiasmo do direito internacional, pois, além de se tratar de temas que interessavam a todos, comprovava-se, através dos desastres naturais, que a poluição gerada não reconhecia fronteiras, tornando-os, “ao menos potencialmente, internacionais, ou melhor, transfronteiriços” 30 . Em outras palavras, era evidente a necessidade da formação de normas ambientais que fossem aplicadas a todas as nações e por estas serem respeitadas, trazendo assim, a consciência a nível global. Assim posta a questão, é sobremodo importante ressaltar que o direito internacional, através de seus instrumentos normativos, destaca-se como principal responsável pela tutela daqueles que se vêm obrigados a se deslocar em razão das mudanças climáticas: “somente o Direito Internacional dos Direitos Humanos tem as condições mínimas e adequadas para salvaguardar o ser humano de todos os tipos de violações possíveis dos seus direitos, sejam estes civis, políticos, sociais, econômicos ou culturais.” 31 Para tanto, faz-se necessário “uma ação conjunta estatal por meio do instituto da cooperação internacional, que encontra na seara ambiental um universo vasto de possibilidades e também desafios.” 32 Assinala-se, pois, a importância da cooperação internacional a fim de buscar alternativas para solucionar os problemas ambientais, especialmente no que diz respeito àqueles que se veem obrigados a se deslocar em razão das mudanças climáticas. Relevante destacar, de início, que a cooperação na esfera global surge com o fim da Segunda Guerra Mundial, momento este em que “os Estados perceberam que estavam cada vez mais interdependentes e a cooperação internacional se tornou um objetivo a ser 30 NASSER, Salem Hikmat; REI, Fernando. Direito Internacional do Meio Ambiente. São Paulo: Atlas, 2006. p. 20. 31 ABRAS, Michelle. Os refugiados ambientais e o Direito Internacional face às normas constitucionais e infraconstitucionais do Estado brasileiro. Disponível em: [http://www.revistajus.com.br]. Acesso em: 20 jul. 2012. 32 MAZZUOLI, Valério. Cooperação internacional para a preservação do meio ambiente: o direito brasileiro e a Convenção de Aarhus. Disponível em: [http://periódicos.franca.unesp.be]. Acesso em: 20 jul. 2102. 296 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional alcançado.” 33 O termo “cooperação” ganhou destaque com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e elaboração da Carta das Nações Unidas, sendo este um dos seus principais objetivos. Assim dispõe o seu artigo 1º: Os propósitos das Nações Unidas são: [...] 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião [...].34 Ainda, o mesmo documento, nos artigos 55 e 56, disciplina a cooperação no âmbito econômico e social: Art. 55. Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: [...] c) a solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional. [...] Art. 56. Para a realização dos propósitos enumerados no artigo 55, todos os membros da Organização se comprometem a agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente.35 Denota-se que, a partir de então, os Estados procuraram agir de forma conjunta uns com os outros com o intuito de solucionar problemas nacionais no âmbito internacional. No entanto, cumpre observar que a consciência sobre os problemas ambientais na sociedade contemporânea ganha destaque a partir dos anos sessenta, momento em que os países “se despertam para as necessidades de um controle internacional e regional da poluição, a qual toma forma cada vez mais cruéis e cada vez mais impossíveis de ser controladas.” 36 De fato, os efeitos dos danos ambientais gerados pela poluição motivaram a produção de legislações que, apesar de atender as necessidades sociais da época, foram elaboradas como medidas 33 DIVARDIN, Danilo. Cooperação Internacional e Meio Ambiente: os programas da USAID no Brasil. São Paulo: UNESP, 2008. p. 14. 34 Estados Unidos, São Francisco. Carta das Nações Unidas. 1945. Disponível em: [www.unitar.org]. Acesso em: 20 jul. 2012. 35 Estados Unidos, São Francisco. Carta das Nações Unidas. 1945. Disponível em: [www.unitar.org]. Acesso em: 20 jul. 2012. 36 SOARES, Guido Fernando Silva. A Proteção Internacional do Meio Ambiente. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 33. 297 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional paliativas. Observa-se que as medidas preventivas e a cooperação entre os Estados emergem com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo no ano de 1972. Nesse lanço, deve-se ressaltar a importância da Declaração de Estocolmo, a qual, pela primeira vez, trouxe o princípio da cooperação no cenário internacional como garantidor da proteção, bem como da manutenção, do meio ambiente. De acordo com o seu Princípio 24, Todos os países, grandes e pequenos, devem ocupar-se com espírito de cooperação e em pé de igualdade das questões internacionais relativas à proteção e melhoramento do meio ambiente. É indispensável cooperar para controlar, reduzir, e eliminar eficazmente os efeitos prejudiciais que as atividades se realizem em qualquer esfera, possam ter para o meio ambiente, mediante acordo multilaterais ou bilaterais, ou por outros meios apropriados, respeitados a soberania e os interesses de todos os Estados.37 Cai a lanço notar que esta conferência representou um marco no processo de desenvolvimento da cooperação quanto a assuntos que se referem à preservação ambiental, sendo este período considerado o “momento em que os países sentaram à mesa para solucionar problemas ambientais que poderiam gerar conflitos internacionais”. 38 A partir de então, pesquisas científicas passaram a ser realizadas com o objetivo de buscar soluções para a degradação ambiental, tornando possível a elaboração de um vasto ordenamento jurídico ambiental, assim como evidenciando cada vez mais a interdependência entre os Estados e a necessidade de cooperação entre estes. Vinte anos mais tarde, a última oportunidade de salvar a Terra, modo pelo qual muitos se referiam a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, foi precedida por quatro reuniões preparatórias para a elaboração dos documentos que seriam firmados nas reuniões subseqüentes. Daquelas, destaca-se o Fórum de Siena, realizado em 1990, o qual se atenta para o dever de cooperação das nações para a efetiva proteção do meio ambiente, nos seguintes termos: A obrigação de cooperar manifesta-se como um dever de agir de boa-fé, a fim de atingir-se uma meta de interesse geral, em face dos Estados diretamente envolvidos, assim que o interesse da comunidade internacional 37 SUÉCIA, Estocolmo. Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. jun. 1972. Disponível em: [http://www.mp.ma.gov.br]. Acesso em: 20 jul. 2012. 38 DIVARDIN, Danilo. Cooperação Internacional e Meio Ambiente: os programas da USAID no Brasil. São Paulo: UNESP, 2008. p. 16. 298 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional no seu conjunto. Traçar uma lista de ações precisas a serem levadas à cabo é uma tarefa impossível, pois cada situação deve ser avaliada à luz das características específicas em cada caso. Contudo, podem-se citar algumas ações-tipo de cooperação, referentes aos Estados. Trata-se, em particular, das obrigações relativas à informação, à notificação, à assistência mútua e à negociação. Tais ações, frequentemente, completam os sistemas de proteção do meio ambiente elaborados pelo Direito Internacional. 39 Assim, os objetivos da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992, se confundem com o próprio título do acordo, o qual buscou “a defesa do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável pelo qual a humanidade é capaz de atender às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das gerações futuras”. 40 Ficou evidente que era hora de os países pensarem em conjunto no meio ambiente como um patrimônio comum, e não mais de maneira particular, no qual havia a prevalência das vantagens econômicas e políticas. No tocante ao princípio da cooperação internacional, os documentos de maior relevância produzidos foram a Declaração do Rio e a Agenda 21. Primeiramente, cumpre destacar que a Declaração do Rio se funda amplamente na cooperação entre os países, em especial entre as nações industrializadas e aquelas que se encontram em desenvolvimento. Assim dispõe o seu Princípio 07: Os Estados deverão cooperar com o espírito de solidariedade mundial para conservar, proteger e restabelecer a saúde e a integridade do ecossistema da Terra. Tendo em vista que tenham contribuí do notadamente para a degradação do ambiente mundial, os Estados têm responsabilidades comuns, mas diferenciadas. Os países desenvolvidos reconhecem a responsabilidade que lhes cabe na busca internacional do desenvolvimento sustentável, em vista das pressões que suas sociedades exercem sobre o meio ambiente mundial e das tecnologias e dos recursos financeiros de que dispõem. 41 Por sua vez, a Agenda 21, documento que prioriza os principais problemas ambientais que adentrariam o século XXI, sendo composto por mais de cem programas que estão distribuídos em seiscentas páginas e quarenta capítulos, os quais versam sobre o combate à pobreza, educação, saúde, saneamento, entre outros, assinala, em seu preâmbulo, que 39 MAZZUOLI, Valério. Cooperação internacional para a preservação do meio ambiente: o direito brasileiro e a Convenção de Aarhus. Disponível em: [http://periódicos.franca.unesp.be]. Acesso em: 20 jul. 2102. 40 RIBEIRO, Wagner Costa. A Ordem Ambiental Internacional. 2 ed. São Paulo: Contexto: 2005. p. 108. 41 BRASIL, Rio de Janeiro. Declaração das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento. jun. 1992. Disponível em: [htpp://www.mma.gov.br]. Acesso em: 20 jul. 2012. 299 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional [...] a humanidade se encontra em um momento de definição histórica. Defrontamo-nos com a perpetuação das disparidades existentes entre as nações e no interior delas, o agravamento da pobreza, da fome, das doenças e do analfabetismo, e com a deterioração contínua dos ecossistemas de que depende nosso bem-estar. Não obstante, caso se integrem as preocupações relativas a meio ambiente e desenvolvimento e a elas se dedique mais atenção, será possível satisfazer às necessidades básicas, elevar o nível de vida de todos, obter ecossistemas melhor protegidos e gerenciados e construir um futuro mais próspero e seguro. São metas que nação alguma pode atingir sozinha; juntos, porém, podemos – em uma associação mundial em prol do desenvolvimento sustentável. 42 Desde então, percebe-se deste princípio nos acordos multilaterais como alternativa de promoção do desenvolvimento econômico e a preservação dos recursos ambientais, trazendo o “entendimento de que os problemas globais dependem de soluções compartilhadas”43, passando, assim, a cooperação internacional ser um novo dever dos Estados para com a humanidade. Verifica-se, portanto, a interdependência entre as nações, as quais devem se utilizar do direito internacional para elaborar um sistema de cooperação globalizado: “[...] é premente que se saiba que os Estados-nacionais são agora formações influenciadas e integradas na estrutura de uma ordem jurídica que deixa de ser nacional, e que também não pode ser compreendida como internacional, senão como uma ordem verdadeiramente global.” 44 Pelo exposto, reconhece-se que a sociedade atual presenciou inúmeras transformações, principalmente a partir da década de 70, as quais propiciaram uma crescente interdependência entre os sujeitos do direito internacional. Percebe-se que a Organização das Nações Unidas (ONU), através da realização de conferências internacionais, desempenhou papel de relevância para o desenvolvimento e a aplicação da cooperação no que diz respeito aos assuntos que versam sobre o meio ambiente. Após breve relado dos principais instrumentos normativos que propiciaram a consagração do princípio da cooperação no cenário mundial, cumpre-nos, neste momento, uma análise pormenorizada deste instituto, o qual passou a exercer grande influência na agenda das relações internacionais. O artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça elenca os princípios gerais do direito como fonte autônoma e primária do direito internacional. 42 BRASIL, Rio de Janeiro. Agenda 21. jun. 1992. Disponível em: [htpp://www.mma.gov.br]. Acesso em: 20 jul. 2012. 43 DIVARDIN, Danilo. Cooperação Internacional e Meio Ambiente: os programas da USAID no Brasil. São Paulo: UNESP, 2008. p. 30. 44 MAZZUOLI, Valério. Cooperação internacional para a preservação do meio ambiente: o direito brasileiro e a Convenção de Aarhus. Disponível em: [http://periódicos.franca.unesp.be]. Acesso em: 20 jul. 2102. 300 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Embora seja difícil a conceituação dos princípios gerais do direito no plano internacional, entende-se que são regras que se impõem a todos os Estados, qualquer que seja o seu grau de civilização e por eles obedecidos por serem as mesmas ilações lógicas do direito a sua existência. 45 Convém notar, assim, que os princípios gerais do direito emergem da universalidade de princípios jurídicos que constituem os alicerces de sustentação do ordenamento interno dos Estados. Apesar de abstratos, buscam “homogeneizar o sistema jurídico pela continuidade e a estabilidade da ordem jurídica” 46 sem, no entanto, impor proibições e sanções, mas sim a otimização e a garantia de direitos. Ressalta-se que os princípios se singularizam de acordo com o ramo em questão, neste caso, o meio ambiente, os quais [...] estão voltados para a finalidade básica de proteger a vida [...], e garantir um padrão de existência para os seres humanos desta e das futuras gerações, bem como de conciliar os dois elementos anteriores com o desenvolvimento ambientalmente sustentado. 47 Ainda, como anteriormente elencado, verifica-se que os acordos multilaterais que versam sobre a proteção ambiental sempre enfatizaram o estabelecimento de critérios e princípios norteadores da preservação ambiental, neste caso, a cooperação internacional. Impende observar, inicialmente, que este princípio objetiva a prevenção de atos que possam degradar o meio ambiente, o qual desconhece a existência de fronteiras, enfatizando a “necessidade de normativas ambientais (internacionais e nacionais) que prevejam a atuação conjunta das nações como necessária à efetiva proteção do meio ambiente.” 48 Assevera-se que o princípio da cooperação se designa pela “atuação conjunta de países, instituições multilaterais e não-governamentais em busca de um objetivo comum.” 49 Isto é, 45 GUERRA, Sidney. Direito Internacional Ambiental. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2006. p. 46 SILVA, Américo Luís Martins da. Direito do Meio Ambiente e dos Recursos Ambientais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 404. 47 SILVA, Américo Luís Martins da. Direito do Meio Ambiente e dos Recursos Ambientais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 404. 48 MAZZUOLI, Valério. Cooperação internacional para a preservação do meio ambiente: o direito brasileiro e a Convenção de Aarhus. Disponível em: [http://periódicos.franca.unesp.be]. Acesso em: 20 jul. 2102. 49 RIBEIRO, Wagner Costa. A ordem ambiental internacional. São Paulo: Contexto, 2005. p. 432 46 301 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional [...] ações conjuntas levadas a cabo entre todos os Estados ou por certo número de Estados, com vistas em determinado fim, seja aquelas concertadas em níveis bilateral ou multilateral (dentro dos mecanismos existentes no interior de organizações ou entidades institucionalizadas ou em operações ad hoc), seja aquelas decorrentes de um dever instruído por uma norma não-escrita.50 Oportuno se faz mencionar o diálogo das nações para que a cooperação se torne uma “alternativa estratégica para alcançar seus objetivos” desenvolvimento de estatutos que protejam os eco-refugiados. 51 , neste caso, o Não restam dúvidas de que, para que haja a devida institucionalização da cooperação, com a devida consonância com o ordenamento jurídico internacional, “o princípio da cooperação deve prestar-se a fornecer os parâmetros para que se estabeleça o plano em que deva ocorrer o diálogo institucionalizado, legitimando tanto as discussões de natureza ética como as de natureza técnico-científica, sento a opção por esta ou aquela uma decisão política.” 52 Corroborando o assunto, é de se destacar que o princípio da cooperação pode assumir outras formas, produzindo os mais variados resultados, tendo em vista a finalidade a que se propõe.53 Considerando que a palavra “cooperação” significa “operar simultaneamente”, “colaborar”, “trabalhar em comum”, “ajudar” ou “observar”, denota-se que todos os Estados possuem o dever de contribuir na construção e no desenvolvimento da tutela jurídica para os refugiados ambientais, participando, de forma efetiva, em soluções que permitam o deslocamento das pessoas que se vêem obrigadas a migrar, promovendo sempre a manutenção das garantias fundamentais. Para tanto, indubitável a necessidade de uma ação em conjunto dos organismos internacionais a fim de sobrepujar questões que carecem de soluções, como a aplicação dos compromissos jurídicos assumidos pelos Estados, assim como a compatibilização da soberania estatal ante a necessidade de viabilizar a recepção dos refugiados ambientais. À guisa de conclusão, impõe-se que é dever dos Estados encontrar meios para possibilitar e garantir uma qualidade de vida sadia para todo o ser humano, resguardando, 50 SOARES, 493. 51 NASSER, 33. 52 NASSER, 45. 53 SOARES, 494. Guido Fernando Silva. A Proteção Internacional do Meio Ambiente. Barueri, SP: Manole, 2003. p. Salem Hikmat; REI, Fernando. Direito Internacional do Meio Ambiente. São Paulo: Atlas, 2006. p. Salem Hikmat; REI, Fernando. Direito Internacional do Meio Ambiente. São Paulo: Atlas, 2006. p. Guido Fernando Silva. A Proteção Internacional do Meio Ambiente. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 302 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional assim, o direito a um meio ambiente equilibrado e, principalmente, as garantias fundamentais. É neste contexto que o princípio da cooperação internacional deve ser utilizado: Em um Estado ambiental que se encontra exposto a ameaças e aos efeitos de problemas ambientais de segunda geração, somente se pode conceber uma proteção reforçada para os interesses de uma comunidade moral heterogênea e complexa a partir de um reforço sobre a própria consideração do primado da dignidade da pessoa humana, situado que está agora em uma cultura constitucional moralmente plural. 54 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Inobstante a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 considere como refugiados apenas aqueles que são perseguidos em razão de sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou, ainda, da suas opiniões políticas, dentre outros, restou evidenciado que os refugiados ambientais, por não se caracterizarem como vítimas de conflitos, não se encontram sob a tutela jurídica oferecida pela ACNUR. Torna-se imprescindível, portanto, a reestruturação do conceito de refugiado para que este novo grupo de pessoas também tenha o direito ao asilo reconhecido. Muito embora a sociedade internacional já tenha consciência da emergência desta questão, este impasse só será devidamente solucionado diante da cooperação mútua entre as nações, bem como através da elaboração de novos parâmetros jurídicos capazes de proteger de forma eficaz os eco-refugiados. Não restam dúvidas de que o desenvolvimento de um conceito para os ecorefugiados mostra-se imprescindível para que haja a elaboração de um ordenamento jurídico apropriado e garantidor dos direitos fundamentais para aqueles que sofrem, de modo direto ou indireto, as conseqüências das mudanças do clima no globo, uma vez que a maior parte dos refugiados do mundo aguardam soluções para melhorar a sua atual condição. Em síntese, diante do que fora exposto, constatou-se que esta nova categoria de refugiados englobaria todas aquelas pessoas que, em razão de desastres naturais, ou ainda em decorrência da alteração do meio ambiente pela ação humana, tiveram que abandonar o seu país de origem. Não há que se falar, deste modo, em emigrantes que buscam melhores 54 MAZZUOLI, Valério. Cooperação internacional para a preservação do meio ambiente: o direito brasileiro e a Convenção de Aarhus. Disponível em: [http://periódicos.franca.unesp.be]. Acesso em: 20 jul. 2102. 303 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional condições de vida, mas sim em uma parcela da população coagida a adentrar em território estrangeiro. Cabe, assim, ao direito internacional, o seu maior defensor, buscar alternativas para a elaboração de institutos normativos para os refugiados ambientais, primando sempre pelo princípio da cooperação internacional e pela ação conjunta das nações, de modo a contemplar aqueles, que por determinado motivo, possuem seu vínculo em um novo local prolongado e também permanente, não apenas temporário. 6 REFERÊNCIAS: ABRAS, Michelle. Os refugiados ambientais e o Direito Internacional face às normas constitucionais e infraconstitucionais do Estado brasileiro. Disponível em: [http://www.revistajus.com.br]. Acesso em: 20 jul. 2012. ARAUJO, Nadia de. O direito internacional dos refugiados: uma perspectiva brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BOITEUX, Elza (Coord.). FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS: Estudos em Homenagem ao Professor Fábio Koner Comparato. Salvador: Podivm, 2009. BRADBROOK, Adrian. OTTINGER, Richard. 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Nesse escopo, faz-se uma revisão acerca dos fatos que tornaram emblemática essa situação, trazendo os aspectos de direito econômico, da integração e de direito internacional suscitados na disputa, bem como a impossibilidade do meio ambiente ser tratado como efeito primário em ambos os sistemas jurisdicionais. Por fim, analisa-se duas possibilidades que poderiam voltar o foco da questão ao direito ambiental, qual seja, a aplicação do princípio da cooperação e da precaução nos planos regional e internacional. Para tanto, traça-se um resgate teórico-qualitativo acerca do tema, com intuito de revisar a bibliografia existente, porém, sem o condão de querer esgotá-la. Palavras-chave: Papeleiras, Proteção do Meio Ambiente, Princípios de Direito Internacional Ambiental. ABSTRACT The purpose of this paper is to study the problem of the Pulp Mills between Argentina and Uruguay, addressing both the issues raised within Mercosur and the International Court of Justice. In this scope, it presents a review of the facts that made this situation emblematic, discussing aspects of economic, integration and international law raised in the dispute, as well as the inability of the environment to be seen as a primary effect on both court systems. Finally, it analyzes two possibilities that could bring the issue into the environmental law arena, namely the principle of precaution and cooperation at regional and international levels. 1 Professora de Direito Internacional Público e Privado na Graduação do UniRitter/RS e de Direito Internacional Ambiental da Pós-Graduação da Feevale/RS. Pesquisadora convidada da Faculdade de Direito da Universidade de Toronto. Possui mestrado em Direito Público (Unisinos) e pós-graduação em Direito Internacional (UFRGS) e Língua Inglesa (Unilasalle). 307 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional To do so, a theoretical-qualitative exam on the subject is performed, aiming at reviewing the existing literature, but not intending to exhaust it. Key-words: Pulp mills, Environment Protection, International Environmental Law Principles. 1. Introdução: antecedentes do “conflito”. A questão das papeleiras é considerada um caso emblemático no escopo políticojurídico do Mercosul, haja vista que uma única situação gerou uma enorme problemática em torno de dois países membros do bloco. As tensões entre a Argentina e o Uruguai foram tamanhas, que a controvérsia não restou solucionada dentro do espaço do Mercosul, sendo levada Corte Internacional de Justiça. O entrave diplomático nascera com a intenção uruguaia em autorizar a instalação de duas grandes fábricas de papel e celulose em seu território, nas margens do Rio Uruguai, o qual divide essa nação com a Argentina. A região é próxima das cidades de Frey Bentos, no lado uruguaio, e de Gualeguaychu, situada no lado argentino, a qual é um grande centro turístico e um importante ponto de acesso de mercadorias entre os países. Os investimentos externos aproximados para a construção das plantas de papel e celulose ultrapassara a casa de um bilhão de dólares, o que geraria um aumento estimado de até 5% no Produto Interno Bruto (PIB) uruguaio, sendo consideradas os maiores projetos na história deste país. Por isso, a implantação das papeleiras era realmente vital para essa pequena nação. Por outro lado, argumentavam os argentinos que a implantação das papeleiras na região acabaria poluindo o Rio Uruguai, o que poderia gerar um dano ambiental imensurável e atingir, consequentemente, os setores do turismo e da agricultura de seu país. Solicitaram, desta forma, para que o Uruguai negasse a autorização da construção das fábricas, levantando a necessidade de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) mais aprofundado. A intenção era de construir duas plantas no Uruguai, uma por uma empresa espanhola, a ENCE, e a outra por uma empresa finlandesa, a BOTNIA. Todavia, apenas um projeto saiu do papel. Apesar de ter conseguido a autorização ambiental prévia do governo uruguaio, em 21.09.2006 a empresa espanhola decidiu não seguir com o projeto. Já o segundo empreendimento, chamado de Orion, obteve autorização prévia uruguaia em 14.02.2005, foi finalizado e está em pleno funcionamento desde 9.11.2007 às margens do Rio Uruguai, que banha as duas nações. 308 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Ocorre que quando a papeleira Orion estava sendo construída, inúmeros protestos desenvolveram-se nessa região fronteiriça. Impulsionados pelo governo da região de Entre Ríos e com a indulgência do então presidente Néstor Kirchner, moradores argentinos montaram barricadas e fecharam a principal o acesso ao Uruguai, a ponte General San Martín, protestando contra a implantação da fábrica. O propósito destas manifestações era exatamente em dificultar a circulação de madeira, a matéria-prima necessária para a fábrica de celulose, o que poderia resultar no fechamento da papeleira (o que nunca veio a acontecer). O grande problema é que tais bloqueios acabaram impedindo a livre circulação de mercadorias na região, o que é uma violação frontal ao artigo primeiro do Tratado de Assunção de 1991 – fonte primária do Mercosul. O Uruguai por várias vezes manifestou-se a respeito desses bloqueios ilegítimos, os quais geraram muitos prejuízos econômicos ao país (em torno de US$ 400 milhões). A Argentina, por seu turno, não reagiu contra seus moradores no sentido de reestabelecer o livre acesso na fronteira, alegando que a manutenção da planta de papel e celulose nas margens do Rio Uruguai era realmente poluente e que causaria danos diretos à saúde, ao meio ambiente e à economia local. Por esse motivo é que as relações entre os países estremeceram, fazendo com que o caso chegasse a Corte Internacional de Justiça, fugindo do seu foro de natural de solução de controvérsias, qual seja, um Tribunal Ad Hoc no âmbito do Mercosul, conforme previa o Protocolo de Olivos de 2002, na impossibilidade de negociações diretas entre os parceiros do bloco florescerem. Entretanto, inúmeros são os questionamentos que decorrem diretamente desse caso. O primeiro é se a questão ambiental era realmente o foco central da disputa, haja vista a despreocupação do governo Argentino frente as turbulências na fronteira e as manifestações do governo uruguaio. O segundo, gira em torno da questão ambiental não ter sido sequer levantada no âmbito do Mercosul, apesar deste tema ter sido abordado tanto no Tratado de Assunção, quanto no Acordo Marco sobre o Meio Ambiente do Mercosul. Ainda, uma terceira indagação nasce a respeito das possibilidades desse caso, pois, no tocante ao meio ambiente, ele restou não solucionado tanto no escopo jurídico-político do Mercosul, quanto na Corte Internacional de Justiça. Deste modo, esse artigo foi estruturado em duas sessões, com o objetivo de explorar as possíveis respostas às perguntas impostas, tendo por parâmetro as noções de direito 309 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional ambiental e de direito internacional, com o intuito de demonstrar a real necessidade e a importância de uma proteção internacional do meio ambiente, a qual foi deixada em segundo plano por este caso. 2. O Meio Ambiente como discurso. A preocupação com o meio ambiente e a criação de normas que o protegessem ainda são temas muito recentes no âmbito jurídico interno, regional e internacional, porém, que já estão no centro de inúmeras discussões nos mais diversos foros internacionais, haja vista que o progresso mundial trouxe consigo a degradação ambiental. A inquietude da sociedade internacional frente a esse novo dilema, o qual poderia afetar o curso da humanidade, faz com que a proteção do meio ambiente se tornasse central e, portanto, exige a criação de regras que proíbam expressamente aquelas atividades que gerem efeitos danosos à saúde e ao bem-estar da espécie humana (SOARES, 2003, p. 15-16). Desta feita, através da criação de um subsistema voltado ao meio ambiente dentro do escopo das Nações Unidas, qual seja o Pnuma, e dos encontros mundiais para a discussão de formas de proteção (Estocolmo – 1972 e Rio de Janeiro – 1992), que, por sua vez, estipularam uma série de princípios norteadores de todos os sistemas jurídicos ao redor do globo, uma rede protetora do ambiente criou forma, mundializando o discurso tutelador deste direito. Hodiernamente, então, o meio ambiente passa a ser visto como um direito intrínseco e fundamental para o desenvolvimento do ser humano, o qual não pode ser derrogado, por mais que certas finalidades econômicas estejam envolvidas. Entretanto, o que se observa no sistema jurisdicional internacional é que o direito econômico corriqueiramente sobrepõe-se ao direito ambiental, apesar das várias convenções internacionais que são dedicadas a tutela e o reconhecimento desta área do direito.2 É exatamente neste ponto é que a questão das papeleiras levantou um grave problema jurídico-diplomático no bloco de integração do cone sul. Isso porque, a Argentina e o Uruguai disputaram a atração de empresas de papel e celulose para as suas respectivas regiões, as quais trariam consigo um significativo montante em dinheiro, o que ocasionaria um grandioso aumento no PIB do país escolhido. 2 Mais especificamente no âmbito do comércio internacional, o qual é regulado pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Nesse sentido, observar os casos Tuna-Dolphin e Shrimp-Turtle em que o meio ambiente foi colocado em segundo plano (FONSECA; RUSCHEL, 2006. p. 139-158). 310 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Para conseguir tal feito, iniciou-se a uma “guerra” de vantagens, isto é, uma competição entre essas nações para ver quem conseguiria atrair este valioso investimento estrangeiro por meio de incentivos. Ocorre que, pela primeira vez, o Uruguai foi o país escolhido, conduzindo os potenciais empreendimentos papeleiros para a sua margem do Rio Uruguai, o que desencadeou os protestos argentinos, supostamente, apenas pela poluição que causariam. Vale lembrar, nessa época, a Argentina ainda estava tentando encontrar saídas para a crise política, econômica e social que ocorreu em 2001 (MAGALHÃES, 2006, p. 02). 2.1 Desenvolvimento econômico versus questão ambiental. O primeiro aspecto polêmico relacionado ao caso das papeleiras e que possivelmente fora um dos motivos principais para desviar a atenção do meio ambiente é, portanto, exatamente a questão dos investimentos estrangeiros diretos (IED) – mesmo que esses não tenham sido citados nos processos existentes tanto dentro do escopo do Mercosul quanto no da Corte Internacional de Justiça. Isso, pois, embora a tensão bilateral entre Argentina e Uruguai tenha se agravado pelo fato do Uruguai não ter disponibilizado um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) mais detalhado à Argentina antes da concessão das autorizações prévias para a construção das papeleiras, é possível analisar este caso sob um outro viés: o econômico. Afinal, os fluxos de IED vêm aumentando significativamente no decorrer dos anos com a globalização econômica, fazendo com que o interesse dos países cresça consideravelmente em relação aos investimentos.3 Dentre os países do Mercosul, a Argentina é o que historicamente mais atraiu IEDs. Já o Uruguai apresenta um papel pouco relevante ao volume do bloco no que tange investimentos provenientes do exterior. Na década de 1990, enquanto a Argentina acumulava em média US$ 22 bilhões, no Uruguai o fluxo de IED girava em torno de US$ 107 milhões (CHUDNOVISKY; LÓPEZ, 1999, p. 16). Com efeito, apesar das disputas de incentivos fiscais para atrair os investidores estrangeiros, a Argentina acabou sempre recebendo a maioria desses fluxos de investimentos, o que justifica possuir em seu território aproximadamente 30 fábricas de papel e celulose (VALENTE, 2010). Entretanto, em virtude de uma profunda modificação estrutural na 3 De forma ilustrativa, cabe apresentar os números trazidos por CHUDNOVISKY e LÓPEZ (1999, p. 20-21), que na década de 1990, a América Latina recebera em torno de US$ 6 bilhões de IED, num acréscimo de mais de US$ 3 bilhões se comparados à década anterior. 311 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional política externa, a qual visava um aumento em IED, e com a adoção de uma “lei florestal que oferece amplos estímulos para incrementar o plantio de bosques”, o Uruguai passou a ser uma ótima alternativa (MAGALHÃES, 2006, p. 03). Nesse sentido, haja vista as atrativas políticas de reflorestamento que geram além de uma maior produção de madeira, a redução de custos deste insumo em especial, corroborada, ainda, com a ausência de adequada regulamentação do capital estrangeiro investido no âmbito do Mercosul4, o setor de papel e celulose no Uruguai cresceu (DOMINGO; VERA, 2007, p. 327-328; FALEIROS; PERECIN, 2008, p. 37-45). Por isso, a escolha deste Estado, em detrimento da Argentina. Assim, considerando que o IED “torna-se ferramenta importante para, principalmente, aumentar a eficiência das economias e o financiamento de projetos no setor industrial, de infraestrutura, de serviços entre outros” nos países em desenvolvimento, como é o caso da Argentina, perder um investimento grandioso como o da papeleira finlandesa BOTNIA, significa perder muito mais do que mais uma planta, pois significa não criar novos empregos, não abrir novas indústrias secundárias, não movimentar matéria-prima dentro do país e nem ter o capital gerado reinvestido no Estado (MACHADO, 2005, p. 35-39). É dentro dessa ótica que persistem dúvidas legítimas sobre a real intenção argentina sobre a implantação das fábricas de papel e celulose na região ribeirinha, pois, ao ver o Uruguai como receptor da instalação das papeleiras, a Argentina começou a desviar a atenção para a questão do meio ambiente, na tentativa de barrar a implantação das fábricas em território uruguaio – uma medida, ao fundo, lotada de cunho econômico. Isso, pois, com as manifestações ocorridas na província de Entre Ríos, no lado argentino, promovida pelos habitantes locais em prol do meio ambiente e contra a possível poluição que as fábricas poderiam causar, inúmeros caminhões que continham materiais necessários para a construção das plantas restou retido nos bloqueios das pontes e rodovias locais (CLÉMENT, 2006, p. 12). Tal fato, portanto, só reforça a ideia de que a questão ambiental foi pensada em segundo plano, como forma de boicotar a implantação das plantas, visto que caso a questão ambiental fosse realmente o epicentro da disputa, ela teria sido abordada antes mesmo da oferta de condições e vantagens às empresas que queriam se instalar na localidade as margens do Rio Uruguai. 4 Por óbvio que a falta de regras claras que regulassem o investimento estrangeiro na região afetaram esse caso, sobretudo acerca da concorrência entre essas duas nações, na tentativa de puxar o IED para dentro de seus territórios. Ressalta-se que existe um protocolo no âmbito regional que aborda esse assunto, qual seja, o Protocolo de Buenos Aires, porém, que não fora adotado pelos Estados-membros (FLÔRES JUNIOR, 2005). 312 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Outro aspecto que colabora com essa tese é que a Argentina, por seu turno, está sendo acusada pelo Paraguai pela poluição do Rio Paraná, situado ao norte do país, aonde se encontram uma dezena de fábricas papeleiras. Segundo um EIA realizado naquele local, os químicos poluentes mais expressivos derivam diretamente da indústria de celulose argentina. Na mesma banda, empresas argentinas já foram fechadas preventivamente pela falta de tratamento de seus efluentes e há casos sendo investigados pelo Ministério do Meio Ambiente do Paraguai (VALENTE, 2010; DIARIO ABC COLOR, 2006; LÍNEA CAPITAL, 2006). Nesse diapasão, zelar pela aplicação das normas internacionais de proteção ao meio ambiente apenas ao seu favor, não demonstra o comprometimento argentino para com a questão ambiental, mas tão somente para com sua economia. Ainda, é mister ressaltar que apesar da existência de acordos que abordam a matéria ambiental no bloco, tais não foram levantadas no escopo jurisdicional regional – o que é mais um exemplo da preocupação puramente econômica argentina. Para a Argentina, entretanto, quando optou por não exteriorizar a proteção do meio ambiente dentro do bloco, mantendo-a apenas presente nas manifestações de seus habitantes, acreditava reforçar a teoria de que o caso em tela não abrangeria as normas regionais, porém, apenas uma disputa bilateral, em que o tratado do Estatuto do Rio Uruguai estaria em cena – afastando quaisquer medidas prejudiciais de cunho vinculante que poderiam surgir no âmbito do Mercosul, as quais afetariam as demais papeleiras existentes sob sua jurisdição. Logo, apesar do conflito existente entre desenvolvimento econômico e o meio ambiente não ter sido abertamente suscitado, é evidente que ele existiu. Também, não restam dúvidas que o meio ambiente foi um ótimo meio utilizado, para protestar contra o recebimento de IEDs e a consequente construção das fábricas de papel e celulose no Uruguai. Curioso, portanto, é que no plano integracionista, mais especificamente no âmbito do Mercosul, a abordagem do meio ambiente não ocorreu nas vias judiciais, apesar da existência de provas de que a indústria papeleira pode sim causar danos ao meio ambiente como se averigua no Rio Paraná, restando a disputa apenas no que tange o direito à Livre Circulação no bloco. Na esfera internacional, por sua vez, interessante foi que a Argentina, apesar de levar ao escopo da Corte Internacional de Justiça (CIJ) a questão ambiental, ela fora abordada de forma subsidiária a falta de informação (no tocante ao repasse do EIA), ou seja, decorrente apenas do inadimplemento do Estatuto do Rio Uruguai. Dessa forma, em que pese à importância da análise das questões abordadas no judiciário para visualizar que o meio ambiente realmente restou em segundo plano nessa 313 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional disputa entre Argentina e Uruguai, é mister um estudo mais aprofundado acerca dos posicionamentos levados junto ao Tribunal Ad Hoc e à CIJ. 2.2 Aspectos jurídicos exteriorizados nas disputas judiciais. No escopo jurídico do Mercosul, a questão ambiental não chegou a ser levantada pelo governo do Uruguai, ao levar a questão ao Sistema de Solução de Controvérsias do bloco. Neste Tribunal Ad Hoc, implementado em 06.09.2006, apenas a questão da livre circulação e da livre expressão de pensamento e reunião foram questionados, senão vejamos a própria classificação constante no Laudo Arbitral (MERCOSUL, 2006, p. 32): [trata-se de controvérsia sobre a] “omisión del estado argentino en adoptar medidas apropiadas para prevenir y/o hacer cesar los impedimentos a la libre circulación derivados de los cortes en territorio argentino de vías de acceso a los puentes internacionales San Martín y gral que unen la república argentina con la República Oriental del Uruguay”. O Uruguai, demandante, alegou que a Argentina teria descumprido as regras do Mercosul no sentido de ter-se “omitido a adotar medidas adequadas, razoáveis e eficazes” para evitar que particulares, sob a sua responsabilidade, impusessem obstáculos nas rotas de acesso entre um país ao outro (MERCOSUL, 2006, p. 7 e 15). Nesse sentido, peticionou solicitando certas medidas para que no futuro, caso a situação tornasse a ocorrer, não houvesse quaisquer bloqueios impedindo a livre circulação dessa área de livre comércio do sul, haja vista que tais geraram prejuízos enormes às áreas de turismo e transporte de pessoas e mercadorias (MERCOSUL, 2006, p. 6, 7 e 21). A Argentina, por seu turno, argumentou em sua defesa que a ação não poderia ter sido interposta ao Tribunal de Ad Hoc, visto que no momento da apresentação da peça a situação já havia cessado – fazendo com que perdesse seu foco. Em outras palavras, para este país, o objetivo seria a desobstrução das pontes e rotas que interligam ambas as nações, o que não mais ocorria (MERCOSUL, 2006, p. 7). Contestou, além disso, que o Uruguai não teria tido prejuízos, mas que teria auferido um lucro maior com o início das manifestações (MERCOSUL, 2006, p. 8). Contudo, o maior contraponto argentino era exatamente de que entre os direitos humanos em jogo no caso em tela, quais sejam, o da livre expressão de pensamento e de reunião, exteriorizados pelas manifestações dos argentinos da região de Entre Ríos, viriam antes mesmo do que o direito de ir e vir (livre circulação), principal ponto da peça uruguaia (MERCOSUL, 2006, p. 9). Nesse escopo, a Argentina afirmou que a liberação das pontes e 314 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional rotas por parte do governo seria uma forma de “repressão inaceitável”, visto que a intenção dos manifestantes não era a alteração do sistema político (MERCOSUL, 2006, p. 9). Noutros termos, afirmaram serem legítimos os bloqueios realizados entre dezembro de 2005 e abril/maio de 2006. Portanto, o Tribunal Ad Hoc do Mercosul decidiu parcialmente procedente em favor do Uruguai, considerando que a Argentina realmente não observou as normativas mercouslistas referentes à livre circulação. Isto pois, esse é um princípio essencial a um bloco que almeja a integração econômica total. Nesse viés, mesmo que o bloco ainda esteja em fase de desenvolvimento, tal como fora afirmado no Laudo (MERCOSUL, 2006, p. 19-20), não se pode permitir que uma parte imponha restrições na passagem entre uma nação e a outra. Essa restrição, consoante o direito originário do Mercosul, inclui qualquer medida “de caráter administrativo, financeiro, cambial ou de qualquer natureza, mediante a qual um Estado Parte impeça ou dificulte, por decisão unilateral, o comércio recíproco”, nos termos do Tratado de Assunção – artigo 2(b). Assim, o Tribunal Ad Hoc entendeu que as barreiras de trânsito impostas pelos manifestantes eram, na verdade, barreias ao comércio e a um objetivo do bloco, qual seja, a da livre circulação econômica (MERCOSUL, 2006, p. 20-21). A Argentina chegou a tecer comentários no sentido de ela não ter sido responsável por essa restrição, visto que foram particulares que formaram tais barreiras. Entretanto, esse posicionamento foi rejeitado pelo Tribunal, de vez que o Estado argentino deveria tomar todas as diligências possíveis para que outro Estado não fosse afetado negativamente pelas ações ocorridas em seu território, incorrendo em uma responsabilidade direta (e não por omissão) por não ter “prevenindo ou corrigido os atos dos particulares” (MERCOSUL, 2006, p. 22). Até mesmo porque, quando uma nação está obrigada a uma determinada finalidade, como a da livre circulação, quer dizer que tudo que ela não cumpre é visto como um desvio da própria norma (CARNEIRO, 2006, p. 364-366) – e, portanto, se a região de Entre Ríos continuou pelo período de, em média, cinco meses sem permitir a passagem entre os dois lados da ponte, a Argentina descumpriu uma regra primária de direito da integração, não cabendo a sua escusa de culpar os particulares, já que as suas atividades eram diretamente vinculadas às obrigações do governo para com os demais países do bloco (MERCOSUL, 2006, p. 21-22). O ponto que não fora concedido pelo Tribunal ao Uruguai, todavia, diz respeito a possibilidade desta corte em adotar ou promover “determinações sobre condutas futuras”, cuja possibilidade feriria os princípios de igualdade e reciprocidade das normas originárias do 315 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional bloco (MERCOSUL, 2006, p. 34). Isso, pois, tal previsão vincularia somente um dos EstadoPartes. O Tratado de Assunção dispõe em seu artigo segundo que “o Mercado Comum estará fundado na reciprocidade de direitos e obrigações entre os Estados”. Nesse sentido, como assevera Kronberg (2003, p. 69), “os Estados devem sempre tratar e serem tratados pelos demais da mesma forma, sem que haja benefícios ou imposições de sanções ou restrições de qualquer espécie”. Por conseguinte, é evidente que prescrever uma medida somente à Argentina iria de encontro com a disposição desse tratado constitutivo do Mercosul. O princípio da reciprocidade nos remete a outro princípio que seria violado no caso de uma decisão totalmente procedente em favor do Uruguai, qual seja, o supra mencionado princípio da igualdade, pois são interligados. Esse princípio da isonomia não é apenas aquele que prevê o tratamento igualitário entre produtos do Estado e dos demais países que compõe o bloco, prescrito no artigo sétimo do Tratado de Assunção – ele vai muito mais além. Representa o princípio de Direito Internacional da igualdade entre os Estados, o qual promove condições jurídicas igualitárias e equilibradas a todas as nações, abrangendo todo o sistema jurídico – o qual deve ser respeitado, como bem fez o Tribunal Ad Hoc (KRONBERG, 2003, p. 37; SOARES, 1999, p. 97). Já com relação ao argumento levantado pela Argentina de que ela “não poderia ter tomado medidas mais enérgicas” em virtude do direito humano da liberdade de expressão prevalecer, quando em choque com outro direito humano que é o da livre circulação (ir e vir), foi desconsiderado pela corte do Mercosul (2006, p. 22-24). Isso pois, como restou fundamentado em seu laudo, “os direitos de cada pessoa estão limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum” [grifo nosso] – que é o Mercosul, como um bloco regional formado por quatro países (MERCOSUL, 2006, p. 29). Na verdade, houve no julgamento uma real ponderação de direitos humanos fundamentais pelo Tribunal Ad Hoc. Primeiramente, cabe ressaltar que a livre circulação é um componente essencial para a constituição de um bloco econômico, sendo considerado um bem comum no âmbito do direito da integração (CARNEIRO, 2007). Apesar de não ser absoluta, é prevista em diversos acordos internacionais, como no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (artigo 12), Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 22) e na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 29). Por outro lado, o direito a liberdade de expressão, o qual também não é absoluto, evita que o indivíduo venha “a sofrer um impedimento” quando envolvido em uma atividade (MEYER-PFLUG, 2009, p. 29). Não é um direito apenas individual (oponível ao Estado, 316 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional garantindo a atuação livre do ser humano), mas também social, sendo “necessário para o desenvolvimento pleno da sociedade” (MEYER-PFLUG, 2009, p. 31). É também previsto no plano internacional, como no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (artigo 18), Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 13) e na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 19). Ocorre que, na ponderação de direitos humanos fundamentais, a escolha de um perante o outro se dá pela busca de uma maior eficácia para os direitos em choque (PULIDO, 2003, p. 79). No caso em tela, a liberdade de ir e vir não estava apenas prejudicando o Uruguai, como também a própria sociedade argentina no que tange a circulação de produtos (para o comércio), além das demais pessoas de outras regiões que por ali circulavam, enquanto que o discurso efetuado contra a implantação das papeleiras havia apenas um “favorecido” (MERCOSUL, 2006, p. 28 e 32). Logo, parece sensato pensar em prol da liberdade de locomoção, ante a liberdade de expressão (e reunião), tal como proferiu o Tribunal, visto que a harmonia para ambos os lados do Rio Uruguai estaria estabelecida (MERCOSUL, 2006, p. 26-27). Ainda, se era o objetivo desses países ao ratificarem o Tratado de Assunção em 1991 criar uma região de livre comércio, o comprometimento para com o bem jurídico da liberdade de circulação entre as fronteiras parece ser mais valioso (MERCOSUL, 2006, p. 29). Nesse diapasão, o caso perante a corte do Mercosul, foi favorável ao Uruguai (apesar de ter sido parcialmente procedente), uma vez que restou claro que a Argentina, por mais que não tivesse a intenção de bloquear as rotas, deveria ter tomado algum tipo de ação para impedir que a circulação entre os dois países fosse paralisada, tal como ocorrera entre 20052006. Sendo que o meio ambiente, o mais prejudicado do caso em questão, foi apenas visto como a origem do conflito, por ser o motivo das manifestações dos argentinos, os quais vieram a bloquear os acessos internacionais – não sendo sequer levantado no mérito da decisão mercosulina (2006, p. 16). Na Corte Internacional de Justiça (CIJ), principal órgão judicial das Nações Unidas, o meio ambiente já passou a figurar no campo central da disputa, porém, viabilizado somente através do Estatuto do Rio Uruguai (ERU), firmado entre Argentina e Uruguai, o qual fixa limites quanto a real possibilidade da questão ambiental realmente ser analisada. O caso foi levado a Corte por ela ser o meio válido para dirimir disputas que tratem de descumprimentos de tratados, pois faz parte de sua jurisdição, nos termos do artigo 36 do seu Estatuto. Ainda mais, ambas as partes já tinham aceitado a jurisdição compulsória deste órgão com relação à matéria objeto do litígio, conforme o disposto no artigo 60 do ERU. 317 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Desta feita, essa disputa chegou à CIJ por intermédio da Argentina, que em 04.05.2006 adentrou com uma petição contra o Uruguai pelo suposto descumprimento do Tratado referente ao Rio, o qual fora firmado entre as partes em 26.02.1975 e estava em vigor desde então. A Argentina alegou que o Uruguai descumpriu tanto obrigações procedimentais, como obrigações substantivas referentes ao citado Estatuto, além de outras obrigações de direito internacional, principalmente no que toca os acordos de direito ambiental e que, em virtude disso, deveria ser responsabilizado internacionalmente por seus atos danosos. Contudo, o primeiro fato relevante quanto a essa disputa foi que antes mesmo da decisão da CIJ, ambas as partes solicitaram a tomada de medidas provisórias. Primeiramente foi a Argentina, que em seu memorial, solicitou a suspensão das construções até o final do litígio, pois acreditava que tais podiam causar danos irreversíveis ao meio ambiente. A Corte, todavia, pela falta de evidências apresentadas de que as plantas seriam fontes de poluição do Rio a rejeitara por maioria absoluta o pedido em 13.07.2006 (CIJ, 2006, p. 43). O Uruguai, por sua vez, requereu em 30.11.2006 uma manifestação da Corte ante os novos bloqueios que haviam sido efetuados pela população civil argentina nas rotas internacionais de acesso entre os dois países,5 com fulcro na Ordem de 13.07.2006 da própria Corte (a mesma que negou o pedido argentino), a qual solicitava às partes “a se absterem de tomar quaisquer medidas que talvez pudessem dificultar a resolução do presente caso” (CIJ, 2006, p. 14). Entretanto, a CIJ em 23.01.2007, igualmente por maioria absoluta, negou tal solicitação “pela falta de perigo de prejuízo iminente aos direitos uruguaios na disputa” (CIJ, 2007, p. 16). Quanto ao mérito, este só veio a ser decidido em 20.04.2010, quando a Corte condenou o Uruguai pelo descumprimento de obrigações procedimentais, afirmando que este país realmente cometera violações ao referido Estatuto. Isso em razão de haver no Tratado uma obrigação mútua de cooperação quanto a preservação do Rio, onde as partes deveriam informar uma a outra, por intermédio de uma Comissão específica, quando pretendessem utilizar tais águas para outros fins, visto que a finalidade pretendida poderia afetar a qualidade destas. Explicitamente, são os termos do artigo sétimo do Estatuto do Rio Uruguai: La parte que proyecte la construcción de nuevos canales, la modificación o alteración significativa de los ya existentes o la realización de cualesquiera otras obras de entidad suficiente para afectar la navegación, el régimen del río o la calidad 5 Conforme a petição uruguaia à CIJ, as rotas haviam sido fechadas no mês de novembro de 2006; e os manifestantes argentinos afirmaram que iriam manter os bloqueios por, no mínimo, mais três meses, similarmente como havia sucedido no ano anterior àquele (CIJ, 2006a, p. 2). 318 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional de sus aguas, deberá comunicarlo a la Comisión, la cual determinará sumariamente, y en un plazo máximo de treinta días, si el proyecto puede producir perjuicio sensible a la otra parte. [grifo nosso] Nesse sentido, restou comprovada a inadequação uruguaia quanto à informação transmitida à Comissão Administrativa do Rio Uruguai (CARU), uma vez que ela deveria ter sido realizada através do próprio governo antes mesmo da concessão prévia de permissão para a construção das papeleiras, com o intuito de evitar que uma das partes agisse de maneira unilateral, sem a devida discussão conjunta acerca das finalidades das águas – o que não sucedeu no caso em tela (CIJ, 2010, p. 31). Inicialmente, insta notar que a transmissão dos primeiros Estudos de Impacto Ambiental à CARU foi feita pelas próprias empresas que construíam as fábricas de papel e celulose. De acordo com as manifestações do Uruguai, representantes da ENCE e da BOTNIA haviam repassado à Comissão as informações necessárias para uma eventual comunicação entre os países, antes mesmo das concessões de construção serem efetivamente emitidas pela agência uruguaia responsável (CIJ, 2010, p. 39). Entretanto, como bem salienta o Estatuto, corroborado pela interpretação da Corte, quem deveria ter transmitido tais dados era o próprio Poder Público uruguaio – e não o setor privado (CIJ, 2010, p. 39 e 41). Inclusive, acredita-se que esse país, na tentativa de corrigir seus atos, acabou incorrendo em mais dois erros cruciais, os quais realmente garantiram a sua condenação, quais sejam: (a) terem igualmente repassado o EIA de ambas as plantas ao governo argentino, porém, sem utilizar-se da CARU, conforme o artigo sétimo do ERU; e (b) o fez posteriormente ao licenciamento das obras, de acordo com o seu regimento interno – desconsiderando totalmente as normativas internacionais.6 Portanto, a decisão da confirmou que no tocante aos procedimentos, o Uruguai transgrediu o ERU. Todavia, quanto a supostas violações de obrigações substanciais do referido Estatuto, as quais fazem referência a possíveis danos ambientais, o Uruguai fora absolvido, por não restarem comprovadas nenhuma ligação entre a Papeleira, que já se encontra em funcionamento, e supostos aumentos de poluente nos índices do Rio Uruguai. Isso, pois, a Argentina falhou em demonstrar que a permanência das papeleiras naquela região estava causando e poderia causar, no futuro, danos irreversíveis ao ecossistema local (CIJ, 2010, p. 54 e 65). A Argentina não apresentou evidências suficientes em nenhum dos quesitos levantados por ela perante a Corte. Apesar de ter submetido inclusive demonstrações numéricas de que a qualidade da água havia sido alterada, não demonstrou 6 Planta da ENCE: transmissão (pelo governo) em 27.10.2003, licença em 9.10.2003. Planta da BOTNIA: transmissão (pelo governo) entre agosto e janeiro de 2006, licença em 14.02.2006 (CIJ, 2010, p. 41). 319 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional nenhuma ligação entre esses aumentos e a construção e funcionamento das fábricas de celulose (CIJ, 2010, p. 65-66). A decisão da CIJ, portanto, favoreceu a Argentina no sentido de ter reconhecido que o Uruguai realmente havia descumprido com o acordado no ERU. Entretanto, haja vista que somente obrigações procedimentais foram descumpridas, a Corte entendeu que não haveria sentido em desmantelar a fábrica de papel, como forma de punição pelo ato ilegal uruguaio – mantendo a papeleira em operação (CIJ, 2010, p. 66). Verifica-se, contudo, que realmente o meio ambiente poderia ter ganhado essa disputa se não tivesse sido utilizado como mero discurso de uma nação para atingir seu objetivo maior, que era receber o IED. Por óbvio que um empenho maior em demonstrar os reais danos ambientais, como também expor a legislação ambiental em vigor poderiam ter ajudado o meio ambiente a ganhar essa “batalha comercial” ente argentinos e uruguaios. Logo, passamos a análise de dois pontos que poderiam ter sido abordados na disputa em tela em favor do meio ambiente, tanto no âmbito mercosulino quanto na CIJ, os quais teriam feito uma diferença substancial no julgamento em prol do ecossistema. 3. E se o Meio Ambiente fosse uma realidade? A política ambiental7 não é uma unanimidade ao redor do globo. Apesar de todos os povos admitirem a necessidade de uma proteção ambiental para a continuidade da espécie humana, o desenvolvimento e o crescimento econômico sempre se destacaram nesse período de globalização. A facilidade do comércio internacional e a possibilidade de auferir enormes riquezas tornam muito mais distantes as políticas de proteção ambiental (DERANI, 1997, p. 120-126). A consciência em prol do meio ambiente, porém, vem sendo alvo de enormes discussões no plano internacional, tendo em vista a evidência de que os danos ambientais desconhecem as fronteiras geográficas dos Estados (CONSELHO PONTIFÍCIO DE JUSTIÇA E PAZ, 2006, p. 30). Logo, é crescente o pensamento de que não se pode mais deixar de avaliar os efeitos ambientais que surgem ao lado do desenvolvimento econômico. Afinal, se este tem como finalidade aumentar o bem-estar (WICKE , 1991, p. 517) e aquele envolve o meio em que o ser humano nasce e interage (SANTILLI, 2005, p. 70-71), um não 7 Para os fins deste trabalho, entende-se política ambiental como sendo “uma série de estratégias e instrumentos” adotados por governantes ou por empresas privadas que refletem na proteção concreta do meio ambiente (RAMOS, 2009, p. 69). 320 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional pode dissociar-se do outro sem implicar da inviabilidade da vida humana (FENSTERSEIFER, 2008, p. 89). Desta feita, a proteção ambiental deveria ser uma realidade, inclusive estando ao mesmo nível da própria evolução econômica dos países, uma vez que as ações ambientais hodiernas refletem diretamente em benefício de toda a comunidade internacional, pois garantem uma “segurança ecológica para a humanidade”, de forma a assegurar uma melhor qualidade de vida no presente, a “ser transmitida às gerações futuras” (CARVALHO, 2008, p. 86-87). Como já previa a Declaração de Estocolmo da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente datada de 1972, em seu segundo princípio, “a proteção e a melhoria do meio ambiente humano constituem desejo premente dos povos do globo e dever de todos os Governos, por constituírem o aspecto mais relevante que afeta o bem-estar dos povos e o desenvolvimento do mundo inteiro” – demonstrando desde aquela época a real a necessidade de haver um equilíbrio entre a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento econômico que se desdobrava em virtude da interligação das economias mundiais. Destarte, passa-se a abordar duas possibilidades que poderiam ter sido levantadas na questão das papeleiras em ambas as jurisdições movimentadas pelas partes, as quais teriam tornado real essa vontade da comunidade internacional em garantir um meio ambiente (e, consequentemente, bem-estar) melhor ao ser humano, quais sejam, o princípio da cooperação e o princípio da precaução. 3.1 O caso no Âmbito do Mercosul e o Princípio da Cooperação. No âmbito do Mercosul, nenhuma manifestação em relação a questão ambiental fora proferida pelo Tribunal Ad Hoc. A única menção ao meio ambiente suscitada foi na tentativa de justificação ao protesto dos habitantes da região argentina de Entre Ríos, haja vista que as atitudes dos manifestantes eram sustentadas pela suposta falta de atenção do governo uruguaio frente ao impacto ambiental que a obra poderia causar no ecossistema em torno do Rio Uruguai, o que afetaria diretamente a região argentina. Exatamente por não ter sido deliberada nesse foro, manteve-se aberta a suposta existência de dano ambiental com a implantação da papeleira finlandesa nas margens do Rio, a qual poderia ter sido abordada na resposta formulada pela própria Argentina, frente a reclamação uruguaia, haja vista a existência de normas ambientais no âmbito do bloco. 321 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional No Tratado Constitutivo do Mercado Comum do Sul, isto é, no Tratado de Assunção a questão ambiental já é vislumbrada em seu preâmbulo, onde resta estabelecido que a preservação do meio ambiente é uma das condições fundamentais para que se alcance a implantação do mercado comum e do desenvolvimento econômico dos Estados-Parte com justiça social. Em outras palavras, quer isto dizer que o meio ambiente é um princípio elementar da ordem jurídica do Mercosul, o qual deve ser respeitado e protegido pelos parceiros do bloco. Em 1995, o Conselho do Mercado Comum (CMC) decide criar um ‘Programa de Ação do Mercosul até o Ano de 2000’, o qual abordava uma série de questões a serem desenvolvidas pelos países do bloco com o intuito de aprofundar e aperfeiçoar a sua integração econômica. Portanto, no item que tratava da dimensão global da integração, restou acordado que o meio ambiente deveria ser tutelado e que, para tanto, deveriam ser criadas estratégias e diretrizes que garantissem a sua proteção, com base nos princípios de desenvolvimento sustentável e cooperação, emanados pela Conferencia das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992 (MERCOSUL, 1995, Parte II). Nesse sentido, visto que a diversidade crescente da agenda interna e externa do processo de integração inclui o meio ambiente, não poderia o Mercosul olvidar essa matéria. Logo, o subgrupo de trabalho de número seis, apresentou um projeto para tomada de um Acordo-Marco sobre o Meio Ambiente no Mercosul, o qual foi aprovado pela CMC em 2001. Esse Marco regulatório reafirma os compromissos dos Estados-membros do bloco à Declaração do Rio de Janeiro de 1992 e a Agenda 21, principalmente no que tange a cooperação dos países para a proteção do meio ambiente e a utilização sustentável dos recursos naturais – exatamente o que poderia ter sido argumentado pela Argentina, frente às ações uruguaias em prol da construção das fábricas de papel e celulose. Isso porque, é crescente a importância do princípio da cooperação no plano internacional. Esse princípio “postula uma política mínima de cooperação solidária entre os Estados em busca de combater os efeitos devastadores da degradação ambiental, o que pressupõe ajuda, acordo, troca de informações e transigência” global, exatamente porque essa é uma questão que pode gerar prejuízos a todos aqueles que compõe sociedade internacional (FENSTERSEIFER, 2008, p. 141). Esse princípio também “orienta a realização de [...] políticas relativas ao objetivo de bem-comum, inerente à razão constituidora do Estado”, as quais impõe “uma adequação entre os interesses mais significativos”, em prol da proteção ambiental (DERANI, 1997, p. 120322 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 157). Nesse sentido, o princípio da cooperação entre os povos transpassa as necessárias “regras de coordenação” entre as nações (MENEZES, 2007, p. 210), exigindo um comprometimento maior de todos os integrantes da sociedade internacional a perseguir os objetivos considerados comuns, como são os ecossistemas e os recursos naturais (NASSER, 2005, p. 204). Desta feita, se o objetivo comum era exatamente proteger o Rio Uruguai de uma poluição e/ou da degradação do ecossistema local pelos resíduos tóxicos emanados pela fábrica de celulose, os Estados envolvidos no caso em tela, quais sejam, Argentina e Uruguai, deveriam aliar-se para tornar efetiva a proteção do meio ambiente, garantindo, assim, o desenvolvimento da comunidade ribeirinha e do ecossistema local com a devida qualidade e equilíbrio – e não adentrar em disputas que encobrissem o verdadeiro problema (HÄBERLE, 2007). Uma vez levantada essa questão e vislumbrada a falta de comprometimento do Uruguai em relação a aplicação das normativas do boco, como também pela não adoção de medidas conjuntas com a Argentina para minimizar quaisquer riscos que poderiam ou poderão ocorrer em virtude da alocação das plantas em tal localidade8, poder-se-ia alegar que o Uruguai teria descumprido a legislação do Mercosul (incluindo normas específicas e genéricas de direito ambiental, como anteriormente abordadas), além do próprio princípio de Direito Internacional da cooperação, podendo ser penalizado por sua transgressão, com base no Protocolo de Olivos, datado de 2002, em seu artigo 34. Nesse sentido, caso restasse comprovada a real poluição do ecossistema da região de Entre Ríos exatamente pela sua falta de harmonia e coordenação perante os demais EstadosMembro, a situação poderia ser efetivamente elevada ao Tribunal Ad Hoc do Mercosul, podendo inclusive incidir na aplicação de medidas compensatórias no caso de um eventual descumprimento daquilo prescrito pelo laudo proferido por essa Corte, conforme prescreve o referido Protocolo de Olivos, em seus artigos 27 e 31. Assim, em suma, é possível afirmar que a questão ambiental poderia ter sido resolvida ainda dentro do âmbito do bloco, não expondo a fragilidade do mesmo no plano internacional, caso esses pontos tivessem sido argumentados pela parte argentina, mesmo que em contestação ao pedido inicial uruguaio. Todavia, a Argentina preferiu levar a questão à CIJ, tendo em vista o que havia sido acordado ainda em 1975 com o Uruguai em relação ao Rio, o qual vinculou esses dois países ao estabelecimento de mecanismos comuns para um aproveitamento melhor e racional das 8 Insta ressaltar que o ERU, em seu capítulo IX, também previa implicitamente o princípio de cooperação. 323 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional águas da região. Ocorre que, mesmo tendo o foco efetivamente ambiental, a Corte maior das Nações Unidas não considerou os argumentos levantados, tendo em vista a falta de provas suficientes para conectar a crescente contaminação percebida ao longo do Rio com a papeleira situada no território uruguaio. Nesse escopo, cabe ressaltar, que uma decisão totalmente diferente poderia ter sido proferida, tal como demonstramos no plano do Mercosul, no caso da observação de outro princípio, qual seja, o da precaução já no escopo externo ao bloco. 3.2 O caso na Corte Internacional de Justiça e o Princípio da Precaução O caso perante a CIJ, como ora abordado, levantou primeiramente as obrigações encontradas no escopo do ERU e em segundo lugar, as questões ambientais, como a poluição de rios transfronteiriços, a poluição do ar e inclusive os efeitos da construção na biodiversidade local, as quais conduziriam a região de Entre Ríos a sofrer diversos danos irreparáveis em seu ecossistema. Como é sabido, porém, a Argentina falhou em apresentar evidências concretas à Corte, o que resultou no afastamento da questão ambiental e manteve o foco somente no Estatuto do Rio Uruguai. Pode-se dizer, logo, que o meio ambiente fora preterido em função desta falha procedimental da parte argentina. Entretanto, se estamos diante de um bem tão mínimo e essencial para o ser humano, que é o meio ambiente, será que a Corte Internacional de Justiça não deveria ter julgado em prol desse direito? Afirma-se, nesse caso, que sim, exatamente pela sua característica fundamental, sendo corroborado pelo princípio da precaução. Meio ambiente, para Derani (1997, p. 71), “não se reduz a ar, água, terra, mas deve ser definido como o conjunto das condições de existência humana, que integra e influencia o relacionamento entre os homens, sua saúde e seu desenvolvimento”. Evidente, portanto, que o “meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental do ser humano”, sem o qual o ser humano não sobrevive, pois afeta diretamente na sua saúde e na própria qualidade de vida (LEUZINGER, 2003, p. 192). Desta feita, a relação existente entre homem e meio ambiente é indissociável, pois o comprometimento deste pode impedir o indivíduo de gozar de todos os demais direitos que lhe cabem, sendo considerado a condição mínima necessária, devendo ser efetivamente e universalmente tutelados (MORATO LEITE; AYALA, 2002, p. 48; CANÇADO TRINDADE, 1993, p. 71). Nesse diapasão, teria sido essencial para comprovar o meio ambiente como um direito intrínseco do ser humano, a decisão plenamente favorável à 324 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Argentina, tendo em vista a possibilidade da planta de pasta de papel em causar danos irreversíveis ao meio ambiente. É neste ponto que o princípio da precaução se sobressai entre os demais princípios no plano do direito internacional ambiental. Justamente por ser utilizado quando as consequências de determinado ato não são detalhadamente conhecidas, se reconhece a necessidade de alguma medida ser tomada com o intuito de precaver-se quanto às possibilidades e previsibilidades danosas futuras (MACHADO, 2001, P. 55), bastando que haja somente a incerteza quanto à verificação do risco (CUNHA, 2004, p. 116). Esse princípio é encontrado no artigo 15 da Declaração do Rio – documento formulado na Conferência de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas de 1992. Nesta ocasião, restou estipulado que “na existência de ameaças de danos sérios ou irreversíveis ao meio ambiente, a falta de uma absoluta certeza científica não deve ser usada como uma razão para se adiar a adoção de medidas economicamente efetivas para prevenir a degradação ambiental”. Verifica-se, desse modo, que apenas “a plausibilidade da ocorrência de danos ambientais graves”, e não apenas os efeitos nocivos iminentes, certos e já conhecidos, já seria suficiente para impor limites às atividades industriais de certos países, como por exemplo, a manutenção de papeleiras (SAMPAIO; WOLD; NARDY, 2003, p. 17). Afinal, o desconhecimento dos impactos pode inclusive por em risco a própria existência do homem, haja vista a ligação existente entre esses dois bens jurídicos, conforme já manifestou o Ministro Gilmar Mendes (STF, 2008, p. 7). Ocorre que muitas vezes no âmbito internacional é exigido a demonstração específica de que certo produto possa efetivamente desenvolver o dano, tal como ocorreu no caso em tela. Não se conseguiu comprovar que a papeleira finlandesa em funcionamento na margem uruguaia, apesar de utilizar a ultima tecnologia em tratamento de água, cujo padrão é semelhante ao sutilizado pela União Europeia, poderia levar a poluição das águas do Rio Uruguai.9 Contudo, exatamente nesse ponto é que esse princípio deveria ter sido utilizado, de vez que “toda a idéa de se adotar medidas de precaução sustenta-se exatamente no desconhecimento dos impactos negativos associados a determinado curso de ação”, como 9 Semelhante fora o caso julgado pelo painel do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC entre Estados Unidos e União Europeia, em que essa pretendia barrar a entrada de carne bovina originária daquele, haja vista a utilização de hormônios de crescimento nos bois que poderiam gerar câncer, o qual não fora comprovado – sendo, portanto, negado o pedido europeu, autorizando retaliações estadunidenses semelhantes as sofridas pelos pecuaristas americanos com o embargo. 325 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional bem apontam Sampaio, Wold e Nardy (2003, p. 18). Vale dizer, da mesma forma, que o instituto da precaução é utilizado frente ao perigo abstrato, em que uma ação é formulada antecipadamente, para impor um limite final ao risco/perigo desconhecido (MARCHESAN, 2008, p. 31). O entendimento da CIJ, entretanto, fora diverso no caso em tela. Apesar de ter reconhecido ainda na opinião consultiva acerca da Legalidade da Ameaça do Uso de Armas Nucleares de 1996 (p. 242) que “o Estado tem a obrigação de garantir que as atividades dentro de sua jurisdição respeitem o meio ambiente dos demais Estados, como também das áreas que vão além de seu controle”, a Corte preferiu nesta ocasião manter-se fiel ao que previa (ou não) o ERU – indo de encontro com as próprias normativas consuetudinárias internacionais. Caso o processo perante a CIJ possa ser entendido como um caminho para tornar reconhecido um direito perante a comunidade internacional, como o meio ambiente, visto que é um procedimento justo e equitativo, realizado em contraditório, o qual garante, assegura, amplia e efetiva os direitos em debate, o mesmo deveria seguir o entendimento comum internacional de que há um dever maior de proteção ambiental, visto que este é um valor fundamental e essencial para o ser humano (JAYME, 2005, 134). Suas decisões, exatamente por interpretarem situações problemáticas que decorrem da vida em sociedade, acabam tendo grande visibilidade pela comunidade internacional, a qual a toma como um ponto de referência, mesmo sabendo que a decisão ali proferida é vinculante somente entre as partes, nos termos do seu Estatuto – artigo 59. Assim, se o direito ambiental já está assentado no seio da comunidade internacional como “condição de direito fundamental da pessoa humana”, quando levantado no âmbito da Corte, o conceito de inderrogabilidade e individualidade desse valor fundamental deveria permanecer, inclusive a frente do ERU. No momento em que não há hierarquia entre as fontes primárias de direito internacional previstas no Estatuto da Corte Internacional de Justiça, deveria haver uma ponderação entre os tratados e costumes aplicáveis no caso concreto (BROWNLIE, 1979, p. 3). Nesse sentido, cabe ressaltar o pensamento de Brierly (1963, p. 58) quando afirma que um tratado será considerado fonte de direito internacional quando o mesmo é celebrado entre vários Estados, demonstrando um entendimento comum acerca de determinada matéria ou fato. 326 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Portanto, apesar do próprio ERU ser considerado “lei entre as partes” em virtude do pacta sunt servanda,10 o direito consuetudinário da preocupação para com a preservação da espécie humana, garantindo a ela um meio ambiente saudável e equilibrado para o seu correto desenvolvimento, o qual surgiu em Estocolmo em 1972, parece muito mais relevante na questão das papeleiras entre Argentina e Uruguai. Outrossim, insta ressaltar que o meio ambiente, por fazer parte do rol dos direitos humanos de terceira geração, é igualmente considerado uma norma peremptória11, ou seja, “uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida”, como prescreve o artigo 53 da Convenção de Viena do Direito dos Tratados de 1969. Em outras palavras, percebe-se que se trata de norma cogente, a qual está presente nas raízes da consciência internacional, sendo considerada um valor intrínseco (RAGAZZI, 1997. p. 54). Nenhum tratado pode suspendê-la, pois são regras fundamentais da comunidade internacional e constituem um dos princípios mais importantes do ordenamento jurídico internacional (JANIS, 2003, p. 65). Caso tenha sido firmado um acordo que vá de encontro com essa regra, tal é passível de declaração de invalidez por um órgão imparcial (tal como a CIJ), visto que a norma peremptória só pode ser modificada caso haja a superveniência de outra norma cogente que trate da mesma matéria (McCORQUODALE, 2003. p. 88, 91-94). Logo, esta é outra razão evidente para que o meio ambiente no caso das papeleiras visse a ser protegido a partir do princípio da precaução, em detrimento da limitada aplicação do ERU. Isso porque, normas peremptórias são sempre mais relevantes que os próprios tratados firmados entre as partes. Desta feita, para que o meio ambiente fosse efetivamente uma realidade no âmbito da CIJ, dever-se-ia aplicar o princípio da precaução, no sentido da Argentina poder tomar providências acautelatórias relativas aos efluentes da fábrica de papel presente no Uruguai, a qual pode vir a causar danos ambientais no futuro – haja vista a possibilidade, mesmo que incerta, de atingir-se diretamente as famílias que habitam a região ribeirinha, bem como a sua fauna e flora. 10 Cabe relembrar que o pacta sunt servanda é um princípio geral de direito internacional, considerado uma norma auxiliar, isto é, secundária dentre as fontes do direito internacional, prevista na alínea c do artigo 38 do Estatuto da CIJ. 11 É mister salientar a diferença existente entre normas costumeiras e normas ius cogens. Enquanto aquelas devem obter um consenso mínimo dos Estados estas devem ultrapassar tal consenso, e atingir uma concordância majoritária ou absoluta entre todas as nações, construindo um valor mínimo da sociedade internacional (JANIS, 2003, p. 66). 327 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional O ERU, nesse escopo, somente deveria ser utilizado como mais um elemento comprobatório dessa necessidade, de vez que sua normativa previa uma “utilização otimizada e racional do Rio” no artigo primeiro, a qual não estaria sendo seguida. Este não deveria ser visto como a fonte de direito internacional principal a ser discutida pela Corte, tal como foi no julgamento, caso a intenção fosse realmente fazer valer a regra ambiental. Nesse diapasão, tais princípios da cooperação e da precaução reproduziriam muito bem a idéia atual de que o meio ambiente é um direito que compõe a estrutura básica do homem, o qual deve ser assegurado pela comunidade internacional concomitantemente à atração de um maior investimento estrangeiro para seu território. Sem um meio ambiente equilibrado não há nem mesmo um local seguro e sadio para o desenvolvimento econômico, justamente porque um depende direitamente do outro para a sua total fruição.12 4. Considerações Finais O caso das papeleiras é sem dúvidas um novo caso emblemático do direito internacional e da integração, haja vista a pluralidade de jurisdições movimentadas para tentar sanar uma disputa referente à implantação de fábricas de papel nas margens de um rio transfronteiriço, situado entre Argentina e Uruguai. Os desdobramentos das duas decisões, entretanto, abordaram situações totalmente diferentes, havendo apenas um ponto em comum, qual seja, a impossibilidade de vislumbrar o meio ambiente como tema principal. Seja em razão da livre circulação ou da aplicação estrita do Estatuto do Rio Uruguai, restou claro que o ponto principal da disputa girava em torno da atração de investimentos estrangeiros direitos e do fortalecimento econômico, e não da defesa do ecossistema local. Da mesma forma em que a integração regional impulsionou a entrada de empresas estrangeiras à Argentina por vários anos, o Uruguai teve pela primeira vez a oportunidade de celebrar um contrato de tamanho valor monetário – o que levou àquela nação a uma insatisfatória posição de ser preterida, criando tamanho um desgosto ao governo, que, por sua vez, nada fez a fim de evitar o fechamento por parte de seus habitantes dos pontos de entrada e saída entre ambos os países, gerando um grande transtorno regional. 12 Os draft principles sobre direitos humanos e meio ambiente, formulado no âmbito da Assembleia Geral do sistema onusiano, no ano de 1994, assinala essa conexão quando redige o seu artigo segundo nos seguintes termos: “todas as pessoas tem o direito a um meio ambiente seguro, saudável e ecologicamente equilibrado. Esse direito e os outros direitos humanos, incluindo os direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais são universais, interdependentes e indivisíveis” (ONU, 1994). 328 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Para muitos, essa questão inclusive estremeceu as relações do bloco, haja vista a impossibilidade da livre circulação (finalidade maior do Mercosul) ser efetivamente garantida. De fato, o bloco viu-se em um impasse nunca antes vislumbrado, do qual brotou a necessidade de uma legislação para a concorrência entre as nações do bloco. No escopo da Corte Internacional de Justiça, outro problema também emergiu – o meio ambiente fora deixado de fora da análise, focando-se apenas no Tratado constituído pelas partes e nas obrigações procedimentais, olvidando-se do papel fundamental que o meio ambiente carrega hodiernamente, que já fora inclusive emanado pela mesma Corte em situações anteriores, demonstrando certo descompasso entre as próprias jurisprudências desse órgão. Todavia, se tais foram chamados de efeitos diretos, os efeitos indiretos dessa disputa são os que mais preocupam, exatamente por envolver o meio ambiente, sem o qual o ser humano não pode se desenvolver plenamente. E justamente esses efeitos que ficaram em segundo plano em ambas as disputas jurisdicionais. Muito se afirma que hodiernamente tanto as relações econômicas quanto a busca por um ambiente mais saudável são preocupações transnacionais, as quais rompem com os tradicionais limites geográficos das nações. Porém, se se começa a desenhar um “direito internacional ambiental que aos poucos passa a incidir nas relações comerciais internacionais”, esse caso deveria ter sido resolvido com fulcro na questão ambiental em ambos os planos jurisdicionais, e não apenas nos efeitos direitos exteriorizados nas disputas. Isso pois, mesmo que a finalidade do direito ambiental coincida com a do direito econômico, qual seja, propiciar um aumento na qualidade de vida do ser humano e no próprio bem-estar do individuo, sem o meio ambiente equilibrado e sustentável, a humanidade está fadada a chegar a um fim. Nesse sentido, seria indispensável que o meio ambiente passasse a assumir um papel maior perante a comunidade internacional. Por isso, foi abordado a utilização de dois princípios de direito internacional que ajudariam as questões a serem resolvidas com base no direto ambiental, tanto no Mercosul quanto na CIJ. No escopo do bloco, a cooperação entre os Estados, seria uma condição importantíssima para que os problemas relativos ao meio ambiente, os quais afetam a persecução do bem comum, fossem contornados. Afinal, a primazia dos objetivos comuns internacionais, como a sustentabilidade ambiental, é condição para a própria existência dos Estados, agindo em prol do ser humano – e não contra ele. Já no plano da Corte Internacional de Justiça, o princípio da precaução deveria obter destaque, justamente por agir em prol da segurança do meio ambiente (direito tanto 329 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional costumeiro quanto cogente) quando houvesse um perigo desconhecido que emergisse de certa ocasião – atuando in dubio pro securitate. Afinal, esse princípio assegura a existência de uma qualidade mínima de vida à comunidade atual, permitindo, ainda, a sua transferência às gerações futuras, exatamente pela premissa que carrega, qual seja, de cessar os riscos mais indetermináveis, porém, presentes. Por fim, se esses princípios mencionados fossem seguidos, o meio ambiente passaria de um mero discurso, para o efeito principal de ambos os casos originados pela questão das papeleiras, introduzindo a realidade a busca incansável pela proteção da espécie humana nesses dias globalizados, em que muitas vezes uma economia mais próspera fala mais alto – apesar de carregar consigo o alto risco de tornar a humanidade inexistente em um futuro próximo, haja vista o consumo desenfreado dos recursos naturais, a poluição dos rios, a destruição da camada de ozônio, para citar alguns exemplos que se originam dessa realidade. 5. Referências ARANTES, S.. Corte busca reconciliar Argentina e Uruguai. Folha de São Paulo. 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A sentença da CIDH e a sentença do STF geraram um conflito sobre a constitucionalidade da Lei de Anistia, que protegeu os agentes dos crimes de leso-humanidade cometidos durante a ditadura, os quais perduram até o presente momento, devido à ausência do Controle de Convencionalidade por parte do Estado, caracterizando a violação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e o Pacto de San Jose da Costa Rica. Palavras chave: Guerrilha do Araguaia; Lei de Anistia; Corte Interamericana de Direitos Humanos; Supremo Tribunal Federal. Abstract: This article was about the sentencing of Brazil by the Inter-American Court of Human Rights, the decision of the Brazilian Supreme Court on such condemnation, the Amnesty Law (no.. 6.683/79) and the Araguaia Guerrilla. The judgment and sentence of the Inter-American Court of Human Rights and the Brazilian Supreme Court generated a conflict over the constitutionality of the Amnesty Law, which protected the agents of injury-humanity crimes committed during the dictatorship, which lasted until the present time, due to a lack of control by conventionality the state, characterizing the violation of International Human Rights Treaties and the Pact of San Jose da Costa Rica. Keywords: Araguaia Guerrilla; Amnesty Law; Inter-American Court of Human Rights; Brazilian Supreme Court Sumário: 1. Introdução – 2. Teoria do Estado Constitucional Cooperativo – 3. O Julgamento do CIDH – 4. O Julgamento do STF – 5. Entre o STF e a CIDH – 6. Conclusão – 7. Referências 1. Introdução 1 Mestrando em Direito pela Universidade Nove de Julho – Uninove, com ênfase em Justiça, Empresa e Sustentabilidade, linha de Concentração escolhida: Justiça e o Paradigma da Eficiência. 335 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A Guerrilha do Araguaia foi um movimento de resistência ao regime militar integrado que implantou a ditadura no Brasil a partir de um golpe, para evitar que João Goulart, sucessor de Jânio Quadros, tomasse posse da Presidência da República (AUAD, 2004). O grupo de guerrilheiros era constituído por 70 jovens (entre os quais existiam estudantes, médicos, advogados, professores, bancários, camponeses regionais) membros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que se organizaram a partir de 1967, com o objetivo de fomentar uma revolução socialista. Os guerrilheiros instalaram-se às margens do Rio Araguaia, atual divisa dos estados de Tocantins e Pará (CASAGRANDE, 2012). Para combater as ações revolucionárias daquele grupo, o Exército brasileiro iniciou uma forte repressão no período que compreendeu de 1972 a 1974, enviando cerca de 5 mil soldados à região, cujo resultado da operação foi a morte e desaparecimento de todos os guerrilheiros existentes naquela região (SEDH, 2007). Já na fase final do regime militar e com a lenta retomada da democracia no país, foi promulgada a Lei de Anistia - Lei 6.683/79 (por acordo entre civis e militares), que concedeu anistia a todos aqueles que tivessem cometido crimes políticos, eleitorais, e os chamados ‘crimes conexos’, ocorridos no período compreendido entre setembro de 1961 e agosto de 1979. Constam dados alegando que os corpos dos capturados foram desenterrados e queimados ou atirados nos rios da região. Não foi possível estabelecer o número exato de pessoas mortas, já que, ao serem capturados pelo Exército, os combatentes eram torturados e executados sumariamente, sendo seus corpos queimados ou jogados nos rios da região, para evitar que sua identidade ou seu paradeiro fossem possíveis (CASAGRANDE, 2012). A Lei de Anistia surgiu para impedir que os vários crimes cometidos pelos militares ocasionassem sua perseguição; ao mesmo tempo em que permitiu o retorno dos exilados, e concedeu o perdão aos servidores afastados, na prática, serviu para garantir proteção aos militares que praticaram tortura, assassinatos, abuso sexual e o desaparecimento forçado de pessoas, entre elas os dissidentes políticos, incluídos os crimes praticados durante a Guerrilha do Araguaia, evitando assim que os responsáveis fossem processados e condenados, a qualquer tempo (SEDH, 2007). Trinta anos após a aprovação da Lei de Anistia, reabriu-se a discussão sobre buscas pelas vítimas e sobre a punição dos militares responsáveis, a partir de um forte movimento dos familiares das vítimas da ditadura militar. Grupos influentes da sociedade civil passaram a defender que a Lei de Anistia não deveria servir para garantir a impunidade de agentes da repressão que praticaram tortura, assassinatos e outras atrocidades. 336 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional A Ordem dos Advogados do Brasil ingressou com uma Arguição de Descumprimento a Preceito Fundamental (ADPF 153/2008) perante o Supremo Tribunal Federal, pedindo para que a Lei de Anistia fosse interpretada no sentido de não favorecer “os crimes comuns praticados por agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar” (CFOAB, 2010). Passados dois anos, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a ADPF 153/2008, por 7 votos a 2, declarando que a Lei de Anistia não teria perdido a sua validade jurídica, de modo que os crimes praticados por militares com motivação política durante a ditadura foram anistiados, não podendo os seus autores serem processados ou condenados criminalmente (MORAES, 2011). Inconformados com a decisão, os familiares das vítimas subteram o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o [Caso Gomes Lund e Outro (“Guerrilha do Araguaia”) v. Brasil] (MPF, 2010). Em novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas pertencentes à Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar e considerou a Lei de Anistia brasileira é um obstáculo à investigação, ao julgamento e à punição desses crimes. O Tribunal Internacional reconheceu o Governo do Brasil como omisso, “face à falta de apuração dos desaparecimentos forçados durante a Guerrilha do Araguaia (DEZEM, 2012)”. Assim, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que determinou: “o pagamento de indenizações aos familiares das vítimas, consideradas como desaparecidos políticos; realizar persecução criminal dos autores dos crimes cometidos no Araguaia; localizar e identificar as vítimas ou seus restos mortais; permitir o acesso aos arquivos históricos e a divulgação de suas informações, dentre outras medidas” (BASSIOUNI, 2007). A Constituição Federal de 1988 contempla a dignidade da pessoa humana, visando à proteção aos direitos humanos. Face aos tratados internacionais de proteção das vítimas dos Crimes contra a Humanidade, e, estando passível de novas condenações internacionais, como manter em vigor a Lei de Anistia? Como resposta a essa questão, está a clara necessidade do Supremo Tribunal Federal rever seu posicionamento e realizar o Controle de Convencionalidade para julgar a Lei de Anistia. 337 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional O presente artigo tem como Objetivo Geral abordar a Teoria do Estado Constitucional Cooperativo, face à obrigatoriedade das nações-membro ao cumprimento dos pactos concernentes aos Direitos Humanos. Já os objetivos específicos consistem em apresentar os conflitos existentes entre os Acordos Internacionais firmados pelo Brasil e a Legislação interna vigente, que contraria aqueles acordos, enquanto a Lei de Anistia persistir vigente. Como metodologia adotada para sua elaboração, definiu-se pela pesquisa bibliográfica, a partir do levantamento de teóricos especializados no assunto (JARDILINO, ROSSI e SANTOS, 2000). Quanto à técnica, optou-se pela descritiva exploratória, que consiste “na observação, registro, análise e correlacionamento de objeto específico” (JARDILINO et al, op.cit). 1.1. A Guerrilha do Araguaia e a Lei de Anistia – Lei nº. 6.683/79 Poucos fatos foram divulgados sobre o desaparecimento forçado dos componentes do grupo guerrilheiro do Araguaia. Segundo a versão oficial, as operações militares naquela localidade teriam ocorrido dentro da normalidade que se espera de um combate antiguerrilha (CASAGRANDE, 2010). As Forças Armadas alegaram não possuir qualquer documento acerca do ocorrido na região do Araguaia entre 1972 e 1974, afirmando ainda que todos os documentos atinentes à repressão feita pelo regime militar à Guerrilha do Araguaia foram destruídos sob o respaldo da legislação brasileira. Assim, nenhum dos crimes praticados por militares foi punido, nem sequer investigado. A Lei de Anistia – Lei nº. 6.683, datada de dezembro de 1979, estabelece em seu Artigo 1º. que: “Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. § 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. § 2º – Excetuam-se dos benefícios da anistia, os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal” (CASA 338 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional CIVIL, 1979). O período compreendido entre meados do Século XX até a atualidade apresenta entre suas principais características, “a violência, na forma de guerras, insurgências, ações repressivas permitidas pelos Estados e impunidade instituicionalizada”, levando á morte, milhões de pessoas, especialmente civis, ao redor do mundo (BASSIOUNI, 2007). Em seu texto original, esse perdão foi concedido a “todos aqueles que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores do Poder Legislativo e do Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares” (CASA CIVIL, 1979). A Guerra Fria (tomada do poder por meio de Golpe Militar) submeteu a população brasileira à pesada mão do militarismo, caracterizando-se pela prática de tortura e sumiço de pessoas, além de graves violações (periódicas), ensejando a manutenção do controle do país tomado à força, através da repressão de manifestações populares, da suspensão dos direitos dos cidadãos e da liberdade de expressão, de uma forma geral: nada podia ser dito, escrito ou divulgado sem que fosse autorizado pelo comando militar (AUAD, 2004). Espelhando-se em outros países, quando retomada a democracia nacional, a Lei de Anistia teve o caráter de licença legal para que os crimes classificados como leso-humanidade não fossem investigados, e com isso, os responsáveis pelos mesmos não fossem julgados ou punidos (MORAES, 2011). Em toda a América Latina, foram promulgadas leis de anistia, face ao temor dos militares quanto às possíveis punições a que estariam submetidos, a partir da reabertura democrática. Em outras palavras, “A Lei de Anistia resultou de um pacto “imposto” pelo Governo militar da época”. À Justiça Transicional cabe o “esforço para construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos (TEITEL, 2005)”. Essas ações compreendem o enfrentamento claro e transparente das violências ocorridas no passado, evitando “sua reincidência a qualquer tempo, visando ainda promover a paz e reconciliar e proteger os direitos humanos” (BASSIOUNI, 2007). Já Angélica Retberg define que “a transição operada por cima” reflete que “os acordos de justiça transicional são realizados entre quatro paredes, para com isso, serem ocultados os meios e motivos pelos quais foram feitos em tempos de repressão (PETRUS, 2010). 339 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Sobre a responsabilização pelos crimes contra os Direitos Humanos ocorridos no período ditatorial, a Carta de São Paulo considera que: "a efetiva transição para a democracia republicana somente estará concluída quando houver a promoção da verdade e a responsabilização dos autores dos graves crimes cometidos durante a ditadura militar", cabendo ao Ministério Público desempenhar o papel conciliador para reconciliar as famílias das vítimas com o Estado brasileiro, investigando, punindo e dando respostas às dúvidas que persistem até o presente, sobre pessoas e seus restos mortais (REVISTA ÂMBITO JURÍDICO, 2012). Por fim, a Lei de Anistia concedeu impunidade aos Crimes contra a Humanidade praticados contra civis brasileiros, garantindo a herança jurídica do autoritarismo à recém retomada democracia (MORAES, 2011). 1.2. Breve História dos Regimes de Governo no Brasil Desde o seu descobrimento, o Brasil foi submetido às leis estabelecidas pela Coroa Portuguesa. Entre as várias fases e regimes praticados ao longo da história da humanidade, foi na Grécia que surgiu o conceito e das práticas relativas à Democracia. Entre a Idade Média e até à Idade Moderna, o regime democrático ficou esquecido, sendo retomado a partir do Século XVIII, através do pensamento e movimentos de filósofose suas teorias clássicas sobre democracia, que era o governo dos representantes do povo, para atendimento de suas necessidades e anseios (AUAD, 2004). As práticas democráticas foram retomadas a partir do Século XVIII, quando ocorreram movimentos “de luta pela derrubada do poder absolutista dos monarcas, bem como a conquista de liberdades individuais em face do Estado, abrindo caminho para a ascensão política de pessoas civis, não descendentes de famílias nobres, mas detentoras de poder econômico, fruto do comércio”. A Proclamação da Independência do Brasil foi o 1º. processo constitucional nacional, através do decreto assinado pelo príncipe D.Pedro I, mediante a convocação da 1ª. Assembléia Geral Constituinte e Legislativa da História Nacional (AUAD, 2004). Em julho de 1934, foi promulgada a 2ª. Constituição do Brasil, instituindo o voto secreto, os direitos trabalhistas e o nacionalismo econômico, fase que foi denominada como Era Vargas, subdividida em três fases: o Governo Provisório (1930 a 1934); o Governo Institucional (1934 a 1937): eleição do Presidente da República pelo voto secreto e indireto, impedindo o manejo eleitoral pelo coronelismo; e o Governo Ditatorial (1937 a 1945): 340 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional combate ao Comunismo, fechamento do Congresso Nacional; promulgação da 3ª. Constituição Federal, dando início ao Estado Novo, com a extinção dos partidos políticos (AUAD, 2004). A 4ª. Constituição Federal foi considerada Liberal, vigindo de 1946 a 1964, garantia ao cidadão, o direito à liberdade de pensamento, crença religiosa, expressão, locomoção e associação de classe, enquanto era aprovado no cenário internacional, um documento para defesa dos direitos de todos os cidadãos, denominado Declaração Universal dos Direitos Humanos (COTRIM, 2009). Em 1955, findo o mandato Vargas, realizaram-se eleições presidenciais, elegendo Juscelino Kubitschek para presidente, e João Goulart como vice-presidente. De 1946 a 1950, através da Guerra Fria e o Anticomunismo, João Goulart foi deposto da presidência por um Golpe Militar, quando o Comando das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), tomou o Estado Brasileiro, dando lugar à instalação da Ditadura no Brasil, pondo fim ao período democrático, que foi substituído pelo Autoritarismo. Foi um período marcado pela inexistência de diálogo com os vários setores da sociedade, momento em que o Brasil passou a ser governado com base nos Atos Institucionais – AI’s, que se sobrepunham à Constituição Federal, impondo a censura à livre expressão e aos meios de comunicação existentes: rádio, televisão, jornais e revistas. Foram 5 os presidentes militares que governaram o Brasil ao longo de mais de 20 anos (1964 – 1985), até que a democracia voltasse a legislar no país, ao longo dos quais, o Brasil foi governado com base em Atos Institucionais – AI’s, que pesaram severamente sobre a população, conforme seguem (COTRIM, 2009): AI-1 (abril de 1964): o Executivo cassou mandatos de parlamentares, suspendeu direitos políticos de todos os cidadãos, modificou a Constituição e decretou a situação de estado de sítio sem necessitar da aprovação do Congresso; período de forte repressão interna contra sindicatos e contra a União Nacional dos Estudantes (UNE), e a cassação de direitos políticos, inclusive dos ex-presidentes civis, Juscelino Kubistchek, Jânio Quadros e João Goulart; AI-2: o Governo adquiriu poderes para cassar mandatos e direitos políticos, permitindo a existência de apenas 2 partidos políticos: a Aliança Renovadora Nacional (Arena), para apoiar o Governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), para oposição, criação da Lei de Segurança Nacional, para enquadrar opositores do governo autoritário (COTRIM, 2009); 341 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional AI–3: fim das eleições diretas para governadores e prefeitos: enquanto os primeiros passaram a ser indicados pelo presidente, sob aprovação da Assembléia Legislativa, os prefeitos seriam indicados pelos governadores; AI-4 (1967): promulgada a nova Constituição para fortalecer o presidente da República e enfraquecer o Poder Legislativo e Judiciário. Foi indicado pelo Alto Comando Militar (para a presidência), o Marechal Artur da Costa e Silva; de 19671969, ocorreram inúmeras foram as manifestações públicas contra a ditadura: estudantes nas ruas, greves de operários, políticos da oposição discursavam contra a violência, padres discursando contra a fome do povo e contra as práticas de tortura contra pessoas contrárias àquele regime; AI-5 (1968): conhecido como o período dos ‘anos de chumbo’, tendo à frente, o Gal. Emílio Garrastazu Médici, vigorando de 1969-1974; o AI-5 foi o mais terrível instrumento do regime militar: condeceu poderes irrestritos ao presidente da nação, fechou o Congresso Nacional por prazo indeterminado, cassou deputados estaduais e federais, vereadores e prefeitos, afastou os ministros do Supremo Tribunal Federal. Foi um período marcado pela violência repressiva contra as oposições e o poder ditatorial foram ainda piores do que os períodos anteriores, já que todos os direitos básicos dos cidadãos foram suspensos, “pesando nas escolas, nas fábricas, nos teatros, na imprensa” a “mão de ferro” do autoritarismo. Na atualidade, momento em que o Brasil cresce economicamente aos olhos das grandes potências mundias, exceto pelo destacado “atraso em sua cultura jurídica internacional” (GOMES, 2010). Ao manter impunes aqueles que torturaram e mataram milhares de brasileiros, perpetua-se o “encarceramento da história do Brasil nos porões mais sombrios do esquecimento (PETRUS, 2010). 2. Teoria do Estado Constitucional Cooperativo O Estado de Constitucional Cooperativo deve primar pela prática de políticas de paz para com os demais países, a partir do Direito Internacional (HABERLE, 2007). Nas palavras do autor, ”é aquele que encontra sua identidade também no Direito Internacional, noentrelaçamento das relações internacionais e supranacionais, na percepção da 342 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional cooperação e responsabilidade internacional, assim como no campo da solidariedade”. Assim, cabe ao Estado, subordinar-se às normas jurídicas internas, tanto quanto às externas, uma vez que "não são apenas os indivíduos (ou os particulares) que vivem subordinados a normas jurídicas. Igualmente o Estado e as demais instituições que exercem autoridade pública devem obediência ao Direito (incluindo ao Direito que criam)" (SILVA, 2012, apud MIRANDA, 2002). O Estado Constitucional constitui-se pelo conjunto dos princípios constitucionais materiais e formais, a partir dos Direitos Fundamentais, do Estado Social de Direito, da Divisão de Poderes e da Independência dos Tribunais. Para Mendes (2012, apud HABERLE, 2003), “o Estado constitucional cooperativo estaria inserido em uma comunidade universal de Estados constitucionais, ou seja, em um contexto em que os Estados constitucionais não existem mais para si mesmos, mas, sim, como referências para os outros Estados constitucionais membros de uma comunidade”. Corresponde o Estado Constitucional Cooperativo ao desenvolvimento e cumprimento de um Direito Internacional, visando a cooperação entre os Estados-membro (HABERLE, 2007). Como pressupostos para suas práticas, estão: “as necessidades de cooperação no plano econômico, social e humanitário, assimcomo – falando antropologicamente – da consciência de cooperação (internacionalização da sociedade, da refe de dados, opinião pública mundial, das demonstrações com temas de política externa, legitimação externa) (HABERLE, 2007). A iniciativa para criação da cooperação entre os países, surgiu do trabalho das Nações Unidas, visando promover a paz entre os povos, através de “codificações, declarações e resoluções para os presuspostos formais”, que por sua vez, são representados pela Convenção de Viena sobre os Tratados de 1969, e a Convenção diplomática de Viena em 1961 (HABERLE, 2007). Em seu texto original, a Carta das Nações Unidas estabelece que “as crenças nos direitos fundamentais da pessoa, na dignidade e valor da personalidade humana, na igualdade de tratamento entre homeme e mulher, assim como entre todas as nações, ainda que grande ou pequena, devem ser novamente fortalecidas” (HABERLE, 2007) Os efeitos da referida Carta agem diretamente sobre a questão da proteção dos direitos humanos, independentemente da nacionalidade da pessoa humana. Com isso, ao aderir aos Tratados Internacionais, os países signatários obrigam-se a cumprir as leis por eles definidos, que passam a ter o caráter supralegal relativamente à Constituição vigente em casa país, ou de 343 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional outra forma, “tornam-se regidos pelos direitos fundamentais através de uma instância supranacional”. São claras as características do Estado Constitucional ocidental: permissão para modificações de extensão variável; é juridicamente limitado, face aos acordos internacionais e a questão da instância supranacional; demanda abertura política (interna e externa); deve orientar-se por uma democracia pluralista; manter o respeito aos direitos fundamentais; respeitar a divisão de Poderes; primar pela independência de seu Poder Judiciário (SILVA, 2012, apud HABERLE, 1998). Mendes (2012) defende que, no entendimento do Supremo Tribunal Federal, “os diplomas normativos de cartáter internacional adentram o ordenamento jurídico interno no patamar da legislação ordinária”, ou de outra forma, têm o caráter de “atributo de supralegalidade”. Reflete sobre o Estado Cooperativo, as questões referentes à soberania compartilhada, que compreende, “como em qualquer processo de descentralização, com grande raio de poder nos terrenos político, legal, administrativo e financeiro, mas sua força política vai além disso. A peculiaridade da federação reside exatamente na existência de direitos originários pertencentes aos pactuantes subnacionais – sejam estados, províncias, cantões ou até municípios, como no Brasil. Tais direitos não podem ser arbitrariamente retirados pela União e são, além do mais, garantidos por uma Constituição escrita, o principal contrato fiador do pacto político-territorial” (ABRUCIO, 2005). O fim do estado totalitário consiste nos direitos humanos reconhecidos e protegidos pela Constituição de uma nação, servindo como instrumento limitador contra arbitrariedades sobre o indivíduo. Outro conceito fundamental a referir, aborda o “Bloco de Constitucionalidade, que é a somatória daquilo que se adiciona à Constituição escrita, emfunção dos valores e princípios nela consagrados” (LAFER, 1988). 3. O julgamento da CIDH A CIDH entendeu que: “as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem “ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na 344 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Convenção Americana ocorridos no Brasil” (MORAES, 2011). Mediante esse entendimento, aquela Corte Interameticana determinou ainda que o Brasil deverá “conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e conseqüências que a lei preveja” (CIDH, 2009). Dentro deste contexto, há que se arrazoar sobre a convivência dos posicionamentos antagônicos de duas cortes: a CIDH que condenou o Brasil pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas pertencentes à Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar e pela sua Lei de Anistia representar um obstáculo à investigação e punição dos culpados, e o Supremo Tribunal Federal que decidiu nao rever a Lei de Anistia, por considerar essa constitucional e ter marcado a transição do regime ditatorial ao democrático, não cabendo revisão, no tempo presente, de fatos que fizeram sentido na época em que ocorreram. Sob a ótica da CDIH, o Brasil manteve-se ao longo do tempo isolado dos demais países latino-americanos, devido à ausência de um posicionamento claro sobre a revisão necessária ao teor da referida Lei. “Dentro de um determinado território, contudo, o Estado é o principal sujeito, responsável pela organização daqueles inseridos dentro de seus limites territoriais (PETRUS, 2010)”. Face à retomada das questões relativas aos Crimes contra a Humanidade, aos pactos internacionais, e à Lei de Anistia ainda vigente no Brasil, em março de 2009 a Convenção Americana, de acordo com seus artigos 51 e 61 “submeteu à Corte uma demanda contra a República Federativa do Brasil, que se originou na petição apresentada em agosto de 1995, pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pela “Human Rights Watch/Americas”, em nome de pessoas desaparecidas no contexto da Guerrilha do Araguaia” (CF-OAB, 2012). Decidida a “submeter o caso à jurisdição da Corte, a Comissão também enfatizou o valor histórico do caso e a possibilidade de o Tribunal afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia e das leis sobre sigilo de documentos com a Convenção Americana” (PETRUS, 2010). Entre os países latino-americanos, o Brasil foi e ainda é atualmente, o único país sulamericano que deixou de investigar, julgar e punir aos responsáveis pelos crimes comuns, considerados como lesa-humanidade, ocorridos durante a ditadura militar. Esta postura caracteriza-se como uma violação das obrigações assumidas pelo Estado 345 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional perante a Convenção Americana, e tratados de direitos humanos frente à Organização dos Estados Americanos, e aos objetivos centrais da Organização das Nações Unidas, por um “sistema internacional de defesa aos direitos humanos”, o Brasil feriu os princípios da Justiça de Transição (CF-OAB, 2012). Aos deveres da Justiça de Transição, estão vinculadas as políticas que visem reparar às vítimas e familiares dos regimes, devendo: “revelar os crimes passados, reformar ou extinguir instituições ditatoriais, com a finalidade de promover a reconciliação dentro do Estado”. Por sua vez, “estão vinculados a essas políticas, outros quatro princípios: reforma das instituições para a democracia, direito à memória e à verdade, direito à reparação e o direito ao igual tratamento legal e à justiça (MPF, 2010). Após a proposição de demanda apresentada em 7 de agosto de 1995, pelos familiares das vitimas e grupos defensores de direitos humanos, ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o Brasil foi condenado no dia 24 de novembro de 2010, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH, 2009). Em sentença histórica, a Corte Internacional (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) responsabilizou internacionalmente o Brasil pelo desaparecimento de 70 pessoas, entre os anos de 1972 e 1974, na região conhecida como Araguaia (IBCC, 2010). Trata-se da quarta condenação internacional do país na Corte Interamericana e a primeira condenacao envolvendo crimes da ditadura militar e analise da Lei de Anistia. Contrariando o Pacto de São José da Costa Rica, o Brasil violou o que segue definido para todos os seus signatários, e com isso, foi condenado pela Convenção Americana de Direitos Humanos nos aspectos mencionados: “1º.: desaparecimento forçado e os direitos violados das 62 pessoas desaparecidas; 2º.: aplicação da Lei de Anistia como empecilho à investigação, julgamento e punição dos crimes; 3º.: ineficácia das ações judiciais não penais e, 4º.: falta de acesso à informação sobre o ocorrido com as vítimas desaparecidas e executada – violação do direito à liberdade de pensamento e expressão” (CASA CIVIL, Decreto nº. 4.463, 2002). Para estabelecer a condenação do Brasil, a CIDH baseou-se ainda na Convenção de Viena, a Corte Interamericana analisou vários casos ocorridos na América Latina e em outros lugares ao redor do mundo, para estabelecer a condenação do Brasil (CONVENÇÃO DE VIENA, 1969). No que se refere aos Tratados Internacionais a que estão submetidos os países membros da do Segundo a Convenção de Viena, os tratados internacionais determina que: 346 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Artigo 53: Tratados incompatíveis com uma norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens) é nulo todo o tratado que, no momento da sua conclusão, seja incompatível com uma norma imperativa de direito internacional geral. Para os efeitos da presente Convenção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceite e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados nos eu todo como norma cuja derrogação não é permitida e que só pode ser modificada por uma nova norma de direito internacional geral com a mesma natureza (CONVENÇÃO DE VIENA, 1969). Novo parâmetro pode ser estabelecido, a partir da decisão unânime do Supremo Tribunal Federal, que definiu, por unanimidade, ser contrário à prisão do Depositário Infiel. Segundo o Pacto de San José da Costa Rica, sentenciar o devedor pecuniário à prisão fere os princípios dos Direitos Humanos, ocasionando sua violação. No caso do Brasil, como signatário do PSJC e, definindo contra a prisão do devedor, o Estado submeteu-se à tese da supralegalidade, confirmando a intitucionalização das normas internacionais (BARROS, 2007). 4. O julgamento do STF Ao assumir o poder em março de 1979, o Gal. Figueiredo assumiu a missão de conduzir o projeto de reabertura política. Em agosto do mesmo ano foi promulgada a Lei nº. 6.683 de 1979, também conhecida como Lei de Anistia (CASA CIVIL, 1979). Considerada como lei-medida, serviu para findar o regime militar, permitindo a retomada lenta do democrático, perdoando os crimes politicos ou conexos praticados durante o regime dictatorial no Brasil entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Trinta anos depois, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil propôs uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153, 2008), ao entender incosntitucional a interpretação de que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos se estende, também, aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar (ADPF 153, 2008). Intentava-se, pois, que o Supremo Tribunal Federal declarasse a não recepção, pela Carta Magna, do parágrafo primeiro do artigo primeiro da Lei de Anistia, excluindo da acolhida legal os crimes comuns praticados pelos militares, como, tortura, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, estupro e atentado violento ao pudor. No decorrer de 2009, face aos avanços sociais ocorridos ao longo de 30 anos, e aos pactos internacionais firmados entre os países pela defesa dos Direitos Humanos, reabriu-se a 347 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional discussão sobre a referida Lei, com base na “Arguição de Descumprimento a Preceito Fundamental (ADPF 153, 2008). Tal arguição foi impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil junto ao Supremo Tribunal Federal, requerendo que a Lei de Anistia tivesse modificada a sua interpretação, “no que se refere ao não favorecimento dos crimes comns praticados por agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar (CF– OAB, 2010). Essa condenação foi a primeira contra o Brasil, pelos crimes cometidos durante a ditadura militar, os quais não podem permanecer impunes. Tal processo atribuiu ao Governo Brasileiro tanto o desaparecimento forçado das vítimas, como a situação de impunidade, deflagrando a falta de transparência da nação brasileira sendo que as decisões daquela corte devem ser acatadas, face ser o Brasil, signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Assim, a CIDH determinou pela investigação, denúncia e sanção daqueles que ocasionaram os desaparecimentos. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal prolatou decisão pela improcedência da ação, apresentando 7 votos pela improcedência contra 2 pela revisão da lei. Por sua vez, o Ministro Relator Eros Grau referiu Nilo Batista, para mencionar a importância da obediência a que o Brasil deva submeter-se, quanto à internalização de normas internacionais, de modo que passem a vigir dentro do ordenamento jurídico nacional. Ainda para o relator do julgamento da ADPF20 153/DF, Ministro Eros Grau (CF – OAB, 2010): “a lei de anistia deu-se por solução consensual das partes (em plena época da ditadura), quenão era aplicável a jurisprudência internacional (não seria anistia ‘unilateral’, mas recíproca, sem questionar quem foi que se autoconcedeu anistia) e que o cidadão tinha direito á verdade (mas não se sobrepor à relutância de Comissão de ‘Verdade’, que não tinha qualquer finalidade de persecução penal) (PETRUS, 2010) Todas as violações dos direitos humanos praticadas durante o Governo Militar ainda refletem o sentimento de milhares de famílias brasileiras, cujos entes foram dizimados, de três formas: “impede, em primeiro lugar, que as violações aos direitos humanos sejam investigadas; sabota a compreensão histórica crítica que nos habilitaria a promover transformações sociais significativas no presente; e, por fim, opera a sensação de queo tempo passou e nada mudou, convencendo-nos de que certas práticas e instituições – sobretudo as imcompatíveis com a ideia de Estado Democrático de Direito – não se modificaram na transição de regimes (GOMES, 2010)”. 348 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Na tentativa de que o fim da ditadura representasse página virada na história nacional, em verdade, deu-se a “simplificação feita por vários setores conservadores, impondo certas práticas autoritárias ao regime democrático” (PETRUS, 2010). 5. Entre O STF e a CIDH Várias são as controvérsias surgidas no julgamento da CIDH e do STF relativas aos Direitos Humanos e suas vítimas. Para a Corte IDH, “a impunidade é a falta em seu conjunto de investigação, persecução, captura, julgamento e condenação dos responsáveis das violaçlões dos direitos protegidos pela Convenção Americana [...]” (BALDI, 2010). Em sua 1ª. decisão (Novembro/2010), a Corte Interamericana de Direitos Humanos atribuiu ao Estado brasileiro o desaparecimento forçado das 62 pessoas que integraram a Guerrilha do Araguaia, no decorrer da ditadura que assolou o país. Sob a análise da CIDH, exista total incompatibilidade da Lei de Anistia vigente no Brasil com o que determina a Convenção Americana de Direitos Humanos. Diante disso, a CIDH condenou o Estado à revisão da referida lei, visando à reconciliação de parentes das vítimas com a nação brasileira (CIDH, 2010). Segundo Baldi (2010), “a Corte entendeu que os atos de caráter contínuo ou permanente perduram durante todo o tempo em que o fato continua, mantendo-se sua falta de conformidade com o Direito Internacional (§ 17)”. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal entendeu ser improcedende a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153, 2008), de proposição do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, sendo que, sob essa ótica, definiu pela não revisão da referida Lei de Anistia, posto considerá-la constitucional frente à Constituição vigente. O STF não observou o Controle de Convencionalidade, mesmo sendo o principal órgão da cúpula do judiciário e guardião da Constituição Federal. Diante da postura adotada pelo STF, coube à CIDH realizar tal Controle, face “às obrigações internacionais do Brasil contidas na Convenção Americana (§ 48). E isto não era invasão de competência do STF” (BALDI, 2010). Nas palavras de Barroso (2001), o Direito Fundamental não pode permitir que o Estado retroceda nas questões de amparo do cidadão, aspecto previsto pela jurisprudência 349 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional européia, denominado como Princípio da Vedação do Retrocesso. “A vedação do retrocesso torna-se, assim, uma forte ferramenta frente a uma possível invasão por parte do legislador em conquistas já consolidadas, e mais uma maneira de se afirmar que o Estado deve fazer cada vez mais pelo cidadão, nunca menos” (BARROSO, 2001). Ao redesenhar o ordenamento jurídico brasileiro, sobre a legalidade do depositário infiel, o STF definiu que “os tratados valem mais do que a legislação infraconstitucional, mas menos do que a Constituição Federal. No caso da prisão civil, o Pacto de São José da Costa Rica a permite só para devedor de pensão alimentícia. A Constituição brasileira permite também para o depositário infiel” (PIOVESAN, 1997). Já o Decreto 4.463/2002, que promulgou o reconhecimento da competência obrigatória da Corte: Art. 1o. É reconhecida como obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José), de 22 de novembro de 1969, de acordo com art. 62 da citada Convenção, sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a 10 dezembro de 1998. (CASA CIVIL, 1979, Decreto 4.463/2002). Nesse sentido, o Estado brasileiro alegou que não poderia ser responsabilizado pela Corte por fatos anteriores ao reconhecimento de sua jurisdição contenciosa, com base no princípio da anterioridade. Entretanto, a Corte refutou tal argumentação, afirmando que: “ (...) em sua jurisprudência constante, este Tribunal estabeleceu que os atos de caráter contínuo ou permanente perduram durante todo o tempo em que o fato continua, mantendo-se sua falta de conformidade com a obrigação internacional. Em concordância com o exposto, a Corte recorda que o caráter contínuo ou permanente do desaparecimento forçado de pessoas foi reconhecido de maneira reiterada pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos” (GONZALES, 2012). Pretendia-se que o Supremo Tribunal Federal declarasse a não recepção, pela Carta Magna, do Parágrafo 1º. do Artigo 1º. da Lei de Anistia, excluindo da acolhida legal os crimes comuns, praticados pelos militares, como, tortura, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, estupro e atentado violento ao pudor (PLANALTO, 2002). Entretanto, “contrariando a condenação da CIDH, pela ausência de investigações e de punições, e ainda, pela defesa dos direitos dos cidadãos brasileiros, o Supremo Tribunal Federal, prolatou decisão e julgou improcedente a ação constitucional, por 7 votos pela improcedência contra 2 pela revisão da lei (CASAGRANDE, 2012)”. O Ministro relator espancou a argumentação de que a interpretação do §1º. da Lei de 350 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Anistia é tecnicamente obscura, afirmando que todo texto é obscuro até que seja dada a ele uma interpretação. Já no que tange ao principio da isonomia em matéria de segurança, “arrazoou não haver ofensa, defendendo a existência da desigualdade entre a prática de crimes políticos e crimes conexos com eles, de sorte que a lei pode tratar desigualmente os desiguais e, pois, anistiá-los, ou não, desigualmente” (REZEK, 2007). Sobre o direito de receber informações de interesse particular ou coletivo dos órgãos públicos, considerou igualmente não existirem ofensas, já que “caracteriza a anistia a sua objetividade, referida a um ou mais delitos e não a determinadas pessoas. Ademais, apontou que existem leis em trâmite a respeito da abertura de arquivos secretos (CASAGRANDE, 2012)”. Sobre a alegação de que a dignidade da pessoa humana e do povo brasileiro não poder ser negociada, não considerou a questão, por entender ser de argumentação exclusivamente política, não jurídica. No que diz respeito à obediência de normas internacionais pelo Brasil, o relator citou texto de Nilo Batista, o qual menciona a necessidade de se internalizar normas para que essas possam valer no ordenamento jurídico brasileiro e uma menção à condenação do Brasil pela CIDH que estaria por vir alguns meses depois. Assim: “... em primeiro lugar, instrumentos normativos constitucionais só adquirem força vinculante após o processo constitucional de internalização, e o Brasil não subscreveu a Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade de 1968 nem qualquer outro documento que contivesse cláusula similar; em segundo lugar, ‟o costume internacional não pode ser fonte de direito penal‟ sem violação de uma função básica do princípio da legalidade; e, em terceiro lugar, conjurando o fantasma da condenação pela Corte Interamericana, a exemplo do precedente Arellano x Chile, a autoridade de seus arestos foi por nós reconhecida plenamente em 2002 (Dec. n. 4.463, de 8 de novembro de 2002) porém apenas para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998 (CASAGRANDE,2012) ”. Enquanto a Lei de Anistia é lei-medida, cosiderou-se fazer sentido quando foi editada, considerou o STF que não lhe caberia revisar a lei, uma vez que se trata de atribuição exclusiva do Poder Legislativo, se assim o desejasse. Persistem ainda, sob a ótica da Justiça de Transição, fatores relevantes como o Direito à Memória e à Verdade, conforme Piovesan (2009): O direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da história e da memória coletiva. Traduz o anseio civilizatório do conhecimento de graves fatos históricos atentatórios aos direitos humanos. Tal resgate histórico serve a um duplo propórsit: assegurar o direito à memória das vítiimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas. 351 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Vincula-se ainda ao Direito à Memória e à Verdade, a “consolidação da responsabilidade, a responsablização pública, cabendo ao Estado, praticar políticas harmoniosas com o presente, preservando o futuro, mas reparando erros do passado da nação, já que “o direito à reparação é consagrado no direito internacional, cabendo às reparações simbólicas, a reconstrução da memória coletiva e o restabelecimento da dignidade humana”. Ainda Piovesan (2009) defende que: O direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da história e da memória coletiva. Traduz o anseio civilizatório do conhecimento de graves fatos históricos atentatórios aos direitos humanos. Tal resgate histórico serve a um duplo propósito: assegurar o direito à memória das vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas. A ocorrência de pactos de silêncio enseja ao esquecimento dos fatos ocorridos, que por sua vez, constituem-se em estratégia dos regimes autoritários, manipulando pessoas e situações em sua busca por benefícios políticos, no que se refere à omissão dos atos praticados contra a pessoa humana (BARBOSA e VANNUCHI, 2009). 6. CONCLUSÃO O Brasil aderiu em 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poolíticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º., 7), entre outros tratados internacionais firmados entre os países-membro de organismos iberoamericanos pela defesa dos direitos humanos (MENDES, 2012). Ao aderir aos referidos tratados, toda nação abdica do exercício da soberania plena, para então, passar a exercer a soberania compartilhada, submetendo-se aos diplomas estabelecidos de comum acordo pelos outros membros existentes, visando salvaguardar a dignidade e a vida humana. No que concerne à legislação que versa sobre os Crimes contra a Humanidade, especialmente aqueles cometidos ao longo de regimes militarese práticas opressivas, aqueles considerados no Brasil, como ‘conexos’, como tortura, subjugo da moral e da dignidade da pessoa humana, abusos físicos, sexuais e de outras ordens, morte e desaparecimento de pessoas, não podem ser classificados como crimes políticos e/ou ideológicos. Face ao consentimento legal da destruição dos documentos referentes à ditadura que assolou o país durante os governos militares, e à falta de investigação, julgamento e punição 352 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional dos responsáveis e ainda, pela falta de respostas aos parentes e familiares das vítimas desse regime, o Brasil, cuja economia e desenvolvimento comercial e financeiro permitem excelente posicionamento no ranking da 6ª. economia global, contrariou até mesmo suas decisões anteriores, a exemplo daquela referente ao Depositário Infiel. Enquanto o Supremo Tribunal Federal definiu pela constitucionalidade da Lei de Anistia, absteve-se do exercício do Controle de Convencionalidade, estabelecendo que a revisão da referida Lei restringe-se ao Poder Legislativo. Vale ressaltar que a Lei de Anistia não estabeleceu direitos equalitários para todos os envolvidos, na medida em que excluiu os direitos das vítimas e de seus familiares. Além disso, o entendimento do STF sobre a constitucionalidade da Lei de Anistia violou aos Princípios de Legalidade, da Anterrioridade e da Irretroatividade penais, uma vez que o desaparecimento forçado é um delito de caráter contínuo ou permanente, já que seus efeitos não cessam enquanto as vítimas não forem localizadas. Por sua vez, da Comissão Internacional dos Direitos Humanos, ao condenar o Brasil à solução das questões relativas aos crimes leso-humanidade ocorridos no período em que reinou a ditadura no país, entendeu que não se tratava de revisitação à posição do STF, mas simplesmente, analisando a Lei de Anistia, confrontou-a com o Pacto da Costa Rica, verificando sua incompatibilidade com a proteção aos Direitos Humanos. Assim, sentenciou o Estado a rever sua posição, quer pelo Poder Judiciário ou pelo Legislativo. Em que pese que a ocorrência dos Crimes de Leso-Humanidade deu-se antes da assinatura do pacto, segundo A CIDH e Tratados Internacionais dos Direitos Humanos, são crimes classificados de continuação permanente, na medida em que não foram investigados nem solucionados, permanecendo todas as vítimas desaparecidas. 8. REFERÊNCIAS ABRUCIO, Fernando Luiz. A Coordenação Federativa no Brasil: A experiência do período FHC e os Desafios do Governo Lula. Revista de Sociologia Política, Curitiba, 24, p.41-67, jun 2005. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n24/a05n24.pdf>: acesso em 15 junho 2012. AUAD, Denise. Mecanismos de Participação Popular no Brasil: Plebiscito, Referendo e Iniciativa Popular. Publicado em 2004. Disponível em: <http://www.unibero.edu.br/download/revistaeletronica/set05_artigos/dir_prof%20denise_ok. pdf >; acesso em 20 fev 2012. 353 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional BALDI, Cesar Augusto. Guerrilha do Araguaia, Corte Interameticana e STF. 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Para essa finalidade, impõe-se a análise do novo modelo constitucional referente às relações entre o Estado brasileiro e os povos indígenas bem como a importância da Convenção n. 169 e da estrutura e funcionamento da própria OIT com vistas à proteção desses grupos. Examina-se, por fim, se políticas públicas têm considerado a Convenção, e se ela tem sido aplicada pelo Poder Judiciário, utilizando, para tal propósito, de estudo de casos judiciais. PALAVRAS-CHAVE: Convenção n. 169; Organização Internacional do Trabalho (OIT); multiculturalismo; brechas de implementação. ABSTRACT This article proposes to investigate in what measure International Labour Organisation (ILO) Convention n. 169 can be applied as a normative instrument to articulate indigenous peoples and African descendants communities demands in Brazilian law, considering the distance between constitutional commitments in respect of cultural distinctions and its soft normative implementation. For such purposes, it analyzes the new constitutional model of relations between the Brazilian state and indigenous peoples as well as the importance of Convention 169 and the structure and workings of the ILO for their protection. In the final part, it examines if public policies have considered the terms of the Convention, and if it has been put into practice by Tribunals, using, for such purpose, case law. KEYWORDS: Convention n. 169; multiculturalism; implementation gaps. International Labour Organization (ILO); 1 Doutora, professora de Direito Internacional da UFPR. E-mail: [email protected] Mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). [email protected]. 2 E-mail: 358 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 1 Introdução Para além da restauração das instituições democráticas e da centralidade dos direitos fundamentais, a Constituição Federal de 1988 inovou ao estabelecer direitos antes ignorados para dois tipos de sociedades tradicionais componentes da nação brasileira: os povos indígenas e as comunidades remanescentes de quilombos. Para os povos indígenas, pela primeira vez, foi estabelecido no texto constitucional o respeito à sua cultura e aos seus costumes, bem como uma pluralidade de prerrogativas sobre as terras que ocupam tradicionalmente. Para as comunidades remanescentes de quilombos, a Constituição passou a prever expressamente – ainda que em um dispositivo situado no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) – a propriedade definitiva das terras ocupadas. Essa promessa constitucional, entretanto, não foi seguida de uma reformulação normativa sistemática para a efetiva implementação dos direitos enunciados. Embora parte dele não tenha sido recepcionada pela Constituição, os direitos dos índios e de suas comunidades continuam a se basear no desatualizado Estatuto do Índio. Nessa lei, a perda cultural dos indígenas é implicitamente percebida como imprescindível para sua integração à sociedade brasileira por um processo de aculturação, em um espírito de todo incompatível com a cláusula intercultural inserida na Constituição Cidadã. Para as comunidades remanescentes de quilombos, a afirmação pós-constitucional desses grupos a partir do reconhecimento de seus direitos culturais não foi acompanhada de um correspondente desenvolvimento legal. Contudo, se no plano doméstico tem imperado o descompasso normativo entre as aspirações constitucionais e sua implementação legal, o direito internacional, nas últimas décadas, presenciou o florescer de normas jurídicas internacionais e de um corpo de decisões de órgãos internacionais amigável às pretensões dos povos indígenas e de outras sociedades tradicionais. Entre os instrumentos internacionais veiculadores desse novo quadro jurídico, destaca-se a Convenção n.° 169 da Organização Internacional do Trabalho (doravante OIT), de 1989. Essa Convenção enumera uma série de direitos aos povos indígenas e tribais a serem respeitados pelos Estados, por vezes inovando e ampliando aqueles reconhecidos na ordem jurídica interna dos Estados-partes da referida Convenção. A Convenção n.° 169 da OIT foi ratificada pelo Brasil em 25 de julho de 2002 e incorporada ao direito brasileiro pelo Decreto n.° 5.051, de 19 de abril de 2004. Nesse 359 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional contexto normativo, o presente artigo tem como objetivo examinar se, diante do vácuo legal percebido, esse tratado internacional pode e tem sido aplicado como instrumento de atualização dos direitos constitucionais reconhecidos aos povos indígenas e às comunidades remanescentes de quilombos. Na primeira parte desse artigo, expomos o que a Constituição de 1988 trouxe de inovador para os povos indígenas e as comunidades remanescentes de quilombos, bem como a nova visão que ela apresenta, em ruptura com as Cartas anteriores. Em um segundo momento, passa-se a examinar o papel da OIT e da Convenção n.° 169 para a proteção dos povos indígenas e tribais, com igual atenção à estrutura dessa organização internacional e aos mecanismos de monitoramento destinados a garantir o cumprimento das obrigações do tratado. Por fim, buscamos responder à indagação se a aplicação da Convenção n. 169 da OIT aponta para possibilidades de preenchimento do vazio normativo reconhecido, a partir da análise de iniciativas governamentais e práticas judiciais brasileiras que aplicam dispositivos desse tratado. 2 A Constituição brasileira de 1988: do modelo integracionista para uma proposta intercultural Desde a independência, a posição oficial do Estado brasileiro em relação aos povos indígenas sempre foi de assimilação à sociedade nacional. Percebidos como contingentes humanos que se encontram culturalmente em um passado distante, incumbiria ao Estado, mediante políticas governamentais, trazê-los ao “progresso” ordenado na bandeira nacional. O modelo assimilacionista predominante possuiu reflexo em quase todas as Constituições brasileiras promulgadas no século anterior. As Constituições de 1934 (art. 5°, XIX, ‘m’), de 1946 (art. 5°, XV, ‘r’) e a de 1967 (art. 8°, XVII, ‘o’) expressamente atribuíram à União a competência para legislar sobre “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”. 3 Somente tem sentido incorporar aquilo que é considerado como não pertencente. No caso dos povos indígenas, essa percepção pautou-se pelos seus traços culturais, tidos como distintos daqueles demais membros da “comunhão nacional” e por vezes até mesmo incompatíveis, em uma visão dicotômica entre “eles”, os índios, e “nós”, os civilizados. A 3 Souza Filho (1993, p. 310) dá notícia ainda de outros termos encontrados na legislação indigenista pátria com o objetivo de integrá-los, ditos na conformidade do discurso legal e da linguagem de cada época: “se tente a sua civilização para que gozem dos bens permanentes de uma sociedade pacífica e doce” (1808); “despertar-lhes o desejo do trato social” (1845); “até a sua incorporação à sociedade civilizada” (1928); “integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional” (1973). 360 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional perenidade da expressão constitucional – “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional” – aponta para a continuidade da política indigenista oficial: tratava-se de absorver esses povos na sociedade dominante, e essa assimilação somente poderia ocorrer por meio da diluição de sua cultura e da sua inserção em uma outra cultura prioritária, a “comunhão nacional”. Como aponta Souza Filho (2011, p. 110), A forma como se dá a garantia às terras, os dispositivos que atribuem competência para legislar sobre o processo de assimilação e as leis regulamentadoras deixam claro que o ideário assimilacionista do século XIX está presente até o advento da Constituição de 1988: os índios devem deixar de ser índios! Essa visão assimilacionista – igualmente presente na legislação ordinária, como veremos em seguida – foi rompida com a promulgação da Constituição de 1988. A Constituição de 1988 não mais fala em “incorporação”. Ao revés, a novidade constitucional situa-se no reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos indígenas. A partir do momento em que se reconhece uma cultura como distinta, não se pode adotar medidas voltadas à assimilação ou supressão das diferenças étnicas e culturais. Assim, o capítulo VIII do Título VIII (Da ordem social) de nossa Constituição, entitulado “Dos índios”, é integralmente devotado ao reconhecimento das culturas indígenas, definindo ainda o direito dessas comunidades sobre as terras tradicionalmente ocupadas e atribuindo à União o dever de proteção de seu modo de vida e de seu patrimônio. Quanto às comunidades remanescentes de quilombos4, a Constituição decidiu-se espartana. Reservou um artigo no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que é igualmente econômico em seu conteúdo: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitirlhes os títulos respectivos.” Embora a cultura das comunidades quilombolas encontre suporte jurídico também nas normas protetivas dos art. 215 e 216 de nossa Lex Legum5, o art. 68 do ADCT se tornou o único dispositivo a regulamentar o direito dessas comunidades sobre as 4 Embora a Constituição utilize o termo “remanescentes de comunidades de quilombos”, ele passou a ser ressemantizado, inclusive por atos normativos oficiais (Portaria n. 25, de 15 de agosto de 1995, da Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura), e em uma inversão adotou-se como preferível “comunidades remanescentes de quilombos”, destacando o caráter coletivo dessa organização societária. Sobre o tema, v. Figueiredo (2011, p. 50-51). É esse o termo que utilizaremos no decorrer desse trabalho. 5 Assim diz o art. 215, § 1°, da Constituição Federal: “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. (...) E no art. 216, § 5°: “Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.” 361 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional terras que ocupam. 6 Essa inovação está em consonância com uma nova função constitucional atribuída por Canotilho às Constituições contemporâneas: a função de inclusividade multicultural. De acordo com o autor, A função integradora da constituição carece hoje de uma profunda revisão originada pelos fenômenos do pluralismo jurídico e do multiculturalismo social. Designa-se pluralismo jurídico a situação em que existe uma pluralidade heterogênea de direitos dentro do mesmo campo social. O ‘pluralismo de direitos’ pressupõe uma sociedade multicultural (“pluralismo cultural”) formada por vários grupos culturais (“índios”, “hispânicos”, “cabo-verdianos”, “africanos”, “turcos”, “indianos”) que produzem normas (relativa, por ex., a casamentos, modas, contratos, ensino de religião) que actuam no mesmo espaço social e interagem com as normas produzidas pelas “macroculturas” dominantes nesse mesmo espaço. (CANOTILHO, 2002, p. 1435, grifo do autor) É a partir desse reconhecimento de culturas distintas existentes no Brasil que se pode falar em uma cláusula intercultural. A Constituição de 1988 não foi tão longe a utilizar em seu texto expressões como “plurinacional”, como ocorreu nas constituições do Equador e da Bolívia vigentes, talvez por ter sido uma das primeiras a garantir direitos aos povos indígenas numa nova onda constitucional 7 , que posteriormente abraçaria o continente. Todavia, ao determinar o respeito às formas de organização social e cultural dos povos indígenas, a Constituição de 1988 inaugura um novo marco na relação entre o Estado brasileiro e esses grupos humanos. Não mais pautado por uma política que vise integrá-los à sociedade brasileira por meio da aculturação ou negação de sua cultura, o parâmetro constitucional passa a ser de acomodação: incumbe ao Estado brasileiro permitir que as comunidades indígenas celebrem suas culturas e formas de organização social, atribuindo a elas o controle do processo de sua participação na sociedade e no Estado brasileiro. De acordo com Souza Filho (1993, p. 310), “Esta concepção é nova, e juridicamente revolucionária, porque rompe com a repetida visão integracionista. A partir de 5 de outubro de 1988, os índios, no Brasil têm o direito de ser índio.” E ainda sobre essa ruptura , aponta outra 6 Importante notar que a dimensão fundiária dos direitos conferidos aos povos indígenas posteriormente passariam a ser reclamados em processos de identificação das comunidades remanescentes de quilombos e pelas denominadas “comunidades tradicionais”, em grande quantidade na região amazônica. Sobre o tema, v. OLIVEIRA, 2008, p. 270; FIGUEIREDO, 2011, p. 39. Sobre uma análise da interpretação do art. 68 do ADCT e sua ressemantização, v. FIGUEIREDO, 2011, p. 16-20. 7 Souza Filho (2011) aponta ter sido a Constituição brasileira a primeira a na América Latina a admitir que os povos indígenas têm direito a ser grupo diferenciado na sociedade nacional, estabelecendo seus direitos sociais e territoriais. 362 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional autora: Toda a legislação anterior continha referências expressas à integração ou assimilação inevitável e, por outro lado, desejável dos índios da sociedade brasileira. A nova mentalidade assegura espaço para uma interação entre esses povos e a sociedade envolvente em condições de igualdade, pois que se funda na garantia do direito à diferença. (LEITÃO, 1993, p. 228). Todavia, a refundação constitucional das relações entre o Estado brasileiro e os povos indígenas não foi acompanhada de um desenvolvimento normativo capaz de endereçar a nova visão. Para os povos indígenas, o aspecto mais emblemático é o fato de que a principal lei que os rege ser ainda o Estatuto do Índio (Lei n.° 6.001, de 19 de dezembro de 1973), cuja intenção, conforme afirma seu art. 1°, de uma forma um tanto confusa e contraditória, é de “preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.” Após o advento da Constituição de 1988, o Estatuto do Índio manteve-se incólume, não sofrendo alterações legislativas e nem sendo substituído por outra lei em melhor conformidade com o novo paradigma constitucional. 8 De acordo com Oliveira, ...o Estado não adota mais como finalidade garantir a integração dos indígenas na comunidade nacional, reconhecendo-lhes explicitamente “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (art. 231, caput). Ao contrário o Estatuto do Índio, de 19/12/1973, inseria-se numa perspectiva assimilacionista, eufemizada pelo favorecimento de um “processo de aculturação livre e espontânea” (como estipulava no art. 1°, item I, letra d, da Lei 5.371, de 5/12/1967, de criação da FUNAI). Em função dessa guinada radical, as políticas públicas e assistenciais doravante deveriam contribuir para a manutenção e fortalecimento de culturas indígenas. (OLIVEIRA, 1998, p. 253) Parte dessa inércia localiza-se no âmbito do processo legislativo. Está em trâmite, desde o início da década de 90, o Projeto de Lei n.° 2.057/1997 9, de autoria do Deputado Aloizio Mercadante, que dispõe sobre o “Estatuto das Sociedades Indígenas.” Contudo, passadas duas décadas desde o início de sua tramitação, não há, no curto prazo, previsão de sua apreciação pelos órgãos legislativos. 10 Para as comunidades remanescentes de quilombos, também a atualização legislativa tem se demonstrado deficiente. Desde o reconhecimento constitucional dessas comunidades 8 Souza Filho se manifesta em favor da recepção do Estatuto do Índio pela Constituição de 1988, embora considerando-a “insuficiente.” (SOUZA FILHO, 1993, p. 311) 9 Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=17569>. Acesso em: 9 mar. 2013. 10 Sobre outros projetos de lei, v. Oliveira (2008, p. 254-255). 363 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional pela Constituição, iniciou-se um amplo movimento de organização e de identificação dessas comunidades, vinculado a uma “luta pela titulação das terras” (LEITE, 2008, p. 284-285). Sob uma perspectiva normativa, o principal instrumento que passou a regulamentar o direito à propriedade reconhecido na Constituição constitui-se no Decreto n.° 4.887, de 20 de novembro de 2003. Esse Decreto reconhece não só a auto-atribuição como caráter determinante para dizer se tal ou qual comunidade figura como quilombola, como também imputa à comunidade o direito coletivo de propriedade sobre a terra. Esse Decreto é objeto de da uma Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, proposta pelo Partido Democratas. Um dos principais pontos levantados nessa ADI diz respeito ao “uso indevido da via regulamentar”, apontando que seria necessária a mediação de um instrumento legislativo.11 Não há no panorama jurídico nacional um instrumento legislativo que regulamente especificamente o direito das comunidades remanescentes de quilombos. A par do desenvolvimento tardio da disciplina jurídica aplicável aos quilombolas 12, permanece ainda, na legislação produzida nacionalmente, um vazio quanto à regulamentação de seus direitos e uma melhor definição de seu status. Contudo, tanto para essas comunidades como para os povos indígenas, a deficiência do regime jurídico aplicável, decorrente de uma concepção incompatível com o paradigma intercultural da nova Constituição, tem sido suplantada por um prolífico desdobrar do Direito Internacional. Em verdade, em paralelo a um processo de reforma constitucional desencadeado na América Latina a partir da década de 1980, o Direito Internacional está sob um processo de reformulação e redefinição das bases legais dos povos indígenas. Além da Convenção n.° 169, de 1989, da OIT13 – que prevê uma série de direitos aos povos indígenas e tribais – órgãos internacionais, como o Comitê de Direitos Humanos (CDH), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Comitê para a Eliminação de Discriminação Racial (CEDR), tem feito uma leitura amigável de tratados internacionais de direitos humanos para acolher a reivindicação dos povos indígenas. 11 Petição inicial da ADI 3239. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqo bjetoincidente=2227157>. Acesso em: 09 mar. 2013. 12 V. Lei federal n.° 12.288, de 20 de julho de 2010, denominado “Estatuto da Igualdade Racial”, em especial: art. 8°, parágrafo único; art. 12; a importante cláusula cultural do art. 18; o art. 31, que reproduz o art. 68 do ADCT; e os arts. 32, 33 e 34, referente ao manejo das terras e políticas de incentivo. 13 A Convenção n. 169 substituiu a anterior Convenção n. 107, de 1957, da OIT, que possuía, assim como o Estatuto do Índio em vigor, o caráter nitidamente integracionista, encarando a situação do índio como meramente transitória, e admitindo políticas estatais destinadas a incorporá-los à sociedade nacional, em desconsideração à sua identidade cultural. 364 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional De um conjunto de princípios e regras de inspiração imperial, que sistematicamente ignorou ou coisificou os povos “não-civilizados” (ANAYA, 2004; RODRÍGUEZ-PIÑERO, 2005), o Direito Internacional converteu-se, nas últimas décadas, em um dos principais instrumentos de resgate e proteção da sobrevivência física e cultural das comunidades indígenas e quilombolas14. Diante desse recente cativar na cena internacional, a proteção dos povos indígenas passa a repercutir, inevitavelmente, no direito doméstico dos Estados. Esse surpreendente momentum do Direito Internacional tem como marco significativo a Convenção n.° 169 da OIT. 3 A OIT e a proteção dos povos indígenas e tribais A Organização Internacional do Trabalho, cujo objetivo é criar um sistema de proteção internacional do trabalho, apresenta algumas características comuns e outras diferenciadas em relação às demais Organizações Internacionais existentes atualmente. Já na sua origem a OIT apresenta algumas peculiaridades. Enquanto as demais Organizações Internacionais foram criadas depois da Segunda Guerra, após o surgimento da ONU, à qual se vincularam através de acordos específicos, a OIT apareceu em 1919, na parte XIII do Tratado de Versalhes, como entidade autônoma. Ela estava vinculada à Liga das Nações, a primeira organização internacional de caráter universal criada para assegurar a paz e segurança mundiais, após o término da Primeira Guerra Mundial. 15 Os países que aderissem à Liga automaticamente passavam a fazer parte da OIT, embora a recíproca não fosse verdadeira. A Constituição da OIT reflete, já em seu preâmbulo, o contexto internacional do período pós-guerra em que estava inserida, ao expor que “a paz para ser universal e duradoura deve assentar sobre a justiça social” e que “existem condições de trabalho que implicam, para grande número de indivíduos, miséria e privações, e que o descontentamento que daí decorre põe em perigo a paz e a harmonia universais”. 14 Em relação à importância que o direito internacional vem exercendo no reconhecimento de direitos de um povo descendente de um quilombo no Suriname, o povo Saramaka, v. PRICE (2011), com especial destaque a processos e decisões na Corte Interamericana de Direitos Humanos. 15 O Artigo 23 do Pacto da Liga das Nações, de 1919, estabelecia que “Sob reserva e na conformidade das disposições das convenções internacionais atualmente existentes ou que forem ulteriormente celebradas,os membros da Sociedade: a) Esforçar-se-ão por assegurar e manter condições de trabalho equitativas e humanas para o homem, a mulher e a criança nos seus próprios territórios, bem como em todos os países aos quais se estendam suas relações de comércio e de indústria e, para este fim, fundarão e manterão as necessárias organizações internacionais; b) (...)”. 365 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional O pioneirismo da OIT colocou-a entre os precedentes históricos do processo de internacionalização e universalização dos direitos humanos, tendo em vista que, ao proteger no plano internacional os trabalhadores, estava em verdade, resgatando a dignidade humana. Ao lado do Direito Humanitário e da Liga das Nações, a Organização Internacional do Trabalho (International Labour Office, agora denominada International Labour Organization) também contribuiu para o processo de internacionalização dos direitos humanos. Criada após a Primeira Guerra Mundial, a Organização Internacional do Trabalho tinha por finalidade promover padrões internacionais de condições de trabalho e bem estar. Sessenta anos pós a sua criação, essa Organização já contava com mais de uma centena de Convenções internacionais promulgadas, às quais os Estados-partes passavam a aderir, comprometendo-se a assegurar um padrão justo e digno nas condições de trabalho. (PIOVESAN, 2000, p. 125) Em 1944, foi celebrada a Declaração de Filadélfia, que se incorporou à Constituição da OIT pelo “Instrumento para a Emenda à Constituição”, em 1946. 16 Adaptando a organização ao novo cenário mundial, a Declaração tornou mais específicos os objetivos da OIT e reafirmou seus princípios fundamentais já no primeiro artigo: I. A Conferência reafirma os princípios fundamentais sobre os quais repousa a Organização, principalmente os seguintes: a) o trabalho não é uma mercadoria; b) a liberdade de expressão e de associação é uma condição indispensável a um progresso ininterrupto; c) a penúria, seja onde for, constitui um perigo para a prosperidade geral; d) a luta contra a carência, em qualquer nação, deve ser conduzida com infatigável energia, e por um esforço internacional contínuo e conjugado, no qual os representantes dos empregadores e dos empregados discutam, em igualdade, com os dos Governos, e tomem com eles decisões de caráter democrático, visando o bem comum. A estrutura da OIT apresenta três órgãos principais: a) A Conferência Internacional do Trabalho, da qual participam os representantes de todos os Estados-Membros, através de delegações compostas por 4 delegados: 2 representando o governo do país, 1 representando os empregados e 1 representando os empregadores. Sua principal atribuição é realizar a produção normativa da organização, expedindo resoluções, recomendações e convenções a serem ratificadas pelos Estados; b) o Conselho de Administração, órgão executivo composto por 56 membros, dos quais 28 representam os governos (destes, 10 são nomeados pelos Estados Membros de maior importância industrial, com cadeira fixas, e 18 são nomeados pelos Estados Membros designados para esse fim pelos delegados governamentais da Conferência), 16 Neste mesmo período, a OIT celebrou acordo com a ONU e tornou-se o primeiro organismo especializado das Nações Unidas. 366 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 14 representam os empregadores e outros 14 representam os empregados; c) a Repartição (Bureau) Internacional do Trabalho (RIT ou BIT), sob a direção de um Diretor Geral designado pelo Conselho de Administração, responsável pelos trabalhos burocráticoadministrativos, tais como informações, estudos e inquéritos. De acordo com o artigo 16 da Constituição da OIT, a Conferência pode adotar dois tipos de atos normativos: as Convenções, cujas normas terão que ser internalizadas pelos Estados-membros pelo processo da ratificação, nos termos de cada direito interno, e as Recomendações, que exigem a sua transformação em lei interna ou a tomada de medida de outra natureza, conforme seu texto indicar. As Convenções da OIT apresentam aspectos específicos que as diferenciam dos demais tratados internacionais celebrados pelos Estados. SÜSSEKIND resume-os nas seguintes regras: a) a convenção entrará em vigor, em relação a cada Estado-membro, doze meses após a data em que houver sido registrada sua ratificação, desde que já vigore no âmbito internacional; b) o prazo de validade de cada ratificação é de dez anos; c) após a fluência dos dez anos, o Estado-membro poderá denunciar a ratificação, mediante comunicação oficial dirigida ao Diretor Geral da RIT, para o devido registro. Todavia, a denúncia surtirá efeito somente doze meses após o referido registro. d) decorrido o prazo de doze meses após o período de validade da ratificação, sem que o respectivo Estado use da faculdade de oferecer denúncia, verificar-se-á a renovação tácita da ratificação, por mais dez anos. Nesta hipótese, a faculdade de denúncia renascerá após o decurso de segundo decênio de vigência da ratificação, aplicando-se a mesma regra aos decênios que se sucederem. Além da denúncia voluntária ou expressa, pode ocorrer a denúncia tácita, resultante da ratificação da convenção revisora da anteriormente ratificada pelo mesmo país. (SÜSSEKIND, 1994, p. 39-40) Conforme os arts. 22 e seguintes da Constituição da OIT, a Organização realiza controle da aplicação das suas normas pelos Estados, seja através dos relatórios (também denominados "memórias") que eles devem enviar periodicamente à “Comissão de Peritos”, que analisa se a normativa OIT recebeu a devida atenção do Estado; seja através do procedimento contencioso oriundo de "reclamações" formuladas por organismos de empregados e empregadores ou de "queixas" feitas por um Estado contra outro, para os casos de não aplicação pelo Estado de Convenção que ratificou e que ocorre perante a “Comissão de Aplicação de Convenções e Recomendações”. Sobre os relatórios, devem ser enviados um para cada Convenção ratificada pelo Estado. Eles devem ser apresentados anualmente, no caso das citadas Convenções Fundamen- 367 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional tais, ou a cada cinco anos, no caso das demais Convenções. A forma e os itens do conteúdo a serem abordados nesses documentos devem ser aqueles previstos pelo Conselho de Administração da Organização, que expede “Formulários de Memória”, especificamente aprovados para cada Convenção em particular. Os Relatórios são analisados pela Comissão de Peritos em Aplicação de Convenções e Recomendações, um órgão composto por 20 especialistas independentes que atuam na área jurídica e social, que se reúne anualmente e que tem o resultado de seus trabalhos de exame dos Relatórios publicado em Informe específico da OIT (“Informe III - Parte 1A”) No caso das “Reclamações” feitas pelas organizações patronais ou de trabalhadores, quando elas são feitas, é constituído um comitê tripartite formado por membros do Conselho de Administração, responsável pelo exame da reclamação e devolução do caso ao Conselho de Administração, para adoção de conclusões. O informe do comitê acerca da Reclamação é tornado público e cabe à Comissão de Peritos, a partir das Conclusões do Conselho de Administração, dar seguimento ao diálogo com o governo concernente. O procedimento de Queixa, de um Estado contra outros, não é utilizado. Do mesmo modo, para dar efetividade às Convenções, o Conselho de Administração da OIT frequentemente cria comissões para facilitar seu trabalho, tal como ocorreu com a Comissão Consultiva de Desenvolvimento Rural, a Comissão Permanente sobre as Empresas Multinacionais, as Comissões de Indústria e Análogas, a Comissão Consultiva de Empregados e Trabalhadores Intelectuais, a Comissão Consultiva de Desenvolvimento Rural, a Comissão Paritária Marítima as Comissões Consultivas Regionais Asiática, Africana e Interamericana, os Comitês Mistos OIT-OMS sobre Medicina do Trabalho e Saúde dos Marítimos. Sobre a Liberdade Sindical, a sistemática é mais complexa e há dois organismos especializados – a Comissão Mista (ONU- através do ECOSOC- e OIT) de Investigação e de Conciliação em Matéria de Liberdade Sindical (1950) e o Comitê de Liberdade Sindical (1951) – com a função de examinar reclamações apresentadas por organizações de empregados ou empregadores contra seus Estados, quando estes descumprirem alguma convenção da matéria de liberdade de associação, mesmo que não a tenha ratificado.17 De um modo geral, pode-se dizer que todos os principais aspectos das relações de trabalho estão abordados no plano jurídico internacional, através da normativa OIT. Além de todas as Convenções, Recomendações e Resoluções já editadas, em 19 de junho de 1998, a Conferência Internacional do Trabalho adotou a “Declaração da OIT sobre os Princípios e 17 Sobre o procedimento da OIT referente à Liberdade Sindical, ver Passos e Friedrich (2013). 368 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Direitos Fundamentais no Trabalho”, assinada pelo Presidente da Conferência e o Diretor Geral do BIT. Tal Declaração expressa que “todos os Membros, ainda que não tenham ratificado as convenções aludidas, têm um compromisso, devido do fato de pertencer à Organização, de respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções” (item 2). E enumera tais princípios: (a) a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; (b) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; (c) a efetiva abolição do trabalho infantil; e (d) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação. Mas a temática da OIT não se limitou a isso e os povos indígenas e tribais também receberam seu tratamento protetivo. Especificamente sobre a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais, trata-se de instrumento que exige que os povos indígenas e tribais tenham garantidos plenamente os direitos humanos e liberdades fundamentais, além das garantias relacionadas a suas instituições, bens, culturas e meio ambiente, conforme seus interesses. (art. 3o. e 4o.), respeitando-se seus valores e práticas sociais, culturais, religiosas e espirituais (art.5o.). Sendo uma Convenção adotada sob os auspícios da OIT, há a preocupação expressa de que os Estados devem adotar, "com a participação e cooperação dos povos interessados, medidas voltadas a aliviar as dificuldades que esses povos experimentam ao enfrentarem novas condições de vida e de trabalho". (art. 5o,c). Do mesmo modo, a organização desses povos é estimulada, exigindo que sejam consultados e que participem das tomadas de decisões que lhes digam respeito (art. 6o.) Também está previsto o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento de suas regiões, com vistas à melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde e educação, exigindo dos governos que sejam efetuados estudos sobre o impacto dessas atividades desenvolvimentistas junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente (art. 7o.). Os Estados devem efetuar uma adaptação da legislação nacional quando ela for aplicada aos povos, devendo-se levar em conta seus costumes ou seu direito consuetudinário, inclusive na área penal (art. 9o.), desde que estes não sejam incompatíveis com os direitos fun- 369 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional damentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. (art.8o.). Os Estados devem dar preferência a tipos de punição outros que o encarceramento (art. 10) e suas leis devem "proibir a imposição, a membros dos povo interessados, de serviços pessoais obrigatórios de qualquer natureza, remunerados ou não, exceto nos casos previstos pela lei para todos os cidadãos" (art. 11). Nessa linha, o artigo 12 estabelece que: Os povos interessados deverão ter proteção contra a violação de seus direitos, e poder iniciar procedimentos legais, seja pessoalmente, seja mediante os seus organismos representativos, para assegurar o respeito efetivo desses direitos. Deverão ser adotadas medidas para garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais, facilitando para eles, se for necessário, intérpretes ou outros meios eficazes. A Convenção também impõe aos governos regras sobre as terras indígenas, reconhecendo aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam, os direitos sobre os recursos naturais ali existentes (solo e subsolo), e o direito de retorno, sempre respeitando-se as modalidades de transmissão dos direitos sobre a terra por eles estabelecidas, e garantindo a imposição de sanções contra toda intrusão não autorizada nas terras. (arts. 13 a 19) A Convenção discorre também sobre direitos na contratação, condições de emprego, formação profissional, bem como extensão progressiva aos povos dos regimes de seguridade social e saúde (arts. 20 a 25). Também trata de educação, que deve ser adaptada a sua cultura, proporcionar conhecimentos gerais e aptidões que lhes permitam participar plenamente e em condições de igualdade na vida de sua própria comunidade e da comunidade nacional, de forma a lhes dar a conhecer seus direitos e obrigações especialmente no referente ao trabalho e às possibilidades econômicas, às questões de educação e saúde, bem como aos serviços sociais. (arts. 26 a 30) O artigo 31 exige atitude os Estados no sentido de acabar com o preconceito contra esses povos, tão presente nas sociedades: Deverão ser adotadas medidas de caráter educativo em todos os setores da comunidade nacional, e especialmente naqueles que estejam em contato mais direto com os povos interessados, com o objetivo de se eliminar os preconceitos que poderiam ter com relação a esses povos. Para esse fim, deverão ser realizados esforços para assegurar que os livros de História e demais materiais didáticos ofereçam uma descri- 370 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional ção equitativa, exata e instrutiva das sociedades e culturas dos povos interessados. O monitoramento da Convenção 169 se dá pelas vias ordinárias supracitadas, devendo os Estados enviarem seus Relatórios a cada 5 anos. O Conselho de Administração da OIT, em 1990, expediu o "Formulário relativo à Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais", estabelecendo 65 itens que devem ser objeto de resposta pelos Governos. O documento sugere que os Estados elaborem os Relatórios consultando esses povos (item VIII), que devem sempre receber uma cópia. O Brasil entregou seu último relatório para avaliação em setembro de 2012. Em fevereiro de 2013, depois de analisá-lo, os peritos solicitaram ao Brasil que inclua o relato de interlocutores sociais e das organizações indígenas nos próximos relatórios, que explique de forma mais detalhada o processo de regulamentação da consulta prévia (em janeiro de 2012 o Governo criou um grupo de trabalho interministerial para a elaboração da proposta de regulamentação do direito de consulta prévia, com previsão de ser apresentada em 2014); que indique a maneira prevista para garantir a proteção efetiva dos direitos das comunidades indígenas nas terras que ocupam tradicionalmente e que serão afetadas pela construção da usina hidrelétrica de Belo Monte; que apresente informações sobre os processos judiciais que questionam a obra da transposição do Rio São Francisco, inclusive o que tem análise pendente sobre a constitucionalidade do projeto; que forneça informações sobre o plano de segurança pública implantado pelo Governo para proteger as comunidades Guarani-Kaiowá, no processo de demarcação no Mato Grosso do Sul; e também que o Brasil discorra sobre a remoção consentida e informada de povos quilombolas na base de lançamento da empresa Alcântara Cyclone Space, no Maranhão.18 Em relação ao procedimento de Reclamações, já foram apresentadas mais de 15 em relação à Convenção 169. O Brasil ratificou-a em 2004 e desde então já recebeu uma reclamação, apresentada pelo Sindicato dos Engenheiros do Distrito Federal. Na América Latina, contra a Argentina foi feita uma reclamação, pela Unión de Trabajadores de la Educación de Río Negro); contra a Bolívia uma, pela Central Obrera Boliviana; Colômbia, duas, pela Central Unitária de Trabajadores e pela Asociación Médica Sindical Colombiana; Equador, uma, pela Confederación Ecuatoriana de Organizaciones Sindicales Libres); Guatemala, uma, pela 18 OIT. Comissão de Peritos em Aplicação de Convenções e Recomendações. Informe III Parte 1A. Aplicação das normas internacionais de trabalho (I). 2013. Disponível em: <http://www.oit.org.br/sites/default/files/topic/gender/doc/comitedeperitos2013_991.pdf>. Acesso em: 11 mar. 2013. 371 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Federación de Trabajadores del Campo y la Ciudad) e Peru, uma, pela Confederación General de Trabajadores del Perú. Contra o México já foram interpostas 6 reclamações. São as formas de monitoramento comuns à Organizações Internacionais, que se utilizam das regras de Direito Internacional Público, pouco coercitivas em relação aos Estados que não cumprem as normas das Convenções, mas que tem o poder de causar o constrangimento ao Estado, ao ver seu descumprimento se tornar público ao ser publicado nos órgãos respectivos. 4 Diálogos entre o direito brasileiro e a Convenção n.° 169 da OIT Apesar da nova proposta da Constituição de 1988 e o que contém a Convenção n.° 169 da OIT, verifica-se um distanciamento entre os direitos e compromissos reconhecidos no plano constitucional e internacional e a sua efetiva realização, em um sentido que acolha essa nova visão. A essa dissonância entre reconhecimento de direitos e efetivação, Stavenhagen (2008, p. 130) 19 denominou “brechas de implementação”, um “vacío entre la legislación existente y la práctica administrativa, jurídica y política.”. De acordo com esse autor, existe uma brecha de la implementación entre los avances realizados por numerosos países en sus legislaciones nacionales en que se reconoce a los pueblos indígenas y sus derechos, y las realidades cotidianas en las que se encuentran numerosos problemas para el adecuado cumplimiento de estas medidas legislativas. (STAVENHAGEN, 2008, p. 115) Ainda de acordo com esse autor, uma das categorias de “brecha de implementação” é brecha entre as normas e princípios internacionais em matérias de direitos humanos indígenas e a legislação doméstica, bem como a inconsistência entre essas leis (STAVENHAGEN, 2008, p. 117). Sobre esse hiato entre Constituição e regulamentação, nota ainda SOUZA FILHO (2011, p. 153): Este mesmo reconhecimento aparece nos acordos internacionais, como o Convênio 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada em 26 de junho de 1989. (...) Esta concordância não significa que os países latino-americanos têm aceitado as normas internacionais, o que demonstra a insinceridade das elites locais que sempre imaginam que suas Constituições podem deixar de ser aplicadas por falta de leis que as regulamentem, e por isso permitem a inclusão de avanços nas Constituições para depois restringir sua regulamentação. Na realidade, a aceitação das normas internacionais, especialmente a Convenção 169, significaria a regulamentação de suas avançadas constituições, que podem ser apenas declarações de princípios 19 Ex-Relator especial sobre a situação dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais dos Povos indígenas do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. 372 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional inaplicáveis frente a interesses da economia global... É sobre esse fenômeno que estamos a tratar aqui: diante de uma Constituição propícia à interculturalidade e de um vazio normativo existente, como implementar, no plano doméstico, as normas reconhecidas pelo direito internacional, em especial aquelas inseridas na Convenção n.° 169 da OIT? Como apontado, a Convenção n.° 169 da OIT qualifica-se como um tratado internacional. Tendo sido ratificada pelo Estado brasileiro e observado o trâmite regular de incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico interno, ela passa a gozar do status normativo dos demais tratados internacionais. Nesse diapasão, de acordo com as regras aplicáveis à incorporação de tratados internacionais no direito brasileiro (AMARAL JÚNIOR, 2008, P. 477-487), a Convenção n.° 169 possui hierarquia de lei, e, nesse sentido, possui aplicação direta em nosso ordenamento jurídico.20 Considerando o avanço constitucional e o vazio normativo, a Convenção n.° 169 da OIT é capaz de servir como um parâmetro normativo válido a regulamentar a Constituição? Para proceder a essa análise, é preciso observar o que diz a Constituição quando disciplina o direito dos povos indígenas e das comunidades remanescentes de quilombos. No art. 231, a Constituição Federal expressamente dispõe que é reconhecido aos índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” É nesse dispositivo que se localiza uma cláusula de interculturalidade. Se o Estado reconhece aos povos indígenas sua cultura (organização social, costumes, línguas, crenças e tradições), incumbe ao Estado adotar medidas que visam à proteção cultural desses povos. Implícito no reconhecimento desse direito está, ademais, a necessidade de adequar quaisquer políticas públicas voltadas aos povos indígenas à sua cultura, em áreas tais como saúde, educação e trabalho. Como aponta Oliveira (2008, p. 266), A Constituição de 1988 efetuou uma reviravolta completa quanto a tendência de buscar a integração de populações pagãs exclusivamente a partir de 20 A Convenção n.° 169 da OIT estatui uma série de direitos que têm sido reconhecidos como direitos humanos indígenas. Em seu preâmbulo, faz expressa referência à Declaração Universal dos Direitos Humanos e aos Pactos Internacionais de Direitos Humanos. Precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos encontram igualmente subsídios nessa Convenção para interpretar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Diante disso, é legítimo concluir que os direitos encartados na referida Convenção gozam do status hoje atribuído pela jurisprudência do STF aos tratados internacionais de direitos humanos: na hierarquia das leis, encontra-se acima das leis ordinárias, embora abaixo da Constituição, conferindo-se assim um status supralegal. É esse, inclusive, o entendimento da Desembargadora Selene Maria de Almeida no processo n. 2006.39.03.000711-8/PA, que tramita no 1° TRF e será estudado em seguida. 373 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional mecanismos de homogeneização e anulação das diferenças culturais. Pela primeira vez os indígenas foram reconhecidos como portadores de culturas distintas (das do Ocidente e entre si), que deveriam ser respeitadas como parte do patrimônio cultural do país. As ações que os membros dessas culturas executam movidos por suas crenças e costumes não podem ser consideradas como desprovidas de sentido, nem estigmatizadas como símbolo de atraso. A normatização da política pública voltada aos povos indígenas não é uma novidade no direito brasileiro. O Estatuto do Índio prevê em seus arts. 48 a 55 políticas destinadas aos índios no campo da saúde, trabalho, educação e previdência. Na área da educação, determina que a alfabetização ocorra na língua do grupo indígena, além do português. No trabalho, determina o direito à formação profissional adequada. No campo da saúde, prevê aos índios a mesma proteção dos meios “facultados à comunhão nacional”. Contudo, tais políticas públicas não atribuem aos povos indígenas o controle e participação na sua formulação e manifestam, em sintonia com o propósito assimilacionista da lei, o ideal de integrá-las à sociedade nacional e promover o seu alinhamento com o modelo vigente da “comunhão nacional”. É assim que o art. 50, ao disciplinar a educação, estabelece que “A educação do índio será orientada para a integração na comunhão nacional mediante processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e valores da sociedade nacional, bem como do aproveitamento das suas aptidões individuais.” e o art. 53, embora pretenda estimular o artesanato e as indústrias rurais, tira com a outra mão, ao inserir, no mesmo dispositivo, que essa norma deve ser aplicada “no sentido de elevar o padrão de vida do índio com a conveniente adaptação às condições técnicas modernas.” De acordo com Oliveira (2008, p. 251), o Estatuto do Índio “...expressa claramente uma postura autoritária e centralizadora no trato das questões administrativas.”21 Portanto, se o pressuposto do Estatuto do Índio é a integração do indígena à sociedade, todas as políticas públicas ali delineadas vão ter como finalidade realizar essa integração. Mas, uma vez que a Constituição Federal rompe com esse assimilacionismo ao reconhecer a cultura indígena, como implementar políticas públicas de caráter social, tais como educação, saúde e trabalho, sem se resvalar no mesmo viés integracionista? A Convenção n.° 169 da OIT oferece um importante eixo normativo ao centralizar nos direitos de participação e consulta dos povos indígenas um aspecto crucial na formulação das políticas públicas a ele destinadas, bem como prever uma gradual descentralização para que eles próprios administrem seu sistema educacional. Assim prevê o seu art. 27, ao tratar 21 No mesmo sentido, v. LEITÃO, 1993, 231. 374 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional sobre educação: 1. Os programas e os serviços de educação destinados aos povos interessados deverão ser desenvolvidos e aplicados em cooperação com eles a fim de responder às suas necessidades particulares, e deverão abranger a sua história, seus conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e todas suas demais aspirações sociais, econômicas e culturais. 2. A autoridade competente deverá assegurar a formação de membros destes povos e a sua participação na formulação e execução de programas de educação, com vistas a transferir progressivamente para esses povos a responsabilidade de realização desses programas, quando for adequado. 3. Além disso, os governos deverão reconhecer o direito desses povos de criarem suas próprias instituições e meios de educação, desde que tais instituições satisfaçam as normas mínimas estabelecidas pela autoridade competente em consulta com esses povos. Deverão ser facilitados para eles recursos apropriados para essa finalidade. Normativa de natureza semelhante se aplica no campo da saúde, consoante prediz o art. 25 da Convenção. A mudança de foco é significativa: de um modelo em que as políticas são formuladas de cima para baixo, agora são as próprias comunidades indígenas que passam a deter voz e gradualmente controle sobre sua formulação, impondo ainda ao Estado o respeito aos processos culturais e sociais próprios desses povos no momento em que essas políticas são implementadas. Como sustenta Oliveira (2008, p. 271), A separação entre o que deve (ou não) ser incorporado, sobre as inovações e recriações, não deve mais ser realizada pelas autoridades oficiais nem pelos especialistas (antropólogos, indigenistas, ONG’s), mas sim pelas próprias coletividades (isto é, suas lideranças e intelectuais orgânicos). Já não são aceitos mais critérios que venham a colocar os indígenas em condições de subordinação em relação aos processos decisórios. Assim, o reconhecimento dos direitos culturais encartados no caput do art. 231 da Constituição de nada adiantaria se fosse mantida a atávica concepção do Estatuto do Índio de que a cultura deve ser integrada e incorporada à sociedade dominante. O reconhecimento cultural se torna efetivo quando o Estado, ao desenvolver e implementar políticas públicas, leva em consideração a necessidade de proteção desses valores. Nesse sentido, diante do vazio normativo, a Convenção n.° 169 pode preencher uma notável lacuna, apontando diretrizes para o respeito à cultura dos povos indígenas. Não só atribuindo direitos no campo da saúde, da educação e da previdência, a Convenção n.° 169 também regulamenta o direito de escolher prioridades no desenvolvimento econômicos e social (art. 7°) e o respeito aos costumes e direito consuetudinário (arts. 8° e 9°). Portanto, se o art. 231 prevê aos povos indígenas o exercício de direitos culturais, 375 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional diante do superado Estatuto do Índio, a Convenção n.° 169 oferece uma importante base principiológica e normativa para a sua realização e efetivo respeito. Também se destacam as possibilidades de aplicação da Convenção n.° 169 da OIT em relação à disciplina jurídico-constitucional das terras indígenas. A Constituição Federal de 1988, nos parágrafos 1° a 7° do art. 231, prevê o direito dos índios às terras tradicionalmente ocupadas e encontra similitude com o que prevê a Convenção em seus arts. 13 a 17. Como um dos mais relevantes exemplos da interface entre a Constituição Federal de 1988 e o conteúdo da Convenção n.° 169 da OIT, é interessante mencionar o que está previsto no art. 231, § 3º: O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. (grifo nosso) Se o dispositivo menciona que as comunidades afetadas devem ser ouvidas, pouco informa sobre a forma e o procedimento em que essas comunidades deverão ser consultadas. Contudo, a Convenção n.° 169, ao estabelecer os direitos de consulta e participação dos povos indígenas22, oferece um conjunto de diretrizes normativas sobre como esse direito se realiza. O seu art. 6° dispõe, por exemplo, que as consultas “deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.” E o art. 15, § 2°, determina Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes na terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades. Nesse sentido, ao apontar a maneira como as comunidades devem ser ouvidas e quais as obrigações dos Estados contidas nesse dever de consulta, a Convenção n.° 169 desenvolve 22 Os direitos de participação e consulta dos povos indígenas são identificados como uma das mais essenciais garantias para a proteção desses povos, tanto para que eles próprios possam influenciar a definição de seus direitos como impactar em determinadas práticas institucionais. V. KINGSBURY, 2001, p. 239. 376 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional normativamente um direito reconhecido no plano constitucional, demandando assim o reconhecimento de um diálogo entre o que prevê a Constituição e o que resta estabelecido como obrigação do Estado brasileiro em um tratado internacional. Assim, na configuração de uma “brecha de implementação” entre o anseio constitucional e a insuficiente ou incoerente legislação nacional, a implementação da Convenção n.° 169 firma-se como um ato necessário à efetivação dos direitos dos povos indígenas reconhecidos na Constituição. No caso das comunidades remanescentes de quilombos, também se observa a configuração das “brechas de implementação”. Como aponta Leite (2008, p. 286), com base em observações de Almeida ...após a Constituinte, o quilombo como direito tornou-se objeto da ação do Poder Executivo e de uma política governamental. O eixo da ação governamental e, em especial, sua retórica, tem contudo variado, gerando certo descompasso entre a consolidação jurídica dos territórios e a implantação de políticas sociais com predomínio das últimas. Também é possível observar uma tendência à intensificação dos debates sobre os princípios e critérios de classificação do que vem a ser um quilombo, sobretudo como tentativa de limitá-lo. O mencionado art. 68 do ADCT figura-se como insuficiente para verbalizar as expectativas do movimento articulado ao entorno das comunidades rurais negras. Ele não apresenta nem uma definição segura do que sejam remanescentes de quilombos e nem como será processado e disciplinado o reconhecimento desses direitos territoriais. Como já apontado, não houve disciplina mediante lei formal a respeito de como ocorreria esse reconhecimento do direito à propriedade. A principal tentativa de regulamentação – e que, à época da elaboração desse artigo, permanece vigente – consiste do Decreto n.° 4.887, de 20 de novembro de 2003, ato emanado do Poder Executivo e objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade, já noticiada. Sobre essa distância e o papel da releitura desse dispositivo sob uma perspectiva multicultural, argumenta Figueiredo (2011, p. 45) Se lida na sua literalidade, a norma constitucional apontava para uma interpretação restritiva, de caráter exclusivamente reparatório, individualizante na definição de seu sujeito de direito e cujo objeto era definido exclusivamente no campo do direito agrário. Interpretado no contexto comunitarista da Constituição de 1988, e mesmo no contexto mais ampliado de reconhecimento do multiculturalismo pelos mecanismos de direito internacional, apontava para a abertura que se produziu pelos movimentos, que definiu os sujeitos como grupos étnicos-raciais e o direito à terra como direito ao reconhecimento das formas particulares de territorialidade. 377 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Portanto, a Convenção n.° 169 da OIT apresenta grandes possibilidades de interface com vazios normativos deixados pela brecha entre a proposta constitucional e uma legislação velha ou insuficiente. Nesse sentido, sua aplicação poderá seguramente auxiliar os órgãos estatais na elaboração de uma política indígena consentânea com um modelo de respeito à diferença, que tenha como base os direitos culturais e territoriais de assento constitucional. De acordo com Villares (2009, p. 49), ...a Convenção deve ser observada integralmente. Ela estabelece as bases para a política indigenista com autonomia para os povos indígenas e inúmeras obrigações estatais para proteção dos povos indígenas, sua vida, territórios, instituições, cultura e saúde. A Convenção 169 da OIT revela sua importância na influência que exerceu nas mudanças constitucionais levadas pelos países latino-americanos na década de 90. Destacar a aplicação da Convenção n.° 169 como mecanismo de superação ou diminuição das brechas de implementação não significa dizer que outros desenvolvimentos normativos no plano doméstico não sejam necessários. A própria Convenção n.° 169 admite que a situação dos povos indígenas e dos Estados com quem se relacionam varie significativamente. 23 Por conseguinte, as normas gerais nela estabelecidas deverão ser aplicadas com base nas particularidades dos processos econômicos, sociais e culturais das sociedades a que se vinculam os Estados signatários. Trata-se do que Boaventura do Sousa Santos denomina de “geometria variável”, em que não há soluções institucionais uniformes a serem adotadas pelo conjunto de Estados (SANTOS, 2009, p. 218). Para a implementação desses direitos, podem ser necessários outros atos normativos, seja de caráter administrativo, seja de caráter legislativo. Todavia, o Estado não poderá se escusar de aplicar essas normas ao argumento de que precisaria regulamentar o tratado internacional. Para a adoção dos princípios e de determinadas regras contidas na Convenção, prescinde-se de interposição legislativa. Nesse ponto, é importante ressaltar que o Estado brasileiro, nos últimos anos, tem gradualmente desenhado políticas públicas indígenas com referência ou com vistas a implementar a Convenção n.° 169. Entre essas iniciativas, destaca-se a criação da Comissão Nacional de Política Indigenista – CNPI, em 22 de março de 2006, que conta com a participação de organizações indígenas, Além da CNPI, é importante apontar o Decreto n.° 7.747, de 5 de junho de 2012, que institui o Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI 23 Artigo 34. A natureza e o alcance das medidas que sejam adotadas para por em efeito a presente Convenção deverão ser determinadas com flexibilidade, levando em conta as condições próprias de cada país. 378 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional que tem como objetivo, nos termos de seu art. 1°, “garantir e promover a proteção, a recuperação, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das terras e territórios indígenas, assegurando a integridade do patrimônio indígena, a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física e cultural das atuais e futuras gerações dos povos indígenas, respeitando sua autonomia sociocultural, nos termos da legislação vigente.” Esse Decreto faz expressa referência à Convenção n.° 169 da OIT como um dos fundamentos de sua regulamentação. Especificamente visando à implementação da própria Convenção, a Portaria Interministerial n.° 35, de 27 de janeiro de 2012, estabeleceu um Grupo de Trabalho Interministerial “com a finalidade de estudar, avaliar e apresentar proposta de regulamentação da Convenção n º 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, no que tange aos procedimentos de consulta prévia dos povos indígenas e tribais.” Logo, essas importantes movimentações já demonstram o impacto da Convenção n.° 169 na reorganização da política indigenista brasileira, com a finalidade de harmonizá-la com os parâmetros internacionais e com a Constituição de 1988. Por outro lado, é importante asseverar que a indicação das possibilidades de aprofundamento normativo pela referida Convenção não reduz ou elimina a autoaplicabilidade dos dispositivos constitucionais. Nessa medida, as regras inseridas na Constituição que titularizam direitos tanto aos povos indígenas como às comunidades remanescentes de quilombos podem ser aplicadas diretamente, sem necessidade de mediação legal. O que o desenvolvimento normativo favorece é a ampliação das garantias e conferição de segurança jurídica à qualidade desses direitos reconhecidos. Se a Convenção n.° 169 da OIT apresenta um grande potencial para ocupar vazios normativos decorrentes do descompasso entre a vontade constitucional e a legislação nacional, tudo dependerá de sua aplicação pelo Estado brasileiro e a forma como passa a ser tratada em foros judiciais e em órgãos internacionais. Portanto, diante da vigência da Convenção n.° 169 no direito brasileiro, quais as principais formas de se fazer cumprir a Convenção? Destacamos principalmente duas: o papel dos órgãos da OIT no monitoramento de sua aplicação, por meio de recomendações diretas ao Estado, e o papel dos tribunais na solução de controvérsias relacionadas aos povos indígenas e quilombolas. Uma vez que o papel da OIT foi apreciado no item anterior, passamos a analisar a aplicação da Convenção n.° 169 pelos tribunais. Como aponta Stavenhagen (2008, p. 121), 379 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Uno de los temas más importantes que requiere de atención sostenida es el papel de los tribunales em la interpretación y aplicación de la legislación nacional y las normas internacionales de derechos humanos en cuestiones relativas a lós derechos humanos de los pueblos indígenas. A aplicação da Convenção n.° 169 da OIT pelos tribunais nacionais pode ser direta, desde que o sistema jurídico correspondente admita que os tratados internacionais, uma vez incorporados, passam a ser imediatamente aplicados. Contudo, as consequências da incorporação de um tratado internacional não se resumem à sua aplicação imediata. A força normativa de um tratado internacional em determinado ordenamento jurídico dependerá igualmente do status a que se atribui a esse tratado bem como à natureza normativa nele reconhecida. Um exemplo disso é a força normativa declarada pela Corte constitucional da Colômbia à Convenção n.° 169. A Corte constitucional colombiana tem sido reconhecida por construir uma sólida jurisprudência em relação aos direitos dos povos indígenas e comunidades afrodescendentes 24 . Essa Corte tem aplicado a Convenção n.° 169, reconhecendo que esse tratado integra o bloco de constitucionalidade colombiano. Tal posição foi reafirmada na Sentença T-376/12, em trechos que insta transcrever: 3. Un elemento imprescindible para una adecuada interpretación y aplicación de las normas y principios asociados a la protección, respeto y garantía de los derechos de las comunidades cultural o étnicamente diversas, es el enfoque de diversidad y autonomía planteado por la comunidad internacional desde la aprobación del Convenio 169 de 1989 de la OIT. Ese enfoque, en síntesis, plantea que las culturas indígenas o afrodescendientes poseen vocación de permanencia y que los Estados deben respetar al máximo su derecho a definir sus prioridades y asuntos propios, como manifestación del principio de autodeterminación de los pueblos. (…) 7. El Convenio 169 de la OIT - última de las fuentes citadas en la sentencia SU-039 de 1997 como fundamento del derecho a la consulta previa- es el instrumento de mayor relevancia en la interpretación y aplicación de los derechos de los pueblos indígenas en el orden interno, no sólo por el avance que supuso en el respeto por su autodeterminación, sino también porque hace parte del bloque de constitucionalidad, así que sus disposiciones son aplicables directamente en el orden interno, con fuerza constitucional. (grifo nosso) Os Tribunais e juízes de Estados da América Latina têm aplicado a Convenção n.° 24 Um relatório da organização sediada na Inglaterra, Minority Rights Group International, se refere ao conjunto de decisões da Corte Constitucional da Colômbia como um ‘modelo de jurisprudência de padrão mundial’(world-class model of jurisprudence) (State of the World’s Minorities and Indigenous Peoples 2012. 2011. p. 28.) 380 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 169 a diversos casos (INTERNATIONAL LABOUR ORGANISATION, 2009). Cumpre analisar, a partir de dois casos recentes, como a Convenção está sendo aplicada pelos juízes brasileiros. Um dos primeiros casos em que se aplicou a Convenção n.° 169 se refere a um mandado de segurança em que figuraram no polo ativo diversas pessoas pertencentes a uma comunidade remanescente de quilombo em Alcântara, no Maranhão 25. A ação foi instaurada contra as atividades da base aeroespacial localizada próximo à comunidade. Nos termos da petição inicial, as atividades da base aeroespacial afetariam as formas tradicionais de produção, impedindo o cultivo do campo pela comunidade. Os impetrantes pleitearam que o centro de lançamento cessasse as atividades que impediam a comunidade de plantar e colher as culturas de subsistência em suas áreas tradicionais. Na decisão prolatada nesse caso, entendeu-se que a previsão constitucional de bemestar para todos alcança também as comunidades remanescentes de quilombos, particularmente quando o Estado brasileiro confirma a intenção de estabelecer uma política pública para combater a discriminação contra estilos de vida tradicionais de povos indígenas e tribais, nos termos do Decreto-Legislativo n.° 43/2000, que ratifica a Convenção n.° 169 da OIT. Nesse feito, o Poder Judiciário reconheceu o estilo de vida tradicional da comunidade remanescente de quilombo, bem como o dever de o Estado respeitar a cultura, sem poder adotar medidas que impeçam o manejo da terra conforme o modo cultural daquela comunidade, fazendo expressa referência à Convenção. Mais complexo e envolvendo grandes interesses é o caso da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. No processo n. 2006.39.03.000711-8/PA26, está se discutindo se foi exercido o direito de consulta prévia das comunidades indígenas afetadas antes da deliberação pelo Estado quanto à concessão e construção da referida Usina. No caso, o Ministério Público Federal pretendia impedir o prosseguimento da execução de obras de Usina Hidrelétrica de Belo Monte enquanto não fossem ouvidas as comunidades indígenas afetadas. Ainda, discutia-se a validade do Decreto Legislativo n.° 788, de 2005, que autorizou o Poder Executivo a implantar o Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte no trecho do Rio Xingu, 25 Essas informações foram extraídas de ILO, 2009, p. 61-62. O processo a que se refere é o registrado sob n.° 2006.37.00.005222-7. 26 Esse não é o único processo instaurado pelo Ministério Público Federal relacionado à Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Para outros processos, v. <http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2013/processos-judiciais-do-casobelo-monte-sao-publicados-na-integra-pelo-mpf> . Acesso em: 21 mar. 2013. 381 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional pois editado sem ouvir previamente as comunidades e sem o prévio estudo de impacto ambiental. O cerne dessa demanda era, portanto, o direito dos povos indígenas serem ouvidos a respeito do megaprojeto que afetaria o seu modo tradicional de vida. A sentença julgou improcedente o pedido do Ministério Público. Em grau de apelação, inicialmente a 5ª Turma do 1° Tribunal Regional Federal entendeu que havia ocorrido a consulta e que ela não precisaria ser prévia ao Decreto Legislativo n.° 788, de 2005. Houve divergência, restando vencida a Desembargadora Federal Relatora Selene Maria de Almeida, para quem não foi observado o que dispõe a Convenção n.° 169 quanto à consulta prévia. É interessante trazer à baila alguns excertos do voto vencido da Relatora, pela sua referência à Convenção n.° 169 da OIT e a percepção de sua posição no ordenamento jurídico brasileiro: Neste contexto, requereu o Ministério Público Federal, ora apelante, a aplicação das regras da Convenção 169 da OIT porque, com a sua ratificação pelo Congresso Nacional, as regras internacionais passaram a ser normas internas brasileiras. O direito de consulta das populações indígenas, no Brasil, foi incorporado à legislação nacional e agora tem a mesma hierarquia das normas constitucionais. A Emenda Constitucional 45, que acrescentou o parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição Federal, dispõe que “os tratados e convenções internacionais sobre Direitos Humanos são equivalentes às emendas à Constituição”. O Supremo Tribunal Federal atribuiu aos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, superioridade jurídica em face da generalidade das leis internas brasileiras, reconhecendo as referidas convenções internacionais qualificação constitucional (HC 87585 – Pleno, DJE de 26/26/2009). Temos, portanto, de um lado, o direito das comunidades indígenas de serem ouvidas quando houver proposta de atividade econômica em suas terras, ex vi do artigo 231, parágrafo 3ª, da Constituição Federal de 1988, onde também consta a previsão da necessidade do Congresso Nacional autorizar a exploração de recursos minerais e do potencial energético em terras dessas populações. De outra parte, tem-se o direito de consulta, incorporado no ordenamento jurídico nacional com a ratificação pelo Estado brasileiro da Convenção 169 da OIT. (...) Segundo prescrições da Convenção 169 da OIT, inseridas no nosso ordenamento jurídico em nível de norma constitucional, a consulta prévia (artigo 6º) e a participação (artigo 7º), constituem direito fundamental que têm os povos indígenas e tribais de poder decidir sobre medidas legislativas e administrativas, quando o Estado permite a realização de projetos. A intenção é proteger a integridade cultural, social e econômica além de garantir o direito democrático de participação nas decisões que afetam diretamente essas populações tradicionais. Contra a decisão que negou provimento ao apelo, o Ministério Público opôs 382 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional embargos de declaração. Em uma reviravolta, o 1° TRF modificou essa decisão, considerando que diversos dispositivos da Convenção n.° 169 da OIT não foram observados, acolhendo os embargos de declaração e dando parcial provimento ao apelo do Ministério Público Federal. Do voto-condutor pelo Desembargador Federal Souza Prudente se extrai: Como se observa das letras desses dispositivos [da Convenção n.° 169] de âmbito internacional a que aderiu o Brasil com a responsabilidade social de lhe dar eficácia plena, afirma-se nas letras desses dispositivos o direito fundamental à liberdade dos povos indígenas como direito humano de livre participação do seu destino, não se admitindo que seja empregada nenhuma forma de força ou de coerção que viole os seus direitos humanos e as suas liberdades fundamentais, como povos interessados no desenvolvimento das suas culturas e também no desenvolvimento nacional. Se entendermos, à luz dessas disposições, que o Congresso Nacional agiu corretamente ao editar o Decreto Legislativo 788/2005 sem ouvir antes as comunidades indígenas sobre os impactos ambientais em suas terras, em suas culturas, em suas tradições, estaremos admitindo, então, o regime de força condenado pela Convenção OIT nas letras do seu art. 3º, item II. Não se tem notícia ainda de uma análise derradeira pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ou pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) a respeito da Convenção n.° 169 da OIT. Contudo, das duas decisões acima mencionadas, extrai-se que o Poder Judiciário entendeu pela sua aplicação imediata. Do caso de Belo Monte, o 1° TRF deliberou até mesmo pela invalidação de Decreto Legislativo por não observar as normas da Convenção n.° 169 27 . Diante desse precedente, no caso de a Convenção n.° 169 da OIT ser invocada – ao menos quanto ao direito de consulta prévia – é possível que os tribunais passem a utilizá-la como parâmetro normativo direito, isto é, sem exigir interposição legislativa para aplicá-la. 5 Conclusão A Constituição Federal de 1988 imprimiu um novo paradigma de condução das relações entre o Estado brasileiro e as comunidades indígenas e remanescentes de quilombos. Ao invés da negação ou incorporação, o norte constitucional aponta para o respeito às diferenças e o reconhecimento de uma intrínseca relação entre cultura e território. Contudo, essa mudança de perspectiva não foi acompanhada de um desenvolvimento normativo correspondente no plano doméstico, resultando em vazios normativos e conduzindo ao que Stavenhagen denominou “brechas de implementação”. Por outro lado, no plano internacional, a Convenção n.° 169 da OIT passou a 27 Na data de elaboração desse artigo, a decisão ainda não havia transitado em julgado, pois pendente de apreciação de recursos excepcionais. 383 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional regulamentar o direito dos povos indígenas e tribais, reconhecendo a essas coletividades um conjunto de prerrogativas destinadas à sua proteção física, cultural e espiritual. A Convenção n.° 169 é monitorada e aplicada pelos órgãos da OIT, que têm auxiliado e cooperado com o Estado brasileiro no cumprimento dos seus dispositivos. Como resultado disso, pode-se mencionar iniciativas do governo brasileiro para definir uma política indigenista voltada ao manejo territorial, como o PNGATI, e o estabelecimento de um grupo interministerial com a finalidade de regulamentar o direito à consulta prévia dos povos indígenas e tribais previsto na Convenção. Além desses desenvolvimentos recentes no âmbito do Poder Executivo, o Poder Judiciário tem demonstrado existir um espaço para que violações aos direitos contidos na Convenção n.° 169 da OIT sejam diretamente levadas ao seu conhecimento e, com base nela, proferidos julgamentos voltados à proteção das sociedades tradicionais abrangidas pela Convenção. Como destacou a Desembargadora Selene Maria de Almeida quanto à sua importância: Quanto a isso, as prescrições da Convenção 169 da OIT, além de vinculantes, podem ser de enorme valia na construção interna desse modelo de processo de consulta das populações indígenas. Assim é porque um aspecto relevante da Convenção é o capítulo sobre terras indígenas e tribais. A Convenção reconhece a relação especial que os indígenas têm para com as terras e territórios que ocupam ou utilizam de alguma maneira e, em particular, os aspectos coletivos desta relação. É reconhecido o direito de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Os direitos dos povos indígenas e tribais existentes em suas terras devem ser protegidos.28 Assim, embora a Convenção n.° 169 não tenha ainda se inserido com vigor no discurso oficial corrente do Estado brasileiro, iniciativas e decisões judiciais precursoras estão sendo tomadas com base na Convenção. Nesse sentido, pode-se concluir que a Convenção tem servido como instrumento normativo hábil a articular demandas que não encontram amparo na legislação doméstica, figurando como um relevante mecanismo de proteção dos povos indígenas e tribais e conferindo maior densidade normativa aos anseios constitucionais. REFERÊNCIAS AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Introdução ao direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2008. 28 Voto como Relatora na Apelação Cível nº 2006.39.03.000711-8/PA. 384 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional ANAYA, S. James. Indigenous people in international Law. 2 ed. New York: Oxford University Press, 2004. CANOTILHO, J. J. Gomes. 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Com isso, ato contínuo é estabelecer a conceituação dos pilares da Carta, nessa perspectiva à proibição de intervenção, fundamento da igualdade e garantia da paz internacional, bem como do instituto da intervenção humanitária - ou dever de proteger – sob a ótica da tutela internacional dos direitos humanos. Ao final, busca-se confrontar a possibilidade de coexistência destes dois institutos do direito internacional, com o intuito de propor uma reflexão, no que couber, através da teoria da tipicidade conglobante, com espeque em Eugênio Raúl Zaffaroni, responsável por sustentar uma possibilidade de coexistência, no sistema jurídico, de institutos aparentemente antinômicos. PALAVRAS-CHAVE: Intervenção Humanitária; Responsabilidade de Proteger; Direitos Humanos; Antinomia; Tipicidade Conglobante. HUMANITARIAN INTERVENTION OR RESPONSIBILITY TO PROTECT: CONCEPTS SUCH AS FRONT PARAMETERIZE STRUCTURING PRINCIPLES OF THE CHARTER OF THE UNITED NATIONS ABSTRACT This article aims to primary draw a parallel between the dominant theories that guided international relations, for, after it shows the values that gave rise to the making of the Charter 1 Advogado, especialista em direito privado pela Universidade Candido Mendes, Rio de Janeiro, aluno do Programa de Mestrado da Universidade de Itaúna/MG, com concentração no âmbito da proteção dos direitos fundamentais, linha de pesquisa Organizações Internacionais e Proteção dos Direitos Fundamentais. 2 Advogada, Doutora e Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, tendo realizado suas pesquisas na Universidade de Pisa-Itália, Professora da Graduação e Mestrado da Universidade de Itaúna/MG, Professora e ex- Coordenadora do Curso de Direito do Centro Universitário UNA, Professora e Coordenadora da Pós-Graduação Lato Sensu do Centro Universitário de Belo Horizonte – UNIBH, Membro do Jurídico do Grupo Ânima Educação. 387 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional of the United Nations (UN). With this continuous act is to establish the concept of the pillars of the Charter, that the prohibition on intervention perspective, the basis of equality and ensuring international peace and the institute of humanitarian intervention - or duty to protect - from the perspective of the international protection of human rights. At the end, we seek to confront the possibility of coexistence of these two institutes of international law, in order to propose a reflection, as appropriate, through the theory of tipicity conglobante with Eugenio Raúl Zaffaroni in stanchion, responsible for sustaining a possibility coexistence, in the legal system, apparently antinomical institutes. KEYWORDS: Humanitarian Intervention; Responsibility to Protect; Human Rights; Antinomy; Conglobante Tipicity. Sumário 1. Introdução. 2. Os paradigmas clássicos de convivência internacional e sua influência na confecção da Carta da ONU. 3. Do princípio da Não-Intervenção. 4. Intervenção Humanitária ou Responsabilidade de Proteger? 5. Da antinomia entre Não-Intervenção e Intervenção Humanitária. 6. Considerações Finais. 1. Introdução Os episódios autoritários verificados em alguns países da Europa, quais sejam fascismo, nazismo, franquismo e salazarismo, aliados aos efeitos nefastos gerados pelos embates durante a Segunda Grande Guerra Mundial e pelo Holocausto, determinaram a conjectura política sob a qual foi erigida a Carta da Organização das Nações Unidas. Para tanto, foi idealizada uma Organização Internacional com fins a deter a guerra entre países e que fornecesse uma plataforma de diálogo capaz de promover a cooperação em matéria de direito internacional, segurança internacional, desenvolvimento econômico, direitos humanos e a defesa da paz mundial. Tais condições, em suma, pretendiam evitar a reedição dos horrores historicamente vivenciados, tendo em vista os princípios que foram esculpidos em seu texto. Ou seja, surge como meio de reação às hostilidades perpetradas nos períodos de guerras, ao mesmo tempo em que objetiva controlar a sociedade internacional, muitas vezes propensa à autodestruição, em virtude de interesses conflitantes, ou antagônicos. A conjuntura estava traçada, e a Carta das Nações Unidas foi elaborada pelos representantes de 50 países presentes à Conferência de São Francisco, realizada entre 25 de abril a 26 de junho de 1945. As Nações Unidas, entretanto, começaram a existir oficialmente 388 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional apenas em 24 de outubro de 1945, após a ratificação da Carta pela China, Estados Unidos, França, Reino Unido e a ex-União Soviética, bem como pela maioria dos Estados signatários. É certo que, em breves linhas, esse é o relato histórico contextualizador dos auspícios da ONU. Aliás, imprescindíveis para que se entenda, à luz do preconizado pela Carta, as atuais práticas internacionais no que diz respeito à defesa dos direitos humanos, preceito que, por sua vez, fundamenta e justifica uma séria de medidas deflagradas em âmbito internacional. No entanto, com vistas a verificar os institutos da Intervenção Humanitária e Responsabilidade de Proteger, impõe-se, em um primeiro momento, por meio de uma análise teórica, evocar os paradigmas clássicos que norteiam a sociedade internacional, para assim, apreciar os princípios erigidos na Carta da ONU que orientam a convivência internacional e a solução dos conflitos, consagrados pelo artigo 2º do referido diploma. Superado esse caminho preliminar, necessário estabelecer o conceito de Intervenção Humanitária e Responsabilidade de Proteger, no sentido de determinar seus alcances, bem como verificar a existência de eventual antinomia com os princípios estruturantes do Direito Internacional. Haveria uma incompatibilidade entre o princípio da não-intervenção e das recentes práticas humanitárias realizadas pela sociedade internacional? Defesa dos direitos humanos ou ofensa aos pilares estruturantes do Direito Internacional? É possível compor questões tão contrastantes? Esses são os questionamentos que permeiam o estudo bibliográfico proposto, que tende a concluir pela congruência do ordenamento internacional. 2. Os paradigmas clássicos de convivência internacional e sua influência na confecção da Carta da ONU Antes de passar à análise dos princípios erigidos pela Carta da ONU, orientadores da convivência internacional e da solução dos conflitos internacionais, impõe-se evocar os três modelos clássicos de convivência internacional, conforme sistematização de Martin Wight: o hobbesiano-maquiavélico, o grociano e o kantiano (LAFER, 1995). No primeiro paradigma, hobbesiano-maquiavélico, o entendimento é pela manutenção dos atores internacionais em um temível “Estado de Natureza”, no qual estes permanecem em uma constante animosidade internacional, em que a condição de beligerância é latente, e a guerra, iminente. Contraria a condição interna de cada sociedade, onde a presença do poder mantém a condição de paz e tranquilidade. A ausência de um poder soberano na esfera internacional impossibilitaria a paz entre as nações. Nesse sentido, para 389 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Hobbes, os atores internacionais têm o dever de se pautar pela prudência e pela permanente sombra de um ataque iminente, de forma que, a única solução dos conflitos é pela imposição, traduzida pelo poder. Acredita-se, segundo essa linha de pensamento que a soberania é absoluta, gerada pela total cessão dos poderes do povo para o Estado. (LAFER, 1995) Nesses termos, leciona Celso Lafer: O paradigma hobbesiano-maquiavélico, que a Carta da ONU procura superar, considera que a sociedade internacional se caracteriza ainda pelo Estado de Natureza, ou seja, pelo estado de guerra de todos contra todos. Como não existe, no plano internacional, diferentemente do que ocorre no interior dos Estados, um poder unificado, não há como solucionar o problema da anarquia dos significados que, no plano interno, é resolvido pelo poder soberano. Por isso para Hobbes, como precursor do positivismo jurídico, o direito é comando, não sabedoria. Daí a plenitude sem limites da soberania dos Estados e a convicção de que a única lei do sistema internacional é a da sobrevivência. Assim, as regras básicas da vida internacional são a prudência e o expediente, pois a política internacional é tão somente a política do poder (LAFER, 1995). Por sua vez, Hugo Grócio propõe um modelo em que os institutos de direito internacional público regeriam a necessária convivência entre as nações, pautadas pelo sentimento de cooperação, socialidade e solidariedade. Compõem o sistema, além das nações, as organizações internacionais, valorizadas pelo seu papel transnacional. Pautam-se essas inter-relações pela interdependência e cooperação. Ou seja, o pano de fundo é o interesse recíproco de cada uma das nações. No mesmo sentido: (...) o modelo da convivência que remete a Grócio, pressupõe a existência na sociedade internacional de um potencial de sociabilidade e solidariedade que torna possível conceber a política internacional como um jogo que não é, inapelavelmente, de soma-zero. Decorre dessa premissa o efetivo papel desempenhado pelo sistema jurídico do Direito Internacional Público, pelas organizações internacionais, e a valorização do transnacionalismo dos atores não-governamentais, expressão da interdependência e da cooperação, ou seja, de um abrangente processo do interesse recíproco dos Estados e de suas populações. A Carta da ONU, assim como antes dela o Pacto da Sociedade das Nações, contém importantes ingredientes grocianos (LAFER, 1995). No terceiro paradigma, Immanuel Kant, em sua obra “À Paz Perpétua” (1795), traça uma nova possibilidade, determinando que a convivência pacífica das nações deva permanecer, não sob a mesma perspectiva de Hugo Grócio – interdependência e mútuo interesse – mas pelo sentimento internacional da incessante busca pela paz, objetivo de todas as nações. Evidencia condições negativas para que, como medidas a serem adotadas, evitem o conflito futuro, promovendo diretamente a paz. Estabelece as mínimas condições necessárias 390 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional para que sejam eliminadas as principais razões de guerra entre os Estados. Nesses termos, traz para o centro de todo o postulado, os desideratos de proteção do ser humano, respeito à sua dignidade, refletindo, consequentemente, no respeito mútuo entre os Estados, independentemente de sua estatura. Corroborando com essa vertente, são valiosos os ensinamentos de Pádua Fernandes: Do ponto de vista moral e jurídico, Kant, todavia, rompeu com a antiga doutrina da guerra justa, e realizou em “À Paz Perpétua” uma “radical desqualificação da guerra” (Castillo, 2001, p.33). Há um dever jurídico de sair do estado de guerra, o que só pode ser feito por meio de uma associação de estados ... Höffe (1990, p. 261262), com razão, ressalta que, para o filósofo prussiano, a paz é o mais alto bem político. A paz perpétua é uma ideia e não pode ser completamente realizada na realidade; no entanto, há um dever de se aproximar dessa ideia, e esse dever é jurídico (FERNANDES, 2004). Dessa feita, concluiu-se, pelo menos como fator inspirador da consciência dos “Povos das Nações Unidas” ao celebrarem a adoção da Carta da ONU, o paradigma kantiano. O parâmetro não poderia ser outro, haja vista as circunstâncias que levaram à realização da Conferência de São Francisco em 1945. Os desmandos dos totalitarismos que terrorizavam vários países da Europa e que levaram ao megaconflito haviam consolidado a percepção kantiana de que os regimes democráticos apoiados nos direitos humanos eram os mais propícios à manutenção da paz e da segurança internacionais. Daí a necessidade de apoiar em normas internacionais o ideal dos direitos humanos (LAFER, 1995). Não seria de bom alvitre que o sentimento fosse outro. Permitir que se fossem olvidados os horrores da guerra e do Holocausto, manter-se-ia o status quo.Ou seja, não haveria a ruptura do paradigma de encetar a real proteção aos direitos fundamentais dos homens, com a sua internacionalização e determinar, em um compromisso multilateral, a vedação à guerra. Para confirmar o exposto, apresenta-se o preâmbulo da Carta da ONU, in verbis: NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla. E PARA TAIS FINS, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança 391 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos. (Carta da ONU). Neste contexto, a Carta das Nações Unidas estabelece, logo em seu art. 2º, os princípios que regem as relações entre a organização e os Estados membros no cumprimento de seus desideratos; são eles: igualdade soberana de todos os Estados; cumprimento de boa-fé das obrigações contidas na carta; solução pacífica de controvérsias internacionais, de modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais; proibição da ameaça ou do uso da força nas relações internacionais; assistência a todas as ações promovidas pelas Nações Unidas e proibição de prestar auxílio a Estado contra o qual a Organização esteja agindo de modo preventivo ou coercitivo; obrigação de fazer que os Estados não membros da Organização atuem em conformidade com a Carta a fim de manter a paz e a segurança internacionais; e proibição de intervenção, por parte da organização, nos assuntos de competência essencialmente interna dos Estados, exceto por meio de medidas coercitivas previstas no Capítulo VII da Carta. Vinte e cinco anos após a edição da carta da ONU, a menção à Declaração atinente aos princípios do direito internacional no que diz respeito às relações amigáveis e à cooperação entre os Estados nos termos da Carta das Nações Unidas, é extremamente oportuna. Aprovada em consonância generalizada pela Assembleia Geral, em 24 de outubro de 1970, através da Resolução 2625 (XXV), consagra sete princípios: proibição do uso da força, solução pacífica das controvérsias, não intervenção nos assuntos de jurisdição doméstica dos Estados, obrigação de cooperação entre os Estados, igualdade de direitos e autodeterminação dos povos, igualdade soberana dos Estados e cumprimento de boa-fé das obrigações internacionais. Contrariando o conteúdo de todos os acordos internacionais precedentes, a Carta da ONU estabelece regras extremamente claras ao estatuir restrições ao uso da força pelos Estados. Desde o preâmbulo, decorrendo todo o seu corpo normativo, as restrições à atividade beligerante e ao uso da ameaça nas relações internacionais restou bastante rechaçada, principalmente pela ideologia adotada e a sua disposição principiológica. Dentre os princípios supramencionados, em respeito aos objetivos traçados pelo presente trabalho, necessário se faz uma leitura do relativo à proibição de intervenção nos assuntos de competência essencialmente interna dos Estados, que se passa a aprofundar. 392 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional 3. Do princípio da Não-Intervenção Apesar das inúmeras propostas de emendas aos textos originais que circundaram a criação da carta da ONU, e os inflamados debates acerca das disposições dogmáticas e contextuais dos textos envolvendo os membros presentes na Conferência de São Francisco (BÖHLKE, 2011, p. 121), uma leitura desatenta do art. 2º, § 7º da Carta da ONU pode oferecer interpretações muito restritivas ao verdadeiro conteúdo conceitual do princípio da não intervenção, senão vejamos: ARTIGO 2, §7º: Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII. Percebe-se, pela literalidade do comando normativo que a proibição de intervenção direciona-se somente à ONU, e não aos demais Estados membros. Essa interpretação não pode prosperar, uma vez que, no mesmo Art. 2º, agora em seu §4º, determina que todos os Estados signatários da Carta, assim como não signatários (art. 2º, §6º), devam abster-se do uso da força e da ameaça no âmbito de suas relações internacionais. Ademais, a não intervenção entre os Estados não decorre somente dessa base pactual, mas precipuamente do direito consuetudinário, que remonta ao direito natural, já consolidada como jus cogens desde o pacto Kellog-Briand. Nessa perspectiva, preleciona o mestre de Viena, Hans Kelsen: O princípio da não-intervenção não reflete exatamente o princípio da nãointervenção nos assuntos internos previstos no direito internacional geral, pois o princípio referido na Carta impede a intervenção da Organização, especificamente, nas questões internas dos Estados, e não de um Estado nas questões de outros. Para o autor, o dever de não interferir nos assuntos internos de outros Estados, apesar de não estar previsto expressamente na Carta, decorre, de maneira implícita, do disposto no art. 2º, § 4º, que proíbe a ameaça ou o uso da força nas relações internacionais.(KELSEN, 1951, p.770) O dever de não-intervenção, em sua clássica conceituação doutrinária, traduz o dever por parte de Estados soberanos e organizações internacionais em não intervir na esfera de jurisdição interna de um Estado soberano ou comunidade política independente (BULL, 1984, p.1). Todavia, numa visão mais atual, e em razão da grande abertura de possibilidades que o termo intervenção pode permear, dado que o alcance do termo soberania é extremamente 393 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional amplo e, de outra sorte, a exigência de uma cautelosa motivação em situações de ingerência militar , preferiu-se não adotar uma conceituação fechada, sob o receio de uma desnecessária estagnação conceitual, o que encerraria verdadeira inoperabilidade do instituto. Esse é o entendimento de Rosalyn Higgins, citada por Marcelo Böhlke: Acredita não ser possível traçar uma linha divisória nítida entre o que seria interferência tolerada e o que seria considerado intervenção proibida. Conforme Higgins, o propósito da “doutrina da intervenção do direito internacional” seria “criar equilíbrio aceitável entre a igualdade soberana e a independência dos Estados, por um lado, e a realidade de um mundo interdependente e compromissos com o direito internacional com a dignidade humana, por outro. (BÖHLKE, 2011, p.138) Após essa (in)definição conceitual do instituto da proibição de intervenção em assuntos internos dos Estados soberanos, sobeja salientar que, à luz de outra perspectiva, não decorreria este princípio de outros institutos de direito internacional senão o da igualdade dos Estados soberanos e da busca pela autodeterminação dos povos. O primeiro desponta como marco inicial para se estabelecer limites mínimos para se lograr uma ambientação da sociedade internacional, de modo a não subordinar nenhum Estado soberano a outro , ou mesmo a qualquer organização internacional. Nesse sentido, soberania seria nada mais que a vontade própria do Estado, fator determinante da preeminência no plano interno, bem como da independência internacional. Já o segundo princípio implica a liberdade de todos os Estados escolherem de sua forma de governo, e seu próprio destino sem interferências externas. O que desponta como ponto chave na delimitação do instituto da proibição de intervenção em assuntos internos dos Estados seria, justamente, a delimitação de assuntos internos. A definição do conteúdo engloba antiga e larga discussão de toda a comunidade internacional, haja vista seu conteúdo flexível, que, com o decorrer do tempo, vem sofrendo inúmeras mutações, assim como a própria estrutura do direito internacional, bem como os motivos e razões que determinam a ingerência dos organismos internacionais e Estados soberanos. Assim, caberá tanto à doutrina, quanto à jurisprudência, o papel de preencher este conteúdo, que, em realidade, depende sua delimitação, da atividade interpretativa das normas abstratas face ao caso concreto, assim como ocorre com os conceitos jurídicos indeterminados e os elementos normativos, contidos nos tipos penais em branco. Seguindo essa linha de entendimento, a melhor solução para se traçar uma definição sobre “assuntos internos” seria, não exatamente direta ou conceitual, mas por meio da ponderação do binômio “soberania x direitos humanos”. Nesse sentido, o respeito aos direitos 394 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional humanos pelos Estados funcionaria como um termômetro para a intervenção ou não. Consequentemente, a ação estaria agasalhada pela legitimidade sempre que fosse necessário tutelar os direitos humanos, , não conflitando, pois, com os institutos da soberania e do dever de não-intervenção. Nesta linha, ensina Marcelo Böhlke: A aplicação dos mecanismos de proteção de direitos humanos baseados em tratados internacionais não fere a soberania nem o princípio da não-intervenção. O conflito entre aquele princípio e a defesa dos direitos humanos ocorre quando são propostas medidas não previstas no direito internacional e que envolvem a ameaça ou o uso da força, principalmente de modo unilateral, como meio de coerção na aplicação das normas de direitos humanos. (BÖHLKE, 2011, p.230) Assim, as intervenções internacionais, apesar de expressamente vedadas pela art. 2º, §4º da Carta da ONU, têm, pelo menos, duas exceções que merecem registro: a legítima defesa, prevista no art. 51 da Carta, entendida como medida suficiente para repelir a agressão sofrida, não devendo, contudo, extrapolar a ação recebida; e as limitações previstas no Capítulo VII da Carta, que compreendem ações relativas aos tratados de paz, rupturas da paz e atos de agressão, os quais devem sofrer interpretação restritiva, à luz da norma imperativa jus cogens- a proibição de intervenção. 4. Intervenção Humanitária ou Responsabilidade de Proteger? Após as considerações pertinentes aos princípios basilares da Carta da ONU, sustentáculo para a manutenção da ordem mundial, e que visam impedir a eclosão de novos episódios bélicos, ao menos no plano jurídico, urge salientar a necessária presença das intervenções humanitárias. Esta entendida como institutos determinantes à observação do cumprimento dos tratados de direitos humanos e que permite a fiscalização de todos os Estados, mesmo aqueles não integrantes das Nações Unidas, pelo imperativo do art. 2º, §6º, da Carta. Com a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, foram consagrados valores de cunho universal a serem observados por todos os Estados, sem exceções, pautados no dever de respeito à dignidade humana. Desses direitos decorre o dever dos organismos internacionais e de todos os Estados que compõe a sociedade mundial de observar e tutelar a garantia às mínimas condições de vida digna em qualquer que seja o Estado. Havendo 395 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional violação aos direitos humanos, há verdadeiro dever de agir. Trata-se de normas imperativas de Direito Internacional - jus cogens. Esse dever de agir, todavia, nem sempre foi assim tratado. Aliás, desde 1948, com a nova ordem mundial bipolarizada, difícil era a possibilidade de ação por parte do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), tendo em vista os vetos que travavam a sua ação. Desse modo, não havia muita efetividade em se proteger, via organismos internacionais, os direitos humanos, sendo, pois, relegados à sorte de um interesse político, dado o descrédito de alguns países à força dos organismos internacionais, passando a “atropelar” os tratados internacionais relativos à observância dos direitos humanos, dando ensejo à atuação unilateral por parte das potências, que, em regra, agiam pela via bélica. A queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética alteram o cenário anteriormente delineado. Findado o período de tensão travado pela Guerra Fria, constata-se uma maior atuação do Conselho de Segurança. Com a expansão da mídia mundial, torna-se latente que a responsabilidade dos atores internacionais recrudesceria, de sorte a serem chamados a intervir de forma mais efetiva nas questões humanitárias. Assim, deu-se maior amplitude à “oportunização” de soluções pacíficas pela busca do respeito aos direitos humanos. Com a participação efetiva dos organismos internacionais pela vigilância dos direitos humanos, não havia mais espaço para a inércia da ONU, e, com isso justificar a adoção de medidas unilaterais (em regra beligerante). A prioridade passava pela busca da resolução dos conflitos de forma amistosa, fomentando o desenvolvimento social e econômico como métodos de combate às violações humanitárias. No entanto, para que se possa entender o instituto da Intervenção Humanitária, importa conceituá-la. Para tanto, toma-se por empréstimo as palavras de Marcelo Böhlke, para quem, resultam de um somatório de elementos: A doutrina apresenta diferentes definições para intervenção humanitária, que geralmente contém os seguintes elementos: (i) uso da força armada; (ii) por Estado ou grupo de Estados; (iii) sem o consentimento do Estado onde se processa a operação; (iv) com o objetivo de conter violações maciças aos direitos humanos em sentido amplo, incluindo as liberdades fundamentais e as normas do direito internacional humanitário; e (v) independentemente da nacionalidade das vítimas. (BÖHLKE , 2011, p.236) Dessa forma, pressuposto principal das intervenções humanitárias é o uso da força armada para proteger seres humanos em condições de risco dentro de Estados violadores de regras seculares. Mas não se trata somente do uso de força armada, mas também com uma latente violação de um dos pilares da Carta da ONU – a proibição de intervenção. 396 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Haveria, na hipótese, uma antinomia entre o princípio da não intervenção e a intervenção humanitária? Esse cenário já encetou o maior número de discussões em todas as camadas do direito internacional no âmbito da proteção dos direitos humanos: se de um lado há a norma jus cogens pela prevalência dos direitos humanos, do outro lado estão a soberania dos Estados e a vedação à intervenção. O ex-secretário geral da ONU, Kofi Annan trouxe, no bojo de seu artigo “The two concepts of sovereignty” dois panoramas distintos sobre o tema: a intervenção da ONU no Kosovo e a não intervenção em Ruanda. Nas duas hipóteses, ele faz uma leitura crítica das (in)ações internacionais: relativamente ao Kosovo, faltou a atividade do Conselho de Segurança, agindo a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em violação à carta da ONU, no tocante ao princípio da não-agressão. Na segunda hipótese, a inação dos atores internacionais diante do genocídio de aproximadamente 800.000 (oitocentas mil) pessoas causa perplexidade. São as palavras do ex-secretário geral da ONU: Para aqueles que consideram que a maior ameaça ao futuro da ordem internacional é o uso da força na ausência de mandato do Conselho de Segurança, alguém poderia dizer: deixe o Kosovo de lado por um instante e pense em Ruanda. Imagine por um momento que, naqueles dias e horas difíceis que levaram ao genocídio, houvesse uma coalizão de Estados pronta e disposta a agir em defesa da população tutsi, porém o Conselho tivesse se recusado ou demorado a dar o sinal verde. Deveria tal coalizão ter ficado inerte enquanto o horror acontecia? (BÖHLKE , 2011, p.313) Não por outra razão que no ano seguinte instaurou-se uma Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS), com o fito de se estabelecer novas fórmulas de respostas às violações de direitos humanos e direito internacional humanitário. Ao cabo das rodadas, fora emitido um relatório finalresponsável por formatar uma nova perspectiva para as intervenções humanitárias: criou-se uma nova categoria denominada Responsabilidade de Proteger. A Responsabilidade de Proteger tem por base a conceituação de soberania trazida por Kofi Annan: (...) o conceito de soberania está sendo redefinido pelas forças da globalização e da cooperação internacional. ... os Estados são instrumentos a serviço de seus povos. Portanto, a soberania estatal inclui, além de direitos (nas relações internacionais), uma série de responsabilidades dos Estados em relação aos indivíduos. (BÖHLKE , 2011, p.312) 397 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Esse é o mesmo contexto adotado pela ICISS, que define como a principal responsabilidade do Estado soberano o dever de proteger sua população. Assim, haveria no conceito de soberania uma dupla responsabilidade: internacional, relativamente às relações com os demais Estados soberanos, e no plano interno, sob o dever de respeitar a dignidade e os direitos das pessoas que estão no seu território. À luz de toda essa discussão e alterações do cenário internacional de uma nova perspectiva adotada pela ICISS, percebe-se a preocupação dos atores internacionais em definirem parâmetros e procedimentos mais claros no que tange a tutela internacional do direito humanitário, delimitando efetivamente as responsabilidades dos Estados soberanos em tutelar os direitos de seus cidadãos, impondo-lhes uma moderna faceta de soberania, bem como retirando deste panorama a presença de palavras indesejáveis na perspectiva da ordem internacional, como por exemplo, intervenção humanitária. Nesse sentido, defende Marcelo Böhlke: “o objetivo é, em última análise, buscar termo menos polêmicos, que permitisse aceitação consensual.” (2011, p. 326). Nessa linha, percebes-se que, inobstante os esforços da ICISS em desmistificar o instituto da intervenção humanitária, substituindo-o por outro, com um nome cujo efeitoé a maior aceitação pela sociedade internacional – Responsabilidade de proteger – o status quo foi mantido, não havendo uma verdadeira alteração no cenário das investidas internacionais. Seja como Intervenção Humanitária, ou Responsabilidade de Proteger, encerram as mesmas medidas bélicas, não gerando qualquer alteração no resultado prático. 5. Da antinomia entre Não-Intervenção e Intervenção Humanitária Como disposto anteriormente, há na sociedade internacional uma grande resistência em se utilizar o termo “Intervenção Humanitária” para se legitimar a ação de organismos internacionais e Estados em situações de conflitos armados em outros Estados, na defesa dos direitos humanos, principalmente pelas disposições principiológicas da Carta da ONUproibição de intervenção e proibição do uso da força e ameaça entre os Estados. O termo geraria certo constrangimento, o que levou a ICISS a determinar uma agenda com um único desiderato: estabelecer um novo modelo que atendesse os anseios da sociedade internacional. Todavia, não se vislumbra tal necessidade de alteração paradigmática com tanta profundidade somente em razão da incompatibilidade entre os institutos. Nessa ótica, o 398 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional operador do direito, perceberia, em uma simples observação dos institutos, que os fatores clássicos para a resolução de antinomias aparentes não resolveriam a situação, senão vejamos: Critério Cronológico: trata-se da prevalência da norma posterior, em caso de antinomia entre duas normas criadas ou vigoradas em dois momentos cronológicos distintos. Designa-se a este princípio o termo em latim lex posterior derogat legi priori, ou seja, lei posterior derroga leis anteriores. Não é o caso, pois ambos os institutos estão consagrados pela carta da ONU. Critério Hierárquico: consiste na preferência dada, em caso de antinomia, a uma norma portadora de status hierarquicamente superior ao seu par antinômico. Também não é o caso, pois não há hierarquia normativa das disposições constantes da carta da ONU. Critério Específico: em caso de normas incongruentes, uma geral, e uma especial, prevalece a especial. Do mesmo modo que os critérios anteriores, não é aplicável tendo em vista a idêntica conformação jurídica. Assim, após uma profunda busca para se compatibilizar a coexistência da proibição de intervenção com a intervenção humanitária, tendo em vista pertencerem ao mesmo arcabouço jurídico, buscou-se na teoria da tipicidade conglobante do Professor Eugênio Raúl Zaffaroni, a solução para o problema. À primeira vista, tal analogia com o direito penal pode causar estranheza, mas há grande compatibilidade entre os institutos, precipuamente no que tange a estabilidade do ordenamento jurídico e a convivência normativa dos institutos. O ordenamento normativo ao qual faz parte a Carta da ONU tem que ser harmônico e coerente, do contrário imperaria o caos. Não é possível que a Carta proíba condutas que ela mesma determina em algumas situações, eis que repercutiria na sua própria inconsistência. Se assim proceder, não se estará diante de um ordenamento normativo, mas sim de um amontoado de normas em gravidade zero. Nessa perspectiva, Eugênio Raúl Zaffaroni valeu-se, para dar sustentáculo à sua teoria, do instituto do estrito cumprimento do dever legal. Este, inicialmente pertencente à categoria jurídico-penal da antijuridicidade, ou seja, segundo elemento da teoria analítica do crime, formada pela conjugação do fato típico, com a antijuridicidade e, finalmente com a culpabilidade (ZAFFARONI , 2011, 343). Zaffaroni, acertadamente, deslocou o instituto da antijuridicidade para o interior do fato típico, à justificativa de que, como não haveria 399 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional contrariedade entre a conduta do agente e o ordenamento jurídico, não haveria justificação para a instauração de eventual procedimento investigatório sobre o fato, vez que, se permanecesse dentro da estrutura da antijuridicidade, o fato, apesar de eventualmente não antijurídico, seria, ab initio, típico, encetando a investigação criminal. Exemplificando: quando o policial prende em flagrante delito um agente e usa de violência para efetuar a prisão, sua conduta seria inicialmente típica para o direito penal, porém justificável. Assim, o policial agiu em estrito cumprimento do dever, mas como sua conduta é imposta pelo Estado, tendo este um dever de agir, não se pode falar em cometimento do delito lesão corporal com excludente de ilicitude, não restando outro resultado senão a atipicidade da conduta. Não há, pois, conflito no ordenamento jurídico, sendo apenas uma antinomia aparente. Aplica-se uma correção ao juízo de tipicidade. Assim ensina Eugênio Raúl Zaffaroni: Daí que a tipicidade penal não se reduz à tipicidade legal (isto é, à adequação à formulação legal), e sim que deva evidenciar uma verdadeira proibição com relevância penal, para o que é necessário que esteja proibida à luz da consideração conglobada da norma. Isto significa que a tipicidade penal implica a tipicidade legal corrigida pela tipicidade conglobante, que pode reduzir o âmbito de proibição aparente, que surge da consideração isolada da tipicidade legal. (ZAFFARONI , 2011, 479). Relativamente ao direito internacional, como os tratados são uma de suas fontes, há, na doutrina da tipicidade conglobante, hipótese de aplicação da teoria especificamente aos acordos firmados pelas partes. Como sinônimo de tratados, pactos, protocolos e demais nomenclaturas, os acordos são formas, no direito penal contemporâneo, de aquiescência que configuram atipicidade das condutas relativas à proposição. Explica-se: o acordo é o âmbito de liberdade ao exercício de um direito. Assim, seu titular pode, desde que tenha capacidade para firmar seu consentimento, restringir o âmbito de proteção da norma em seu direito disponível e redutível. Assim, os ensinamentos de Eugênio Raúl Zaffaroni: O acordo é precisamente o exercício da disponibilidade que o bem jurídico implica, de modo que, por maior que seja a aparência de tipicidade que tenha a conduta, jamais o tipo pode proibir uma conduta para a qual o titular do bem jurídico tenha prestado sua conformidade. (ZAFFARONI, 2011, p.482) Mutatis mutandis, como os países signatários da Carta da ONU tinham capacidade e liberdade em consentir com os termos que foram reduzidos ao corpo legal daquela, não há de se falar em contrariedade da norma intervenção humanitária e vedação à intervenção, sendo 400 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional apenas uma aparente antinomia, resolvida facilmente pela estabilidade do ordenamento jurídico da Carta, aplicando-se a teoria da tipicidade conglobante, no que couber, para se corrigir discussão acerca da possibilidade de intervenção, restando, se for o caso, apenas uma inadequação terminológica, que evidenciaria apenas um receio à luz da nomenclatura consagrada. 6. Considerações Finais Ante as considerações tecidas no presente trabalho, é possível verificar, desde a elaboração da Carta da ONU uma dicotomia entre Intervenção Humanitária e proibição de intervenção, potencializada pela vedação do uso da força pelos Estados soberanos, bem como dos organismos internacionais. Não resta dúvida que um dos maiores anseios dos organismos internacionais perpassa pelo estabelecimento de procedimentos e mecanismos que legitimem a intervenção dos organismos internacionais com o fito de proteger e tutelar os direitos humanos, extensivos, aliás, para o próprio Estado, que por sua vez, tem o dever precípuo de observar e garantir a proteção desses direitos em seus territórios. Daí falar em Intervenções ou Responsabilidade de Proteger. Esta tendente a romper com a idéia de ilicitude, ou mesmo contrariedade com os princípios que fundamental o arcabouço jurídico internacional. Desnecessário, eis que em realidade trata-se de nomenclaturas distintas para um mesmo objetivo, qual seja, tutela de direitos. Nesse sentido, apoiado nos ensinamentos de Zaffaroni, autor da teoria da tipicidade conglobante, percebe-se que essa dicotomia levantada a respeito da vedação à intervenção e intervenção humanitária não deve prosperar, pois o sistema é um todo harmônico, não havendo apenas aparência antinômica, uma vez que o que uma norma fomenta, dentro do sistema, outra não proíbe, não sendo caso de conflito, mas de verdadeira hipótese de aplicação da norma ou não. Em um episódio em que se vislumbrar o conflito entre as duas possibilidades, um dos institutos ou será completamente aplicável ou não. Desse modo, ou o episódio da vida será integralmente de não intervenção internacional - por não se constatar situação de violação de direitos humanos, ou nos demais casos do Capítulo VII da carta da ONU ou em caso de legítima defesa -, ou estar-se-á diante de uma hipótese em que a intervenção internacional será 401 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional legítima, independente de sua nomenclatura: Intervenção Humanitária ou Responsabilidade de Proteger. Referências ANNAN, Kofi. The two concepts of sovereignty. The Economist, London, v. 352, n. 8137, 18 Sept. 1999. BASCH, Fernando, A Eficácia do Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos: Uma Abordagem Quantitativa sobre seu Funcionamento e sobre o Cumprimento De suas Decisões. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos. v. 7. n. 12. São Paulo: Conectas. jun. 2010. BAZAN, Victor. 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Sustenta a importância de uma resposta enfática do Poder Público ao crime organizado, através de uma tutela penal eficiente, que não se encaminhe para uma expansão desenfreada do Direito Penal, mas que revisite seus institutos em prol de resultados mais satisfatórios. Discorre sobre a necessidade da cooperação internacional no combate aos crimes financeiros, sobretudo os delitos de evasão de divisas e lavagem de dinheiro, por repercutirem fortemente na fragilização das organizações criminosas, dificultando-lhes o financiamento de suas atividades ilícitas. Destaca que o Direito Penal requer uma terceira e uma quarta velocidades voltadas para a proteção de uma ordem internacional segura para relações políticas, sociais e mercantis, hoje fortemente ameaçadas pelas organizações criminosas. Afirma que, nesse contexto, o princípio da complementaridade deve ser observado, pois desempenha um importante papel para definir os limites da jurisdição pública internacional, preservando a soberania particular de cada Estado. PALAVRAS-CHAVE: Cooperação Jurídica Internacional; Crime Organizado Transnacional; Ordem Financeira. ABSTRACT Features a constitutional approach of Brazilian financial order. Starts with a brief analysis of the guiding principles of the National Financial System. Discusses the penal protection of the National Financial System, highlighting the offenses of money laundering and tax evasion, the most recurring and potentially offensive, linking them to organized crime. Supports the 1 Advogado e Consultor do Estado do Rio Grande do Norte, possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN (2010) e, atualmente, é discente do Mestrado em Direito Constitucional e da Graduação em Gestão de Políticas Públicas, ambos os cursos oferecidos pela UFRN. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Análise Econômica do Direito e Direito Administrativo. E-mail: <[email protected]>. 2 Especialista e Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Bolsista do Programa Petrobras de Formação de Recursos Humanos PRH-ANP nº 36. E-mail: <[email protected]>. 405 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional importance of an emphatic response of the government to organized crime, through an effective penal tutelage that does not refer to an unchecked expansion of criminal law, but revisits its institutes towards more satisfactory results. Discusses the need for international cooperation in fighting financial crimes, especially crimes of tax evasion and money laundering, for they reverberate strongly in the weakening of organized crime, hindering the financing of their illicit activities. Highlights that criminal law requires a third and fourth gear aimed at the protection of an international order to secure political, social and mercantile relations, strongly threatened by criminal organizations. States that, within this context, the principle of complementarity should be observed as it plays an important role in defining the limits of public international jurisdiction, preserving the sovereignty of each particular state. KEYWORDS: International Juridical Cooperation; Transnational Organized Crime; Financial Order. 1. INTRODUÇÃO A tutela da ordem financeira no ordenamento jurídico brasileiro é estruturada desde a Constituição Federal até um complexo sistema normativo infraconstitucional, que contempla uma gama de prescrições normativas administrativas e penais. Com relação à tutela penal, releva-se a importância da proteção do Sistema Financeiro Nacional (SFN), com destaque para os delitos de lavagem de dinheiro e evasão de divisas, mais recorrentes e de maior potencial ofensivo, sobretudo por estarem normalmente associados ao crime organizado. As organizações criminosas costumam valer-se de mecanismos de lavagem de capital para financiar suas atividades ilícitas fins, razão pela qual as políticas de repressão a tais estruturas obtêm maior sucesso ao buscar identificar e combater essas manobras financeiras, muitas vezes realizadas em caráter transnacional. Definida a problemática em análise, o presente trabalho será desenvolvido utilizando-se do método dedutivo-analítico, por meio de pesquisa bibliográfica em obras acadêmicas consagradas e de vanguarda, tanto de repercussão nacional como internacional. No tocante aos objetivos, propõe-se a realizar, uma análise conjunta dos crimes financeiros e da criminalidade organizada, inseridos dentro de um contexto globalizado, onde os mecanismos de combate domésticos são ineficientes, o que torna imprescindível a Cooperação Jurídica Internacional. Para tanto, inicialmente serão empreendidas algumas considerações gerais acerca da ordem financeira brasileira a fim de trabalhar a tutela penal do SFN. Em seguida, proceder-seá a uma interseção entre os crimes de evasão de divisas, lavagem de dinheiro e quadrilha ou 406 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional bando, destacando-se as inovações trazidas pelas Leis Federais n.º 9.034, de 3 de maio de 1995, e n.º 9.613, de 3 de março de 1998. Em um momento posterior, o trabalho passará a abordar a importância da cooperação técnico-jurídica internacional no combate aos crimes financeiros praticados por organizações criminosas transnacionais, mediante um estudo sintético de tratados e compromissos bilaterais e multilaterais firmados pelo Estado Brasileiro, ao passo que suscita a inevitabilidade da migração de uma parcela do sistema cooperativo penal (Direito Internacional Privado) para a internacionalização do Direito Penal propriamente dita, por intermédio de organismos internacionais de jurisdição criminal mais ampla (Direito Internacional Público). Por fim, os princípios da complementaridade e soberania serão apontados no contexto do Estatuto de Roma a fim de se chegar ao debate sobre a necessidade de um Direito Penal de terceira ou até de quarta velocidade que contemple uma estrutura de jurisdição internacional legitimada para processar e julgar organizações criminosas transnacionais, sobretudo no âmbito do sistema financeiro. 2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A ORDEM FINANCEIRA BRASILEIRA A Constituição de 1988 inovou ao trazer capítulo destinado exclusivamente a disciplinar o Sistema Financeiro Nacional (SFN), ao passo que as cartas políticas anteriores relegaram a matéria à legislação infraconstitucional tão somente. O novo contexto jurídico-constitucional confere demasiada importância às atividades econômicas e financeiras próprias do segundo setor (Mercado) por atribuir-lhes uma estrutura de comandos constitucionais norteadores da intervenção do Estado em tais searas, o que enseja uma ordem favorável ao desenvolvimento social e econômico do país de forma harmônica. Não obstante, NASCIMENTO (1999, p. 139), sustenta que “na Constituição estão explicitados apenas a diretriz e os princípios que devem nortear o legislador na construção do novo sistema (...)”. Mais adiante, complementa: Mesmo assim, a Constituição da República dedica capítulo específico ao sistema financeiro nacional, que contempla as instituições que participam diretamente das operações realizadas nos mercados financeiros e de capitais, cumprindo destacar dentre elas: a) captação, intermediação ou custódia de ativos financeiros ou de divisas; b) prestação de garantias de que cuida o item anterior; c) criação de meios 407 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional de pagamento ou regulação, fiscalização e controle das atividades aqui referidas. (NASCIMENTO, 1999, p. 139) Trata-se do Título VII da Constituição da República, o qual estabelece princípios e regras que regem a Ordem Econômica e Financeira do Estado brasileiro, cabendo ao correspondente Capítulo IV, precisamente no art. 192 (Emenda Constitucional n.º 40, de 2003), dispor sobre o SFN. Segue o dispositivo: Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram. (BRASIL, 2011). Depreende-se dessa estrutura normativa os princípios constitucionais do (i) desenvolvimento equilibrado do País, da (ii) supremacia dos interesses da coletividade e dos (iii) limites à participação do capital estrangeiro,3 os quais funcionam como os fins e as arestas a ser observados pelos órgãos e entidades que compõem o SFN.4 3. TUTELA PENAL DA ORDEM FINANCEIRA A própria Constituição Federal prescreve a necessidade de lei para dispor sobre a responsabilização ampla das pessoas jurídicas integrantes do SFN, bem como de seus dirigentes, com relação aos atos danosos contra a ordem financeira e econômica do País. Trata-se do art. 173, § 5º, cujo teor firma pressuposto para os atos normativos infraconstitucionais que tipificam condutas delituosas contra tal bem jurídico difuso: Art. 173. (...) (...) § 5º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. (BRASIL, 2011). 3 “São importantes o sentido e os objetivos que a Constituição imputou ao Sistema Financeiro Nacional, ao estabelecer que ele será “estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividades’, de sorte que as instituições financeiras privadas ficam, assim, também, e de modo muito preciso, vinculadas ao cumprimento de funções sociais bem caracterizadas”. (SILVA, 2008, p. 754) 4 Segundo NASCIMENTO (1999, p. 141), “o Sistema Financeiro Nacional é integrado pelos Órgãos, a saber: a) Conselho Monetário Nacional; b) Banco Central do Brasil; c) Banco do Brasil S/A; d) Banco de Desenvolvimento Econômico e Social; e) demais instituições financeiras públicas e privadas”. 408 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional Para ARAÚJO JÚNIOR (1995, p. 144-145), os crimes contra a ordem financeira geralmente enquadram-se em um dos seguintes perfis: (i) crimes contra a organização do sistema financeiro; (ii) crimes contra a regularidade dos instrumentos financeiros; (iii) crimes contra a confiança no sistema financeiro; e (iv) crimes contra a segurança dos negócios financeiros. Os delitos financeiros, segundo ARAÚJO JÚNIOR (1995, p. 175-178), “estão incluídos no Direito Penal Econômico, que é o ramo do Direito Penal que se destina a sancionar com uma pena as graves violações à ordem econômica”. 3.1. CRIMES EM ESPÉCIE CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO A legislação infraconstitucional contém uma série de diplomas que tutelam criminalmente a segurança do sistema financeiro como bem jurídico difuso. Consubstanciam um micro-sistema normativo penal que permeia atos normativos de caráter processual penal, bem como tratados internacionais incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro. Nessa perspectiva, deve-se apontar os seguintes diplomas que se encaixam na r