- Direito Processual do Trabalho, a Ordem Econômica e

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Coleção CONPEDI/UNICURITIBA
Vol. 15
Organizadores
Prof. Dr. Orides Mezzaroba
Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa
Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira
Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr
Coordenadores
Prof. Dr. Wagner Menezes
Profª. Drª. Valesca Raizer Borges Moschen
Prof. Dr. Luiz Alexandre Carta Winter
DIREITO INTERNACIONAL
2014
2014
Curitiba
Curitiba
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
D597
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Direito internacional
Coleção Conpedi/Unicuritiba.
Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano
Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira
/ Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.
Coordenadores : Wagner Menezes / Valesca Raizer
Borges Moschen / Luiz Alexandre Carta Winter.
Título independente - Curitiba - PR . : vol.15 - 1ª ed.
Clássica Editora, 2014.
500p. :
ISBN 978-85-8433-003-4
1. Direitos humanos - econômicos. 2. Normas – meio
ambiente.
I. Título.
CDD 341.16
EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira
Alexandre Walmott Borges
Daniel Ferreira
Elizabeth Accioly
Everton Gonçalves
Fernando Knoerr
Francisco Cardozo de Oliveira
Francisval Mendes
Ilton Garcia da Costa
Ivan Motta
Ivo Dantas
Jonathan Barros Vita
José Edmilson Lima
Juliana Cristina Busnardo de Araujo
Lafayete Pozzoli
Leonardo Rabelo
Lívia Gaigher Bósio Campello
Lucimeiry Galvão
Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Capa: Editora Clássica
Luiz Eduardo Gunther
Luisa Moura
Mara Darcanchy
Massako Shirai
Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Nilson Araújo de Souza
Norma Padilha
Paulo Ricardo Opuszka
Roberto Genofre
Salim Reis
Valesca Raizer Borges Moschen
Vanessa Caporlingua
Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Vladmir Silveira
Wagner Ginotti
Wagner Menezes
Willians Franklin Lira dos Santos
XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA
Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR
MEMBROS DA DIRETORIA
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente
Cesar Augusto de Castro Fiuza
Vice-Presidente
Aires José Rover
Secretário Executivo
Gina Vidal Marcílio Pompeu
Secretário-Adjunto
Conselho Fiscal
Valesca Borges Raizer Moschen
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
João Marcelo Assafim
Antonio Carlos Diniz Murta (suplente)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)
Representante Discente
Ilton Norberto Robl Filho (titular)
Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)
Colaboradores
Elisangela Pruencio
Graduanda em Administração - Faculdade Decisão
Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira
Graduada em Administração - UFSC
Rafaela Goulart de Andrade
Graduanda em Ciências da Computação – UFSC
Diagramador
Marcus Souza Rodrigues
Sumário
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................
14
A FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO (Alexandre Cardeal de Oliveira Arneiro)
16
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
17
CONCEITUAÇÃO DO DIP ...........................................................................................................................
18
A EVOLUÇÃO DO DIP .................................................................................................................................
20
OS SUBSISTEMAS EM DIP .........................................................................................................................
25
O FENÔMENO DA FRAGMENTAÇÃO DO DIP ...........................................................................................
26
CONFLITOS DE NORMAS NO DIP ..............................................................................................................
27
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
29
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
30
A VALIDADE DA NORMA NO DIREITO INTERNACIONAL: BREVES APONTAMENTOS (Gustavo
Fernandes Meireles e Renato Barbosa de Vasconcelos) .............................................................................
33
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................................................
34
OS VÁRIOS SIGNIFICADOS DE VALIDADE DA NORMA JURÍDICA ...........................................................
35
SOBERANIA E VALIDADE DA ORDEM JURÍDICA ......................................................................................
39
LEGITIMIDADE COMO CRITÉRIO DE VALIDADE ......................................................................................
44
LEGITIMIDADE E EFICÁCIA NO DIREITO INTERNACIONAL .....................................................................
46
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
53
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
54
UMA NOVA ORDEM JURÍDICA A PARTIR DA MUNDIALIZAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS COMO
REFLEXO DA SOCIEDADE DO RISCO – O IMPULSO PARA UM DIREITO TRANSNACIONAL E A
TRANSFIGURAÇÃO DA SOBERANIA (Adriana Maria Gomes de Souza Spengler) ....................................
57
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
58
A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA COMO MUDANÇA DE PARADIGMA: A SOCIEDADE GLOBAL DE
RISCOS DE ULRICH BECK ...........................................................................................................................
59
A INTERFACE ENTRE A SOCIEDADE DO RISCO E A IDÉIA DE SOBERANIA ..............................................
62
UMA NOVA ORDEM JURÍDICA MUNDIAL NA PERSPECTIVA DE JULLIE ALLARD E ANTONIE GARAPON
COMO RESPOSTA À SOCIEDADE DO RISCO .............................................................................................
66
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
69
BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................
70
AS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS E O PAPEL DO CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES
UNIDAS DIANTE DA CONFIGURAÇÃO COSMOPOLITA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS (Vanessa
Oliveira Batista e Daniele Lovatte Maia) ......................................................................................................
72
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
73
A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA COMUNIDADE INTERNACIONAL E O COSMOPOLITISMO .....................
74
A INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS E O PAPEL DO CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS
79
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
89
BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................
90
A NATUREZA JURÍDICA DAS DECISÕES DA ASSEMBLEIA GERAL E DO CONSELHO DE SEGURANÇA
DA ONU: A COEXISTÊNCIA ENTRE A OPINIO JURIS E O JUS COGENS (Luísa Cruz Lobato e Rafaela
Teixeira Neves) ............................................................................................................................................
93
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
94
A ESTRUTURA DA ONU .............................................................................................................................
95
A ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS ..........................................................................................
96
A NATUREZA JURÍDICA E OS EFEITOS DAS RESOLUÇÕES DA ASSEMBLEIA GERAL ...............................
97
O CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU ...................................................................................................
103
O JUS COGENS E AS DECISÕES DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU .............................................
104
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
109
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
111
O DIREITO INTERNACIONAL E AS ARMAS CONVENCIONAIS: DESAFIOS DE REGULAMENTAÇÃO
(Rodrigo Alves Pinto Ruggio) .......................................................................................................................
113
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
114
A REGULAMENTAÇÃO DAS ARMAS CONVENCIONAIS – AVANÇOS E DESAFIOS ...................................
117
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
127
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
128
A PLURALIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL SOB A PERSPECTIVA DO TRIBUNAL
INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR: O CASO ARA LIBERTAD (Paula Ritzmann Torres e Vivian
Daniele Rocha Gabriel) ...............................................................................................................................
130
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
131
DO CASO ARA LIBERTAD E SEUS ANTECEDENTES ...................................................................................
132
O CASO ARA LIBERTAD PERTANTE O TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR .........................
138
O CASO ARA LIBERTAD COMO LABORATÓRIO PARA A SUPERAÇÃO DA FRAGMENTAÇÃO DO
DIREITO INTERNACIONAL ........................................................................................................................
146
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
154
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
155
REGIMES INTERNACIONAIS E SOFT LAW: UMA ANÁLISE A PARTIR DA ORGANIZAÇÃO DO
TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA (Carla Cristina Alves Torquato e Erivaldo Cavalcanti e Silva
Filho) ...........................................................................................................................................................
159
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
160
REGIME INTERNACIONAL ........................................................................................................................
160
TEORIAS SOBRE A HEGEMONIA ...............................................................................................................
163
COOPERAÇÃO: SERÁ POSSÍVEL? ..............................................................................................................
164
O TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA ...........................................................................................
166
POSSIBILIDADES DO ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO DENTRO DO TRATADO DE
COOPERAÇÃO AMAZÔNICA .....................................................................................................................
171
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
173
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
174
A POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA TRANSFRONTEIRIÇA E O DIREITO INTERNACIONAL AMBIENTAL
(Adriano da Silva Felix) ..........................................................................................................................
177
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
177
A POLUIÇÃO DO AR E A PROTEÇÃO DA ATMOSFERA ..............................................................................
180
TEORIA GERAL DA PROTEÇÃO DA ATMOSFERA NO DIREITO INTERNACIONAL AMBIENTAL .................
182
A POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA ALÉM DAS FRONTEIRAS ............................................................................
190
AS PRINCIPAIS FONTES INTERNACIONAIS SOBRE POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA TRANSFRONTEIRIÇA ...
193
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
203
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
204
A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA BIODIVERSIDADE E SUAS ESPECIFICIDADES: DA
INTERNACIONALIZAÇÃO A UM DIREITO COMUM DA HUMANIDADE PELOS INSTRUMENTOS
HARD E SOFT LAW (Luize Calvi Menegassi Castro) ....................................................................................
207
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
208
DA PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA BIODIVERSIDADE PELOS INSTRUMENTOS HARD LAW .................
210
A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA BIODIVERSIDADE E SUAS ESPECIFICIDADES DESTINADA A UM
DIREITO COMUM PELOS INSTRUMENTOS SOFT LAW ............................................................................
221
CONCLUSÃO .............................................................................................................................................
231
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
234
SOBERANIA E DIREITOS HUMANOS: UMA APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA (Ana Paula Morais Galvão
e Yara Maria Pereira Gurgel) .......................................................................................................................
237
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
238
A SOBERANIA COMO ELEMENTO DO ESTADO ........................................................................................
239
DA EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE SOBERANIA ........................................................................................
240
RELATIVIZAÇÃO DA SOBERANIA PELA NECESSIDADE DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS ........
243
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
248
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
250
ASPECTOS DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS SOB O ENFOQUE DO DANO
AMBIENTAL (Rosane Sandoval Gonçalves Marini) ....................................................................................
254
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
255
DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS EM GERAL ...................................................
256
DOS SISTEMAS DE RESPONSABILIDADE DOS ESTADOS NO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO
AMBIENTE – EXCLUDENTES DE RESPOSNSABILIDADE E MEIOS DE REPARAÇÃO .................................
269
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
280
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
282
OS REFUGIADOS AMBIENTAIS E O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO NA ESFERA DO DIREITO
INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE (Diogo Andreola Serraglio e Andréia Mendonça Agostini) .........
284
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
285
A TUTELA DOS REFUGIADOS PELA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA .....................................................
285
UMA NOVA CATEGORIA DE REFUGIADOS: OS REFUGIADOS AMBIENTAIS ...........................................
289
O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO NA ESFERA DO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE .......
295
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
303
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
304
O CASO DAS PAPELEIRAS: A (IM)POSSIBILIDADE DO MEIO AMBIENTE COMO TEMA PRINCIPAL
DO LITÍGIO ARGENTINA-URUGUAI (Tatiana de Almeida Freitas R. Cardoso) ..........................................
307
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
308
O MEIO AMBIENTE COMO DISCURSO .....................................................................................................
310
E SE O MEIO AMBIENTE FOSSE UMA REALIDADE? .................................................................................
320
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
328
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
330
A LEI DE ANISTIA E O CASO ARAGUAIA: ENTRE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (Maurício Gabriele) .........................................................
335
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
335
TEORIA DO ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO .........................................................................
342
O JULGAMENTO DA CIDH .........................................................................................................................
344
O JULGAMENTO DO STF ...........................................................................................................................
347
ENTRE O STF E A CIDH ...............................................................................................................................
349
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
352
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
353
ENTRE COMPROMISSOS CONSTITUCIONAIS E VAZIOS NORMATIVOS: UMA ANÁLISE DA
INCORPORAÇÃO DA CONVENÇÃO N.° 169 DA OIT NO DIREITO BRASILEIRO E A PROTEÇÃO DOS
POVOS INDÍGENAS E TRIBAIS (Tatyana Scheila Friedrich e Rafael Soares Leite) ......................................
358
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
359
A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988: DO MODELO INTEGRACIONISTA PARA UMA PROPOSTA
INTERCULTURAL .......................................................................................................................................
360
A OIT E A PROTEÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS E TRIBAIS .......................................................................
365
DIÁLOGOS ENTRE O DIREITO BRASILEIRO E A CONVENÇÃO N.° 169 DA OIT ........................................
372
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
383
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
384
INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA OU RESPONSABILIDADE DE PROTEGER: COMO PARAMETRIZAR
TAIS CONCEITOS FRENTE AOS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS
(Guilherme Nogueira Soares e Renata Mantovani de Lima) ......................................................................
387
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
388
OS PARADIGMAS CLÁSSICOS DE CONVIVÊNCIA INTERNACIONAL E SUA INFLUÊNCIA NA CONFECÇÃO
DA CARTA DA ONU ....................................................................................................................
389
DO PRINCÍPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO ...................................................................................................
393
INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA OU RESPONSABILIDADE DE PROTEGER? .............................................
395
DA ANTINOMIA ENTRE NÃO-INTERVENÇÃO E INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA ....................................
398
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
401
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
402
CRIMES FINANCEIROS E A CRIMINALIDADE ORGANIZADA TRANSNACIONAL: CONSIDERAÇÕES
SOBRE A EXPANSÃO INTERNACIONAL DO DIREITO PENAL (Fillipe Azevedo Rodrigues e Kathy Aline
de Medeiros Silva) ......................................................................................................................................
405
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
406
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A ORDEM FINANCEIRA BRASILEIRA ................................................
407
TUTELA PENAL DA ORDEM FINANCEIRA .................................................................................................
408
O FENÔMENO DA GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA E A EXPANSÃO INTERNACIONAL DO DIREITO
PENAL ........................................................................................................................................................
415
COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL E O PRINCÍPIO DA COMPLEMENTARIDADE DO DIREITO
PENAL ........................................................................................................................................................
418
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
423
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
424
MERCOSUL E ACORDOS ENTRE BLOCOS: PERSPECTIVAS E NOVAS CLÁUSULAS EM ACORDOS DE
COMÉRCIO (Michele Alessandra Hastreiter e Luís Alexandre Carta Winter) ..............................................
428
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
429
PANORAMA ATUAL DA INTEGRAÇÃO REGIONAL ...................................................................................
430
INTEGRAÇÃO NO MERCOSUL E TENTATIVAS DE ACORDO COM A UNIÃO EUROPEIA ...............................
432
NOVOS TEMAS EM ACORDOS DE COMÉRCIO E PERSPECTIVAS PARA OS ACORDOS ENTRE BLOCOS .
437
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
442
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
444
O NOVO REGIME AUTOMOTIVO BRASILEIRO E O ACORDO SOBRE SUBSÍDIOS E MEDIDAS
COMPENSATÓRIAS DA OMC (Juliana Marteli Fais Feriato) ......................................................................
446
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
447
O NOVO REGIME AUTOMOTIVO BRASILEIRO: PROGRAMA INOVAR-AUTO .........................................
448
INCENTIVOS FISCAIS: CONCEITO E MODALIDADES ................................................................................
450
SUBSÍDIOS NA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO .....................................................................
453
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
462
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
464
NATUREZA JURÍDICA DA SOBREESTADIA NO DIREITO BRASILEIRO (Camila Schiffler Nobell Gabardo
e Guilherme Dorigo Tomedi) .......................................................................................................................
468
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
469
NATUREZA JURÍDICA DA SOBREESTADIA ................................................................................................
470
A NATUREZA JURÍDICA DA SOBREESTADIA NO DIREITO FRANCÊS ........................................................
483
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
485
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
487
O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO ENTRE OS POVOS EM TEMPOS DE CRISE ECONÔMICA. O
MECANISMO EUROPEU DE ESTABILIZAÇÃO E O POSICIONAMENTO DA CORTE CONSTITUCIONAL
FEDERAL ALEMÃ – REFLEXOS NA UNIÃO EUROPEIA E NO BRASIL (Daniel Leão Hitzschky Madeira) ..
491
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
491
BREVE APORTE SOBRE A CONSOLIDAÇÃO DA UNIÃO EUROPEIA E O DIREITO COMUNITÁRIO
EUROPEU ...................................................................................................................................................
493
A CRISE ECONÔMICA GLOBAL E SUA INCIDÊNCIA SOBRE O CONTINENTE EUROPEU ...............................
499
O MECANISMO EUROPEU DE ESTABILIZAÇÃO E O POSICIONAMENTO DO TRIBUNAL
CONSTITUCIONAL DA ALEMANHA ..........................................................................................................
501
A COOPERAÇÃO ENTRE OS POVOS COMO PRINCÍPIO DE POLÍTICA INTERNACIONAL DO ESTADO
BRASILEIRO ...............................................................................................................................................
504
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
506
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
507
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Caríssimo(a) Associado(a),
Apresento o livro do Grupo de Trabalho Direito Internacional, do XXII Encontro
Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI),
realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias 29 de maio e 1º
de junho de 2013.
O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente
de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos
da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma
reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,
nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela
tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do
processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos
parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN
do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da
Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro
Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.
Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,
tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da
produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no
âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a
mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não
apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as
especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.
Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a
enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)
aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a
todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiramnos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores
11
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido
mais difícil.
Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada
em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para
seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e
que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto
para eventos.
O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso
comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de
2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão
sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que
inserirem seus dados.
Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os
programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor
fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço
no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,
mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da
segunda versão, disponível em 2014.
Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de
programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará
importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,
além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as
dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do
Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube
conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de
elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será
fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.
12
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III
Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o
estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores
do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo
livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras
parcerias e editais para a área do Direito.
Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de
Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do
UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.
Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que
agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada
logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.
Curitiba, inverno de 2013.
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente do CONPEDI
13
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Apresentação
A coletânea dos artigos do GT de direito internacional do XXII Encontro Nacional do
CONPEDI, trabalhou com temas atuais e importantes no cenário das relações humanas. Os
artigos refletem parte importante do que é pesquisado na academia, no âmbito do direito
internacional como estado da arte. Por uma questão didática, estes foram divididos em quatro
grandes eixos temáticos, a saber: O primeiro trabalhando o direito internacional como norma,
compreendendo os artigos: A FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL
PÚBLICO; A VALIDADE DA NORMA NO DIREITO INTERNACIONAL: BREVES
APONTAMENTOS; UMA NOVA ORDEM JURÍDICA A PARTIR DA MUNDIALIZAÇÃO
DAS DECISÕES JUDICIAIS COMO REFLEXO DA SOCIEDADE DO RISCO – O
IMPULSO PARA UM DIREITO TRANSNACIONAL E A TRANSFIGURAÇÃO DA
SOBERANIA; AS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS E O PAPEL DO CONSELHO DE
SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS DIANTE DA CONFIGURAÇÃO COSMOPOLITA
DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS; A NATUREZA JURÍDICA DAS DECISÕES DA
ASSEMBLEIA
GERAL
E
DO
CONSELHO
DE
SEGURANÇA
DA
ONU:
A
COEXISTÊNCIA ENTRE A OPINIO JURIS E O JUS COGENS; O DIREITO
INTERNACIONAL
E
AS
ARMAS
CONVENCIONAIS:
DESAFIOS
DE
REGULAMENTAÇÃO; e A PLURALIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL SOB A
PERSPECTIVA DO TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR: O CASO
ARA LIBERTAD; REGIMES INTERNACIONAIS E SOFT LAW: UMA ANÁLISE A
PARTIR DA ORGANIZAÇÃO DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA. O
segundo eixo, trabalha o direito internacional do meio ambiente, compreendendo os artigos: A
POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA TRANSFRONTEIRIÇA E O DIREITO INTERNACIONAL
AMBIENTAL; A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA BIODIVERSIDADE E SUAS
ESPECIFICIDADES: DA INTERNACIONALIZAÇÃO A UM DIREITO COMUM DA
HUMANIDADE PELOS INSTRUMENTOS HARD E SOFT LAW;
SOBERANIA E
DIREITOS HUMANOS: UMA APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA;
ASPECTOS DA
RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS SOB O ENFOQUE DO DANO
AMBIENTAL; OS REFUGIADOS AMBIENTAIS E O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO NA
14
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
ESFERA DO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE; O CASO DAS
PAPELEIRAS: e A (IM)POSSIBILIDADE DO MEIO AMBIENTE COMO TEMA
PRINCIPAL DO LITÍGIO ARGENTINA-URUGUAI. O terceiro eixo trabalha sobre direitos
humanos e intervenção, compreendendo os artigos: A LEI DE ANISTIA E O CASO
ARAGUAIA:
ENTRE
INTERAMERICANA
O
DE
SUPREMO
TRIBUNAL
DIREITOS
HUMANOS;
FEDERAL
ENTRE
E
A
CORTE
COMPROMISSOS
CONSTITUCIONAIS E VAZIOS NORMATIVOS: UMA ANÁLISE DA INCORPORAÇÃO
DA CONVENÇÃO N.º 169 DA OIT NO DIREITO BRASILEIRO E A PROTEÇÃO DOS
POVOS
INDÍGENAS
E
TRIBAIS;
e
INTERVENÇÃO
HUMANITÁRIA
OU
RESPONSABILIDADE DE PROTEGER: COMO PARAMETRIZAR TAIS CONCEITOS
FRENTE AOS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS.
Finalmente, o quarto eixo trabalha sobre as vertentes do direito internacional econômico,
compreendendo
os
artigos:
CRIMES
ORGANIZADA
TRANSNACIONAL:
FINANCEIROS
CONSIDERAÇÕES
E
A
SOBRE
CRIMINALIDADE
A
EXPANSÃO
INTERNACIONAL DO DIREITO PENAL; MERCOSUL E ACORDOS ENTRE BLOCOS:
PERSPECTIVAS E NOVAS CLÁUSULAS EM ACORDOS DE COMÉRCIO; O NOVO
REGIME AUTOMOTIVO BRASILEIRO E O ACORDO SOBRE SUBSÍDIOS E MEDIDAS
COMPENSATÓRIAS DA OMC;
NATUREZA JURÍDICA DA SOBREESTADIA NO
DIREITO BRASILEIRO; e O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO ENTRE OS POVOS EM
TEMPOS DE CRISE ECONÔMICA. O MECANISMO EUROPEU DE ESTABILIZAÇÃO E
O POSICIONAMENTO DA CORTE CONSTITUCIONAL FEDERAL ALEMÃ –
REFLEXOS NA UNIÃO EUROPEIA E NO BRASIL.
Boa leitura.
Coordenadoras do Grupo de Trabalho
Professor Doutor Wagner Menezes – USP
Professora Doutora Valesca Raizer Borges Moschen – UFES
Professor Doutor Luiz Alexandre Carta Winter – PUC PR
15
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO
FRAGMENTATION OF INTERNATIONAL LAW
Alexandre Cardeal de Oliveira Arneiro1
RESUMO
A recente proliferação de organizações internacionais implicou na existência de uma
pluralidade de regimes jurídicos, situação que é denominada de fragmentação do Direito
Internacional Público (DIP). Este artigo tem por objetivo situar o fenômeno da fragmentação
do DIP historicamente, problematizá-lo e conceituá-lo. O método adotado foi dedutivo e
dialético, o que permitiu o diálogo entre referências das literaturas nacional e estrangeira. O
DIP passou por uma mudança de paradigma na segunda metade do século XX: a coexistência
cedeu lugar à cooperação, uma vez que as negociações internacionais se tornaram mais
frequentes, e as diversas questões precisavam ser tratadas de modo específico pela
comunidade internacional, dando lugar à difusão das organizações internacionais. A inerente
falta de unidade do DIP se tornou um problema ainda maior, chamado fragmentação do DIP.
A conclusão é que as teorias da fragmentação do DIP merecem acolhida, a fim de que a
Academia proporcione meios de diálogo entre os subsistemas, conferindo ao DIP maior
coerência e, em última instância, a promoção da cooperação internacional.
PALAVRAS-CHAVE: Fragmentação do Direito Internacional Público; Direito Internacional
Público; Subsistemas de Direito Internacional Público.
ABSTRACT
Recent proliferation of international organizations has given rise to a plurality of legal
regimes, and this situation is entitled as fragmentation of Public International Law. This paper
to situate the phenomenon of fragmentation of Public International Law in history, to analyse
it and to conceptualise it. The method adopted was deductive and dialectic, and this permitted
the dialogue between references of national and foreign literature in Public International Law.
Public International Law had a change of paradigm in the second half of 20 th century:
coexistence was succeeded by cooperation, because international negotiations became more
frequent and plenty of issues needed to be specifically tackled by international community,
yielding dissemination of international organizations. The inherent lack of unity in Public
International Law became a greater problem, so-called fragmentation of Public International
Law. The conclusion is theories on fragmentation of Public International Law should be
embraced in order to permit Academia to proportionate dialogue channels amongst systems,
giving more coherence to Public International Law and chiefly fostering international
cooperation.
KEY-WORDS: Fragmentation of Public International Law; Public International Law;
Subsystems of Public International Law.
1
Bacharel em Direito pela PUC-SP. Bacharelando em Ciências Sociais pela USP. Advogado em São Paulo
16
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Introdução
O Direito Internacional Público (DIP) é uma disciplina que guarda forte
correspondência com as relações jurídicas estabelecidas entre os atores da comunidade
internacional, na qual o Estado tem papel preponderante, mas não isolado da importância das
decisões das organizações internacionais e da atividade dos particulares. Com o advento da
globalização, o DIP passou por uma quebra de paradigma: o DIP clássico deu lugar ao DIP
contemporâneo (ou moderno), sob influência das relações jurídico-internacionais que se
estabeleceram no pós-guerra, marcadas pela emergência das organizações internacionais.
No DIP clássico, conflitos entre normas poderiam vir de incompatibilidades entre
uma norma estabelecida entre o Estado “A” e o Estado “B” e outra estabelecida entre o
Estado “A” e o Estado “C”. Havia apenas um órgão jurisdicional internacional, que era a
Corte Permanente de Justiça Internacional. Logo, a possibilidade de conflitos entre normas de
DIP ficava restrita a normas bilaterais, numa época em que o Estado tinha um número
limitado de contratantes, já que a economia internacional ainda não tinha sido atingida pela
globalização. Nem sequer podia-se falar de divergência de entendimento entre tribunais
internacionais, pois a justiça internacional estava concentrada na Corte Permanente de Justiça
Internacional.
No DIP moderno, os conflitos entre normas foram potencializados por uma série de
fatores. A setorização do DIP, a criação de organizações internacionais e a globalização
influenciaram decididamente a criação de regimes jurídicos dentro do DIP e a existência de
diferentes tribunais internacionais. Se o fim da Guerra Fria poderia sinalizar a sistematização
das relações jurídicas internacionais, por meio da expansão do capitalismo, e a consequente
sistematização das relações jurídico-internacionais, o que se tem visto é o contrário: a criação
de novos regimes jurídicos e a submissão de controvérsias a tribunais internacionais
específicos têm esvaziado a jurisdição efetivamente exercida pela Corte Internacional de
Justiça (CIJ).
A motivação deste artigo tem abrigo na importância do tema para uma compreensão
holística, mas não pormenorizada, do DIP contemporâneo. É indiscutível que o DIP atual não
é o mesmo do modelo clássico, mas certas questões como a resolução de conflitos entre
normas do DIP continuam atuais e seu debate segue vivo na Academia. Sumarizar esse debate
será o grande desafio desta Monografia.
A fragmentação do DIP é um fenômeno recente no DIP, fruto da evolução do DIP no
pós-Segunda Guerra Mundial. Investigá-lo necessitará tratar inicialmente da conceituação do
17
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
DIP e de sua evolução. Apresentado o panorama histórico, identificaremos a origem dos
subsistemas em DIP, para em seguida caracterizar o fenômeno da fragmentação do DIP e
discutir a respeito de conflitos de normas de DIP resultantes desse fenômeno.
1 Conceituação do DIP
O DIP é uma matéria que muda conforme a comunidade internacional se transforma,
pois são as relações jurídicas nela havidas o objeto do seu estudo. O conceito do DIP jamais
conseguirá ser estático, não obstante há elementos informadores da comunidade internacional
que dificilmente se alterarão um dia, por lhe serem inerentes. Preliminarmente, cumpre
ressaltar que determinar o conceito de um objeto na ciência jurídica significa expressar uma
argumento de autoridade sobre o direito e, mesmo assim, não conseguir alcançar qualquer
valor legal.
Há certas particularidades do DIP que devem ser identificadas para fixação do seu
conceito. Em primeiro lugar, a falta de autoridade central e a descentralização das funções
legais representam a principal característica do DIP, em oposição ao Direito interno. A figura
do Estado, tipicamente, possui monopólio da coerção e abriga a tripartição do Poder. Em
oposição, na comunidade internacional, nenhum Estado até o momento é capaz de exercer sua
força sobre toda a comunidade internacional, pois o poder é fragmentado e disperso2. As
relações entre os Estados permanecem fortemente horizontais, ainda mais atualmente, em que
a relação entre os Estados, empresas multinacionais, ONGs e indivíduos é mais intensa e
complexa. Os esforços para a construção de uma governança global, como a inserção do
princípio do jus cogens na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, não
conseguem afastar a relativa anarquia que prepondera sobre as estruturas centrais de gestão.
Antonio Cassese3 identifica como principal consequência da estrutura horizontal da
comunidade internacional o estágio embrionário em que se situam as regras organizacionais.
Não há qualquer norma do DIP que submeta a comunidade internacional a um organismo que
concentre as três funções do Estado. Os Estados atuam internacionalmente segundo seus
interesses, e não em favor da comunidade internacional, de modo que o DIP é construído, seja
por meio de tratados ou do costume, consoante fatores políticos e econômicos.
Em função da ausência de uma autoridade central na comunidade internacional,
decorrem outros elementos inerentes ao DIP, que permitem associar a ordem jurídica
2
3
CASSESE, Antonio. International Law. 2ª ed. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 7.
CASSESE, Ibid., p. 7
18
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
internacional à ordem jurídica primitiva, entre os quais destacamos a aplicação das normas
gerais aos casos concretos, pois não há um órgão jurisdicional centralizado com competência
universal para dirimir conflitos de interesses entre Estados. Por isso, um Estado que alega ter
sido prejudicado pela conduta ilícita de outro Estado, não conseguindo êxito na
autocomposição, vê-se livre a coagir o outro Estado a parar de lesioná-lo ou a reparar o
prejuízo sofrido, ainda que dessa forma venha a cometer, de sua parte, um ilícito4. O
mecanismo de autodefesa ainda é possível, e essa é, precisamente, o principal elemento da
ordem jurídica primitiva que o Estado de Direito, em seus primórdios, buscou combater.
Diferentemente, no Direito doméstico, as pessoas que alegam ter tido sua esfera de
direitos violada podem peticionar perante os órgãos públicos para solução do conflito e
aplicação da sanção prevista em lei. Em oposição, no DIP, é o próprio Estado que se sentiu
violado que, na maioria das vezes, aplicará a sanção, sem depender do julgamento de um
terceiro5.
Excepcionalmente, há costumes e tratados do DIP que identificam imediatamente o
sujeito dos deveres, sem necessitar de intermédio da ordem jurídica estadual. Nesses casos, as
sanções deixam de ser mecanismos de autodefesa, e passam a ser semelhantes àquelas
previstas pelo Direito doméstico, com previsão de pena e processo executivo próprio. A
responsabilização individual pode ser prevista no DIP ou sua definição é atribuída aos órgãos
estatais. Sua aplicação pode se dar pela jurisdição estadual ou por um tribunal internacional
específico.
Nesse aspecto, Hans Kelsen destaca a criação de órgãos centrais em “comunidades
jurídico-internacionais particulares”6 – quis ele se referir às atuais “organizações
internacionais” – num movimento de centralização e de estabelecimento de uma jurisdição
internacional.
Essa observação é da maior importância para a discussão que propomos neste
trabalho, pois a perspectiva da 3ª edição de Teoria Pura do Direito não reflete o
desenvolvimento do DIP no período pós-guerra. Hans Kelsen previa a centralização da
jurisdição internacional, mas a história contemporânea do DIP revela o contrário: a
emergência de uma pluralidade de tribunais internacionais, um dos elementos que fazem
compor o conceito de “fragmentação do direito internacional”.
4
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006
[1960], p. 357.
5
KELSEN, Ibid, p. 358
6
KELSEN, Ibid, p. 364.
19
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
2 A evolução do DIP
O DIP conheceu novos paradigmas com o fim da Segunda Guerra Mundial, dando
lugar a uma “nova ordem jurídica internacional”7, com reflexos não só no mundo do Direito,
como também na sociedade. Os Estados convieram em abandonar o modelo de sociedade
internacional até então vigente, caracterizada como “altamente nacionalista e estatal”8,
inaugurando uma ordem jurídica sedimentada pelo pluralismo, respeito aos direitos do
Homem e cooperação para o desenvolvimento e a paz. A apresentação da evolução do DIP
tem como elementos necessários o período pós-Segunda Guerra Mundial, o surgimento das
organizações internacionais e um novo processo de produção normativa.
2.1
O período pós-Segunda Guerra Mundial
O período pós-Segunda Guerra Mundial, na perspectiva do DIP, tem início na
celebração da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), em São Francisco, Estados
Unidos da América (EUA), no ano de 1945. A importância desse ato tem fundamento na
criação da primeira organização internacional com vocação universal e com o objetivo de
tratar dos problemas mundiais relativos à consecução da paz mundial, ao desenvolvimento e
ao respeito aos direitos humanos. Não obstante a anterioridade da Liga das Nações, da
Organização Internacional do Trabalho e a da Organização dos Estados Americanos,
nenhuma delas poderia ser colocada no mesmo patamar que a ONU, que, em razão dos
objetivos estabelecidos em seu tratado constitutivo, permanece singular a nível universal.
Na verdade, a criação da ONU é início do movimento de criação de organizações
internacionais, a nível universal ou regional. De um modo geral, os tratados constitutivos das
organizações internacionais preveem a criação de atos normativos vinculantes aos Estadosmembros e a seus órgãos internos, o que pode ser traduzido num regime jurídico próprio. Por
vezes, o tratado constitutivo também prevê uma estrutura interna competente para solução de
conflitos entre os seus membros, em relação a direitos e obrigações previstos nos tratados ou
atos normativos que compõem esse regime jurídico.
Em resumo, uma organização
internacional pode trazer consigo regime jurídico e jurisprudência próprios, que podem ser
incompatíveis com o regime jurídico e jurisprudência de outra organização internacional,
resultando, assim, num risco inafastável à unidade e segurança jurídica no DIP.
7
8
MENEZES, Wagner. Ordem Global e Transnormatividade. Ijuí-RS: Unijuí, 2005, p. 39.
MENDEZES, Ibid, p. 40.
20
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A ideia de união ou aliança entre Estados para atender determinados interesses não é
próprio da história contemporânea, e um dos primordiais exemplos é a Liga de Delos (476 a
450 a.C.). Entretanto, tomando em consideração a figura do Estado moderno, preconizada
pela Paz de Vestefália, só se pode admitir a partir de 1945, quando foi criada a ONU, a
existência de uma união entre Estados com caráter universal e com o objetivo de manter a paz
mundial, promover o desenvolvimento e o respeito aos direitos humanos e a redução das
desigualdades entre os povos.
O preâmbulo da Carta da ONU justifica a concepção de uma nova ordem
internacional, havendo sido ratificada por todos os Estados-Partes e aberto à adesão de outros
Estados. Assim, a Carta da ONU ganhou autoridade ao sedimentar a renúncia à guerra, o
respeito aos tratados e outras fontes de DIP, estabelecendo, desse modo, uma ordem mundial
assentada sobre o DIP. Nesse sentido, Clarisse Laupman Ferraz Lima observa que:
“[p]ara manter a paz, primeiro temos que conquistá-la, o que para a ONU significa
buscar solução para os possíveis conflitos através de meios diplomáticos e soluções
pacíficas de controversas diversas, de forma que se ponha fim às hostilidades através
de acordos e sem a necessidade do que chamaríamos de ‘vias de fato”9 .
2.2
Surgimento das organizações internacionais
Wagner Menezes10 afirma que o sucesso das negociações internacionais pela criação
da ONU impulsionou a comunidade internacional a criar novas organizações internacionais,
no sentido de concertar os Estados para deliberação e cooperação sobre as mais diversas
pertinências – militar, política, econômica, técnica, social –, seja a nível universal ou regional.
O advento das organizações internacionais se deve, segundo Ricardo Seitenfus11, ao
desenvolvimento da cooperação internacional. Com a evolução do comércio internacional, as
negociações se intensificaram em periodicidade e aumentaram em número de participantes,
dando origem ao modelo do “multilateralismo”. Foi preciso institucionalizar esses foros para
a manutenção de órgãos permanentes, com pessoal próprio, para cuidar da preparação da
agenda e aspectos da infraestrutura dos eventos.
9
LIMA, Clarisse Laupman Ferraz. Organização das Nações Unidas, ONU: a expressão de um novo tempo. 136
f. Dissertação (Mestrado em Direito). Curso de Pós-Graduação em Direito. Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2011, p. 50.
10
MENEZES, Wagner. Ordem Global e Transnormatividade. Ijuí-RS: Unijuí, 2005, p. 45.
11
SEITENFUS, Ricardo. Manual das organizações internacionais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2000, p. 23.
21
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Ricardo Seitenfus12 elenca três principais características das organizações
internacionais: multilateralidade, permanência e institucionalização. Multilateralidade remete
à pluralidade de membros, seja a nível regional ou a nível internacional. Permanência
significa que a organização internacional tem o objetivo de operar indefinidamente (mas não
perpetuamente) e que a organização internacional depende de uma estrutura organizacional –
o Secretariado – com sede fixa, sendo, ademais, sujeito dos direitos e obrigações das
representações diplomáticas. A institucionalização das organizações internacionais se refere à
previsibilidade das sanções a que um Estado está sujeito caso descumpre alguma das normas
internas, uma vez que o Estado abre mão de parte de sua soberania ao integrar determinada
organização internacional, que virá a determinar competências até então pertencentes ao
absoluto domínio nacional.
O tratado constitutivo de uma organização internacional é expressão concreta do
voluntarismo estatal nas relações internacionais, pois o Estado só se submete aos atos
normativos que nela têm berço caso faça parte desse tratado. Ricardo Seitenfus13 ressalta que
o tratado constitutivo de uma organização internacional tem dupla natureza jurídica:
formalmente, tem as características próprias de um acordo e, materialmente, é não só um
tratado como também algo assimilável a uma constituição, vez que constitui a base jurídica de
um novo ente autônomo.
Enfim, organização internacional é uma associação voluntária de Estados, que não é
nada mais que “uma sociedade entre Estados, constituída através de um Tratado, com a
finalidade de buscar interesses comuns através de uma permanente cooperação entre seus
membros”14.
As organizações internacionais surgem com o objetivo de institucionalizar os foros
multilaterais, de modo que um dos aspectos necessários da sua personalidade jurídica é o
exercício de competências normativas, previstas no tratado constitutivo. Diante desse
diapasão, é necessário verificar na base jurídica qual a amplitude das competências investidas
na organização internacional em questão.
Teoricamente, as competências das Organizações Internacionais podem ser dirigidas
ao exterior ou ao seu interior. Consideram-se competências dirigidas ao exterior aquelas que
se destinam a produzir efeitos fora dos órgãos internos, podendo afetar os Estados-partes,
12
SEITENFUS, Manual das organizações internacionais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2000, p. 23 et seq.
13
SEITENFUS, Ibid., p. 26.
14
SEITENFUS, Ibid., p. 26-27.
22
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
outros Estados e outras organizações internacionais, mediante a edição de atos como tratados,
regulamentos e recomendações. A competência interna, por sua vez, dirige-se aos órgãos da
organização internacional, visando seu aprimoramento.
Wagner Menezes avalia que o advento das organizações internacionais representa
“fatores de avanço do Direto Internacional e dinamização das relações internacionais
contemporâneas”15. O reconhecimento formal das organizações internacionais como sujeitos
do DIP, pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1986, é um contraponto ao
DIP Clássico, que atribuía essa condição apenas aos Estados. Além disso, as organizações
internacionais são foros institucionalizados de discussão e deliberação pelos Estados, segundo
o princípio da cooperação, sobre os problemas que permeiam os objetivos nela inscritos. No
mais, permitem que Estados periféricos participem em pé de igualdade com os Estados mais
poderosos.
Vladmir Oliveira da Silveira e Maria Mendez Rocasolano, em síntese, comentam:
“As organizações internacionais são a expressão mais visível do esforço articulado
e permanente de cooperação internacional, reafirmando a luta pelos direitos
humanos e a limitação do poder. Desde o surgimento do Estado Nacional como
categoria política básica nas relações entre povos e unidades políticas, ocorreram
muitas iniciativas e formulações teóricas relacionadas à formação e estruturação das
instituições hoje abrangidas sob a denominação de ‘organizações internacionais” 16.
2.3
Novo processo de produção normativa
A consequência principal ao DIP em relação ao escopo deste trabalho consiste no
impacto da produção normativa, fruto desse processo de discussão e deliberação na ordem
jurídica internacional. Wagner Menezes destaca que as organizações internacionais tornaramse verdadeiras “legisladoras globais”17, pois, à medida em que definem direitos e obrigações
comuns aos Estados, mediatamente investem os indivíduos de direitos que podem ser
invocados em face do Estado.
Antonio Cassese18 comenta que, no DIP clássico, os Estados não eram impedidos por
qualquer barreira para a construção de normas internacionais. Tinham uma liberdade ainda
maior que os particulares no âmbito do Direito Privado, onde há normas de ordem pública que
limitam a livre iniciativa das partes. O DIP clássico, diante da ausência de verticalidade, era
marcado pela regulação negativa, o que permitia os Estados exercerem ampla liberdade. Tal
15
MENEZES, Wagner. Ordem Global e Transnormatividade. Ijuí-RS: Unijuí, 2005, p. 39.
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos Humanos: conceitos, significados
e funções. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 85.
17
MENEZES, Wagner. Ordem Global e Transnormatividade. Ijuí-RS: Unijuí, 2005, p. 39.
18
CASSESE, Antonio. International law. 2ª ed. Oxford: OUP, 2005, p. 12.
16
23
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
modelo apenas favoreceu as grandes potências, para as quais o DIP era uma forma de
legitimar seus interesses. Contudo, tal liberdade de ação tem sofrido uma progressiva
limitação desde a Primeira Guerra Mundial, pelo conjunto de três fatores, nomeadamente: (1)
o conjunto crescente de tratados internacionais; (2) a crescente restrição jurídica sobre o uso
da força; e a (3) construção do ius cogens.
Em primeiro lugar, verifica-se, atualmente, que a maioria dos Estados é parte de um
vasto número de tratados sobre variadas matérias, que implicam em efeitos nos sistemas
domésticos e resultam na limitação da liberdade de ação dos Estados na esfera internacional.
A amplitude existente de tratados internacionais abrange incontáveis matérias, por exemplo,
comércio internacional, domínio dos mares, direitos humanos, internacional criminal. Assim,
em razão das intrincadas relações entre os tratados que compõem esse complexo, por mais
que os Estados, teoricamente, possam denunciá-los, desfazer-se dos compromissos
internacionais é um ato cada vez mais difícil de ser concretizado.
Em segundo lugar, o uso da autotutela por meio da guerra encontra-se vedado pelo
DIP. O direito de guerra teve início com a Convenção de Genebra sobre o Comitê
Internacional da Cruz Vermelha de 1836 e as Conferências de Haia sobre a Paz de 1899 e
1907. Seguidamente, o Pacto Briand-Kellog de 1828, promovido pelos EUA e França,
ampliou o número de Estados submetidos a uma limitação do uso da força. Com maior e
decisiva importância, a Carta da ONU de 1945 impôs aos Estados-partes a obrigação de não
utilizar a força, regra elevada a princípio do Direito internacional.
Em terceiro lugar, um costume internacional se desenvolveu na comunidade
internacional, no sentido de conferir maior estatura jurídica a determinadas normas gerais que
as demais regras, de modo a impedir que os Estados as derroguem em seus compromissos
internacionais. Isso compreende o chamado jus cogens, conjunto de normas peremptórias que
vinculam os Estados a não firmar acordos com objeto contrário a elas, sob pena de nulidade.
Carlos Roberto Husek, por sua vez, avalia que:
“Há uma mudança sensível no Direito Internacional que tem duas faces bem
distintas e que, de certa forma, se complementam, em relação ao ser humano e suas
organizações (Direitos Humanos) e em relação à área econômica (Direito
Econômico de Cooperação), com a contenção do domínio capitalista dos países mais
fortes e busca de ajuda aos países mais pobres”19.
Em suma, o advento das organizações internacionais, propulsionado pelo fenômeno
da globalização, quebrou o paradigma do Direito Internacional clássico, que só admitia os
Estados enquanto sujeitos, e deu azo a uma concepção institucionalizada da comunidade
19
HUSEK, Carlos Roberto. Curso de Direito Internacional Público. 10ª ed. São Paulo: LTr, 2010, p. 388.
24
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
internacional, até então atribuída de um caráter tão somente interestatal. Contudo, a mera
sistematização da prática das organizações internacionais e dos Estados não faz as vezes, por
si só, do DIP objetivo: é apenas a sua fonte. Com efeito, o DIP de dimensão universal vale-se
mais da consciência das organizações internacionais do que o consentimento sobre elas20. É a
reflexão da comunidade internacional, sobre os problemas mundiais, numa estrutura
institucionalizada, que tem permitido o desenvolvimento do DIP, no sentido de alcançar uma
comunidade internacional mais desenvolvida.
3 Os subsistemas em DIP
Imaginava-se que com o fim da Guerra Fria, em 1989, haveria condições de
implementar o projeto de grandes mestres, como Kelsen, Scelle e Lauterpacht, no sentido de
construir o centralismo no DIP. Pelo contrário: o liberalismo e a globalização, longe de terem
trazido coerência, aproximaram o DIP da figura de um caleidoscópio, em que os atores se
esforçam para criar sistemas normativos para escapar das estruturas do “DIP geral”, conjunto
de direitos e deveres atribuíveis a todos os Estados, como os princípios gerais de direito e os
princípios gerais do DIP.
O DIP, na década de 1980, já identificava problemas como a gradual e diluída
normatividade por meio do jus cogens. Ainda assim, isso não impediu os especialistas em
direitos humanos, em direito do comércio internacional e direito do mar de desenvolver novas
práticas normativas sobre seus campos de atuação, dando origem a subsistemas: regimes
jurídicos com princípios e regras próprios a fim de dar consistência aos seus objetivos.
Pode-se falar da existência de subsistemas dentro da própria ONU, que é dotada de
órgãos especializados nas matérias de sua atenção. Na matéria de Direito Internacional,
destacamos a Comissão de Direito Internacional. Em meio ambiente, destacamos o Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e o Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente (Pnuma). Em direitos humanos, destacamos a Comissão de Direito
Internacional, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, e os
comitês baseados em tratados (Treaty-bodies), como o Comitê sobre Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres (Comitê CEDAW). Cada órgão acima mencionado tem um
sistema próprio de deliberação, com regras e atos próprios. Com efeito, cada um compõe um
subsistema, ou um regime jurídico próprio.
20
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direito das organizações internacionais. 4ª ed. Belo Horizonte: Del
Rey, 2009, p. 628.
25
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
No Comitê CEDAW existe um mecanismo próprio do acompanhamento das políticas
do governos em relação à eliminação da discriminação contra as mulheres, chamado de
“diálogo construtivo”, no qual os Estados apresentam o trabalho feito num dado período,
sendo interpelados pelos membros do Comitê e por ONGs interessadas. Em meus estágios
naquele Comitê, no verão de 2009 e na primavera de 2010, não pude conhecer referência a
outros tratados. Com efeito, notei que os diálogos circunscrevem-se ao próprio tratado que dá
origem ao comitê. Os direitos das mulheres poderiam ser mais bem protegidos caso houvesse
um diálogo em relação a outros documentos, como a relevante Resolução do Conselho de
Segurança da ONU n. 132521.
Subsistemas não ficam restritos à estrutura da ONU. Com o advento de inúmeras
outras organizações internacionais, de índole universal ou regional, cada qual com sua própria
base jurídica, abriram-se as portas para novos regime jurídicos dentro do DIP. Como a base
jurídica da organização internacional pode prever a criação de atos normativos em seu âmbito,
conforme o processo deliberativo específico, surge a possibilidade da emergência de regras e
princípios próprios a cada organização internacional. Assim, um dos efeitos jurídicos da
pluralidade de organizações internacionais atuais é o enclausuramento de cada uma a seu
próprio subsistema. É dizer: o subsistema da OMC corre o risco de ficar alheio a normas
importantes ao desenvolvimento entre as nações – que é um dos seus objetivos -, como
aquelas relativas ao direito internacional do trabalho, direito internacional dos direitos
humanos ou direito internacional do meio ambiente. De igual modo, uma organização
internacional corre o risco de ficar alheia a normas que não foram emanadas em seu bojo. É
como se a OMC admitisse não conhecer de nenhuma outra norma que não aquelas oriundas
de sua estrutura, como decisões judiciais de outros tribunais internacionais ou resoluções da
assembleia de alguma outra organização internacional.
A origem dos subsistemas em DIP está ligada à necessidade de especialização dos
seus estudiosos, por força do pragmatismo dos advogados internacionalistas, que, decerto, não
têm como dominar a crescente normativa internacional.
À segunda vista, a origem dos subsistemas em DIP tem proporcionado o que a
doutrina contemporânea chama de “fragmentação”, objeto da próxima seção.
4 O fenômeno da fragmentação do DIP
21
Palestra intitulada “Security Council Resolution 1325 Ten Years On: Critical Reflections”, proferida por
Carol Cohn, no Graduate Institute de Genebra, em 8 de outubro de 2010.
26
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Segundo o DIP clássico, conflitos entre sistemas normativos são algo patológico 22.
Diante dessa preocupação constante dos internacionalistas, a relevância da proliferação de
tribunais internacionais ganhou destaque no âmbito da ONU em 1999, quando o então
presidente da Corte Internacional de Justiça, juiz Stephen M. Schwebel 23, em discurso anual à
Assembleia Geral da ONU, expressou preocupação sobre a criação de novos tribunais, o que,
no seu entender levaria a conflitos substanciais entre eles e ao esvaziamento das funções da
Corte de Haia.
A solução apontada pelo juiz Schwebel24 para a solução de eventuais conflitos entre
decisões dos tribunais internacionais seria a criação de mecanismos para que outros tribunais
internacionais pudessem consultar a opinião da Corte Internacional de Justiça sobre matérias
do DIP que tenham sido ventiladas e que sejam importantes para a unidade do DIP. Tal
solução no nosso entender não se mostra adequada, pelo simples fato de não haver qualquer
hierarquia entre as cortes internacionais.
Tribunais especializados em direito internacional dos direitos humanos, direito
internacional do mar e direito internacional do meio ambiente, entre outros, cederam lugar a
regimes jurídicos especiais, aparentemente apartados um do outro. Soma-se a isso o fato de
que questões envolvendo diretamente indivíduos, como os direitos humanos e o direito do
meio ambiente, vêm sendo tratados por outros órgãos que não a CIJ.
Frente a essas constatações, nota-se a marginalização da CIJ em relação à discussão
de assuntos triviais ao sistema do DIP, por conta da forma com que a proliferação de tribunais
internacionais tem sido feita – sem qualquer planejamento –, o que poderia tornar o DIP
totalmente fragmentado e inoperante. Na opinião do juiz Guillaume, o DIP realmente precisa
mudar, mas não ser quebrado25.
5 Conflitos de normas no DIP
22
KOSKENNIEMI, Martti; LEINO, Päivi. Fragmentation of International Law? Postmodern Anxieties. Leiden
Journal of International Law, Leida, v. 15, 2002, p. 560,
23
SCHWEBEL, Stephen M. Discours prononcé devant l'Assemblée Générale de l'Organisation des Nations
Unies réunie en session plénière. 26 de outubro de 1999. http://www.icjcij.org/court/index.php?pr=87&pt=3&p1=1&p2=3&p3=1. Acesso em 18/05/2012.
24
SCHWEBEL. Ibid.
25
SCHWEBEL. Ibid.
27
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Joost Pauwelyn26 aponta que o conflito não é uma anomalia no ordenamento jurídico
e que isso não significa, necessariamente, contradição na intenção do legislador. Com efeito, é
algo inerente a um sistema jurídico, em razão de sua pretensão de tutelar os fatos sociais
juridicamente relevantes mediante a criação de normas gerais e abstratas. O conflito de
normas de DIP é inevitável, não só por conta do processo de criação de suas normas – sejam
estas tratados ou costumes –, mas também pela sua forma de aplicação.
Nesse sentido, Joost Pauwelyn27 identifica uma série de razões inerentes ao conflito
de normas, algumas decorrentes da natureza do DIP, outras advindas do DIP contemporâneo.
Quanto às causas para conflitos inerentes ao DIP, destaca-se, inicialmente, a pluralidade de
legisladores a nível internacional, uma vez que não há no DIP um único órgão legislativo nem
executivo – como vimos na seção 1.1. O Estado é o seu próprio legislador, e por isso, a
relação jurídica entre os Estados depende profundamente dos ordenamentos jurídicos internos.
No contexto atual, caracterizado pela expressiva expansão de organizações internacionais e
pelo nascimento de novos Estados, há uma grande pluralidade de legisladores que cria uma
infinitude de relações jurídicas.
Em segundo lugar, Joost Pauwelyn28 aponta que o DIP não carece apenas de um
órgão legislativo e de um órgão administrativo centralizados: falta-lhe também um sistema
judicial centralizado que exerça jurisdição geral e compulsória – o que chamamos, no sistema
brasileiro, de jurisdição una. Caso houvesse um sistema análogo ao doméstico no DIP, que
contasse também com a organização do regime de sanções, é possível que o processo de
elaboração do direito tivesse alcançado alguma ordem. Nem a existência da Corte
Internacional de Justiça, categorizada como o “principal órgão judiciário das Nações Unidas”
(Carta da ONU, art. 92), é capaz de suprir essa deficiência (inerente) do DIP, pois a Corte
exerce jurisdição compulsória apenas em relação a Estado que tenham voluntariamente aceito
a jurisdição da Corte para julgar determinadas contendas (artigo 36 (2) do Estatuto da Corte
Internacional de Justiça).
Há, na verdade, uma pluralidade de mecanismos de controvérsias, muitos deles
previstos em tratados “guarda-chuvas” ou estabelecidos ad hoc. A ausência de jurisdição una
no DIP significa que não há um juiz natural para impor ordem às inúmeras relações jurídicas
internacionais. A pluralidade de tribunais internacionais potencializa a possibilidade de
26
PAUWELYN, Joost. Conflicts of norms in public internacional law. Cambridge: Cambridge University Press,
2003, p. 10.
27
PAUWELYN, Ibid., p. 12.
28
PAUWELYN, Ibid., p. 16.
28
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
conflitos em razão de diferentes interpretações e aplicações de uma mesma norma de DIP, de
modo que num eventual conflito de normas de DIP, um tribunal pode aplicar uma norma e
afastar outra, bem como outro tribunal pode fazer o contrário.
O DIP contemporâneo, segundo Joost Pauwelyn29, trouxe a lume outros motivos
ensejadores de conflitos. De início, o DIP mudou de paradigma: de um direito de coexistência
passou a um direito de cooperação. O DIP clássico caracterizava-se principalmente por
normas bilaterais que versavam sobre as matérias de soberania territorial, relações
diplomáticas e direito de guerra, no sentido de estabelecer obrigações recíprocas para a
coexistência dos Estados. Por sua vez, o DIP contemporâneo é marcado pela evolução do
direito de cooperação entre os Estados, visto que a busca de objetivos comuns deu lugar ao
advento – destacadamente, no período pós-Guerra Fria – de organizações internacionais.
Nesse sentido, a globalização tem importância fundamental, vez que a necessidade
de cooperação entre os Estados para persecução dos seus objetivos comuns tem resultado na
integração da comunidade internacional e, ao mesmo tempo, na proliferação dos subsistemas
de DIP. As relações de interdependência30 proporcionadas pela globalização também refletem
no DIP, pois a norma de um subsistema pode vir a dialogar com uma outra norma de um
outro subsistema – notadamente no subsistema da OMC, cujas regras têm por objetivo a
liberalização do comércio, o que, por vezes, coloca em detrimento outras normas de DIP,
como aquelas relativas aos direitos humanos e ao meio ambiente.
Conclusão
Há quem esperava do fim da Guerra Fria possibilidades de conferir maior coerência
ao DIP, porém o que efetivamente se constata hoje é uma dificuldade de diálogo entre esses
diferentes regimes jurídicos para evitar conflitos entre suas normas e, em última instância,
conferir maior consistência e coerência ao DIP. Significa dizer que a fragmentação do DIP, ao
invés de corrigir suas falhas inerentes, potencializou conflitos aparentes entre suas normas,
em especial, entre aquelas pertencentes a diferentes regimes jurídicos.
Com a mudança de paradigma do DIP, que resultou na emergência de uma
pluralidade de organizações internacionais e na intensificação de celebração de tratados
multilaterais, houve um aumento significativo do número de normas internacionais sobre
29
PAUWELYN, Joost. Conflicts of norms in public internacional law. Cambridge: Cambridge University Press,
2003, p. 16.
30
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos Humanos: conceitos, significados
e funções. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 84.
29
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
diferentes matérias, e, por consequência, o risco de conflito entre essas normas se
potencializou. Assim, o conflito de normas em DIP tornou-se mais recorrente e se dá entre
normas oriundas de diferentes subsistemas baseados em tratados, como ocorre entre normas
do direito da OMC e do direito internacional do meio ambiente. Ambas as normas são
válidas, mas uma é invocada por um Estado para justificar sua conduta, enquanto que outra é
posta em questão pelo outro Estado para dar proteção ao seu direito violado. Diferentemente
do conflito de normas do DIP clássico, que colocava em questão diferentes tratados
“contratos”, no DIP contemporâneo os conflitos podem envolver normas das quais uma
pluralidade de Estados são partes. Os Estados litigantes são vinculados a todos os tratados.
Tal incompatibilidade se assemelharia à hipótese de num mesmo Estado haver dois órgãos
legisladores, cada qual legiferando em sentido diferente.
O DIP contemporâneo dá lume, também, a um aumento no número de disputas
judiciais. Os sistemas de solução de controvérsias internacionais aumentaram em número,
concomitantemente a uma tendência de submeter a cortes ou tribunais internacionais a
resolução ad hoc de disputas. Uma vez que esses órgãos têm sido cada vez mais convocados
para solução de disputas, o conflito entre normas de DIP tem se demonstrado in concreto.
A expansão em número e em competências das organizações internacionais conduziu
também a uma situação de fragmentação do direito internacional, consistente na difusão de
regimes jurídicos e de sistemas de deliberação e resolução de controvérsias próprios a cada
organização internacional.
É desejável que num mundo globalizado conflitos de normas sejam evitados, a fim
de dar estabilidade às relações jurídicas internacionais, nas suas mais variadas dimensões –
direitos humanos, meio ambiente, comércio, etc. Por isso, as teorias da fragmentação do DIP
merecem acolhida, a fim de que a Academia proporcione meios de diálogo entre os
subsistemas, conferindo ao DIP maior coerência e, em última instância, a promoção da
cooperação internacional.
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32
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A VALIDADE DA NORMA NO DIREITO INTERNACIONAL:
BREVES APONTAMENTOS
Gustavo Fernandes Meireles1
Renato Barbosa de Vasconcelos2
Resumo:
O reconhecimento da validade da norma e do ordenamento jurídico é fundamental para identificar sua aptidão
para produzir efeitos no mundo fático. No âmbito do ordenamento jurídico nacional a validade é concebida,
sobretudo em termos formais, com base no escalonamento das normas, tendo como ápice uma norma
fundamental, acima da Constituição. Essa verticalização é possível porque a soberania é exercida pelo Estado.
No âmbito da sociedade internacional a concepção de um ordenamento escalonado encontra óbices, haja vista
que várias soberanias convivem, não se sobrepondo umas às outras. Por conseguinte, a aplicação de conceitos
teóricos para o reconhecimento da validade jurídico-formal do Direito internacional leva a problemas de
interpretação. O presente artigo tem por objetivo discutir questões relativas à validade do Direito internacional e
a formas alternativas de se abordar o tema, tomando-se outros conceitos de validade como meio para identificála.
Palavras-chave: Teoria geral do Direito. Validade jurídica. Direito Internacional.
LEGAL VALIDITY OF INTERNATIONAL LAW:
SOME NOTEWORTHY POINTS
Abstract:
Validity is a key concept to identify the capacity of Law in enforcing its rules, producing effects in real world. In
domestic legal system validity is considered most in its formal concept, based on hierarchy of norms where the
Constitution is in the top of the system. This vertical hierarchy is possible due to State’s sovereignty. On the
other hand, in the international society, the idea of a hierarchic legal system finds obstacles, since in the
international scenario many sovereignties coexist in the same level. Hence, the utilization of theoretical concepts
1
Mestrando em Direito da Universidade Federal do Ceará. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do
Ceará. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará. Bolsista da Fundação Cearense de
Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Membro do “Mundo Direito: Grupo de
Estudos em Direito Internacional da UFC”. Membro do projeto: “Possibilidades e Riscos de Políticas Comuns de
Direitos e Garantias Fundamentais nos Estados Integrantes da UNASUL na Perspectiva de uma Constituição
Sul-americana” (PROCAD/CAPES). Advogado. Email: [email protected].
2
Mestrando em Direito da Universidade Federal do Ceará, bacharel em Direito pela Universidade Federal do
Ceará. Membro do projeto “Possibilidades e Riscos de Políticas Comuns de Direitos e Garantias Fundamentais
nos Estados Integrantes da UNASUL na Perspectiva de uma Constituição Sul-americana” (PROCAD/CAPES).
Membro do “Mundo Direito: Grupo de Estudos em Direito Internacional da UFC”. Membro do grupo de
pesquisa “Filosofia dos Direitos Humanos” (UFC). Membro do grupo de pesquisa “Democracia e Finanças
Públicas” (UFC). Pesquisador do Centro de Direito Internacional (CEDIN). Advogado. Email:
[email protected].
33
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
aiming to verify formal legal validity of International Law leads to misinterpretation. This paper aims to discuss
issues concerning the validity of International Law and alternative approaches in this field, considering other
concepts of legal validity as confirming evidences.
Key-words: General Theory of Law. Legal validity. International Law.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Questão pertinente no âmbito da Teoria Geral do Direito é discutir a validade de suas
normas, a qual, segundo algumas correntes teóricas, relaciona-se estreitamente com outros
conceitos tais como legitimidade e eficácia (NINO, 2010, p. 154-5). Do conceito de validade
das normas, pode-se derivar a constatação da existência de todo um ordenamento jurídico. Por
conseguinte, também se pode pensar, conjuntamente a essas categorias, o conceito de eficácia
jurídica.
Nesse amplo espaço de discussão, o Estado é comumente apontado como ente que
confere validade ao Direito. De sua soberania extrai-se a autoridade pública para o
ordenamento da sociedade. As concepções contratualistas de Estado atribuem a este ente a
congregação de forças sociais e o desempenho de funções de controle que incluem a
elaboração de normas a serem por todos observadas e cumpridas e um aparato de força para o
caso de descumprimento das normas prescritas.
Considerando-se a soberania e a institucionalização do poder de fato exercido sobre
determinado território, não é difícil conceber um poder jurídico no âmbito interno de cada
Estado. Seja essa soberania legítima, legítimo será, pois, o exercício do poder dela decorrente,
assim como as normas estabelecidas nesse contexto.
Entretanto, o que se pode dizer acerca das normas que obrigam os Estados? Normas
assim limitariam a soberania dos Estados? Seriam tais normas válidas, ainda que não haja um
ente superior que as chancele? O que poderia ser apontado como elemento que lhes confira
identidade jurídica? Essas são algumas das questões que frequentemente voltam à baila
quando se discute Direito Internacional comparando-o com o Direito interno.
A afirmação de existência de um Direito Internacional não é novidade. Entretanto,
ainda se percebe certa resistência na sua admissão como Direito. A emergência do Direito
Internacional nos dias atuais nos convida a uma reflexão mais acurada acerca de categorias
um tanto quanto cristalizadas pela Teoria Geral do Direito. Um aprofundamento dessas
categorias à luz da prática jurídica internacional assim como de disciplinas correlatas – como
34
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
as Relações Internacionais –, pode suscitar uma melhor compreensão do Direito em si. No
mínimo, amadurece-se a compreensão dos fenômenos jurídicos internacionais, cada vez mais
presentes no contexto de globalização em que vivemos.
O presente artigo se propõe a discutir brevemente a validade do Direito
Internacional, relacionando-a a outras categorias de análise tais como legitimidade e eficácia.
Para tanto, tomaremos diretamente as acepções conceituais clássicas de validade, legitimidade
e eficácia jurídica, buscando apontar pontos de distinção quando se trata de Direito
internacional.
2 OS VÁRIOS SIGNIFICADOS DE VALIDADE DA NORMA JURÍDICA
A validade do ordenamento jurídico pode ser aferida pela validade das normas que o
compõem. Santiago Nino parte de um questionamento a respeito da existência do sistema
jurídico como um todo. Embora versando sobre todo o sistema normativo, o autor reconhece a
aplicabilidade dos conceitos ao seu elemento fundamental: a norma. Para tanto, o autor toma
o conceito de validade em seis diferentes acepções.
A primeira delas reconhece a identidade entre a validade e a existência de uma
norma, havendo superposição entre os critérios de validade e de existência. Há ainda a
concepção de validade enquanto justificação última para o que é permitido ou obrigatório.
Nino cita ainda a concepção (adotada por Kelsen) que reconhece a validade de uma norma
jurídica em outra norma jurídica que a declara como de aplicação obrigatória. A validade
pode ainda determinar o pertencimento de uma norma a um determinado sistema jurídico. Sob
um outro prisma, há quem aproxime o conceito de validade de vigência, e até mesmo eficácia.
O autor argentino ressalta que esses “focos de significado” não são “significados autônomos
da palavra ‘validade’, já que, em geral, eles se apresentam combinados de alguma maneira
[...]” (idem).
Desse ponto de partida, podemos observar o posicionamento dos demais autores a
respeito do conceito de validade. Tércio Sampaio Ferraz Jr. a validade é a integração de uma
norma ao ordenamento jurídico 3. Por certo que essa integração deve ser feita pelos meios
estabelecidos normativamente pelo próprio sistema jurídico. Esse seria, sem maiores detalhes,
3
FERRAZ JR., Tércio Sampaio Ferraz. Introdução ao Estudo do Direito. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 165.
35
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
o que Pontes de Miranda chama de “colorir” um fato do mundo para torná-lo jurídico através
de uma norma jurídica (MIRANDA, 1999, p. 51-67)4.
Do ponto de vista dogmático, tal como é a opção metodológica de Ferraz Jr. em sua
abordagem, a validade é considerada do ponto de vista do direito positivo. Portanto, para o
direito positivo, existe a norma que foi reconhecida pelos meios juridicamente hábeis a fazêlo.
Embora reconheça a dimensão deontológica e fenomenológica da norma jurídica,
Bobbio reforça o entendimento de que a validade, enquanto dimensão ontológica da norma,
diz respeito à sua existência no sistema jurídico (BOBBIO, 2001, p. 47). Nesse sentido, é o
direito posto quem reconhece (ou não) uma norma como válida. Sob esse ponto de vista,
normas não válidas não existem para o sistema jurídico. Hugo Machado é mais cauteloso ao
expressar, de início, que uma norma pode existir sem ser válida, ou seja, se estiver em
desacordo com a Constituição ou outra norma que lhe seja fundamento de validade
(MACHADO, 2004, p. 95).
Ponto importante ao tratar-se da validade das normas é abordar a vigência. A
vigência é conceito mais estreito do que a validade, pois é a “aptidão para incidir” (idem, p.
98). Esta aptidão é determinada temporalmente. Dentro das balizas temporais em que a norma
passou a viger até que ela seja revogada, ela está apta a incidir. Questão diversa é saber se ela
incide ou não, ainda que esteja vigente. Esta seria uma abordagem acerca da eficácia da
norma. Trata-se de questão de sociologia jurídica, tal como reconhecem Bobbio (op. cit., p.
48) e Machado (op. cit., p. 99).
Para Kelsen, que identifica Direito e Estado, a validade da norma jurídica encontra
seu fundamento em outra norma que lhe é hierarquicamente superior, até que se chega a uma
norma pressuposta (KELSEN, 2009, p. 215-217). Sem adentrar discussões referentes à
possibilidade e à existência de uma Norma Hipotética Fundamental, importa ressaltar que, na
concepção de Kelsen, o Estado é o ente autorizador da validade das normas, inclusive
daquelas decorrentes de relações jurídicas privadas.
Apesar do destaque que se dá em sua teoria ao ordenamento jurídico interno, Kelsen
afirmou a existência de uma ordem jurídica internacional e do Direito Internacional
4
Pontes de Miranda destaca a existência de um mundo jurídico que “está no conjunto a que se chama mundo” no
qual alguns dos fatos que se passam no mundo são “coloridos”, tornando-os fatos jurídicos. O jurista chama esse
processo de juridicização. As regras jurídicas desempenham papel fundamental nesse processo, pois são elas que
incidem sobre os fatos do mundo, fazendo-os “fatos jurídicos”: a “regra jurídica colore [o suporte fático],
fazendo-o entrar no mundo jurídico”. Dessa forma, a juridicização é um processo de entrada do “suporte fático”
no mundo jurídico. Cf. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller, 1999, pp.
51-67 (passim).
36
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
propriamente dito, na medida em que medidas coercitivas podem ser previstas e adotadas por
parte de outros Estados participantes da sociedade internacional (KELSEN, 1998, p. 468).
Assim, para Kelsen, “o Estado é uma ordem jurídica. Mas nem toda ordem jurídica é um
Estado” (KELSEN, 2009, p. 317).
Todavia, tomando-se a concepção kelseniana de validade da ordem jurídica,
encontra-se dificuldades para se afirmar a validade – e, portanto a existência – do Direito
Internacional. Isso porque, para o pensador alemão, a validade de uma ordem jurídica
encontra seu fundamento em uma cadeia hierarquicamente organizada, até chegar-se a uma
norma-ápice. No direito interno essa norma seria a Constituição, cuja validade fundamentarse-ia em uma outra norma, pressupostamente superior (idem, p. 221).
Assim é que o positivismo afirma com veemência a primazia do Estado como
irradiador do Direito através de sua função legislativa. Além desta função precipuamente
exercida pelo Poder Legislativo, Hugo Machado (2004, p. 74 e ss.) observa que o direito
também deflui da jurisprudência, de sentenças e de atos administrativos – e há quem diga que,
no Brasil, a burocracia legisla quase que substituindo o legislador (STRECK, 2012).
Entretanto, além das fontes formais estatais, fontes outras (não estatais), também contribuem
para a construção do direito (e.g. contrato, doutrina, costume). O Estado é destarte o meio
pelo qual essas formas jurídicas são autorizadas a produzir efeitos. Como que numa
estamparia de linha de produção, o Estado reconhece como juridicamente válido um
“produto” que, embora não tenha sido elaborado em sua “fábrica”, ganha as feições de um
produto seu por ter passado pelo seu crivo de aprovação.
Nesse sentido, para Kelsen, mesmo as relações privadas seriam autorizadas pelo
Estado. O autor critica veementemente as propostas de dicotomia entre direito público e
direito privado. E é exatamente na identidade entre Direito e Estado que Kelsen fundamenta
sua crítica. Para ele, o Estado é uma entidade metajurídica, sendo ao mesmo tempo
pressuposto do Direito e sujeito que pressupõe o Direito (KELSEN, 2009, p. 315).
Nesse sentido, o dualismo entre direito privado e público não se justificaria, pois o
Estado participa na formação e na defesa de relações jurídicas privadas. Para Kelsen,
os atos que formam o fato produtor do Direito apenas são, em ambos os casos, o
prolongamento do processo da chamada formação da vontade estadual, e de que,
precisamente, como no comando da autoridade, também no negócio jurídico privado
apenas se realiza a individualização de uma norma geral. (idem, p. 312)
37
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Assim, o Estado “filtra” a totalidade das relações jurídicas – públicas e privadas –
perfectibilizando-as sob sua chancela.
No direito nacional, em que se tem a soberania como elemento de poder que confere
ao Estado a capacidade de estabelecer a ordem jurídica, fundando-a com base em uma
Constituição (o que, nas teorias contratualistas, seria justamente o contrato social
estabelecido) isso parece mais fácil de justificar do que em uma ordem internacional. No
âmbito dos Estados, com base na soberania, é possível estabelecer uma hierarquia mais clara
na produção normativa.
Dentre as “marcas da soberania” apresentadas por Jean Bodin em sua clássica obra
(BODIN, 1993, p. 162), o poder de estabelecer e impor a lei a todos e a cada um em particular
figura em primeiro lugar, dele decorrendo todas demais marcas. Embora a soberania descrita
por Bodin concentre-se ainda na figura de alguém que detém o poder soberano, a ideia foi
atualizada para a soberania da sociedade, depositada no Estado.
Descrevendo um caso hipotético (da dinastia dos reis Rex), H. L. A. Hart observa
que as normas jurídicas produzidas por um determinado soberano permanecem após o
exercício de seu poder (HART, 2009, p. 83 e ss.). Ou seja, a soberania por ele exercida – que
lhe confere o poder de criar o Direito –, não perece após sua morte, a menos que seja
expressamente revogada. Da mesma forma ocorre no caso em que a soberania é do povo, e
não de um soberano em seu exercício absoluto. Nesse caso, a soberania permanece soberana
(com a licença da tautologia) até que a sociedade que a conferiu aos poderes do Estado seja
desfeita ou constitua um novo pacto.
Essa instituição centralizadora dos poderes, mas já despersonalizada – em
comparação com a autoridade que se prendia à pessoa do governante, do monarca, do príncipe
– tem na soberania o sustentáculo maior de sua constituição. Esse atributo seria, segundo a
doutrina contratualista da formação do Estado, fruto da vontade humana que escolheu abrir
mão de sua liberdade em troca de proteção provida por uma entidade suprahumana. A respeito
da soberania, elemento distintivo do Estado Moderno, Bonavides assevera que
[…] foi [ela], por sem dúvida, o grande princípio que inaugurou o Estado Moderno,
impossível de constituir-se se lhe falecesse a sólida doutrina de um poder inabalável
e inexpugnável, teorizado e concretizado na qualidade superlativa de autoridade
central, unitária, monopolizadora de coerção. (BONAVIDES, 2004, p. 29)
Nesse sentido, a soberania fundamenta a subordinação de poderes privados a um ente
centralizador dos interesses coletivos. A miríade de arranjos jurídicos de caráter familiar,
38
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
feudal, corporativo e religioso era contrária à ideia de certeza jurídica trazida pela
representatividade estatal como fonte única do direito. A existência desse ente centralizador
viria a garantir o princípio da igualdade jurídica formal.
Essa concepção de soberania perene fundamenta a criação do Direito positivo como
obra estatal – tal como concebe Kelsen mesmo para as relações privadas. Através dela
estabelece-se uma hierarquia no ordenamento interno que parte das pressupostas intenções
contidas no contrato que funda a sociedade, irradiando em cadeia para conferir validade às
normas mais específicas do ordenamento. Há, portanto, uma verticalização na construção do
ordenamento, tendo no Estado o garante do cumprimento das ordens por ele estabelecidas em
nome dos participantes da sociedade.
Contudo, estabelecer semelhante raciocínio para justificar a validade do Direito
Internacional parece caminho mais árduo. Como pensar a validade de um ordenamento
jurídico em uma sociedade de entes formalmente iguais, os quais não se submetem a nenhum
ente externo que lhe seja superior? As especificidades do Direito Internacional requerem um
olhar próprio para sua adequada compreensão.
3 SOBERANIA E VALIDADE DA ORDEM JURÍDICA
No âmbito interno, o Direito tem no Estado sua fonte legitimada pela soberania da
desse ente centralizador do poder político. A soberania estatal confere força jurídica às ordens
que emanam do Estado, na figura do soberano ou do governante. Vê-se aí que no âmbito
interno do Estado, ou seja, dentro dos seus limites territoriais, o poder soberano é superior a
todos os demais, tanto dos indivíduos quanto dos grupos sociais existentes no âmbito do
Estado.
A questão central é que tais normas restringem-se ao território em que o Estado é
soberano. A concepção de soberania no Estado moderno passa a sofrer profundas alterações
na medida em que fatores externos passam a repercutir na atuação dos Estados.
A intensificação dos contatos entre Estados em grande parte estimulada pela
crescente atividade comercial para além das fronteiras, bem como pelos conflitos bélicos,
levou à existência de uma sociedade internacional semelhante à que conhecemos hoje e cujos
principais atores nesse contexto histórico eram os Estados5.
5
Muito se discute acerca dos sujeitos da sociedade internacional. Algumas correntes das Relações Internacionais
consideram que os atores não estatais, como as ONGs e as empresas multinacionais, são também protagonistas
39
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Após a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e da guerra entre espanhóis e flamengos
(1568-1648), uma série de tratados de paz compôs o que viria a ser conhecido por Paz de
Westphalia. A Paz de Westphalia representou um marco histórico que reconheceu o Estado
como poder supremo dentro de suas fronteiras, definindo conceitualmente a ordem
internacional daí nascida e seu elemento básico, a soberania no âmbito internacional.
Anderson Teixeira destaca a importância da Paz de Westphalia na resignificação do
conceito de soberania:
Se internamente a necessidade de regulação jurídica concentrada em uma única
autoridade política foi satisfeita pelo fortalecimento da soberania do Estado
decorrente da Paz de Westphalia, externamente este momento representou a
possibilidade de as relações internacionais começarem a se pautar pous uma
disciplina eminentemente jurídica, definida em regras esabelecidas a priori e não
tendo mais base exclusiva nas necessidades momentâneas que determinada situação
apresentava. (TEIXEIRA, 2011, p. 84)
A soberania westfaliana baseia-se na territorialidade e no princípio da não
intervenção. Diversamente das consequências lógicas da soberania no plano interno – em que
ela assegura a supremacia do poder estatal diante dos cidadãos ou outros possíveis poderes
sociais concorrentes –, a soberania traduz, no âmbito externo, a igualdade dos Estados na
comunidade internacional. Em outras palavras, a soberania significa, no plano internacional, a
igualdade jurídica entre aqueles que são soberanos nas suas relações entre si.
Se internamente a construção de ordenamentos jurídicos se fortalecia como meio de
resolução de conflitos a serem mediados por um ente supremo e despersonalizado, o
desenvolvimento de relações mais próximas entre Estados (juridicamente iguais, porque
igualmente soberanos) demandava também a criação de um ordenamento jurídico
supraestatal.
A ruptura com o modelo westfaliano, que reconhece o Estado como exclusivo sujeito
de direito internacional, a inserção de atores como ONGs, organizações internacionais, e
grandes corporações transnacionais, e o complexo de constantes mudanças trazidas pelo
processo de globalização tem trazido inúmeros desafios para o direito internacional e para a
ideia de soberania tal como engendrada ao longo da construção do Estado moderno.
Nesse sentido, Anderson Teixeira discorre argutamente acerca de fatores que têm
contribuído para a relativização da soberania no contexto global contemporâneo. Por um lado
nesse cenário. Cf. KARNS, MINGST, 2010, p. 222. No Anuário das Organizações Internacionais, editado pela
União das Associações Internacionais, mais de 25.000 são listadas como ONGs internacionais. Cf. UNION OF
INTERNATIONAL ASSOCIATIONS, 2012.
40
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
(no âmbito interno) fala-se em crise do Estado; de outra banda (no âmbito internacional) falase em surgimento e fortalecimento de novos atores globais, tais como organizações
internacionais, ONGs e empresas multinacionais que também participariam da criação do
direito internacional (idem, p. 131)6.
Os diferentes matizes que a soberania assume no âmbito internacional e no âmbito
interno atuam para tornar distintas as ordens jurídicas em cada um desses ambientes. Se no
âmbito interno prevalece a hierarquia da ordem emanada do Estado, ente legitimado ao uso da
força7, na sociedade internacional prevalece – segundo teóricos realistas das Relações
Internacionais, tais como Carl von Clausewitz, Raymond Aaron e Keneth Waltz (ROCHE,
2008, p. 29) – a anarquia, no sentido de que os Estados agem de acordo com seus próprios
interesses, não havendo nenhum ente superior que os obrigue a agir. Isso não quer dizer que
não haja uma ordem (ou ordens) nas relações internacionais, mas não se trata da mesma
ordem hierarquicamente determinada dos Estados em seu âmbito interno.
Não há, no direito internacional, portanto, uma norma superior que possa validar
outras normas inferiores em cadeia, tal como ocorre no plano interno, ordenado de forma
escalonada, segundo a proposição de Kelsen8. Mesmo que no âmbito internacional existam
normas costumeiras, de caráter pretensamente obrigatório (jus cogens), não se pode (por ora)
apontar uma norma que sirva de fundamento de validade jurídico-formal para a ordem
jurídica internacional.
Entretanto, Kelsen esforça-se por apontar a existência de uma norma fundamental do
direito internacional (idem, p. p. 239-242). Para o jurista, pode-se considerar o direito
internacional em duas distintas situações: como validado pela soberania dos Estados, tendo
seu fundamento de validade nas Constituições estaduais; ou como “ordem jurídica soberana,
supra-ordenada a todas as ordens jurídicas estaduais, delimitando-as, uma em face das outras,
nos respectivos domínios de validade [...]” (idem, p. 239). No primeiro caso, o fundamento de
validade seria o mesmo da ordem jurídica interna, pois que o direito internacional seria
validado pela própria Constituição (norma posta) e esta seria validada por uma norma
pressuposta. No segundo caso, o direito internacional seria validado por uma norma
pressuposta. Nesse caso, a ordem jurídica dos Estados não seria validada por uma norma
6
Cf. também CONDORELLI; CASSESE, 2012, p. 14-25.
Para Max Weber, “[o Estado] é a única fonte do ‘direito’ de exercer coação” (WEBER, 1999, p. 525).
8
“A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas n mesmo plano, situadas umas ao lado das
outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de dependência que resulta do fato de
a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja
produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental
– pressuposta.” (KELSEN, 2009, p. 247).
7
41
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
pressuposta, mas sim por uma norma posta: a norma de direito internacional, esta sim
pressuposta. Por sua vez, a norma de direito internacional teria seu fundamento de validade
em uma norma fundamental, na qual, como no âmbito interno, “não está contida qualquer
afirmação de um valor transcendente ao Direito positivo; nem mesmo do valor paz [...]”
(idem, p. 241). Nessa segunda hipótese, a ordem jurídica internacional é concebida como
ordem jurídica soberana, alterando o significado de soberania dos Estados, e estabelecendo-os
como “comunidade jurídico-internacionalmente imediatas”, uma vez que sua “soberania” está
subordinada à ordem jurídica internacional (idem, p. 242)9.
Vê-se que Kelsen tenta conciliar a convivência das ordens jurídicas internas e
internacional com a ideia de uma norma fundamental que confira validade última à normaápice do ordenamento e ainda com a ideia de que o locus da soberania é de onde irradia a
norma fundamental. Assim, se a soberania é dos Estados, a norma fundamental será do âmbito
interno e este é que irá validar o direito internacional, por meio de sua Constituição; porém, se
a ordem internacional é soberana per se, então as normas-ápice dos ordenamentos internos
(Constituições) é que encontrarão fundamento de validade em uma norma fundamental
internacional. Apesar de apresentar as hipóteses, Kelsen não aponta qual das duas aplica-se à
realidade global contemporânea10.
H. L. A. Hart refuta veementemente a pretensa necessidade que se atribui ao direito
internacional de possuir uma norma fundamental. Para Hart, as especificidades do direito
internacional são de forma não de conteúdo. Não se pode, portanto, querer estabelecer
análises do direito internacional a partir de comparações com estruturas assemelhadas (mas
não iguais) do direito interno. O autor britânico observa que a ausência de um poder
legislativo internacional, de tribunais com jurisdição compulsória e sanções centralmente
organizadas faz com que o direito internacional não tenha normas secundárias 11 de
modificação e julgamento nem uma norma de reconhecimento unificadora que especifique as
9
O mesmo argumento é apresentado no texto “Porque a lei deve ser obedecida?”. O texto é parte da obra “O que
é justiça?”, publicado pela primeira vez em 1952. No texto, Kelsen reafirma que a validade de uma norma no
direito positivo, e a razão pela qual ela deve ser obedecida, deve-se à norma hierarquicamente superior,
chegando-se a uma norma fundamental pressuposta. Da mesma forma, o motivo para a validade do Direito
internacional será uma norma pressuposta, a qual institui o costume como fato criador do Direito. Esta será, em
última análise, também o motivo da validade das ordens jurídicas nacionais. Cf. KELSEN, 2001, p. 251-259.
10
Importa destacar que Kelsen adota a teoria monista com prevalência do Direito internacional. Segundo essa
concepção, a ordem jurídica internacional complementa o Direito nacional, abrangendo todas as ordens jurídicas
nacionais. Cf. KELSEN, 1998, p. 516 e ss.
11
Para Hart, as normas primárias (embora na denominação de Hart ele sempre se refira a “regras”) são aquelas
que determinam uma obrigação (“regras de obrigação”). Ocorre que o ordenamento jurídico não pode contar
apenas com essas normas pois estas têm “defeitos” que lhes são inerentes. Assim, o ordenamento conta ainda
com normas secundárias, as quais dizem respeito às normas primárias, estabelecendo exceções, formas de
aplicação e a alteração destas (HART, 2009, p. 105 e passim).
42
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
fontes do direito e forneça critérios gerais para a identificação de suas normas (HART, 2009,
p. 277)12.
Contudo, Hart sustenta que não se pode com isso afirmar a inexistência do direito
internacional, ou tente conciliar sua existência (evidente) com uma norma fundamental. Para
Hart, trata-se de um direito distinto, mas ao qual não se pode negar o estatuto de Direito. O
autor critica as tentativas de estabelecer analogias do direito internacional com o direito
interno na tentativa de afirmá-lo como “direito”:
Como já dissemos, [a estrutura do direito internacional] se assemelha na forma
embora não no conteúdo, a um regime simples de direito primário ou
consuetudinário. Entretanto, alguns teóricos, ansiosos por defender contra os céticos
o título do direito internacional a ser chamado “direito”, sucumbiram à tentação de
minimizar essas diferenças formais e de exagerar as analogias que podem ser
encontradas no direito internacional com a produção de leis ou outras características
formais desejáveis do direito interno. (idem, p. 301)
Para Hart a pergunta a fazer não é qual a norma fundamental do direito internacional,
mas sim porque fazer essa suposição a priori. O autor defende a possibilidade de existirem
conjuntos de normas que não necessariamente precisam ser validadas por uma norma
unificadora. A crítica de Hart à Kelsen é expressa:
Kelsen e muitos teóricos modernos insistem em que o direito internacional, como o
interno, possui, e de fato precisa possuir, uma “norma fundamental”, aquilo que
chamamos de norma de reconhecimento, em relação à qual se avalia a validade das
outras normas do sistema e em virtude da qual as normas constituem um único
sistema. (idem, ibidem)
Nesse sentido, a validade do direito internacional, para Hart, não necessariamente
reside em uma norma fundamental (ou em uma norma de reconhecimento, segundo seus
conceitos teóricos). Para o autor, o direito internacional é um conjunto de normas os quais se
assemelham ao direito interno quanto ao conteúdo, e não à forma, não havendo portanto, uma
norma fundamental que ofereça critérios gerais de validade para suas normas. Hart não afasta
a possibilidade de o direito internacional se desenvolver a ponto de assemelhar-se a um
sistema como o direito interno. Nesse caso as analogias que ele refuta passariam a ser válidas;
mas afirmá-las no contexto contemporâneo é ainda precipitado (idem, p. 305)13.
12
Para Hart a regra máxima do ordenamento é a norma de reconhecimento, a qual conte os fundamentos da
validade de todas as demais regras. Em Hart também existe a concepção de um sistema jurídico escalonado, cujo
ápice é ocupado pela norma de reconhecimento. Entretanto, para o britânico essa norma é explicada pela prática
(fundamento empírico da norma fundamental). Cf. HART, 2009, p. 129 e ss.
13
A veemência da crítica de Hart aos teóricos que buscam enquadrar o direito internacional em formas e
conceito teóricos típicos do direito interno é ainda ironicamente explicitada pelo autor na seguinte passagem:
43
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Com isso, Hart desvia a validade do direito internacional de aspectos formais para
aspectos factuais. Nesse sentido, é importante considerar outros critérios de validade das
normas e do ordenamento jurídico para além de abordagens meramente formais. A
legitimidade e a eficácia do direito internacional podem ser critérios elucidativos para o
reconhecimento da validade das normas de direito internacional.
4 LEGITIMIDADE COMO CRITÉRIO DE VALIDADE
É bem verdade que o conceito de validade por meio do qual refletimos as questões
apresentadas até então não considera aspectos importantes como o conteúdo ético e a
repercussão social das normas jurídicas. Robert Alexy chama a atenção que a validade do
Direito pode ser pensada em correspondência aos conceitos de Direito (ALEXY, 2009, p. 101
e ss.).
O autor destaca os conceitos sociológico e ético de validade, além do conceito
jurídico. Pelo conceito de validade ética, as normas são válidas quando moralmente
justificadas. Por sua vez, a validade sociológica levaria em conta a efetiva repercussão da
norma na sociedade. Sob esse viés, uma norma seria válida se fosse observada ou se, no caso
de sua inobservância, haja a punição estabelecida (idem, p. 102).
A questão da legitimidade da norma jurídica ressoa como essencial nas discussões de
Teoria Geral do Direito. Uma das razões aparente é o fato de esse elemento propor uma
aproximação, ainda que tímida, das teorias juspositivistas a explicações que consideram
alguma justificativa para validade do Direito que foge ao próprio sistema. Chega-se a um
limiar em que se questiona donde deriva o fundamento de validade da norma jurídica. Nesse
ponto, muitos autores tergiversam em considerar, ou não, a importância de fatores “externos
ao sistema” (BOBBIO, 1995, p. 63).
De onde advém a legitimidade é questão que os juristas, notadamente os positivistas,
preferem desviar, sob a alegação de que esta não é função de uma teoria cientifica do Direito.
Embora o fundamento da legitimidade em si seja relegado a segundo plano, o da função que
ela exerce não o seja. Assim é que os autores consideram a legitimidade como fundamento de
“Há algo de cômico nos esforços para encontrar uma norma fundamental nas formas mais simples de estrutura
social, que existem sem necessitar dela. É como se afirmássemos com insistência que um selvagem nu na
realidade está vestido com um tipo invisível de roupa moderna.” (HART, op. cit., p. 304).
44
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
validade da norma jurídica (KELSEN, 2009, p. 233; BOBBIO, 1995, p. 60;
VASCONCELOS, 2000, p. 235).
A concepção de ordenamento jurídico escalonado de Kelsen aponta para a norma
imediatamente superior em hierarquia como fundamento de sua validade. Assim, a norma é
válida por ser autorizada por uma norma superior no ordenamento escalonado. Chega-se
assim, à Constituição e, acima dela, a uma norma pressuposta (KELSEN, 2009, p. 225).
Nesse aspecto, Kelsen mantém sua proposta de neutralidade axiológica na concepção do
principio da legitimidade. Daí sua afirmação:
Dum ponto de vista jurídico, é indiferente que esta modificação da situação jurídica
seja produzida através de um emprego da força dirigida contra o governo legítimo
ou pelos próprios membros deste governo, através de um movimento de massas
populares ou de um pequeno grupo de indivíduos. (idem, ibidem)
De certa forma, essa concepção da legitimidade do ponto de vista pretensamente
neutro em busca de uma afirmação da ciência do Direito é defendida por Bobbio. O autor,
demonstrando a dependência de uma norma fundamental para justificar o poder constituinte e
a unidade do sistema jurídico, postula que desta norma fundamental deriva a legitimidade de
todo o sistema. Assim, uma norma é válida se tiver sido criada em obediência às regras do
ordenamento. Ou seja, a pertinência ao ordenamento é que a caracteriza como válida e,
portanto, apta a produzir efeitos. Bobbio simplifica a questão ao afirmar: “Significa que
consideramos legítima a Constituição porque foi legitimamente estabelecida.” (BOBBIO,
1995, p. 60).
O autor chega a reconhecer que a questão da norma fundamental leva, por fim, a uma
discussão acerca do fundamento do poder, elencando três respostas mais frequentes: todo o
poder advém de Deus; o dever deriva de uma lei natural; o poder constituinte deriva de uma
convenção originária (idem, p. 64).
Arnaldo Vasconcelos, por sua vez, trata a legitimidade sob um viés axiológico,
considerando-a como uma “instância de valor”, reconhecendo que, por meio da legitimidade,
“verifica-se a preeminência do fato político sobre o jurídico, colocando-se a legitimidade por
cima da justiça” (VASCONCELOS, 2000, p. 234). O autor faz tal afirmação sob a observação
de que, no sistema jurídico positivista, “a justiça não integra o conceito essencial de Direito”
(idem, ibidem). Vasconcelos enfrenta a questão sobre a autoridade do poder que instaura uma
ordem jurídica, reconhecendo que esse, para se impor, necessita ser legítimo.
45
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Parece correta a abordagem do autor, que reconhece a legitimidade como elemento
fundamental para que o poder soberano se imponha. Desta forma, a legitimidade é
reconhecida em seu aspecto social e político (idem, p. 246). Entretanto, isso não quer
significar que todo governo legitimado pelo contexto histórico que o reconhece como
soberano seja justo. Nesse aspecto, o autor é claro ao enfatizar preliminarmente que “a norma
pode ser justa, sem ser legítima, legítima, sem ser justa e, ao mesmo tempo, justa e legítima
ou injusta e ilegítima” (idem, p. 234).
5 LEGITIMIDADE E EFICÁCIA NO DIREITO INTERNACIONAL
A compreensão da validade do direito internacional deve considerar, como alerta
Hart, que características da norma diferenciam o direito internacional do direito interno. Essas
características decorrem do meio onde são produzidas as normas internacionais, ou seja, no
seio da sociedade internacional. Como visto, a visão clássica incluía apenas os Estados como
legítimos sujeitos de direito internacional. Ainda no contexto pós-westfaliano os Estados são
os principais construtores dessa ordem jurídica, contudo novas modalidades de arranjos
jurídicos têm surgido – tais como acordos bilaterais ou multilaterais envolvendo pessoas
jurídicas de direito privado.
Apesar de o sistema jurídico internacional apresentar caracteres comuns ao direito
interno por se tratar de uma ordem normativa, dotado de sanção em decorrência a um fato
ilícito, outras características o distinguem. Mello, citando Aguilar Navarro, aponta algumas
como o fato de as normas no sistema jurídico internacional apresentarem poucas normas em
número, ter normas extremamente abstratas e serem atributivas, “no sentido de darem uma
competência sem assinalarem a materialidade da ação a executar” (MELLO, 2004, p. 83).
A essas características, outras podem ainda ser acrescidas como o faz o mesmo autor
referindo-se a Serge Sur: relatividade, uma vez que cada Estado desenvolve a sua concepção
sobre ela e o fato de que a mudança das normas internacionais é mais ampla do que o que se
observa no direito interno (idem, p. 84).
Como expressão do Direito (lato sensu), o direito internacional necessita de força
jurídica para estabelecer limites à ação dos membros da sociedade internacional e cumprir seu
objetivo de ordenar essa convivência global14. Para tanto, retomando as lições de Miguel
14
Não se quer com isso dizer que a validade da norma resida na força. Contudo, esse elemento indica a validade
da norma, embora seja possível existir norma válida que não requisite força para seu cumprimento.
46
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Reale, é necessário que a regra de direito seja formalmente válida e socialmente eficaz
(REALE, 2002, p. 113). Esse requisito aponta à condição da legitimidade na produção e
aplicação da norma. Da legitimidade depende a efetividade do direito, o que não é diferente
no âmbito do direito internacional.
Legitimidade, todavia, não é conceito uníssono. Sob um ponto de vista clássico,
legitimidade tem sido definida como justificação de autoridade, em termos mais precisos, a
capacidade de tomar decisões obrigatórias ou de prescrever regras cujo cumprimento deve ser
obrigatoriamente respeitado (WOLFRUM, 2006, p. 6).
Para além da visão clássica, Bodansky busca superar a legitimidade normativa,
elegendo uma abordagem que inclui dois tipos de legitimidade: política e social. Para o autor,
legitimidade social é aquela atribuída pela aceitação dos atores de uma dada sociedade. Em se
tratando da sociedade internacional, esses atores são os Estados, mas aí também inclusos as
ONGs, as corporações e os indivíduos que crescentemente tem tomado parte no concerto
internacional (BODANSKY, 2008, p. 313). Interessante observar que a própria inclusão
desses últimos atores, não legitimados pela clássica ordem westfaliana, ocorre também pela
via da legitimidade que a eles tem sido atribuída.
Essa legitimidade social tem ganhado peso com a inclusão de novos atores além dos
Estados nas relações internacionais. Também as organizações internacionais, compostas
eminentemente por Estados, mas com muitos organismos já incluindo representantes da
sociedade civil – como faz a OIT desde sua fundação, pautada no princípio do tripartismo –
tem sido legitimadas para atuar autonomamente no cenário internacional, inclusive como
produtores e executores de normas.
Nesse contexto, a legitimidade que se atribui a um organismo ou outro sujeito de
direito internacional depende do exercício de autoridade que ele exerce. Assim, “instituições
exercendo diferentes tipos de legitimidade necessitam de diferentes bases de legitimidade”
(idem, p. 316).
Obviamente que ao exercício da autoridade exercida por determinado sujeito
internacional, deve-se adicionar que a soberania clássica ainda repercute como uma fonte de
legitimidade para atuação dos Estados no cenário internacional, tendo habilidade para
negociar e para aderir a acordos internacionais (WOLFRUM, 2006, p. 6).
Não se pode olvidar que o direito internacional é (ainda) bastante dependente da
ordem jurídica interna de cada Estado. Tomando-se a análise da aplicação de tratados da atual
ordem jurídica internacional, vê-se que o plano internacional submete-se ao interesse interno,
ainda que no plano externo haja uma base de consensualidade para aprovação e adoção de um
47
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determinado acordo. Há, portanto, uma importante “cadeia de legitimidade” conectando
ordem jurídica interna e externa (idem, p. 7).
Nesse sentido, Wolfrum questiona a legitimidade de tal corrente quando se
estabelece relações com Estados não-democráticos, sobretudo porque o direito internacional
não é provido de sanções automáticas contra Estados organizados em estrutura diferente
daquela que vem sendo crescentemente exigida, qual seja, uma democracia representativa
liberal de tipo ocidental.
Acrescente-se que este aspecto tem sido utilizado como argumento para intervenções
internacionais violentas no âmbito interno de vários países, como se tem observado desde a
Guerra do Golfo até a mais recente operação da OTAN contra o ditador líbio Muammar
Gadafi. Isso evidencia a dificuldade de se estabelecer um sistema jurídico uno onde os
sujeitos legitimados a construí-lo estão em igualdade jurídica, mas não de fato. De fato, existe
uma enorme disparidade de poder entre os países, daí decorrendo uma imposição de vontade
por parte das grandes potências.
Paralelamente a tais importantes questões acerca da legitimidade, a eficácia do
direito internacional encontra ainda obstáculo na heterogeneidade do sistema internacional.
Matz-Lück aponta para o crescente estabelecimento de cortes internacionais e outros
mecanismos de regulação de disputas na ordem internacional como causa de uma
fragmentação do direito internacional (MATZ-LÜCK, 2008, p. 99-121, passim).
A instalação de tribunais especializados e a superveniência de competência entre um
tribunal e outro – sem que seja claramente atribuída uma competência para resolução de
conflitos de competência entre tais tribunais – pode ensejar por parte do jurisdicionado a
escolha do órgão jurisdicional que lhe possa ser mais benéfico15.
Em 2006, o Grupo de Estudos da Comissão de Direito Internacional da ONU
apresentou relatório acerca da fragmentação do direito internacional. Não obstante o
reconhecimento por parte da comissão da multiplicação de órgãos jurígenos e jurisdicionais
no âmbito internacional, o relatório reconheceu a existência de um sistema legal internacional.
Para a comissão, “o sistema internacional não é uma coleção aleatória de normas” (apud
MATZ-LÜCK, op. cit., p. 105).
Daí é que o autor reconhece, como o faz Bodansky (2008), a existência de diferentes
bases de legitimidade na ordem jurídica internacional. Todavia, ainda que esse sistema não
15
Matz-Lück justifica a possibilidade de tal prática pelo fato de no sistema jurídico internacional não haver uma
norma genérica de litispendência que impeça ou dificulte a proposição de ação da mesma lide em diferentes
tribunais. Cf. MATZ-LÜCK, op. cit., p. 102.
48
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seja dotado da unidade e hierarquia no que concerne a produção e aplicação de normas, não se
pode negar a sua existência. Para Matz-Lück, a fragmentação é inerente ao direito
internacional. As regras são mais genéricas e aplicáveis, na maioria dos casos, entre as partes
que se submeteram a adotá-las. Dessa forma, não se pode falar de um corpus normativo como
se pode observar em ordenamentos jurídicos internos (MATZ-LÜCK, op. cit., p. 107).
Apesar das limitações da fragmentação do direito internacional para sua legitimidade
e eficácia, a crescente atividade jurisdicional tem levado a uma experiência de
operacionalização do direito internacional que aponta para a construção de uma jurisprudência
minimamente coerente (ibidem). Mesmo com os riscos de competição entre regras e
organismos
jurisdicionais
no
âmbito
internacional,
há
também
um
importante
desenvolvimento do internacionalismo jurídico e conseqüências a nível interno de cada país.
Justifica-se, portanto, a prática do direito internacional na medida em que ela
proporciona legitimidade a um sistema jurídico em constante construção e que tem apontado
gradualmente a uma conformação coerente. Assim observa Matz-Lück analisando a adoção
de precedentes por diferentes cortes, e mesmos sistemas, do direito internacional (idem,
ibidem).
Em consonância com esse posicionamento, Wolfrum entende que o direito
internacional tem desenvolvido formas sutis de influenciar a organização jurídica e
administrativa dos Estados, ainda que de forma indireta. Sob uma visão alargada do conceito
de eficácia jurídica, esta seria já uma eficácia indireta do direito internacional (WOLFRUM,
2008, p. 10).
Por certo que estamos longe da construção de um sistema unificado de normas
(substantivas e adjetivas) no âmbito internacional. Porém, muitos passos tem sido dados na
construção de uma governança global que seja capaz de conferir legitimidade suficiente para
operacionalização de um tal sistema. Diante da intensificação da vida social global e da
afirmação de sujeitos de direito internacional que não os Estados, não há falar-se em
retrocesso no que concerne à construção de um sistema de direito internacional.
Essa expansão foi tema do X Congresso Brasileiro de Direito Internacional, em
2012. Para Wagner Menezes, presidente da Academia Brasileira de Direito Internacional,
organizadora do evento,
o fenômeno da internacionalização não é um ‘modismo’ do Direito e, sim,
decorrência de uma nova realidade global, consolidada a partir da sociedade
internacional contemporânea, que evolui para a maior institucionalização das
49
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relações entre os Estados e engloba uma dinâmica agenda internacional, na qual são
incorporados novos temas, mecanismos e atores. (MENEZES, 2011, p. 27)
A expansão do direito internacional acompanha o impulso dado pelo fenômeno da
juridicização das relações sociais. Emmanuelle Jouannet argumenta que o direito e, nessa
toada, o direito internacional têm-se expandido sobremaneira, alcançando o que a autora
chama de “panjuridismo”, na medida em que o Direito é chamado a regular os mais diversos
domínios da vida social. Jouannet alerta para o fato de que replicação de normas já em vigor
no direito interno pelo direito internacional além das promessas ambiciosas que se tem
defendido pode levar ao enfraquecimento do próprio direito internacional no que concerne à
sua legitimidade e eficácia (JOUANNET, 2007, passim).
Certamente que o alerta de Jouannet não se aplica apenas ao direito internacional,
podendo estender-se ao direito interno diante de fenômenos contemporâneos como a
judicialização da política. Contudo não se pode deixar de considerar o fato de que o direito
internacional tem realmente se desenvolvido a ponto de regular cada vez mais matérias, antes
consideradas específicas demais para serem universalizadas por normas internacionais.
De toda forma, não se pode dar as costas para o avanço do direito internacional e sua
paulatina presença do cotidiano forense. Recair na postura dos céticos apontados por H. L. A.
Hart que não consideram o direito internacional “direito” ou de adotar subterfúgios teóricos
para justificar a validade do direito internacional com base em concepções construídas para
explicar o direito interno não parece adequado.
Malgrado a evidente expansão do direito internacional, a pergunta lançada por
Anthony D’Amato – a qual intitula célebre artigo de 1984 – ainda é respondida por muitos de
forma negativa. D’Amato lança seu questionamento – “Direito internacional é realmente
‘Direito’?” – argumentando que os processos de aplicação do direito internacional são
distintos, e contam muito mais com ações políticas para alcançar eficácia, o que não quer
dizer que o Direito internacional não seja “Direito” (D’AMATO, 1985, passim).
O autor refuta a argumentação genericamente apresentada contra a juridicidade do
direito internacional com base na alegada falta de eficácia coativa. Para D’Amato coação não
é marca distintiva do Direito, portanto, não se pode argumentar pela inexistência do direito
(internacional ou qualquer outro) pelo fato de não alcançar os fins pretendidos pelas normas
estabelecidas. O autor sustenta que é possível imaginar uma sociedade idílica em que haja
Direito e que não haja uso da força, nem mesmo sequer os aparelhos estatais para uso da
força. Não havendo necessidade da coação, ela resta apenas como uma possibilidade, logo a
coação não é intrínseca nem necessária à existência do Direito (idem, p. 1297).
50
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Juntamente com esse argumento – e também o argumento de linguagem segundo o
qual o autor afirma que as discussões jurídicas em torno do direito internacional já o conferem
existência16 – D’Amato defende que a aplicação do direito deve ser observada sob o viés das
prerrogativas que são conferidas aos participantes da sociedade jurídica (entitlements17) e que
lhes são restringidos caso uma dessas partes violem as normas. Nesse sentido, torna-se mais
fácil pensar em outras formas de sanção além da coação física, tais como sanções sociais,
morais e políticas.
Em seu raciocínio, D’Amato considera os Estados como um conjunto de
prerrogativas (entitlements) de diferentes matizes, dentre os quais os mais importantes são a
inviolabilidade de fronteiras, o exercício da jurisdição e a proteção de seus nacionais quando
estes estão além das fronteiras18. Cada novo Estado na sociedade internacional consente na
aceitação do conjunto de prerrogativas (entitlements) que é inerente a cada Estado, de forma
igualitária. Entretanto, as prerrogativas de um podem ser violadas por outro (e.g. violação da
imunidade diplomática ao se atacar uma embaixada). Nesse contexto, D’Amato sustenta que
um Estado atingido em um de suas prerrogativas pode retaliar em outra frente, visando a
comprometer outra prerrogativa do Estado que o atacou.
Como exemplo, o autor apresenta o caso da ocupação da embaixada dos Estados
Unidos, em Teerã (capital do Irã), em 1979. Esta foi considerada uma violação à prerrogativa
imunidade diplomática. Como retaliação, os EUA não restringiram a mesma prerrogativa do
Irã, ocupando sua embaixada em Washington ou expulsando os diplomatas iranianos do
território estadunidense. Os EUA optaram por responder ao ataque restringindo (violando) a
prerrogativa do Irã no que concerne ao uso de depósitos bancários no exterior. Dessa forma,
os EUA “congelaram” aproximadamente treze bilhões de dólares iranianos depositados em
bancos estadunidenses (idem, p. 1312).
Essa é uma forma muito comum de se atuar no âmbito do direito internacional, em
que muitos aspectos de relações internacionais estão em jogo. D’Amato defende que é
juridicamente possível a retaliação contra a violação de uma prerrogativa com a violação de
uma prerrogativa de natureza diversa. D’Amato chama esse processo de “violação recíproca
de prerrogativas” (reciprocal-entitlement violation), o qual seria o meio de coação do Direito
internacional, que só em última instância opera com o uso da força. Isso não quer dizer que o
Direito internacional seja ineficaz por isso.
16
Idem, p. 1301-1302.
Também se pode traduzir entitlement por “direito subjetivo”.
18
Idem, p. 1308.
17
51
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Abordagens mais recentes têm buscado compreender a legitimidade e a eficácia do
Direito internacional com base em critérios próprios a esse ramo do Direito. Nesse sentido,
Andrew Guzman defende que o Direito internacional não pode ser dissociado da política
internacional. O autor destaca que “o direito internacional tem o potencial de influenciar o
comportamento dos Estados, mas ele sempre o faz em um contexto político.” (GUZMAN,
2008, p. 217)
Segundo a tese defendida por Guzman, uma violação ao Direito internacional pode
custar ao Estado três custos, na seguinte ordem de grau de intervenção: reputação,
reciprocidade e retaliação (os três Rs) (idem, p. 33-48). Essas formas de aplicação do Direito
internacional coadunam-se com a ideia de violação recíproca de prerrogativas de D’Amato e
colocam a questão da eficácia do Direito internacional em termos bem mais complexos do
que a simples mensuração da aplicação de sanções diretamente previstas para o caso de
inobservância a uma norma de suas normas.
Do ponto de vista da validade do Direito internacional, é mister lançar mão de
concepções e fontes outras que não as estritamente jurídico-formais. A atribuição imperativa
de uma norma fundamental como unificadora do ordenamento jurídico tem-se mostrado
problemática. Ao contrário, a legitimidade e a eficácia dessas normas no contexto da
sociedade internacional, compreendida com auxílio do olhar das relações internacionais, são
conceitos de validade que se mostram apropriados. Análises factuais, que busquem descrever
o Direito internacional a partir de suas práticas, de sua forma e de sua eficácia específica,
contribuem para amadurecer a compreensão dos fenômenos do Direito internacional e
certamente refutarão muitas das atribuições teorísticas que foram construídas sem o devido
cotejo com a realidade.
Diante de todo o exposto e do irrefreável avanço do processo de internacionalização
do Direito – consequência da intensificação dos processos de globalização e relativização
da(s) soberania(s) – é desarrazoada qualquer tentativa de negar validade ao Direito
internacional. E tão insensata quanto essa atitude é valer-se de instrumentos teóricos
construídos para a análise do direito doméstico no intuito de compreender o Direito
internacional. É preciso compreender esse ramo jurídico em suas especificidades.
52
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A validade da norma jurídica (e do ordenamento jurídico) é conceito caro à Teoria
Geral do Direito. Pela validade, pode-se afirmar a vigência da norma, ou seja, sua aptidão
para incidir determinando uma conduta. Também pela via da validade busca-se chegar ao
fundamento da norma, a razão pela qual ela encontra sua força para incidir. Outra importância
atribuída à validade é o estabelecimento de critérios de unificação do ordenamento, a partir de
um ponto de irradiação de normas.
O positivismo jurídico ressalta o conceito formal de validade como critério
primordial. A partir da concepção de ordenamento jurídico escalonado, as normas encontram
fundamento de validade naquelas que estão hierarquicamente acima, até alcançar a
Constituição, norma que rege as demais no ordenamento. Acima da Constituição, haveria uma
norma fundamental, pressuposta, que por sua vez lhe conferiria validade.
A compreensão da validade do Direito internacional requer um entendimento da
soberania como o poder inerente ao Estado, a partir do qual a norma fundamental é
engendrada. No âmbito interno, é possível estabelecer uma hierarquia de produção normativa
a partir do Estado, haja vista que não há outras soberanias a competir com o poder Estatal
(conferido pelo povo, por meio do contrato social). Assim, justifica-se conceber uma normaápice que coordena a produção e aplicação das demais. Todavia, afigura-se mais complexo o
estabelecimento de um sistema jurídico hierarquicamente ordenado no âmbito da sociedade
internacional – em que várias soberanias convivem no mesmo patamar hierárquico.
Uma análise da validade do Direito internacional – assim como de outras
características desse ramo do Direito – devem levar em conta suas especificidades. A
comparação do Direito internacional com o Direito doméstico no que concerne a sua estrutura
e funcionamento (em suma, à sua forma) pode conduzir a equívocos.
Nesse contexto, outros conceitos de validade do Direito além dos critérios
meramente formais são de grande relevância para identificar a validade das normas de Direito
internacional. Os critérios social e ético apontados pela legitimidade e pela eficácia devem ser
considerados.
Ademais, é importante ter em mente uma abordagem que considere as relações
internacionais e suas peculiaridades. Nesse sentido, Anthony D’Amato (1985) e Andrew
Guzman (2008) contribuem com a indicação de formas de aplicação do Direito internacional
que demonstram sua eficácia, mas que não necessariamente seguem a lógica aplicada ao
Direito interno.
53
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A expansão do Direito internacional é fenômeno que se intensifica a cada dia,
impulsionado pela intensificação do processo de globalização. A negação da validade do
Direito internacional ou sua limitação a um modelo teórico estabelecido para explicar o
Direito nacional padecem não apenas de insensatez, mas também de pungente anacronismo.
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56
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
UMA NOVA ORDEM JURÍDICA A PARTIR DA MUNDIALIZAÇÃO DAS
DECISÕES JUDICIAIS COMO REFLEXO DA SOCIEDADE DO RISCO – O
impulso para um Direito Transnacional e a Transfiguração da Soberania
UNA NUEVA ORDEN JURIDICA DESDE LA MUNDIALIZACIÓN DE LAS
DECISIONES JUDICIAIS COMO REFLEXO DE LA SOCIEDAD DEL RIESGO
– El impulso hasta un Derecho Transnacional e la Transfiguración de la Soberanía
Adriana Maria Gomes de Souza Spengler1
RESUMO
O presente artigo aborda as tendências de ampliação da esfera de intercâmbio das
decisões judiciais como preâmbulo a um efetivo Direito Transnacional na sociedade
atual. Busca-se fazer um diálogo entre a Teoria da Sociedade do Risco de Ulrich Beck e
a mundialização das decisões judiciais proposta por Jullie Allard e Antonie Garapon. A
partir da análise da teoria da Sociedade do Risco e seu alcance, a concretização da
esfera de proteção dos chamados novos riscos pode encontrar um caminho na chamada
mundialização dos juízes, tida como uma nova ordem jurídica capaz, até mesmo, de
transfigurar a soberania dos Estados e possibilitar o surgimento de um verdadeiro
Direito Transnacional capaz de responder aos novos anseios globais.
Palavras-chave: Decisões Judiciais; Ordem Jurídica; Sociedade do Risco; Direito
Transnacional
ABSTRACT
El presente artículo aborda las tendencias de ampliación de la esfera del Intercambio de
las decisiones judiciales como preâmbulo de un efectivo Derecho Transnacional en la
sociedad actual. Se busca hacer un diálogo entre la teoria de la Sociedad del Riesgo de
Doutoranda em Ciências Criminais na Universidade do Minho,UMINHO, Portugal. Mestre em Ciências
Jurídicas pela UNIVALI, Brasil. Especialista em Direito Penal Empresarial pela UNIVALI, Brasil.
Professora de Direito Penal da Graduação e Pós-graduação na UNIVALI.
1
57
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Ulrich Beck y la mundializacion de las decisiones judiciales propuesta por Jullie Allard
y Antonie Garapon. A partir del análisis de la teoria de la Sociedad del Riesgo y su
alcance, la concretización de la esfera de protección de los llamados nuevos riesgos
puede encontrar un camino en la llamada mundialización de los jueces, tenida como una
nueva orden jurídica capaz, hasta mismo, de una transfiguración de la soberania de los
Estados y posibilitar el surgimiento de un verdadero Derecho Transnacional capaz de
responder a los nuevos deseos globales.
PALABRAS-CLAVES: Decisiones Judiciais; Orden Juridica; Sociedad del Riesgo;
Derecho Transnacional
INTRODUÇÃO
O novo contexto global e a necessidade de “descrever um espaço judicial que
nasça independentemente da referência a um sistema jurídico homogêneo e
vinculativo”2, típicos do Estado Moderno mas que não mais pode perdurar, tem na
chamada mundialização das decisões judiciais sua via de concretização, pois, coloca em
questão não só a posição dos juízes frente o poder público mas as restrições próprias de
um julgamento, a possibilidade de modificar o estilo judicial e aumentar a racionalidade
das decisões da justiça. Desafia a uma “coexistência” harmoniosa entre os vários
sistemas jurídicos.
Se vincularmos essa tendência na perspectiva da sociedade pós-industrial,
tendo como base a teoria da sociedade do risco, mais claramente surge a possibilidade
de flexibilização de um marco ideológico firmado no Estado Moderno: a idéia de
Soberania e mais próximo se estará de um Direito Transnacional.
A sociedade industrial e o desenvolvimento da idéia de Estado nacional estão
em xeque no novo contexto global de uma sociedade tecnológica e de riscos que
superam a idéia de territorialidade tipicamente relacionada ao conceito de soberania.
2
ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. Os juízes na mundialização. A nova revolução do Direito.
Lisboa: Editora do Instituto Piaget. p.05
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Os antigos perigos que, anteriormente, atingiam somente os países periféricos e
de forma regionalizada, vêm sendo substituídos pela idéia de riscos, mais amplos e de
alcance global.
Neste novo formato de sociedade, ao contrário da racionalidade controladora
da sociedade industrial, aflora a incerteza, a ambivalência. O Direito diante desse novo
paradigma pós-moderno deve ser repensado.
Para tanto, o presente artigo enfatiza a necessidade de harmonizar as exigências
de eficácia na proteção dos riscos tendo como base o intercâmbio das decisões judiciais
a propiciar não somente a proteção jurídica dos riscos globais mas como impulso de um
Direito Transnacional.
1. A revolução tecnológica como mudança de paradigma: A Sociedade global de
riscos de Ulrich Beck
No entender de Boaventura de Souza Santos 3 a sociedade está posta em cheque
por novos paradigmas, e o paradigma da modernidade só estaria a perdurar como
dominante em função da inércia histórica.
Nesse contexto, a teoria da Sociedade do Risco4 formulada pelo teórico alemão
Ulrich Beck analisa a produção dos riscos5 e seus desdobramentos, como determinantes
3
SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na
transição paradigmática, vol.1, 3ªed. São Paulo:Cortez, 2001. p.15 (prefácio)
4
Explica WERNECK, Alexandre. ( sociólogo e pesquisador (de pós-doutorado) do Núcleo de Estudos da
Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ). O horizonte de "Sociedade de risco" é o da “sociedade
industrial”, ou seja, ele parte de uma tese sobre a própria modernidade (e, portanto, sobre a própria
sociologia), afirmando o papel de protagonista – que classicamente é apontado por vários autores, como
Durkheim – da industrialização na diferenciação entre os mundos pré-moderno e moderno. E a extensão
mais poderosa disso seria o poder da tecnologia e do desenvolvimento industrial nas próprias relações
sociais. Beck afirma que elas foram profundamente transformadas por seu próprio desenvolvimento, que
produziu o risco global. E se na década de 1980 em que o sociólogo escreveu seu livro o cerne desse
desenvolvimento era a produção centrada na transformação de formas de energia (as grandes industrias
do século XX são a do automóvel, a da produção de recursos energéticos e a militar), nesse quarto de
século desde o lançamento original, essa transformação se mudou para o plano informacional, para uma,
digamos, sociedade (digital) de risco. São as tecnologias comunicacionais, a internet, a telefonia móvel,
etc. Tudo configurando um conjunto de “incertezas fabricadas” (aquelas criadas pelo próprio movimento
da vida social) ainda mais intensas, que se não aparecem concretamente descritas no livro, diante dele
adquirem uma nova luz.
59
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dessa mudança paradigmática na sociedade, afirma que a produção social de riqueza é
acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos; a distribuição dos riscos
não obedece proporcionalmente a distribuição de riquezas e se irradia para todos os
grupos sociais; o desmoronamento dos esquemas tradicionais da sociedade industrial foi
impulsionado por uma forte onda de individualismo nascida no pós-guerra; o
individualismo mina de inseguranças o processo de modernização, através de diversos
fatores decorrentes, a modernização é um processo complexo, sujeito a constantes (re)
avaliações e transformações em que o desenvolvimento democrático destrona o saber
científico e a ação política de seus respectivos monopólios e, por fim, caracteriza-se
pela relativização do saber científico e da ação política formando um ciclo vicioso na
produção dos riscos.6
O teórico alemão não olvida a existência de diferenças entre níveis sociais
distintos no tocante à exposição aos riscos na vida cotidiana, nos estudos, saúde, e
demais aspectos da vida em geral – aludindo aos riscos específicos de classes. Percebe,
da mesma forma, a existência de novas desigualdades internacionais, registrando neste
sentido que as indústrias geradoras de maior risco se deslocaram para os países em que
se pagam os menores salários7 .
Segundo Beck os riscos atuais se diferenciam pela globalização de sua ameaça
e por suas causas modernas, são os riscos da modernização. É um produto global da
maquinaria do progresso industrial e são acentuados sistematicamente por seu
desenvolvimento posterior. São problemas decorrentes do próprio progresso científico.
Dessa forma o processo de modernização se torna reflexivo, e torna a si mesmo como
tema e problema.8
5
Ulrich Beck denominou em 1986, a sociedade em que vivemos de “sociedade do risco”. Outros autores
conceberam diferentes expressões como :”sociedade pós-moderna”, “sociedade da informação”,
“sociedade tecnológica”, “sociedade pós-industrial”. Anthony Giddens, refere-se a uma “modernidade
amadurecida”. O uso dessas diferentes expressões para designar a sociedade atual justifica-se desde que
se queira dar ênfase a uma ou algumas características, já que estas são as mesmas, independentemente da
variação nominativa. Todas, têm em comum a conexão com a idéia de risco global assim como Beck
sustenta.
6
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia uma nueva modernidad. Barcelona: Paidós Ibérica S.A.,
2002. p.25
7
BECK, Ulrich. Op.Cit., p.47
8
BECK, Ulrich. Op.cit., p.26. Importante destacar que o conceito de modernidade reflexiva é estruturante
da obra de Beck e esta, por sua vez, oferece sustentáculo teórico ao marco doutrinário representado pela
sociedade do risco.
60
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Além disso, os riscos também adotaram feições bastante particulares quanto às
proporções em que se apresentam. Uma atitude ou comportamento tomado em um
determinado local do planeta pode ter suas consequências estendidas a uma grande
quantidade de países, ou até mesmo, somente se fazerem sentir em local diverso daquele
em que foi praticada sua ação desencadeadora.
Desse modo, as populações locais têm que se preocupar com as ações
praticadas em seus territórios, mas também com as executadas em qualquer outra parte
do mundo. Mesmo em relação aos supostos riscos aos quais não deu causa, a população
se sente na obrigação de ficar alerta. Tem lugar aqui o conceito utilizado por Ulrich
Beck9 de glocalidade, que agrega a possibilidade de riscos simultaneamente sentidos em
perspectiva local e global.
A percepção dos riscos ambientais, por exemplo, faz com que muitos adotem
uma posição fatalista, que segundo Beck10, gera uma percepção pública dos riscos,
emergindo daí uma sociedade autocrítica disposta a reações e reformulações.
Nessa atual configuração dos riscos, as ações hoje perpetradas possuem efeitos
que podem perdurar por muito tempo. Durante esse período, a população padece sempre
sob o medo de que os efeitos prejudiciais sejam por ela sofridos, vivendo em uma
angustiante incerteza.
Compreendidas, assim, as bases da teoria de Ulrich Beck, no entender de
André Luiz Callegari11 torna-se fácil perceber a Sociedade do Risco como aquela em
que os constantes avanços tecnológicos, científicos e econômicos propiciam um
crescimento do conforto e do bem-estar individual da vida humana, porém, também
trazem aspectos negativos, como incremento dos riscos a que estamos submetidos, o
que acarreta uma demanda por segurança.
BECK, Ulrich. Op.Cit., p. 60.
BECK, Ulrich. O que é Globalização? Equívocos do Globalismo. Respostas à Globalização. Trad.
André Carone – São Paulo:Paz e Terra, 1999. p.175
11
CALLEGARI, Luiz André. Direito Penal e Globalização – Sociedade do Risco, Imigração
Irregular e Justiça Restaurativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.p.15
9
10
61
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E em determinado momento essa junção de fatores é percebida e torna-se
objeto de consideração pública, política, científica e do próprio Direito. Esse mecanismo
faz toda a sociedade se movimentar. O que, anteriormente, parecia funcional e racional,
agora, aparece como uma ameaça produzindo e legitimando uma disfuncionalidade e
irracionalidade nas instituições, impelindo-as a uma transição.
3. A interface entre a Sociedade do Risco e a idéia de Soberania.
O conceito de soberania sempre causou, e ainda hoje causa, inúmeras
divergências. As definições elaboradas no século XIX, por exemplo, traziam com muito
mais freqüência o termo "ilimitada" associado à idéia de soberania”. Arthur Machado
Paupério definiu soberania como "a autoridade suprema, irresistível, absoluta,
ilimitada"12, identificou-a como "o poder originário, absoluto, ilimitado e universal
sobre os súditos individualmente e sobre as associações de súditos"13
Na atualidade, há os que afirmem que o significado moderno de soberania diz
respeito a um "poder independente, supremo, inalienável e exclusivo."14
A soberania sempre esteve ligada à idéia de territorialidade, já que é o território
um dos elementos formadores do Estado. Os limites de uma soberania frequentemente
têm sido definidos por fronteiras geográficas; o controle do seu território é um dos mais
importantes elementos que compõem a soberania. Na perspectiva pós-moderna e diante
dos riscos globais, a natureza e a importância da soberania parecem estar a caminho de
sofrer flexibilizações.
Nesse contexto, a tendência atual é no sentido de que o Estado não pode tomar
qualquer decisão que lhe aprouver, simplesmente levando em consideração os
benefícios que lhe trará; atualmente, ao contrário, o Estado soberano parece dever cada
vez mais satisfações no que concerne às suas decisões, satisfações estas devidas não só
12
PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder: Teoria Democrática da Soberania.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 145-147, 3ed., vol.2, 1997.p.146.
13
PAUPÉRIO, Arthur Machado. Op.cit. p.146
14
FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 17,
62
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
à sua população, mas também a outros Estados soberanos e a órgãos internacionais. O
poder de julgar sem ser julgado – que integra o poder soberano – vem diminuindo
consideravelmente.
A globalização, no entender de Paulo Márcio Cruz15, rompeu a unidade do
Estado
Constitucional
moderno,
estabelecendo
novas
relações
de
poder
e
competitividade, com conflitos internos e transnacionais.
Daniel Sarmento16, em estudo sobre o tema, dispõe que a globalização vem
alimentando o processo de esfacelamento do Estado-Providência, na medida em que vai
corroendo o seu poder de efetivamente subordinar, de modo soberano, os fatores
econômicos e sociais que condicionam a vida de cada comunidade política. Cada vez
mais avulta a importância de variáveis exógenas sobre a economia nacional, sobre as
quais o Estado-nação não exerce nenhum poder.
Se as fronteiras são construções artificiais criadas pelos Estados, nos dias de
hoje, mais do que nunca, há necessidade de se enfrentar os desafios decorrentes desse
fato e seus reflexos no direito17.
A idéia de repensar as fronteiras, como decorrência do efeito globalização, que
provocou o desenvolvimento da tecnologia, a expansão das comunicações e o
aperfeiçoamento do sistema de transportes, têm permitido a integração de mercados em
velocidade avassaladora e tem propiciado uma intensificação da circulação de bens,
serviços, tecnologias, capitais, culturas e informações em escala planetária. Isso tudo
provocou, no entender de José Eduardo Faria18, "a desconcentração, a descentralização
e a fragmentação do poder."
Essa intensificação da interdependência em escala mundial desterritorializa as
relações sociais, e a multiplicação de reivindicações por direitos de natureza
15
CRUZ, Paulo Márcio. Da Soberania à Transnacionalidade. Itajaí: UNIVALI Editora, 2011. p.97
SARMENTO, Daniel. Os direitos fundamentais nos paradigmas liberal, social e pós-social- (PósModernidade Constitucional?). In: FERRAZ Jr., Tércio Sampaio (Coord.). Crises e desafios da
Constituição brasileira. Rio de Janeiro, 2002, p. 398
17
BERARDO, Telma. Soberania, um Novo Conceito?, Revista de Direito Constitucional e
Internacional, São Paulo, n. 40, p. 40, julho/set. 2002.
18
FARIA, José Eduardo. Op.cit. p.07.
16
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supranacional relativiza o papel do Estado-nação, que tem como uma de suas
características principais a territorialidade.
Na mundialização dos juízes o que se visualiza, como bem sustentam, Jullie
Allard e Antonie Garapon19 é o” intercâmbio de decisões”.
A ocorrência de "associações" entre Estados, como no caso da União Européia,
por exemplo, têm forçado os Estados, no entender de Cláudio Finkelstein20, a uma
compartilhação das soberanias dos Estados-membros. Isto implicou, no momento
considerado oportuno, na cessão de parcelas de soberania dos estados aos órgãos
comunitários supranacionais. A soberania compartilhada exprime um desejo e um
anseio dos próprios Estados-membros e a parcela desta cedida ao órgão supranacional
refletiu as vontades soberanas das nações21.Nesse mesmo sentido Jullie Allard e
Antonie Garapon22 afirmam que a chamada comunicação entre os juízes pode tomar
formas muito diversas que vão da relação vertical – em caso de criação de um tribunal
supranacional – à relação horizontal ou à coordenação operacional.
Claúdio Finkelstein defende, ainda, que a interpretação do conceito de
soberania deve sofrer uma flexibilização, para viabilizar o movimento integracionista
atual e que as definições clássicas de soberania já não prevalecem no Estado de Direito
imposto pela nova ordem mundial23.
Também Manoel Gonçalves Ferreira Filho24 defende a idéia da superação do
Estado-Nação, com a conseqüente necessidade de associação entre os Estados, e da
necessidade de revisão da soberania.
ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. op.cit., p.09
FINKELSTEIN, Cláudio. Integração Regional: o Processo de Formação de mercados de Bloco. p.
64 - 72, 2000.
21
Os autores chamam de “comércio entre juízes”, e também ressaltam essa cooperação inédita entre as
democracias, mas que também faz nascer uma competição entre poderes políticos, através da intervenção
de juízes. Nesse contexto as figuras emblemáticas do “juiz-tenente”, aquele que tende a um patriotismo
espontâneo por estar familiarizado com as instituições e métodos nacionais, o “juiz-embaixador”, o qual
se torna uma espécie de embaixador na cena internacional, exercendo uma influência cultural
considerável, inspirando os direitos estrangeiros.
22
ALLARD, Jullie e GARAPON. Antonie. op.cit. p.19
23
FINKELSTEIN, Cláudio. op.cit. p. 64 – 72.
24
FERREIRA FILHO. Manoel Gonçalves In: O Estado do Futuro. Martins, Ives Gandra (Coord.), São
Paulo: Pioneira, 1998. p. 102-113.
19
20
64
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Jurgen Habermas25 defende uma vinculação da comunidade estatal em
processos de colaboração implicados no plano político interno, para assim possibilitar
aos Estados que se transformem em verdadeiros espaços públicos de colaboração.
Daí a necessidade não só de um conhecimento, mas também de um
reconhecimento mútuos, os quais constituem, de alguma forma, a condição prévia de
qualquer intercâmbio. Os sistemas não entram em concorrência mas sim numa situação
de avaliação recíproca permanente. Torna-se, portanto, difícil a cada um deles
reivindicar o isolamento supremo que a soberania nacional outrora procurava alcançar26.
Paulo Márcio Cruz27 afirma ser possível que o movimento de globalização,
com a intervenção de novos pressupostos democráticos, impulsione outras formas de
integração que permitam o início de uma caminhada em direção a uma maior
solidariedade universal e um desenvolvimento comum solidário.
Embora o princípio de não-interferência nos assuntos internos de um poder
soberano seja um dogma da legislação internacional, sempre que há um problema
envolvendo, por exemplo, a violação de direitos humanos e destruição do meio
ambiente, a opinião pública acaba pressionando os outros países para que interfiram e
resolvam o problema. Tem-se, inclusive, questionado o conceito do que seriam assuntos
internos e vem-se construído um argumento no sentido de que a comunidade
internacional tem a obrigação de intervir em defesa desses direitos em qualquer lugar do
mundo.
Essa idéia é impulsionada, sem dúvida, pela revolução da informação, que traz
seres humanos que sofrem a milhares de quilômetros de distância para dentro das salas
do mundo todo. Além disso, a poluição não respeita os limites territoriais do Estado, o
ecossistema global é interligado, interdependente, e a destruição de uma floresta não
prejudica apenas o ecossistema em cujo território está inserido, mas os povos de todo o
globo. Nesse exemplo pode-se dizer que os riscos passam a ser globais.
25
HABERMAS.Jurgen. Más allá del Estado nacional. Ciudad de Mexico:Fondo de Cultura Econômica,
1998. P.14
26
ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. op.cit. p.27
27
CRUZ, Paulo Márcio. op.cit. p.87
65
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
No que se refere à clássica concepção de soberania, percebe-se que a
abrangência deste princípio é invocada até hoje como uma premissa intocável e
incontestável. Alguns sequer conseguem vislumbrar o funcionamento de um Estado sem
esta prerrogativa histórica de que não pode haver interferência externa no "domínio
reservado" deste Estado, fundamentando-se numa premissa que foi concebida em um
contexto histórico próprio, e que não mais condiz com a realidade atual, como se
pretende demonstrar.
Por outro lado, tal tipo de intervenção confronta-se de forma irremediável com
o conceito tradicional de soberania, o qual, conforme já foi dito, pressupõe que a última
palavra nos assuntos internos seja sempre a do Estado soberano, sem interferência de
outros Estados.
Para Arthur Machado Paupério28 supremo não quer dizer ilimitado, pois não há
nenhum poder que possua tal qualidade e citando Brucculeri, referido autor lembra que
o Estado não é o criador do Direito, ele apenas determina-o e aplica-o, não passa de
instrumento de revelação das normas jurídicas. Assim, essas normas jurídicas estatais
obrigam, da mesma forma, governantes e governados.Valerio de Oliveira Mazzuoli
29
ensina que não existem direitos globais, internacionais e universais, sem uma soberania
flexibilizada, o que impediria a projeção desses direitos na agenda internacional.
Nesse sentido, e levando em consideração que o Estado, e, por conseguinte, a
soberania, devem existir em prol do bem comum, é que se pode partir para uma
justificativa das interferências, de um Estado em outro, que vêm acontecendo, por
exemplo, quando direitos humanos são desrespeitados ou o meio-ambiente é
prejudicado.
4. Uma nova ordem jurídica mundial na perspectiva de Jullie Allard e Antonie
Garapon como resposta à Sociedade do Risco.
28
PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder: Teoria Democrática da Soberania.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 145-147, 3ed., vol.2, 1997
29
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Soberania e a proteção internacional dos direitos humanos:dois
fundamentos irreconciliáveis. Revista de Informação Legislativa, n.156, p. 169-177, out/dez., 2002
66
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Na constatação feita por Beck et al de que “a reflexividade da modernidade
produz não somente uma crise cultural de orientação, como alegam os comunitaristas
mas uma crise institucional fundamental e mais extensivamente profunda na sociedade
industrial tardia, todas as instituições fundamentais, como partidos políticos e os
sindicatos, mas também os princípios causais da responsabilidade na ciência e no
direito, as fronteiras nacionais, a ética da responsabilidade individual, a ordem da
família nuclear, e assim por diante, perdem suas bases e sua legitimação histórica. Por
isso a reflexividade da modernidade é equivalente ao prognóstico dos conflitos de valor
de difícil resolução sobre os fundamentos do futuro”30
O intercâmbio entre as cortes abordado por Jullie Allard e Antonie Garapon
pode ser útil e necessário nesse novo contexto global e se baseia, sobretudo, nas
funções que esses órgãos vêm desempenhando entre si a partir da análise de vários
casos concretos, tais como, mediação, admoestação, estímulo, avaliação, colaboração e
neutralização.
“Até muito recentemente confinados ao território nacional, os juízes passam,
de agora em diante, a estabelecer entre eles, e através das fronteiras, relações cada vez
mais sólidas e confiantes. Estas relações podem tomar as formas mais diversas:
referência a julgamentos estrangeiros em decisões de âmbito nacional, intercâmbio de
argumentos, formações comuns, diálogo entre tribunais, criação de associações
transnacionais, de clubes ou sindicatos de juízes, capitalizações informais de
jurisprudências, etc.”31
Numa interface com a sociedade do risco, é possível se estabelecer, como uma
espécie de “pedra fundamental” a proposta de mundialização das decisões judiciais,
tratando-se de um mecanismo de impulso, pois, segundo Allard e Garapon “Esta nova
comunicação entre os juízes pode tomar formas muito diversas que vão da relação
vertical – em caso de criação de um tribunal supranacional – à relação horizontal ou à
coordenação operacional”32
30
BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; lash, Scott. Op.cit. p.211-212
Allard, Jullie e Garapon, Antonie. op.cit. p.09
32
ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. op.cit. p.19
31
67
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A emergência de riscos incontroláveis, nesse panorama moderno de busca por
controle, cooperação e ordem, aponta a possibilidade de ter havido uma falha no
funcionamento das normas e instituições desenvolvidas na sociedade industrial. Em
contrapartida, esse desencadeamento atinge a burocracia racional tradicional – a
administração estatal, a política e o Direito – que acabaram, sem intenção, legitimando a
criação desses riscos.
Justamente a partir dessa constatação da ineficácia dos instrumentos usuais de
controles institucionais, imprescindíveis se tornam os argumentos de Allard e Garapon
quando apontam que “O comércio entre juízes vai-se intensificando impelidos pelo
sentimento ou a consciência crescente de um patrimônio democrático ou civilizacional
comum, por determinados silêncios do direito positivo, pelas necessidades dos tribunais
internacionais, pela construção europeia ou ainda pela procura de garantias e de
segurança para o comércio internacional, os juízes afirmam-se como agentes de
primeiro plano na mundialização do direito.”33
A dinâmica e ágil sociedade global do risco obterá, na chamada dimensão
funcionalista do intercâmbio entre juízes, sua justificação e possível proteção, pois para
Allard e Garapon “A primeira dimensão deste comércio entre juízes é, portanto,
funcionalista: é necessário acompanhar as evoluções do mundo e adotar um Direito
mais móvel quando os objetos também o são.”34
O padrão de decisão e os mecanismos de proteção e controle ainda estão
organizados no nível do Estado-Nação e da atuação racional individual e é, justamente a
partir dessa constatação, exsurge claro que, no atual sistema de riscos globais nenhuma
estratégia eficiente para se garantir a segurança pode ser manejada isoladamente, dentro
dos limites de um só Estado.
Uma nova ordem global exigirá, ou acarretará, numa nova ordem jurídica, eis
que “A mundialização da justiça funciona, por conseguinte, como um princípio de
estabelecimento de relações no termo do qual nenhum tribunal poderá permanecer
indiferente aos seus homólogos, sem que, para tal, intervenham quaisquer vínculos ou
33
34
ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. op.cit. p.30
ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. op.cit. p.38
68
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
instâncias físicas de coordenação, normalmente considerados como critérios de
juridicidade.”35
De outro lado, verificam-se dificuldades em coordenarem políticas globais
eficazes na prevenção desses riscos. “Não se espera que os juízes e os tribunais sejam,
como se verifica num sistema, os agentes passivos de uma ordem jurídica, mas sim,
pelo contrário, os intervenientes ativos num comércio em constante evolução na medida
em que são os juízes uma espécie de embaixadores na cena internacional, exercem, com
efeito,
uma
influência
cultural
considerável,
inspirando,
por
conseguinte,
profundamente os direitos estrangeiros.”36
“A competição que advém do comércio entre juízes não visa unicamente a
defesa dos interesses econômicos ou políticos de uma nação. Tem igualmente por
objetivo a promoção de uma cultura jurídica considerada mais adaptada aos desafios da
mundialização ou mais favorável a valores universais
O impulso para um Direito Transnacional não poderá jamais se confundir com
um “direito de ingerência” que parece surgir quando se fala em meio-ambiente e,
sobretudo, em direitos humanos, podendo gerar – e tem gerado – abusos, fazendo com
que alguns Estados assumam o papel de "policiais do globo" para, na realidade, proteger
interesses particulares seus, que não têm nada a ver com a prevalência dos direitos
humanos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A constatação do modelo de sociedade que vivenciamos atualmente tem
propiciado a percepção de determinados riscos advindos dos avanços tecnológicos que
colocam em questão os mecanismos de controle existentes e sua eficácia.
35
36
ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. op.cit. p.35
ALLARD, Jullie e GARAPON, Antonie. op.cit. p.53
69
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A sociedade do risco transita entre o aumento incessante das brechas entre as
particularidades nacionais que se enfraquecem dia a dia e as aspirações universais que
se ampliam a cada dia com a lente focando as futuras gerações, na nítida idéia de
prevenção.
Os aspectos essenciais decorrentes da moderna sociedade do risco vem
suscitando ao Direito, por consequência, problemas novos e incontornáveis. Desta
forma, a proposta de Jullie Allard e Antonie Garapon vem ao encontro da idéia de que
os riscos que afrontam a humanidade é problema de todos, e não de cada Estado
individualmente.
Ademais, da necessidade de se repensar o conceito de soberania, para que se
possa adequá-lo a um mundo altamente globalizado, interdependente e de riscos, o
intercâmbio de decisões judiciais torna-se uma ferramenta útil, senão necessária para,
num cenário de justiça globalizada, propiciar uma nova ordem jurídica com um efetivo
Direito Transnacional capaz de responder aos anseios de uma sociedade em constante
transição.
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71
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
As Intervenções Humanitárias e o Papel do Conselho de Segurança das Nações Unidas
diante da Configuração Cosmopolita das Relações Internacionais
The Humanitarian Intervention and the role of United Nations Security Council in a
Cosmopolitan Configuration of International Relations
Vanessa Oliveira Batista1
Daniele Lovatte Maia2
RESUMO
O presente trabalho pretende fazer uma leitura da teoria cosmopolita proposta por Jürgen
Habermas, ressaltando as peculiaridades e diferenças desta com relação à república mundial
proposta por Immanuel Kant, como condição necessária ao alcance da paz perpétua na ordem
internacional. Após apresentar críticas a esse modelo de organização estatal, por meio de
autores realistas como Danilo Zolo, se propõe uma reflexão acerca da possível parcialidade
das intervenções humanitárias aprovadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas
(CSNU). Para tanto, será analisado o funcionamento do CSNU e de sua competência
estabelecida na Carta das Nações Unidas e das Resoluções destinadas a efetivar intervenções
humanitárias em casos específicos.
PALAVRAS-CHAVE:
Cosmopolitismo;
Intervenções
Humanitárias;
Conselho
de
Segurança das Nações Unidas.
ABSTRACT
This work intends to expose a reading of the cosmopolitan theory of Jürgen Habermas,
showing its differences when compared with Immanuel Kant proposal of a world republic.
After explaining the critics to this model of states organization, with realistic theory’s like
Danilo Zolo’s, it will be expose a reflection about the possible partiality that the institution of
humanitarian intervention might have when been or not approved by the United Nations
Security Council. In order to do so, it will be made an analysis of this Council function and its
competence gave by the United Nations Charter. Besides, some of its Resolutions approved to
deal with the humanitarian intervention problem will be shown.
1
Professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Pesquisadora do CNPq; Coordenadora do
Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ
2
Advogada, graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestranda pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, membro do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ.
72
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
KEYWORDS: Cosmopolitanism; Humanitarian Intervention; United Natios Security
Council.
1. Introdução
É antiga a discussão sobre como deveria ser a organização política internacional,
permeada pelas mais diversas teorias e modos de pensar a realidade moderna. A criação da
Organização das Nações Unidas (adiante ONU), fortemente inspirada no modelo Kantiano de
federação mundial, seguida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948,
consagram o ideal de paz perpétua a ser buscado por todas as nações civilizadas, exaltando o
sentimento de igualdade entre os povos e a necessidade de universalização de direitos.
Contudo, o sentimento de euforia do fim da 2ª Grande Guerra durou pouco. A
bipolarização do mundo caminhou com muito mais força e ênfase que a tão sonhada busca
pela paz, e os conflitos armados que se seguiram à posterior criação da ONU evidenciaram a
fragilidade do sistema.
Durante a Guerra Fria, a comunidade internacional assistiu à inação das Nações
Unidas – na maioria dos casos impedida de atuar em função do Conselho de Segurança –
diante de graves e massivas violações de direitos humanos, tais como as ocorridas em
Bangladesh, Camboja e Uganda.
Com a vitória do capitalismo, especialmente a partir da Guerra do Golfo, teve início a
prática das chamadas intervenções humanitárias, um direito de ingerência das grandes
potências em países que sofrem de graves crises sociais ou políticas. Na sequência, puderamse presenciar os horrores cometidos na Somália e em Ruanda, e a reação da comunidade
internacional, por muitos considerada tardia.
A segunda metade do século XX foi, portanto, marcada pelo debate em torno das
intervenções humanitárias, sua legitimidade, seus requisitos, sua necessidade, e,
principalmente, os possíveis interesses políticos e econômicos por trás daqueles países que,
sob o pretexto de proteção dos direitos humanos, ingressavam no território de outro país
soberano no intuito de levar a paz.
Nesse sentido, o papel do Conselho de Segurança das Nações Unidas (adiante CSNU)
é digno de nota. Muito criticado em função de suas decisões casuísticas, fortemente marcadas
por um viés político que direta ou indiretamente favorece as grandes potências com poder de
veto, fato é que somente com sua autorização uma intervenção humanitária pode ser
considerada legal (no sentido estrito do termo), ainda que sua legitimidade seja extremamente
73
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
questionada.
Os debates em torno da relativização do conceito de soberania receberam de igual
modo, grande destaque. Devido às incontáveis mudanças ocorridas na realidade mundial
desde a paz de Vestefália, de 1648, os três famosos elementos para a caracterização do
conceito de soberania (povo, território e governo efetivo) são hoje, para muitos, somados a
um quarto, qual seja, a proteção dos direitos humanos, como dever precípuo de qualquer
Estado Nacional.
Portanto, é patente a importância de um exame da estrutura político-jurídico das
relações internacionais para a proteção dos direitos humanos. Para tanto, este trabalho se
divide em duas partes: primeiramente, pretende-se fazer uma leitura da Teoria Cosmopolita
proposta por Jürgen Habermas, ressaltando as peculiaridades e diferenças desta com relação à
república mundial proposta por Immanuel Kant, como condição necessária ao alcance da paz
perpétua na ordem internacional. Em seguida, será feito um panorama da atuação do CSNU,
com especial ênfase nas resoluções aprovadas no pós Guerra Fria, no que diz respeito ao tema
das intervenções humanitárias.
Para tanto, será utilizado o método de pesquisa qualitativo, com análise e raciocínio
indutivo dos institutos e conceitos do direito internacional, através do método de
procedimento técnico de levantamento bibliográfico e levantamento de documentos oficiais
(principalmente resoluções) das Nações Unidas.
2. A organização política da comunidade internacional e o cosmopolitismo
Pode-se dizer que, dentro do pensamento político filosófico internacionalista, existem
três correntes tradicionais que procuram explicar a formação da ordem internacional
(TEIXEIRA, 2011, p. 238-239): i) a hobbesiana (realista) – sustenta que os Estados vivem
em uma anarquia, similar ao estado de natureza no qual viviam as pessoas antes da formação
do Estado Nacional, em uma espécie de guerra de todos contra todos; ii) a kantiana
(universalista/cosmopolita), na qual a ênfase não é no Estado, mas sim no cidadão, no civitas
maxima, pertencente a uma República mundial, decorrente de uma federação de Estados; iii)
a grociana (internacionalista) – corrente que nega as anteriores, pressupondo regras de
coexistência que preservariam a autonomia de cada Estado, que somente seria quebrada com
relação àquele que se opusesse violentamente à ordem internacional.
Sustenta Anderson Teixeira que a forma em que se encontra hoje a comunidade
internacional traduz um processo de lutas e evoluções históricas, o que não permite que ela
74
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
seja caracterizada nem como anárquica, nem como cosmopolita, nem como internacionalista
(TEIXEIRA, 2011, p. 241), pois se encontra em pleno desenvolvimento.
Apesar disso, fato é que a corrente cosmopolita das relações internacionais, cuja
origem remonta ao célebre ensaio de Kant “A Paz Perpétua e outros opúsculos”, possui uma
força notória, já que frequentemente é utilizada como analogia para justificar a organização
mundial em torno das Nações Unidas.
No entanto, essa analogia deve ser feita com muitas ressalvas. No modelo de
organização proposto por Kant, a paz mundial somente será alcançada através da junção de
uma constituição republicana mundial com a construção de uma federação de estados livres e
iguais. Isso porque a junção da população mundial em um único Estado impossibilitaria que
ele fosse governado, dada sua enorme extensão territorial, além de aniquilar as
particularidades de cada cultura (NOUR, 2003, p. 18).
Em uma leitura do pensamento kantiano, Habermas propõe a criação de um Estado
mundial (ao invés de uma República mundial), tendo em vista sua descrença na capacidade do
Estado de lidar sozinho com problemas modernos, como globalização da economia,
catástrofes ambientais ou guerras nucleares (GREIFF, 2002, P. 428). Para o autor, a
fragilidade do Estado impõe a existência de uma autoridade central externa para que se possa
realmente resolver os problemas internos.
No intuito de viabilizar seu projeto de Estado Cosmopolita, Habermas sugere que
sejam aproveitadas as instituições já existentes, começando por uma reforma da ONU, capaz
de dotá-la de força política e militar necessária para possíveis intervenções rápidas, no intuito
de criar uma ordem cosmopolita justa e pacífica (HABERMAS, 1999, p. 451-452). Essa força
militar viria através de uma polícia internacional, a ser formada ou pelo financiamento dos
Estados, ou pela cessão de parte do poderio militar desses Estados à ONU.
Vale ressaltar, que Habermas não faz referência à possível parcialidade que estaria
presente nas ações dessa polícia mundial, vez que financiada pelos Estados. Do mesmo modo,
se omite quanto ao fato de ser remota a possibilidade de um Estado soberano abrir mão de seu
poderio militar para que este, cedido a uma autoridade supranacional, pudesse, em
determinada oportunidade, ser utilizado em seu desfavor.
É possível perceber, por outro lado, que a organização do pensamento habermasiano
se baseia em uma visão de mundo ocidental, marcadamente europeia (NOUR, 2003, p. 27),
dando pouco ou nenhum papel aos Estados do Sul. Essa desigualdade entre os Estados,
especialmente a exclusão do Sul, afasta sua teoria do modelo cosmopolita pensado por Kant,
haja vista ter este vislumbrado uma espécie de direito de hospitalidade universal entre os
75
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
povos (KANT, 2008, p. 37-41), no qual todos teriam os mesmos direitos, e cada federação
teria prioridade sobre o seu próprio território. Desse modo, Kant condena todo o processo de
conquista/colonização dos europeus (da forma como ocorrido em sua época) em relação aos
demais países do globo.
Além disso, Habermas desconsidera as peculiaridades culturais de cada país. Seu
universalismo propõe uma clara “ocidentalização do mundo” (ZOLO, 1999, P. 441), já que se
mostra indiferente com relação às tradições culturais, políticas e jurídicas distintas dessa
realidade ocidental, sobretudo quanto a países como os asiáticos ou os africanos. A falta de
menção a um possível choque ideológico intercultural parece sugerir que somente existe uma
realidade: o homem branco, europeu (ou norte-americano), católico, heterossexual,
padronizado em um estereótipo bastante conhecido, principalmente por aqueles que nele não
se enquadram.
Como fundamento base do funcionamento de sua teoria, se utiliza do conceito de
“opinião pública mundial”, vislumbrado por Kant (HABERMAS, 2002, p. 186) . Para
Habermas, a organização política cosmopolita das relações internacionais já não é mais uma
utopia. O desenvolvimento da tecnologia, e o aperfeiçoamento dos meios de comunicação em
massa fizeram com que os acontecimentos em torno do globo, quaisquer que fossem, não
estivessem mais concentrados dentro das fronteiras de um país. Assim, podem ser
classificados como “acontecimentos cosmopolitas”, capazes de estabelecer uma “razão
comunicativa” entre os povos, ou seja, um diálogo no plano internacional entre todos os seus
participantes, norteada pela defesa dos direitos humanos, juntamente com todo o peso da
tradição ocidental que esta doutrina carrega.
Propõe, ainda, que o antigo patriotismo nacional - que ele chega a chamar de “fora de
moda” - seja substituído por um “patriotismo constitucional” (GREIFF, 2002, p. 430), em que
os cidadãos não mais poderiam estar ligados por valores e ideais comuns, inerentes a cada
cultura, mas por um consenso sobre a legitimidade das instituições políticas e da lei. Dessa
forma, estaria resolvido o problema do pluralismo das sociedades modernas, que seria
voluntariamente abandonado por um sentimento coletivo de legitimar uma nova ordem de
integração supranacional, que supostamente atuaria em defesa da paz mundial e da
preservação dos direitos humanos.
Nesse sentido, todo cidadão do mundo seria dotado de uma representação democrática
em nível supranacional, através de uma instituição que englobasse os poderes executivo,
legislativo e judiciário (HABERMAS, 2002, p. 426). Surgiria então a figura de um parlamento
supranacional, concentrado nas Nações Unidas, a ser composto através do sistema de one man
76
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
one vote. Se esquece o autor, no entanto, que os países possuem densidades demográficas
distintas, o que ocasionaria uma desigualdade de representação até mesmo para países
poderosos, como Japão e França. Além disso, é remota a viabilidade de ser realizada de forma
neutra e efetiva uma eleição que abrangesse toda a população mundial.
Danilo Zolo, mediante uma analise crítica do pensamento acima exposto, define a
filosofia cosmopolita através de quatro premissas (ZOLO, 1999, p. 443): i) Pretensão de
manter a paz através do poder centralizado em determinadas potências; ii) Uso de força
coercitiva coletiva; iii) Pelo uso da força se garante o poder das super potências; iv) A “paz
duradoura” buscada pelo sistema se baseia num modelo preparado para o cenário sócio,
político e econômico existente no momento de sua criação.
Sintetiza assim sua clara oposição à necessidade de um governo central, afirmando
que sua ausência não gera automaticamente uma anarquia em âmbito internacional
(GALABERT, 2009, p. 191). Ao contrário do que frequentemente sustentam aqueles que
estão no topo desse sistema cosmopolita, regulando a autoridade central existente no mundo,
qual seja, a ONU, através dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Além
disso, com o fim da guerra fria e a afirmação do poderio unilateral militar, político e
econômico dos EUA, a autoridade central supranacional apta a ditar a última palavra, parece
ter se deslocado do Conselho de Segurança.
Dado importante, porém pouco divulgado, é que os EUA gastam mais com armamento
militar do que todos os outros países do globo considerados em seu conjunto (WEISS, 2004,
p. 140), podendo-se afirmar que a guerra do Iraque em 2002 serviu como ótima oportunidade
para afirmar seu poderio bélico, sob o manto da defesa da segurança mundial ameaçada pelo
terrorismo e pela produção de armas nucleares.
Estima-se hoje que o cenário internacional está composto por duas autoridades
supranacionais: a ONU (superior em número de membros) e os EUA (superiores em riqueza e
poder). Essa constatação demonstra uma real dependência da ONU em relação aos EUA,
sendo certo que qualquer operação sua depende da aprovação de Washington. E pior, as
operações militares efetivadas pelas nações unidas através do auxílio forças militares de
outros países como França e Inglaterra são dotadas de uma ajuda muito mais política do que
propriamente operacional(WEISS, 2004, p. 141).
Diante dessa realidade, não é razoável pensar na viabilidade de uma reforma das
Nações Unidas como meio para minimizar as tensões entre os Estados, tendo em vista a falta
de autonomia dessa organização.
Nesse diapasão, Danilo Zolo, após afirmar ser o cosmopolitismo – da forma como
77
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
hoje é posto – uma teoria extremamente invasiva, intervencionista e ameaçadora da
diversidade cultural, sugere que seja adotada, no cenário mundial, uma “ordem política
mínima”, da forma como proposto por Hedley Bull (ZOLO, 2002, p. 217). Assim, seria
respeitada a jurisdição interna dos Estados, dotando todos os países de igual soberania,
através de uma subsidiariedade das normas de direito internacional.
É preciso deixar claro que não se trata de uma inércia da comunidade internacional
frente à realidade interna dos países, mas sim de um direito supranacional mínimo, exercido
através de uma regionalização policêntrica do direito internacional. Esse quadro, ao respeitar
a jurisdição interna de cada país, evitaria uma espécie de revolta dos países periféricos, já que
possuiriam eles seu espaço e o direito às suas peculiaridades assegurados (ZOLO, 2002, p.
217).
Anderson Teixeira vai além da ideia de regionalização policêntrica proposta por Zolo.
Utilizando-se de forma analógica da “teoria dos grandes espaços” proposta por Carl Schmitt3,
propõe que os países do globo se organizem através de “espaços regionais”, dentro do qual
haveria uma supremacia da tradição histórico-cultural de determinado povo (TEIXEIRA,
2011, p. 285).
Nesse modelo, somente um Estado exerceria a função simbólica de
representante externo do espaço regional, podendo desempenhar em nome deste uma atitude
proeminente no cenário internacional, sem, contudo, submeter os demais Estados ao seu
poder sob qualquer forma. Isso porque, dentro desses espaços, os Estados seriam dotados de
uma condição de igualdade formal. Além disso, possíveis divergências entre eles poderiam
ser discutidas em âmbito interno (dentro do espaço regional) antes que pudessem ser
analisadas externamente (TEIXEIRA, 2011, p. 286).
Para o mencionado autor, a identidade histórico-cultural de diversos países vizinhos,
com origens comuns e processos de formação similares, facilitaria sua organização em torno
desse representante externo, já que compartilhariam de uma mesma identidade, ou de uma
identidade muito similar. Isso daria a eles voz diante da comunidade internacional, pois
estariam fortalecidos, ao mesmo tempo em que preservaria as particularidades culturais da
região.
3
Para combater a ideia universalista, frequentemente objetivada pelas relações internacionais, Carl Schmitt
propõe um “pluriverso”, a ser buscado através dos grandes espaços organizados em torno do globo. Esses
grandes espaços, que podem ser comparados a uma espécie de Império, seriam dotados de um universalismo
internamente, já que a soberania dos países que o compõe seria relativizada em prol de uma organização política
em torno do Estado mais forte daquela região. Externamente, o princípio da não intervenção seria responsável
por manter o equilíbrio entre os grandes espaços, tornando-se norma fundamental de direito internacional. Para
Schmitt, a doutrina Monroe, desenvolvida pelos EUA em 1823 é o mais feliz exemplo de grande espaço de que
se pode ter notícia. Para maiores detalhes ver: TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Teoria Pluriversalista do
Direito Internacional. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
78
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
As teorias descritas acima são de enorme importância como forma de questionamento
ao monopólio cosmopolita presente nas relações internacionais. Contudo, a elas, do mesmo
modo, é possível fazer uma série de questionamentos, oportunos e razoáveis, que as tornam
de certa forma tão utópicas quanto o cosmopolitismo puro, extraído da Paz Perpétua kantiana.
Nesse sentido, é possível destacar que a teoria de Danilo Zolo, por exemplo, focada na
importância das particularidades culturais de cada país e na crítica à ocidentalização do
mundo, se abstém de problematizar a influência da política e da economia no andamento das
relações internacionais. Esse fato lhe ocasiona uma série de criticas, chegando a afirmar-se
que o Autor padeceria de um realismo reducionista (GALABERT, 1999, p. 193), ao sugerir
uma igualdade formal entre os Estados no plano internacional, unicamente através da
importância do nacionalismo e das diferentes formas de organização social interna de cada
Estado, deixando de lado a força dos problemas decorrentes da globalização e da
movimentação de capitais no mundo.
Portanto, diversas são as teorias que procuram explicar a organização da ordem
internacional e os mecanismos a serem usados pelos Estados como forma de coexistência
pacífica. A realidade moderna, a ocorrência das duas grandes guerras e, em especial os
acontecimentos das últimas décadas do século XX e a primeira do século XXI, põem em
cheque as formas clássicas de estruturação dos Estados nas relações internacionais. A
proteção de direitos e garantias fundamentais de qualquer indivíduo, e a doutrina dos direitos
humanos – com toda carga ocidental, ambígua e falaciosa que possa trazer – remodelam a
forma de ver o mundo e trazem à tona um novo conceito de soberania dos Estados.
Dentro desse debate, e diante da possível parcialidade existente nos pronunciamentos
da ONU e, principalmente das decisões Conselho de Segurança, é que se faz necessária a
análise do tema das intervenções humanitárias. Destinam-se elas à efetiva proteção dos
direitos humanos, diante de graves e massivas violações perpetradas por parte de um Estado
nacional? Ou as intervenções ditas humanitárias somente retratam a nova forma encontrada
pelas grandes potências de promover a manutenção do status quo, por meio do controle do
governo de Estados mais fracos?
3. A intervenções humanitárias e o papel do Conselho de Segurança das Nações
Unidas
Os direitos humanos tem sido o principal argumento para justificar as intervenções
humanitárias do CSNU, muitas vezes ferindo princípios básicos do direito internacional,
79
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
como o da soberania, não intervenção e autodeterminação dos povos. A discussão é repleta
de polêmicas e contradições justamente porque esses princípios, na ordem westfaliana, podem
muitas vezes representar paradoxos diante da adoção dos direitos humanos como valor
fundamental. Por isso, faz-se importante compreender como a busca pelos direitos humanos
tornou-se, supostamente, a base da atuação Nações Unidas.
Dentre os objetivos da ONU, prescritos no artigo 1º da Carta, destacam-se a
manutenção da paz e segurança - com a possibilidade de tomar medidas para reprimir atos de
agressão e a proposta de conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas
internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário - com o propósito de
fomentar o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais.
Datadas nos anos 1940, a Carta da ONU (1945), a carta que funda o Tribunal de
Nuremberg (1945/1946) e a Declaração Universal dos Direitos da ONU (1948) são os
desdobramentos normativos da aspiração de se criar um sistema jurídico internacional de
proteção dos direitos humanos. Este, fortemente baseado em uma realidade cosmopolita de
organização dos Estados, unificado em torno de uma autoridade central.
Atentando para os objetivos declarados no Capítulo VII da Carta da ONU, pode-se
verificar que o princípio constitutivo da ONU, em sua tarefa de manter e promover a paz e a
segurança internacionais se baseia no elemento humanitário, traduzido na possibilidade de
intervenção quando for necessário mitigar o sofrimento humano por meios imparciais e não
coercitivos, desde que haja violação extrema de direitos e liberdades fundamentais. É esse
elemento humanitário, intrinsecamente ligado ao reconhecimento internacional dos direitos
humanos a partir do final da II Grande Guerra, que fundamenta as intervenções humanitárias.
Na última década do século XX acentuou-se a relevância do debate sobre os direitos
humanos e tomaram corpo vários projetos que os coloca no centro das decisões. O reforço do
Direito Internacional Humanitário, a discussão e regulamentação do genocídio, os resultados
da Conferencia de Viena de 1993, são consequências de um processo que indica o princípio
da universalidade como premissa para a proteção dos direitos, que passam a ser caracterizados
como indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. Ademais, em Viena, ressalta-se a
conexão entre desenvolvimento, democracia e direitos humanos. Com isto, eles passam a ser
considerados e validados pela política internacional, o que leva ao uso crescente da força em
ações internacionais de cunho humanitário, que passam a ser perpetradas tanto pelas Nações
Unidas quanto unilateralmente por Estados dotados de poderio econômico, político e militar.
80
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A responsabilidade do Conselho de Segurança das Nações Unidas está expressa no
artigo 24 da Carta, que diz ser seu dever a “manutenção da paz e da segurança
internacionais”, cabendo-lhe determinar, com base em decisões orientadas politicamente, os
casos de ‘ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão’ (artigo 39). O CSNU pode também
criar órgãos subsidiários, na forma do artigo 29, como as operações de manutenção da paz.
Ademais, os membros da ONU têm a obrigação de cumprir as determinações do Conselho
(artigo 25).
Desde 1992 a prática de atuação do CSNU vem sendo ampliada, em função da
Declaração Presidencial adotada pelos Chefes de Estado e de Governo dos Estados membros
do Conselho4, que flexibilizava a interpretação da expressão “ameaça à paz” ao afirmar que
(ONU, 1992, P. 3):
A ausência de guerra e de conflitos militares entre Estados não
assegura por si só a paz e a segurança internacionais. As fontes não
militares de instabilidade nas esferas econômica, social, humanitária e
ecológica têm-se convertido em ameaças à paz e à segurança.
Institucionalmente, a atuação do Conselho em operações de manutenção da paz se dá
em duas etapas: primeiro, por meio de votação, é criada a operação, sendo necessários nove
votos afirmativos, incluídos os dos membros permanentes, que podem se abster de votar.
Nesse primeiro momento os membros permanentes procuram estabelecer uma coordenação
entre si5, depois estendem o debate aos demais segmentos do CSNU6, através de consultas
informais. Num segundo momento é feita a convocação formal do Conselho, com a finalidade
de referendar a resolução acordada previamente e, eventualmente, modificar a linguagem ou
parágrafos secundários e se apresentar posições nacionais7. O processo de implementação das
resoluções é supervisionado pelo CSNU, por meio da adoção de resoluções que são
executadas pelo Secretário-Geral da organização. É importante frisar que essas decisões
compreendem atividades multidisciplinares nos campos militar, eleitoral, policial e
humanitário.
4
Declaração adotada por ocasião da reunião de cúpula de 31/1/92.
A dos P-3 (Estados Unidos, Reino Unido e França), a dos P-4 (os três anteriores e a Federação da Rússia) e a
dos P-5 (os cinco permanentes)
6
o “caucus Não-Alinhado”– membros do Movimento Não-Alinhado (MNA) – e os “Non-Non” – membros do
CSNU que não são membros permanentes, nem pertencem ao MNA
7
Desde 1987 as operações tem sido aprovadas por votações unanimes, as únicas exceções são a da UNIKOM
entre Kuaite e Iraque, em 1991, e a UNMIK no Kosovo, em 1999.
5
81
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A questão que aqui se coloca é a tensão entre duas correntes de pensamento: de um
lado temos os que entendem que os direitos humanos representam uma possibilidade de
mudança da lógica competitiva dos Estados; e de outro temos aqueles que entendem que os
direitos humanos são irrelevantes para a compreensão dos processos políticos internacionais.
Esse debate, na verdade, coloca a proteção dos direitos humanos no centro da discussão
acerca do próprio sistema internacional, pois trata-se de saber se são necessários mecanismos
coercitivos mais fortes e capazes de promover uma garantia eficaz dessa proteção (REIS,
2006, p. 35).
É nesse nível da discussão que se encontra a polêmica sobre as intervenções
humanitárias, pois essas são a expressão de uma política de direitos humanos ativa e concreta,
determinada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. O sistema internacional é
dotado de um poder assimétrico, verticalizado, no qual acontecem com frequência dissensos
acerca das intervenções humanitárias, causados em função de violações graves e sistemáticas
de direitos humanos. As intervenções são conduzidas por valores morais, legitimados e
reconhecidos pela sociedade internacional.
E aqui nos deparamos com outras divergências, expressas em três correntes (PUGH,
2001, p. 118-122):
a) as intervenções surgem a partir da vontade de alguns atores do sistema internacional
de se beneficiar das desigualdades internacionais. Para manter o status quo, se utilizam das
intervenções para fazer com que os Estados mais pobres e marginalizados economicamente
sejam vistos como os maiores violadores de direitos humanos e, consequentemente, alvo das
intervenções. Essa corrente contraria a perspectiva de que as intervenções humanitárias se
destinem aos povos vitimados por políticas totalitárias ou conflitos étnicos.
b) o uso de força em intervenções humanitárias é o resultado da convergência de
interesses dos Estados mais ricos e poderosos do sistema.
c) as intervenções humanitárias são fruto da polarização entre direitos humanos e
interesses geopolíticos, sendo que os últimos seriam o motivo da implementação de normas
internacionais de direitos humanos.
Em documento datado em 1998, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV)
(SASSÒLI, 1999, p. 482-492) aborda o tema da “falência dos Estados”, definindo a
ocorrência da desintegração das estruturas estatais quando um dos elementos do Estado, a
existência de um governo em efetivo controle das situações em seu território, não é suficiente
82
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
ou, simplesmente, sucumbe. Nesse caso, o problema é mais grave que uma mera rebelião ou
um coup d’état, pois se pressupõe o desmoronamento das instituições nacionais, da
autoridade, da lei e da ordem, enfim, da entidade política organizada como um todo. Na
esteira desse fracasso, o Estado entra em colapso, com a ruptura de valores sobre os quais se
assenta a legitimidade do poder estatal levando, consequentemente, a manifestações de ordem
étnica, religiosa, nacionalista, que se expressam de forma residual para a afirmação de uma
identidade.
Por ausência do Estado, embora ele possa persistir fisicamente, deve-se entender,
portanto, sua incapacidade de exercer autoridade e de manter a lei e a ordem através dela.
Com isso, o Estado perde gradualmente a condição de exercer com normalidade a atividade
governamental.
A desintegração do Estado pode variar de nível e intensidade, afetando uma ou
diversas áreas de seu território. O que caracteriza a situação de desestrutura é o fato do
governo não mais exercer um incontestável poder e o monopólio do uso da força. Um dos
sintomas mais frequentes desse desmantelamento estatal é o surgimento de milícias, de
grupos armados paralelos, representando interesses econômicos à margem da atuação oficial
do poder público. O nível mais agudo da falência do Estado é a implosão total das estruturas
governamentais, a tal ponto que a comunidade internacional não mais reconhece a autoridade
do Estado como legítima para representá-lo. Nessa circunstância, observa-se a proliferação da
criminalidade e da desordem, com a pulverização do comando de facções e ausência de
representantes válidos (SASSÒLI, 1999, p. 483).
É no último estágio da desestruturação do Estado que se encontra a catástrofe
humanitária, que desafia a comunidade internacional a enfrentar dificuldades crescentes para
prestar assistência às vítimas e para garantir a proteção aos direitos humanos consagrados nos
documentos internacionais.
No entanto, o grande impasse do instituto é inexistência de regulamentação
internacional, ou seja, de um tratado ou convenção que defina seus limites e objetivos. Dada
essa ausência, não há como se exigir dos Estados – seja do Estado que supostamente está
ferindo os direitos humanos de sua população, seja do Estado ou organismo internacional que
supostamente está tentando eliminar ou minimizar esse sofrimento – o respeito a
determinados princípios ou padrões de conduta.
Na imensa maioria dos países do globo, para não dizer que em todos, existe algum tipo
83
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
de violação de direitos humanos. Problemas como saúde, previdência, educação, segurança
pública, controle da criminalidade, fome, são comuns, e frequentemente traduzem-se em
graves violações de direito, mas nem por isso se sugere que sejam feitas intervenções
humanitárias em todos eles.
A questão que aqui se propõe para ensejar uma intervenção é quando o desrespeito aos
direitos mais básicos e fundamentas de uma população, efetuado por parte do governo de seu
Estado, deixa de ser uma exceção e passa a ser uma regra geral, explicitamente praticada sem
qualquer pudor, dando a impressão de tratar-se da mais pura normalidade.
Junto ao problema dos limites da legalidade e legitimidade de uma intervenção, vem à
tona o debate sobre a seletividade e a parcialidade da sua autorização pelo Conselho de
Segurança da ONU.
A falta de regulamentação faz com que as intervenções sejam aprovadas pelo
Conselho de Segurança da ONU através de um julgamento caso a caso, deixando ao puro
arbítrio de seus cinco membros permanentes e com poder de veto a sua efetivação. Daí a
necessidade das superpotências propagarem o cosmopolitismo como única forma válida de
organização dos Estados, tendo as Nações Unidas como centro decisório legítimo dos
problemas mundiais.
A Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, por sua vez, ao abordar o
tema da proteção de pessoas em situações de catástrofe, entende que uma “catástrofe natural”
compreende situação de urgência mais ampla, que exige atividade de prevenção e atenuação
de suas consequências, o que justifica o desenvolvimento e sistematização do direito
internacional sobre o tema. A Comissão entende que catástrofes naturais abrangem as
“catástrofes antrópicas” e outras “catástrofes tecnológicas”, e reconhece que se pode
distinguir entre as situações de urgência decorrentes de um só acontecimento (um terremoto,
por exemplo) ou de casos complexos, como um conflito armado, que pode resultar em crises
humanitárias envolvendo, inclusive, mais de um país, mais de uma região e até mesmo
situações de total anarquia, levando à necessidade do envolvimento da comunidade
internacional
e/ou
das
agências
das
Nações
Unidas
(COMITION
DE
DROIT
INTERNATIONAL, 1994).
Não obstante a ausência normativa de uma definição de catástrofe, entre os anos de
1988 e 2005, o CSNU realizou quarenta e sete operações de paz no mundo. Essas ações se
84
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
caracterizaram pela interação entre as tarefas militares e as de caráter civil e humanitário 8.
Esse tipo de atuação do CSNU se chama de “intervenção humanitária”, com toda a polêmica
que, como já explicitado, este instituto carrega. Isso porque, abriga discussões que a
caracterizam de formas distintas, ora como forma de ingerência internacional, ora como um
“neo-colonialismo” disfarçado de assistência humanitária no mundo contemporâneo ou,
ainda, como ação necessária para a preservação dos direitos humanos em zonas de conflito
(SANTOS, 2009, p. 385-386).
De toda sorte, o debate sobre a legitimidade da intervenção acaba ganhando menor
destaque que o tema da legalidade que, por outro lado, acaba resumido à autorização ou não
do CSNU diante do caso concreto. No que tange a sua inação em determinados casos,
entende-se que o veto injustificado ao pedido de intervenções humanitárias ofende as regras e
princípios de direito internacional, desrespeitando tanto aqueles países com intenção de ajudar
quanto a população que está sofrendo pela crise (MACKLEN, 2008, p. 369-379). Para exercer
o direito de veto, o país deveria suscitar pontos como a proporcionalidade, a
contemporaneidade da intervenção, a possibilidade ou não de sucesso, a existência de meios
alternativos, e não simplesmente afirmar que o assunto se encontra dentro da jurisdição
interna do Estado em questão (MACKLEN, 2008, p. 389).
Na realidade, em virtude da omissão dos instrumentos jurídicos internacionais, a
intervenção humanitária se consolidou a partir de reivindicações das Organizações Não
Governamentais (ONGs) atuando em defesa das vítimas de catástrofes naturais,
especialmente quando ocorridas em países atribulados por guerras civis, étnicas ou
caracterizadas como calamidade pública. Nesses casos, via de regra, os Estados se recusam a
impedir que seja prestado auxílio médico e/ou alimentar à população, muitas vezes calcados
nos princípios da soberania, da não intervenção ou da autodeterminação dos povos.
Uma das dificuldades vivenciada pelas ONGs na última década do século XX era
justamente a definição do direito de assistência humanitária. Esse direito atinge diretamente a
responsabilidade dos Estados que devem se pautar pela obediência às regras de proteção aos
direitos humanos, ainda que esteja em situações de conflito ou atingido por catástrofes
naturais. Porém, embora o Estado onde ocorre a catástrofe seja, preferencialmente, aquele que
deve prestar assistência, compete também aos Estados estrangeiros, Organizações
Internacionais e Organizações Não Governamentais prestar, subsidiariamente, a assistência
8
Destaque-se as intervenções no Iraque (1991), na Bósnia-Hezergóvina (1992), na Somália (1992), em Ruanda
(1993-1994), no Timor Leste (1999), em Kosovo (1999) e em Darfur (2006).
85
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
humanitária. Nesse sentido, a Resolução 43/131 da Assembleia Geral da ONU se baseia no
princípio da subsidiariedade para determinar responsabilidades. No caso de resistência a esse
ditame, o CSNU tem legitimidade para usar medidas coercitivas ou empregar a força, sempre
em conformidade com o direito internacional (artigos 55 e 56 da Carta das Nações Unidas).
Envoltas em polêmicas entre os internacionalistas acerca de um “novo direito
internacional consuetudinário” 9 , podemos elencar as ações baseadas nos princípios da
subsidiariedade e da proporcionalidade perpetradas pela ONU nas duas últimas décadas,
determinando intervenções e assistência humanitária em regiões onde ocorreram catástrofes.
Adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1988, a Resolução 43/131 insta os
Estados, em seu artigo 5, a dar suporte para as organizações de assistência humanitária,
especialmente para as vítimas de desastres naturais em situações de emergência e similares10.
O instrumento citado foi bastante aplicado ao longo dos anos 1990, podendo ser destacada a
intervenção na Guerra do Golfo (1991), que trouxe à luz as Resoluções 688 e 706 do CSNU.
A primeira estabeleceu a operação Provide Comfort, que agregava tropas britânicas, estadounidenses e francesas, cujo objetivo era garantir o auxílio humanitário na região do conflito
(Capítulo VII da Carta das Nações Unidas), e reconheceu que a comunidade internacional tem
o direito/dever de intervir nos Estados nacionais que estejam em situações de emergência
humanitária. Por sua vez, a Resolução 706 determina que o CSNU deve disponibilizar os
meios para que seja prestada assistência humanitária.
Ao longo da década dos 1990 o CSNU adotou diversas resoluções com o intuito de
garantir a segurança e assistência às vítimas de crises humanitárias, valendo-se, para isso,
tanto de medidas coercitivas quanto do uso da força armada: Bósnia_Herzegovínia (19901992); Somália (1992); Ruanda (1994); e Haiti (1994 e 2004)11.
9
Para abordar esse tema sugerimos consultar AMARAL JÚNIOR, Alberto do. O direito de assistência
humanitária. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; EVANS, Gareth; SAHONOUN, Mohamed. The responsibility to
protect., Foreign affairs, nov./dec.2002. Disponível em: http://www//foreignaffairs.
org/20221101faessay9995.html.; MACHADO, Jonatan E. M. Direito internacional: do paradigma clássico ao
pós 11 setembro. Coimbra: Ed. Coimbra, 2003; e ROGERS, A.P.V. Humanitarian Intervention and International
Law, 27 Harv. J.L. & Pub. Pol'y 725 (2003-2004).
10
Resolução de 25 de outubro de 1988, a partir da ação da ONG Médicos Sem Fronteiras nas guerras civis da
Ásia e África e, particularmente, no conflito do Afeganistão de 1979. Seu conteúdo versa sobre o apoio aos
grupos atingidos por catástrofes naturais e situações similares, e consagra o direito de livre acesso às vítimas de
catástrofes, bem como o dever do Estado de facilitar a assistência humanitária. Estabelece, ainda, o princípio da
subsidiariedade, conferindo aos Estados o protagonismo no auxílio às vítimas, ao lado de ONGs e organismos
internacionais, que teriam um papel complementar. A partir dessa Resolução, aumentou significativamente o
número de operações de paz da ONU, não previstas expressamente na Carta de São Francisco. Para mais
detalhes sobre o tema, conferir SANTOS, Raquel Magalhães Neiva, op. cit., p. 393.
11
Ainda foi autorizada assistência humanitária na Libéria (1993 a 1995); em Angola (1993 a 1995); na Geórgia
(1993), em Moçambique (1993 a 1994); e no Iêmen (1994).
86
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Contudo, essas intervenções, apesar de necessárias, são por muitos consideradas
tardias e muitas vezes ineficazes (WEISS, 2004, p. 141). A demora na aprovação pelo CSNU,
demonstrando mais uma vez o caráter político do instituto, somente afasta essas intervenções
ditas humanitárias do que deveria ser o seu principal objetivo: a proteção dos direitos mais
básicos e fundamentais da pessoa humana. Além disso, representam uma séria ameaça à paz e
a segurança internacional.
O Brasil participa de operações de paz do Conselho de Segurança da ONU desde
1957. Entre os anos de 1989 e 2006, contribui com vinte dessas operações, tanto com
contingentes militares quanto com apoio à população civil e como facilitador do diálogo
político, podendo ser destacada sua atuação no Timor Leste, Moçambique e Angola. Porém,
sua mais importante atuação foi no Haiti, quando assumiu o controle das tropas da ONU. A
operação no Haiti (2004-2006) foi criada pela Resolução 1.542 de 2004, do Conselho de
Segurança, e a MINUSTAH substituiu a força multinacional de emergência (CONSELHO DE
SEGURANÇA, 2004), reunida depois da vacância do poder em virtude da partida o
Presidente Jean-Bertrand Aristide, em fevereiro de 2004.
A atuação brasileira no Haiti destaca-se porque esse país sempre foi avesso às
intervenções em assuntos internos dos Estados. Dessa vez, porém, compartilhou da decisão do
CSNU. O Haiti ocupa o posto de país mais pobre das Américas e tem problemas
extremamente complexos, o que enseja que seja mantida a cooperação internacional nos
seguintes assuntos:
a) segurança – não há Forças Armada ou Polícia organizada;
b) infraestrutura – não há redes de comunicações, geração de energia, saneamento
básico ou rodovias; a higiene e saúde públicas são precárias e a expectativa de vida
é severamente reduzida. Note-se que este quadro se agravou depois do terremoto
de 2010;
c) refundação do Estado – não há instituições estatais, como sistema judicial ou
órgãos públicos;
d) garantias e liberdades democráticas – não houve no Haiti uma transferência do
poder por meio de um pacto de governabilidade, não havendo, portanto, a prática
do convívio democrático, com alternância do poder.
O problema do Haiti aponta para uma incômoda questão relativa às intervenções
humanitárias: a consciência de que o sistema de solução de conflitos nas Nações Unidas é
uma construção político-diplomática, ou seja, ajurídica. A necessidade de eficácia desse
87
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
sistema se faz mais relevante no Hemisfério Sul, em boa medida porque a maioria dos
conflito pós-Segunda Guerra ocorreram nesta parte do planeta, em contraponto à estabilidade
relativa vivida no Norte.
Assim, os países desenvolvidos, dotados de instrumentos de dissuasão e intervenção,
atuam sempre em conformidade com seus interesses nacionais. Isto gera uma série de
soluções casuísticas que se aplicam ad hoc, levando à necessidade de se repensar os próprios
mecanismos de solução e mediação de conflitos (SEITENFUS, 2008).
O número crescente de intervenções humanitárias legitimadas pela ONU traz à tona a
discussão acerca do delicado equilíbrio entre ordem e soberania, elementos essenciais do
sistema internacional (NOGUEIRA, 2000, p. 142). As intervenções estariam presentes no
debate sobre a reconfiguração do sistema, representando, ao mesmo tempo, a iniciativa para a
preservação da soberania territorial como elemento central da regulação da ordem
internacional (GODOY, 2007, p. 7).
Outro aspecto relevante a ser considerado é que, se a adoção de um nível de respeito
aos direitos humanos vem a se configurar como elemento determinante do modo de produção
do Estado soberano depois da Guerra Fria, a intervenção humanitária pode ser vista como
resposta à necessidade de ordenar e estabilizar a política internacional contemporânea. E,
nesse caso, seria uma forma de garantir a própria sobrevivência do Estado soberano como
solução para a pacificação das zonas de conflito. Na tensão entre a lógica estadista e a
pretensão universalizante estaria o discurso ético-normativo dos direitos humanos (GODOY,
2007, p. 10).
A partir da reflexão sobre a integridade territorial dos Estados, a análise das
intervenções humanitárias suscita também outros temas, como a validade de regras e
procedimentos que propiciam a violação da soberania de um Estado tanto para remediar uma
crise humanitária quanto para impor condições de reconstrução. As diretrizes da intervenção
indicam a relação entre as concepções liberais que devem estar na base do projeto de
estabilização do país, sem se considerar o que interessa ao país (NOGUEIRA, 2000, p. 146).
Nessa lógica, as intervenções humanitárias perpetradas pelo CSNU se encontram,
definitivamente, relacionadas com a manutenção da ordem internacional, dentro de um
sistema que busca permanecer como está, ou seja, fundado numa ideologia neokantiana
cosmopolita das relações internacionais, sendo a ONU seu órgão central. Por traz da
organização, estão as grandes potências como Estados Unidos que, indiretamente, possuem o
88
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
poder de ditar a última palavra sobre a legalidade, ou não, de determinada intervenção
humanitária.
4. Conclusão
A teoria do cosmopolitismo de Kant é uma das mais célebres a explicar a organização
política dos Estados Nacionais em torno do globo. A criação de uma federação de Estados,
dotados de igualdade formal e unidos através de uma República mundial é, segundo ele, a
única forma de se atingir a paz mundial.
Em uma releitura desse pensamento, Habermas propõe que seja criado um governo
mundial, com a abolição de qualquer tipo de soberania ou divisão entre os Estados, seja uma
divisão territorial, seja uma divisão étnico-cultural. Assim, unidos por uma constituição, todos
os cidadãos do mundo fariam parte de uma só nação, governada por um parlamento central, a
ser inicialmente exercido pela ONU.
Apesar de todas as críticas que o pensamento de Habermas possa gerar,
principalmente por autores realistas como Danilo Zolo, que advogam pelo fortalecimento de
instituições regionais, com a valorização da diversidade cultural, é inegável que a ONU
aparenta ser hoje, através do Conselho de Segurança, a instituição supranacional com maior
poder no mundo. Conforme visto, essa aparência cede sob um olhar mais profundo da
estrutura das relações internacionais, especialmente quando se analisa o papel unilateral dos
EUA no pós-guerra fria, e seu poderio político, econômico e, principalmente, bélico.
A análise da estrutura política das relações internacionais teve como objetivo iniciar
um debate sobre a proteção internacional dos direitos humanos, notadamente em situações de
sistemáticas e massivas violações de direitos individuais perpetuadas pelo governo de um
Estado. Nesses casos, a polêmica sobre a legitimidade e a legalidade de uma intervenção
humanitária é interminável.
A falta de regulamentação do instituto, a indefinição de seu conceito e a sua aprovação
casuística pelo CSNU somente corroboram o argumento de que as intervenções, supostamente
efetuadas para a proteção dos direitos humanos, são na verdade uma decisão política que
reflete os interesses daqueles países localizados no topo do sistema internacional.
Portanto, para além do medo de uma dominação ocidental sobre o mundo, ou da
existência de excessivas intervenções pelas potências mundiais em países menos
desenvolvidos, deve-se estar atento para que a inação do Conselho de Segurança não continue
a gerar o problema contrário, a ausência de intervenções. Isso porque essa postura inativa
89
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
somente faz com que a comunidade internacional permaneça assistindo à prática de
genocídios, crimes de guerra e crimes contra a humanidade sendo praticados em determinados
países, sem que a devida proteção à pessoa humana seja efetivada.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A NATUREZA JURÍDICA DAS DECISÕES DA ASSEMBLEIA GERAL E DO
CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU: A COEXISTÊNCIA ENTRE A OPINIO JURIS
E O JUS COGENS.
Luísa Cruz Lobato1
Rafaela Teixeira Neves2
RESUMO
A partir da análise da estrutura da Organização das Nações Unidas e das decisões proferidas pela
Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança, o presente trabalho visa compreender os efeitos
e a natureza jurídica dessas decisões. A partir do estudo das atribuições e finalidades de tais
órgãos, enfatizam-se as distinções entre as decisões proferidas por cada um, seguindo-se a tese da
Corte Internacional de Justiça de que as recomendações proferidas pela Assembleia Geral têm,
em sua maioria, caráter de opinio juris e que as decisões do Conselho de Segurança, por sua
imperatividade, podem adquirir natureza de jus cogens.
Palavras-Chave: Organizações Internacionais; ONU; Assembleia Geral; Conselho de
Segurança; Opinio Juris; Jus Cogens.
THE LEGAL NATURE OF THE DECISIONS OF THE UN GENERAL
ASSEMBLY AND SECURITY COUNCIL: THE COEXISTENCE BETWEEN OPINIO
JURIS AND JUS COGENS.
ABSTRACT
From the analysis of UN structure and of the decisions made by its General Assembly and its
Security Council, this article has per objective to understand the effects and the legal nature of
these decisions. Starting from the study of the powers and purposes of the two main organs, it is
emphasized the differences between the decisions made by both of them, following the thesis of
the International Court of Justice which considers that the General Assembly recommendations
has, in its majority, the nature of an opinio juris, and by its imperative nature, the Security
Council decisions may acquire the nature of jus cogens.
Key-Words: International Organizations; UN; General Assembly; Security Council; Opinio
Juris; Jus Cogens.
1
Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade da Amazônia – UNAMA, acadêmica de Direito do Centro
Universitário do Pará – CESUPA. Pesquisadora da Clínica Jurídica de Direitos Humanos do CESUPA. E-mail:
[email protected].
2
Acadêmica de Direito do Centro Universitário do Pará – CESUPA, pesquisadora da Clínica Jurídica de Direitos
Humanos do CESUPA. E-mail: [email protected].
93
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
1. INTRODUÇÃO
A tentativa de solucionar conflitos entre os países e amenizar os problemas causados pela
Primeira Guerra Mundial, em meados de 1914 a 1918, provocou na sociedade um sentimento de
mudança em relação aos outros povos, ou seja, exsurge a necessidade de criação de um
organismo que viesse a intervir e promover a paz entre as nações originou-se aí a Liga das
Nações, também denominada Sociedade das Nações, em 1919.
Tal sociedade foi o primeiro organismo internacional com o objetivo de manter a paz e a
segurança da coletividade, buscando a cooperação internacional entre os países no âmbito
econômico e social, sendo formada pela Itália, França, Rússia e Inglaterra (países vencedores da
Primeira Guerra Mundial).
Todavia, em que pese o nobre sentimento e intenção de manter a paz mundial, as sanções
impostas aos países vencidos nesta catástrofe, Alemanha e Império Austro-Húngaro, provocaram
um sentimento de vingança que futuramente teria consequências inefáveis, ou melhor,
ocasionaria na Segunda Guerra Mundial (1939/1945) que causou danos diretos em todos os
continentes.
Nesse contexto, a Liga das Nações mostrou-se mal sucedida, uma vez que conseguia
cumprir com seu objetivo principal por não reprimir os embates mundiais. Restou a organização,
desse modo, desacreditada por ter sido considerada ineficaz.
Diante disso, houve a necessidade de criação de uma organização internacional mais
efetiva, que viesse a suprir as demandas deixadas pela Liga das Nações a fim de evitar outra
guerra e que pudesse intervir nos conflitos entre os países de maneira conciliatória, objetivando
sempre a paz e a segurança coletiva, originando-se assim em 1945, a Organização das Nações
Unidas (ONU).
É reconhecida à ONU a competência e legitimidade para atuar em conflitos entre os
países, por meio da Carta das Nações Unidas, que também reconheceu a obrigação dos Estados
de manter a segurança internacional, a paz e a praticar a tolerância e o respeito. Logo, a ONU
passou a ser vista como o órgão central da nova ordem mundial.
A ONU é formada por vários órgãos, quais sejam: o Conselho Econômico e Social;
Conselho de Tutela; a Corte Internacional de Justiça (CIJ); o Secretariado e a Assembleia Geral
das Nações Unidas (AG), composta por todos os Estados-membros e o Conselho de Segurança
94
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
(CS), que receberão maior destaque neste trabalho, por ser a força motriz da ONU e
aperfeiçoarem, na prática, a manutenção da paz e da segurança internacional.
Sendo assim, o estudo visado neste trabalho tem o fito de analisar a Assembleia Geral da
ONU e o Conselho de Segurança através de uma explanação da estrutura e características de
ambas, a fim de identificar a existência de opinio juris nas resoluções emanadas da Assembleia
Geral e do jus cogens em decisões pronunciadas pelo Conselho de Segurança e quais os seus
efeitos no cenário político mundial.
2. A ESTRUTURA DA ONU
A criação da ONU obedeceu ao contexto histórico e político das necessidades de
manutenção de segurança do pós-Segunda Guerra Mundial. Essa necessidade se materializou
institucionalmente por meio da criação do Conselho de Segurança, órgão de composição restrita
no qual se reuniram as potências vencedoras do último grande conflito do século XX.
Paralelamente à necessidade de manutenção da paz e da segurança internacionais, verificou-se
novamente a difusão dos valores pertencentes à teoria idealista das relações internacionais (dentre
os quais se inserem a paz democrática, a cooperação, o respeito ao direito internacional e a
interdependência), que antes da guerra haviam inspirado a criação da Sociedade das Nações
(SDN).
Trindade (2002) atesta que a existência de uma personalidade jurídica própria possibilita à
ONU atuar no cenário internacional como entidade distinta, independentemente dos Estadosmembros considerados individualmente. Em 1949, a Corte Internacional de Justiça (CIJ)
estabeleceu que a personalidade jurídica da ONU está pautada na doutrina dos poderes implícitos,
por meio da qual entende-se que o tratado constitutivo da organização confere-lhe os poderes ali
acordados. Trata-se de personalidade jurídica derivada, distinta daquela dos Estados, mas que, no
entanto, visa o alcance do propósito para o qual foi criada a organização. Em outras palavras, os
poderes implícitos decorrem automaticamente do tratado que institui a organização, não se
tratando de mera competência legislativa.
A personalidade jurídica se estende inclusive ao âmbito interno da organização no
momento em que esta exerce o poder de estabelecer um sistema jurídico próprio e independente
dos ordenamentos estatais, a fim de reger condições de trabalho e funcionalismo.
A ONU é composta por distintos órgãos – estatutários e subsidiários. Os principais órgãos
estatutários são: a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança, a Corte Internacional de Justiça, o
95
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Conselho de Tutela, o Secretariado e o Conselho Econômico e Social e estão previstos no artigo
7° da Carta de São Francisco. A criação dos órgãos subsidiários tem vez quando estes forem
necessários ao exercício das funções dos primeiros.
Seitenfus (2003) aponta que a materialização das preocupações com a manutenção da paz
e com a participação democrática dos países membros culminou na divisão institucional inicial da
ONU em duas câmaras: o CS e a AG. Enquanto o primeiro se volta primordialmente para as
questões concernentes à segurança internacional, a segunda atende ao disposto no artigo 1° da
Carta de São Francisco, referente ao desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,
tendo por base o respeito aos princípios da igualdade de direito, autodeterminação dos povos e
fortalecimento da paz universal. Cabe acrescentar que, nas Nações Unidas, o universalismo teve
muito mais força do que na SDN.
Para Mazuolli (2009), a AG é o principal órgão da ONU, dispondo de competência para
discutir e fazer recomendações relativas a qualquer matéria da Carta ou relativas às atribuições e
funções dos demais órgãos da organização. O CS, por sua vez, tem como principal atribuição a
manutenção da paz e da segurança internacional e se compõe dos países vencedores da Segunda
Guerra Mundial mais a China, de forma permanente, e de dez outros membros rotativos, eleitos
pela AG. A seguir, serão exploradas as principais características e atribuições da AG.
3. A ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS
Para Campos (1999), há uma enorme semelhança entre a estrutura e o funcionamento da
Assembleia Geral das Nações Unidas e os parlamentos, tanto no que diz respeito às regras de
debate quanto com relação a seus regimentos e processos internos.
A AG é o órgão central e o pleno da ONU. É também o órgão mais democrático da
instituição, prevalecendo em seu processo de votação a perspectiva do “um homem, um voto”,
que diz respeito ao mesmo peso dos votos dos países, independentemente de seu poder político.
Os processos de votação obedecem à maioria simples de presentes, salvo quando as questões em
debate dizem respeito a segurança, paz ou assuntos financeiros, para os quais se exige maioria de
2/3.
As reuniões no seio da AG podem ter caráter ordinário ou extraordinário. No primeiro
caso, são regulares e anuais, tendo lugar normalmente nos últimos meses do ano (setembrodezembro). No segundo caso, pode ser convocada tanto pelo CS quanto pelos próprios Estadosmembros da AG.
96
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
De acordo com o artigo 10 da Carta da ONU, a AG pode discutir quaisquer questões que
se insiram nas finalidades do documento ou que digam respeito a funções e atribuições dos
órgãos criados a partir dela. Pela resolução n°377 da Assembleia Geral, o órgão passou a ter
competência para tratar de questões relativas à paz e à segurança internacionais, que até 1950
eram prerrogativas unicamente do CS.
A resolução em questão teve origem na paralisia em âmbito do CS, provocada pelo veto
da União Soviética, durante a Guerra Fria. Graças à Resolução Acheson3, a AG se muniu de
competência para, na eventualidade de o CS encontrar-se incapaz de fazer frente à sua
responsabilidade de manter a paz e a segurança internacionais, conferir a seus membros o poder
de fazer recomendações referentes às medidas a serem adotadas. Portanto, a partir desta
resolução, entende-se ser relativizada a segunda parte do artigo 10 da Carta da ONU, que excetua
o artigo 12 do âmbito de competências da Assembleia Geral.
Seitenfus (2003) critica essas denominadas prerrogativas, considerando-as extremamente
amplas e escassamente ineficientes. A crítica tem relação com a natureza das resoluções
proferidas no âmbito da AG. Para o autor, resoluções consistem na materialização das
manifestações de vontade do órgão contrapondo-se às decisões do CS, que são impositivas e
forçam todos os Estados-membros a acatá-las.
Há, na doutrina, um debate relativo à capacidade vinculatória das resoluções da AG. Em
razão da amplitude de assuntos que lhe são de competência e de correntes que acreditam que não
atribuir nenhuma importância legal a esses documentos faria apenas com que os Estados
passassem a ignorá-los, questiona-se: qual a natureza e os efeitos das resoluções proferidas em
âmbito da Assembleia Geral da ONU? Teriam elas, em algum momento, o poder de vincular um
organismo internacional ou um Estado a adotá-la? Caso positiva a resposta, em quais situações?
4. A NATUREZA JURÍDICA E OS EFEITOS DAS RESOLUÇÕES DA ASSEMBLEIA
GERAL
As decisões proferidas pela AG da ONU tendem a serem chamadas de recomendações.
Tais decisões tem caráter político e advém de um intenso debate no seio do órgão, tal como um
Parlamento Nacional. No entanto, distintamente das normas materializadas em sede de
3
O nome da resolução faz alusão a Dean Acheson, ex-Secretário de Estado dos Estados Unidos e responsável pela
proposta.
97
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
legislativos nacionais, as decisões da AG não costumam vincular os Estados membros a adotálas, razão pela qual são chamadas de recomendatórias, constituindo parte do soft law do direito
internacional.
Apesar disto, não podem ser consideradas menos complexas que as suas correlatas
proferidas pelo Conselho de Segurança, a despeito das evidentes distinções em matéria de efeitos.
Tendo isto por base, a presente seção tem por escopo abordar a natureza jurídica das
resoluções da AG da ONU, bem como seus efeitos. Para tanto, faz-se uma breve e superficial
comparação com os efeitos das decisões do Conselho de Segurança.
4.1.
RESOLUÇÕES DA ASSEMBLEIA GERAL VS RESOLUÇÕES DO CONSELHO DE
SEGURANÇA
Inicialmente é importante traçar a distinção entre as resoluções proferidas em âmbito do
CS e as resoluções oriundas da AG. Na ONU, o termo resolução é igualmente utilizado para se
referir às decisões de ambos os órgãos. Para Öberg (2005), a capacidade vinculatória de uma
resolução diz respeito à possibilidade do documento em criar obrigações para seus destinatários.
Öberg (2005) estabelece que há uma diferença de efeitos para cada tipo de resolução.
Portanto, não é possível entendê-las sob o aspecto genérico do termo, sendo necessário
especificar em quais casos a resolução contará com uma força de decisão e em quais disporá de
caráter recomendatório. De acordo com o autor, uma resolução tem caráter de decisão quanto é
vinculante. Por vinculante, entende-se sua capacidade de criar obrigações entre seus destinatários.
Para Cretella Neto (2007), a decisão é o ato jurídico oriundo da manifestação de vontade
de um organismo internacional e tem o condão de criar obrigações entre aqueles a que se destina.
Sua finalidade é encerrar uma discussão e servir como meio de materializar uma deliberação. Em
sentido distinto, recomendações são os atos que emanam, a princípio, de um órgão
intergovernamental, que se propõe a determinar um comportamento aos seus destinatários.
Seitenfus (2003) considera que as resoluções da AG são meras recomendações dirigidas
quer aos Estados membros, quer ao Conselho de Segurança, que não dispõem de poder coercitivo
para obrigar um Estado a adotá-las.
Cretella Neto (2007), por sua vez, acredita que as resoluções produzidas pelas
organizações internacionais podem constituir uma espécie de norma. Em particular, tratando-se
98
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
das resoluções da assembleia Geral da ONU, o autor afirma que, por envolverem uma
multiplicidade de questões, o sistema normativo advindo de suas resoluções é bastante complexo.
Este poder normativo diferiria do poder de legislar que se conhece dentro dos Estados
nacionais. Para o autor, a AG dispõe da capacidade de formular comandos, em sua maioria, de
natureza administrativa, voltados para decidir acerca do funcionamento da própria organização.
Apesar de considerar algumas resoluções da AG como normas, Cretella Neto (2007)
reconhece que a grande maioria delas é recomendatória. Nesse diapasão, as recomendações da
AG não dispõem de capacidade vinculante, ou seja, não obrigam o Estado a adotá-las. Para o
autor, estes são os exemplos dos artigos 10 a 14 da Carta de São Francisco, que se referem a
algumas atribuições da AG.
O autor distingue as resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança. O
alcance jurídico das decisões proferidas pelo CS tem poder vinculante, ao passo que quando se
trata das resoluções da AG, o mesmo não é observado. Isto porque não é possível entender o
órgão como dotado de autoridade legislativa internacional.
Seitenfus (2003) compartilha do posicionamento. Para o autor, as resoluções da AG se
contrapõem às decisões do CS, pois “estas últimas são impositivas, e todos os Estados-Membros
devem acatá-las. Caso não o fizerem, correrão o risco de sofrer sanções por parte da ONU”
(SEITENFUS, 2003, pg.25).
Adicionalmente, de modo a provar a força impositiva das decisões do CS, o artigo 103 da
Carta da ONU estipula a obrigação de os Estados-membros adotarem suas decisões.
Öberg (2005) afirma que a diferença entre as resoluções dos órgãos da ONU residem no
fato de que as da AG voltam-se às questões organizacionais internas à ordem onusiana, ao passo
que o CS possui poder de decisão no que concerne o âmbito operacional relativo à paz e
segurança internacionais. Ao traçar essa análise, o autor leva em questão apenas os efeitos
vinculantes possivelmente atribuídos a cada resolução.
Para o autor, as decisões da AG possuem um efeito vinculante limitado aos temas
organizacionais, enquanto que as do CS vinculam universalmente todos os membros da
organização. Öberg (2005) acredita que as resoluções da AG são regras recomendatórias,
particularmente no que tange a relação externa do órgão com seus Estados-membros. O autor
aponta que a AG pode construir decisões quando se tratar de admissão de novos membros, do
99
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
procedimento de votação e a repartição do orçamento. Além disso, de acordo com Öberg (2005),
as resoluções da Assembleia Geral não possuem efeito vinculante em outras áreas além destas:
Resolutions of the GA have no binding effect in the operational realm of
international peace and security. Neither the GA’s budgetary powers in this area,
nor its enforcement powers to suspend or expel UN Members, fall outside of the
organizational sphere. (ÖBERG, 2005, pg.884)
No entanto, tais posicionamentos por si só não esclarecem a natureza jurídica das
resoluções da AG. Como será exposto adiante, ainda há uma lacuna a ser preenchida, relativa à
natureza dessas resoluções, em se considerando, particularmente, as incertezas oriundas do
conteúdo de algumas resoluções, bem como às decisões da CIJ. Aludido tribunal, por exemplo,
ainda não deixou clara a existência ou inexistência de poderes de decisão referentes a assuntos de
tutela e governança.
Cretella Neto (2007) aponta que pode haver outras instâncias, além daquelas relativas aos
assuntos internos da ONU, nas quais as resoluções da AG teriam condão vinculante.
Adicionalmente, as resoluções teriam valor para a formação do costume internacional. Para o
autor, afirmar que as resoluções não possuem valor jurídico é simplificar a amplitude de seu
poder normativo.
Assim, apesar de as visões apresentadas acima convergirem para aceitar a natureza de
recomendação de algumas resoluções da AG, e, portanto, concordarem em seu caráter não
vinculatório, ainda se faz necessário determinar quais seriam os efeitos desses documentos.
4.2.
A CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA (CIJ) E A NATUREZA DE OPINIO JURIS
Para Cretella Neto (2007), grande parte da doutrina costuma abordar o significado das
resoluções das organizações internacionais sob o prisma do direito internacional costumeiro, em
particular no caso da ONU. De acordo com essa perspectiva, as resoluções não vinculantes, ou
aquelas que enunciam normas gerais de comportamento, teriam a potencialidade de adquirir valor
de codificação ou cristalização de um costume internacional, ou mesmo de ser fundamento da
origem de determinado costume.
No Direito Internacional, a proclamação de uma norma de comportamento tende a
preceder sua consolidação como norma jurídica. As normas de comportamento não dispõem de
força jurídica obrigatória. Cretella Neto (2007) afirma que o processo de formação de uma norma
jurídica tem vez quando os Estados passam a adotar sistematicamente o comportamento descrito
100
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
na recomendação constante na norma de comportamento. Nesse momento, ocorre a formação de
um costume internacional que, por consequência, poderá vir a ser consolidado e codificado.
Na década de 1970, no Caso Namíbia4, a CIJ identificou as resoluções da AG como
estágios importantes no desenvolvimento do direito internacional, indicando que normas
importantes poderiam derivar desses documentos. No entanto, a menção à razão e ao modo de
fazer isto restou em aberto até que a Corte se manifestasse no Caso Nicarágua5. Para Öberg
(2005), o caso esclareceu bastante o aspecto da natureza jurídica de boa parte das decisões da
Assembleia Geral. Adotando a seguinte postura, alegou a Corte que:
The Court has however to be satisfied that there exists in customary law an
opinio juris as to the binding character of such abstention. It considers that this
opinio juris may be deduced from, inter alia, the attitude of the Parties and of
States towards certain General Assembly resolutions, and particularly resolution
2625 (XXV) entitled “Declaration on Principles of International Law
concerning Friendly Relations and Co-operation among States in Accordance
with the Charter of the United Nations”. (CIJ, 1986, pg.89-90).
Na decisão, a Corte alegou que é possível inferir a existência de determinada opinio juris
a partir do comportamento dos Estados ou partes a respeito de determinadas resoluções da AG,
em específico a resolução 2625 (XXV), denominada “Declaração sobre os Princípios do Direito
Internacional relativos às relações amigáveis e de Cooperação entre Estados nos termos da Carta
das Nações Unidas”. Em particular, a Corte se referiu a uma forma de opinio juris relativa ao
princípio do não uso da força.
É certo, portanto, que do ponto de vista jurídico, as decisões da AG da ONU, a despeito
de sua importância e significado político, não contam com uma força vinculante capaz de atrelar
os Estados-membros a seu cumprimento. Portanto, seus efeitos imediatos se veem, muitas vezes,
restritos à boa vontade dos Estados. Tanto é que tais decisões são costumeiramente denominadas
“recomendações”, ou seja, não dispõem de caráter mandatório, tampouco efeito vinculante, mas
apenas buscam sugerir determinado comportamento, norma ou tendência a ser adotada.
O caráter recomendatório, porém, não retira a importância de tais decisões na construção
das normas de direito internacional. Sem muito exagero, podem ser tidas como tendências
4
O caso é denominado “Legal Consequences for States of the Continued Presence of South Africa in Namibia” e
teve por origem uma solicitação do Conselho de Segurança à Corte Internacional de Justiça a respeito das
consequências legais da permanência da África do Sul na Namíbia, diante da recusa daquele país em retirar sua
administração deste.
5
Atividades militares e paramilitares no interior, e voltadas contra a Nicarágua, levaram o país a demandar contra os
Estados Unidos, país este que havia promovido incursões militares no interior do país para depor o então presidente
José Santos Zelaya.
101
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vanguardistas que precedem um comportamento futuramente majoritário. Seus efeitos de
prolongam e reiteram no tempo, servindo de base para a institucionalização das normas.
Distintamente, os efeitos das decisões do órgão político mais restrito da organização
tendem a atrelar os Estados-membros a seguir as normas e decisões propostas em seu âmbito. É o
que será estudado no próximo tópico.
4.3.
VARIAÇÃO NA NATUREZA JURÍDICA DAS RESOLUÇÕES DA ASSEMBLEIA
GERAL: A RESOLUÇÃO UNITING FOR PEACE DE 1959.
É importante ressaltar que, a despeito de a doutrina majoritária entender que as decisões
da AG são recomendações não vinculantes, no curso da Guerra Fria a atuação do órgão tomou
outros rumos, os quais se mantêm presentes na atualidade.
Azambuja (1995) afirma que em 1959, ante a paralisação das atividades do Conselho de
Segurança, causado pelo impasse de origem ideológica, relacionado à Guerra Fria, geraram a
necessidade de se buscar, dentro das próprias Nações Unidas, uma solução para os conflitos
internacionais. É nesse sentido que a AG, na época, recebeu novas atribuições:
Desfeitas as esperanças de que o Conselho de Segurança pudesse atuar
como harmonizador e enforcer das principais divergências internacionais,
procurou-se, no âmbito das próprias Nações Unidas, através de uma
valorização da Assembléia Geral, à qual, especialmente através da
Resolução Uniting for Peace de 1959, foram conferidas atribuições não
previstas na letra da Carta: encontrar capacidade supletiva de agir em
situações que requeriam um tipo de ação de peacekeeping e outras que
pertenciam, a rigor, ao âmbito privilegiado do Capítulo VII da Carta, que
trata, como se sabe, de ações relativas a ameaças à paz, ruptura da paz ou
atos de agressão, terreno reservado naquele documento exclusivamente ao
Conselho de Segurança. (AZAMBUJA, 1995, pg.142)
O aspecto mais importante da resolução n°377 (V) de 1959, conhecida como Uniting for
Peace, foi o fato de a mesma conferir à Assembleia Geral o poder de, diante da ausência de
unanimidade dos membros permanentes e a falha na responsabilidade da manutenção da paz e
segurança internacionais, trazer para si tais atribuições. Constitui tal atribuição uma espécie de
usurpação das prerrogativas originalmente previstas para o CS. Neste aspecto, há possibilidade
legal de, em determinadas situações, a AG atuar em situações que envolvam, por exemplo,
operações de manutenção de paz.
102
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Evidentemente a resolução dispunha de um cunho primordialmente político. Na época,
tratou-se de manobra da coalização Ocidental para contornar o veto soviético no Conselho de
Segurança, enquanto podia-se contar com maiorias significativas em sede de AG.
Muito embora posteriormente a AG tenha igualmente enfrentado um impasse, devido a
tendências de não-alinhamento dos países em desenvolvimento e movimentações anti-Primeiro
mundistas, permanecem os efeitos da Resolução n°377, conferindo à AG da ONU atribuições
específicas do CS em caso de impasse político em seu âmbito. Apesar de exceção, trata-se de
uma das situações em que as decisões da AG perdem o caráter recomendatório, passando a ser
vistas como vinculantes.
Distintamente, é regra que os efeitos das decisões do órgão político mais restrito da
organização tendam a atrelar os Estados-membros a seguir as normas e decisões propostas em
seu âmbito. É o que será estudado no próximo tópico.
5.
O CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU
De acordo com o artigo 24, da Carta da ONU, as atribuições dadas ao CS, são: manter a
paz e a segurança internacionais, investigar toda e qualquer situação que enseje conflito
internacional, recomendar métodos de ajustes de controvérsias e condições que promovam o
acordo, criar planos para o estabelecimento de um sistema que regule os armamentos.
O CS é formado por quinze membros, sendo cinco permanentes (EUA, França, Inglaterra
e China) que possuem poder de veto e os outros dez membros não permanentes que são eleitos
pela Assembleia Geral para um período de dois anos, sendo impossível ocorrer a reeleição no
mandato seguinte.
Para o país ser eleito é levada em consideração a contribuição do país para a manutenção
da paz e segurança coletiva, tendo como base os objetivos previstos pela Carta das Nações
Unidas, pois o CS possui duas ordens, quais sejam: dirigir recomendações aos Estados em
conflito, com a finalidade de solucionar pacificamente, casos de perturbação e/ou ruptura da paz;
e formular recomendações, tomar decisões que podem ocasionar na intervenção militar nos países
em litígio.
Vale ressaltar que o CS não se submete ao domínio reservado dos Estados membros,
tendo competência para atuar em toda e qualquer situação na qual ocorra ameaça à paz, sendo o
103
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
responsável por qualificar quando uma situação configurará ameaça à paz e a segurança
internacional.
O CS sempre deve buscar resolver os conflitos de maneira pacífica utilizando-se da
negociação, investigação, conciliação, entretanto, restando tais medidas insuficientes, o Conselho
pode, com o intuito de amenizar as tensões, intervir através de forças de manutenção da paz da
ONU criando condições para a formalização de um acordo de paz.
Todavia, se o sinistro ainda vier a subsistir, o CS poderá impor sanções – como embargos
ou bloqueios – ou até mesmo utilizar-se da força através da intervenção por militares dos
membros da ONU.
Observado tais considerações, resta claro que o CS e a AG são órgãos distintos e com
finalidades distintas e atuam em âmbitos diversos, logo, as recomendações e decisões proferidas
por ambos não terão as mesmas características. E é sobre a natureza jurídica da decisão do CS,
bem como suas características, que o próximo tópico tratará.
6. O JUS COGENS E AS DECISÕES DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU
Como visto anteriormente, as decisões emanadas do CS possuem um caráter obrigatório e
impositivo, de modo que vinculam universalmente a todos os membros por tratar-se de assuntos
de extrema relevância à ordem mundial, quais sejam: a paz e a segurança internacional.
Por outro lado, as resoluções proferidas pela AG não gozam de um status coercitivo como
as do CS, pois, por ser um órgão deliberativo há uma discussão voltada mais para as questões
internas e organizacionais da própria ONU, conquanto as decisões do CS tenham seus efeitos
recaídos por todos os membros. Efeitos estes vinculantes, impositivos e obrigatórios.
Quando a isto, resta claro que um descumprimento de uma decisão do CS acarreta a
sanções estabelecidas pela ONU. E é aí que se inicia a discussão sobre a natureza jurídica dessas
decisões, tendo em vista que por tratarem de matérias de extrema relevância e complexidade,
impositiva a todos os membros, vinculante, acarretando em repressões com o seu não
cumprimento, constituem caráter de normas jus cogens, sendo isto possível devido a ausência de
quantificação do conteúdo de tais normas.
104
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Portanto, faz-se necessário que haja, primeiramente, uma análise no que consiste ser o jus
cogens e, logo após, sua identificação nas decisões do CS. Ambas explicitadas nos tópicos
seguintes.
6.1.
O JUS COGENS NO DIREITO INTERNACIONAL
Enquanto categoria normativa reconhecida na esfera do Direito Internacional, o jus
cogens, representa um conceito incerto e de conteúdo não preciso, pois há o reconhecimento da
existência de regras internacionais obrigatórias e que, por isso, não poderiam ser contrariadas.
Tanto é que a Convenção de Viena dispõe em seu artigo 53 que um tratado não pode contrariar o
jus cogens, ou melhor, as normas jus cogens.
Boa parte dos estudiosos atribuem que o conceito foi designado por Francisco de Vitória
(1483-1546), teólogo espanhol neoescolástico, um dos fundadores da tradição filosófica da
Escola de Salamanca, teorizador da Guerra Justa, também conhecido como um dos criadores do
Direito Internacional moderno.
Mazzuoli (2009) explica que a emergência pela criação e reconhecimento do jus cogens é
perceptível em meados da década de 60, decorrente da pressão dos países socialistas em via de
desenvolvimento de firmar a ideia de que algumas normas fundamentais (formadas por costumes)
deveriam estar situadas em uma posição hierarquicamente superior aos dispositivos legais e
espécies normativas convencionais, de modo que tornariam nulos os tratados que com elas
contrastassem.
No entanto, atesta-se a sua “existência” representativa e, portanto, em consequência, um
plexo de discussões a propósito da matriz conceitual e concepção enquanto categoria jurídica,
com a inclusão do mesmo na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, valendo
lembrar que dantes já havia sido reconhecido pela Comissão de Direito Internacional.
Neste sentido, o termo jus cogens, ainda que de matriz controvertida, pode ser entendido
como um núcleo duro e relativamente inflexível de normas jurídicas que, em âmbito
internacional, condicionam a validade e eficácia de todas as demais que com ela forem
incompatíveis. Sendo assim, conglobam princípios, costumes e normas de grande relevância para
os entes em âmbito internacional. Não se tratam, portanto, de meras obrigações bilaterais, porque
possuem caráter erga omnes (BRITO, 2008, pg.598).
105
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
No entanto, em contrapartida ao entendimento do mencionado autor, Mazzuoli (2009)
entende que haja a obrigatoriedade das normas jurídicas, todavia, somente as que têm conteúdo
de jus cogens possuem a imperatividade, a saber:
Em princípio, toda norma jurídica é obrigatória, mas nem todas são imperativas,
como é o caso do jus cogens. A imperatividade das normas de jus cogens passa,
assim, a encontrar o seu fundamento de validade na sua inderrogabilidade.
(MAZZUOLI, 2009, pg.134).
Assim, pelo que fora dito, é possível afirmar que as normas jus cogens são insuscetíveis
de submissão pela vontade das partes, ou melhor, consistem na ordem pública internacional,
grosso modo, conforme salienta Mazzuoli (2009).
Além disso, Mazuolli (2009) ainda afirma que o procedimento normativo do jus cogens
está a indicar a existência de uma nova e soberana fonte do Direito Internacional, formada por
normas imperativas reconhecidas pela sociedade internacional como um todo, e que não constam
no rol das fontes clássicas do direito Internacional estabelecido pelo art. 38 do Estatuto da Corte
Internacional de Justiça, cuja disposição é:
Artigo 38. 1. A Corte, cuja função seja decidir conforme o direito internacional
as controvérsias que sejam submetidas, deverá aplicar; (...)
2. As convenções internacionais, sejam gerais ou particulares, que estabeleçam
regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes;
3. O costume internacional como prova de uma prática geralmente aceita como
direito;
4. Os princípios gerais do direito reconhecidos pelas nações civilizadas;
5. As decisões judiciais e as doutrinas dos publicitários de maior competência
das diversas nações, como meio auxiliar para a determinação das regras de
direito, sem prejuízo do disposto no Artigo 59.6.
A presente disposição não restringe a faculdade da Corte para decidir um litígio
ex aequo et bono, se convier às partes.
Em suma, com base no exposto e considerando a disposição acima, passou-se a existir
normas hierarquicamente superiores aos tratados internacionais e aos costumes, de modo a serem
aplicadas com prelazia.
Entretanto, há uma resistência por parte dos Estados quanto à aceitação do jus cogens e
isso, dar-se-á nos dizeres de Varella (2012) por dois aspectos: o primeiro consiste no receio por
parte dos Estados em relação “à imposição de limites ao direito de fazer tratados” (VARELLA,
2012, p.104), inclusive, o autor explica ser esse uma das principais razões da Convenção de
Viena não ter sido ratificada por um considerável número de países; e o segundo versa na
ausência de determinação de quais seriam as disposições consagradas no direito internacional, um
106
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
exemplo disso é a França que pela inexistência de uma organização internacional ou tribunal
internacional competente para determinar quais seriam, de fato, as normas jus cogens em vigor.
O entendimento deve seguir o raciocínio de TRINDADE (2004, pg.206), segundo o qual
“não se pode visualizar a humanidade como sujeito de Direito a partir da ótica do Estado; impõese reconhecer os limites do Estado a partir da ótica da humanidade”, isto é, os Estados, neste
sentido, por força do jus cogens (direito internacional), devem ser limitados em seus poderes
como forma de garantia da tutela da humanidade dos homens.
E é a partir dessa discussão sobre o conteúdo dos “jus cogens” que as decisões proferidas
pelo CS serão analisadas no próximo tópico.
6.2.
A ESTRUTURA DAS DECISÕES DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU
A Carta da ONU dedicou ao CS quatro capítulos, quais sejam: V, VI, VII e VIII, sendo
que no exercício desta atribuição possui duas questões, sendo elas; o CS pode dirigir
recomendações aos Estados em litígio, para a solução pacífica dos conflitos que maculem – ou
venham a perturbar – a paz mundial; bem como decidir/ recomendar o uso de forças armadas que
podem intervir nos países em disputa.
Além disso, preleciona ainda o artigo 12 (1) que quando o CS estiver exercendo suas
funções, cabe a AG abster-se de propor qualquer recomendação a respeito, salvo quando
solicitada.
É cediço que o CS dispõe de competência para atuar em todas as situações nas quais
ameacem a paz, consistindo em uma das suas especificidades, a aplicação de medidas
referenciadas no Capítulo VII, a sua não submissão ao domínio reservado dos Estados, tendo o
condão de qualificar se uma situação constitui uma ameaça à paz e à segurança internacional
(artigo 39), e a oportunidade de agir exclusivamente, conforme os termos do artigo 11, § 2º.
No que tange as questões processuais, as decisões do CS são realizadas pelo voto positivo
de 09 (nove) membros, conquanto que todos os demais assuntos fazem-se imprescindíveis os
mesmos nove votos, com o adicional de todos os membros permanentes deverem proferir voto
afirmativo, exceto o Estado-parte da controvérsia.
Ainda nessa seara e partindo para os meios de solução pacífica dos litígios adotados pelo
CS, tem-se que (a) a negociação, consiste em um meio de solução pacífica de entendimento
107
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
direto das partes; (b) o inquérito, é a intervenção de uma comissão de inquérito ou inquiridor
particular; (c) a mediação que é a intervenção de terceiro com a propositura de uma solução
concreta; (d) a arbitragem que versa sobre a entrega da solução para o litígio para terceiros
através do compromisso arbitral; e a (e) solução judicial que consiste na delegação da questão a
um tribunal já existente.
São esses os vários meios de solução pacífica dos conflitos que podem ser utilizados pelo
CS, devendo sempre manter a sua capacidade impositiva, que conforme ensina o artigo 41 da
Carta, já é dotado dessa função.
Ora, entra aqui a discussão sobre a identificação do conteúdo da natureza jurídica das
decisões emanadas do CS quando estas forem impositivas que nas palavras de Campos (2006):
As decisões imperativas são aquelas cujos não acatamento constitui uma
violação de direito internacional e podem sujeitar ao Estado infrator as
sanções pelo seu não cumprimento. A Carta só atribui o poder de tomar de
as tomar ao Conselho de Segurança e têm caráter excepcional.
(CAMPOS, 2006, pg.286).
Logo, as decisões provenientes do Conselho de Segurança, com base no Capítulo VII da
Carta das Nações Unidas tem caráter obrigatório e vinculante, por isso, a partir da sua criação, os
países não podem deixar de cumpri-las, sendo estas as decisões adotadas com base no Capítulo
VII das Nações Unidas.
E isso nada mais constitui como sendo a natureza jurídica da decisão do CS, como normas
jus cogens, tendo em vista que (1) não estão acima ou a margem da Lei, (b) tem caráter
vinculante e obrigatório a todos os atingidos e não possui um conteúdo restrito por serem
analisadas casuisticamente, tais quais as normas jus cogens que não podem ser desrespeitadas
pela sua força imperativa no âmbito do espaço político-internacional.
Os jus cogens são normas imperativas de direito internacional público, como a boa-fé
objetiva, a não intervenção, a dignidade da pessoa humana, que por serem normas imperativas de
direito internacional geram obrigações erga omnes, impostas a toda a comunidade internacional,
mesmo que não sejam ratificadas em Tratados, ou seja, os Estados não podem ir contra essas
normas.
Nessa mesma linha de raciocínio, Kamel (2012) afirma que o CS fez da atuação da ONU
mais forte que a da já extinta Liga das Nações, por ter sua base na carta constitutiva, todavia com
muito mais propriedade na prática de organização e inclusive confere às normas do CS o mesmo
108
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
status de jus cogens, a saber “sendo capaz de criar normas gerais de direito internacional, desde
que não viole norma de jus cogens nem as próprias normas do Conselho e da ONU”.
Portanto, a atuação/decisão do CS pode até ser advinda de países distintos
preestabelecidos no Conselho, entretanto, tal decisão representa o órgão central da nova ordem
mundial, ou seja, a decisão do CS é a materialização da ONU que tem como razão teleológica, a
própria proteção dos Direitos Humanos, especificamente, resguardando a paz e a segurança
internacional, daí a sua natureza jurídica ser de normas jus cogens, pois são insuscetíveis de
submissão pela vontade das partes, submetem os Estados ao seu conteúdo, vinculando estes ao
seu cumprimento por serem decisões obrigatórias que garantem a segurança coletiva, e além de
proporcionar legitimidade coercitiva à própria ONU.
7.
CONCLUSÃO
A criação da ONU acompanhou a tendência multilateralista criada com a Liga das Nações
e trouxe ao Direito Internacional novos campos de estudo e novas problemáticas, tanto no que
concerne as discussões relativas à própria natureza jurídica da organização e de suas agências
especializadas, quanto com a criação de novos mecanismos jurídicos para resolver questões
insurgentes no cenário internacional, vide a necessidade da criação de uma Corte Internacional de
Justiça.
Em primeiro lugar, é necessário enfatizar que a complexidade com a qual se remonta ao
sistema atinge, igualmente, seus principais órgãos deliberativos: a Assembleia Geral e o Conselho
de Segurança. É cediço que ambos possuem atribuições e composição distintas e sua atuação em
questões de política internacional variam em razão da variedade de sua composição. Enquanto a
AG segue uma tendência mais pluralista e tem ampla composição, o CS mantém a composição
criada após a Segunda Guerra Mundial, sendo esta mais restrita, englobando tão somente os
atores que, na época do conflito, foram consagrados vencedores.
Em segundo lugar, é exatamente pelas finalidades históricas, pelas distinções na
composição, bem como dos fins de cada um desses órgãos, é que os efeitos de suas decisões para
os Estados-membros irão variar. Por isto, como a AG tradicionalmente lida com questões
majoritariamente internas à própria ONU, suas decisões externas, principalmente no campo da
Segurança Internacional, são vistas como recomendações não vinculantes.
109
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A Corte Internacional de Justiça, nesse sentido, considerou serem tais recomendações
dotadas de natureza de opinio juris, ou, em outras palavras, precederem ao surgimento de um
direito costumeiro internacional. O direito costumeiro é visto, sob o prisma do Estatuto da CIJ,
como direito aplicável, mas as opinio juris não o são por ainda não gozarem de tal status. Nesse
diapasão, a CIJ determinou que as recomendações prolatadas pela AG da ONU tem caráter de
elemento constitutivo do direito internacional costumeiro.
A exceção a essa determinação é quando as decisões da AG versarem a respeito de
questões internas organizacionais, principalmente: admissão de novos membros, procedimento de
votação e repartição do orçamento.
Em terceiro lugar e por lidar com segurança internacional, guerra e paz e possibilidades de
interferência na soberania dos países, as decisões do CS são vinculantes a todos os Estados
membros da ONU, distinguindo-se da abordagem conferida às decisões da Assembleia Geral.
Nesse aspecto, o descumprimento de uma decisão do CS acarreta a sanções estabelecidas pela
ONU.
Tendo isto por base, salienta-se a possibilidade de as decisões do Conselho de Segurança
da ONU terem a natureza jurídica de jus cogens, que corresponde a normas imperativas e gerais
de direito internacional. Dispondo deste poder de criar normas vinculantes, tanto de caráter
específico, quanto de caráter geral, é que se atribui às decisões emanadas pelo órgão referida
natureza.
Em quarto lugar, tem-se que as decisões do Conselho de Segurança podem ter natureza de
jus cogens, com base em sua finalidade teleológica, qual seja, a proteção dos direitos humanos e
o resguardo à paz e segurança internacionais. Adicionalmente, é a possibilidade de vinculação e a
obrigatoriedade de cumprimento que atribui legitimidade coercitiva ao CS da ONU. Não sendo
referente, portanto, a norma ao capítulo IV da Carta da ONU, ela perderá a sua força vinculante
em relação às questões externas da organização com seus países membros.
Finalmente, muito embora, haja distinções relativas aos efeitos das decisões dos dois
principais órgãos das Nações Unidas, é necessário salientar que não deve ser estabelecida escala
de importância entre as decisões emanadas por ambos. Isto porque, preferindo um em relação ao
outro, corre-se o risco de simplificar demasiadamente a importância e relevância da AG, em face
da não obrigatoriedade de suas recomendações.
110
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A Assembleia Geral exerceu papel fundamental, ao lado do Secretário-Geral da ONU,
durante a Guerra Fria, quando ficou caracterizado o impasse no Conselho de Segurança. As
questões relativas ao Canal de Suez, ao Líbano (1958) e ao conflito entre as Coreias, por
exemplo, não foram solucionadas isoladamente pelo CS, que encontrava-se dividido em razão da
Guerra Fria.
O CS e a AG são órgãos complementares da ONU e atuam em áreas específicas na seara
da política internacional, não existindo hierarquia entre eles. Possuem finalidades e composição
distintas e, a princípio, tem área de atuação delimitada, no entanto, são ambos componentes
essenciais e complementares para a construção de um mecanismo de segurança coletiva, de fato,
eficaz.
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112
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
O DIREITO INTERNACIONAL E AS ARMAS CONVENCIONAIS: Desafios de
Regulamentação
INTERNATIONAL LAW AND CONVENTIONAL WEAPONS:
Regulatory Challenges
Rodrigo Alves Pinto Ruggio1
RESUMO
Armas Convencionais, sobretudo de pequeno porte, como pistolas e fuzis, desempenham um
papel central em praticamente todos os conflitos e crises ao redor do planeta. Sua praticidade
e ampla disponibilidade favorecem as inúmeras violações dos direitos humanos e do direito
internacional humanitário, além de facilitar o tráfico ilícito. Ao contrário das armas químicas,
biológicas e nucleares, que são reguladas por tratados internacionais proibindo suas
transferências, não existem convenções ou tratados proibindo ou restringindo as transferências
de armas convencionais. Ciente das nefastas consequências da falta de regulamentação sobre
o uso, fabricação e o comércio destes produtos, a sociedade internacional vem construindo um
arcabouço normativo com vistas a disciplinar a utilização indiscriminada das armas
convencionais. Apesar dos esforços envidados, há ainda muito que ser feito para alcançar uma
efetiva regulamentação dos armamentos.
PALAVRAS CHAVE: Armas Convencionais; Direito Internacional; Desafios.
ABSTRACT
Conventional weapons, especially small sized, such as pistols and rifles, play a central role in
almost all conflicts and crises around the globe, insofar as its practicality and wide availability
favor the numerous violations of human rights and international humanitarian law, besides
facilitating the smuggling. Unlike chemical, biological and nuclear, which are regulated by
international treaties banning their transfers, there are no conventions or treaties prohibiting or
Advogado, Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – IEC PUCMINAS, Mestrando em Direito Internacional do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais – PPGD – PUCMINAS, Professor da Faculdade Arquidiocesana de
Curvelo - FAC e da Faculdade da Cidade de Santa Luzia – FACSAL.
1
113
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
restricting transfers of conventional arms. Aware of the dire consequences of the lack of
regulation on the use, manufacture and marketing of these products, the society is building an
international normative framework aimed at regulating the indiscriminate use of conventional
weapons. Despite efforts, there is still much to be done to achieve effective regulation of
armaments.
KEYWORDS: Conventional Weapons; International Law; Challenges.
1. Introdução
As armas convencionais, suas munições e materiais correlatos estão plenamente
disponíveis para aquisição ao redor do mundo, seja pelas vias legais, sob a ótica dos Estados
exportadores ou importadores, ou ilegais, no chamado “mercado negro”, que tem origem no
tráfico ilícito destes produtos. Ao contrário do comércio de outros tipos de mercadorias, que
se submetem a regras previamente acordadas entre os Estados participantes das transações
internacionais, o comércio internacional de armas segue carente de regulamentação
específica. Até o presente momento não existe um conjunto global de normas que rege de
forma adequada o comércio de armas convencionais além das fronteiras nacionais de um
Estado.
Algumas tentativas de estabelecer regras, parâmetros e diretrizes com vistas a regular
o comércio destas mercadorias foram feitas e alguns instrumentos foram criados, mas a
ausência de um tratado global, dotado de força vinculativa para todos os Estados que
aderirem, ainda não foi alcançado em razão da falta de acordo que prevalece entre os países
nas negociações, a exemplo do recente fracasso de uma conferência sobre o tema promovido
pelas Nações Unidas e ocorrido em julho de 2012, o que demonstra, desde logo, o poder que
está por trás deste mercado desregulado.
O problema é que esta falta de regulamentação favorece a falta de transparência entre
os Estados sobre suas exportações ou aquisições de armas, o que, por sua vez, facilita as
transferências ilícitas ou irresponsáveis, que são aquelas cujas armas são destinadas para áreas
em conflito ou atingidas por graves violações dos direitos humanos e do direito internacional
humanitário, ou que envolvem o risco significativo de desvio ou contrabando para
organizações criminosas ou terroristas.
Neste particular, o tráfico ilícito de armas de fogo vem sendo amplamente discutido e
avanços na regulamentação para coibir esta prática vêm sendo alcançados, a exemplo da
114
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
criação do Protocolo Contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, Suas Peças,
Componentes e Munições, Complementando a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime
Organizado Transnacional e a Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico
Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e Materiais Relacionados.
Armas podem ser usadas de forma legal, em respeito ao direito interno e internacional,
mas a ausência de regras sobre o seu comércio, as tornam instrumentos de repressão política,
prática de crimes, atentados terroristas, enfim, são instrumentos que podem causar sofrimento
humano desnecessário. Além disso, transferências ilícitas ou irresponsáveis de armas
convencionais podem desestabilizar a segurança em uma região, comprometendo a paz e a
segurança internacional, bem como facilitar a violação dos embargos de armas impostos pelo
Conselho de Segurança da ONU o que leva, consequentemente, às violações dos direitos
humanos e do direito internacional humanitário, já que referidos embargos são aprovados em
razão das constantes violações a estes direitos.
Importante citar ainda que transferências de armas destinadas a regiões em conflitos e
atingidas por graves violações das normas internacionais, na maioria das vezes agravam o
conflito, ao invés de contribuir para a sua solução. Desse modo, agravar um conflito significa
prejudicar o desenvolvimento da região, dos povos que ali habitam, na medida em que o
investimento é desencorajado e as condições normais de trabalho, saúde e educação são
comprometidas em razão da falta de segurança e estabilidade, o que compromete o
desenvolvimento dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, tal como
previsto na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento das Nações Unidas de 1986
(Resolução Nº 41/128 da Assembleia Geral).
É justamente em razão destas nefastas consequências que a Organização das Nações
Unidas, juntamente com instituições da sociedade civil, vem desenvolvendo um trabalho
junto aos Estados Membros para negociar a elaboração de um Tratado Internacional
regulamentando o Comércio de Armas.
As negociações para a elaboração deste importante instrumento tiveram início em
2006, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas votou esmagadoramente a favor da
Resolução 61/89, que, entre outras questões, solicitou aos Estados Membros que
apresentassem suas opiniões sobre a viabilidade, escopo e parâmetros acerca da criação de um
tratado internacional regulamentando a importação, exportação e transferências de armas
convencionais. Além disso, criou um Grupo de Especialistas Governamentais para analisar a
questão.
115
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Com base no relatório apresentado pelo grupo, a Assembleia Geral aprovou em 2009 a
Resolução 64/48, que decidiu convocar uma Conferência das Nações Unidas para a
elaboração de referido tratado em 2012. A resolução fixou também a criação de um Comitê
Preparatório para discutir a matéria antes da data prevista, suas reuniões ocorreram em julho
de 2010, fevereiro – março de 2011 e julho de 2012.
Apesar dos esforços dedicados pelas delegações na última negociação, ocorrida em
julho de 2012, os Estados Membros não conseguiram chegar a um acordo e a conferência
fracassou. Assim a Assembleia Geral das Nações Unidas decidiu convocar uma nova
conferência, a ser realizada em março de 2013, na esperança de concluir o trabalho.
Segundo um relatório divulgado pela organização Oxfam International em 2009,
denominado “Dying for Action”, desde a primeira votação da Assembleia Geral pela
aprovação da Resolução 61/89, em 2006, aproximadamente 2,1 milhões de pessoas morreram
direta ou indiretamente por decorrência de violência armada. É o equivalente a mais de 2.000
(duas mil) pessoas por dia, sem contar as inúmeras mortes ocorridas até o presente momento
(OXFAM INTERNATIONAL, 2009). Tal fato evidencia a necessidade e urgência no
estabelecimento de normas juridicamente vinculantes aos Estados sobre o controle do
comércio internacional de armas.
Um dos pontos chaves nas negociações sobre o tratado é a criação de um sistema de
transparência no qual os países serão obrigados e, não somente, convidados, a fornecer
informações detalhadas sobre suas transferências de armas, assim como de suas partes,
acessórios e munições. Espera-se com isso que com a criação de referido tratado e a adesão
pelo Brasil, o País passe a cumprir com a transparência no comércio internacional de armas, já
que sequer possui um relatório nacional sobre suas exportações e nem mesmo cumpre
satisfatoriamente com o Registro das Nações Unidas sobre o comércio de armas
convencionais (UNROCA).
Apesar das dificuldades na elaboração de um tratado global que estabeleça regras
comuns sobre o comércio internacional de armas, alguns avanços no que tange à
regulamentação dos armamentos convencionais já foram alcançados, fixando-se regras,
parâmetros e diretrizes sobre o uso destas armas, o comércio, a transparência nas vendas e
aquisições, bem como medidas para evitar o tráfico ilícito.
Desse modo, cumpre no capítulo a seguir abordar os principais instrumentos
internacionais criados, bem como o trabalho desenvolvido pela ONU, por meio de seus
órgãos, a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança, com destaque para os diversos
116
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
desafios que se apresentam no caminho do alcance de uma efetiva regulamentação dos
armamentos.
2. A Regulamentação das Armas Convencionais – Avanços e Desafios
Na tentativa de limitar os efeitos nocivos do uso indiscriminado das armas
convencionais, a sociedade internacional tem progredido na criação de alguns tratados
internacionais fixando regras sobre a utilização, fabricação e comércio destas armas, bem
como também documentos de política contendo diretrizes e parâmetros sobre estes produtos,
os quais cumpre destacar:
 Convenção sobre a Proibição ou Limitação do Uso de Certas Armas Convencionais que
podem ser consideradas excessivamente nocivas ou terem efeitos indiscriminados2 –
(Entrada em vigor: 02 de dezembro de 1983);
 Convenções sobre Munições Cluster – (Entrada em vigor: 01 de agosto de 2010);
 Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo,
Munições, Explosivos e Materiais Relacionados – (Entrada em vigor: 01 de julho de 1998);
 Convenção Interamericana sobre Transparência nas Aquisições de Armas Convencionais –
(Entrada em vigor: 21 de novembro de 2002);
 Convenção Centro – Africana para o Controle de Armas Pequenas e Leves, suas munições
e todas as peças e componentes que podem ser usados para sua Fabricação, Reparação e
Montagem – (Entrada em vigor: Ainda não está em vigor);
 Convenção sobre a Proibição do Uso, Armazenamento, Produção e Transferência de Minas
Antipessoal e sobre sua Destruição – (Entrada em vigor: 02 de março de 1999);
 Tratado sobre Forças Armadas Convencionais na Europa – (Entrada em vigor: 09 de
novembro de 1992);
2
Esta Convenção possui 2 (duas) emendas e 5 (cinco) protocolos adicionais.
117
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
 Convenção Internacional sobre a Supressão de Atentados Terroristas com Bombas –
(Entrada em vigor: 23 de maio de 2001);
 Protocolo Contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, Suas Peças e
Componentes e Munições, Complementando a Convenção das Nações Unidas Contra o
Crime Organizado Transnacional – (Entrada em vigor: 30 de abril de 2006);
 Programa de Ação para a Prevenção, o Combate e a Erradicação do Comércio Ilícito de
Armas Leves e Pequenas (PoA) – (Aprovado na Conferência das Nações Unidas sobre o
Tráfico Ilícito de Armas Pequenas e Leves em todos os seus Aspectos, ocorrida em Nova
York de 09 a 20 de julho de 2001);
 Código de Conduta da União Europeia para Exportação de Armas – (Aprovado pelo
Conselho Europeu em 1998 e alçado ao status de Posição Comum em 2008);
 Estratégia da União Europeia para o Combate à Acumulação e ao Tráfico Ilícito de Armas
Pequenas e Leves e suas Munições – (Adotada pelo Conselho Europeu em 15-16 de
dezembro de 2005);
 Organização para a Segurança e Cooperação da Europa – OSCE – da qual se destaca o
Document on Small Arms and Light Weapons3 – (Aprovado na plenária da 308ª Reunião
do Fórum de Cooperação de Segurança da OSCE, em 2000);
 Acordo de Wassenar – (Celebrado em uma reunião na Holanda, envolvendo diversos
países exportadores de armas, dos quais estranhamente não se encontra incluído o Brasil,
em 19 de dezembro de 1995. Sua declaração foi emitida no Palácio da Paz de Haia).
Imperioso destacar ainda o esforço da Organização das Nações Unidas por meio de
seus principais órgãos, a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança, no sentido de efetivar
os dispositivos previstos na Carta das Nações Unidas sobre desarmamento e regulamentação
dos armamentos, notadamente os artigos 11 e 26, bem como suas relações com a manutenção
da paz e segurança internacional.
3
Documento sobre Armas Pequenas e Leves.
118
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Inicialmente cumpre informar que a ONU possui uma Comissão de Desarmamento
(UNDC), que foi criada em 1952 pela Assembleia Geral, possuindo um mandato geral para
discutir questões de desarmamento e regulamentação dos armamentos. Reúne-se a cada ano,
durante um período de três semanas, entre os meses de abril e maio. Além disso, a Assembleia
Geral já realizou três sessões especiais sobre desarmamento (SSOD), em 1978, 1982 e 1988,
sendo que desde 1995, o órgão tem solicitado a realização de mais uma sessão especial sobre
o assunto. Grupos de trabalho foram criados em 2003 e 2007 para discutir a agenda e a
possibilidade de criação desta quarta sessão. A Assembleia possui ainda, conforme ressaltado,
um grupo de trabalho específico, criado em 2008, sobre a elaboração do aguardado Tratado
sobre Comércio de Armas.
Desse modo, a Assembleia Geral tem enfrentado diversas questões relacionadas à
regulamentação dos armamentos e materiais correlatos. Esta preocupação não está relacionada
somente às armas convencionais propriamente ditas, mas também à situação das munições
que são usadas nas mesmas.
Estoques de munições podem ser extremamente perigosos se não forem devidamente
armazenados. Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Questões de Desarmamento,
explosões inesperadas de depósitos de munições têm afetado mais de 60 países em todo o
mundo, causando inúmeras mortes nos últimos 15 anos. (UNODA, 2012). Cite-se o exemplo
da Ucrânia, cujas Forças Armadas possuíam em 2007, 771.400 toneladas de munições
consideradas excedente inutilizável, incluindo 392.800 toneladas cujo período de
armazenagem já havia expirado e que exigiam reciclagem. (GENERAL ASSEMBLY, 2007).
Noutro prisma, estoques de munições geridos de forma incorreta podem se tornar
fontes de desvio de munições para o mercado ilegal, abastecendo organizações criminosas,
grupos terroristas e a criminalidade em geral.
Por estes motivos, foram emitidas diversas resoluções pela Assembleia Geral
abordando o tema, dentre as quais cumpre destacar as Resoluções 60/74 - (A/RES/60/74 –
2006); 63/61 – (A/RES/63/61/ - 2009); 64/51 - (A/RES/64/51/ - 2010); 66/42 - (A/RES/66/42/
- 2012), dentre outras.
Entretanto, ainda não foi possível a criação de um tratado vinculativo fixando regras
gerais sobre a gerência e administração dos estoques de munições, desafio este que se
apresenta atualmente à sociedade internacional. A criação de um tratado global que aborde
este tema é importante na medida em que estabelecerá normas internacionais vinculativas a
todos os Estados, reduzindo o risco de que estes produtos sejam desviados para o mercado
119
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
ilegal ou então que possam causar ferimentos desnecessários derivados de sua má
administração.
Outra preocupação das Nações Unidas que é de extrema importância neste esforço de
regulamentação dos armamentos convencionais é a questão das armas pequenas e leves. O
tráfico ilícito destas armas desestabiliza comunidades e afeta a segurança e o desenvolvimento
em todas as regiões do mundo. Criminosos, piratas, terroristas, insurgentes, todos eles têm seu
poder ampliado diante de um fluxo de armas de pequeno calibre à disposição no mercado
ilegal. Basta analisar o problema que enfrenta o Brasil, um país que possui um alto índice de
criminalidade em praticamente quase todos os seus Estados e que possui grandes
organizações criminosas, como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital
(PCC), este último que recentemente aterrorizou o Estado de São Paulo, travando uma guerra
com a polícia que sacrificou a vida de inúmeros policiais, criminosos e civis.
Segundo dados apurados pela OSCIP Viva Comunidade, estima-se que circulem no
País entre 16 e 18 milhões de armas de fogo; das quais aquelas de uso legal estejam nas faixas
de 7,5 e 8,4 milhões, sendo que as ilegais se concentram entre 7,6 e 10,7 milhões. (VIVA
COMUNIDADE, 2010). Importante destacar que neste último enfrentamento em 2012, entre
o PCC e a Polícia do Estado de São Paulo, dezenas de civis foram assassinados
indiscriminadamente pela organização criminosa com o uso de armas pequenas e leves, como
pistolas, metralhadoras e fuzis.
Estas armas são baratas, leves e fáceis de manusear, transportar e esconder. Por óbvio,
não podem por si só criar os conflitos em que são utilizadas, mas a sua acumulação excessiva,
que tem origem em sua ampla disponibilidade, agrava a tensão e torna a violência mais letal e
prolongada, o que leva a uma maior aquisição de armas pelas pessoas para se defenderem,
gerando um ciclo vicioso. Além disso, a maioria dos conflitos atuais envolve principalmente o
uso de armas de pequeno porte, sendo, portanto, responsáveis por um grande número de
mortes em todo o mundo.
Desse modo, armas pequenas e leves são amplamente utilizadas na violação dos
direitos humanos e do direito internacional humanitário, por meio da prática de assassinatos,
mutilações, estupro e outros tipos de violência sexual, desaparecimento forçado, tortura e
recrutamento forçado de crianças por grupos armados, que são posteriormente usadas como
soldados, a exemplo do que ocorre com frequência na África.
Neste caso em particular, das chamadas crianças soldados, segundo a ONG Human
Rights Watch, em 2001 foi divulgado um relatório no qual foram identificados 30 países ao
redor do mundo no qual crianças estavam participando de conflitos armados. Atualmente este
120
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
número reduziu para 15. Em alguns países o uso destas crianças termina com o fim do
conflito e muitas vezes elas ficam totalmente desamparadas, suportando sozinhas os danos
causados pelo constante abuso e violência a que são submetidas. O fim das guerras civis em
países como Serra Leoa, Libéria, Nepal e Sri Lanka permitiu a desmobilização de dezenas de
milhares de crianças soldados. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2012).
É justamente em razão destas mazelas que têm como instrumento principal armas
pequenas e leves que a Assembleia Geral das Nações Unidas tem envidado esforços para
regulamentar as transferências destes produtos, como forma de evitar o desvio e contrabando
para o mercado ilegal, bem como seu fornecimento para regiões em conflito e atingidas por
graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário. Daí a
necessidade de criação de um tratado global regulamentando o comércio destes produtos.
Cumpre destacar algumas Resoluções do órgão abordando o tema, são elas, Resolução
60/68 – (A/RES/60/68 – 2006); 64/50 - (A/RES/64/50 – 2010); 65/50 – (A/RES/65/50 –
2011); 66/47 – (A/RES/66/47 – 2012); entre outras.
Na sequência deste esforço das Nações Unidas para regular a utilização das armas
convencionais, é fundamental destacar o trabalho desenvolvido com relação às minas
terrestres. As minas terrestres são de duas espécies: antipessoais e antiveículos, ambas causam
terrível sofrimento às pessoas tanto durante, quanto depois de encerrado os conflitos. Minas
antipessoais são proibidas desde 1999, quando entrou em vigor a Convenção sobre a
Proibição do Uso, Armazenamento e Transferência de Minas Antipessoal e sobre sua
Destruição, também conhecida como Convenção de Proibição de Minas, ratificada pelo Brasil
em 30 de abril de 1999 (Decreto n. 3.128, de 5 de agosto de 1999).
Mais de 150 países aderiram ao Tratado. Segundo o Escritório das Nações Unidas para
Assuntos de Desarmamento, os resultados positivos alcançados incluem a destruição de mais
de 40 milhões de minas armazenadas, uma redução acentuada no número de mortes, um
aumento de Estados livres de minas e uma melhor assistência às vítimas. Apesar dos avanços,
pessoas ainda morrem ou perdem membros todos os dias ao redor do mundo por pisarem em
minas, incluindo grande número de crianças, já que muitas vivem próximas a campos
minados. Mais de 10 milhões de minas estão armazenadas aguardando destruição e enormes
extensões de terras ainda estão infestadas e, portanto, inutilizáveis. (UNODA, 2012).
E o que é pior, não existe qualquer regulamentação quanto às minas antiveículos, que
são usadas livremente nos conflitos. Estas armas, que podem restar utilizáveis por mais de 50
anos, provocam inúmeras vítimas, a grande maioria civis, e ainda, restringem a circulação de
pessoas e ajuda humanitária, tornam terras improdutivas para o cultivo e negam aos cidadãos
121
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
de determinado local acesso à água, comida, cuidados médicos e ao comércio, impedindo o
desenvolvimento econômico e social. Em razão disso, o Secretário – Geral da ONU tem por
diversas vezes solicitado aos Estados que envidem esforços para também regulamentar o uso
destas minas.
Espera-se com isso que a sociedade internacional se empenhe na criação de uma nova
convenção, desta vez proibindo a utilização das minas antiveículos, como forma de
proporcionar uma maior proteção dos direitos humanos, livrando os civis desta arma que não
distingue combatentes de não combatentes.
Semelhante ao problema representado pelas minas tem-se também os problemas
representados pelas denominadas “munições cluster”, ou “bombas de fragmentação”, que são
armas compostas por uma caixa que se abre no ar e espalha inúmeras sub-munições
explosivas ou “sub-bombas” sobre uma ampla área. Dependendo do modelo, o número de
sub-munições pode variar de dezenas a mais de 600.
Estas munições podem ser lançadas de aeronaves, ou por artilharia e mísseis. A maior
parte deveria explodir no momento do impacto, entretanto, segundo o Comitê Internacional da
Cruz Vermelha, a história tem mostrado que um grande número destas munições falha e não
explode no momento da colisão. As taxas verossímeis de falha destas armas nos conflitos
variam entre 10% a 40%, razão pela qual o uso em larga escala das mesmas resultou em
regiões e países infestados com dezenas de milhares, às vezes milhões de sub-munições não
detonadas e altamente instáveis. (COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA,
2010).
Como a maioria das sub-munições não é de precisão, sua exatidão pode ser afetada
pelas condições de tempo e outros fatores ambientais, o que pode fazer com que elas atinjam
alvos fora da área previamente planejada. Quando tais armas são usadas em áreas povoadas
ou próximas a elas, podem representar um perigo significativo para os civis, tanto durante o
ataque, quanto depois, quando então as pessoas retornam às suas casas e à rotina normal do
cotidiano.
Segundo a Human Rights Watch, são 34 os países conhecidos por terem produzido
mais de 210 tipos diferentes de munições cluster, dos quais se inclui o Brasil. Dentre eles,
projeteis, bombas, foguetes, mísseis e dispensers. Pelo menos 87 países estocam estas
munições atualmente ou o fizeram no passado, dos quais também se inclui o Brasil, sendo que
os estoques atuais totalizam milhões de bombas de fragmentação, contendo bilhões de submunições individuais. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2010).
122
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Interessante destacar como os principais conflitos das últimas décadas envolveram a
utilização destas armas, causando inúmeras mortes de civis e representando até os dias atuais
constante perigo para as populações situadas nos locais atingidos, conforme informa a ONG
Human Rights Watch em seu excelente trabalho de monitoramento do uso destas armas, que
apesar de representarem todo este dano à segurança das pessoas, muitos países ainda insistem
em manter os estoques e produções, bem como não assinar a Convenção Internacional sobre
Munições Cluster, dos quais, inclusive, também se inclui o Brasil.
Informa a ONG que quando uma de suas equipes entrou no Kosovo em 1999,
constatou-se que mais de 500 civis haviam morrido no bombardeio da OTAN, sendo que
dessas vítimas, entre 90 e 150 haviam sido mortos em ataques de munições cluster. Além
disso, como os pesquisadores visitaram áreas densamente povoadas por civis, eles
encontraram muitas sub-munições que não explodiram. Da mesma forma a organização
informou sobre o alto número de vítimas destas munições na guerra do Iraque em 2003 e
também no conflito entre Israel e o Hezbollah em 2006. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2009).
Desse modo, em resposta às mortes, ferimentos e sofrimentos causados pelas
munições cluster, 107 Estados negociaram e adotaram a Convenção Internacional sobre
Munições Cluster em uma conferência diplomática ocorrida em Dublin, na Irlanda em maio
de 2008. A Convenção consiste em importante evolução do Direito Internacional
Humanitário, já que estabelece novas regras para garantir que estas armas não voltem a ser
usadas e que os problemas humanitários existentes associados ao uso das mesmas serão
devidamente tratados. A Convenção tem disposições jurídicas específicas que visam atender
às necessidades das vítimas e comunidades afetadas, o que reforça também a proteção dos
direitos humanos e contribui para efetivar a evolução do direito ao desenvolvimento nestas
comunidades. Sua entrada em vigor ocorreu no dia 1º de Agosto de 2010.
Abordar este esforço da sociedade internacional em torno da proibição e eliminação
das bombas de fragmentação adquire significativa importância tendo em vista que ressalta o
descompromisso do Brasil com a defesa dos direitos humanos e do direito internacional
humanitário, já que, apesar de ser parte na Convenção sobre a Proibição ou Limitação do Uso
de Certas Armas Convencionais que podem ser consideradas excessivamente nocivas ou
terem efeitos indiscriminados, bem como ser parte também do Protocolo I Adicional às
Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949, relativo à Proteção das Vítimas dos
Conflitos Armados Internacionais, o país possui histórico de armazenamento e produção
destas bombas, e o que é pior, ainda não assinou a Convenção Internacional sobre Munições
Cluster.
123
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Ora, como se sabe, dois princípios basilares do direito internacional humanitário são
os de que, primeiro, o direito das partes em um conflito armado de escolher os métodos ou
meios de guerra não é ilimitado e, segundo, é proibido em conflitos armados o emprego de
armas, projeteis, materiais e métodos de guerra que por sua natureza sejam suscetíveis de
causar danos supérfluos ou sofrimento desnecessário às pessoas envolvidas nas hostilidades.
Estes princípios estão previstos na Convenção sobre a Proibição ou Limitação do Uso
de Certas Armas Convencionais que podem ser consideradas excessivamente nocivas ou
terem efeitos indiscriminados, bem como no artigo 35º do Protocolo I Adicional às
Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949, relativo à Proteção das Vítimas dos
Conflitos Armados Internacionais, ambos os instrumentos assinados e ratificados pelo Brasil.
Desse modo, pergunta-se, por que o Brasil até o presente momento não assinou a
Convenção sobre Munições Cluster, de 2008? E Também, por que o Brasil possui referidas
munições em seus armamentos? Ora, conforme se pode verificar pelas Convenções acima
mencionadas o País se obrigou perante a sociedade internacional a obedecer ao princípio geral
de proteção da população civil em caso de conflitos armados, razão pela qual é óbvio que o
mesmo deve envidar todos os esforços para fazer valer esta norma basilar do direito
internacional humanitário.
As respostas para estas indagações perpassam pelo que ACCYOLI, SILVA e
CASELLA, vão definir como um dos grandes desafios do Direito Internacional pós-moderno,
o resgate da dupla dimensão do alcance teórico – conceitual e da efetividade de sua
implementação:
Justamente ao Direito Internacional pós-moderno caberá resgatar a dupla dimensão
do alcance teórico – conceitual e da efetividade da implementação. Essa tarefa é
enorme e põe-se como exigência para a sobrevivência da humanidade, aponta
Christian TOMUSCHAT (1999), ao enfatizar o papel do direito, para evitar que a
humanidade soçobre no caos e na anarquia: “pode ser não tenha sido dada resposta
definitiva a tal indagação”, porquanto, de um lado, a “humanidade desenvolveu
considerável aparato jurídico, para exprimir a conscientização de que estreita
cooperação internacional é necessária para desempenhar extenso número de tarefas
de dimensões mundiais. Garantir a paz e a segurança internacionais, defender os
direitos humanos, bem como a proteção do meio ambiente, estão na linha de frente
desses reclamos. Mas também vimos que os mecanismos institucionais estabelecidos
para tais fins deixam muito espaço para aperfeiçoamentos. Será o desafio das
próximas décadas fortalecer os sistemas existentes de cooperação”. (CASELLA,
ACCYOLI, SILVA, 2010, p. 126).
Pois bem, na sequência da análise sobre o trabalho desenvolvido pela ONU em torno
do desarmamento e regulamentação dos armamentos, cumpre ainda mencionar o sistema de
transparência nas transferências de armas criado pela Organização, com o objetivo de
124
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
construir uma maior confiança entre os Estados e ajudar na prevenção de conflitos. Para
tanto, foi criado no âmbito da Organização o Registro das Nações Unidas de Armas
Convencionais (UN Register of Conventional Arms - UNROCA), ferramenta extremamente
importante que exorta os Estados a informarem sobre suas exportações e importações de
armas convencionais, com a finalidade principal de determinar acumulações excessivas ou
desestabilizadoras em determinadas regiões, o que atribui maior responsabilidade às mesmas,
sobretudo quando se tratam de vendas efetuadas para regiões atingidas por conflitos e graves
violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário. Apesar de o
mecanismo ter sido criado no início dos anos 90, relatórios atuais têm demonstrado que o
Brasil e diversos outros países não são totalmente transparentes, uma vez que não fornecem
informações suficientes sobre suas transações. (SMALL ARMS SURVEY, 2012).
Por fim, cumpre ressaltar o trabalho do Conselho de Segurança das Nações Unidas,
órgão responsável pela manutenção da paz e segurança internacional dentro do sistema de
segurança coletiva criado pela Carta da ONU. Conforme visto, em razão da estreita relação
entre armas, paz e segurança internacional, o artigo 26 da Carta das Nações Unidas atribui ao
Conselho o encargo de formular os planos a serem submetidos aos Membros das Nações
Unidas para o estabelecimento de um sistema de regulamentação dos armamentos.
Esta tarefa tem sido desenvolvida de forma bastante tímida pelo órgão, que desde a
sua criação não conseguiu efetivar um dos principais objetivos da ONU que é o
desarmamento geral e completo, tal como definido na Resolução 1378 (XIV) da Assembleia
Geral, o que denota a incompetência deste órgão no cumprimento da responsabilidade de
manutenção da paz e segurança internacional que lhe foi atribuída. Esta incompetência deriva
de questões geopolíticas e, portanto, de difícil solução pela sociedade internacional que se vê
refém de algumas poucas potências que ainda insistem em manter uma ordem internacional
baseada na força e na dissuasão.
Basta lembrar que os cinco membros permanentes do órgão são potências nucleares e
no que tange à produção e exportação de armas convencionais suas empresas dominam o
ranking de vendas no mundo, conforme divulgado pelo Stockholm International Peace
Research Institute4 (SIPRI). Os Estados Unidos, que é o maior produtor e exportador mundial
de armas, lidera o ranking com a famosa Lockheed Martin, fabricante de aviões de combate e
mísseis, seguido pela Inglaterra, com a chamada BAE Systems, fabricante de aviões, artilharia,
mísseis, veículos, navios de guerra, armas leves, dentre outros. Após os Estados Unidos
4
Instituto Internacional de Pesquisas para a Paz de Estocolmo.
125
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
figurarem nas terceira, quarta, quinta e sexta posições, com suas empresas, Boeing, Northrop
Grumman, General Dynamics, Raytheon e BAE Systems Inc., destaca-se a empresa fruto de
um consórcio envolvendo diversos países europeus, no qual figura outro membro permanente
do Conselho, a França, com a chamada EADS, seguida também da Thales. A Rússia também
se destaca com sua empresa Almaz – Antey figurando na 20ª posição. A China, apesar de ser
também um grande produtor e exportador de armas convencionais, não figura no Ranking em
razão do extremo sigilo em torno de sua indústria de defesa. (SIPRI, 2010).
Certamente que estas questões estão por trás da ineficiência do órgão em efetivar o
desarmamento geral e completo e estabelecer um sistema de regulamentação dos armamentos
realmente eficaz, que fixe regras sobre as exportações e importações de armas, o que, por sua
vez, reflete em sua obrigação principal de assegurar a manutenção da paz e segurança
internacional, razão pela qual sua reforma é extremamente urgente e necessária.
Contudo, apesar desta ineficiência, o Conselho de Segurança tem desenvolvido um
trabalho relevante no que concerne à prevenção de conflitos, e seu não agravamento, por meio
dos chamados embargos de armas, que são impostos pelo órgão com base no Capítulo VII,
artigo 41 da Carta das Nações Unidas. A relevância destas medidas deriva do fato de que
proíbem o fornecimento de armas para regiões em conflito, atingidas por graves violações dos
direitos humanos ou do direito internacional humanitário, contribuindo para o fim do conflito
ou das violações ou então evitando o seu agravamento, além de contribuírem com a não
proliferação das armas convencionais.
Embora sejam relatadas violações aos embargos impostos, tal fato não retira a
importância destas medidas que configuram a nítida relação entre o comércio de armas para
regiões atingidas por conflitos e o consequente agravamento, sobretudo tendo em vista que
estes embargos envolvem a proibição do fornecimento de armas pequenas e leves,
naturalmente mais utilizadas na violação dos direitos humanos e do direito internacional
humanitário, bem como mais fáceis de serem contrabandeadas para atores não estatais, como
organizações criminosas e terroristas.
Isso coloca para os Estados produtores e/ou exportadores de armas, parâmetros de
fornecimento para outras regiões em situações semelhantes, mas que ainda não foram
impostos embargos, seja por questões políticas dentro do órgão ou por demora na atuação, o
que é extremamente relevante frente a um mercado carente de regulamentação específica
como é o caso.
Desse modo, cumpre destacar algumas destas medidas impostas pelo Conselho de
Segurança, que evidenciam uma atuação efetiva do órgão no controle dos fluxos de armas
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destinadas para regiões em conflito ou atingidas por graves violações de normas
internacionais, tais como, Resolução 181 (1963) – Embargo de armas, munições e veículos
militares para a África do Sul (Apartheid); Resolução 733 (1992) – Embargo de armas e
equipamentos militares para a Somália; Resolução 1011 (1995) – Embargo de armas para
forças não governamentais em Ruanda; Resolução 1390 (2002) – Embargo de armas e
materiais conexos para atores não estatais (Al Qaeda e Taliban); entre outras.
Este, portanto, o papel mais relevante desempenhado pelo Conselho de Segurança da
ONU no que tange ao controle e tentativa de regulamentação do comércio internacional de
armas, papel este que não é suficiente para eliminar as consequências de um mercado
internacional de armas desregulado, no qual se tem um alto índice de tráfico lícito e ilícito de
armamentos, que muitas vezes se destinam a regiões atingidas por conflitos ou graves
violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, contribuindo para o
agravamento destas tensões e violações destes direitos.
3. Conclusão
Diante do exposto, verifica-se que a sociedade internacional ainda tem muito que
avançar para conseguir efetivar uma regulamentação realmente eficaz das armas
convencionais, reduzindo os riscos inerentes. Esta regulamentação deve contemplar a
elaboração do aguardado Tratado sobre Comércio Internacional de Armas, a criação de regras
sobre gerência e administração dos estoques de munições, a proibição do uso das minas
antiveículos nos conflitos, a adesão geral à Convenção sobre Munições Cluster e, por fim, a
adesão de todos os países de forma plena ao sistema de transparência no comércio
internacional de armas convencionais, criado pela ONU e denominado UNROCA.
Especificamente no que diz respeito ao comércio internacional, é importante
esclarecer que enquanto não ocorre a aprovação e criação de um tratado global que fixe
normas específicas regulando as exportações e importações, os governos nacionais
permanecem os principais responsáveis por suas transferências de armas em observância aos
compromissos mais gerais de respeito aos direitos humanos e ao direito internacional
humanitário.
A grande maioria dos Estados controlam os fluxos de armas através de suas fronteiras,
sejam as exportações ou importações. É por isso que os governos devem ser responsáveis em
suas transferências, ou seja, antes de aprovar uma exportação de armas as autoridades
nacionais devem avaliar o risco de que esta transferência possa agravar um conflito existente
127
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
no país importador, ser utilizada para violar direitos humanos ou o direito internacional
humanitário ou então, que envolva o risco de que as armas sejam desviadas para o mercado
ilegal.
A observância destes parâmetros não decorre somente de boas práticas que os Estados
podem ou não escolher adotar, mas sim de obrigações internacionais assumidas quando da
assinatura e ratificação dos diversos tratados que versam sobre a defesa e respeito aos direitos
humanos e ao direito internacional humanitário, assim como as obrigações decorrentes dos
Princípios Gerais de Direito Internacional, dos quais se destacam os princípios de jus cogens,
tais como, o Princípio da Cooperação, o Princípio da Proteção das Vítimas de Guerras e
Conflitos e o Princípio da Garantia dos Direitos “Inderrogáveis” enunciados no art. 4º do
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, na Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e demais tratados sobre direitos do homem.
Ocorre que, dado o grande poder que a indústria de defesa exerce nos países que a
possuem, esta responsabilidade sobre as transferências fica mais no plano da retórica, com a
grande maioria dos países produtores e exportadores de armas exercendo pouco controle
sobre suas vendas e aquisições de armas.
O Brasil, por exemplo, figura neste rol de países que exercem pouco controle sobre
sua indústria de defesa, possuindo um histórico vergonhoso de exportações de armas para
regiões em conflito e atingidas por graves violações dos direitos humanos e do direito
internacional humanitário. Esta atitude do País viola o direito internacional, sobretudo as
obrigações derivadas da assinatura e ratificação de diversos instrumentos relacionados à
proteção daqueles direitos, bem como derivadas de outras fontes, obrigações estas que a duras
penas veem sendo construídas pela sociedade internacional.
REFERÊNCIAS
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de Direito Internacional Público. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.
COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Munições Cluster: O que são e qual
é o problema? 2010. Disponível em: http://www.icrc.org/por/resources/documents/legal-factsheet/cluster-munitions-factsheet-230710.htm. Acesso em 19 de jan. de 2013.
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ammunition stockpiles in surplus. Report of the Secretary – General. (A/62/166/Add.1). 2007.
Disponível em: http://www.un.org/disarmament/convarms/Ammunition/. Acesso em 15 de
jan. de 2013.
128
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VIVA COMUNIDADE. Seguindo a Rota das Armas: Desvio, Comércio e Tráfico Ilícitos de
Armamento Pequeno e Leve no Brasil. Projeto: Mapeamento do Comércio e Tráfico Ilegal de
Armas no Brasil. Rio de Janeiro: 2010.
129
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A PLURALIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL SOB A PERSPECTIVA DO
TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR: O CASO ARA LIBERTAD
THE PLURALIZATION OF INTERNATIONAL LAW ON THE PERSPECTIVE OF THE
INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA: THE ARA LIBERTAD
CASE
Paula Ritzmann Torres1
Vivian Daniele Rocha Gabriel2
RESUMO: O hodierno fenômeno da proliferação das Cortes Internacionais, especializadas
para tratar de determinados temas, ascende questionamentos sobre a possível fragmentação do
Direito Internacional. Nesse cenário, destaca-se o Tribunal Internacional do Direito do Mar, o
qual, por sua ampla competência, mostra-se adequado ao julgamento de assuntos relacionados
à diversas áreas do Direito, tais como, meio ambiente, direitos humanos, delimitação
territorial, soberania estatal e direito internacional do investimento estrangeiro. Destarte, o
presente artigo objetiva descrever alguns desses aspectos evidentes na contenda do caso ARA
Libertad, entre Argentina e Gana, que foi levado, ao final do ano de 2012, ao Tribunal
Internacional do Direito do Mar. Em simples acepção, o caso versa sobre a detenção de um
navio de guerra argentino, em um porto ganês, em decorrência de uma decisão local que
determinou, o arresto da embarcação como pagamento de dívida do país platino com
investidores estrangeiros privados, contornando, assim, a tradicional regra da imunidade de
jurisdição. Para contextualizar o desencadeamento de tal certame jurídico, expor-se-ão alguns
dos fatores históricos, políticos e econômicos vivenciados na Argentina nas décadas de 1990 e
2000, bem como decisões de cortes estrangeiras sobre a questão, que contribuíram, ainda que
indiretamente, para a constituição do referido caso. A seguir, trar-se-á os principais
argumentos das partes perante o Tribunal Internacional do Direito do Mar, assim como a
solução jurídica dada por este órgão jurisdicional. Por fim, visando afastar o dogma da
fragmentação, explicitar-se-á a contribuição do caso ARA Libertad para o fortalecimento do
pensamento sistêmico do Direito Internacional.
PALAVRAS-CHAVE: Tribunal Internacional do Direito do Mar; Caso ARA Libertad;
fundos de investimento; imunidade de jurisdição; unidade sistêmica do Direito Internacional.
1
Advogada, graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e graduada em Relações
Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Mestranda em Direito Internacional e
Comparado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo (USP).E-mail:
[email protected].
2
Advogada, graduada em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Mestranda em Direito
Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo
(USP).E-mail: [email protected].
130
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
ABSTRACT: The proliferation of specialized International Courts raises the concern about
the potential fragmentation of International Law. In this scenario, the International Tribunal
for the Law of the Sea is highlighted. Because of the width of its competency, it may judge
subjects related to Environmental Law, Human Rights, sovereignty and territorial delimitation
and Foreign Investment Law. Thus, the present article aims towards the description of some
of these aspects, that are evident in the ARA Libertad Case, between Argentina and Ghana,
which was taken to the International Tribunal for the Law of the Sea in the end of 2012. In
summary, the case concerns the detain of an Argentine warship, located in a port of Ghana,
because of an order from the local court of Ghana in respect of the payment of the Argentine
debt with foreign private investment fund, that brought to discussion the traditional rule of
sovereign immunity. To contextualize the case, it is important to explain the historic, political
and economic facts occurred in Argentina from 1990 to 2000, the decisions from foreign
courts about litigation that contributed, even in an indirect process building the arguments of
the case. Hereafter, it will be explained the main arguments of each part in the International
Tribunal for the Law of the Sea, and the jurisdictional solution made for this court. Finally, in
order to dispel the dogma of fragmentation, it will be described the contribution of the case
ARA Libertad to the fortification of the systemic doctrine of International Law.
KEYWORDS: International Tribunal for the Law of the Sea; ARA Libertad Case;
investment funds; sovereign immunity; systemic unity of International Law.
INTRODUÇÃO
Na nova ordem mundial, principalmente após a segunda metade do século XX,
houve uma crescente necessidade de se tutelar e normatizar uma grande extensão de áreas da
vida social. Cada vez mais amplos, esses novos temas e domínios acabaram indo além da
circunscrição do direito estatal, passando a ser disciplinados também pelo Direito
Internacional. A multiplicação de normas legais no plano internacional, em claro processo de
evolução e ampliação da abrangência deste ramo do direito, foi acompanhada pela
especialização normativa, que passou a organizar o sistema internacional em microssistemas
jurídicos, que refletem um direito concreto e especializado, adaptado a objetivos e contextos
particulares.
Conectado a esse fenômeno, destaca-se o surgimento dos processos de
institucionalização e jurisdicionalização do Direito Internacional. O primeiro refere-se ao
advento de diversos foros de discussão internacionais, que visam analisar os novos enfoques
de interesse que, a partir de então, passaram a ser afetos ao domínio da ordem jurídica
internacional. Já o segundo, versa sobre a proliferação dos Tribunais Internacionais que, de
maneira a operacionalizar este ramo do direito, garante a aplicação prática das diretrizes
131
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
externas estabelecidas, respaldando, preservando e auxiliando no alcance da justiça em âmbito
internacional.
Nesse cenário, o presente artigo visa ilustrar o caso ARA Libertad, litígio entre a
Argentina e Gana, iniciado no ano de 2012, e que transcorre perante o Tribunal Internacional
do Direito do Mar, com sede em Hamburgo, Alemanha. Em um primeiro momento, o trabalho
pretende demonstrar os precedentes históricos, políticos e econômicos que ensejaram o
embate entre a República platina e os fundos de investimentos internacionais possuidores de
títulos da dívida pública argentina em cortes distintas. Frisar-se-á, nesse tópico, a ocorrência
da crise econômica de 2001, que trouxe a necessidade de reestruturação da dívida estatal, bem
como a tentativa de aplicação de sentença estrangeira proferida por tribunal americano, a fim
de executar a dívida pública contraída.
Em um segundo momento, almejar-se-á o mandado de aprisionamento de
embarcação argentina e o encaminhamento da questão ao Tribunal Internacional do Direito do
Mar, bem como os argumentos de ambas as partes e os fundamentos e interpretações
utilizados pela Corte Internacional para dirimir a contenda. Posteriormente, traz-se à tona o
advento da fragmentação do Direito Internacional, de modo a explanar se o enquadramento do
caso estudado dá-se nesse paradigma internacional ou se corresponde ao fortalecimento de um
pensamento funcionalizado sistêmico do ordenamento jurídico internacional. Por fim,
considera-se a aplicação jurisdicional do pensamento sistêmico por intermédio da dialética
harmonizadora entre as fontes do Direito Internacional, de modo a aplicá-lo como sistema
unitário.
1 DO CASO ARA LIBERTAD E SEUS ANTECEDENTES
O caso ARA Libertad, submetido ao Tribunal Internacional do Direito do Mar, no
ano de 2012, demonstra-se como litígio complexo e interdisciplinar. Envolvendo questões
plurais, como investimentos privados, renegociação de dívida pública estatal e imunidade de
jurisdição de possessões bélicas, pontos que, apesar de distintos entre si, comunicam-se
dentro de uma mesma contenda, este faz com que sejam analisados desde o panorama político
e econômico da Argentina diante da crise econômica de 2001 e a sua relação com os fundos
de investimentos privados detentores dos títulos da dívida pública desse país até o
aprisionamento de patrimônio argentino por Gana. Este último fato culminou na posterior
132
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
discussão levada à corte internacional com sede em Hamburgo, que teve de pronunciar-se de
modo incisivo e claro sobre as questões, pelo que passa a expor.
1.1 Da Crise argentina e da reestruturação dos débitos externos
No mundo contemporâneo, diversos foram os fatos políticos ou econômicos que,
devido à sua grande importância, desencadearam ações pertinentes com o campo do Direito
Internacional. No início dos anos 1990, o fim da Guerra Fria fez com que o mundo passasse
por uma grande mudança de paradigma, o que para vários países implicou na necessidade de
reorientação de seu marco político-econômico. Nesse contexto, tem-se que as crises
econômicas foram recorrentes, principalmente nos países em desenvolvimento, deixando
marcas que duram até hoje, como grande endividamento externo, redução do fluxo de
investimentos e do crescimento econômico, desvalorização das moedas nacionais e
moratórias3.
Dentre as crises ocorridas, como é o caso da mexicana, em 1994, da asiática, em
1997, e da brasileira, em 1999, uma em especial merece destaque: a crise argentina. O colapso
argentino de 2001 teve como principal antecedente o Plano Cavallo, reforma implantada pelo
Governo Carlos Menem que, ao se coadunar com os objetivos previstos no Consenso de
Washington, promoveu, dentre outras medidas, privatizações, livre fluxo de capitais e
liberalização comercial. Ademais, à época foi implantada a conversibilidade da moeda
nacional em dólar, a fim de aumentar a credibilidade internacional do país, bem como
controlar a inflação.
Ainda durante esse panorama econômico-financeiro, salienta-se que foram
recorrentes os empréstimos externos argentinos para que a balança de pagamentos se
mantivesse positiva, visto que o processo de desindustrialização argentino e a redução de
competitividade acelerara-se nos anos 90, prejudicando as exportações desse país. A despeito
disso, a entrada de capital especulativo e de investimentos externos diretos4 fazia com que a
3
PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 662-673.
Nesse sentido, vale a pena destacar a diferença entre investimento direto e indireto. O primeiro refere-se
basicamente à criação de uma empresa, possuída e controlada por um investidor, na qual se visa a obtenção de
ganhos mediante o exercício da atividade produtiva continuada e duradoura, sem a intenção imediata de
transferir a propriedade da empresa. O segundo corresponde ao investidor que, ao adquirir algumas ações de uma
companhia no mercado de valores imobiliários, tem a finalidade de lucro com a venda desses papeis por maior
preço. Cf.: COSTA, José Augusto Fontoura. Direito internacional do investimento estrangeiro. Curitiba:
Juruá, 2010, p.33.
4
133
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
conta capital e financeira se mantivesse positiva, o que somado ao financiamento externo
mantinham a balança de pagamentos superavitária.
Nesse sentido, com o advento da crise brasileira e da desvalorização do real o país
platino foi afetado brutalmente, fazendo com que se deteriorasse ainda mais a competitividade
da indústria nacional, agravando sua balança comercial e esgotando suas reservas
internacionais. Houve grande fuga de capitais, crise bancária, redução do crédito, do consumo
e dos investimentos e, por fim, uma forte recessão no país. Destarte, a Argentina declarou a
moratória de sua dívida, encerrou a aplicação da taxa de câmbio fixa, gerando a
desvalorização da moeda, crescente inflação e o encolhimento de seu Produto Interno Bruto
(PIB).5
Essa crise também trouxe instabilidade para o plano político, pois culminou na
renúncia do presidente Fernando de La Rúa e na designação de um novo chefe de Estado até
novas eleições. Em 2003, Néstor Kirchner foi eleito governante e, na busca por medidas de
estabilização econômica, criou um plano de reestruturação de débitos, aplicado em um
primeiro momento em 2005 e, posteriormente, em 2010. Tal proposta consistia no
oferecimento aos credores da oportunidade de trocar suas dívidas antigas por débitos externos
renovados, em uma proporção que equivaleria a 25 a 29 centavos de dólar. Desse modo, para
pressionar os investidores a aderirem a tal medida, a Argentina emitiu uma prospecção de
riscos da não participação dos credores em tal plano, alegando que caso estes não aceitassem,
correriam o risco de não receber qualquer pagamento referente aos seus montantes no futuro,
em razão do valor milionário de U$$ 102,6 bilhões correspondente à dívida pública argentina.
Além disso, o país promulgou a Lei 26.017/2005 que declarava que o Poder Executivo
argentino não iria reabrir posteriormente o processo de troca e reestruturação da dívida,
estabelecido em 2005, bem como este poderia remover as dívidas de uma listagem em todos
os mercados de seguro domésticos e estrangeiros. Ainda, o Estado também estaria proibido de
conduzir qualquer tipo de ação judicial pública ou em cortes privadas, referente a esses
débitos.67
O resultado disso foi a adesão de 76% dos credores ao supracitado plano de débitos,
totalizando U$$ 62,3 bilhões. Entretanto, houve empresas que decidiram não participar de tal
5
DI BIASE, Francisco Roland. Argentina: da crise ao sucesso. Disponível em:
<http://www.globalresearch.ca/argentina-da-crise-ao-sucesso/28130>. Acesso em: 15 mar 2013.
6
ESTADOS UNIDOS. CORTE DE APELAÇÃO DE SEGUNDA INSTÂNCIA. 12-105(L). Relator Barrington
Disponível
em:
<http://www.shearman.com/files/upload/second-circuit-decision-11-05D.Parker.
12.pdf>.Acesso em: 15 mar 2013.
7
Ressalta-se que essa lei foi temporariamente suspensa em 2010, visto que nesse ano iniciou-se um segundo
plano de reestruturação dos débitos externos, nos mesmos moldes do de 2005.
134
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
medida, como é o caso da NML Capital Ltd., fundo de investimento sediado nas Ilhas
Cayman e com base nos Estados Unidos, pertencente ao Elliot Capital Management, e ao
especulador internacional Paul Singer, que, diante do pagamento preferencial das dívidas
referentes aos planos de reestruturamento, sentiu-se prejudicada. Nessa seara, em razão da
ausência de pagamentos, o fundo de investimentos buscou a satisfação dos valores devidos
pela Argentina (além dos juros correspondentes) em diversas cortes estatais, como é o caso da
Corte Americana de Apelações (US Court of Appeals), do Tribunal de Suprema Instancia de
Paris (Tribunal de Grande Instance de Paris) e da Suprema Corte do Reino Unido (United
Kingdom’s Supreme Court).
As decisões resultantes desses tribunais foram todas em favor da NML Capital Ltd.,
pelo que se destaca a sentença americana, em grau de apelação, que determinou ao governo
argentino o tratamento igual a todos os credores, em respeito à cláusula pari passu, que
protege as partes de qualquer forma de discriminação no pagamento dos débitos por parte do
Estado devedor.8 Assim sendo, a Argentina foi condenada a pagar o valor de U$S 1,3 bilhões9
imediatamente aos respectivos credores, contudo, tem-se que a execução dessa decisão não
pôde ser realizada, em razão da imunidade soberana do Estado argentino, que protege o
governo e sua propriedade de ações judiciais em cortes de outras nações.10
1.2 Da manifestação da corte nacional de gana e do aprisionamento da fragata de guerra
argentina ARA Libertad
No dia 01 de outubro de 2012, a fragata de guerra argentina denominada ARA
Libertad adentrou o Porto de Tema, próximo à cidade de Accra, Ghana. Símbolo da marinha
argentina, o navio é utilizado para treinamentos de guerra, por conseguinte, este era o
principal objetivo do capitão e dos 326 tripulantes, dentre marinheiros de Argentina, Brasil,
8
ESTADOS UNIDOS. CORTE DE APELAÇÃO DE SEGUNDA INSTÂNCIA. 12-105(L). Relator Barrington
D.Parker.
Disponível
em:
<http://www.shearman.com/files/upload/second-circuit-decision-11-0512.pdf>.Acesso em: 15 mar 2013.
9
REUTERS.
Detained
Argentine
naval
ship
leaves
Ghana.
Disponível
em:
<
http://www.reuters.com/article/2012/12/19/us-ghana-argentina-ship-idUSBRE8BI1AF20121219>. Acesso em:
15 mar 2013.
10
A decisão proveniente da Suprema Corte do Reino Unido determinou que a sentença americana é plenamente
aplicável e que a Argentina não goza de imunidade estatal. Cf. GANA. DIVISÃO COMERCIAL DA CORTE
SUPERIOR DE GANA. SUIT NO.RPC/343/12. Relator Richard Adjei-Frimpong Disponível em:
<http://www.creditslips.org/creditslips/Ruling%2011-Oct-12%201%20(3).pdf>.Acesso em: 15 mar 2013.
135
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Chile, Uruguai, Paraguai, Venezuela, Equador, Bolívia e África do Sul11. A partida da
embarcação estava agendada para o dia 04 de outubro de 201212, porém, no dia 02 de outubro
de 2012, o governo de Gana aprisionou a fragata por meio de um mandado de injunção,
proveniente da Divisão Comercial da Corte Superior de Gana.13
Essa medida judicial foi resultado da ação ajuizada pelo fundo de investimentos
NML Capital Ltd., que, sentindo-se prejudicado pelo não pagamento dos débitos argentinos,
moveu o tribunal ganês para impedir que a embarcação e sua tripulação saíssem do porto,
para assim satisfazer a dívida contraída e ainda não paga. O resultado foi o reconhecimento da
jurisdição de Gana para a execução da sentença estadunidense, bem como a restrição da
movimentação da embarcação argentina do porto de Tema. Isso, pois, a embarcação argentina
fazia parte da propriedade do Estado devedor e, como se encontrava nas águas territoriais do
país africano, fazia-se necessário retê-la para que se pudesse cumprir ao menos parte dos
débitos reconhecidos em sentença estrangeira.
A Argentina, por sua vez, peticionou à Corte de Gana alegando que o ato realizado
por Gana, em atenção ao referido fundo de investimentos, correspondia a uma violação do
Direito Internacional e, em particular, à imunidade de jurisdição. O Ministro das Relações
Exteriores da Argentina, Hector Timerman, se manifestou sobre o caso alegando que o
aprisionamento da fragata foi um ataque extorsivo, chegando a comparar a ação a um ato de
pirataria contra uma nação soberana, que estaria sendo obrigada a negociar com uma
“entidade financeira inescrupulosa” dedicada à “pirataria financeira”.1415Ademais, em nota
publicada pela chancelaria argentina em 03 de outubro de 2012, afirmou-se a ocorrência
violação da Convenção de Viena sobre Imunidade Diplomática.
Quanto à questão da imunidade de jurisdição, Argentina afirma ser um Estado
soberano e que, portanto, possui imunidade contra a execução de sentença estrangeira.
11
BELFAST TELEGRAPH ON LINE. Argentina evacuates crew from ship. Disponível em:
<http://www.belfasttelegraph.co.uk/news/world-news/argentina-evacuates-crew-from-ship-28876176.html
>.
Acesso em: 15 mar 2013.
12
INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Tribunal orders release of argentine
frigate
“ARA
Libertad”.
Disponível
em:
http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/press_releases_english/PR_188_E.pdf. Acesso em: 15 mar 2013.
13
Tradução livre do inglês Ghana Superior Court Judicature (Commercial Division).
14
BELFAST TELEGRAPH ON LINE. loc.cit
15
Salienta-se que, em 2007, um mesmo fundo possuidor de bônus argentinos descobriu que a aeronave
presidencial Tango 01 iria aos Estados Unidos para manutenção e treinamento de pilotos, pelo que acionaram a
corte dessa país para que a aeronave fosse arrestada após seu pouso, bem como o dinheiro trazido pelos pilotos
para o pagamento do combustível. O governo Kirchner foi alertado e cancelou a viagem, obtendo também um
mandado do juiz da Califórnia, William Alsup, que declarou que a aeronave era imune ao arresto. Cf.
DEFESANET DEFESA ESTRATÉGIA INTELIGÊNCIA SEGURANÇA. ARA LIBERTAD – Veleiro
argentino é arrestado em Gana. Disponível em: <http://www.defesanet.com.br/geopolitica/noticia/8062/ARALIBERTAD---Veleiro-argentino-e-arrestado-em-Gana>. Acesso em: 15 mar 2013.
136
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Entretanto, o Tribunal de Gana reconheceu que o país platino renunciou à sua imunidade de
jurisdição expressamente na cláusula 22, do Acordo de Organização Fiscal16, que estabelecia
a venda de títulos da dívida para instituições financeiras. Esse fato foi ressaltado, inclusive, no
julgamento realizado pela Suprema Corte do Reino Unido17, em que ficou estabelecido que o
devedor renunciou expressamente à sua imunidade de jurisdição.18
Nesse sentido, a redação da cláusula é a seguinte:
Para o alcance que a republica ou qualquer de seus ativos ou propriedades devem ser
intitulados, em qualquer jurisdição ou corte local, em que qual seja o procedimento atinado,
este pode a qualquer tempo ser trazido para efeitos de execução ou aplicação em qualquer
julgamento relacionado, qualquer imunidade processual, seja na jusrisdicao de qualquer corte,
do apego antes do julgamento, do apego em ajuda de execução de sentença, a partir de
execução de uma sentença ou de qualquer outro processo tal legal ou judicial ou recurso e na
medida em que, em qualquer jurisdição não deve ser atribuída tal imunidade, a República
irrevogavelmente concordou em não reclamar e irrevogavelmente renunciado à máxima
extensão permitida pelas leis da jurisdição ... unicamente com a finalidade de permitir que ...
um detentor de títulos desta série para aplicar ou executar um julgamento relacionado19.
Observa-se, portanto, que Gana adotou posição semelhante à britânica, afirmando
que a Argentina, ao utilizar os termos “pode a qualquer tempo ser trazido para efeitos de
execução ou aplicação, qualquer julgamento relacionado”,20 renunciou à sua imunidade de
jurisdição, logo, a decisão americana pode ser perfeitamente executada em corte estrangeira,
qual seja a de Gana.
Devido à improcedência da petição argentina no Tribunal de Gana, em 30 de outubro
de 2012, o país decidiu instaurar procedimentos arbitrais contra Gana, em conformidade com
16
Tradução livre do termo em inglês Fiscal Agency Agreement (FAA).
REINO UNIDO. U.K. SUPREME COURT. 2011 UKSC 31. Relator Lord Phillips. Disponível em:
<http://www.supremecourt.gov.uk/docs/UKSC_2010_0040_Judgmentv2.pdf>.Acesso em: 15 mar 2013.
18
GANA. DIVISÃO COMERCIAL DA CORTE SUPERIOR DE GANA. SUIT NO.RPC/343/12. Relator
Richard
Adjei-Frimpong.
Disponível
em:
<http://www.creditslips.org/creditslips/Ruling%2011-Oct12%201%20(3).pdf>.Acesso em: 15 mar 2013.
19
Tradução livre do inglês: “to the extend that the republic or any of its assets or properties shall be entitled, in
any jurisdiction in which any specified court is located, in which any related proceeding may at any time be
brought against it or any of its revenues, assets or properties, or in any jurisdiction in which any specified court
or other court is located in which any suit action or proceeding may at any time be brought solely for the purpose
of enforcing or executing any related judgment, to any immunity from suit, from the jurisdiction of any such
court, from set-off, from attachment prior to judgment, from attachment in aid of execution of judgment, from
execution of a judgment or from any other such legal or judicial process or remedy and to the extent that in any
such jurisdiction there shall be attributed such an immunity, the Republic has irrevocably agreed not to claim and
has irrevocably waived such immunity to the fullest extent permitted by the laws of such jurisdiction… solely for
the purpose of enabling… a holder of securities of this series to enforce or execute a related judgment”.
CAMBRIDGE JOURNAL OF INTERNATIONAL AND COMPARATIVE LAW. Argentina v Ghana at
ITLOS. Disponível em: <http://www.cjicl.org.uk/index.php/component/easyblog/entry/argentina-v-ghana-atitlos?Itemid=101> Acesso em: 15 mar 2013.
20
Tradução livre do ingles: “(…) may at any time be brought solely for the purpose of enforcing or executing
any related judgment (…)”.
17
137
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
o Anexo VII da Convenção das Nações Unidas do Direito do Mar, a fim de obter, por meio de
medida provisória, a liberação do navio.
Observa-se que, em 07 de novembro de 2012, oficiais do porto ganês indicaram
esforços para uma mudança de ancoradouro para a embarcação, dentro do Porto de Tema,
concomitantemente a implementação de uma ordem judicial, em que foram cortadas água e
eletricidade da fragata, afetando, consequentemente, a tripulação, a qual, em resposta a esse
ato, ordenou que seus marinheiros dirigissem-se ao convés e preparassem suas armas 2122.
2 O CASO ARA LIBERTAD PERTANTE O TRIBUNAL INTERNACIONAL DO
DIREITO DO MAR
Diante da detenção, em 02 de outubro de 2012, no porto de Tema, em Gana, da
embarcação argentina ARA Libertad, bem como de sua tripulação, o Estado platino ingressou,
embasado no artigo 290 da III Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar
(CONVEMAR)
2324
, com um pedido de medidas cautelares no Tribunal Internacional do
Direito do Mar, visando a sua liberação imediata.
21
Durante a audiência no Tribunal do Mar, Gana expressou seu arrependimento com o episódio, acrescentando
que as autoridades do porto aplicaram a ordem judicial em desconformidade com as obrigações contidas no
direito doméstico de fazê-lo.
22
BLOG OF THE EUROPEAN JOURNAL OF INTERNATIONAL LAW. ITLOS order Ghana to release
argentine navy ship. Disponível em: <http://www.ejiltalk.org/itlos-order-ghana-to-release-argentine-navyship/> Acesso em: 15 mar 2013.
23
A Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (CONVEMAR), também chamada de Convenção de
Montego Bay, foi incorporada no ordenamento jurídico brasileiro como Decreto n°1.530, de 22 de junho de
1995. Tal Convenção entrou em vigor em 16 de novembro de 1994, após a reformulação do Acordo sobre
implementação da Parte XI, responsável pelas modificações substancialmente às propostas originais.
24
Article 290. Provisional measures “1. If a dispute has been duly submitted to a court or tribunal which
considers that prima facie it has jurisdiction under this Part or Part XI, section 5, the court or tribunal may
prescribe any provisional measures which it considers appropriate under the circumstances to preserve the
respective rights of the parties to the dispute or to prevent serious harm to the marine environment, pending the
final decision. 2. Provisional measures may be modified or revoked as soon as the circumstances justifying them
have changed or ceased to exist. 3. Provisional measures may be prescribed, modified or revoked under this
article only at the request of a party to the dispute and after the parties have been given an opportunity to be
heard. 4. The court or tribunal shall forthwith give notice to the parties to the dispute, and to such other States
Parties as it considers appropriate, of the prescription, modification or revocation of provisional measures. 5.
Pending the constitution of an arbitral tribunal to which a dispute is being submitted under this section, any court
or tribunal agreed upon by the parties or, failing such agreement within two weeks from the date of the request
for provisional measures, the International Tribunal for the Law of the Sea or, with respect to activities in the
Area, the Seabed Disputes Chamber, may prescribe, modify or revoke provisional measures in accordance with
this article if it considers that prima facie the tribunal which is to be constituted would have jurisdiction and that
the urgency of the situation so requires. Once constituted, the tribunal to which the dispute has been submitted
may modify, revoke or affirm those provisional measures, acting in conformity with paragraphs 1 to 4. 6. The
parties to the dispute shall comply promptly with any provisional measures prescribed under this article”. United
Nations
Convention
on
the
law
of
the
sea.
Disponível
em:
<http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 22 out 2012.
138
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Com o intuito de facilitar a compreensão do deslinde dessa contenda no Tribunal
Internacional do Direito do Mar, inicialmente esclarecer-se-ão alguns aspectos relativos à
jurisdição, à competência e ao funcionamento dessa Corte Internacional, para, em seguida,
passar, respectivamente, ao exame dos argumentos argentinos, da resposta ganesa e da
solução jurídica do caso.
2.1 Aspectos gerais do Tribunal Internacional do Direito do Mar: jurisdição,
competência e estrutura.
A criação do Tribunal Internacional do Direito do Mar foi fruto da evolução
internacional do espaço dos oceanos. Extensão das Convenções sobre o Direito do Mar de
1958 e 1960 e da declaração do embaixador de Malta, Arvid Pardo, em reunião preparatória
de 197025, a CONVEMAR, finalizada em 1982, foi responsável pela grande compilação da
disciplina jurídica relacionada ao Direito do Mar. A referida Convenção abarcou várias
facetas relacionadas aos espaços marítimos que antes estavam esparsas em diversos
instrumentos internacionais multilaterais, bem como transformou costumes internacionais em
direito escrito e introduziu novos conceitos e instituições jurídicas.
Caracterizado por sua abrangência e especificidade, esse texto internacional buscou
proteger, de modo geral, os interesses da humanidade através do estabelecimento de uma
ordem jurídica para os oceanos, pautada na comunicação internacional, na utilização eficiente
e equânime dos recursos naturais e na preservação do ambiente marinho, considerando os
interesses e necessidades comunitárias dos seres humanos26. Ademais, nele foram
normatizados importantes institutos, como o mar territorial, a zona contígua, a zona
econômica exclusiva, a plataforma continental e o alto mar, além de terem sido estabelecidos
os limites da jurisdição nacional dos Estados no espaço marítimo.
Para solucionar as controvérsias instaladas no âmbito das normas desse tratado,
foram criados quatro meios alternativos, de livre adesão e escolha pelos Estados membros.
25
Foi o embaixador de Malta, Arvid Pardo, na supracitada reunião preparatória para a III Conferência das
Nações Unidas sobre Direito do Mar, quem primeiro suscitou a questão de considerarem-se os recursos dos
oceanos como patrimônio comum da humanidade, ainda sem usar tal denominação. SOARES, Guido Fernando
Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente. São Paulo: Atlas S.A, 2003, p. 327.
26
OXMAN, Bernard. H. Human Rights and the united nations convention on the law of the sea. In Helkin,
L. Charney, J. I. Anton D. K. and O’Connell, M. E (eds). Politics, values aand functions international law in
the 21th century, essays in honor of professor Louis Henkin. The Hague: Kluwer Law International: 1997, p.
2-10 e RANGEL, Vicente Marotta. A problemática contemporânea do Direito do Mar. In O Brasil e os novos
desafios do direito internacional. Coord. Leonardo N. C. Brant. Rio de Janeiro: Forense: 2004, p. 328.
139
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
São eles: o Tribunal Internacional do Direito do Mar, a Corte Internacional de Justiça, o
Tribunal Arbitral constituído de acordo com o Anexo VII da própria Convenção e um
Tribunal Arbitral Especial constituído de acordo com o Anexo VIII do mesmo texto
normativo.
O Tribunal Internacional do Direito do Mar constituiu-se como órgão judicial
responsável pela interpretação e aplicação da CONVEMAR. A sua jurisdição, tida como a
expressão da atribuição de poder a essa Corte Internacional para que ele resolva conflitos
pautados pelo Direito27, decorre da vontade dos Estados, manifestada na ratificação da aludida
Convenção. O poder desse órgão jurisdicional é imperativo nos casos reacionados à liberação
de embarcações e tripulação, excetuados aqueles em que os Estados elejam outro mecanismo
para solucionar a disputa, bem como nas demandas que questionem à submissão a sua própria
jurisdição. Deve-se frisar, também, que tal Tribunal Internacional pode, igualmente, emitir
opiniões consultivas relacionadas aos temas afetos à sua alçada.
A partir de sua entrada em vigor, em 1996, definiu-se que o seu escopo de
competência – entendida como a determinação da sua esfera de atribuições jurisdicionais e do
âmbito de exercício de sua jurisdição28 - relacionar-se-ia com a temática estabelecida na
Convenção supramencionada, bem como a outros instrumentos normativos internacionais que
expressamente conferirem jurisdição a este órgão internacional. Dentre eles, cita-se o
Protoloco de 1996 da Convenção sobre a prevenção da poluição marinha por alijamento de
resíduos e outras matérias, o acordo-quadro para a conservação dos recursos marinhos vivos
no alto mar e no sudeste do pacífico, a Convenção sobre a conservação e a gestão dos
cardumes de peixe altamente migratórios do pacífico central e ocidental, a Convenção para a
conservação e gestão dos recursos pesqueiros do sudeste do oceano atlântico, a Convenção
sobre a proteção do patrimônio cultural subaquático, a Convenção Internacional de Nairóbi
sobre a remoção de destroços de naufrágios de 200729.
No tocante à sua estrutura, o Tribunal Internacional do Direito do Mar é constituído
por vinte e um juízes independentes, de nacionalidades equitativa e geograficamente
distribuídas, divididos em câmaras de julgamento formadas por onze membros. Essa Corte
Internacional possui largo poder de atuação, uma vez que é acessível tanto a Estados, quanto a
27
MENEZES, Wagner. A Jurisdicionalização do Direito Internacional: Conflitos de competência entre
Tribunais Internacionais, mecanismos de prevenção e resolução. Tese de Livre-docência apresentada à
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). 2012, p. 386-388.
28
MENEZES, Ibid., p.391-392.
29
INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Relevant provisions of international
agreements
conferring
jurisdiction
on
the
tribunal.
Disponível
em:
<http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/basic_texts/Relevant_provisions.12.12.07.E.pdf>. Acesso em:
10 mar 2013.
140
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
órgãos governamentais, pessoas físicas, empresas privadas e outras entidades com
personalidade jurídica. As disputas instituídas perante tal Corte Internacional seguem o rito
estabelecido em seu Estatuto, iniciando-se com uma petição escrita ou notificação de acordo
especial e findando-se com uma sentença definitiva, irrecorrível e plenamente executável no
território dos Estados-membros.
2.2 Os argumentos argentinos no caso ARA Libertad
A detenção do navio argentino ARA Libertad pelas autoridades ganesas levou este
Estado latino-americano a requerer, em 29 de outubro de 2012, a instauração de um Tribunal
Arbitral, nos termos do anexo VII da CONVEMAR, para tratar da controvérsia. Na pendência
da instauração de tal instituto jurisdicional, a Argentina requereu, em 14 de novembro de
2012, com fulcro no parágrafo 5 do artigo 290 do mesmo diploma legal, que o Tribunal
Internacional do Direito do Mar, devido à urgência da situação, ordenasse medidas cautelares
para garantir a liberação imediata da embarcação e sua tripulação30.
O requerente afirmou, em síntese, que o navio de guerra ARA Libertad, de
nacionalidade e bandeira de pavilhão platinas, bem como sua tripulação, esta composta por
marinheiros de nacionalidades variadas, foram ilegalmente detidos no porto de Tema,
permanecendo apreendidos no local desde 02 de outubro de 2012. Para os argentinos, a
embarcação estava realizando visita oficial ao Estado africano, com a devida autorização do
governo local para aportar na referida data31 e promover o treinamento militar previsto.
Alegou-se que a ordem proferida pelo tribunal ganês, que autorizou a detenção do
navio, infringira as regras de Direito Internacional, especialmente as afetas à imunidade de
jurisdição e execução dos navios de guerra, provenientes da leitura conjunta dos artigos 29 32,
30
INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Request for provisional measures
submitted by Argentina in a dispute over the frigate ARA Libertad. Disponível em:
<http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20-Request_for_official_website.pdf>.
Acesso em: 14 jan 2013.
31
Ibid.
32
Article29. “Definition of warships. For the purposes of this Convention, "warship" means a ship belonging to
the armed forces of a State bearing the external marks distinguishing such ships of its nationality, under the
command of an officer duly commissioned by the government of the State and whose name appears in the
appropriate service list or its equivalent, and manned by a crew which is under regular armed forces discipline”.
UNITED NATIONS CONVENTION ON THE LAW OF THE SEA. Disponível em:
<http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 22 out 2012.
141
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
3233 e 23634 da CONVEMAR, bem como consolidada nos costumes e na jurisprudência
internacional - a partir dos casos Schooner Exchange35 (Suprema Corte dos Estados Unidos) e
Jurisdictional Immunities of the State36 (Corte Internacional de Justiça). Asseverou-se,
também, que houve violação ao exercício do direito de passagem inocente e do direito de
liberdade de navegação, descritos nos artigos 18, p.1(b)37, 87, p.1(a)38 e 9039 dessa Convenção
internacional40.
Por esses motivos, as autoridades argentinas pleitearam, em seu pedido de medidas
cautelares, a cessação da ofensa às regras de Direito Internacional, mediante a liberação
imediata do navio e tripulação detidos, bem como o seu necessário reabastecimento para
deixar o porto41.
33
Article 32. “Immunities of warships and other government ships operated for non-commercial purposes. With
such exceptions as are contained in subsection A and in articles 30 and 31, nothing in this Convention affects the
immunities of warships and other government ships operated for non-commercial purposes”. United Nations
Convention
on
the
law
of
the
sea.
Disponível
em:
<http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 15 mar 2013.
34
Article 236. ”Sovereign immunity. The provisions of this Convention regarding the protection and preservation
of the marine environment do not apply to any warship, naval auxiliary, other vessels or aircraft owned or
operated by a State and used, for the time being, only on government non-commercial service. However, each
State shall ensure, by the adoption of appropriate measures not impairing operations or operational capabilities
of such vessels or aircraft owned or operated by it, that such vessels or aircraft act in a manner consistent, so far
as is reasonable and practicable, with this Convention”. UNITED NATIONS CONVENTION ON THE LAW
OF
THE
SEA.
Disponível
em:
<http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 22 out 2012.
35
O caso Schooner Exchange v. M’Faddon, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1812, é tido
como o primeiro caso jurisprudencial a abordar a imunidade de jurisdição dos Estados.
36
O caso Jurisdictional Immunities of the State, envolveu Alemanha versus Itália, e foi julgado em 2012 pela
Corte Internacional de Justiça.
37
Article 18. “Meaning of passage. 1. Passage means navigation through the territorial sea for the purpose of:
(…) (b) proceeding to or from internal waters or a call at such roadstead or port facility”. UNITED NATIONS
CONVENTION
ON
THE
LAW
OF
THE
SEA.
Disponível
em:
<http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 22 out 2012.
38
Article87 “Freedom of the high seas 1. The high seas are open to all States, whether coastal or land-locked.
Freedom of the high seas is exercised under the conditions laid down by this Convention and by other rules of
international law. It comprises, inter alia, both for coastal and land-locked States: (a) freedom of navigation
(…)”.UNITED NATIONS CONVENTION ON THE LAW OF THE SEA. loc. Cit.
39
Article 90. “Right of navigation. Every State, whether coastal or land-locked, has the right to sail ships flying
its flag on the high seas”. United Nations Convention on the law of the sea. Disponível em:
<http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 22 out 2012.
40
INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. loc.cit.
41
No pedido dirigido ao Tribunal Arbitral, além desses requerimentos, a Argentina solicitou, também, o
pagamento de uma compensação pelos prejuízos materiais sofridos, um pedido formal de desculpas como
satisfação ao dano moral e a imposição de sanções disciplinares aos funcionários ganeses diretamente
responsáveis pelas decisões que acarretaram a detenção da embarcação ARA Libertad. Cf. INTERNATIONAL
TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Order of 15 of december of 2012 in the case Request for
provisional
measures
submitted
by
Argentina.
Disponível
em:
<http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20_Order_15.12.2012.corr.pdf>.
Acesso
em: 11 fev 2013.
142
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
2.3 A resposta ganesa no caso ARA Libertad
Em sua réplica, Gana levantou inúmeros argumentos jurídicos com o intuito de afastar
qualquer direito pleiteado pela Argentina. Inicialmente, os requeridos alegaram que o
Tribunal Arbitral a ser instituído não teria jurisdição sobre a disputa, uma vez que a matéria a
ser discutida, a qual diz respeito à imunidade de navios de guerra em águas interiores, referese ao Direito Internacional geral e não propriamente à temática abarcada pela CONVEMAR.
Consequentemente, asseverou-se que, no caso em tela, o Tribunal Internacional do Direito do
Mar não possuiria jurisdição para prescrever medidas cautelares.
A seguir, o demandado declarou que os artigos 18, 32, 87 e 90 citados no pedido
platino não se aplicariam ao certame, pois tais dispositivos referem-se apenas ao mar
territorial dos Estados. Tendo em vista que o ato de detenção em discussão ocorreu nas águas
internas do Estado africano, território de soberania administrativa, legislativa e judicial local
plena, as regras da CONVEMAR, seriam, portanto, inaplicáveis ao caso. Para embasar tal
posicionamento, compararam-se os artigos 32 e 9542, ambos da supraindicada Convenção,
com o intuito de evidenciar que, ao contrário do que ocorre neste dispositivo, que
expressamente prevê a imunidade de jurisdição em alto-mar, aquele silencia sobre sua
aplicabilidade nas águas internas dos Estados, motivo que justificaria a rejeição da demanda
argentina43.
Outra objeção trazida à baila por Gana relaciona-se com a renúncia à imunidade de
jurisdição por parte da Argentina, reconhecida nas já citadas decisões das Cortes de Gana,
Estados Unidos e Reino Unido. Nesse diapasão, afirmou-se que a CONVEMAR é totalmente
omissa sobre a possibilidade de um Estado abdicar de sua imunidade de jurisdição. Ademais,
o fato de a matéria ser pertinente ao Direito Internacional Privado, resolvida pela
simplesmente pela identificação das regras aplicáveis ao caso, corroboraria para o
afastamento tanto da utilização da normativa do texto internacional sobre os mares e quanto
da sujeição ao Tribunal Internacional do Direito do Mar.
Consequentemente, para Gana, as medidas cautelares requisitadas pela Argentina não
seriam apropriadas para preservar os direitos das partes, pois inexistiria urgência que
justificasse a sua aplicação na pendência da constituição de Tribunal Arbitral. Igualmente, a
42
Article 95. “Immunity of warships on the high seas. Warships on the high seas have complete immunity from
the jurisdiction of any State other than the flag State”. UNITED NATIONS CONVENTION ON THE LAW
OF
THE
SEA.
Disponível
em:
<http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 22 out 2012.
43
INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. loc.cit.
143
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
liberação da embarcação argentina poderia ser efetuada sem a prescrição de tais medidas,
bastando o pagamento de U$ 20 milhões como caução à Corte Superior de Gana, o que
evidenciaria a desnecessidade do pedido do Estado platino. Logo, com fundamento nesses
argumentos, o Estado requerido pediu a rejeição da requisição argentina.
2.4 A solução jurídica dada ao caso ARA Libertad
Há de se destacar que a decisão do Tribunal Internacional do Direito do Mar no caso
ARA Libertad tocou em diversos aspectos de Direito Internacional. De início, a Corte abarcou
a problemática da jurisdição do Tribunal Arbitral a ser instituído nos termos do anexo VII,
bem como da satisfação, pela Argentina, dos requisitos para a prescrição da requisitada
medida cautelar. Após esta fase preliminar, o Tribunal tratou da questão da imunidade de
jurisdição dos navios de guerra, e, por fim, chegou à imposição da ordem.
Primeiramente, o Tribunal esclareceu que, como tanto Argentina quanto Gana são
membros da CONVEMAR, tendo, porém, eleito procedimentos diferentes para a resolução de
disputas afetas a temática desse instrumento normativo, o Tribunal Arbitral, previsto no anexo
VII, é o procedimento adequado a ser instituído. Explanou, igualmente, que, na pendência da
constituição dessa corte arbitral, o Tribunal Internacional do Direito do Mar poderia, desde
que considere que o órgão jurisdicional a ser instaurado possua potencial jurisdição sobre o
caso, prescrever medidas cautelares urgentes, mesmo que ainda existam discussões sobre os
direitos das partes44. Ainda, a Corte Internacional afastou a apreciação dos artigos 18, 87 e 90
da aludida Convenção internacional, sob a alegação de que tais dispositivos não se
relacionavam a imunidade de jurisdição dos navios de guerra em águas internas dos Estados,
sendo, desse modo, irrelevantes para a definição da jurisdição prima facie do Tribunal a ser
instituído.
A seguir, o Tribunal elucidou o sentido do artigo 32 do texto internacional em
comento, explicitando que a divergência das partes sobre a essência desse dispositivo
corrobora para que o entendimento de que a Corte em questão possui jurisdição para o exame
do caso. Para o Tribunal Internacional do Direito do Mar, a ausência especificação do escopo
geográfico para a utilização do referido artigo, evidencia a sua aplicabilidade também nas
44
INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Order of 15 of december of 2012 in the
case
Request
for
provisional
measures
submitted
by
Argentina.
Disponível
em:
<http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20_Order_15.12.2012.corr.pdf>.
Acesso
em: 11 fev 2013.
144
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
águas internas dos Estados. Assim o é, porque o fato de o artigo integrar a Parte II da
Convenção, intitulada Mar Territorial e Zona Contígua, não leva a interpretação taxativa de
que todas as disposições ali constantes aplicam-se apenas a estas áreas, já que algumas delas
podem se referir a todas as áreas marítimas45.
Ao reconhecer que a problemática da imunidade de jurisdição dos navios de guerra
nas águas internas dos Estados é abarcada pela CONVEMAR, a Corte Internacional
confirmou a jurisdição prima facie do Tribunal Arbitral previsto no anexo VII. A Corte tratou,
ainda, do artigo 283, p. 1º46, da supraindicada Convenção, explicitando que a Argentina
cumpriu com o seu dever de intentar a solução pacífica de controvérsias, satisfazendo,
também, esse requisito para a prescrição de medida cautelar47.
Superando essas questões introdutórias, o Tribunal analisou a adequação, necessidade
e urgência da medida requisitada pelo demandante, condições previstas no artigo 290, p. 1, da
CONVEMAR. Devido às alegações argentinas de que houve ato de manifesta violação aos
direitos de soberania e à imunidade de jurisdição do Estado platino nas tentativas de mover o
navio e de embarcar mediante o uso da força - as quais aumentam o risco de conflito,
colocando, inclusive, vidas em risco - bem como que as condições na embarcação se
deterioram diariamente, a Corte considerou preenchidos os requisitos à concessão de medida
cautelar.
Sobre a imunidade de jurisdição dos navios de guerra, o Tribunal, levando em
consideração o artigo 29 da aludida Convenção, declarou que tais embarcações são expressão
da soberania do Estado da bandeira de seu pavilhão e, por este motivo, possuem imunidade de
jurisdição, mesmo dentro das águas internas dos Estados. A Corte enfatizou que Gana, não
nega este argumento, pois o que alega o Estado africano não é a existência de uma exceção à
regra da imunidade de jurisdição em águas internas, mas sim que a Argentina teria renunciado
a esse direito - além, logicamente, do já discutido silencio à imunidade de jurisdição nesse
território interno do Estado na temática do texto internacional ora em glosa, o que afastaria a
aptidão da Corte para analisar o caso48.
Ao final, o Tribunal considerou que qualquer ato que, mediante força, impeça que
embarcações protegidas pela imunidade de jurisdição cumpram sua missão, pode prejudicar o
45
INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. loc.cit.
Article 283.”Obligation to exchange views. 1. When a dispute arises between States Parties concerning the
interpretation or application of this Convention, the parties to the dispute shall proceed expeditiously to an
exchange of views regarding its settlement by negotiation or other peaceful means (…)”.UNITED NATIONS
CONVENTION
ON
THE
LAW
OF
THE
SEA.
Disponível
em:
<http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/closindx.htm>. Acesso em: 22 out 2012.
47
INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. loc.cit.
48
INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. loc.cit.
46
145
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
relacionamento amistoso entre Estados. Destarte, visando, primordialmente, evitar
animosidades, o Tribunal Internacional do Direito do Mar, em 15 de dezembro de 2012,
prescreveu as seguintes medidas cautelares: a) Gana deve incondicionalmente liberar a
embarcação ARA Libertad, sua tripulação e capitão, para que, após terem reabastecido,
deixem o porto de Tema; b) cada parte deve arcar com seus custos despendidos no
procedimento perante à Corte.
Ainda, vale ressaltar que a medida cautelar foi integralmente cumprida, tendo a
embarcação e sua tripulação retornado à Argentina em 13 de janeiro de 201349. Além disso,
no que concerne ao mérito, o Tribunal Arbitral encontra-se, atualmente, em fase de
constituição.
3. O CASO ARA LIBERTAD COMO LABORATÓRIO PARA A SUPERAÇÃO
DA FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL
Até o presente momento, esta pesquisa realizou uma análise dos antecedentes
históricos, políticos e econômicos do caso ARA Libertad, abarcando as decisões de cortes
domésticas americanas, britânicas e ganesas sobre o litígio, bem como examinou os
argumentos das partes e a solução jurídica dada ao caso no Tribunal Internacional do Direito
do Mar.
Transladada essa fase, questionamentos ascendem: o fato de um caso que versa sobre
questões afetas a investimentos privados, renegociação de títulos de dívida pública estatal e
imunidade de jurisdição de possessões bélicas de um Estado a ser aventado no Tribunal
Internacional do Direito do Mar evidencia uma usurpação da jurisdição e competência de
outras cortes, num processo de fragmentação do Direito Internacional? Ou, em contraposição,
tal situação contribui para o fortalecimento de um pensamento funcionalizado sistêmico do
ordenamento jurídico internacional?
Cabe frisar que o objetivo desse trabalho não é, de forma alguma, solucionar esse
grande embate que permeia o Direito Internacional contemporâneo, mas, somente, traçar
alguns indicativos de um percurso a ser trilhado. Com esse desígnio, far-se-á uma breve
menção aos principais apontamentos das teorias fragmentária e unitária, posicionando-se
49
FINANTIAL
TIMES.
Argentine
naval
frigate
returns
home.
Disponível
em:
<http://www.ft.com/intl/cms/s/0/a6dfae3a-5abb-11e2-b60e-00144feab49a.html#axzz2NkWWtyOk>. Acesso em:
15 mar 2013.
146
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
nessa contenda, e, subsequentemente, tratar-se-á do caso ARA Libertad como um laboratório
para a aplicação jurisdicional do pensamento sistêmico.
3.1 O embate entre a fragmentação e o pensamento sistêmico no Direito Internacional
Orientado pela revolução globalizante50 vivenciada nas últimas décadas, o processo de
expansão do Direito Internacional promoveu intensas mutações em sua concepção jurídiconormativa, como por exemplo, reformulações em seu fundamento, em suas fontes, em seus
sujeitos e em suas instituições. Essa interconexão jurídica das esferas locais, regionais e
globais suscitou uma multiplicação e diversificação dos ramos regulados pelo ordenamento
internacional, acarretando no aumento da sua densidade normativa, bem como na proliferação
de instituições e cortes aptas a garantirem a aplicação prática dessas regras.
No diapasão da jurisdicionalização do Direito Internacional brotou a preocupação com
a manutenção da coerência desse sistema normativo. Isto porque, com a gradativa
especialização das regras internacionais, somada à ausência de organismos com corpo
legislativo central para dirimir possíveis conflitos de competência, poder-se-ia estar minando
a conformidade e a homogeneidade desse todo unitário, levando a sua completa erosão 51.
A partir do ano 2000, a Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, em
atenção a essa problemática, decidiu pesquisar os riscos que a possível fragmentação traria ao
Direito Internacional. Todavia, durante a evolução das pesquisas, este grupo de estudos
acabou por adotar, no relatório de 2006 - intitulado “Fragmentação do Direito Internacional:
dificuldades advindas da diversificação e expansão do Direito Internacional” - a compreensão
de que tal fenômeno teria extrapolado o status de temeridade, tornando-se uma realidade no
sistema internacional hodierno5253.
50
MENEZES, Wagner. Ordem Global e Transnormatividade. Injuí: Unijuí, 2005, p. 27.
RAO, Pemmaraju Sreenivasa. Multiple International Judicial Forums: a reflection of the growing strength
of international law or its fragmentation? In Michigan Journal of International Law. Vol: 25/929, 2003-2004, p.
929-961.
Disponível
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tleOrStdNo=1052-2867>. Acesso em: 12 jan 2013.
52
MENEZES, loc.cit., p. 352-354.
53
Os principais aspectos aventados no referido relatório, respectivamente, são: a função e o âmbito de aplicação
da regra lex specialis; a questão do self-contained regimes; a interpretação dos tratados a luz do direito
internacional, incluindo a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, as modificações dos
tratados multilaterais entre certas partes e a hierarquia existente entre tratados; e o artigo 103 da carta da ONU
como norte na resolução de conflitos normativos. Cf. KOSKENNIEMI, Martti. Fragmentation of international
law: difficulties arising from the diversification and expansion of International Law. In Report of the study
51
147
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Consolidou-se, portanto, nesse momento, a corrente fragmentária do Direito
Internacional. A principal característica desse pensamento é o reconhecimento da existência
de regimes auto contidos (self-contained regimes) como consequência benéfica da
diferenciação funcional (functional differentiation54) ocasionada pela globalização. Dito de
outro modo, a realidade multifacetada do sistema internacional requereria, para desenvolverse, a divisão do sistema em “caixas autônomas”, as quais, por pautarem-se por princípios e
regras específicas, restritivamente aplicáveis somente a uma determinada área do Direito
Internacional, sobrepujariam a desconexão entre esses diversos campos especiais e o Direito
Internacional geral55. Ademais, a construção jurídica internacional, por não ser homogênea e
tampouco possuir coerência sistêmica, necessitaria desses regimes jurídicos separados e
desunidos para combater o rompimento da unidade, a insegurança normativa e a anarquia
normativa, decorrências da proliferação dos tribunais internacionais56.
A despeito das questões trazidas à tona por esta vertente teórica, ela recebeu austera
censura da doutrina jusinternacionalista. Dentre suas principais críticas, destaca-se o equívoco
epistemológico existente em sua base, uma vez que, ao partir-se de uma análise ontológica da
realidade jurídica, desvirtua-se o dualismo metodológico de Radbruch57, subjulgando o
Direito à dinâmica política e social. Para exemplificar tem-se a própria nomenclatura dessa
proposta ideológica que se utiliza essencialmente do conceito de “regime”, termo este oriundo
das elucubrações de autores da Teoria das Relações Internacionais, tais como Krasner, Nye e
Keohane58. Acaba-se, desse modo, por retomar os ideais dos negadores do Direito
Internacional que recusavam a essa matéria um papel transformador da realidade, sendo,
portanto, incoerente enquanto proposição eminentemente jurídica.
Outro problema diz respeito à excessiva comparação entre os sistemas internacional e
interno, como referencial para aceitação da fragmentação, pois é inegável a grande distinção
entre ambos os campos jurídicos. Considerar que o Direito Internacional é fechado e
hierarquizado com o âmbito interno equivaler-se-ia a desprezar toda a construção do sistema
group
of
the
International
Law
Comission.
A/CN.4/L.682.
Disponível
em:
http://untreaty.un.org/ilc/documentation/english/a_cn4_l682.pdf . Acesso em: 01 out 2011.
54
A diferenciação funcional diz respeito ao aumento da especialização das partes da sociedade e a sua
consequente autonomização. KOSKENNIEMI, loc. cit, p. 18.
55
VUKAS, Budislav. The law of the sea. Selected writings. Boston: Martinus Nijhoff, 2004, p. 3-20.
56
MENEZES, loc.cit., p. 373.
57
RADBRUCH, Gustav. O conceito de Direito. Trad. Antonio de Oliveira. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.
45.
58
KRASNER, Stephen D. Causas estruturais e consequências dos regimes internacionais: regimes como
variáveis intervenientes. In International Organization (Cambridge (MA), v. 26, n. 2, p. 185-205, Spring, 1982.
Tradução de Dalton Guimarães, Feliciano Guimarães e Gustavo Biscaia de Lacerda. Rev. Sociol. Polit., Curitiba,
v. 20, n. 42, p. 93-110, jun. 2012.
148
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
normativo internacional, o qual, diferentemente do direito doméstico, se baseia na cooperação
e na vontade coletiva dos Estados59.
Em suma, o sustentáculo da fragmentação é a incoerência do sistema jurídico
internacional, causada pela existência de antinomias e conflitos incuráveis, o que
supostamente destruiria não somente a sua unidade e completude, como a própria a noção de
Direito. Logo, para evitar o fenecimento do Direito Internacional, tem-se que conjeturá-lo de
maneira coerente e completa, nos moldes pleiteados por Bobbio60 e Losano61, qual seja o de
um sistema, onde normas apenas existem quando fazem parte de um agregado de preceitos e
instituições com uma origem comum, formando uma totalidade ordenada.
Destarte, como proposta de superação da fragmentação, ganha espaço o pensamento
sistêmico do Direito Internacional, que, de forma lógica, vislumbra positivamente a ampliação
e a especialização dessa disciplina. Os seguidores da doutrina da unidade sistêmica asseveram
que as cortes internacionais são importantes mecanismos de amparo e implementação de
direitos, pois, além de ampliar o acesso aos órgãos internacionais, aumentam a adjudicação
jurídica e estabelecem diretrizes para a sua aplicação pelos Estados, expandindo o respeito e a
aceitação do Direito Internacional.
O maior número de temas julgados por cortes internacionais contribui, ainda, para que,
na escolha dos meios de solução de litígios internacionais, os mecanismos jurídicos
preponderem sobre os políticos, bem como colabora para o desenvolvimento de mais regras e
princípios internacionais, enraizando o sentimento de pertencimento a uma comunidade
jurídica. Ressalta-se que isso fortalece, ainda mais, o conjunto uniforme do Direito
Internacional62.
Assim, a existência de situações que não podem ser resolvidas, a não ser pela
consideração da interação de diversas áreas, concomitantemente torpedeia o dogma da
fragmentação e corrobora para a afirmação da necessidade de desenvolvimento de uma
estrutura unitária do Direito Internacional. Quando se entrevê o Direito como um todo, tornase manifesto que a multiplicação de microssistemas jurídicos não representa uma
fragmentação, mas sim uma pluralização endógena63. Isto porque todas estas áreas
especializadas estão interligadas, utilizando-se das mesmas fontes normativas e axiológicas,
59
MENEZES, loc.cit., p. 373.
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. Trad. Denise Agostinetti. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 173.
61
LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no Direito: das origens à escola histórica, v. 1, trad. Carlos Alberto
Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. I-XXV.
62
SANG WOOK, Daniel H. Decentralized proliferation of international judicial bodies. Disponível em:
<http://www.law.fsu.edu/journals/transnational/vol16_1/Han.pdf>. Acesso em 04 mai 2012.
63
MENEZES, loc.cit., p. 365-372.
60
149
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
para obter, como fim último, o ideal de justiça e equidade nas relações internacionais64. Não
há, dessa forma, uma real concorrência entre tribunais internacionais ou sequer uma
competição para abarcar mais competências, pois, pressupõe-se a boa-fé dos Estados, os quais
se submetem às cortes internacionais para resolver de modo efetivo suas controvérsias
internacionais65.
Nesse mote, cumpre apontar que a teoria sistêmica não ignora que a proliferação das
Cortes Internacionais pode acarretar alguns empecilhos, tais como o fórum shopping e a
possibilidade de decisões conflitantes. Todavia, compreende-se que os aspectos positivos da
atuação de múltiplos tribunais sobrepõem-se a tais obstáculos, os quais, inclusive, podem ser
suplantados com a utilização de ferramentas de harmonização inerentes ao próprio sistema
jurídico66. Assim, alude-se que
todos os sistemas que atingem um determinado nível de sofisticação enfrentam a
questão do conflito de jurisdição e, consequentemente, o perigo de jurisprudência
contraditória. Nesse sentido, os problemas do Direito Internacional são mais um
sinal do aumento de sua maturidade do que de uma crise endêmica67.
A sobrevivência do Direito Internacional como sistema jurídico requer, portanto, o
desenvolvimento de mecanismos que evitem a ocorrência de uma usurpação desconjuntada de
jurisdição e competência entre as diversas cortes que convivem no cenário internacional.
Igualmente, deve-se impedir que, em desconsideração à racionalidade integradora que
conforma o conjunto internacional, temas sejam abordados de forma distinta e estilhaçada em
cada tribunal. Logo, tem-se obrigatoriamente que objetivar a coexistência coesa e coordenada
dos órgãos jurisdicionais como membros de uma só totalidade normativa.
Com o intuito de ratificar a inerente interconexão entre as diversas áreas do sistema
unitário jurídico internacional, bem como confirmar a necessidade de harmonização para a
sua manutenção, utilizar-se-á como exemplo o caso ARA Libertad, evidenciando-se,
consequentemente, imperiosidade na adoção do posicionamento sistêmico como único hábil a
estruturar o Direito Internacional.
64
RAO, loc. cit., p. 961.
MENEZES, loc.cit., p. 380.
66
VUKAS, loc.cit.
67
Tradução livre do inglês: “All systems that reach a certain level of sophistication are faced with the question of
competing jurisdictions and its consequence, the danger of contradictory case-law. In that sense, the problems
encountered by the international legal order are more a sign of its increasing maturity rather than endemic
crisis”. DUPUY, Pierre-Marie. The Unity of Application of International Law at the Global Level and the
Responsibility of Judges. Disponível em: <http://www.ejls.eu/2/21UK.htm>. Acesso em: 15 mar 2013.
65
150
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
3.2 Do caso ARA Libertad: a aplicação jurisdicional do pensamento sistêmico através da
dialética harmonizadora entre as fontes do Direito Internacional
A despeito do modelo unitário do Direito Internacional possuir a capacidade de
concretização da integração normativa e da cooperação orgânica do ordenamento universal,
atualmente tal sistema ainda não possui todas as engrenagens necessárias a uma total
cooperação das jurisdições internacionais. Essa coordenação jurisdicional internacional
depende, deste modo, que as autoridades judiciais, na avaliação de sua competência - com
flexibilidade e autoridade - sopesem uma análise conjunta, pois as leis especificamente afetas
aos casos que lhe serão submetidos fazem parte tanto de microssistemas particulares, como
também de um panorama geral do Direito Internacional68.
Tal lição aplica-se ao Tribunal Internacional do Direito do Mar, uma vez que
não se deve perder de vista o fato de que o Direito do Mar sempre foi, e sempre será,
uma parte integral do Direito Internacional como um todo. O Direito do Mar deve
ser interpretado à luz do desenvolvimento uniforme da jurisprudência da
comunidade internacional e não deve ser pensado de forma fragmentária. Se o
desenvolvimento do Direito do Mar fosse separado das regras gerais de direito
internacional e colocado sob a jurisdicao de uma autoridade judicial separada, isso
69
poderia levar a uma destruição da própria fundação do Direito Internacional .
Pautando-se por essa cultura de acreditar que se faz parte de uma mesma ordem
jurídica internacional, nos casos de potencial divergência sobre a jurisdição e a competência
das Cortes Internacionais, esses órgãos visam afastar os conflitos mediante a alusão aos
princípios gerais do Direito Internacional, ao costume, à legislação e à doutrina especializada,
bem como ao diálogo com a jurisprudência de outros tribunais domésticos e internacionais.
Assim, tais elementos, que se demonstram inspiradores para a sistematização e formação de
entendimentos internacionais, contribuem como complementadores das lacunas jurídicas,
instrumentalizando o sistema internacional organizado70.
A utilização dessas técnicas de harmonização foi vislumbrada no julgamento do litígio
ARA Libertad pelo Tribunal Internacional do Direito do Mar, tanto no corpo da Ordem de 15
68
DUPUY, loc. cit.
Tradução livre do inglês: “One should not lose sight of the fact that the law of the sea always has been, and
always will be, an integral part of international law as a whole. The law of the sea must be interpreted in the light
of the uniform development of jurisprudence within the international community and must not be dealt with in a
fragmentary manner (…) If the development of the law of the sea were to be separated from the general rules of
international law and placed under the jurisdiction of a separate judicial authority, this could lead to the
destruction of the very foundation of international law”. Shigeru Oda. Dispute Settlement Prospects in the
Law of the Sea. International and Comparative Law. Quarterly, v.44, issue 4, 1995, p. 863-872.
70
MENEZES, loc.cit., p. 427-430.
69
151
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
de dezembro de 2012 de liberação imediata da embarcação argentina, quanto nas opiniões em
separado dos juízes Rao Chandrasekhara, Lucky, Wolfrum, Cot e Paik, que participaram da
deliberação do referido caso71.
Sobre a referência aos princípios gerais de direito, à doutrina, ao costume e à
legislação internacionais frise-se que os juízes dessa Corte se utilizaram de ponderações do
Instituto de Direito Internacional (Institut de Droit Iinternational) e da Comissão de Direito
Internacional (International Law Comission) no que concerne à imunidade dos navios de
guerra, além de citarem, na discussão desse mesmo tópico, o costume internacional e a
legislação internacional geral. Foram citados, ainda, no supra-aludido certame, autores
específicos de Direito Internacional como John Colombos, Bernard H. Oxman, e Bowett, bem
como a tradicional doutrina estoppel. Vários instrumentos normativos internacionais foram
igualmente lembrados, tais como o artigo 2, p. 3, da Carta das Nações Unidas sobre a
resolução pacífica de controvérsias, os artigos 4 e 6 do rascunho sobre a responsabilidade dos
Estados da International Law Comission e a Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados de 1969.
No que concerne à utilização da jurisprudência doméstica dos Estados, a decisão
proferida no caso entre Argentina e Gana corrobora para a superação da clássica dicotomia
entre monismo e dualismo, mediante o simplificado e harmônico relacionamento do Direito
Internacional e dos aplicadores do Direito dentro dos Estados72. Apreende-se, assim, a
compatibilização entre ambas as ordens, com a integração de normas nacionais e
internacionais e a consequente substituição do enfoque de primazia de uma delas para a sua
influencia mútua e recíproca.
71
INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Separate Opinion of Judge Lucky in the
Order of 15 of December of 2012 in the provisional measures submitted by Argentina. Disponível em:
<http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20_Ord_15.12.2012_SepOp_Lucky_E_orig
-no_gutter.pdf>. Acesso em 03 jan 2013; INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA.
Separate Opinion of Judge Paik the Order of 15 of December of 2012 in the provisional measures
submitted
by
Argentina.
Disponível
em:
<http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20_Ord_15.12.2012_SepOp_Paik_E_origno_gutter.pdf>.Acesso em 03 jan 2013; INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA.
Separate Opinion of Judge Rao in the Order of 15 of December of 2012 in the provisional measures
submitted
by
Argentina.
Disponível
em:
<http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20_Ord_15_12_2012_SepOp_Ch_Rao_E_.
pdf>.Acesso em 03 jan 2013; INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Separate
Opinion of Judge Wolfrum and Judge Cot in the Order of 15 of December of 2012 in the provisional
measures
submitted
by
Argentina.
Disponível
em:
<http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20_Ord_15.12.2012_SepOp_WolfrumCot_E_corr.pdf>.Acesso em 03 jan 2013.
72
DUPUY, Loc. cit.
152
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Tendo em vista que o sistema jurídico internacional necessita do auxílio dos órgãos
internos estatais para garantir sua ampla efetividade, é de se aplaudir a atitude do Tribunal
Internacional do Direito do Mar de mencionar a Superior Court of Judicature in the High
Court of Justice (Commercial Division) of Accra, a Suprema Corte Norte-Americana (no caso
The Schooner Exchange v. McFaddon, U.S, 1812) e a Corte de Apelação de Paris (na
liberação do navio russo Sedov, em 2000).
O diálogo entre os Tribunais Internacionais também está presente na decisão do caso
ARA Libertad. Dentre os precedentes da Corte Permanente de Justiça e da Corte Internacional
de Justiça aludidos em diversos momentos, merecem menção os casos: Mavrommatis
Palestine Concessions (CPJI, 1824), Certain German Interests in Polish Upper Silesia (CPJI,
1926), South West Africa, Preliminary Objections (CIJ, 1962), Temple of Preah Vihear (CIJ,
1962), North Sea Continental Shelf (CIJ, 1969), Delimitation of the Maritime Boundary in the
Gulf of Maine Area (CIJ, 1984), Military and Paramilitary Activities in and against
Nicaragua (CIJ, 1984), Land, Island and Maritime Frontier Dispute (CIJ, 1990), Request for
an Examination of the Situation in Accordance with Paragraph 63 of the Court’s Judgment of
20 December 1974 in the Nuclear Tests (CIJ, 1995), Fisheries Jurisdiction case (CIJ, 1998),
Difference Relating to Immunity from Legal Process of a Special Rapporteur of the
Commission on Human Rights (CIJ, 1999), Arrest Warrant of 11 April 2000 (CIJ, 2002),
Territorial and Maritime Dispute between Nicaragua and Honduras in the Caribbean Sea
(CIJ, 2007), Application of the Convention on the Prevention and Punishment of Crime of
Genocide (CIJ, 2007) e Sovereignty over Pedra Branca/Pulau Batu Puteh, Middle Rocks and
South Ledge (CIJ, 2008).
A utilização de precedentes de outros órgãos jurisdicionais pelo Tribunal Internacional
de Direito do Mar fortalece a constatação de que esta Corte está atenta para a necessária
relação de dialeticidade entre os fóruns de discussão. Nessa senda, na opinião em separado do
Juiz Lucky, perfilha-se, expressamente, com a imperiosidade em considerar os temas afetos a
deliberação pelo Tribunal como parte de um sistema:
Eu penso que o direito internacional e os relevantes artigos da Convenção deveriam
ser considerados como um todo e que as circunstancias do artigo 32 podem incluir
as águas internas; não somente porque este artigo explicitamente não exclui a
imunidade dos navios de guerra nas águas internas, mas também porque ele deve ser
lido em congruência com outras regras de Direito Internacional que garantem tal
imunidade. Assim, onde o direito silencia, um Tribunal deve realizar uma
153
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
abordagem pragmática, interpretando e construindo o direito levando em
73
consideração as circunstancias do caso .
No caso em comento, o Tribunal Internacional do Direito do Mar abarcou aspectos do
Direito Internacional do Investimento, da imunidade de jurisdição de navios de guerra, do
direito processual internacional e do Direito Internacional dos Direitos Humanos,
respondendo, por meio da coordenação e da harmonização sistêmica, a algumas das
preocupações de decorrentes da criação de novos Tribunais Internacionais e da multiplicação
dos regimes especiais, tais como o Direito do Mar74.
A análise teleológica realizada pelos juízes do Tribunal Internacional do Direito do
Mar ratifica o entendimento de que, em um contexto globalizado no qual as controvérsias
jurídicas envolvem temas das mais diversas áreas, esta Corte, mediante a busca de elementos
norteadores nos princípios, na doutrina, nos costumes, na legislação e na jurisprudência
internacional, é capaz de aplicar o Direito Internacional sem colocar em risco a sua unidade
enquanto sistema.
CONCLUSÃO
Trasladada a explicação do contexto e do caso ARA Libertad, aclararam-se alguns
aspectos relativos ao embate entre a fragmentação e a sistematicidade no Direito Internacional
e foram estabelecidas algumas relações entre o entendimento unitário e a sua aplicação na
decisão ora estudada. O objetivo primordial dessa pesquisa foi evidenciar, por meio da recente
decisão do Tribunal Internacional do Direito do Mar, que, no panorama contemporâneo onde
as controvérsias internacionais envolvem temas de diversas áreas do Direito Internacional, a
atuação coordenada e harmonizada das Cortes Internacionais contribui para a manutenção
73
Tradução livre do inglês: “I think that international law and the relevant articles in the Convention should be
considered as a whole and in these circumstances article 32 can be deemed to include internal waters; not only
because it does not explicitly exclude the immunity of warships in internal waters, but because it should be read
in congruence with other rules of international law which guarantee such immunity. Therefore, where the law is
silent a tribunal ought to take a pragmatic approach and, bearing in mind the circumstances of the case, interpret
and construe the law accordingly. I would hold that the ARA Libertad has the right of immunity in the internal
waters of Ghana, and that a wide interpretation of the article is suitable”. INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR
THE LAW OF THE SEA. Separate Opinion of Judge Lucky in the Order of 15 of December of 2012 in the
provisional
measures
submitted
by
Argentina.
Disponível
em:
<http://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no.20/C20_Ord_15.12.2012_SepOp_Lucky_E_orig
-no_gutter.pdf>. Acesso em 03 jan 2013.
74
WOLFRUM, Rudiger. International Tribunal for the Law of the Sea. Informal Meeting of Legal
Advisers of Ministries of Foreign Affairs. New York, 29 out 2007. Disponível em:
<http://www.itlos.ogr/fileadmin/itlos/...of.../wolfrum/dakar_311006_3ng.pdf>. Acesso em 13 mar 2013.
154
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
dessa totalidade sistêmica. Cumpre grifar que o caso ARA Libertad trouxe à baila outras
questões – não abarcadas no escopo temático dessa pesquisa – que necessitam ser
examinadas, tais como a possível concorrência de atribuições entre o Tribunal Internacional
do Direito do Mar e a Corte Internacional de Justiça, o regramento da prescrição de medidas
cautelares e a possibilidade de renúncia à imunidade de jurisdição.
Nesse ínterim, em que pese o progresso acarretado pela multiplicação dos Tribunais
internacionais, os quais colaboraram para ampliar a efetividade do Direito Internacional, não
se pode olvidar que essa disciplina é um continuum inacabado, dinâmico e em constante
evolução. Visando aprimorar a realização prática do Direito Internacional, deve-se chamar
atenção para a necessidade de se estabelecer um debate sobre a clara delimitação das
competências das Cortes Internacionais, bem como de se discutir uma teoria para a prevenção
de eventuais conflitos, com o intuito de facilitar a aplicação do Direito Internacional. Em
epítome, essas pretensões nada mais são do que reflexo da preocupação com a busca pelo
ideal máximo da justiça na sociedade internacional.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
REGIMES INTERNACIONAIS E SOFT LAW: UMA ANÁLISE A PARTIR DA
ORGANIZAÇÃO DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA
Carla Cristina Alves Torquato1
Erivaldo Cavalcanti e Silva Filho2
RESUMO
O conceito de regime internacional e a forma pela qual ele é observado pelas escolas de pensamento das
relações internacionais e de que maneira ele afeta a Organização do Tratado de Cooperação AmazônicaOTCA e quais os motivos que levam a mudanças dentro do mesmo constituem-se o objetivo deste artigo.
Utilizou-se como ponto de partida a cooperação entre os Estados como sendo a principal meta a ser obtida
dentro de um regime internacional e as negociações que os envolvem para alcançar tal objetivo. Usamos
como exemplo o Tratado de Cooperação Amazônica, pacto este que une os países da bacia Amazônica:
Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, que através deste dispositivo normativo firmaram
o compromisso de promover o desenvolvimento harmônico da região por meio da cooperação e
reciprocidade de esforços em prol do crescimento econômico região atrelado a proteção do meio
ambiente. Através da leitura de autores que lidam com matérias relativas às relações internacionais,
jurificação, soft law, temas Amazônicos e a legislação afeita ao Tratado, analisamos a possibilidade do
Estado constitucional cooperativo ser a garantia da união destes Estados, contudo ao priorizarem suas
políticas internas as formas de integração mais consistente ficam relegadas ao segundo plano.
Palavras-chave: Organização do Tratado de Cooperação Amazônica. Soft Law.
Regimes Internacionais.
INTERNATIONAL LAW AND SOFT LAW: AN ANALYSIS OF AMAZON
COOPERATION TREATY ORGANIZATION.
ABSTRACT
The concept of international regime and the way he is observed by schools of thought in international
relations and how it affects the Amazon Cooperation Treaty Organization -ACTO and the reasons that
lead to changes within the same constitute the objective this article. It was used as a starting point to
cooperation between states as the main goal to be achieved within an international regime and
negotiations involving them to achieve that goal. We use the example of the Amazon Cooperation Treaty,
this pact that unites the countries of the Amazon basin: Brazil, Bolivia, Colombia, Ecuador, Peru and
Venezuela, through this device that signed the normative commitment to promote the harmonious
development of the region through cooperation and reciprocal efforts towards economic growth region
linked to environmental protection. By reading authors who deal with matters relating to international
1
Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Professora do Centro
Universitário do Norte (Uninorte/Laureate).
2
Professor Doutor dos Programas de Mestrado em Segurança Pública e de Direito Ambiental da
Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Professor do Centro Universitário do Norte
(Uninorte/Laureate).
159
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
relations, jurification, soft law, issues and legislation Amazon accustomed to the Treaty, we analyze the
possibility of the state constitutional guarantee to be cooperative union of these States, however when
prioritizing its internal forms more consistent integration are relegated to second place.
Key-Words: Amazon Cooperation Treaty Organization. Soft Law.International
Regimes.
INTRODUÇÃO
A cooperação e a coexistência entre os Estados são uma necessidade em vista da
interdependência dos seus atores sociais indispensável para a sua sobrevivência e
desenvolvimento. Mediante tal necessidade os mesmos promovem constantes mudanças em
suas estruturas para que possam melhor se adequar as exigências políticas nacionais e
internacionais.
Através da criação de inúmeras organizações intergovernamentais, o mundo
tornou-se cada vez mais institucional. Um exemplo é a Organização do Tratado de
Cooperação Amazônica – OTCA, cujo objetivo é unir os países que compartilham a bacia
Amazônica, para que em conjunto possam associar-se em projetos e ações nos seus
respectivos territórios. Tal cooperação pode ser ou não concretizada ou até mesmo desejada,
de acordo com a posição que cada Estado participante do tratado ocupa no cenário
internacional e é claro, dentro do seu próprio espaço, o mesmo entendido no contexto
político, social e econômico.
Assim, o objetivo deste artigo foi buscar nos conceitos de regimes internacionais e
da soft law possíveis explicações para a cooperação, palavra cuja etimologia inspira
benefícios, como por exemplo instituições trabalhando em prol de uma ação, que pode ser
boa para alguns e nem tanto para a maioria.
Utilizamos para tanto levantamento bibliográfico e documental, além da
legislação acerca do tema para subsidiar a pesquisa e indagamos o seguinte problema:
até que ponto o Tratado de Cooperação Amazônica pode se ser considerado uma
espécie de regime internacional?
1 Regime Internacional
Krasner define regime internacional como um conjunto de princípios, normas,
regras e procedimentos de tomada de decisões em torno dos quais convergem as
expectativas dos atores em uma área específica das relações internacionais (2013).
160
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Para Hasenclever, Mayer e Rittberger os regimes são instituições de caráter não
hierárquico em torno das quais as expectativas dos atores convergem. Eles são
deliberadamente construídos pelos atores com o propósito de mitigar o caráter de
autoajuda das relações internacionais ao demonstrar aos Estados a possibilidade de
obter ganhos conjuntos por meio da cooperação (2013, p. 12).
Esta análise parte da concepção adotada pelas escolas de pensamento das
relações internacionais dentro do sistema internacional, como uma estrutura anárquica,
isto é, sem a existência de um órgão supranacional que regule as relações entre os
Estados, dentre eles o realismo.
Os regimes são aqui conceituados como variáveis intervenientes, que
intermedeiam a relação entre fatores causais como poder, valores, interesse e os
resultados e/ou comportamentos alcançados por eles (KRASNER, 2013). As variáveis
causais, os fatores que possibilitam a formação dos regimes são:
a. O interesse (desejo de maximizar a função de uma parte quando esta função
não inclui a utilização de outra parte);
b. O poder político (que segue duas orientações, uma que persegue o bem
comum, e outra, que procura maximizar interesses particulares dos atores);
c. Normas e princípios (características definidoras de um regime);
d. Os usos e costumes (padrões regulares de comportamento atuais e práticas
antigas);
e. O conhecimento científico (que permite um consenso em torno do assunto
objeto de negociação)
Os princípios, sendo a razão de ser de um regime internacional, não estão, em si,
sujeitos a negociação ou alteração direta. A principal fonte de alteração de um regime é,
segundo o supracitado autor, sua forma estrutural, ou seja, suas regras e procedimentos
de tomada de decisão.
A Escola realista observa o modo como os Estados usam suas capacidades de
poder em situações que requerem coordenação para influenciar a natureza dos regimes e
o modo pelos quais os custos e benefícios advindos da formação dos regimes são
divididos.
Os Estados aceitam os regimes porque eles estão operando em uma situação de
coordenação, e uma falha nesta coordenação pode levá-los a uma situação menos
vantajosa. Modificações só ocorrem, portanto, quando o comportamento e os resultados
alcançados por seus membros tornam-se inconsistentes com as normas, princípios e
161
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
regras estabelecidas pelos mesmos, abrindo caminho para alterações nas regras e
procedimentos ou nas normas e princípios.
Hasenclever, Mayer e Rittberger (2013, p. 12) dividem as teorias de regimes em
três perspectivas teóricas: baseada no poder, baseada no interesse e baseada no
conhecimento ou comportamento. Tais perspectivas originam três escolas de
pensamento: a realista, a neoliberal e a cognitiva.
A diferença marcante, segundo os autores, entre as três é o grau de
institucionalismo que elas tendem a considerar, ou seja, a visão do quanto às instituições
são importantes para a formação dos regimes (HASENCLEVER, MAYER E
RITTBERGER, 2013, p. 14-15).
Segundo os realistas, a distribuição de poder entre os atores afetam fortemente o
formato para a emergência e persistência de regimes efetivos e a natureza destes que
resultam, especialmente quando a preocupação é com a distribuição dos benefícios da
cooperação.
Os neoliberais, por sua vez, enfatizam o papel dos regimes internacionais em
ajudar os Estados a realizarem interesses comuns de forma que eles vejam os regimes
como uma via para facilitar a cooperação internacional. Na visão neoliberal as
instituições permitem que os atores racionais contribuam uns com os outros no sentido
de realizar seus interesses comuns, pois os regimes aumentam a transparência das
relações entre os variados agentes internacionais, permitindo que se reduza a incerteza
nessa interação, assim diminuindo o medo de trapaça e a possibilidade de exploração
dos demais participantes (HASENCLEVER, MAYER e RITTBERGER, 2013, p. 14).
Os cognitivistas focam na origem dos interesses e na ideia do Estado como um
jogador no sistema internacional. Com uma visão dualista estes se dividem em duas
categorias: fracos e fortes. Os “frMcos” compartilham com realistas e neoliberais uma
preocupação com mecMnismos cMusais, tentando explicMr “por que” Mlgum regime
internacional é criado a partir da pressuposição de que os atores podem ser racionais
(HASENCLEVER, MAYER e RITTBERGER, 2013, p. 16).
Já os “fortes” dão ênfase no caráter social do conhecimento procurando
entender como Ms regrMs e concepção eu “nós” e “eles” compõem os contextos em que é
criado de um determinado regime, assim descartando a pretensão de desvendar alguma
suposta racionalidade atemporal por trás das ações internacionais. Ademais, os atores
dessa vertente, também chamada de construtivista, consideram que as identidades dos
162
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Estados são construídas socialmente, de modo que as preferências dos agentes também
estão em constante mutação (AMARAL, 2013).
Hasenclever, Mayer e Rittberger ponderaram que a diferença entre regimes e
organizações internacionais está no fato de que os regimes, como um conjunto de regras
e normas aceitas pelos Estados não tem a capacidade de agir, enquanto que as
organizações podem responder a eventos, e até mesmo dar o suporte institucional a um
regime (2013, p. 13).
2 Teorias sobre a hegemonia
Os regimes surgem, permanecem e afetam a atuação dos estados participantes na
medida em que são impostos pelos entes que possuem mais poder e riqueza. Antes de
chegamos ao que seria poder e riqueza, fica entendida a visão de que a liderança de um
estado hegemônico é uma das condições para que haja cooperação internacional.
Keohane conceitua hegemonia como uma situação em que um Estado é
poderoso o suficiente para manter as regras essenciais que regem as relações entre
outros Estados, e os que estão dispostos a fazê-lo. Segundo ele, as estruturas
hegemônicas de poder dominadas por um só país conduzem à formação de regimes
internacionais fortes, com regras precisas e obedecidas por todos (KEOHANE, 2013, p.
111).
Os regimes econômicos internacionais fortes dependem de um poder
hegemônico, ao passo que a fragmentação do poder entre países em competição leva à
fragmentação do regime. A concentração de poder indica, portanto, estabilidade.
As duas maiores escolas do pensamento hegemônico possuem diferentes visões
acerca da provisão do bem público (passível de ser objeto de um regime, ou não).
Uma seria Mvisão “má”, onde MhegemoniMé vista como proveniente de uma
direção, um comando coercitivo. Isso seria feito através de um regime que teria sanções
negativas ou positivas. Eventualmente os Estados menores custeariam a manutenção
desse regime.
ÍM visão “boM” da OegemoniM, os “hegemônicos” constituem um privilegiado
grupo onde os custos no suporte dos bens públicos são maiores que os advindos dos
mesmos. Esse tipo de estratégia ou contribuição dentro do sistema incentiva a
permanência dos free riders, ou caronistas, isto é, Estados mais fracos que se
163
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
beneficiam de políticas mais fortes e que em troca concedem posições de apoio e ajuda,
sendo aliados quando forem solicitados (KEOHANE, 2013, p. 111).
Haggard e Simmons (2013, p. 494) fizeram um estudo sobre diferentes
contribuições teóricas acerca dos regimes. Segundo eles, na visão estruturalista sobre a
teoria da estabilidade hegemônica, sempre vai haver, dentro de um sistema, um Estado
forte que dominará os mais fracos e que devido a essa força dominará as regras do jogo.
As teorias funcionais explicam a força do regime, em especial o porquê do
regime persistir mesmo quando a sua estrutura começa a sofrer mudanças. As teorias
funcionais ilustram o comportamento ou instituições nos termos dos seus efeitos. O
regime tem uma estrutura pronta, assim pode reduzir custos em informações e
transações entre seus participantes. A recompensa é o fortalecimento do regime
(HAGGARD e SIMMONS, 2013, p. 499).
Os cognitivistas exploram como as teorias estruturais, teoria dos jogos e as
funcionais estão ligadas. Para os cognitivistas, a cooperação não pode ser explicada sem
a referência a ideologia, os valores dos atores, a crença que possuem sobre a
interdependência dos resultados e o conhecimento disponível sobre como podem
alcançar objetivos específicos.
Sendo assim a cooperação pode ser afetada pela percepção ou a falta dela. O
cognitivismo argumenta que o aprendizado de diferentes modos e ideologias afetam as
regras internacionais de cooperação, sejam elas por mérito ou não, estabelecendo linhas
de ação.
3 Cooperação: Será possível ?
Para melhor entender o que é de fato cooperação, se faz necessário examinar seu
conceito:
Como qualquer termo de uso comum com carga emotiva elevada, cooperação
tende a ser polissêmico e, ao mesmo tempo, de contornos semânticos
imprecisos. Qualquer situação em que dois ou mais atores agem de maneira
coordenada para promover maiores benefícios, mesmo que para um único
ator, pode ser chamada de cooperação (GONÇALVES e COSTA, 2011, p.
147).
Como na teoria dos jogos, onde um jogo pode se desdobrar em um sub-jogo, que
mais a frente pode ser ligado a outro jogo num processo continuo e dinâmico a busca
pelo poder e pela riqueza e entre o poder e a riqueza apresenta uma interação ativa
164
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
porque ambos são continuamente modificados, bem como as conexões entre eles
(HAGGARD e SIMMONS, 2013, p.505).
Como bem observou Keohane, no mundo da política a incerteza é abundante, há
uma grande dificuldade em fazer acordos, não existem barreiras militares seguras como
também não são seguras as questões econômicas.
Ousamos dizer que tudo poderia ser resumido num jogo onde atores perseguem
seus próprios interesses, não se importando com os demais atores e estes ajustam seu
comportamento e interesses aos interesses dos outros, nem que para isso seja necessário
arcar com alguma espécie de ônus.
Dessa forma chegamos a três conceitos (KEOHANE, 1984, p. 51): a harmonia, a
cooperação e a discórdia. A harmonia ocorre quando há uma situação onde a política
dos atores automaticamente facilita a realização do objetivo dos outros atores. É
importante ressaltar que eles estão perseguindo seus próprios interesses e
“placidamente” cedem espaço para os objetivos dos outros.
Na cooperação, os atores ajustam seu comportamento de acordo com as
preferências atuais ou futuras dos outros, através de um processo de coordenação
política e o supracitado continua afirmando que a cooperação intergovernamental se faz
quando a política seguida por um Estado e é respeitada por seus parceiros como
facilitadora dos objetivos de todos, sendo o resultado de uma política de coordenação.
Na discórdia não há um ajuste entre as políticas dos atores, assim não há redução de
nenhum tipo de consequências adversas das políticas de um ator para outro
(KEOHANE, 2013, p. 51-52).
Ao pensar se é possível a cooperação para a proteção da biodiversidade nos
países amazônicos, podemos dizer que sim. Todavia, essa não é uma pergunta fácil de
ser respondida, entendemos que esta resposta positiva é um tanto hesitante.
Qualquer ato de cooperação, mesmo aparente, precisa ser interpretado dentro de
um quebra-cabeça, afinal o que mais pode ser desafiador do que entender as intenções
dos atores, no caso em tela, saber o que pensam os países da Organização do Tratado de
Cooperação Amazônica em relação as suas regiões Amazônicas?
Para um observador ingênuo é claro que a cooperação é algo fácil e desejável.
Diríamos que desejável é mais simples, pois manter um regime, por mais complexo que
seja, é melhor do que não haver nenhum, pois geraria dificuldades na qual cada ator
teria ao agir sozinho ou instituir outro regime (KEOHANE, 2013, p. 60).
165
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
O fácil não existe, o que existe são barganhas e diálogo, e dentro destes termos
qual seria o princípio, dentro de um regime chamado Organização do Tratado de
Cooperação Amazônica? A conservação e o desenvolvimento da bacia Amazônica. E
quais seriam as normas? A cooperação, respeitando os limites impostos pelo
desenvolvimento sustentável e harmônico da região.
Complicando um pouco mais e nos inspirando na teoria dos jogos, vamos criar
um sub-jogo: Pode haver uma gestão conjunta nas áreas protegidas Amazônicas?
Para tentar responder essa pergunta, vamos voltar um pouco, pensando no poder
e na riqueza. A riqueza possui vários conceitos. Ela pode significar os meios materiais
para obter satisfação, qualquer coisa que tenha utilidade em forma de investimento,
consumo ou como estoque de recursos.
A riqueza tem haver com tudo aquilo que tem valor de mercado, mas não só isso
tem haver com aquilo que é escasso. Se um Estado possuir um recurso que é escasso
nos demais pode usar esta condição para obter poder. Dessa forma, o poder fica
diretamente ligado a ter riqueza.
A Amazônia é rica em recursos naturais que possuem valor econômico, sejam
recursos em valor direto, como madeira, matéria prima para medicamentos ou opções
turísticas e, também, produtos de custo zero, tais como serviços ecológicos
insubstituíveis, manutenção dos ciclos hídricos e proteção da bacia hidrográfica, bem
como a manutenção do equilíbrio carbono-oxigênio (FONSECA, 2003, p. 44).
4 O Tratado de Cooperação Amazônica
No final dos anos 60 e na primeira década dos anos 70, o surgimento do
movimento ambientalista fez dos recursos naturais, da energia e do ambiente em geral,
um tema de importância econômica, social e política. Trouxe a crítica ao modelo de
desenvolvimento econômico vigente, apontando para um conflito, senão uma possível
incompatibilidade, entre crescimento econômico e preservação dos recursos ambientais.
A primeira Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente, em
Estocolmo, no ano de 1972, desenvolveu a tese do ecodesenvolvimento, segundo o qual
desenvolvimento econômico e preservação ambiental não são incompatíveis, e sim
interdependentes para um efetivo desenvolvimento (FONSECA, 2005, p. 42).
166
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A partir deste momento consolida-se a definição de desenvolvimento
sustentável, segundo a qual o desenvolvimento deve ser entendido pela eficiência
econômica, equilíbrio ambiental e também pela equidade.
No mesmo período, o mundo estava embalado pela ideia de que os países do
terceiro mundo, incluídos aí os latino-americanos, eram os grandes responsáveis pelo
desequilíbrio econômico mundial. Ora, para os países em desenvolvimento realmente
havia outras prioridades, tais como resolver o problema da fome, da falta de moradia, e
da construção de estradas, o maior símbolo do crescimento econômico na época
(CERVO, 2013, p 103).
Diante de tal cenário, os países amazônicos se comprometeram a colaborar
com metas de desenvolvimento sustentável, além de reafirmarem suas soberanias
nacionais utilizando alguns instrumentos, sendo um deles o Tratado de Cooperação
Amazônica (TCA), assinado em 03 de julho de 1978 por Bolívia, Brasil, Colômbia,
Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela com o objetivo de promover ações
conjuntas para o desenvolvimento da Bacia Amazônica, inclusive em qualquer território
de uma parte contratante cujas características estejam estreitamente vinculadas à mesma
(TRATADO, 2013).
O Tratado de Cooperação Amazônica incentiva os processos de cooperação
regional entre seus participantes, prevê o incremento da pesquisa científica e
tecnológica, o intercâmbio de informações, bem como a utilização racional dos recursos
naturais, liberdade de navegação, preservação do patrimônio cultural, o estabelecimento
de uma adequada infraestrutura de transportes e comunicações, e o incremento do
turismo e do comércio fronteiriço (TRATADO, 2013).
Em 1995, os países amazônicos decidiram fortalecer institucionalmente o
Tratado com a criação de uma secretaria permanente dotada de personalidade jurídica.
A decisão foi levada adiante em 1998, com a aprovação do Protocolo de Emenda ao
TCA que instituiu oficialmente a Organização do Tratado de Cooperação AmazônicaOTCA como mecanismo responsável pelo aperfeiçoamento e fortalecimento do
processo de cooperação desenvolvido no âmbito do tratado (ANTIQUERA, 2013, p.58).
Este instrumento jurídico de cooperação regional se propõe a melhorar a
qualidade de vida dos povos amazônicos, aproveitando de forma sustentável a rica
herança cultural e natural da região. Aí perguntamos: de que forma? Qual o formato do
TCA dentro do Direito Internacional?
167
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Se as alterações sentidas no plano das relações internacionais são elementos
que condicionam outras modificações em níveis instrumentais, assim, como vimos, para
o direito também surge a necessidade de se adaptar às transformações ocorridas nas
relações internacionais, e o Tratado de Cooperação Amazônica é um exemplo dessa
dinâmica.
Os países que compõe a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica,
OTCA, compartilham a região amazônica, mas não possuem as mesmas políticas
econômicas de desenvolvimento. Cada um tem sua política nacional e, mesmo levando
em conta a prioridade que a questão ambiental possui como se pode vincular Estados
tão diversos a um mecanismo coercitivo?
No seu plano estratégico, a secretaria da OTCA se define como um
instrumento estratégico a serviço de seus países membros, na defesa de interesses
comuns e como foro de consulta e articulação consensual de posições regionais nas
negociações globais. Por outro lado, a organização desempenha um papel crucial no
fomento da cooperação horizontal entre os países, o que favorece os intercâmbios
institucionais, assim como uma maior interação com outros organismos regionais e
internacionais.
A OTCA participou da Conferência RIO + 20, gerando a Declaração dos
Ministros de Relações Exteriores dos seus Países Membros para a Conferência , onde os
chanceleres reconheceram que a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente
e o Desenvolvimento significou a consolidação do paradigma de desenvolvimento
sustentável que integra, com o mesmo nível de importância, os pilares social, ambiental
e econômico do desenvolvimento, sendo ressaltada a transcendência do Tratado de
Cooperação Amazônica, como instrumento para o desenvolvimento sustentável da
região amazônica (TRATADO, 2013).
Em suma, o Pacto de Cooperação Amazônica é um instrumento normativo
onde não são previstas obrigações e, muito menos, qualquer tipo de coerção, ele é uma
espécie de guia de procedimentos, de diretrizes e princípios.
Para o direito ambiental internacional o tratado é uma fonte fundamental, por
duas principais razões: primeiro pelo fato de que neles são dispostos direitos e
obrigações dos signatários e, depois, pelo fato da existência de poucos costumes
internacionais relacionados ao meio ambiente.
Mas, de onde partimos para fazer tal análise? A resposta pode ser encontrada
nos estudos sobre a soft law. O que seria a soft law ?
168
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A soft law é um direito brando, elaborado pelos Estados, sobretudo quando
tratam de suas relações multilaterais, e ao mesmo tempo um direito forte, muito forte,
até mesmo pétreo, que diretamente e de maneira incontornável, obriga os Estados e se
coloca acima das suas vontades (NASSER, 2006, p. 25).
Vemos a aplicação da soft law relacionada a temas como regimes regulatórios,
entendidos de forma mais geral como ordem internacional ou governança, ou mais
especificamente em determinadas áreas, como por exemplo, o meio ambiente e o
comércio internacional.
A soft law é o exemplo concreto de jurificação, que consiste em:
[...] uma forma especial de institucionalização aquela que lança mão de
instrumentos especificamente jurídicos para buscar estabelecer um âmbito de
ações possíveis. Escolheu-se nomear tal ação “jurificar”, de juris e efficere,
que significa literalmente, tornar jurídico. [...] entende-se jurificar como a
ação de criar uma instituição jurídica, cujas características são a referência a
um corpo normativo específico voltado a produção de julgamentos mediante
órgãos marcados pela imparcialidade e a ausência de interesses mediatos no
resultado (GONÇALVES, COSTA, 2011, p. 160).
Na língua inglesa o termo correspondente a jurificação é legalization, cujo
conceito se apresenta como uma peculiar forma de institucionalização cujas
características são a obrigação, precisão e delegação (ABBOTT et al 2013, p. 400):
1) Obrigação: significa que os estados estão limitados legalmente por regras
ou compromissos e se sujeitam as mesmas e aos procedimentos gerais da
lei internacional;
2) Precisão: as regras são definitivas, não ambíguas, definindo a conduta
que requerem, autorizam, ou prescrevem;
3) Delegação: concede autoridade/poder para criar, interpretar e aplicar as
regras, para resolver disputas e a possibilidade de elaborar regras
complementares.
Ainda de acordo com os autores acima, o conceito do soft law e do hard law é
apresentado desta forma ( 2013, p. 402) :
a) Hard law – É o direito em sua forma positivada. Temos aqui uma
conduta de fazer ou não fazer bem definida, quem são os atores aos quais
estão direcionadas as condutas e se em nome à obediência das
determinações impostas, normas ou outros atores deverão ser criados
para garantir o total cumprimento das mesmas, com possíveis sanções
civis ou penais.
169
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
b) Soft law – Não há obrigatoriedade de todos esses elementos descritos
acima, normalmente elas são bem descritivas, com princípios vagos,
algumas vezes com textos bem detalhados de procedimentos e cuja
aplicação depende muitas vezes da diplomacia.
Falta na soft law a coerção, o poder de sanção, ou seja, exigir e/ou punir aquele
que não seguir suas determinações. Assim não podem ser chamadas de normas, regras
ou leis, e sim de guias de procedimentos ou guidelines. No entanto a soft law pode
delegar poderes, isto é, resolver e arbitrar disputas e fazer regras e colocá-las em prática,
envolvendo outros atores, incluindo tribunais, árbitros e organizações internacionais
para coordenar padrões pré-estabelecidos em suas diretivas.
A soft law apresenta um caráter inteiramente voluntário e é consistente com o
princípio da subsidiariedade, que vem a ser o incentivo ao alojamento das competências
em vários campos da política nos níveis mais apropriados do governo. Seu foco é
estabelecer diretrizes deixando a escolha da estratégia nacional mais apropriada à
disposição dos estados-membros.
O direito soft visa à aprendizagem mútua entre os membros, que discutem
interesses comuns, trocam o conhecimento e a experiência que permite que compilem as
melhores soluções a seus problemas regulatórios. Assim, trata-se de um artifício útil,
utilizado como meio de coordenação de relações entre os estados-membros, observando
tanto a unidade quanto a diversidade entre eles.
Considerando as propriedades ou dimensões da juridificação, conforme as
dimensões de Abbott et al, é possível concluir que o OTCA se enquadra como soft law,
a partir do momento que encontramos nela essas três dimensões, tratadas da seguinte
forma:
1) Obrigação - O TCA possui artigos precisos e elaborados, mas em
nenhum momento eles são coercivos, eles são entendidos como
um guia de cooperação entre as partes, onde fica bem clara a
afirmação da soberania e responsabilidade dos países contratantes
sobre suas respectivas bacias amazônicas. Por exemplo, o art. 25
diz que as partes contratantes se esforçarão por manter um
intercâmbio permanente de informações e colaboração entre si e
com os órgãos de cooperação latinos - americanos, nos campos
em que se relacionam com as matérias que são objeto deste
tratado, contudo, se algum país se recusar ou não tiver interesse
170
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
em fazer o intercâmbio em determinada área, o tratado não possui
nenhum mecanismo que o obrigue a cumpri-lo.
2) Precisão - O Tratado é claro nas suas intenções, dispostas no art.
11, que apresenta o propósito do TCA: incrementar o emprego
racional dos recursos humanos e naturais dos seus respectivos
territórios e estimular a realização de estudos e a adoção de
medidas conjunta (TRATADO, 2013). Assim todos os seus
artigos giram em torno destes objetivos de forma concisa, sem dar
margem pra nenhum tipo de ambiguidade ou diferentes formas de
interpretação.
3) Delegação – Não se pode dizer que o TCA possua uma forte
delegação, porque ele não concede autoridade para criar,
interpretar e aplicar regras. Porém, a OTCA funciona articulada
com agências e órgãos responsáveis pela coordenação, fomento e
implementação de programas e projetos de cooperação técnica
dos países membros, que por sua vez interagem com as unidades
executoras ou coordenadoras nacionais, além de poder atuar
como mediadora e conciliadora.
Assim, podemos enquadrar o TCA desta maneira: Obrigação – fraca/ Precisão –
forte/ Delegação-moderada.
Com essa descrição não resta dúvida acerca de constituir-se o TCA em soft law
sendo uma espécie de guideline, não trazendo nenhum tipo de sanção ou coerção em
caso de descumprimento de suas recomendações, delegando funções, mas não criando
nenhum tipo de regra.
5 Possibilidades do Estado constitucional cooperativo dentro do Tratado de
Cooperação Amazônica
Derani (2001, p.162) estabelece que o princípio da cooperação admite normas de
incentivo a ciência e tecnologia a serviço da proteção ambiental, abrindo espaço para a
cooperação entre Estados e Municípios, como também para uma cooperação de âmbito
internacional, superando fronteiras. Ao pensar em cooperação ligada ao meio ambiente
lembramos os princípios do Direito Ambiental, o princípio do poluidor-pagador, da
171
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
precaução e da cooperação. O princípio da cooperação orienta a realização de políticas
publicas, fazendo parte da estrutura do estado social.
A nossa Constituição federal de 1988 estabelece:
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações
internacionais pelos seguintes princípios:
I - independência nacional;
II - prevalência dos direitos humanos;
III - autodeterminação dos povos;
IV - não-intervenção;
V - igualdade entre os Estados;
VI - defesa da paz;
VII - solução pacífica dos conflitos;
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X - concessão de asilo político.
Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração
econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à
formação de uma comunidade latino-americana de nações (BRASIL, 2013).
Os países da OTCA são em grande parte os mesmos do MERCOSUL,
atualmente, o Mercado Comum do Sul é formado por quatro membros plenos:
Argentina, Brasil, Uruguai e Venezuela; cinco países associados: Chile, Colômbia,
Equador, Peru e Bolívia; e dois países observadores: Nova Zelândia e México. O
Paraguai, um dos signatários do Tratado de Assunção, teve sua adesão suspensa de 29
de junho de 2012 a abril de 2013 (SOCIAL MERCOSUL, 2013).
Mesmo havendo diferenças, já que o MERCOSUL é um tratado eminentemente
comercial, o TCA pode ser visto como mais um fator de união entre os países latinoamericanos. Com uma boa dose de otimismo podemos pensar numa reestrutura dos
Estados amazônicos, como por exemplo, dentro da perspectiva do estado constitucional
cooperativo (HARBËLE, 2007, p.12).
Segundo Harbële, a estrutura do estado constitucional é a garantida pela
democracia pluralista, por direitos fundamentais, por elementos da divisão dos poderes
que devem ser ampliados no âmbito da sociedade e por um poder judiciário
independentes. O Estado cooperativo encontra sua identidade também no Direito
Internacional, no entrelaçamento das relações internacionais e supranacionais, na
percepção da cooperação e responsabilidade internacional bem como no campo da
solidariedade. Dessa forma ele corresponde à necessidade internacional de políticas de
paz (HARBËLE, 2007, p.15-20).
Ao discorrer sobre o Estado cooperativo, o referido autor utiliza como exemplo
a União Europeia, mas nada impede que seus ideais sejam empregados nos países da
172
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
AméricMI Mtina, porque se o “ideMl” dos Estados é a cooperação, esse pode ser seu
caminho natural. O interessante é que ele assume que sua visão de Estado cooperativo é
“modestamente otimista”, Mo descreQer o papeÕque o mesmo desempenOMMtraQés da
sua concepção ideal, ou seja, um efeito positivo diretamente na realidade, ainda que esta
esteja por vir (HARBËLE, 2007, p.20-22).
Derani (2001, p.75) afirmou que a possível internacionalização do conceito de
meio ambiente devia-se ao fato de que as sociedades contemporâneas estão de certo
modo unificadas culturalmente, sobretudo motivadas pela unidade da produção, o que
nivela a cultura e assim também o modo de relacionar-se com a natureza das sociedades
que integram o mercado mundial. Como anteriormente dito, para que haja a cooperação
deve haver conflito. Se há conflito é porque existe algum tipo de choque de interesses.
As áreas protegidas e toda a sua bagagem de sócio biodiversidade ultrapassam as
fronteiras latino-americanas.
Harbële (2007, p. 13) cita algumas formas de manifestação e vinculação
constitucional que não são difíceis de serem alcançadas. As formas de manifestação são
múltiplas, elas alcançam expressões, que por ele são denominadas de “frouxMs”, que são
refMs
Mções coordenMdas e mMis “densas”, que partem dMconcepção e da reMlizMção de PM
comunitárias. O mais interessante é que Harbële fala claramente que estas formas de
cooperação são soft law, pois não são vinculantes.
Portanto o Estado constitucional tem como característica básica a consciência de
que a cooperação é necessária, seja no plano econômico, social ou humanitário. Dentro
da comunidade europeia, o Estado cooperativo significa uma abdicação parcial da
soberania em favor do poder comunitário.
Considerações Finais
Para que haja uma verdadeira cooperação entre os países da OTCA, dentro da
perspectiva desta investigação, o Tratado de Cooperação Amazônica não pode ser visto
apenas como um tratado regional, restrito a abrangência amazônica e sim respaldado
por uma política mais ampla.
A América Latina vive hoje um período democrático, e mesmo com algumas
exceções, a região vem sendo impulsionada pela integração econômica, o nacionalismo
e a mobilização política das identidades étnicas.
173
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Particularmente não observamos, neste momento, como falar em uma grande
cooperação entre os Estados da OTCA, uma vez que a integração e a cooperação
implicam em uma real convergência política e econômica. A urgência da gestão das
áreas protegidas amazônicas não pode ser trabalhada de forma unilateral, pois que o
tema ultrapassa as fronteiras regionais. Em comum, além de compartilharem a mesma
bacia hidrográfica, existe o fato de usarem o mesmo sistema de classificação de áreas
protegidas, que é o proposto pela União Internacional de Conservação da NaturezaUICN.
Ao priorizar questões de política interna, as formas de integração mais
consistentes no que diz respeito à algum tipo de harmonização ou unificação num
sistema integrado de proteção nas áreas protegidas na bacia amazônica ficam relegadas
a segundo plano.
O Brasil pode e deve oferecer coordenação numa ação coletiva dos países sulamericanos nas arenas multilaterais, globais e regionais e disponibilizar-se como
mediador de eventuais situações de conflito dentro dos países do TCA e a partir daí
construir instituições regionais fortes com soberanias compartilhadas em paralelo das
instituições democráticas.
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176
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA TRANSFRONTEIRIÇA E O DIREITO
INTERNACIONAL AMBIENTAL
THE TRANSBOUNDARY AIR POLLUTION AND THE INTERNATIONAL
ENVIRONMENTAL LAW
ADRIANO DA SILVA FELIX1
RESUMO
Este artigo trata, sob a perspectiva do direito internacional ambiental, da poluição do ar que
ultrapassa fronteiras estatais, a denominada poluição atmosférica transfronteiriça. O trabalho
apresenta descrição das características fáticas da poluição atmosférica, traçando um breve
histórico sobre a evolução do tema para o próprio direito internacional do meio ambiente.
Faz-se proposta de uma teoria geral de proteção do sistema atmosférico, discutindo-se a
natureza jurídica da atmosfera, seu aspecto multidimensional para o direito internacional e os
fundamentos principiológicos de sua proteção. Também se faz uma classificação da poluição
atmosférica transfronteiriça para, em seguida, expor-se as fontes jurídicas que tratam da
matéria.
Palavras-chave: Poluição atmosférica transfronteiriça; fundamentos; fontes jurídicas.
ABSTRACT
This article treats, from the perspective of international environmental law, about the air
pollution which exceeds state borders, the so-called transboundary air pollution. The paper
presents factual description of the characteristics of air pollution, tracing a brief history on the
evolution of the theme for the international environment law. It is proposed a general theory
of atmospheric protection system, discussing the legal nature of the atmosphere, its
multidimensional aspect to international law and the foundations of its principles of
protection. It also makes a classification of transboundary air pollution and, to the end,
exposes the legal sources dealing with these matter.
Keywords: transboundary air pollution; fundamentals; legal sources.
INTRODUÇÃO
O ar é precioso para o homem vermelho, porque todas as criaturas
respiram em comum - os animais, as árvores, o homem.
O homem branco parece não perceber o ar que respira. Como um
moribundo em prolongada agonia, ele é insensível ao ar fétido. Mas se te
vendermos nossa terra, terás de te lembrar que o ar é precioso para nós, que
o ar reparte seu espírito com toda a vida que ele sustenta. O vento que deu ao
nosso bisavô o seu primeiro sopro de vida, também recebe o seu último
suspiro. E se te vendermos nossa terra, deverás mantê-la reservada, feita
1
Mestrando em Direito Agroambiental junto à Universidade Federal de Mato Grosso. Mestre em Educação
pela Universidade Federal de Mato Grosso. Professor de Direito e Coordenador do Núcleo de Práticas Jurídicas
do Centro Universitário de Várzea Grande. Advogado. Email: [email protected].
177
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
santuário, como um lugar em que o próprio homem branco possa ir saborear
o vento, adoçado com a fragrância das flores campestres.2
A poluição atmosférica, desde a década de quarenta do século XX, tem sido
preocupação em destaque para o direito internacional, dando origem a algumas das mais
importantes disputas internacionais (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 505). O
tema, na contemporaneidade, faz parte da vasta disciplina denominada Direito Internacional
Ambiental, a qual, por sua vez, constitui, juntamente com os Direitos Humanos, um dos
principais temas do direito internacional público contemporâneo (MAZZUOLI, 2012a, p.
990).
Antes de adentrarmos, alguns parágrafos adiante deste introito, no objeto deste
estudo, preferimos sistematizar o assunto descrevendo, inicialmente, o meio que, no tocante à
poluição em análise, ao mesmo tempo a dispersa e é por ela atingido. Trata-se da atmosfera,
fina camada de gases que circunda a superfície de nosso planeta, a qual possibilita o suporte
da vida pela presença de certos elementos químicos essenciais e pela manutenção da
temperatura média do globo em um nível adequado (ROBBINS, 2007, p. 80-81), além de
proteger a Terra da intensa e nociva radiação solar (DESONIE, 2007, p. 3-10).
A atmosfera é um complexo sistema composto de uma combinação de gases, tais
como o nitrogênio e o oxigênio, bem como partículas, como poeira, gotículas de água e
cristais de gelo (BORRERO, 2008, p. 282), e é impedida de escapar para o espaço pela força
da gravidade (ROBBINS, 2007, p. 81). Suas propriedades, a exemplo da temperatura, pressão
do ar e umidade, determinam as condições de tempo e clima do nosso planeta (BORRERO,
2008, p. 280). A composição e forma atuais dessa estrutura vital que encobre a Terra foram
alcançadas por processos químicos complexos, aproximadamente, há mais de quatrocentos
milhões de anos atrás (BARRY; CHORLEY, 2003, p. 1).
Ocorre que, por volta do século dezoito (POLLOCK, 2005, p. 60), a humanidade
passou a explorar, mais intensamente, a vastidão do delicado e complexo sistema atmosférico
de maneira nociva, usando-o como repositório de resíduos gasosos produzidos
abundantemente pela nova sociedade industrial (DESONIE, 2007, p. 11), especialmente em
decorrência da queima de combustíveis fósseis, de florestas e pela emissão de substâncias
2
Trecho do discurso pronunciado pelo Cacique Seattle, em 1854, em resposta à proposta do Presidente dos
Estados Unidos da América de compra das terras da tribo Duwamish.
Disponível em <
http://www.ufpa.br/permacultura/carta_cacique.htm> Acesso em: 22 Fev. 2013.
178
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
que, ao atingirem a atmosfera, produziam fumaças e névoas tóxicas que pairavam,
inicialmente, sobre grandes polos industriais (POLLOCK, 2005, p. 65) e, posteriormente,
transporiam barreiras atingindo Estados distantes das fontes poluentes, causando certas
reações químicas deletérias (DESONIE, 2007, p. 11) às construções e recursos naturais
(HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 505), bem como danos à saúde pública
(HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 504) e, em âmbito mais global, ocasionando a
degradação da camada de ozônio da estratosfera e, ainda, o acréscimo de gases de efeito
estufa (MILLER; SPOOLMAN, 2009, p. 24) responsáveis pelo aquecimento do planeta.
A poluição da atmosfera terrestre produz múltiplos efeitos destrutivos para além de
suas camadas, já que o ar é essencialmente um ambiente de trânsito: gases e partículas
poluentes permanecem na atmosfera temporariamente e manifestam muitos de seus impactos
apenas após retornarem ao solo; serem absorvidas pelas plantas; atingirem águas marinhas,
lagos e rios (KISS; SHELTON, 2004, p. 555), sem olvidar a recente constatação científica
sobre o já mencionado aumento da concentração de gases de efeito estufa por ações
antropogênicas (MOLLES, 2006, p. 245). Ademais, os poluentes da atmosfera, comparados
com os poluentes diretamente inseridos nos cursos d’água ou nos ambientes marinhos,
movem-se mais rapidamente e cobrem grandes distâncias (KISS; SHELTON, 2004, p. 555).
Este trabalho circunscreve-se aos aspectos transfronteiriços, bilaterais e regionais, da
poluição atmosférica, sendo que o âmbito que aqui nomeamos de dimensão global da
atmosfera, a abarcar os problemas da mudança climática e da degradação da camada de
ozônio, não será esmiuçado neste texto. Também não trataremos da temática nuclear, por
entendermos abranger matéria mais específica do direito internacional, já que se insere na
seara do desarmamento e segurança coletiva internacionais (MAZZUOLI, 2013, p. 299-345).
Ocupar-nos-emos basicamente da natureza jurídica da atmosfera, conforme a
previsão normativa internacional, bem como trataremos dos fundamentos principiológicos da
proteção internacional do sistema atmosférico em face da poluição em exame e, em
sequência. Em sequência, apresentaremos a as características e classificação da poluição
atmosférica transfronteiriça, consoante o tratamento do tema nas fontes do direito
internacional ambiental, em duas dimensões: a poluição atmosférica transfronteiriça de curto
alcance e a de longo alcance.
Por fim, dedicar-nos-emos ao estudo de casos emblemáticos, para o direito
internacional, a envolver a poluição transfronteiriça, adentrando a análise das fontes jurídicas
179
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
da temática. A partir desta abordagem fática, dirigiremos nossa atenção para a análise dos
tratados internacionais sobre poluição atmosférica transfronteiriça, de curto e de longo
alcance, dos Estados Unidos da América, Canadá e Europa.
Assim é que concluímos essa introdução destacando os esclarecimentos da Comissão
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, apresentados pelo Relatório
Brundtland, de 1987, sobre os impactos do desenvolvimento na qualidade do ar, já que este,
conforme o Relatório, antes era considerado um bem gratuito, de livre fruição, mas deve ser
considerado, em verdade, um recurso natural e, portanto: “O desenvolvimento sustentável
demanda que os impactos adversos na qualidade do ar [...] sejam minimizados de modo a
sustentar a integridade global do ecossistema.” (ONU, 1987a, p. 38, tradução nossa).
1 A POLUIÇÃO DO AR E A PROTEÇÃO DA ATMOSFERA
Conforme a descrição da geóloga Dana Desonie:
Os poluentes do ar são substâncias encontradas em quantidades não naturais
na atmosfera ou em uma região da atmosfera à qual eles não pertencem, ou
substâncias que são produzidas pelo homem e que não integram, de maneira
natural, a composição da atmosfera terrestre. (DESONIE, 2007, p. 3,
tradução nossa).
Nem todos os poluentes do ar resultam de atividades humanas (STAPLETON, 2004,
p. 32). Sob este critério, podemos classificar a poluição do ar em poluição atmosférica
natural, oriunda de fontes naturais, tais como o dióxido de enxofre produzido por atividades
vulcânicas, e em poluição atmosférica antropogênica, sendo esta a resultante de atividades
humanas, a exemplo do dióxido de enxofre produzido pela queima de combustíveis fósseis
(STAPLETON, 2004, p. 32).
Historicamente, a poluição atmosférica antropogênica teve início com a evolução
tecnológica e cultural do gênero Homo (BORSOS, 2003, p. 5). Há milhares de anos atrás,
quando nossos ancestrais aprenderam a produzir fogo, a fumaça decorrente deste,
provavelmente, foi a primeira forma de poluição antropogênica a atingir a atmosfera
(BORSOS, 2003, p. 5).
180
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Algumas paredes de cavernas habitadas por ancestrais da raça humana, há milhares
de anos atrás, revelam espessas camadas de fuligem sugerindo o uso do fogo nestes ambientes
internos, provavelmente para cozinhar alimentos, aquecer o ambiente e até mesmo servir
como repelente de insetos, fazendo-se supor, desta feita, que tal contaminação do ar, já àquela
época, dificultava a respiração dos homens das cavernas e provavelmente irritava seus olhos
(BORSOS, 2003, p. 5).
De acordo com Guido Soares, o conceito legal de poluição, para o direito
internacional do meio ambiente, foi apresentado pela primeira vez, em texto escrito, na
Recomendação do Conselho da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento
Econômico), em 14 de novembro de 1974, e consistiria na:
[...] introdução pelo homem, direta ou indiretamente, de substâncias ou de
energia no meio ambiente, que causem conseqüências prejudiciais, de modo
a colocar em perigo a saúde humana, prejudicar recursos biológicos ou
sistemas ecológicos, atentar contra atividades recreativas (agréments) ou
prejudicar outras utilizações legítimas do meio ambiente. (SOARES, 2001,
p. 128).
Delimitando a questão, citamos a alínea “a” do artigo 1º da Convenção de Genebra
sobre Poluição Atmosférica Transfronteiriça de Longo Alcance, a qual descreve que poluição
do ar consiste:
[...] na introdução pelo homem, direta ou indiretamente, de substâncias ou
energias no ar resultando em efeitos deletérios capazes de por em perigo a
saúde humana, prejudicar recursos vivos e ecossistemas, a propriedade
material e prejudicar ou interferir com atividades recreativas e outras formas
legítimas de uso do meio ambiente, e os “poluentes do ar” devem ser
interpretados em conformidade. (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011b,
p. 74, tradução nossa).
A partir destas explanações, apresentaremos, a seguir, a proposta de sistematização
de uma teoria geral da proteção da atmosfera no direito internacional ambiental.
181
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
2 TEORIA GERAL DA PROTEÇÃO
INTERNACIONAL AMBIENTAL
DA
ATMOSFERA
NO
DIREITO
Na seara do direito internacional ambiental, sobreleva destacar que os danos
ambientais causados pela poluição atmosférica fomentaram, a partir de 1979, a criação de
considerável conjunto de fontes jurídicas (SANDS, 2007, p. 317), atualmente abrangendo
questões como a poluição transfronteiriça por dióxido de enxofre, óxidos de nitrogênio e
compostos orgânicos voláteis; além de questões a ultrapassarem os aspectos transfronteiriços
dessa poluição, ingressando-se na esfera dos danos globais concernentes à busca internacional
pela proteção da camada de ozônio e pela prevenção das mudanças climáticas (SANDS, 2007,
p. 317) causadas pelo aquecimento global, apesar de, na prática, os instrumentos jurídicos
internacionais desta última ainda deixarem a desejar em termos de eficácia (BIRNIE;
BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 342).
A pretensão de se proteger a atmosfera por tais fontes jurídicas, como se verá, faz
parte da própria gênese do direito internacional ambiental ao modo de ramo cientificamente
autônomo e teve como grande influência o avanço do conhecimento científico a respeito da
poluição do ar, acima já destacado (BODANSKY, 2011, p. 19).
Um dos desafios ao instrumental normativo do direito internacional é abranger, em
proteção, as várias dimensões que compõem a complexa estrutura da atmosfera, enfrentandose, nesta matéria, a difícil tarefa de caracterização da sua natureza jurídica a fim de se obter
amparo mais ajustado às peculiaridades fáticas do sistema atmosférico.
Por conseguinte, a seguir procederemos à análise mais detida de tal problemática.
2.1 A natureza jurídica da atmosfera e as suas quatro dimensões de proteção
Nesta vereda, a primeira análise a ser feita é se a atmosfera, para o direito
internacional, deveria ser equiparada ao espaço aéreo. Em 1919, a Convenção de Paris foi
produzida para tratar, internacionalmente, do espaço aéreo, na qual se adotou a tese da
soberania completa e exclusiva de cada Estado sobre o espaço atmosférico acima de seu
território (MAZZUOLI, 2012, p. 811-812). Ocorre que o objeto dessa Convenção era regular
a navegação aérea, não tratando de aspectos a envolver a poluição atmosférica. A Convenção
182
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
de Chicago de 1944 manteve a tese da soberania completa e exclusiva do Estado (MELLO,
2004, p. 1310), também nada tratando sobre poluição atmosférica.
Ocorre que não poderia a atmosfera ser equiparada como sinonímia de espaço aéreo,
este uma simples dimensão espacial sujeita à soberania de determinado Estado, pois consiste a
atmosfera numa flutuante e dinâmica massa de ar que ultrapassa fronteiras legais (BIRNIE;
BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 337).
A atmosfera também não poderia ser juridicamente tratada como um bem comum ou
espaço internacional comum (SOARES, 2001, p. 99), o qual estaria além da jurisdição de
qualquer Estado, comparável, neste sentido, ao alto mar. A percepção de que a poluição do ar
acaba por causar, em menor ou maior escala, danos ambientais dentro e fora da jurisdição dos
Estados possibilitou uma evolução ao tratamento do tema.
Os efeitos nocivos decorrentes do avanço da industrialização acabaram por
demonstrar que a poluição do ar pode atingir recursos naturais atmosféricos compartilhados
por mais de um Estado, denominados bacias atmosféricas, repercutindo em danos bilaterais
ou regionais para além do Estado de origem da fonte poluente, indicando a necessidade de
proteção jurídica mais adequada ao tema, ultrapassando o direito interno de cada Estado
soberano (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 338). Neste contexto, enfim surgiram
fontes internacionais, inicialmente bilaterais e posteriormente regionais, a cuidarem do tema
denominado poluição atmosférica transfronteiriça (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 145).
Obviamente, apesar de não ser objeto deste trabalho, a poluição do ar não cria apenas
danos aos ambientes locais ou regionais, mas também danos globais ao meio ambiente
(DESONIE, 2007, p. 12).
As descobertas científicas revelaram danos ambientais mais
abrangentes, muito além de aspectos meramente transfronteiriços e que atingiriam toda a
humanidade: a destruição da camada de ozônio e o aquecimento global causados,
principalmente, pela poluição atmosférica antropogênica (GURUSWAMY, 2012, p. 205/265).
Ainda em relação à natureza jurídica da atmosfera para o direito internacional do
meio ambiente, também não seria adequado classificá-la como um patrimônio comum da
humanidade, mesmo que vista sob a dimensão global acima levantada, pois tal terminologia
estaria mais relacionada a recursos minerais dos fundos marinhos e ao espaço sideral, cujos
status legais no direito internacional permanecem controversos (BIRNIE; BOYLE;
REDGWELL, 2009, p. 338). Neste ponto, é de se ressaltar, inclusive, que o uso da expressão
183
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
patrimônio comum da humanidade não foi empregado na Convenção de Viena, de 1985, de
Proteção da Camada de Ozônio, ou na Convenção Sobre Mudanças Climáticas de 1992
(BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 338).
A alternativa mais consentânea em relação às peculiaridades de tais problemas de
dimensão global seria tratar a atmosfera ao modo de unidade global, com o status legal de
preocupação comum da humanidade (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 459/508),
ou, como defendido por Guido Soares, espaço ambiental internacional (SOARES, 2001, p.
99). Segundo Guido Soares, os espaços ambientais internacionais seriam:
[...] aqueles que não têm referencial necessário aos limites do Estado, mas
que se definem em função de normas ambientais internacionais, tais como o
habitat de animais protegidos, o clima, o ozônio que envolve a atmosfera
terrestre e outros fenômenos tipificados pela norma jurídica internacional.
(SOARES, 2001, p. 99).
Todavia, destacamos que as fontes internacionais que separadamente tratam do
problema não se excluem ou se sobrelevam umas perante as outras, mas se completam
multidimensionalmente, seja referindo-se à eliminação, diminuição, mitigação dos danos,
prevenção e precaução da poluição atmosférica urbana nas cidades; da poluição atmosférica
bilateral entre dois Estados; da poluição atmosférica regional entre vários Estados; e da
poluição atmosférica cujos efeitos repercutem globalmente.
Destarte, preferimos considerar, juridicamente, a atmosfera como preocupação
comum da humanidade, mas não restringindo tal natureza jurídica apenas à dimensão global
de proteção (normas jurídicas sobre proteção da camada de ozônio e sobre o problema do
aquecimento global), mas percebendo a multidimensionalidade de sua proteção jurídica, a
qual abrange também a dimensão local (v.g. as normas jurídicas que tratam do problema das
poluições urbanas nas cidades); a bilateral (as normas jurídicas que tratam da poluição
transfronteiriça entre dois Estados, denominada de curto alcance ou curta distância) e a
regional (as normas jurídicas que tratam da poluição transfronteiriça entre mais de dois
Estados, denominada de longo alcance ou longa distância).
Em apoio à tese da natureza jurídica da atmosfera como preocupação comum da
humanidade, o preâmbulo da Convenção Quadro das Nações Unidas Sobre Mudança do
Clima, de 1992, caminhou neste sentido, apesar de ter se restringido aos aspectos climáticos
184
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
da proteção atmosférica: “[...] a mudança do clima da Terra e seus efeitos negativos são uma
preocupação comum da humanidade [...]” (MAZZUOLI, 2013, p. 1163).
Neste ponto, em consonância com o aspecto multidimensional da proteção da
atmosfera, estabelece o item 9.1 do Capítulo 09, intitulado “Proteção da Atmosfera”, da
Agenda 21: “A proteção da atmosfera é um empreendimento amplo e multidimensional, que
envolve vários setores da atividade econômica.” (ONU, 1992).
De acordo com Alexandre Kiss e Dinah Shelton, o capítulo nove da Agenda 21
tratou de três principais preocupações internacionais pertinentes à atmosfera: poluição
transfronteiriça, proteção da camada de ozônio e mudança climática (KISS; SHELTON, 2004,
p. 556).
No entanto, em coerência com a sistematização da proteção atmosférica em quatro
dimensões, conforme defendemos, acrescentamos que a Agenda 21 também incluiu a
dimensão local de proteção da atmosfera, qual seja, o problema da poluição urbana industrial
nas cidades, tratada em seu Capítulo seis, intitulado “Proteção e promoção das condições de
saúde humana” (ONU, 1992).
Do mesmo modo, o próprio Capítulo 09 da Agenda 21, no item 9.7, ao cuidar do
aperfeiçoamento da base científica para tomada de decisões a respeito da proteção da
atmosfera, também acrescentou a dimensão local, além de enfatizar sua interligação para com
as outras esferas de proteção, quando enuncia que o objetivo básico do referido
aperfeiçoamento é “[...] melhorar a compreensão dos processos que afetam a atmosfera da
Terra em escala mundial, regional e local e são afetados por ela [...]”. (ONU, 1992).
Entretanto, em decorrência da delimitação científica aqui efetuada, o cerne desta
pesquisa direciona-se para a descrição das dimensões bilaterais e regionais de proteção
jurídica da atmosfera, as quais se referem ao tema da poluição atmosférica transfronteiriça.
Mas antes de adentrarmos nesta análise, apresentaremos, em sequência, os
fundamentos
principiológicos
de
proteção
da
atmosfera,
considerando-a
ainda
multidimensionalmente, em suas quatro dimensões.
185
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
2.2 Princípios internacionais de proteção jurídica da atmosfera
Optamos por sistematizar em ordem cronológica os princípios em exame.
Inicialmente, analisaremos os fundamentos principiológicos de proteção da atmosfera
extraídos da Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, de 1972. Esta
Declaração
No Princípio nº 2 dessa Declaração, o ar é apontado, entre outros, como um recurso
natural que deve ser preservado em benefício das atuais e futuras gerações, “[...] mediante um
cuidadoso planejamento ou administração adequada.” (MAZZUOLI, 2013, p. 1138).
E o Princípio nº 6 da Declaração de Estocolmo preceitua:
Deve-se por fim à descarga de substâncias tóxicas ou de outras matérias e à
liberação de calor, em quantidade ou concentrações tais que não possam ser
neutralizadas pelo meio ambiente de modo a evitarem-se danos graves e
irreparáveis aos ecossistemas. Deve ser apoiada a justa luta de todos os
povos contra a poluição. (MAZZUOLI, 2013, p. 1139).
Por tratar da poluição de maneira geral, obviamente a proteção da atmosfera inserese no referido postulado, inclusive a questão das mudanças climáticas decorrentes do
aquecimento global, propalada justamente pela liberação de calor, em efeito estufa, no sistema
atmosférico, encaixando-se, portanto, na proteção intentada pelo enunciado do Princípio
supracitado (MILLER; SPOOMAN, 2009, p. 94).
O princípio nº 21 da Declaração de Estocolmo, mais precisamente na sua última
parte, dispõe:
Os Estados têm, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e os
princípios do direito internacional, [...] a responsabilidade de garantir que as
atividades produzidas dentro de sua jurisdição ou controle não causem danos
ao meio ambiente de outros Estados [...]. (HUNTER; SALZMAN;
ZAELKE, 2011b, p. 24, tradução nossa).
Outra fonte internacional que fez menção principiológica à proteção da atmosfera foi
a Carta Mundial pela Natureza (KISS; SHELTON, 2004, p. 94), de 1982, formalmente
apresentada em anexo à Resolução nº 37/7 da Assembleia Geral da ONU, na qual seu Quarto
Princípio Geral de Conservação dispôs:
186
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
[...] os recursos atmosféricos utilizados pelo homem devem ser
administrados de forma a se alcançar e manter-se uma produtividade
sustentável ideal, mas não de tal maneira que possa pôr em perigo a
integridade de outros ecossistemas e espécies com as quais coexistem.
(ONU, 1982, tradução nossa).
Em 1992, sobreveio a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento (MAZZUOLI, 2013, p. 1141). O disposto suprarreferido do Princípio nº 21
da Declaração de Estocolmo, de 1972, tem previsão muito semelhante na segunda parte do
enunciado do Princípio nº 2 da Declaração do Rio (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a,
p. 29):
Os Estados, de acordo com a Carta das Nações Unidas e com os princípios
do direito internacional, têm [...] a responsabilidade de assegurar que
atividades sob sua jurisdição ou seu controle não causem danos ao meio
ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição
nacional. (MAZZUOLI, 2013, p. 1141).
O Princípio nº 13 da Declaração do Rio enunciou que:
Os Estados irão desenvolver legislação nacional relativa à responsabilidade e
à indenização das vítimas de poluição e de outros danos ambientais. Os
Estados irão também cooperar, de maneira expedita e mais determinada, no
desenvolvimento do direito internacional no que se refere à responsabilidade
e à indenização por efeitos adversos dos danos ambientais causados, em
áreas fora de sua jurisdição, por atividades dentro de sua jurisdição ou sob
seu controle. (MAZZUOLI, 2013, p. 1142-1143, grifo nosso).
Como percebemos, o Princípio nº 21 da Declaração de Estocolmo, de 1972, e os
Princípios nº 02 e 13 da Declaração do Rio, de 1992, reconheceram a factibilidade da
ocorrência de danos ambientais transfronteiriços, o que serviu também como suporte para a
criação de tratados internacionais, específicos, de proteção às dimensões bilaterais, regionais e
globais da atmosfera.
Em relação à específica proteção contra os efeitos negativos da mudança climática, a
Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, de 1992, teve como
objetivo final “[...] alcançar [...] a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na
187
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
atmosfera num nível que impeça uma interferência antrópica perigosa no sistema climático.”
(MAZZUOLI, 2013, p. 1166).
Em 1992, o Capítulo 9 da Agenda 21 apresentou, ao modo de recomendação, quatro
áreas de programas, em relação à proteção da atmosfera: consideração das incertezas:
aperfeiçoamento da base científica para a tomada de decisões; promoção do desenvolvimento
sustentável; prevenção da destruição do ozônio estratosférico; poluição atmosférica
transfronteiriça (ONU, 1992).
Para o aperfeiçoamento da base científica para a tomada de decisões a respeito da
proteção da atmosfera, a Agenda 21 recomendou, sobretudo, que os Governos, “[...] com a
cooperação dos organismos competentes das Nações Unidas e das organizações
intergovernamentais e não-governamentais, conforme apropriado, juntamente com o setor
privado [...]” (ONU, 1992), promovessem pesquisas, cooperação e capacitação científica para
a compreensão dos processos que afetam a atmosfera e os efeitos desta afetação nos
ecossistemas, na saúde humana, em setores econômicos e na sociedade; para a detecção e
identificação de poluentes atmosféricos; dos padrões de mudanças no clima e prevenção
destas mudanças e das flutuações atmosféricas, bem como para avaliar os impactos
ambientais e socioeconômicos decorrentes destas alterações e oscilações na atmosfera (ONU,
1992).
Em relação à promoção do desenvolvimento sustentável em busca da proteção da
atmosfera, a Agenda 21 especialmente recomenda, em síntese, que: “Todas as fontes de
energia deverão ser usadas de maneira a respeitar a atmosfera, a saúde humana e o meio
ambiente como um todo.” (ONU, 1992).
A respeito da prevenção da destruição do ozônio estratosférico, a Agenda 21
recomenda, em resumo, que os Governos ratifiquem os tratados internacionais sobre proteção
da camada de ozônio, além de buscarem reduzir e substituir o uso do CFC (compostos
clorofluorcarbonados) e outras substâncias que também destroem a referida camada
atmosférica (ONU, 1992).
E sobre a poluição atmosférica transfronteiriça, a Agenda 21 recomendou, em
síntese, que os Governos fortaleçam os acordos internacionais regionais para o controle deste
tipo de poluição, além de cooperarem principalmente com os países em desenvolvimento para
188
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
que estes possam adquirir o auxílio científico e tecnológico necessário para o controle da
poluição atmosférica transfronteiriça (ONU, 1992); também deverão os Governos:
[...] Estabelecer ou fortalecer sistemas de pronto alerta e mecanismos de
reação à poluição atmosférica transfronteiriça decorrente de acidentes
industriais e desastres naturais e da destruição deliberada e/ou acidental dos
recursos naturais;
(c) Facilitar as oportunidades de treinamento e o intercâmbio de dados,
informações e experiências nacionais e/ou regionais;
(d) Cooperar em bases regionais, multilaterais e bilaterais para avaliar a
poluição atmosférica transfronteiriça, e elaborar e implementar programas
que identifiquem ações específicas para reduzir as emissões atmosféricas e
fazer frente a seus efeitos ambientais, econômicos, sociais e outros. (ONU,
1992).
Importante ressaltar o disposto no item 9.2 do Capítulo 9 da Agenda 21:
9.2. Reconhece-se que muitas das questões discutidas neste capítulo também
são objeto de acordos internacionais como a Convenção de Viena para a
Proteção da Camada de Ozônio, de 1985; o Protocolo de Montreal sobre
Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio, de 1987, em sua forma
emendada; a Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima, de 1992; e outros
instrumentos internacionais, inclusive regionais. No caso das atividades
cobertas por tais acordos, fica entendido que as recomendações contidas
neste capítulo não obrigam qualquer Governo a tomar medidas que superem
o disposto naqueles instrumentos legais. Não obstante, no que diz respeito a
este capítulo, os Governos estão livres para aplicar medidas adicionais
compatíveis com aqueles instrumentos legais. (ONU, 1992).
No ano de 2000, a Carta da Terra elencou, no Princípio da Justiça Econômica e
Social, a garantia do direito ao ar puro, dentre outras, como elemento para a erradicão da
pobreza, esta vista como um imperativo ético, social e ambiental (EARTH CHARTER
COMMISSION, 2000).
No que diz respeito às fontes consuetudinárias do direito internacional, a doutrina
costuma citar, mais especificamente para a temática da poluição atmosférica transfronteiriça,
o princípio de que nenhum Estado tem o direito de usar ou permitir o uso de seu território
(KISS; SHELTON, 2004, p. 562) de tal maneira que venha a causar danos ao território de
outro Estado (SOARES, 2001, p. 215), norma costumeira internacional reconhecida na
decisão arbitral final do caso Trail (KISS; SHELTON, 2004, p. 558).
189
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Assim sendo, após a proposta da sistematização de uma teoria geral da proteção
atmosférica, passaremos a análise da poluição atmosférica transfronteiriça, dimensão de
proteção para a qual delimitamos nosso estudo.
3 A POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA ALÉM DAS FRONTEIRAS
Consoante já referido acima, os poluentes do ar podem viajar por longas distâncias
em consequência da ação dos ventos e da baixa densidade da atmosfera comparada, por
exemplo, com os sistemas hídricos (KISS; SHELTON, 2004, p. 555). Desta maneira, a
poluição do ar, por repercutir além dos limites territoriais da fonte poluidora, atraiu a atenção
da sociedade internacional proporcionando a criação de um corpo específico de normas
internacionais ambientais.
Bacias atmosféricas não obedecem às fronteiras políticas, por isto a preocupação
internacional no tocante à poluição designada de transfronteiriça (HUNTER; SALZMAN;
ZAELKE, 2011a, p. 505).
Tal espécie de poluição enquadra-se na tipificação de impacto ambiental
transfronteiriço, de acordo com conceito previsto na Convenção sobre Avaliação de Impacto
Ambiental num Contexto Transfronteiriço, de 1991 (SOARES, 2001, p. 214):
[...] ‘impacto transfronteiriço’ significa qualquer impacto, não
exclusivamente de natureza global, dentro de uma área sob a jurisdição de
uma Parte, causado por uma atividade controlada, cuja origem física se
encontra situada totalmente ou em parte dentro da área sob a jurisdição de
outra Parte. (SOARES, 2001, p. 215).
Em continuidade, conforme esclarece Guido Soares:
[...] a poluição transfronteiriça supõe a ação do homem, ao introduzir
elementos prejudiciais (substâncias ou energias, como sons, ruídos, calor,
radiações ionizantes ou não ionizantes, como luminosidade excessiva) aos
bens protegidos pelo Direito Internacional do Meio Ambiente: a saúde
humana, os recursos biológicos ou os sistemas ecológicos (ou seja, as
relações entre os seres vivos e seu ecossistema), os lugares belos ou
190
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
horrendos (mas que constituem atrativos ao homem) e, ainda, [...] “outras
utilizações legítimas do meio ambiente”. (SOARES, 2001, p. 215).
Destacam-se entre os principais poluentes transfronteiriços da atmosfera as partículas
em suspensão, os óxidos de nitrogênio, o dióxido de enxofre, os compostos orgânicos voláteis
e os poluentes orgânicos persistentes (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 506/507).
3.1 Classificação da poluição atmosférica transfronteiriça
De acordo com a dimensão do dano ambiental, a poluição transfronteiriça
atmosférica pode ser de curta ou de longa distância, conforme atinja, respectivamente,
ambientes localizados próximos ou distantes de fronteiras internacionais, mas sempre a
envolver mais de um Estado além daquele onde se localiza a fonte poluidora, incentivando a
produção, por uma escolha política internacional, de decisões arbitrais internacionais
bilaterais e ou tratados bilaterais com o propósito de se evitar ou solucionar o problema de
curto alcance; ou, no caso da poluição atmosférica de longo alcance, incentivando a produção
de tratados multilaterais regionais com o objetivo de se evitar ou solucionar o problema sob
uma perspectiva geográfica mais extensa de proteção (SANDS, 2007, p. 323).
A poluição transfronteiriça de curta distância é considerada precursora do próprio
Direito Internacional Ambiental e teve como leading case a sentença arbitral final, de 11-31941, sobre o caso da Fundição Trail, nascendo, desde então, interesses internacionais para
combater uma poluição que desrespeita fronteiras jurídico-políticas entre Estados (SOARES,
2001, p. 211). Muitas disputas internacionais importantes envolveram o tema da poluição
transfronteiriça (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 505).
Além de aludida sentença arbitral, na dimensão bilateral da poluição atmosférica
transfronteiriça de curta distância destaca-se o tratado bilateral denominado Acordo sobre
Qualidade do Ar entre os Estados Unidos da América e Canadá (KISS; SHELTON, 2004, p.
572). Os tratados bilaterais, segundo Valerio Mazzuoli (2011, p. 69), são “[...] aqueles
celebrados apenas entre duas partes contratantes, ou entre vencedores e vencidos.” Por
conseguinte, tal espécie de tratado, não olvidando a relevância de decisões arbitrais
internacionais, como no caso supracitado da Fundição Trail e que será mais a frente
pormenorizado, foi utilizada para tratar da poluição transfronteiriça que circunscreve apenas o
191
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
meio ambiente entre dois países vizinhos e cuja fonte poluidora é mais facilmente
identificável (HUNTER; SALMAN; ZAELKE, 2011a, p. 505).
A respeito da poluição atmosférica de longa distância, o problema da deposição
ácida, especialmente a chuva ácida, a ser adiante explanada, tem sido o foco dos tratados
multilaterais sobre poluição transfronteiriça de longo alcance, apesar do tema também
envolver Estados vizinhos, mas com o diferencial de ser dano a ultrapassar sobremaneira as
regiões de fronteiras das partes afetadas, atingindo grandes extensões territoriais e gerando
enorme dificuldade de identificação individual das fontes ou grupos de fontes emissoras dos
poluentes (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 344).
Vislumbrando tais infortúnios de maior amplitude do que a poluição de curta
distância, alguns Estados se uniram para criar uma convenção que pudesse abranger inúmeras
partes, ao modo de tratado multilateral, por interesse comum considerando a ocorrência de
danos que ultrapassavam o aspecto geográfico de países meramente fronteiriços
(GURUSWAMY, 2012, p. 502), atingindo bacias atmosféricas que permeiam vários Estados,
fenômeno denominado de poluição atmosférica transfronteiriça de longo alcance ou de longa
distância. Nos anos de 1970, os impactos causados pelos poluentes de longo alcance
ganharam mais destaque no cenário internacional, especialmente diante do problema da
deposição ácida causada pelas chuvas, neves e poeiras poluídas por emissões de dióxido de
enxofre e óxidos de nitrogênio, o que propiciou a criação, na Europa, de um tratado
multilateral regional denominado de Convenção de Genebra sobre Poluentes do ar
Transfronteiriços de Longo Alcance, de 1979 (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p.
505).
Os tratados multilaterais “[...] são os tratados celebrados por mais de duas partes, ou
seja, entre três ou mais partes, com base nas suas estipulações recíprocas.” (MAZZUOLI,
2011, p. 70). De antemão destaca-se que o referido tratado multilateral não apenas foi
ratificado por Estados europeus, mas posteriormente os Estados Unidos da América e o
Canadá também aderiram ao instrumento (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 526).
Em atinência à poluição atmosférica transfronteiriça de longa distância, seu conceito
jurídico pode ser extraído da definição inserida no enunciado da alínea “b” do artigo 1º da
Convenção sobre Poluentes do ar Transfronteiriços de Longo Alcance HUNTER;
SALZMAN; ZAELKE, 2011b, p. 74), a qual emprega a terminologia poluição do ar em vez
de poluição atmosférica, o que não impede a proteção deste sistema em nível regional, tendo
192
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
em vista o objetivo do tratado como um todo. Talvez por isto Guido Soares preferiu, na
tradução, utilizar a expressão poluição atmosférica:
A expressão “poluição atmosférica transfronteiriça de longa distância”
designa a poluição atmosférica cuja fonte física se situa total ou parcialmente
numa zona submetida à jurisdição nacional de um Estado e que produz
efeitos danosos numa zona submetida à jurisdição de outro Estado, numa
distância tal que geralmente não é possível distinguir as contribuições de
fontes individuais ou de grupos de fontes de emissão. (SOARES, 2011, p.
214).
Eis uma das diferenças entre a poluição transfronteiriça de curta distância para a
poluição transfronteiriça de longo alcance, conforme o direito internacional: naquela mais
facilmente se identifica a fonte poluidora, já na de longa distância, tendo em vista a extensão
da poluição pelas bacias atmosféricas, há maior dificuldade de identificação da fonte ou grupo
de fontes poluidoras responsáveis (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 505).
4 AS
PRINCIPAIS
FONTES
INTERNACIONAIS
ATMOSFÉRICA TRANSFRONTEIRIÇA
SOBRE
POLUIÇÃO
Partindo-se, como premissa, do art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça,
destacam-se, no âmbito da poluição atmosférica transfronteiriça, três tipos de fontes formais
do Direito Internacional do Meio Ambiente: o costume internacional, a jurisprudência
internacional e os tratados internacionais bilaterais e regionais (MAZZUOLI, 2012, p. 998).
O costume internacional já foi externado no tópico sobre fundamentos
principiológicos sobre a proteção contra a poluição atmosférica, desenvolvido acima, já que,
particularmente no tocante às normas costumeiras internacionais, a decisão arbitral no caso
Trail, a ser abaixo esmiuçada, é exemplo do reconhecimento do direito consuetudinário como
fonte do direito internacional do meio ambiente.
Os tratados internacionais sobre poluição atmosférica transfronteiriça são divididos
em bilaterais ou regionais, conforme a dimensão da poluição atmosférica enfatizada, qual
seja, de curto ou de longo alcance, sendo que os regionais encampam o típico sistema das
convenções-protocolo, compondo-se de uma convenção-quadro, contendo princípios gerais,
além de protocolos e anexos para que estes possam conferir suplementos específicos à
concretização dos preceitos genéricos contidos na mencionada convenção (GURUSWAMY,
2012, p. 8).
193
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Abaixo serão inicialmente analisados, em sequência, casos célebres em importância
internacional para a formação de um sistema de proteção das bacias atmosféricas, em âmbito
bilateral e regional, e que despontam como veementes fontes materiais do direito
internacional do meio ambiente e, no caso da Fundição de Trail, como parte da jurisprudência
internacional sobre poluição atmosférica transfronteiriça, além do já mencionado
reconhecimento de norma costumeira internacional por tribunal arbitral.
4.1 A arbitragem internacional, de 1941, sobre o caso da Fundição Trail
O caso a ser analisado é considerado o primeiro e mais famoso julgamento ambiental
internacional (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 509) produzido por um tribunal
arbitral anunciando o dever de todos os Estados em não causar ou permitir que se cause
poluição transfronteiriça a outros Estados (KISS; SHELTON, 2004, p. 558).
Em 1896 uma fundição de zinco e chumbo (KISS; SHELTON, 2004, p. 558) foi
instalada em Trail, Columbia Britânica, no Canadá, tendo sido posteriormente adquirida, em
1906, pela companhia denominada Consolidado de Mineração e Fundição do Canadá
(VARGAS; CASTAÑEDA, 2010, p. 160), localizada apenas a algumas dezenas de
quilômetros da fronteira com os Estados Unidos (KISS; SHELTON, 2004, p. 558). Esta
companhia fez com que a referida fundição se tornasse uma das maiores e mais bem
equipadas de todo o continente americano, mas as consequências ambientais de tal
empreendimento acabaram por ultrapassar a referida fronteira, atingindo o território
estadunidense (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011, p. 509). Tal poluição transfronteiriça
passou a ocorrer com maior intensidade após 1925 e 1927, quando a citada companhia
instalou duas chaminés na fundição com mais de cento e vinte e quatro metros de altura,
aumentando a produção e, consequentemente, a emissão de poluentes na atmosfera
(HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, p. 509).
Em 1930 a fundição chegou ao ponto de exalar, diariamente, cerca de seiscentas a
setecentas toneladas de dióxido de enxofre no ar (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a,
p. 509). Nuvens poluentes da citada fundição passaram a ultrapassar a fronteira territorial
entre os dois países (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 509), vindo a causar danos
às culturas, pastagens, árvores e à agricultura nos Estados Unidos, principalmente a
produtores de maçã do Estado de Washington (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p.
509). Os prejuízos causados propiciaram a submissão do assunto à Comissão Internacional
Mista dos EUA-Canadá, criada pelo Tratado bilateral de Águas Transfronteiriças de 1909,
entre os mesmos países (SANDS, 2007, p. 318).
A citada Comissão iniciou seus trabalhos em sete de agosto de 1928 (VARGAS;
CASTAÑEDA, 2010, p. 160) e em fevereiro de 1931 apresentou relatório que, por
unanimidade de seus membros, quantificou os prejuízos sofridos pelos Estados Unidos da
América, até janeiro de 1932, no valor de trezentos e cinquenta mil dólares (SANDS, 2007, p.
194
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
318). A Comissão também apresentou recomendações em relação à prevenção de danos após
janeiro de 1932, além do uso de equipamentos para reduzir futuras emissões de dióxido de
enxofre (SANDS, 2007, p. 318). Ocorre que, em fevereiro de 1933 os EUA apresentaram
outra queixa à Comissão denunciando a ocorrência de novos danos ambientais (SANDS,
2007, p. 318). Por conseguinte, em abril de 1935 os dois países assinaram um tratado no qual
o Canadá se comprometeria a pagar aos Estados Unidos a quantia apurada pela Comissão
Mista (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 510), além de submeter a disputa
envolvendo os danos posteriores a janeiro de 1932 perante um tribunal arbitral composto de
três árbitros assistidos por dois cientistas designados, respectivamente, pelos países
signatários (SANDS, 2007, p. 318).
A principal questão que deveria ser resolvida pelo tribunal era a de estabelecer se a
fundição canadense havia ou não causado danos a partir de janeiro de 1932 ao território dos
Estados Unidos da América e, em caso de ser afirmativa, estabelecer uma quantia para a
reparação a este último, assim como determinar as medidas e o regime que a fundição deveria
adotar para evitar a ocorrência de futuros prejuízos (VARGAS; CASTAÑEDA, 2010, p. 160161).
O tribunal arbitral apresentou sua decisão final aos governos dos países litigantes em
onze de março de 1941 (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 512), apontando que
estavam provados os danos causados pela fundição e determinou que esta implantasse
medidas de controle ambiental para as suas operações com o objetivo de evitar novos danos, o
que custou à Companhia, na época, cerca de vinte milhões de dólares em gastos com medidas
preventivas (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 514/515).
A doutrina costuma enfatizar que a fundamentação mais importante extraída da
sentença arbitral do caso Trail foi a conclusão explanada pelos árbitros de que, sob os
princípios do direito internacional, nenhum Estado tem o direito de usar ou permitir o uso de
seu território de tal maneira que venha a causar danos por emissão de gases dentro ou para o
território de outros Estados, ou às propriedades de pessoas nestes localizadas, quando o caso
for de graves consequências e o dano puder ser demonstrado por evidências claras e
convincentes (SANDS, 2007, p. 318).
Em vista disto, a sentença do tribunal arbitral que julgou o caso da Fundição Trail é
frequentemente citada para sustentar a tese de que princípios gerais de direito internacional
impõem obrigações aos Estados para prevenir a ocorrência de poluição transfronteiriça
(SANDS, 2007, p. 318). A decisão, destarte, foi um marco para o próprio direito internacional
do meio ambiente, sendo um importante precedente para o desenvolvimento do princípio da
soberania territorial limitada, essencial para a determinação da proteção ambiental
transfronteiriça (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 4).
Infelizmente a fundição canadense continua a causar sérios prejuízos ambientais. Em
1995 a fundição Trail estava inserida na lista dos maiores poluidores da Columbia Britânica e
outra preocupação passou a ser destacada: a emissão de chumbo na atmosfera acima dos
limites legais, a qual foi relacionada com as altas concentrações de chumbo no sangue testado
de crianças que moravam em Trail ou nos seus arredores (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE,
195
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
2011a, p. 515). Apesar dos esforços da fundição para reduzir as emissões tóxicas, a
concentração de chumbo no sangue das crianças da região continua alta e outros impactos são
apontados como decorrentes de sua conduta poluente, tais como permanente perda de níveis
de QI e contaminação nos solos, lagos, rios e poluição sonora (HUNTER; SALZMAN;
ZAELKE, 2011a, p. 515), propiciando a criação, em Trail, de um comitê de saúde e meio
ambiente para acompanhar o problema (THE TRAIL HEALTH & ENVIRONMENT
PROGRAM, 1999).
4.2 A acidificação dos lagos da Escandinávia e os incêndios nas florestas da Indonésia
Mais de oitenta por cento dos lagos europeus se localizam na bela Península da
Escandinávia e são todos de origem glacial (JORGENSEN, 1997, p. 23). As águas da grande
maioria destes lagos têm baixa dureza, o que implica em pouca capacidade de tamponamento
do pH e, portanto, maior suscetibilidade de acidificação por poluentes atmosféricos
acidificantes, tais como o dióxido de enxofre e o óxidos de nitrogênio, que contaminam
corpos d’água por meio de precipitação em chuvas (JORGENSEN, 1997, p. 23). A
combinação destes poluentes com a água presente na atmosfera produz ácido sulfúrico e ácido
nítrico que atingem o meio ambiente ao chegarem à superfície terrestre na forma do fenômeno
denominado deposição ácida, cuja forma mais comumente conhecida é a chuva ácida
(POLLOCK, 2005, p. 17). A deposição ácida causada por chuvas poluídas é formada
principalmente pela emissão de dióxido de enxofre através da queima de combustíveis fósseis
em usinas termelétricas e da fumaça exalada pelas chaminés de fundições de metais, além da
emissão de óxidos de nitrogênio oriunda de outras atividades industriais e de veículos
automotores (GURUSWAMY, 2012, p. 497).
Apesar das chuvas ácidas também terem origem em emissões naturais de gases
ácidos, noventa por cento ou mais das emissões poluentes acidificantes da região do
hemisfério norte são de fontes antropogênicas (JORGENSEN, 1993, p. 11).
As chuvas ácidas provocadas por atividades humanas que vêm degradando a
composição química dos lagos escandinavos são procedentes, principalmente, da poluição
atmosférica advinda de outros países localizados nas áreas mais industrializadas da Europa,
tais como Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo, Alemanha e Inglaterra, especialmente na
região sul desta última, alcançando os ares da Escandinávia devido a direção dominante dos
ventos europeus ser proveniente do sudoeste (JORGENSEN, 1997, p. 23).
A acidificação antropogênica em análise acarreta, nos lagos afetados, maior
concentração de gás carbônico na água, intoxicando peixes, além de afetar o ciclo natural
biológico do fitoplâncton e zooplâncton, essenciais para a cadeia alimentar aquática, que
decai com a acidificação do pH, elevando também o aumento da presença de íons de metais
pesados por serem liberados em maior quantidade em virtude do decréscimo do pH, causando
graves danos à biodiversidade lacustre (JORGENSEN, 1997, p. 24).
196
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Nos anos de 1970 os problemas causados à Escandinávia pelas chuvas ácidas
estavam no centro das discussões ambientais envolvendo a poluição atmosférica
transfronteiriça (KISS; SHELTON, 2004, p. 558). A ligação apontada por cientistas suecos
entre as emissões de enxofre na atmosfera pela Inglaterra e Alemanha e a chuva ácida na
Escandinávia foi um grande impulso para a Conferência de Estocolmo em 1972 e, mais tarde,
em 1979, para a criação da Convenção de Genebra sobre Poluição Atmosférica
Transfronteiriça de Longa Distância (BODANSKY, 2011, p. 19), denominada, por alguns
especialistas, de “Convenção sobre as Chuvas Ácidas” (LYSTER; BRADBOOK, 2006, p.
41).
Outra fatuística ambiental emblemática no cenário internacional ocorreu nos anos de
1997 e 1998 e trata-se dos incêndios das florestas da Indonésia causados por
desflorestamentos através da prática da queimada agravados pela gravidade do período de
seca desencadeado por uma das mais severas ocorrências do fenômeno El Niño já registrada
(GLOVER; JESSUP, 2006, p. 13). As florestas do sudeste da Ásia se desenvolvem sobre
depósitos de solo turfoso que podem atingir mais de doze metros de profundidade, o que
agrava os riscos de incêndios já que a turfa, quando seca, é inflamável e torna difícil o
controle das queimadas (RICKLEFS, 2010, p. 506). Os incêndios do final da década de
noventa foram propalados, predominantemente, por queimadas para o plantio de Palma
cultivada com o intuito de extração de óleo utilizado na culinária, em cosméticos e em
biodiesel para veículos automotores (MILLER JR; SPOOLMAN, 2009, p. 94).
Tais incêndios produziram extensas neblinas de fumaça que poluíram não só a
atmosfera que permeiava o território da Indonésia, mas atingiram a Malásia, Mianmar,
Singapura e Tailândia (KISS; SHELTON, 2004, p. 571), acarretando sérios problemas à
saúde da população humana destes Estados, além de destruição de propriedades, mortes de
seres humanos causadas pelo fogo e graves impactos na biodiversidade da fauna e flora
indonésias (LEVINE et. al., 1999, p. 10-11).
Em resposta ao problema, a Associação das Nações Asiáticas do Sudeste adotou um
plano de ação regional seguido, em 2002, pelo Acordo Internacional sobre Neblinas Poluentes
Transfronteiriças (KISS; SHELTON, 2004, p. 571). O acordo definiu as neblinas poluentes
como fumaças resultantes de incêndios florestais ou de outras áreas terrestres que causem
efeitos deletérios de tal natureza que venham a por em perigo a saúde humana; a prejudicar
recursos biológicos, ecossistemas e propriedade material; e a prejudicar ou interferir nos usos
recreativos do meio ambiente ou outros usos legítimos (KISS; SHELTON, 2004, p. 571).
O referido acordo internacional foi assinado em dez de junho de 2002, pelos dez
Estados que compõem a Associação das Nações Asiáticas do Sudeste e, conforme o artigo 29
do acordo, este entraria em vigor internacional a partir do sexagésimo dia após a sexta
ratificação por um dos Estados partes, sendo que para os demais Estados remanescentes,
entraria em vigor internacional somente após o sexagésimo dia da ratificação por cada um
deles (ASEAN AGREEMENT ON TRANSBOUNDARY HAZE POLLUTION, 2002).
O aludido acordo internacional entrou em vigor em 23 de novembro de 2003, após a
ratificação dos seis primeiros países membros, nomeadamente: Brunei Darussalam, Malásia,
197
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Mianmar, Cingapura, Tailândia e Vietnã (ASEAN ANNUAL REPORT 2003-2004, Chapter
04). Para se ter noção da importância deste instrumento internacional, o acordo é o primeiro
tratado da Associação das Nações Asiáticas do Sudeste, juridicamente vinculativo, a entrar
em vigor, tendo sido considerado pelas Nações Unidas como um modelo global a tratar de
questões transfronteiriças (ASEAN ANNUAL REPORT 2003-2004, Chapter 04).
O acordo visa mitigar os efeitos nocivos das neblinas poluentes transfronteiriças
através da cooperação regional e internacional para a implantação de medidas de precaução e
prevenção com o intuito de evitar os incêndios, bem como intensificar as medidas de
contenção destes quando de sua ocorrência, e, para tanto, criou um órgão auxiliar denominado
Centro de Coordenação sobre Neblinas Poluentes Transfronteiriças da Associação das Nações
Asiáticas do Sudeste (KISS; SHELTON, 2004, p. 571).
4.3
O Tratado sobre Qualidade do Ar entre Canadá e Estados Unidos da América, de
1991
Na América do Norte as maiores ocorrências de deposição ácida por poluição
atmosférica antropogênica concentram-se nos Estados Unidos da América e Canadá, sendo
historicamente antiga a ocorrência de danos transfronteiriços por poluição do ar entre estes
dois países e ainda vigente em pleno século XXI (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a,
p. 521).
A disputa a envolver os citados Estados provém desde os anos de 1930, mas não se
refere apenas aos efeitos causados pela emissão de fumaça tóxica pela Fundição Trail, pois o
problema que passou a ter maior ênfase e que gerou a necessidade da criação de um tratado
bilateral entre os dois países foi a problemática da deposição ácida transfronteiriça de origem
antropogênica, causada pela emissão de dióxido de enxofre e óxidos de nitrogênio na
atmosfera (SANDS, 2007, p. 339-340).
Após o estudo do caso da Fundição Trail, poderia se presumir que o Canadá é o
maior poluidor atmosférico transfronteiriço da região, mas ao contrário, não há país no mundo
que receba tamanha proporção de deposição ácida transfronteiriça tal qual o Canadá recebe
dos Estados Unidos da América, já que pelo menos cinquenta por cento da deposição ácida
que atinge aquele país é proveniente do território estadunidense (HUNTER; SALZMAN;
ZAELKE, 2011a, p. 521).
Contudo, o impacto transfronteiriço causado pelo Canadá aos Estados Unidos da
América também é significativo, já que vinte por cento da deposição ácida que afeta este
último Estado é proveniente do território canadense (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE,
2011a, p. 521).
No decurso dos danos ambientais causados pela poluição atmosférica transfronteiriça
entre os dois Estados, após mais de uma década de negociações mais intensas e proveitosas,
198
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
precedida de um período de insucesso negocial entre os anos de 1970 até início dos anos de
1980 quando os Estados Unidos apenas se predispuseram a estudar mais o problema
(HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 521), os países finalmente assinaram, em 13 de
março de 1991, um Tratado sobre Qualidade do Ar cujo tema principal envolveu a degradação
ambiental pelas chuvas ácidas causadas por impactos ambientais de origem humana
(GURUSWAMY, 2012, p. 509).
A poluição atmosférica que desencadeia a deposição ácida não se circunscreve à
geografia meramente atinente às proximidades de fronteiras, pois é transportada a distâncias
muito maiores, além de gerar difícil possibilidade de identificação individual da fonte ou
grupo de fontes poluentes, sendo apenas identificável o Estado emissor. Portanto, o tratado
bilateral em análise foi instituído com o propósito de controlar a poluição atmosférica
transfronteiriça de longo alcance entre os dois países, especialmente pela limitação das
emissões de dióxido de enxofre e óxidos de nitrogênio através da criação de metas de redução
destes poluentes, acompanhadas por um sistema de monitoramento da qualidade do ar
(SANDS, 2007, p. 339-340).
Importante ressaltar, por serem as grandes precursoras do sucesso no alcance da
negociação entre os dois países, a elaboração e aprovação das emendas de 1990 à Lei do Ar
Puro dos Estados Unidos da América, legislação federal estadunidense cujas emendas
referidas determinaram várias restrições para a obtenção da redução de poluentes do ar,
principalmente os responsáveis pela chuva ácida, o que retirou as dificuldades para a criação
de um tratado sobre poluição transfronteiriça entre os dois países, já que as reduções previstas
neste instrumento internacional entraram em consonância com o prévio compromisso
normativo interno estadunidense (BODANSKY, 2011, p. 11).
Ambas as partes, no transcurso progressivo das metas do Tratado, conseguiram
reduzir significativamente a emissão dos poluentes desencadeadores das chuvas ácidas desde
1991, sendo que, a exemplo de resultados apresentados em 2009, a emissão de dióxido de
enxofre pelos Estados Unidos da América decaiu em mais de 52% em comparação com os
índices de 1991 e, de outro lado, também ocorreu redução em mais de 55% na emissão de
óxidos de nitrogênio em contraste com os níveis de 1991, índices de redução similarmente
atingidos também pelo Canadá (BYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 154).
Em 2010, a Comissão Internacional Mista dos EUA-Canadá apresentou relatório a
respeito do Tratado sobre Qualidade do Ar entre os dois países e constatou que os índices de
redução continuam significativos, pois em 2008 o Canadá conseguiu reduzir em mais de 63%
a emissão anual de dióxido de enxofre em comparação aos níveis de 1980 e os Estados
Unidos, em 2010, conseguiram reduzir a emissão anual do citado poluente, emanado de
termoelétricas, abaixo do limite de oito milhões e noventa e cinco mil toneladas por ano
estabelecido pelo Tratado (GURUSWAMY, 2012, p. 511-512).
199
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
4.4
A Convenção de Genebra sobre Poluentes do Ar Transfronteiriços de longo
alcance, de 1979, e seus protocolos
Consoante já explanado, uma das dimensões do problema da poluição atmosférica
envolve os danos ambientais causados por emissões poluentes de longo alcance, muito além
das áreas geográficas entre fronteiras e, por isto, apresentando grande dificuldade de
individualização das fontes poluidoras, sendo apenas possível apurar, por exemplo, em
estimativas, o percentual anual de produção total dos poluentes de longo alcance emitidos
pelo território de determinado Estado (SANDS, 2007, p. 325-326).
Desde os anos de 1970 o monitoramente europeu das concentrações de dióxido de
enxofre e óxidos de nitrogênio, principais responsáveis pelo fenômeno da deposição ácida
antropogênica, vem ocorrendo, o que possibilitou a obtenção de estimativas a respeito da
emissão de tais poluentes para a maioria dos Estados europeus, indicando, inclusive, quais
destes Estados são os potenciais importadores ou exportadores de poluentes atmosféricos
transfronteiriços de longo alcance (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 525).
Por conseguinte, a necessidade de um tratamento internacional regional ao problema,
evidentemente, surgiu em decorrência da enorme quantidade de Estados europeus a
compartilhar a mesma bacia atmosférica, sujeitando-os, destarte, a maior incidência de danos
causados pelos poluentes de longo alcance disseminados nos ares da Europa (HUNTER;
SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 525).
Nessa vereda, percebendo-se a importância do tratamento jurídico internacional
sobre a poluição atmosférica de longa distância, especialmente os prejuízos decorrentes das
chuvas ácidas, e enfatizando-se o Princípio 21 da Declaração de Estocolmo de 1972, além do
capítulo sobre meio ambiente do Ato Final da Conferência de Segurança e Cooperação
Europeia, de 1975, foi criada a Convenção de Genebra sobre Poluentes do Ar
Transfronteiriços de longo alcance (SANDS, 2007, p. 324-325), em 13 de novembro de 1979,
entrando em vigor internacional em dezesseis de março de 1983 (BEYERLIN; MARAUHN,
2011, p. 149).
Esta Convenção tem como partes não só Estados europeus, mas também os Estados
Unidos da América e o Canadá (GURUSWAMY, 2012, p. 502). A Convenção de Genebra
detém natureza de convenção-quadro ou moldura (MAZZUOLI, 2012, p. 998) e tem como
propósito a prevenção, redução e controle da poluição atmosférica transfronteiriça de longo
alcance oriunda de fontes poluentes novas ou já existentes dos Estados signatários, mas não
contendo previsão de responsabilidade jurídica por danos decorrentes de tal poluição
(BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 344).
Apesar da natureza de convenção-quadro, englobando padrões de conduta mais
genéricos e com pouca força em termos de eficácia jurídica, destaca-se o importante papel
desse tratado para a coordenação e cooperação científica entre as partes, bem como a
institucionalização da prática de constantes consultas e trocas de informações entre os
200
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
membros e, talvez o mais importante, a criação de um programa de cooperação para o
monitoramento e avaliação dos poluentes atmosféricas de longo alcance na Europa
(HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a, p. 526). Ademais, a Convenção foi a base para a
elaboração de protocolos que permitiram, enfim, a obtenção de maior eficácia e
desenvolvimento das diretrizes gerais do tratado (BIRNIE; BOYLE; REDGWELL, 2009, p.
344).
A essência da Convenção de Genebra em termos de objetivos foi estabelecer
compromissos gerais aos Estados partes para, na medida do possível, reduzirem gradualmente
e prevenirem a poluição da atmosfera, apesar de não ter estabelecido estimativas ou prazos
para tais metas (SANDS, 2007, p. 325).
Outro fator relevante que não pode ser ignorado são as definições constantes da
Convenção, as quais foram importantes para a obtenção de consensos internacionais sobre
temas como “poluição do ar” e “poluição transfronteiriça de longo alcance”, além de servirem
de ponto de partida para os protocolos à Convenção de Genebra (SANDS, 2007, p. 325).
Segundo Birnie, Boyle e Redgwell, a Convenção de Genebra seria o único tratado
multilateral regional dedicado a regular e controlar a poluição transfronteiriça (BIRNIE;
BOYLE; REDGWELL, 2009, p. 344). No entanto, não se deve esquecer que, mais
precisamente, não há a exclusividade apontada, pois, de acordo com o já acima mencionado,
em 2002 a Associação das Nações Asiáticas do Sudeste adotou o Acordo Internacional sobre
Neblinas Poluentes Transfronteiriças (KISS; SHELTON, 2004, p. 571), o qual, apesar de
tratar especificamente da prevenção e solução de danos provenientes de neblinas tóxicas
causadas por queimadas, não deixa de ser um instrumento regional de grande importância no
tratamento do tema.
Aspectos significativos que merecem ser destacados são não apenas o fato da
Convenção de 1979 ter sido a primeira a tratar especificamente da poluição atmosférica
transfronteiriça de longo alcance, mas também o fato de ter sido o primeiro tratado sobre meio
ambiente assinado conjuntamente pelo Leste e Oeste, o que, segundo alguns autores, auxiliou
na redução das tensões da Guerra Fria na Europa (HUNTER; SALZMAN; ZAELKE, 2011a,
p. 526).
Por fim, apesar do tratado não exprimir nenhum compromisso mais específico e
cronológico para a gestão da qualidade do ar, as partes signatárias se comprometeram, sob a
necessária cooperação internacional entre ambas especialmente gerenciada por um órgão
executivo (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 150), em desenvolver as melhores políticas e
estratégias para a concretização dos compromissos gerais assumidos, incluindo, para tanto, o
uso da melhor tecnologia disponível e economicamente factível existente (SANDS, 2007, p.
326), de acordo com o disposto nos artigos 2 a 5 da Convenção (BEYERLIN; MARAUHN,
2011, p. 150).
Considerando a generalidade temática da Convenção de Genebra ao modo de
moldura, sua eficaz implementação foi reforçada por Protocolos específicos, sequencialmente
201
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
produzidos a partir de 1984 (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 150) e com prazos e
estimativas a serem atingidas, totalizando oito até o corrente ano de 2012.
O primeiro protocolo, designado Protocolo de Genebra sobre Financiamento de
Longo Prazo para o Programa de Cooperação para Monitoramento e Avaliação da Emissão de
Poluentes Atmosféricos de Longo Alcance na Europa, de 28 de setembro de 1984 e em vigor
desde 28 de janeiro de 1988, fornece condições para o financiamento dos custos de tais
monitoramentos e avaliações, consistindo em contribuições financeiras obrigatórias dos
signatários, suplementadas por contribuições financeiras voluntárias (BEYERLIN;
MARAUHN, 2011, p. 150).
O segundo protocolo, nominado Protocolo de Helsinque sobre Redução da Emissão
de Enxofre ou de seus Fluxos Transfronteiriços em Pelo Menos Trinta Por Cento, de 8 de
julho de 1985 e em vigor desde 2 de setembro de 1987, determinou que as partes aderentes
deste Protocolo deveriam reduzir suas emissões anuais de enxofre em pelo menos trinta por
cento, o mais rapidamente possível e até o final de 1993, usando como base, para o cálculo
das reduções, os níveis de 1980 (SANDS, 2007, p. 327).
O terceiro protocolo, denominado Protocolo de Sofia Concernente ao Controle de
Emissões de Óxidos de Nitrogênio ou de seus Fluxos Transfronteiriços, de 31 de outubro de
1988 e em vigor desde 14 de fevereiro de 1991, cuidou de problema mais difícil de se
resolver, pois a principal fonte antropogênica de óxidos de nitrogênio é o tráfego motorizado
(BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 150).
Por isto, o Protocolo de Sofia estabeleceu um esquema de redução de emissões mais
flexível do que o Protocolo de Helsinque, circunstância claramente perceptível presente em
seu artigo segundo, item um, o qual prescreve que os Estados signatários do novo instrumento
deverão, o mais breve possível e como uma primeira etapa, tomar medidas efetivas de
controle e ou redução de suas emissões nacionais anuais de óxidos nitrosos, ou de seus fluxos
transfronteiriços, aos níveis de emissão de 1987, metas a serem atingidas até pelo menos 31
de dezembro de 1994 (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 150).
O quarto protocolo, produzido em 18 de novembro de 1991 e em vigor desde 29 de
setembro de 1997, designado Protocolo de Genebra sobre o Controle de Emissões de
Compostos Orgânicos Voláteis ou seus Fluxos Transfronteiriços, estabeleceu três opções de
redução destes compostos conforme critérios estipulados no próprio Protocolo, tendo como
meta preponderante a redução de, pelo menos, em trinta por cento a emissão desses poluentes
até 1999 (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 150).
Em 1994 foi produzido o Protocolo de Oslo sobre Futuras Reduções das Emissões de
Enxofre, o qual entrou em vigor em 05 de agosto de 1998 (SANDS, 2007, p. 332). O aludido
Protocolo, diferentemente do Protocolo de Helsinque, explicitamente enfatiza, de maneira
inovadora, a precaução em relação a redução e limitação da poluição atmosférica por enxofre
(BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 151).
202
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O sexto protocolo, produzido em 24 de junho de 1998 e em vigor desde 29 de
dezembro de 2003, nomeado Protocolo de Aarhus sobre Metais Pesados, foi criado com o
objetivo de obter, pelos Estados signatários, a redução de emissões anuais de três metais
pesados particularmente nocivos, quais sejam: chumbo, cádmio e mercúrio emitidos na
atmosfera por fontes industriais e processos de combustão e incineração de resíduos
(BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 152).
Também em 24 de junho de 1998 foi produzido o Protocolo de Aarhus sobre
Poluentes Orgânicos Persistentes, em vigor internacional desde 21 de outubro de 2003, cujo
objeto é a eliminação, restrição e redução das emissões destes poluentes específicos, os quais
foram elencados em uma lista de dezesseis substâncias tóxicas, a exemplo de pesticidas,
contaminantes e produtos químicos industriais (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p. 152-153).
Por fim, o último Protocolo até o momento produzido foi o Protocolo de
Gotemburgo sobre a Eliminação da Acidificação, Eutrofização e do Ozônio Troposférico, de
30 de novembro de 1999 e em vigor internacional desde 17 de maio de 2005, o qual tem como
objetivo o controle e redução da emissão de enxofre, óxidos de nitrogênio, amônia e
compostos orgânicos voláteis (GURUSWAMY, 2012, p. 508-509) por atividades
antropogênicas, sendo tais substâncias apontadas como causadoras de efeitos nocivos à saúde
humana e aos ecossistemas naturais e cujas concentrações na atmosfera deveriam, segundo o
Protocolo, não ultrapassar, até o ano de 2010, certos níveis críticos específicos e, pela
primeira vez dentre todos os Protocolos, exigiu dos fazendeiros que tomassem medidas de
controle em relação à exalação de amônia na atmosfera (BEYERLIN; MARAUHN, 2011, p.
153).
Este último Protocolo é extremamente importante, principalmente por três razões:
primeiramente, é o único Protocolo do regime da Convenção de Genebra sobre Poluentes do
Ar Transfronteiriços de longo alcance que aborda mais de uma natureza de poluente; em
segundo, por incluir padrões para a emissão de combustíveis de fontes móveis e estacionárias;
e, em terceiro, por englobar as atividades agrícolas ao inserir determinações ao setor para o
controle da emissão de amônia (GURUSWAMY, 2012, p. 509).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O meio ambiente, sob o ângulo do direito internacional público, é percebido
enquanto interconexão ecológica que permeia mais de um Estado em termos de causas,
efeitos e relações que estão além de interesses e aspectos meramente locais ou nacionais.
A proteção da atmosfera ingressa neste aspecto e inicia a complexa e ardorosa
discussão internacional sobre a necessidade, dever e responsabilidade quanto à redução de
emissões poluentes enquanto interesse de nações vizinhas, próximas e, por fim, de todo o
planeta.
203
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Despontou deste modo, no cenário internacional, a identificação de certa forma de
poluição do ar que perpassa fronteiras territoriais, merecendo, assim, tratamento diferenciado
e específico a fim de solucionar ou mitigar efeitos que ultrapassam do âmbito nacional de
origem da fonte poluidora: a poluição atmosférica transfronteiriça.
A poluição atmosférica enfocada, não adentrando nos pormenores da dimensão
global a envolver a degradação da camada de ozônio e a mudança climática decorrentes de
ações antropogênicas, foi dividida, neste trabalho, em duas dimensões de análise: a poluição
atmosférica transfronteiriça de curto alcance a poluição atmosférica transfronteiriça de longo
alcance, sendo que preferiu-se abordar a proteção da atmosférica de forma multidimensional,
não optando pela exclusividade da natureza jurídica da atmosfera, já que esta transpõe não só
barreiras jurídico-territoriais, mas faz parte também dos espaços locais e regionais.
Priorizando a conexão do tema com o direito internacional público, fez-se a opção de
apresentar casos representativos e simbólicos sobre a proteção da atmosfera na esfera
internacional e, em sequência, foram comentados os principais aspectos do Tratado sobre
Qualidade do Ar entre Canadá e Estados Unidos da América, de 1991 e da Convenção de
Genebra sobre Poluentes do Ar Transfronteiriços de longo alcance, de 1979, e seus
protocolos, revelando a intrincada estrutura e organização do direito internacional do meio
ambiente na proteção das bacias atmosféricas, tanto bilateralmente quanto em instrumentos
multilaterais regionais.
As bacias atmosféricas da troposfera, vistas como dimensões de uma estrutura
global, são mais sensivelmente e rapidamente afetadas pelas ações antropogênicas, o que as
diferem da dimensão planetária da atmosfera como um todo, cujos efeitos deletérios à
humanidade, em certas circunstâncias, agregam dezenas de anos de acúmulo de poluentes
para ocorrem, mas, não obstante, as consequências desveladas são muito piores, a exemplo do
aquecimento global e da destruição da camada de ozônio.
A compreensão do sistema de proteção transfronteiriça da atmosfera indica o avanço
evolutivo da percepção humana sobre a temática e, também, externa a viabilidade da
utilização de restrições do consumo de energia poluente e da emissão de resíduos tóxicos,
apesar do interesse econômico de desenvolvimento ainda ser, muitas vezes,
contraditoriamente importuno perante os prejuízos a serem suportados pelos que mais
poluem.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA BIODIVERSIDADE E SUAS
ESPECIFICIDADES: DA INTERNACIONALIZAÇÃO A UM DIREITO COMUM DA
HUMANIDADE PELOS INSTRUMENTOS HARD E SOFT LAW.
INTERNATIONAL PROTECTION OF BIODIVERSITY AND SPECIFIC FEATURES:
THE INTERNATIONALIZATION A COMMON LAW OF HUMANITY BY
INSTRUMENT HARD AND SOFT LAW.
Luize Calvi Menegassi Castro1
RESUMO. Considerando a rapidez com que se desenvolvem tecnologias e formas de
extração e utilização dos recursos ambientais, e ainda, diante da fragilidade e da urgência do
direito ambiental, tornou-se imprescindível uma releitura e a construção de uma nova forma
(sustentável) de pensar sobre a efetiva proteção ao meio ambiente. Assim, imerso em uma
nova concepção, e envolto no dever da cooperação entre os Estados, o presente artigo propõe
uma análise à proteção da biodiversidade e as suas especificidades à luz de um diálogo global,
e assim, tanto por meio de medidas proibitivas, cogentes, como de medidas flexíveis e sem
qualquer vinculação jurídica, uma vez que o dever de cooperar e visar o bem comum se
concretizaria com a comunicabilidade e complementariedade entre as normas em busca da
proteção e preservação do meio ambiente, do desenvolvimento sustentável e da equidade
intergeracional rumo a um direito comum da humanidade.
PALAVRAS-CHAVE. Proteção internacional; Biodiversidade; Dever de cooperação;
Diálogo Global; Soft Law; Hard Law; Direito comum da humanidade.
ABSTRACT. Considering how quickly develop technologies and forms of extraction and use
of environmental resources, and yet, given the fragility and urgency of environmental law,
became indispensable rereading and construction of a new form (sustainable) to think about
effective protection of the environment. So immersed in a new design, and wrapped the duty
of cooperation among States, this article proposes an analysis of the protection of biodiversity
and its specifics in light of a global dialogue, and so, both by prohibitive measures, cogent as
flexible measures and without any legal binding, since the duty to cooperate and seek the
common good would be accomplished with the communicability and complementarity
between the rules in pursuit of protection and preservation of the environment, sustainable
development and intergenerational equity towards a common right of humanity.
KEY-WORDS. International protection; Biodiversity; Duty to cooperate; Global Dialogue;
Hard Law; Soft Law; Common humanity.
1
Luize Calvi Menegassi Castro. Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Candido
Mendes (UCAM), Mestranda em Direito Agroambiental pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso
(UFMT), Professora da Universidade de Cuiabá (UNIC), Advogada.
207
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
INTRODUÇÃO
Depreende-se desde a idade média, a implementação de regras com o fito de
“proteção ambiental para assegurar a caça ou as águas”,2 entretanto, tão somente em meados
do século passado, diante das reiteradas agressões e lesões aos direitos humanos, bem como
das suas consequências, vislumbrou-se ser imprescindível uma análise global e integrada das
dificuldades enfrentadas pela sociedade acerca das necessidades de consumo frente ao
crescimento da população, em detrimento dos recursos naturais.
A partir de então, e por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos em
1948, concebeu-se a ideia de “indivisibilidade dos direitos humanos”,3 ou seja, a necessidade
da interpretação integrada dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, como
forma de análise e formulação de rascunho de soluções oriundas de um panorama mais
globalizado, para as dificuldades enfrentadas pela sociedade. “Ideia esta que foi reafirmada
pela Resolução 32/130 de 1977 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas”.4
Com a construção de um panorama macro para a apreciação e entendimento da
problemática no que se referia aos desrespeitos e maus tratos aos direitos humanos mais
básicos, restou assente que a adoção de medidas dentro de determinada fronteira não seriam
capazes de solucionar e elucidar as dificuldades que insistiam em desafiá-las.
Assim, quando a sociedade se voltou para a “gravidade das consequências que
estavam enfrentando e as que ainda estariam por enfrentar”,5 oriundas do desrespeito quando
da utilização dos recursos da biodiversidade, a constatação não foi diferente, isso porque a
situação posta se mostrava límpida: a adoção de medidas pelos países dentro de suas
fronteiras não seriam suficientes para a solução das querelas ambientais.
Tal constatação revelava-se premente e incontroversa, vez que as “consequências das
lesões ambientais ignoram as fronteiras das jurisdições Estatais”,6 não se tratando mais de
problema regionalizado, mas sim de toda a humanidade, oportunidade em que se iniciou um
novo ciclo, um novo momento, e, para a sua completa compreensão é imperioso o
entendimento do princípio da cooperação globalizada de toda a sociedade.
2
BEURIER, Jean-Pierre; KISS, Alexandre. Droit international de l’environnement. Paris: Pedone, 2006. p.5
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas de
proteção internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. p. 41.
4
Ibid., p. 42.
5
FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011.p.68-70.
6
BIRNIE, Patricia; BOYLE, Alan; REDGWELL, Catherine. International Law & the environment. 3.ed.
New York: Oxford University Press, 2009.p.104-105.
3
208
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Assim, houve a ruptura de vários paradigmas tidos até então como suficientes para a
proteção do meio ambiente, nascendo a ideia da necessária cooperação dos Estados, da
transnacionalidade, centrada, pois, na consciência da necessidade de uma governança de
riscos, onde todos os “Estados possuem obrigações”,7 para a completa proteção dos interesses
comuns da humanidade.
A partir do momento que foi possível verificar a necessidade da ruptura dos antigos
hábitos no que se refere à maneira de utilização dos recursos naturais e a urgente necessidade
no cuidado com a biodiversidade, isto é, fauna, flora, e florestas, “como forma de preservar a
vida das próximas gerações”,8 desenhou-se no ordenamento internacional uma lógica que
“privilegia a cooperação entre os Estados”,9 de modo que todos os entes direta ou
indiretamente revelam-se detentores de obrigações.
Naturalmente, diante dessa nova concepção de cooperação como forma de diálogo
entre os Estados, percebeu-se que para a regulamentação e normatização dos tratados
internacionais mostravam-se imprescindíveis longos debates e especialmente maturidade dos
Estados no que se refere aos direitos internos para a formulação e contratação de obrigações.
De outra banda, o direito ambiental clama por medidas emergenciais, considerando a
rapidez com que se desenvolvem tecnologias e formas de extração e utilização dos recursos
ambientais, dentre eles, especialmente a biodiversidade, assim, “tão somente a confecção de
tratados formais, com a assunção de obrigações e previsão de penalidades ante o seu
descumprimento, não se mostravam instrumentos suficientes para a preservação e
conservação do meio ambiente”.10
Toda essa problemática, refletiu diretamente quando se verificou que o direito
internacional e aqui, especialmente na seara ambiental, prescindia de técnicas mais flexíveis,
menos rígidas, que através de técnica normativa diferenciada fosse possível, imbuídos do
propósito de cooperação para a preservação ambiental, os Estados pactuassem medidas sem
exigibilidade jurídica internacional, mas que possibilitassem o avanço e enfrentamento dos
temas mais delicados para a comunidade internacional.
7
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas de
proteção internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. p. 41.
7
Ibid., p. 41-50.
8
Ibid., p. 45-50.
9
SOARES, Guido Fernando Silva. Dez anos após Rio-92: o cenário internacional, ao tempo da cúpula mundial
sobre desenvolvimento sustentável (Joanesburgo, 2002). In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; IRIGARAY,
Carlos Teodoro José Hugueney (orgs.) Novas Perspectivas do Direito Ambiental Brasileiro: Visões
Interdisciplinares. Cuiabá: Carlini & Caniato: Cathedral Publicações.2009. p.31.
10
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001.p.35-37.
209
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
É nesse sentido, que se pretende analisar os instrumentos postos que visam a
proteção internacional da biodiversidade. O presente estudo não tem o escopo de apresentar as
convenções pactuadas internacionalmente de forma cronológica. Pelo contrário, a análise da
cooperação e do diálogo entre os Estados se dará primeiramente através dos instrumentos de
normas cogentes, juridicamente vinculantes, sejam eles destinados a proteção setorial ou
global, e, após, por meio dos pactos firmados sobre o primado da soft law, rumo a um direito
comum da humanidade.
1 Da Proteção internacional da biodiversidade pelos instrumentos hard law
De forma preambular, o presente tópico tem o escopo de analisar a como a proteção
internacional da biodiversidade se estruturou por meio dos instrumentos de intenção
vinculatória, com regulamentação de obrigações específicas para aqueles que se colocavam à
disposição para trabalhar pelo resguardo dos recursos naturais, de forma a preservá-los para a
atual e para as futuras gerações, bem como no que se refere aos cuidados para a minimização
dos impactos oriundos da atividade e desenvolvimento humano.
Não se pode perder de vista, que a pactuação de instrumentos em nível internacional
dotados de capacidade jurídica, força de vinculação e deveres a serem cumpridos, não se
revela atividade isenta de inúmeras discussões e enfrentamentos de temas imbuídos de
reservas, especialmente porque via reflexa, os seus membros pretendem a formulação de
regramentos que lhes favoreçam economicamente, ou a rigor, mantenha-os em situações
confortáveis.
Nesta senda, na primeira parte deste tópico, abordaremos instrumentos dotados de
exigibilidade jurídica, burocráticos e rigorosos, com foco determinado, setorial, e, após, os
que preveem deveres vinculantes, mas se revelam de proteção global à toda biodiversidade.
Senão vejamos.
A comunidade internacional, após constatar as necessidades urgentes de meios de
proteção da biodiversidade, organizou-se por meio de instrumentos com caráter específico,
“de cunho intimamente utilitarista e direcionados à proteção de determinada espécie, seja da
fauna ou da flora”.11 A intenção baseava-se na proteção aos danos emergentes que insistiam
em surgir, tais como determinadas espécies em extinção, consequências dos desmatamentos,
desertificação, dentre outras.
11
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001.p.393.
210
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
No universo de bens a serem tutelados a fim de garantir a sobrevivência da presente e
das futuras gerações, inexistem questionamentos acerca da importância da fauna, flora e da
biodiversidade, constituindo, pois, elementos insubstituíveis e fontes de vida. “Elementos
estes que são componentes do patrimônio ambiental natural, e, cúmplices entre si,
entrelaçados na teia da vida”.12
Vislumbrando a necessidade de pacto obrigatório, com deveres urgentes dos países
da América, a Convenção para a proteção da fauna, flora e das belezas cênicas naturais dos
países da América foi firmada em 1940, em Washington, sendo, pois, pioneiro instrumento
com previsões que vinculavam a tomada de providências pelos países da América, sendo
cunhada pela referência de “Convenção Panamericana”.
No Brasil, foi promulgada pelo Decreto nº 58.054 de 23.08.1996, revestindo-se de
caráter fechado, da qual somente poderão ser partes Estados Americanos.
Possui como objetivo primordial a preservação no seu ambiente natural das espécies
de fauna, flora indígena e aves migratórias, bem como a preservação da geologia, regiões
naturais, lugares em condições primitivas, idealizando e cunhando conceitos de parques
nacionais, reservas nacionais e regiões virgens, regulamentando a obrigação pioneira dos
Estados criarem suas próprias reservas, locais estes que devem ser zelados de forma a proibir
qualquer ação do homem no que se refere à pesca, caça, captura, excetuando situações em que
se submeterão à pesquisa científica.
Visando a proteção da fauna, flora e das belezas cênicas regionais, regulamenta a
importação e exportação das espécies por meio da emissão de certificados, vedando o transito
sem a sua presença.
A intenção da vedação às ações humanas advém do consignado no Art. VIII, que
preleciona que as espécies aí incluídas serão protegidas tanto quanto possível e somente as
autoridades competentes do país poderão autorizar a caça, matança, captura ou coleção de
exemplares de tais espécies. Sem olvidar que a proteção tão somente será concedida para
estudos científicos ou quando o Estado membro entender ser importante para a manutenção da
região.
Outrossim, já quando da pactuação da referida convenção, o Art.VI previu a ideia de
cooperação
entre
os
Estados
membros,
como
mecanismo
de
fortalecimento
operacionalização dos objetivos comuns dos Estados membros, in verbis:
12
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. 6.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 249.
211
e
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Art. VI: Os Governos Contratantes resolvem cooperar uns com os outros
para promover os propósitos desta Convenção. Visando este fim, prestarão o
auxílio necessário, que seja compatível com a sua legislação nacionais, aos
homens de ciência das repúblicas americanas que se dedicam às
investigações e explorações; poderão, quando as circunstâncias o
justifiquem, celebrar convênio uns com os outros ou com instituições
científicas das Américas que tendam a aumentar a eficácia de sua
colaboração; e porão ao dispor de todas as Repúblicas, igualmente, seja por
meio de sua publicação ou de qualquer outra maneira, os conhecimentos
científicos obtidos por meio deste trabalho de cooperação.13
Neste ínterim, vê-se da previsão convencional o dever de colaboração no sentido de
que cada Estado membro implemente legislação e concretize condutas a fim de direcionar e
realizar efetiva proteção da fauna, flora e das belezas cênicas naturais da América.
Almejando a proteção, a convenção panamericana, indica em documento anexo que a
acompanha, as espécies sob as quais recaem os seus cuidados, sendo, pois, “neste ponto que
se pauta específica crítica”,14 no sentido de inexistir na convenção artigo que autorize a
alteração do anexo criado à época da pactuação, detalhe este que impede o acréscimo de
novas espécies da fauna, flora e belezas cênicas, formalizando rigidez que não coaduna com a
rapidez com que novas necessidades surgem nos Estados membros.
Igualmente, não há no instrumento outrora firmado a constituição de secretariado,
previsão de órgão executor e de fiscalização das obrigações contraídas, nem qualquer
regulamentação acerca de fundo de financiamento das ações que devem ser desenvolvidas.
Em minuciosa análise, constata-se que a Convenção Panamericana, enquanto
instrumento de proteção regional, apesar de pioneira no aspecto de prever responsabilidades
comuns entre os países da América e ainda, consignando obrigações direcionadas enquanto
instrumento hard Law, pouco avançou concretamente rumo a um direito aplicado comum à
toda humanidade, realizando avanço teórico, mas não perpetuando na ordem prática os seus
ideais.
Também de cunho regional, a Convenção europeia sobre a conservação da vida
selgavem e habitats naturais nasceu eminentemente fechada, de forma que somente os países
da Europa Ocidental podiam ser membros. Entretanto, após a observância das rotas das
espécies, verificou-se que para alcançar os objetivos almejados, mostrava-se imprescindível
que os países do norte da África e do leste europeu fossem convidados também.
13
BRASIL. Decreto-lei n 58.054, de 23 de agosto de 1996. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D1570.htm>. Acesso em: 14 mar.
2013.
14
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p.340
212
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Neste ínterim, a Convenção foi firmada em Berna, na Suiça, em 19.09.1979 e tem
como pretensão a adoção de medidas de proteção da fauna, flora selvagens, dos habitats, e
ainda, impor restrições e vedações à caça dos animais.
Assim, reconhecendo o papel essencial da fauna e da flora para a manutenção do
equilíbrio da biodiversidade, e ainda, considerando a verificação da diminuição das espécies
ante as ações humanas, pactuou-se a obrigação de proteção e cuidado dos recursos através da
conservação de zonas protegidas, proibição de captura, detenção, abate, deterioração,
destruição, perturbação e comercialização.
A pactuação de promoção de medidas pelos Estados membros no que concerne a
políticas no sentido de zelar, e promover a interdição de períodos, exploração e controle,
foram todos firmados sob à égide do dever mútuo de cooperação.
Assim, vislumbrou-se à época, o desejo do Conselho da Europa no sentido de
cooperar para a preservação da biodiversidade, coordenando esforços rumo ao mesmo
objetivo, qual seja, de proteção e preservação da fauna e flora selvagem e seus habitats.
Em todo o mundo, as florestas sempre foram objeto de inúmeras discussões e
questionamentos, dessa forma, imperioso se faz o presente tópico, para que os instrumentos,
que em verdade se revelam regionais, sejam analisados à luz dos objetivos de cooperação e
deveres mútuos, em busca da almejada proteção, concreta e eficaz capaz de salvaguardar o
futuro das seguintes gerações.
Os primeiros instrumentos regionais sobre florestas a serem analisados serão os
Acordos Internacionais firmados até então especificamente sobre madeiras tropicais, todos,
frise-se, de cunho eminentemente comercial.
É uníssona a importância e a necessidade de preservação das florestas, especialmente
em razão da “manutenção do ciclo hidrológico, conservação do solo, preservação contra a
desertificação, diversidade biológica”,15 dentre outros. Entretanto, vislumbra-se do teor dos
acordos firmados, tanto o de 1983, 1994, bem como o de 2006 a intenção da manutenção do
comércio entre os países que dependem dos recursos retirados das florestas para a manutenção
da atividade de exploração.
Neste ínterim, o acordo firmado em 1983, em Genebra, do qual o Brasil também foi
signatário, teve sua vigência prorrogada até 1994, quando foi firmado novo pacto ratificado
pelo Brasil através do Decreto Legislativo de nº 68, em 4/11/1997 e devidamente promulgado
pelo DEC nº 2.707, em 04/08/1998 com explícitos objetivos de cooperação na expansão e
15
Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). State of the World’s Forests 2005. Roma:
Publicações oficiais da FAO, 2005. p.137.
213
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
diversificação do comércio entre os países, visando impedir a escassez dos recursos através de
visão compartilhada entre os países consumidores e os fornecedores.
Da análise aos acordos firmados em 1983 e 1994 percebe-se mínimo avanço no
aspecto da intenção da cooperação e preservação, especialmente pela não inclusão dos outros
tipos de florestas existentes em nossa biosfera, e ainda, o que se revela mais grave, “a
inexistência de visão cooperada no que se refere à política de utilização sustentável entre os
seus atores”.16
Acerca do acordo internacional sobre madeiras tropicais de 2006, concluído em
Genebra, em 27 de janeiro de 2006, que atualmente guarda votação pelo plenário da Câmara
dos Deputados através do PDC 560/2012, constata-se percentual de avanço quando prevê a
inclusão social e geração de renda para os povos da floresta, uso sustentável dos recursos
naturais, incentivo ao manejo florestal comunitário, entretanto, a visão compartilhada e
cooperada se vê prejudicada quando o instrumento, ainda em seu preâmbulo, item b, visa a
promoção do comercio internacional de madeiras das áreas tropicais provenientes de fontes
geridas de forma sustentável, revelando assim, o nítido intuito de desenvolver e possibilitar
ainda mais a exploração dos recursos provenientes das florestas tropicais, e tão somente de
maneira indireta, a proteção dos recursos florestais.
Tal como produtos acabados, os pactos internacionais sobre madeiras tropicais
firmados nos anos de 1983, 1994 e 2006 estabelecem obrigações recíprocas rigorosas para os
países consumidores e fornecedores, consignando metas a serem alcançadas, vinculando a
exploração à execução destas, a exemplo podemos citar o desenvolvimento do manejo
sustentável, utilização dos recursos para pesquisas científicas, o reflorestamento, restando
assim, o límpido caráter vinculativo e de rigor que as normas hard law possuem.
A dificuldade em se formular instrumento de vinculação e imposição de obrigações
rígidas sobre a proteção de todos os tipos de florestas, não só as tropicais, foi identificada a
partir das reuniões que antecederam a Conferência do Rio-92, quando se verificou
nitidamente a inexistência de consenso sobre o comércio, oferecimento de recursos para a
manutenção e formas de desenvolver o manejo sustentável. Não havendo alternativa no que se
refere às obrigações a serem contraídas, tão somente foi formulado uma declaração sobre os
princípios, intitulada de “Declaração de autoridades não-legalmente vinculante sobre
princípios para um consenso global sobre o manejo, conservação e desenvolvimento
16
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001.p. 391.
214
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
sustentável de todos os tipos de florestas”, que será oportunamente analisado neste artigo
quando do enfrentamento dos instrumentos sem exigibilidade jurídica.
Contudo, parece que o objetivo de explorar por meio de atividades sustentáveis e
compartilhadas, desafia ainda e muito a humanidade, a medida que o capítulo 11, B, 11.13, (a)
e (b) da Agenda 21 prevê como o maior objetivo da sustentabilidade a estratégia de
reconhecimento e classificação dos diversos tipos de florestas, e, por meio de um longo plano
de conservação, a realização do manejo sustentável dos recursos florestais, demonstrando
assim, a dificuldade que o planejamento, implantação e execução deste objetivo comum
exigirá de todos os envolvidos, tarefa essa ainda a ser rascunhada e implementada por toda a
humanidade.
Considerando as consequências inevitáveis da utilização desenfreada da terra,
situação esta que deu origem à sua degradação e a outros processos, tais como a perda ou a
redução da sua produtividade, da vegetação, erosão, e queimadas dentre outras, viu-se a
necessidade de pactuar objetivos internacionais no combate à desertificação, contudo, de
cunho específico, por meio de instrumento com previsão direcionada aos países afetados pela
seca, e em especial à África.
Firmada em Paris, em 18.06.1994, sendo, pois, ratificada pelo Brasil por meio do
Decreto Legislativo de nº 28, de 12/06/1997 e devidamente promulgada pelo Decreto de nº
2.741, em 20/08/1998, teve o início de suas discussões no final dos anos 80, e, com a
consolidação da Agenda 21, mais precisamente no capítulo 33, n.13, bem como da Declaração
do Rio de Janeiro sobre Ambiente e Desenvolvimento em 1992, no princípio 2º,
sedimentando assim a necessidade de um instrumento voltado para a prevenção dos efeitos da
seca e degradação da terra, ainda que vinculativo e de direcionamento específico e não global.
Tem como objetivo primordial a implementação de políticas publicas internas
capazes de prevenir, reabilitar a terra já degradada e mitigar os efeitos da seca, através de
medidas de desenvolvimento das capacidades, educação e conscientização pública.
Consignou previsão pioneira quando a partir do Art.6º instituiu diferentes obrigações
aos países membros, distinguindo os encargos gerais, dos países afetados e dos
desenvolvidos, de forma a atender às realidades fáticas daqueles que realmente necessitam de
direcionamento maior de recursos, e, especialmente tecnologia. Tudo isso fundamentado na
solidariedade internacional e dever de cooperação entre os países para o alcance dos objetivos
firmados.
Embora deixe límpida a intenção de impulsionar as propostas e a implementação dos
objetivos por meio da cooperação dos países signatários, a convenção se revela de cunho
215
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
obrigatório e com caráter de vinculação às obrigações assumidas, fator esse que desencadeou
outras discussões, como por exemplo, a necessidade de pactuação de normas hard law para
que seja possível que os países alavanquem os investimentos e a adoção das medidas internas
de educação, conscientização, prevenção, reabilitação e mitigação dos efeitos da seca, ponto
este que será enfrentado a seguir.
Seguindo a análise que propõe o presente estudo, no que tange aos instrumentos de
proteção da biodiversidade rígidos, inflexíveis, que estabelecem obrigações com caráter de
vinculação, passa-se a enfrentar os instrumentos firmados que visam proteção de cunho
global, “especialmente diante da inequívoca certeza de que a dimensão espacial dos efeitos da
incorreta utilização dos recursos naturais são transfronteiriços”.17
Vale registrar que a ideia de que a proteção e preservação do meio ambiente para as
futuras gerações “constitui responsabilidade de todos os Estados já havia sido promulgada na
Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados das Nações Unidas em 1976”,18
reforçando assim, a necessidade do enfrentamento das questões ambientais de forma global,
ou seja, com regramentos de caráter geral, com previsões para todos os Estados, diante da
fragilidade dos instrumentos de cunho específico.
A respeito do sistema jurídico de proteção escolhido pelos Estados, vale dizer que a
Convenção da Diversidade Biológica firmada durante a Eco/92 no Rio de Janeiro, ratificada
no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 2 de 03.02.1994 e promulgada pelo Decreto nº2.519 de
16.03.1998, trouxe uma nova roupagem, uma vez que até então pairava sistematização que
separadamente previa a proteção de determinada zona, espécies e ecossistemas.
Nesta senda, a Convenção da Diversidade Biológica, pode ser indicada como
parâmetro e modelo de instrumento rígido, com imposições de obrigações e de caráter global,
uma vez que visa a proteção da biodiversidade como um todo, desde as suas espécies,
ecossistemas, recursos genéticos, biológicos até a utilização sustentável dos recursos e a
distribuição justa e igualitária dos benefícios trazidos através das pesquisas científicas, de
forma a equilibrar as diferenças existentes entre os países que possuem a biodiversidade e os
que detêm a tecnologia adequada para o seu desbravamento.
Depreende-se dos termos da referida convenção, a nítida intenção da cooperação
entre os países como forma de empreender a preservação da biodiversidade como um todo
inter-relacionado, sem excetuar os diplomas que preveem medidas protecionistas específicas,
17
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas de
proteção internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. p. 46.
18
Ibid., p. 43.
216
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
mas de forma a complementar toda a estrutura da teia de proteção dos recursos naturais para
as futuras gerações. Entretanto, o conjunto de princípios normativos consagrados na
convenção, em que pese contenha imposição de obrigações para os seus membros, os seus
prazos e conteúdos se revelam vagos, remetendo-nos a uma convenção tipo quadro –
umbrella convention – “oportunizando a complementação por protocolos adicionais”.19
Assim, toda a relevância da Convenção da Diversidade Biológica se verifica
justamente pela intenção de proteção e preservação da biodiversidade como um todo,
integrando todos os demais instrumentos rígidos globais que visam a proteção de zonas
especiais, carecedoras de atenção mais intensa, pactos esses que se passa a enfrentar,
especialmente os instrumentos que de maneira rígida e setorial, primam pela preservação das
zonas úmidas, espécies, ecossistemas e recursos advindos do mar.
A Convenção relativa a zonas úmidas de importância internacional, nominada de
Convenção de Ramsar, entrou em vigor no Brasil a partir de 16.05.1996 por meio do Decreto
de nº1.905, é baseada no dever de cooperação para a transferência de informações, e,
especialmente na proteção e conservação dos habitats aquáticos. Teve importância impar
quando da sua pactuação em 02.02.1971, e, posteriormente quando entrou em vigor, em 1975.
Especialmente porque entre os seus postulados, a Convenção de Ramsar demonstra
intensa preocupação para com o ecossistema aquático, dada a relevância que essas áreas
úmidas representam quando realizam a interação dos seus componentes físicos, biológicos e
químicos presentes no solo, na água, nas plantas e nos animais, controlando assim as margens
dos rios, lagos, protegendo das erosões, estabilizando fluxos de águas, chuvas, lençóis
freáticos, “além de propiciar ambiente extremamente favorável para a reprodução e
sobrevivência dos pássaros, mamíferos, répteis, anfíbios e peixes”.20
Acerca da interpretação do termo utilizado pela convenção para designar as áreas de
proteção, qual seja, zonas úmidas, tem-se que compreendem as zonas úmidas de pântano,
charco, turfa ou água natural ou artificial, permanente ou temporária, doce, saloba ou salgada,
incluindo as áreas de água marítima com menos de seis metros de profundidade na maré
baixa, e, devem ser indicadas pelos países onde se situam, para após competente apreciação e
aprovação do corpo técnico designado pela estrutura da convenção, serem consideradas sítios
Ramsar.
19
SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento. Direito Internacional Ambiental. 2. ed. rev., atual. Rio de Janeiro:
Thex Ed., 2002.p. 133.
20
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p.343.
217
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Como premissas de trabalho, a Convenção de Ramsar elencou o uso racional das
zonas úmidas como forma de empreender a proteção desejada, o dever dos países membros
elencarem as zonas úmidas sob a sua soberania para que integrem a listagem oficial dos sítios
protegidos, e, o dever de cooperação entre os membros, tanto no que concerne a recursos para
a preservação dos ecossistemas úmidos, compartilhamento de tecnologias, informações, como
também no sentido de integração e diálogo para com as outras convenções vigentes. Para a
implementação das mencionadas premissas, o instrumento prevê duas formas de
financiamento, quais sejam, o Fundo de Pequenas Subvenções (Small Grant Fund – SGF) e o
Fundo Zonas Úmidas para o Futuro (Wetlands for the Future – WFF).
Considerando toda a estrutura criada pela convenção de Ramsar, além do
secretariado e do comitê permanente, foi criada em 1980, órgão de extrema importância para
a criação, aprovação, desenvolvimento e acompanhamento dos projetos e políticas que visam
à proteção das áreas úmidas, denominada de “Conferência das Partes Contratantes – COP, que
por meio de suas reuniões a cada três anos, empreende medidas para a concreta realização dos
objetivos traçados pelos seus membros.
Da leitura do texto pactuado, bem como dos documentos emitidos pela COP,
vislumbra-se de maneira inequívoca a intenção da preservação das zonas úmidas por meio da
sua utilização sustentável, com a conscientização da população acerca dos riscos e danos que
a lesão aos habitats aquáticos podem ocasionar, e em especial, a maneira como se intenciona a
cooperação. Isto porque, ainda que a Convenção de Ramsar seja perceptível instrumento hard
law, contendo regras sólidas de condutas e obrigações, vê-se a inequívoca ideia da
solidariedade, parceria para o alcance dos objetivos.
Nesse sentir, “a convenção ainda que considerada rígida, obteve sucesso, pois baseiase na cooperação e não em coerção ou penalidades previstas”,21 contando com as conferências
realizadas pela COP para a criação e o desenvolvimento de medidas estratégicas que
visivelmente vem influenciando as legislações internas nos países membros, trabalhando por
meio de ações cooperadas entre os seus membros e dialogando com outras convenções que
possuem objetivos comuns, tais como a Convenção da Diversidade Biológica (CDB),
Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas (CITES), dentre outras.
Conhecida como Convenção de Montego Bay, foi firmada em 10.12.1982 e adentrou
no ordenamento jurídico brasileiro por meio pelo Decreto Legislativo de nº 5, de 09.11.987 e
21
FORTER , M.J., OSTERWOLDT. R. U. Survey of Existing International Agreements and Instruments:
Nature Conservation and Terrestrial Living Resources, n.25, UNCED Secretariat, 1992 apud SOARES, Guido
Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São
Paulo: Atlas, 2001. p.349.
218
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
promulgada pela Decreto nº 99.263 de 24.05.1990, com vistas a preservar e proteger o meio
ambiente marinho, englobando a fauna, flora e ambientes, inclusive os minerais sólidos,
líquidos, gasosos, seja no leito do mar ou no seu subsolo.
Partindo da ideia de que os recursos marinhos também se esgotam, e detectando
situações que estariam acelerando o processo de degradação, tais como, a poluição causada
pelas embarcações, explorações do ambiente para extração de recursos, esgotos e outros
detrimentos depositados nos mares, o Art.14 da referida convenção regulamenta tanto os
espaços oceânicos, reconhecendo a inexistência de fronteiras para a extensão das lesões
quando se trata do meio ambiente, idealizando ações integradas e cooperadas entre os Estados
para a prevenção e controle das fontes de contaminação.
Assim, definiu conceitos de mar territorial, zona contigua, plataforma continental,
zona econômica exclusiva e alto mar, indexando a ideia de fundos marinhos como patrimônio
comum da humanidade – res communis, identificando competência para a autoridade
internacional nomeada por si para regulamentar as atividades desenvolvidas pelos Estados,
sob o enfoque a preservação e manutenção do ambiente marinho.
Em sua estrutura, prevê a responsabilização da pessoa física e jurídica pelos
possíveis danos ocasionados ao habitat marinho, e classifica os deveres e responsabilidades de
prevenção e proteção de acordo com as espécies de recursos biológicos marinhos e sua
localização, “prevendo ainda, de forma pioneira, certos direitos especiais para os Estados sem
litoral ou geograficamente desfavorecidos”.22
Como se vê, a Convenção de Monte Bay, ao reconhecer a importância do equilíbrio
do meio ambiente marinho para a manutenção da vida humana, por meio de enfoque
solidário, preceitua a conservação, a utilização sustentável e direitos aos países membros,
inclusive àqueles que geograficamente se mostram em desvantagem, donde se conclui ser
imprescindível a cooperação, ainda que por via reflexa, para a concretização dos seus
objetivos frente ao combate aos danos e para a efetiva transferência de informações e
tecnologias.
Deixando de lado as previsões setoriais, e partindo para o estudo dos instrumentos de
cunho cogente, e agora especialmente aos que visam proteção global, especialmente pela
rapidez, urgência e interligação da atividade do homem para com os efeitos produzidos,
passa-se ao estudo dos instrumentos com indexação de obrigações e direitos de proteção
universal relativos à fauna e flora.
22
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 409.
219
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A preocupação com a preservação da fauna e flora selvagem há muito já se revelava
tópico das discussões nas convenções mundiais, a exemplo o parágrafo quarto da Declaração
de Estocolmo datada de 1972 preceituou que:
O homem tem a responsabilidade especial de preservar e administrar
judiciosamente o patrimônio representado pela flora e fauna silvestres, bem
assim o seu habitat, que se encontram atualmente em grave perigo, por uma
combinação de fatores adversos.23
Foi nesse contexto em que a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies
Ameaçadas de Extinção, denominado de CITES, foi firmada na Cidade de Washinton, em
03.03.1973, e posteriormente alterada em 22.06.1979 e 30.04.1983, desenhando nova
roupagem normativa para o enfoque da proteção da fauna e flora silvestre que se encontravam
em grave ameaça pelas atividades degradantes desenvolvidas pelo homem, em especial, pelo
comércio da biodiversidade silvestre.
Assim, no Brasil, a CITES foi promulgada pelo Decreto de nº 76.623 em 17.11.1975
e suas emendas respectivamente pelos Decretos de nº 92.446/86 em 1983 e nº 133/91 em
1989, “e regulamenta a exportação e importação das espécies silvestres, promovendo, via
reflexa”24 a desejada preservação da fauna e flora silvestre, uma vez que impõe a necessidade
de emissão de certificados e licenças pelos órgãos oficiais dos países membros para a
movimentação internacional, e por meio de iniciativa inovadora, regulamenta e nivela as
espécies ameaçadas através de anexos, contendo regras rígidas, regulares, e, listagem das
espécies que merecem maior cuidado e proteção.
Sua estrutura possui secretariado, comitê permanente, comitê de animais, plantas e
de nomenclatura, e, conferência das partes (COP), que em reuniões bienais administra,
formula e fiscaliza o cumprimento das obrigações dos países que realizam movimentação
internacional de plantas e animais silvestres.
Por fim, deve ser consignado que a normatização da CITES vincula juridicamente os
seus membros, e da leitura atenta dos seus dispositivos, extraí-se a intenção de que os seus
membros cumpram os regramentos consubstanciados no dever de cooperação, uma vez que as
penalidades para o inadimplemento cingem-se basicamente na retirada de privilégios,
pressões diplomáticas, sanções unilaterais e comerciais.
23
SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento. Direito Internacional Ambiental. 2. ed. rev., atual. Rio de Janeiro:
Thex Ed., 2002. p.117.
24
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 350.
220
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
2 A proteção internacional da biodiversidade e suas especificidades destinada a um
direito comum pelos instrumentos soft Law.
Extraí-se da história da humanidade, que após a Declaração Universal dos Direito
Humanos em 1948, as discussões acerca da necessidade de confecção e implementação de
medidas capazes de alterar o curso da degradação ambiental, evitando o aumento dos
desastres e consequências que estavam sendo suportadas por todos, aumentaram de tal
maneira que restou sedimentada a ideia de que não só a permanência, mas a continuidade da
vida é de inteira responsabilidade do homem.
Foi constatada de maneira uníssona a inexistência de barreiras físicas entre os
Estados, ainda que o homem as tenha pavimentado de forma irreal e simbólica, as
consequências das atividades humanas degradantes realizadas em uma determinada
localização, inequivocadamente transferiam, e ainda transferem, a todos os outros Estados,
vizinhos ou não, a obrigação de suportar os seus ônus.
Nesse contexto, “se observa dos instrumentos firmados à época uma lógica que
privilegia a cooperação em detrimento do conflito entre os Estados”.25 Ou seja, a busca pelo
equilíbrio entre os conceitos de preservação e desenvolvimento, tendo como fatores chave a
sustentabilidade, uso racional dos recursos ambientais, por meio da conscientização e
cooperação dos Estados.
Assim, primando pelo fundamento da sustentabilidade como norte para o alcance do
equilíbrio e preservação do meio ambiente para a presente e futuras gerações, não se pode
ignorar que a pactuação de regramentos visando a proteção da biodiversidade por
instrumentos de natureza cogente, com vinculação jurídica e providos de sanções
significativas, sempre se mostrou técnica normativa perfeitamente apta a atender ao fim a que
se destinam as normas internacionais ambientais.
Desta forma, diante de pontuais discordâncias para a pactuação de normas rígidas
para a proteção que se deseja as normas não tradicionais, sem postura de vinculação avançam,
e possuem duas especiais qualidades, a saber: “fixam metas para as futuras ações políticas nas
relações internacionais e recomendam a adequação das normas internas às regras contidas em
caráter flexível”.26
25
NASSER, Salem Hikmat. Direito Internacional do meio ambiente, direito transformado, jus cogens e soft
Law. In: _________; REI, Fernando (organizadores). Direito internacional do meio ambiente: Ensaios em
homenagem ao prof. Guido Fernando Silva Soares. São Paulo: Atlas, 2006. p. 21.
26
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p.92.
221
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Assim, para a exata compreensão da estrutura normativa posta nos dias atuais que
tutelam a biodiversidade, revela ser imprescindível o estudo dos instrumentos, que mesmo
sem força cogente, são capazes de estabelecer e propiciar condições para a evolução e
amadurecimento dos instrumentos até a sua concreta edificação por meio de normas rígidas e
vinculantes. O que nas palavras de Pierre-Marie Dupuy “constitui um verdadeiro fator de
realização de progresso culminando na convergência de que toda a atmosfera da terra faz
parte do patrimônio comum da humanidade”.27
Entre os dias 5 e 16 de junho de 1972, na cidade de Estocolmo, Suécia, como
conclusão dos seus trabalhos, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
Humano promulgou, entre outros documentos, a Declaração de Estocolmo, “documento este
que revelou a tomada de consciência da humanidade sobre os grandes problemas que
deveriam ser enfrentados”.28
Não se valendo de normas de caráter vinculante, e partindo da premissa de que o
“meio ambiente não é matéria reservada ao domínio exclusivo da legislação interna dos
Estados, mas sim dever de toda a comunidade internacional”,29 a Declaração de Estocolmo
lançou conceitos de primeira ordem para o cenário mundial, tais como, bem comum da
humanidade, responsabilidade na defesa e administração da biodiversidade, utilização
racional dos recursos naturais, educação ambiental, dentre outros.
Nesta senda, a Declaração de 1972, previu obrigações e consolidou a
responsabilidade solidária entre todos os Estados membros, no sentido de esforços, recursos e
tecnologias, entretanto, o distanciamento da teoria para com a concretização das metas,
culminou na necessidade de um estudo detido e focado, com o fito de detectar as barreiras
existentes no caminho traçado, bem como as soluções para um novo ciclo de intenções.
Amplamente consubstanciada em postulados principiológicos sem qualquer força de
vinculação, a Declaração de Estocolmo representou para o cenário mundial à sua época
grande marco para uma nova leitura do direito ambiental, que até então, não fazia parte das
discussões internacionais.
Assim, partindo de ideais comuns à todos os povos, por meio da cooperação de
investimentos
financeiros,
tecnológicos,
científicos,
informacionais,
e
ciente
das
27
DUPUY, Pierre Marie. Soft Law and the International Law on the Environment. In: Michigan Journal of
International Law. vol. 12. n. 2. Michigan: University of Michigan Law School, 1991. p. 425/427.
28
SOARES, Guido Fernando Silva. O cenário internacional, ao tempo da cúpula mundial sobre desenvolvimento
sustentável (Joanesburgo, 2002). In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; IRIGARAY, Carlos Teodoro José
Hugueney (orgs.).Direito ambiental brasileiro: visões interdisciplinares. Cuiabá: Carlini & Caniato: Cathedral
Publicações, 2009. p.16.
29
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos Humanos e meio ambiente: Um diálogo entre os sistemas
internacionais de proteção. In: _________; IRIGARAY, Carlos Teodoro José Hugueney (orgs.). op.cit. p. 70.
222
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
responsabilidades, a Declaração de Estocolmo visou alcançar o direito comum do homem. Já
no seu preâmbulo, precisamente no item 2, dispõe ser ponto fundamental a proteção e o
melhoramento do meio ambiente humano, já que afeta o bem-estar dos povos e o
desenvolvimento econômico da humanidade, constituindo, pois, desejo e dever de todos os
governos.
Contudo, para o alcance dos objetivos firmados, especialmente o reconhecimento dos
problemas ambientais, o dever de preservação dos recursos da biodiversidade, adoção de
medidas visando a diminuição da poluição dos recursos marinhos, utilização e
compartilhamento das informações e tecnologias para a proteção do meio ambiente, e ainda, o
dever de educação ambiental, a Declaração de Estocolmo anunciou a obrigação que paira
sobre todos os Estados, qual seja, de cooperar, em pé de igualdade, para então controlar,
evitar, reduzir e eliminar eficazmente os efeitos prejudiciais que as atividades que se realizem
em qualquer esfera, mediante acordos multilaterais ou bilaterais, ou por outros meios
apropriados, respeitados a soberania e os interesses de todos os estados.
Assim, depreende-se das obrigações impostas aos Estados, o caráter de solidariedade,
de forma que todos são responsáveis diretamente e indiretamente pelo cumprimento das metas
estabelecidas, sedimentando obrigações comuns a toda a humanidade para o alcance da
preservação do meio ambiente.
Passados mais de dez anos da Declaração de Estocolmo, a comunidade internacional,
diante dos avanços do desenvolvimento mundial desregrado, que só aumentavam ainda mais
as tensões entre o homem e a natureza, reacendeu as necessidades de novas pactuações para
reafirmar os postulados, bem como para idealizar um novo modelo de ação global.
Diante das novas necessidades, “a Assembleia Geral da ONU requereu perante a
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento estudo que propusesse uma
agenda global para mudança”,30 analisando as causas da ineficiência das medidas adotadas e
grupo de estratégias a serem criadas, ocasião em que a Presidente da referida comissão, Sra.
Gro Harlen Brundtland liderou a confecção do documento, “sintetizando com maestria os
grandes problemas ambientais à época existentes, apresentando minucioso repertório de
estratégias para os seus enfrentamentos”.31
30
COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso futuro comum, 2.ed.
Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, p. XI.
31
SOARES, Guido Fernando Silva. O cenário internacional, ao tempo da cúpula mundial sobre desenvolvimento
sustentável (Joanesburgo, 2002). In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; IRIGARAY, Carlos Teodoro José
Hugueney (orgs.). Direito ambiental brasileiro: visões interdisciplinares. Cuiabá: Carlini & Caniato:
Cathedral Publicações, 2009. p.23.
223
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Em síntese, o Relatório de Brundtland, intitulado de “Nosso Futuro Comum”, após
três anos de observação, classificou em três grandes grupos os problemas ambientais, quais
sejam, “a poluição ambiental, a utilização inadequada dos recursos naturais e as questões
sociais relacionadas aos problemas ambientais, tais como uso da terra, ocupação, abrigo,
dentre outros”.32
Não há dúvidas em afirmar que todo o estudo realizado pela Comissão Mundial
sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento foi essencial para a preparação da Conferência de
1992, na cidade do Rio de Janeiro, especialmente quando afirmou que “a humanidade é capaz
de tomar o desenvolvimento sustentável de garantir que ele atenda as necessidades do
presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras atenderem também às suas”,33
formulando, portanto, o conceito do desenvolvimento sustentável.
Conceito este que foi difundido em toda a comunidade internacional, se
posicionando como fundamento para o chamamento da cúpula mundial para a Conferência
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, onde seriam
discutidos os meios de interação do desenvolvimento e da preservação dos recursos naturais.
Assim, a pauta da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, conhecida como a ECO-92, que ocorreu entre os dias 3 a 14 de junho de
1992, na cidade do Rio de Janeiro e as discussões partiram dos problemas detectados e
rumaram para as maneiras de se desenvolver as atividades humanas de forma sustentável.
O contexto em que a proteção às florestas entrou na pauta da ECO-92, não foi, nem
de longe, o mais favorável. Isto porque, a comunidade internacional ainda amargava recente
fracasso das negociações para o novo Acordo sobre Madeiras Tropicais, tendo, pois, a sua
vigência estendida até 1994 e a partir de então, sedimentava-se a ideia de constituir, por meio
de consenso entre os países, convenção que sacramentasse, em definitivo, a proteção à essas
zonas de fundamental importância para a humanidade.
As florestas, enquanto arcabouço da biodiversidade, já possuíam proteção, via
reflexa, por meio das outras Convenções com previsões específicas de zelo para com a fauna
e a flora. Contudo, “considerando que florestas são vivas e constituem sistemas de suporte à
vida de outras partes da biosfera, interagindo com o clima, particularmente os climas locais, e
32
SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento. Direito Internacional Ambiental. 2. ed. rev., atual. Rio de Janeiro:
Thex Ed., 2002. p. 35.
33
COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso futuro comum, 2.ed.
Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, p. 9.
224
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
ajudando a direcionar a circulação dos ventos”,34 prescindiam, no entendimento de diversos
Estados, de proteção própria, abarcando também as mediterrâneas, temperadas, boreais,
dentre outras.
A intenção à época era a pactuação durante a ECO-92 de competente pacto
“convencionando regramentos internacionais para todos os tipos de florestas, e não somente
direcionado às tropicais”.35
A base sob a qual Declaração de Princípios sobre as Florestas se fundamenta é a que
todos os Estados membros, sejam desenvolvidos ou não, devem empreender esforços no
sentido de implementar medidas de recuperação das florestas, por meio da atividade de
manejo sustentável e o reflorescimento, contudo, não preve deveres e vontades expressas.
Ainda que de cunho soft law, as nações detentoras de florestas lograram êxito ao
prever a compensação direta e indireta para a manutenção das referidas áreas, especialmente
em razão dos custos desta preservação em detrimento do desenvolvimento do setor
econômico, prevendo assim, compensação através do envio de recursos para a manutenção de
programas de conservação, bem como para os outros setores da economia.
Empreendendo ações visando a elaboração e a condução de acordos que “respeitem
os interesses de todos e protejam a integridade do sistema global de meio ambiente e
desenvolvimento”,36 a ECO-92, também denominada de Cúpula da Terra, emanou após a
conclusão dos seus trabalhos, documento compreendendo 27 (vinte e sete) princípios,
postulados estes condutores de toda a convenção e ideais a serem alcançados pela
humanidade, nominado de Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento.
Já em seu segundo princípio, a declaração explicita o direito dos Estados em
explorarem os seus próprios recursos segundo suas próprias políticas de meio ambiente e
desenvolvimento, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob a sua jurisdição ou
controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados.
Consignou de modo singular, dentre os seus postulados, que para o alcance do
desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental deve ser parte integrante do processo de
desenvolvimento dos Estados, não podendo, em hipótese alguma, ser considerada de forma
isolada, prevendo ainda no corpo do seu texto, deveres de cooperação para a conservação,
34
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. 6.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p.250.
35
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p.392.
36
Preâmbulo da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1992.
225
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
proteção, restauração da saúde e integridade do meio ambiente, prevenção de danos, redução
da pobreza, participação social nas questões ambientais, desenvolvimento de legislação
relativa à responsabilização, dever de precaução de acordo com as capacidades dos Estados,
reconhecimento dos povos indígenas e suas comunidades, dentre outros.
Dos princípios elencados na referida Declaração, vê-se a intenção de cooperação
entre os Estados em um espírito de parceria global, e imbuídos de boa-fé para o
desenvolvimento progressivo do direito internacional no campo do desenvolvimento
sustentável.
Partindo da abstração da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, e visando realmente concretizar os ideais lançados pela Declaração de
Estocolmo e vastamente discutidos à luz da sustentabilidade, a Agenda 21 sobreveio com a
intenção de passar exatamente do conceito à prática, disciplinando todas as ações que devem
ser empreendidas pelos Estados.
Desta feita, a Agenda 21 “é documento de natureza programática, uma verdadeira e
auspiciosa posição consensual”,37 constituindo, pois, em um programa global de políticas de
desenvolvimento
e
planejamento
ambiental,
compreendendo
diretrizes
para
o
desenvolvimento econômico-social e suas dimensões, “conservação e administração de
recursos para o desenvolvimento, papel dos novos atores e formas de implementação dos
projetos”.38
Em acurada análise, as prioridades elencadas pela Agenda 21 foram o crescimento
de maneira sustentável, combate a pobreza, medidas para que o mundo de amanhã seja
habitável sob a ótica da poluição do ar, água e outros recursos, gerenciamento das florestas,
ecossistemas, biodiversidade, resíduos químicos, nucleares, concretização de sistema de
financiamento flexível por meio de cooperação global, tanto para a obtenção dos recursos
como para a implementação dos objetivos primordiais firmados.
Diante de inúmeras diretrizes a serem implementadas, pode-se constatar dos anos
que se seguiram, o avanço do crescimento econômico e a evidente dificuldade encontrada
pelos Estados em colocar em prática por meio de políticas publicas o que outrora haviam
convencionado nos instrumentos, ainda que inexistente qualquer vinculação jurídica. Assim,
foi sob um clima de difícil consenso, e, por meio de longas discussões que a Cúpula Mundial
37
MILARÉ, Édis. Agenda 21 a cartilha do desenvolvimento sustentável. In: ___________; MACHADO, Paulo
Affonso Leme (orgs). Direito Ambiental: direito ambiental internacional e temas atuais. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2011. p.114.
38
Ibid., p.114.
226
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
sobre Desenvolvimento Sustentável se reuniu de 26.08.2002 a 04.09.2002, na cidade de
Joannesburgo, na África do Sul.
Passados 20 (vinte) anos da Declaração de Estocolmo, e diante do inequívoco
crescimento da economia mundial, culminando em inúmeros retrocessos e dificuldades para
viabilizar o progresso na proteção ambiental via cooperação entre os Estados, notou-se o
aumento das preocupações diante das constatações de escassez de água, degradação dos solos,
aumento do desmatamento, erosões, condições precárias de saúde, higiene, moradia,
revelando, pois, a dificuldade em praticar os planos alinhavados anos atrás.
Desta feita, ainda que os avanços em Joannesburgo não tenham ocorrido a contento,
a renovação dos compromissos outrora pactuados, bem como a realização de plano detalhado
de ação, revelam importância impar no contexto em que o mundo estava vivendo,
especialmente pela considerável mudança de foco de alguns países, ainda assustados com a
barbárie cometida em 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos da América.
No entanto, ainda que sem evolução de cunho notório, o que levou as organizações
não governamentais, bem como alguns atores do cenário mundial indicarem relativo
retrocesso. Entretanto, não se pode deixar de considerar que no lapso temporal entre a
realização da ECO-92 e a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio+10,
diversas negociações foram levadas adiante e algumas inclusive se consolidaram,39 a
exemplo, o Acordo relativo à Implementação da Parte XI da Convenção das Nações Unidas
sobre o Direito do Mar de 10 de dezembro de 1982, adotada em Nova York, em 28 de julho
de 1994; Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação Naqueles Países que
Experimentam Sérias Secas e/ou Desertificação, Particularmente na África, na sede da
Unesco, com abertura para assinaturas em 17 de julho de 1994; Protocolo de Quioto à
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, em Quioto, em 10 de
dezembro de 1997; Protocolo de Cartagena sobre Bio-Segurança, à Convenção sobre
Diversidade Biológica, em Montreal, em 20 de janeiro de 2000, dentre outros.
A busca pela participação mais efetiva de outros atores da sociedade nas discussões e
metas tais como as ONGs, a iniciativa privada, os cidadãos, foi um traço marcante, que não
pode ser desconsiderado, mas não isento de pontuais questionamentos, para a consolidação do
entendimento que não seria possível atingir o nível de progresso esperado sem a cooperação
de outras entidades não pertencentes aos governos dos Estados.
39
SOARES, Guido Fernando Silva. O cenário internacional, ao tempo da cúpula mundial sobre desenvolvimento
sustentável (Joannesburgo, 2002). In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; IRIGARAY, Carlos Teodoro José
Hugueney (orgs.). Direito ambiental brasileiro: visões interdisciplinares. Cuiabá: Carlini & Caniato:
Cathedral Publicações, 2009. p.32-35.
227
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Assim, a Cúpula emanou documento intitulado de Declaração Política de
Joannesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável, com 37 (trinta e sete) afirmações,
repactuando os compromissos, que em suma, se voltam às ações em solidariedade para a
implementação do desenvolvimento sustentável do planeta terra.
Dividida em quatro frentes, a Declaração Política, indica os seus principais objetivos,
enquanto requisitos a serem alcançados para a implementação do desenvolvimento
sustentável, como a erradicação da pobreza, mudança dos padrões de consumo, produção e a
proteção e manejo da base de recursos naturais para o desenvolvimento econômico e social.
Identificando elementos causadores do aumento da degradação ambiental, tais como
a pobreza, a globalização, bem como as suas consequências, como a perda da biodiversidade,
desertificação, alterações climáticas, poluição do ar, das águas, as lideranças reconheceram
que o desenvolvimento sustentável requer uma perspectiva de longo prazo e participação
ampla na formulação de políticas, tomada de decisões e concretização em todos os níveis.
Merece destaque ainda, o reconhecimento constante no item 17, donde se extrai o
valor da solidariedade humana e a necessidade que a Cúpula Mundial asseverou existir em
envidar esforços para que fosse ela ampliada, por meio da promoção do diálogo e da
cooperação entre os povos e civilizações do mundo, a despeito de raça, deficiências, religião,
idioma, cultura ou tradição, emanando, assim, ondas de fortalecimento na busca contínua de
um direito capaz de atingir a todos.
Cientes de que a promulgação da Declaração Política não seria suficiente para
concretizar os valores reafirmados, bem como as metas repactuadas, as discussões voltaramse para a confecção de um Plano de Implementação dos ideais, um verdadeiro roteiro global
de ação. Dessa forma, dando atenção especial aos itens constantes da Agenda 21, e utilizandose da técnica já conhecida da soft law, o referido plano global enfrentou delicados temas e
definiu estratégias de combate, especialmente acerca da erradicação da pobreza, da
necessidade da implementação de saneamento básico, acesso aos serviços de energias
renováveis de diferentes espécies, redução da perda da biodiversidade até 2010, dentre outras
previsões.
Atenção singular foi dispensada também para o incentivo ao consumo e produção
sustentável, consignando a necessidade da promoção de novos padrões sustentáveis,
pontuando a inequívoca distância que separa os países desenvolvidos, em processo de
desenvolvimento e os que ainda não apresentam previsões de alavanque, indicando o esforço
mútuo de cooperação internacional nas áreas da finança, transferência de tecnologias e
228
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
comércio, e consequente aplicação do princípio da responsabilidade comum, porém
diferenciadas, como solução para o eficaz e concreto alcance das metas consignadas.
Passados dez anos da ocorrência da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento
Sustentável – Rio+10, somando, portanto, trinta anos da Declaração de Estocolmo, em 1972,
mais uma vez, os Estados se reuniram para tratar de assuntos afetos à almejada
sustentabilidade. O referido encontro foi sediado pelo Brasil, na cidade do Rio de Janeiro
entre os dias 13 e 22 de junho de 2012, recebendo o nome de “Conferência das Nações
Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável”, mais conhecida como Rio+20.
Extrai-se do texto do rascunho zero, documento apresentado como proposta para ser
adotado na conferência, bem como do documento final, redigido em conjunto pelos Estados
participantes, a intenção de não só, mais uma vez, reafirmar os compromissos já assumidos,
mas de avançar na identificação das causas e proposição de soluções para os maus que ainda
assolam a comunidade internacional, a exemplo, a pobreza.
Em análise aos objetivos propostos pela comunidade internacional, verifica-se a
renovação do compromisso político com o desenvolvimento sustentável, por meio da
avaliação do progresso e das lacunas na implementação das decisões adotadas pelas principais
cúpulas sobre o assunto, e, do tratamento de temas novos e emergentes, culminando, pois, na
elaboração de documento extremamente esclarecedor, intitulado de: O futuro que queremos.
Com espeque na ideia do ecodesenvolvimento outrora lançada na Rio-92, nasceu na
comunidade internacional uma onda de estudos voltados à uma nova roupagem para o alcance
do desenvolvimento sustentável por meio dos instrumentos verdes da economia, enquanto
fatores de impulsão às metas de integração entre economia, sociedade e desenvolvimento.
Assim, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) lançou em
2008 o chamado Green Economy Iniciative (GEI) com tradução: Iniciativa de uma Economia
Verde, tendo como principal objetivo apoiar o desenvolvimento de um plano global de
transição para uma economia limpa por meio de investimentos e consumo de bens e serviços
de promoção ambiental.40 Partindo dessa premissa, o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento - PNUD, responsável pela pasta do meio ambiente perante a ONU,
desenvolveu uma definição de trabalho concluindo, que uma economia verde pode ser
40
PAVESE, Helena Boniatti. Delineamentos de uma economia verde. Net, Belo Horizonte, jun.2011. Política
Ambiental Conservação Internacional. Disponível em:
<http://www.conservation.org.br/publicacoes/files/politica_ambiental_08_portugues.pdf>. Acesso em 04
set.2012, 16:04:35.
229
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
pensada pela conjugação dos seguintes fatores: tecnologia de baixa emissão de carbono, uso
eficiente de recursos e socialmente inclusiva.41
No entanto, foi no Relatório emanado um ano antes da Conferência das Nações
Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio+20, que desencadeou inúmeras discussões
e novas perspectivas acerca do tema, documento este nominado de: Rumo à Economia verde:
caminhos para o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza.
O referido relatório prioriza a desconstrução da ideia de uma permuta inevitável
entre o desenvolvimento social e a sustentabilidade ambiental, logrando êxito em defender
que a implementação da economia verde não se traduz em meta ideológica com custos altos e
que somente os países desenvolvidos possuem condições de arcar.42 Neste ínterim, o relatório
direciona a atenção para “os projetos de baixa emissão de carbono, eficiência energética,
energia renovável, promoção de empregos decentes, redução de pobreza, agenda verde e
governança global”.43
Como soluções facilitadoras para o enfrentamento dos desafios que esta transição a
um modelo verde de sustentabilidade impõe, o relatório emanado pela PNUMA em 2011
propõe a confecção de legislações mais rígidas, a priorização dos investimentos nos setores
que primam pelo esverdeamento da economia, redução dos impostos com o fito de incentivar
as novas tecnologias verdes, investimento em capacitação, treinamento e educação da
população, e ainda, o fortalecimento da governança global.
Todos os estudos desenvolvidos acerca do tema possuíam o condão de aquecer e
fortalecer as discussões para o desenvolvimento do tema perante a Rio+20, e foi exatamente o
que aconteceu. Em 14 de junho de 2012, na Conferência, foi lançada pela Parceria Pobreza e
Ambiente – PEP, o Relatório Construindo uma Economia Verde Inclusiva para Todos,
formulou conceito mais abrangente e com o fito de integração da economia, meio ambiente e
sociedade.
Em seu texto, o relatório, em suma, prioriza a criação de bases políticas fortes,
incluindo reformas fiscais, investimentos públicos e privados, e uma política verde inclusiva,
41
UNEP. What is Green economy? Disponível em:
<http://www.unep.org/greeneconomy/AboutGEI/WhatisGEI/tabid/29784/Default.aspx>. Acesso em 04 set.2012,
17:37:23.
42
PAVESE, Helena Boniatti. Delineamentos de uma economia verde. Net, Belo Horizonte, jun.2011. Política
Ambiental Conservação Internacional. Disponível em:
<http://www.conservation.org.br/publicacoes/files/politica_ambiental_08_portugues.pdf>. Acesso em 04
set.2012, 16:04:35.
43
SAWYER, Donald. Economia verde e/ou desenvolvimento sustentável? Net, Belo Horizonte, jun.2011.
Política Ambiental Conservação Internacional. Disponível em:
<http://www.conservation.org.br/publicacoes/files/politica_ambiental_08_portugues.pdf>. Acesso em 04
set.2012, 17:07:27.
230
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
especialmente para a classe mais pobre, como soluções para a economia, o meio ambiente
social, setor ambiental e governança, visando assim, o desenvolvimento sustentável.
Considerando tratar-se de documento confeccionado sem força de vinculação,
concluiu sem apresentar modelo novo, limitando-se a asseverar que para acelerar a transição
da gestão atual para uma economia verde inclusiva, necessita-se de inovações em todas as
partes do mundo, fato este que clama por novos modelos de cooperação global entre os
governos, partes interessadas, organizações locais, ONGs, setor privado, todos unindo forças
e buscando novas e inovadoras formas de trabalharem juntos para a construção de uma
economia verde inclusiva para todos.
Dessa forma, após a realização da Rio+20, vê-se que o quadro institucional para o
desenvolvimento sustentável se firmou sob a integração e equilíbrio entre a economia, social,
ambiental e novo modelo de governança, bem como sob o papel dos governos e de todos os
atores não governamentais nos processos de democratização das tomadas de decisões e no
monitoramento das ações propostas, uma vez que se verifica inviável a análise do
desenvolvimento sustentável sem precisar a dinâmica da sociedade e as desigualdades que a
assolam.
CONCLUSÃO: A caminho do direito comum a partir dos instrumentos hard e soft law
Diante da então preocupação com a qualidade de vida e dignidade do ser humano
frente ao progresso econômico e social, a lição de Cançado Trintade ensina que assim como
há poucas décadas atrás houve questões que foram retiradas do domínio reservado dos
Estados para se tornarem matérias de interesse internacional a exemplo, os direitos humanos e
a auto-determinação dos povos, há hoje questões globais, como a mudança de clima e a
diversidade biológica, que estão sendo erigidas como de interesse comum da humanidade,44
prescindindo, portanto, de instrumentos capazes de coordenar os programas criados e gerir os
regramentos internacionais de proteção.
E justamente neste ponto, qual seja, regular um direito comum frente ao
desenvolvimento da sociedade é que se encontra o maior obstáculo da humanidade. Nascendo
assim, a necessidade de uma nova dimensão do constitucionalismo e do garantismo: a longo
prazo, além de global, “para além da lógica individualista dos direitos e da miopia e do
estreito localismo da política das democracias nacionais”.45
44
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direito das organizações internacionais. 4. ed. Belo Horizonte:
Del Rey, 2009. P.50.
45
FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011. p.70.
231
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Desde os primeiros instrumentos internacionais, e inclusive durante a ECO-92, vê-se
a proposta da cooperação entre os Estados como solução para a regulamentação e
concretização da proteção não só dos recursos naturais, mas do futuro da humanidade.
Como forma de enfrentamento às dificuldades percebidas pela comunidade
internacional em proteger os bens comuns, a lição de Luigi Ferrajoli propõe o
desenvolvimento em conjunto de um constitucionalismo de direito privado e de um
constitucionalismo de direito internacional. O primeiro para a imposição constitucional de
regras, limites, vínculos de controle pelos poderes econômicos privados, visando evitar os
danos irreversíveis provocados aos bens comuns pelos exercícios dos direitos civis; e o
constitucionalismo internacional, para em conjunto, estabelecer normas, limites rígidos e
proteções normativas planetárias, missão esta que seria confiada a autoridades e órgãos
internacionais.46 No entanto, “este desafio global de regulamentação impõe sem embargos
uma política global, baseada numa cooperação mundial à qual nenhuma potência poderá
subtrair-se”.47
Neste espeque, o dever de cooperação entre os Estados surge como fator
imprescindível para a compreensão da mudança do paradigma, qual seja, a normatização dos
interesses comuns da humanidade: fauna, flora, biodiversidade e florestas.
Outrossim, após o estudo acurado dos inúmeros instrumentos sedimentados, percebese que a medida que o homem foi se compreendendo enquanto elemento integrante do sistema
que, por si só interage sem qualquer pudor diante das fronteiras (inexistentes) dos Estados, os
instrumentos foram deixando de ser regionais, com proteção específica, determinada,
passando, pois, para uma formatação global, considerando a biodiversidade como um todo
interconectado.
Entretanto, essa progressão por vezes se mostra dúbia, não podendo ser entendida
como certa, pois muitas vezes os instrumentos se revelam, em verdade, de projeção não
linear, especialmente quando se coloca em análise o nível de cogencia havido em cada um
deles. Isto porque, por vezes o enfrentamento das matérias se mostra tortuoso, fazendo com
que a comunidade internacional lance mão de instrumentos flexíveis, sem vinculação jurídica,
conhecidas como soft law, auxiliando e incentivando assim, a pactuação de inúmeras
regulamentações.
46
FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011. p.71-72.
47
Ibidem., p.73.
232
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
O que se percebe é que na busca pela implementação de um direito comum, e diante
da dificuldade do consenso acerca de pontuais matérias para a confecção dos tratados formais
(hard Law), opta-se pelo caminho da diplomacia, da mutua cooperação no sentido de emanar
declarações, recomendações de comportamentos, sem vinculação jurídica, como forma de
atender a emergência dos novos temas do direito internacional ambiental.
Assim, com a intenção de preservar os recursos naturais para as futuras gerações, e
conceber um planeta digno de habitação, a humanidade vem se adaptando, convivendo
harmoniosamente com os instrumentos de proteção de natureza cogente e flexível, seja de
proteção voltada para zona especialmente protegida ou para a biodiversidade como um todo.
Emana desses instrumentos a necessidade do dever de cooperação entre os Estados,
para que seja possível a concreta proteção e equilíbrio do meio ambiente. Assim, o direito à
proteção da fauna, flora, biodiversidade e florestas passou pelo momento da
internacionalização, e, com o passar do tempo, diante da sua relevância para a sociedade
global, passou a ser tratada como um direito comum da humanidade. Na verdade, o que se vê
é a intenção global de conduzir a humanidade através de um dever mútuo de cooperação para
a preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável.
Partindo, então, de uma inequívoca multiplicidade de regulamentação, visando a
proteção e o equilíbrio do meio ambiente, com regramentos vinculantes, cogentes, e
principiológicos, fomentadores de bons comportamentos, vê-se que ao contrário do que se
poderia supor, a proliferação de normas de soft law, que veiculam princípios, como o que foi
analisado durante o presente trabalho, qual seja, a cooperação entre os Estados, não mitiga,
senão expande, a capacidade de influência do Direito Internacional do Meio Ambiente, que se
dá, entretanto, “sob a forma de relações jurídicas de qualidade distinta daquelas, associadas à
aplicação das normas de hard Law”.48
À luz do ensinamento de Brunnée, ao admitirmos que os processos que permeiam as
relações internacionais são complexos, e que a dependência de modelos compostos de
hierarquização diminui ao mesmo tempo em que “se projetam os modelos de poderes
horizontais, constata-se, portanto, não o fim dos processos normativos internacionais, mas na
verdade, o seu início”.49
48
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. AYALA; Patryck de Araújo. Cooperação internacional para a preservação
do meio ambiente: o direito brasileiro e a convenção de aarhus. IN: ___________ (org.) O novo direito
internacional do meio ambiente. Curitiba: Juruá, 2011. p. 479.
49
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. AYALA, Patryck de Araújo. op. cit. apud BRUNNÉE, Jutta. The
Stockholm declaration and the struture and processes of international environmental Law. In: CHIRCOP, Aldo;
MCDORMAN, Ted; ROLSTON, Susan (Eds.). The future of ocean regime building: essays in tribute to
Douglas M. Jonhnstons. Doordrecht: Martinus Nijhoff, 2008.p.42.
233
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Assim, em situação análoga enfrentada por Erick Jayme,50 para que os Estados
logrem êxito na regulamentação de um direito comum para a humanidade afeto ao direito
internacional do meio ambiente, mostra-se imprescindível o diálogo (direito e concreto) entre
os instrumentos hard e soft law, sejam eles de proteção à zona, espécie determinada ou de
cunho global, tanto no aspecto normativo quanto interpretativo do direito externo e interno
dos Estados.
O dialogismo entre os instrumentos cogentes e flexíveis consiste especialmente na
interação da necessidade de regulamentações visando a proteção e preservação do meio
ambiente por meio de convenções com previsões rígidas e a inequívoca importância dos
pactos mais brandos sem níveis consideráveis de cogencia, a exemplo, as convenções,
relatórios, declarações promulgadas nos encontros mundiais, que visam a identificação dos
problemas mundiais que ainda dificultam a implementação das normas hard laws, e a
orientação para a adoção de estratégias que visam a erradicação desses obstáculos, a exemplo,
a pobreza, degradações dos solos, escassez de água, alterações climáticas, condições de saúde,
alimentação, empregos decentes, dentre outros.
Nesta linha, o direito comum partiria de um diálogo global, e assim, tanto por meio
de medidas proibitivas, cogentes, como de medidas flexíveis e sem qualquer vinculação
jurídica, uma vez que o dever de cooperar e visar o bem comum se concretizaria com a
comunicabilidade e complementariedade entre as normas, coexistindo, portanto, todas elas
cooperativamente51 em busca da proteção e preservação do meio ambiente e do
desenvolvimento sustentável à luz da equidade intergeracional.
Restando, portanto, na condição de tarefa para o futuro52 o desafio de coordenar a
implementação e a efetividade do diálogo dos instrumentos normativos, rumo a um direito
comum da humanidade.
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SOBERANIA E DIREITOS HUMANOS: UMA APROXIMAÇÃO
NECESSÁRIA.
SOVEREIGNTY AND HUMAN RIGHTS: A NECESSARY APPROACH.
Ana Paula Morais Galvão
Yara Maria Pereira Gurgel**
Resumo: O presente estudo buscará, inicialmente, um conceito de Estado que comporte todas
as necessidades de uma sociedade democrática, que tem o povo como detentor do poder
soberano. Por isso, se defenderá que o modelo garantista do Estado constitucional de direito,
grande conquista da sociedade contemporânea, tem como limites, para a atuação do poder,
elemento do Estado, a observância do ordenamento jurídico, em especial da Constituição, dos
direitos fundamentais, do princípio da legalidade e da necessidade de divisão dos poderes.
Com essa mudança de perspectiva o sentido de soberania também foi alterado, sendo
averiguado a evolução do conceito, havendo quem fale, inclusive, em um esvaziar completo
do seu sentido e em uma crise do Estado nacional. Após as graves violações de direitos
humanos ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial e a importância adquirida pelo Direito
Internacional dos Direitos Humanos, a ideia de soberania ligada a superioridade, a um poder
absoluto e ilimitado, que não reconhece nenhum outro acima de si não mais atende ao
compromisso internacionalmente estabelecido de proteger a dignidade do ser humano. Por
isso, se proporá uma relativização da soberania que garanta a proteção dos direitos
inalienáveis dos cidadãos.
Abstract: This paper will seek for a concept of the state that includes all the needs of a
democratic society, which has people as holder of sovereign power. So, will be defended that
the guarantees model of Constitutional State of Law, major achievement of contemporary
society, has as limits to the performance of his power, element of the state, the observance of
law, especially the Constitution, fundamental rights, the principle of legality and necessity of
separtion of powers. With this new perspective, the meaning of sovereignty has also changed,
and will be examined the evolution of the concept, considering those who even talk about his
meaning being completely empty and defend the crisis of the nation state. After the serious
human rights violations that occurred during the Second World War and the importance
acquired by the Human Rights International Law, the idea of sovereignty linked to
superiority, absolute and unlimited power which recognizes no other above himself no longer
meets the internationally established commitment to protect human dignity. So, will be
propose a relativization of sovereignty that guarantees the protection of the inalienable rights
of the citizens.
Palavras-chaves: Soberania. Direitos Humanos. Relativização.
Keywords: Sovereignty. Human Rights. Relativization

Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do
Norte; Especialista em Direito e Jurisdição pela Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte; Assistente
Ministerial da Coordenadoria Jurídica do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte.

Doutora em Direito, subárea Direito do Trabalho, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo;
Professora Adjunto II da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
237
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
1-
INTRODUÇÃO
A soberania é objeto, até hoje, de muito debate e estudo. A clássica noção de poder
ilimitado não é mais capaz de se compatibilizar com a necessária proteção do ser humano
assumida perante a comunidade internacional.
Ocorre que muito se questiona se seria possível uma aproximação desses dois
conceitos, considerando esse clássico conceito, ainda mais se levado em consideração o
aumento gradativo da participação dos Estados na comunidade internacional, seja pela
globalização, pela intensificação das relações comerciais, pelos blocos econômicos ou pela
participação em organizações internacionais.
O presente estudo, então, busca repensar o conceito de Estado para comportar todas
as necessidades de uma sociedade democrática, que tem o povo como detentor do poder
soberano, levando-se em conta ainda o modelo garantista do Estado constitucional de direito e
o compromisso internacional de proteção aos direitos humanos.
Em seguida, analisa a soberania como elemento do Estado e a evolução de seu
conceito, buscando uma forma de limitar a soberania pela necessidade de resguardar a
dignidade da pessoa humana.
Vale ressaltar que o debate sobre a relativização da soberania foi intensificado após o
mau uso do poder nos regimes totalitaristas, as barbáries ocorridas no nazismo, que geraram a
necessidade de se reconstruir uma proteção efetiva para os direitos inalienáveis dos seres
humanos, e fez com que diversos Estados se comprometessem, através de declarações e
tratados, a assegurar, em seus ordenamentos, os direitos criados na ordem internacional,
tornando os indivíduos sujeitos de direito. Com isso, consagrar e efetivar os direitos humanos
se tornou o principal objetivo da comunidade internacional, uma obrigação e preocupação
comum dos Estados.
Por isso, será verificada a possibilidade de abrandar o conceito de soberania, para se
proteger a dignidade dos cidadãos nacionais, observando os valores básicos dos Tratados e
Declarações Internacionais sobre o tema e da Constituição Federal, permitindo uma proteção
mais ampla ao ser humano.
238
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
2- A SOBERANIA COMO ELEMENTO DO ESTADO.
A palavra “Estado”, no sentido em que atualmente é compreendida, surgiu na obra
“O Príncipe” de Maquiavel, o qual se referia ao Estado de Florença, cidade independente,
centro do poder, em uma Itália que ainda não era unificada (COSTA, 2011). Assim, o termo
só era usado para determinadas sociedades com características bem definidas e organizadas,
contendo, ao menos, três elementos básicos, quais sejam, povo, território (elementos
materiais) e soberania ou algum tipo de poder (elemento formal)1.
O momento em que o Estado aparece também não é consenso entre os doutrinadores.
Segundo Rafael Luchini Alves, pode-se dividir em três principais correntes (COSTA, 2011, p.
390-391). A primeira acredita que ele sempre existiu, assegurando-lhe uma acepção ampla,
em que o que realmente interessa é a base organizadora e unificadora da sociedade, e, sendo o
ser humano um ser social, que vive integrado em grupos, o Estado sempre esteve presente.
Para o segundo grupo, ele não surgiu de uma única vez, concomitantemente, mas
apenas quando o homem percebeu que era necessário formar uma organização social e
política que atendesse suas necessidades.
Por fim, a terceira corrente sustenta que só pode ser considerado Estado as
sociedades políticas dotadas de certas características, como as mencionadas acima, sendo
necessário, para o seu surgimento, que a soberania tenha se tornado uma prática (é o caso de
Karl Schmitt, por exemplo). Para esses estudiosos, a Paz de Westfália foi essencial, sendo um
marco do surgimento dos Estados, pois definiu limites territoriais e reconheceu um poder
soberano às nações envolvidas (COSTA, 2011, p. 390-391).
É certo, contudo, que o Estado sofreu várias alterações, não se podendo comparar o
Estado Grego (para aqueles que entendem que ele poderia ser assim considerado) e o
Moderno. Tanto que se vem repensando o conceito de Estado para comportar todas as
necessidades de uma sociedade democrática, que tem o povo como detentor do poder
soberano. Nesse sentido, o modelo garantista do Estado constitucional de direito é uma grande
conquista, pois traz como limites, para a atuação do poder, a observância do ordenamento
1
Alguns autores ainda acrescentam elementos outros, como: governo ou pessoa estatal ou poder de império,
finalidade ou mesmo vínculo jurídico. Há também quem exclua alguns deles. Mazzuoli (2005, p. 331) afirma
que a noção de soberania sequer é inerente à concepção do Estado, sendo, na verdade, uma conquista dos
Estados nacionais após anos de lutas contra a Igreja e os senhores feudais.
239
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
jurídico, em especial da Constituição, dos direitos fundamentais, do princípio da legalidade e
da necessidade de divisão dos poderes.
Para Ferrajoli (2007, p. 28), aliás, essa mudança de perspectiva é responsável por
esvaziar completamente o sentido de soberania, e gerar uma crise do Estado nacional. Nas
suas palavras:
(...) Com a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, e
depois com as sucessivas cartas constitucionais, muda a forma de Estado e,
com ela muda, até se esvaziar, o próprio princípio da soberania interna. De
fato, divisão dos poderes, princípio da legalidade e direitos fundamentais
correspondem a outras tantas limitações e, em última análise, a negação da
soberania interna. Graças a esses princípios, a relação entre Estado e
cidadãos já não é uma relação entre soberano e súditos, mas sim entre dois
sujeitos, ambos de soberania limitada.
Considerando o exposto, pode-se definir o Estado como sendo a “ordem jurídica
soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território”
(DALLARI, 1993, p. 64). Essa soberania, como se verá, é relativizada, pois deve observar os
limites traçados. Ademais, essa finalidade especial seria, segundo Dallari, “o conjunto de
todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da
personalidade humana” (DALLARI, 1993, p. 91-92), ou seja, requer a efetivação dos direitos
fundamentais.
3- DA EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE SOBERANIA.
Até muito recentemente, a ideia de soberania estava ligada a superioridade, ao topo,
a um poder absoluto e ilimitado, o qual não reconhece nenhum outro acima de si.
Bodin é tido como precursor no desenvolvimento desse conceito, afirmando-o como
sendo o “poder absoluto e perpétuo de uma República” (Apud COSTA, 2011, p. 399), ou seja,
do Estado. Para ele, o poder deveria ser incondicionado, submetido apenas às leis divinas e
naturais, podendo criar livremente o ordenamento jurídico para ser seguido por seus súditos
ou anular qualquer ato normativo que entender inútil, estando o príncipe (no caso, o soberano)
isento da autoridade da lei.
Hobbes, por outro lado, entende que, como os homens decidiram ingressar em um
Estado Político, precisam entregar ao Leviatã, poder soberano e absoluto, suas liberdades
240
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
irrestritas, obtendo, em troca, segurança e paz. O fundamento do poder absoluto estaria no
fato de ter sido obtido por um ato de liberdade, dado por todos, pelo receio que cada um tem
dos demais seres humanos, e, portanto, não poderia ser revertido (MENDONÇA, 2011).
Rousseau, por outro lado, propõe uma mudança na titularidade da soberania,
deixando de ser da pessoa do governante e residindo-se no povo. O contrato social serviria,
nesse caso, para permitir a troca do direito ilimitado a tudo e da situação de liberdade natural,
absoluta, em prol de um convívio social mais harmonioso, da liberdade civil e da propriedade
do que é seu. Segundo seus ensinamentos, a soberania seria, então, a vontade geral, sendo um
poder inalienável e indivisível, limitado, contudo, pelas convenções gerais, ou seja, pela
vontade do corpo político.
Jellinek (Apud COSTA, 2011, p. 402) defende que a noção de soberania surge com o
Estado moderno, sendo uma característica essencial a ele, baseando-se na afirmação do poder
supremo e exclusivo do monarca sobre o povo e seu território. Ela seria o poder jurídico de
autodeterminar-se e se auto obrigar, ou seja, seria o poder do Estado de se impor limites pela
Constituição ou pelas leis, não podendo ser acionado, salvo por si próprio.
Não poderia faltar, nessa análise dos muitos conceitos de soberania, a importante
contribuição de Kelsen. Para ele, o conceito de soberania estatal precisa ser abolido, pois os
ordenamentos jurídicos nacionais são apenas parciais em relação ao Direito Internacional,
retirando dele seu fundamento de validade. Como o sistema jurídico é formado pelo conjunto
de normas, a regra, para ser soberana, precisa ser fonte de valor do sistema. Não seria
possível, portanto, admitir vários ordenamentos de Estados igualmente soberanos vigorando,
pois não haveria como solucionar uma possível colisão de sistemas jurídicos, bem como não
há, em sua concepção, como a soberania pertencer a vários sujeitos (Apud COSTA, 2011, p.
405).
Para facilitar a compreensão, interessante o resumo trazido por José Jardim Rocha
Júnior (1993, p. 126-127), que aponta:
Finalmente, em A Paz por Meio do Direito, Kelsen, impactado pelos
horrores das duas guerras mundiais, radicaliza as suas posições, passando a
defender abertamente integração dos Estados em uma federação que
exerceria um governo mundial submetido a leis editadas por um Legislativo
igualmente mundial, e em cujo âmbito os Estado nacionais seriam apenas
estados-membros. Isso conduziria às seguintes implicações: a) a plena
juridicidade de uma ordem normativa internacional depende de que ela possa
disciplinar o uso da força e, a partir daí, qualificar o seu uso entre Estados ou
como uma sanção permitida pelo direito ou como um ilícito internacional; ii)
241
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
a superação da concepção westfaliana do ius ad bellum, uma vez que a
guerra é um fenômeno intrinsicamente ético, que só pode ser admitido como
sanção jurídica (iusta causa belli) contra uma conduta violadora do ius
gentium; iii) os Estados são formalmente iguais no âmbito do ordenamento
internacional até o momento da sua absorção na ‘comunidade universal de
Direito mundial’; e iv) recusada, de um lado, a ideia moderna de soberania e,
de outro lado, afirmada a unidade moral da espécie humana, resulta
inevitável a rejeição da tese de Grocio de que apenas os Estados são sujeitos
do ius gentium, devendo, ao contrário, ser aí também incluídos os cidadãos
dos Estados nacionais, que são também destinatários das disposições de
Direito Internacional.
Acreditando também em um direito internacional, Francisco de Vitoria defende as
seguintes ideias basilares: “a) a configuração da ordem mundial como sociedade natural de
Estados soberanos; b) a teorização de uma série de direitos naturais dos povos e dos Estados;
c) a reformulação da doutrina cristã da “guerra justa”, redefinida como sanção jurídica às
iniuriae (ofensas) sofridas” (FERRAJOLI, 2007, p. 7). Na temática proposta, fato é que
anuncia um “fundamento democrático da autoridade do soberano, antecipando o princípio
moderno da soberania popular (...)”(FERRAJOLI, 2007, p. 8), propondo que o soberano deve
atuar em função do bem da república.
Necessário, nesse momento, diferenciar a soberania interna da externa para poder
compreender melhor a noção que se seguirá. Segundo Mazzuoli (2005), a soberania interna é
aquela que, dentro do território do Estado, não encontra outro poder mais alto, é o poder de
criar o Direito Positivo, ou, segundo Goffredo Telles Júnior, é o “poder incontrastável de
decidir, em última instância, sobre a validade jurídica das normas e dos atos, dentro do
território nacional” (Apud MAZZUOLI, 2005, p. 331). Para Ferrajoli, é aquela capaz de por
fim ao estado de natureza do homem, transformando a sociedade e lhe garantindo paz e
civilidade, pois cria os direitos-deveres dos seus indivíduos.
A soberania externa, por outro lado, significa, não exatamente um poder, mas a
igualdade perante outros Estados, uma situação de coordenação entre eles. Em outras
palavras: “‘soberania interna’ é o império que o Estado exerce, coercitivamente, sobre o seu
território e a sua população; e ‘soberania externa’ é a sua independência e igualdade perante
outros Estados, o seu poder de autodeterminação” (GUIMARÃES, 1999, p. 503).
Para Ferrajoli, os Estados, por gozarem na ordem internacional de soberania e
liberdade absoluta, representariam os homens no estado de natureza, ou seja, seria uma
sociedade selvagem que estaria em constante estado de guerra, justamente por não existir uma
lei superior para lhe regulamentar.
242
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Fica agora mais clara a compreensão de Ferrajoli sobre a mudança na noção de
soberania, demonstrando ainda a desconfiança desse pesquisador, que não visualiza uma
relativização da soberania (por vê-la como a ausência total de regras ou limites), e, por isso,
lhe impõe um completo esvaziamento. Como já mencionado, esse autor entende que a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi responsável por dissolver
completamente a soberania, em seu âmbito interno, bem como a criação das Organizações das
Nações Unidas impôs a falência da soberania externa, pois retirou os Estados desse estado de
natureza, passando-os para o civil, em que devem obedecer ao plano normativo internacional,
em especial às suas duas normas fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos
fundamentais (FERRAJOLI, 2007, p. 40-41). Segundo seus ensinamentos:
A Carta da ONU assinala, em suma, o nascimento de um novo direito
internacional e o fim do velho paradigma – o modelo Vestfália –, que se
firmara três séculos antes com o término de outra guerra européia dos trinta
anos. Tal carta equivale a um verdadeiro contrato social internacional –
histórico e não metafórico, efetivo ato constituinte e não simples hipótese
teórica ou filosófica –, com a qual o direito internacional muda
estruturalmente, transformando-se de sistema pactício, baseado em tratados
bilaterais inter pares (entre partes homogêneas), num verdadeiro
ordenamento jurídico supra-estatal: não mais um simples pactum
associationis (pacto associativo), mas também pactum subiectionis (pacto de
sujeição). Mesmo porque a comunidade internacional, que até a Primeira
Guerra Mundial ainda era identificada com a comunidade das ‘nações
cristãs’ ou civilizadas – Europa e América –, é estendida pela primeira vez a
todo mundo como ordem jurídica mundial.
(...) A soberania, que já se havia esvaziado até o ponto de dissolver-se na sua
dimensão interna com o desenvolvimento do estado constitucional de direito,
se esvanece também em sua dimensão externa na presença de um sistema de
normas internacionais caracterizáveis como ius cogens, ou seja, como direito
imediatamente vinculador para os Estados-membros.(...)
Percebe-se, então, uma superação da clássica noção de poder ilimitado ou, se quiser,
seu completo esvaziamento, assumindo o direito internacional um papel de destaque.
4- RELATIVIZAÇÃO
DA
SOBERANIA
PELA
NECESSIDADE
DE
PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS.
Após as graves violações de direitos humanos ocorridas durante a Segunda Guerra
Mundial, ganha destaque o Direito Internacional dos Direitos Humanos2. Segundo Flávia
2
Mazzuoli (2005) defende que o Direito Internacional dos Direitos Humanos “é o direito do pós-guerra”.
243
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Piovesan (2000), após esse período, os diversos Estados se comprometeram, através de
declarações e tratados, a assegurar, em seus ordenamentos, os direitos humanos criados na
ordem internacional, garantindo ainda uma igualdade material a todos os indivíduos, em
contraponto à lógica da “destruição e descartabilidade” da pessoa humana do nazismo, em
que só eram titulares de direitos as pessoas integrantes de determinado grupo. “É neste
cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e
referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Se a 2ª Guerra significou a
ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução”. Com
isso, consagrar os direitos humanos se torna o principal objetivo da comunidade internacional
e uma preocupação comum dos Estados.
Esse processo de internacionalização provocou grandes mudanças na comunidade
internacional. Primeiro, porque colocou o indivíduo na posição de sujeito de direitos e o dotou
de mecanismos de defesa deles; segundo, pelo fato de ter, como visto, afastado o velho
conceito de soberania estatal absoluta, tendo agora a obrigação de efetivar os direitos
pactuados (MAZZUOLI, 2005, p. 328).
Ao lado dessa consagração internacional, o “novo” constitucionalismo (ou
neoconstitucionalismo, segundo alguns doutrinadores) vive a necessidade de assegurar de
forma mais ampla os direitos humanos, propondo, inclusive, uma “constituição invasora”,
regulando diversos aspectos da vida social. Nesse modelo, há uma reaproximação entre
Direito e Moral, pois, para abarcar os valores da sociedade, a Constituição se torna o resultado
do compromisso de uma pluralidade de interesses, ficando mais ampla e aberta. Ganha
destaque, assim, os direitos fundamentais, as diretrizes e programas a serem realizados. É, por
essa razão, que Ferrajoli alega que a consagração desse Estado Constitucional de direito, com
a Carta Maior atuando nos moldes propostos, restringe, demasiadamente, a soberania interna.
Não se nega, contudo, a dificuldade em conceituar esses direitos. Para Comparato
(1999, p.1):
O que se conta, nestas páginas, é a parte mais bela e importante de toda a
História: a revelação de que todos os seres humanos, apesar das inúmeras
diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual
respeito, como únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade
e criar a beleza. É o reconhecimento universal de que, em razão dessa radical
igualdade, ninguém – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo
religioso ou nação – pode afirmar-se superior aos demais.
244
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
De acordo com as lições de Flávia Piovesan (2005), os direitos humanos, por serem
fruto de reivindicações morais, só surgem e são consagrados quando devem e podem. Para
ela, eles são um construído axiológico, estando ainda em processo de consagração. Segue,
então, os ensinamentos de Noberto Bobbio (1992, p. 5), para quem os direitos humanos são
direitos históricos, “(...) ou seja, nascidos em certas circunstancias, caracterizadas por lutas
em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos
de uma vez e nem de uma vez por todas”.
Dalmo de Abreu Dallari (1998, p.7) afirma que os direitos humanos são “uma forma
abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são
considerados fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é
capaz de se desenvolver e participar plenamente da vida”.
Os direitos humanos, ademais, são frutos da dignidade da pessoa humana, sendo um
valor intrínseco dela, e configuram um “mínimo ético irredutível” (PIOVESAN, 2006, p. 22).
Por isso se diz que são universais, pois procuram proteger o indivíduo, independentemente do
contexto em que está inserido, tendo cada ser humano um conjunto de direitos fundamentais
inderrogáveis, pelo simples fato de ter nascido assim. As “normas universais protetoras de
direitos humanos é uma exigência do mundo contemporâneo” (GUIMARÃES, 2006, p. 63), e
os diversos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelos
mais diferentes Estados demonstrariam o consenso sobre o conteúdo deles.
Como conciliar, então, a soberania e os direitos humanos sem esvaziar o conteúdo
dela? Segundo Artur Cortez Bonifácio (2008), a soberania necessita do compromisso
constitucional de preservação da unidade material da Constituição. Assim, em sua concepção,
Cai por terra o discurso de defesa da rigidez da soberania, em desfavor da
política constitucional e internacional de defesa dos valores e direitos
fundamentais. A formulação teórica do Estado soberano, construído com
fundamento nos ensinamentos de Bodin, Hobbes, Maquiavel, Schmitt e
Kelsen, entre outros, comporta ajustes decorrentes da abertura da sociedade
universal, proveniente, entre outros, da globalização. (BONIFÁCIO, 2008, p.
295-296)
Portanto, se propõe uma superação do conceito clássico de Estado-Nação,
considerando que a Teoria Geral do Estado e o Direito Constitucional foram afetados pela
nova sociedade global, pelos processos de integração e pela formação de uma comunidade
internacional ou regional, considerando ainda que, conforme ensinamento do professor
245
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Bonifácio, o fundamento de uma Constituição Internacional encontra-se em laços
econômicos, étnicos, sociais, históricos, políticos, entre outros.
Os princípios que regem as relações internacionais e a política universal de proteção
dos direitos do homem acabam por ser as reais bases jurídicas do texto político. Isso implica
ainda no reconhecimento do caráter universal do Homem, principal elo de ligação das
diversas Constituições estatais à nova ordem jurídica, e que harmoniza os sistemas
No primeiro bordo, os princípios da soberania, da reciprocidade, da nãointervenção e da resolução pacífica dos conflitos e da igualdade entre os
Estados de há muito fundamentam as relações entre os Estados e
representam pilares no estudo do direito internacional público. De outro
lado, havemos que nos quedar a um truísmo contemporâneo, no caso o dever
incumbido aos Estados de tutelar os direitos humanos, como algo que se
situa acima das concepções clássicas de enfrentamento das questões
internacionais. (BONIFÁCIO, 2008, p. 300)
No mesmo sentido é o ensinamento de Rogério Taiar (2010). Para ele, a soberania,
prevista no artigo 2º, item 1, da Carta das Nações Unidas, que se funda na igualdade soberana
de todos os membros, continua sendo o “poder supremo que qualifica determinado Estado
diante dos demais” (TAIAR, 2010, p.11). Contudo, entende que, dentro desse conceito, houve
a inserção da proteção dos Direitos Humanos, em especial da dignidade da pessoa humana.
Em suas palavras:
Desse modo, a necessidade da intervenção humanitária relativizaria os
predicados internacionais da soberania e autodeterminação atribuídos ao
Estado, mas seria um procedimento legítimo diante da outra face da situação,
constituída pela necessária garantia internacional dos direitos humanos (...)
A primeira premissa tem como base a relativização da soberania em face da
necessária proteção dos direitos humanos. A segunda autoriza a intervenção
internacional para garantir a tutela dos direitos humanos quando do nãoexercício ou má-gestão da devida proteção pelo Estado, pois, embora a
soberania permaneça como poder estatal em um primeiro momento, a partir
do instante em que o Estado deixa de atender aos direitos humanos, abdica
da sua soberania nesse particular.
O objetivo é apresentar um entendimento no sentido de uma relativização da
soberania dos Estados em face da efetivação da proteção internacional dos
direitos humanos, em razão da soberania trazer em seu conceito o elemento
‘dignidade humana’, sendo que sua proteção é inerente. (TAIAR, 2010, p.
273-274)
O respeito aos direitos humanos não é assunto de interesse exclusivo do âmbito
interno dos Estados, sendo uma preocupação mundial. Por isso, a dignidade é proclamada
como valor supremo que alicerça a ordem jurídica democrática e permite o intercâmbio entre
os ordenamentos jurídicos no plano internacional.
246
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A ideia de uma concepção idêntica acerca da dignidade que seria atribuída a todo ser
humano, pelo simples fato de pertencer a essa espécie, foi concebida inicialmente pelo
cristianismo, se desenvolvendo pela filosofia, especialmente entre os teóricos modernos,
como Hobbes, Locke e Kant. Esse último, ressalte-se, entendia que, no mundo social, existiria
duas categorias de valores, quais sejam, o preço, valor exterior e que se manifesta nos
interesses particulares, comum nas coisas; e a dignidade, valor interior, fruto da moral, e que
seria de interesse geral, sendo encontrado nas pessoas. O valor moral, diferentemente da
mercadoria, não pode ser substituído por outro equivalente, de modo que se defende a
exigência de nunca transformar o homem em um meio para se atingir um determinado fim
(MORAES, 2006, p. 115-116).
Vigora, nos dias atuais, o entendimento de que o princípio da dignidade da pessoa
humana é um conceito aberto, com conteúdo impreciso (NOVAIS, 2011, p. 61), merecendo
destaque a lição produzida por Jorge Novais (2011, p. 53), para quem:
A dignidade da pessoa humana do Estado social e democrático de Direito é
circunstancial e temporalmente determinada e, nesse sentido, é própria de
um indivíduo comunitariamente integrado e condicionado, titular de direitos
fundamentais oponíveis ao Estado e aos concidadãos, mas socialmente
vinculado ao cumprimento dos deveres e obrigações que a decisão popular
soberana lhe impõe como condição da possibilidade de realização da
dignidade e dos direitos de todos.
Para melhor compreender esse conceito, sugere Maria Celina Bodin de Moraes
(2006, p. 119) que essa dignidade, como substrato material, teria quatro postulados, quais
sejam, o sujeito deve reconhecer a existência dos demais sujeitos como iguais a si; portanto,
merecedores do mesmo respeito e proteção de sua integridade psicofísica; com a verificação
de que todos são dotados de vontade livre, podendo se autodeterminar; e, por fim, por ser
parte de um grupo social, possuem a garantia de não serem marginalizados.
Para Jorge Miranda (2000, p. 183-184), a dignidade da pessoa humana, mesmo se
reportando a todas as pessoas, é sempre de uma pessoa individual e concreta; surge desde a
concepção; é da pessoa enquanto ser da espécie humana, se referindo a homens e mulheres;
que mesmo vivendo em relação comunitária, deve ser reconhecida a dignidade de cada pessoa
pelos demais membros do grupo; ela é da pessoa e não do grupo comunitário ou da situação
em que vive; o primado é do ser, prevalecendo a liberdade sobre a propriedade; ela justifica a
busca pela qualidade de vida; a proteção deve se dar não apenas internamente, mas
universalmente; pressupõe, por fim, a autonomia vital da pessoa.
247
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Mesmo que seja difícil compreender qual seria o seu conteúdo inerente, deve-se
resguardar o valor da pessoa humana e o incondicional respeito a sua dignidade.
Assim, é possível falar-se em um abrandamento ou relativização da soberania, para
se proteger a dignidade do ser humano, sem que isso imponha a falta de defesa dos valores
básicos da Constituição Federal, mas sim de uma complementação dos enunciados,
permitindo uma proteção mais ampla. Como a soberania é popular, ou seja, o poder advém do
povo, nada mais justo que se exija do Estado a proteção dos direitos inalienáveis de seus
cidadãos.
Este abrandamento é um meio de permitir a efetivação dos valores e direitos
fundamentais, pois “a proteção da dignidade humana é função do Estado soberano traduzida
no bem-estar dos seus cidadãos” (MIRANDA, 2000, p. 12).
Ademais, os princípios que regem as relações internacionais e a política universal de
proteção dos direitos do homem são as reais bases jurídicas do texto político, conforme
concluiu Cortez.
Por todo o exposto, é que não é necessário esvaziar a soberania, transferindo-a para
uma comunidade global que teria como órgão jurisdicional a Corte Internacional de justiça de
Haia (com algumas alterações), como proposto por Ferrajoli. Pode-se adotar uma posição
mais conciliatória, como a de Taiar, que entende que a ONU deve entrar em ação, com todos
os seus meios de intervenção, sempre que o Estado não observar os limites propostos, ou
mesmo a do professor Bonifácio, que vê, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma
instância revisional das decisões contrárias aos valores propostos adotadas pelo Supremo
Tribunal Federal.
5- CONCLUSÃO.
Pelo exposto, conclui-se que a soberania continua sendo um dos elementos do
Estado. Contudo, sua clássica concepção de poder absoluto e ilimitado, o qual não reconhece
qualquer outro acima de si, foi claramente se transformando, ao longo dos anos, para
encontrar sua restrição na própria proteção ao ser humano, detentor do poder soberano,
havendo ainda quem diga que seu conteúdo foi esvaziado.
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O Estado, então, pode ser visto como o sujeito de direito internacional com uma
ordem jurídica determinada e soberana, mas que tem por fim o bem comum de seu povo,
também sujeito de direitos, o qual está situado em determinado território. Essa soberania, pelo
visto, foi relativizada pela necessidade de proteger os direitos humanos, em especial,
assegurar o valor da dignidade da pessoa humana, encontrando-se nela a finalidade especial
que deve ser perseguida, o valor supremo que alicerça a ordem jurídica democrática e permite
o intercâmbio entre os ordenamentos jurídicos no plano internacional.
Esse limite não ameaça a soberania nacional, apenas sendo um elemento intrínseco
do conceito de soberania. Assim, a comunidade internacional deve atuar apenas
subsidiariamente, quando o Estado não puder assegurar os direitos humanos consagrados. O
sistema de proteção internacional dos mencionados direitos, conforme estabelecido pelas
Nações Unidas, vem complementar o sistema interno, lhe garantindo maior legitimidade.
Claro que esse sistema de proteção internacional precisa ser revisto, com a criação de
um verdadeiro regramento, impositivo, garantista, e que imponha maior adesão e respeito,
respeitando os avanços já alcançados como a Declaração Universal dos direitos do homem e
do cidadão, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos e o dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais. A partir daí, pode-se pensar em um órgão jurisdicional para revisar as decisões
estatais que visam assegurar a dignidade humana, sendo a Corte Internacional de Justiça de
Haia a mais adequada, por sua competência global.
249
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
ASPECTOS DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS SOB O
ENFOQUE DO DANO AMBIENTAL
ASPECTS OF THE INTERNATIONAL RESPONSABILITY OF STATES UNDER
THE FOCUS OF THE ENVIRONMENTAL DAMAGE
Rosane Sandoval Gonçalves Marini1
RESUMO
Um Estado responsável pela prática de um ato ilícito, segundo o Direito Internacional, deve
reparar ao Estado que sofreu o dano, situação que tem efeito garantidor da ordem jurídica.
Assim, também, nos casos de dano ambiental, a interdependência é ressaltada em razão da
natureza dos recursos, que são escassos. A responsabilidade internacional dos Estados ganha
visibilidade com os estudos elaborados pela Comissão de Direito Internacional da
Organização das Nações Unidas, que resultou no Projeto de Artigos sobre a Responsabilidade
dos Estados por Ato Internacionalmente Ilícitos, que embora ainda se encontre sujeito a
recomendações e alterações, constitui importante fonte da doutrina, bem como, não raras às
vezes, seus dispositivos são invocados pela Corte Internacional de Justiça. O presente artigo
visa destacar alguns aspectos da responsabilidade internacional dos Estados, em especial na
esfera ambiental, considerando os limites, dificuldades e perspectivas de sua aplicação.
Palavras-chave: Responsabilidade internacional dos Estados; Projeto de artigos; Comissão de
Direito Internacional; Dano ambiental.
ABSTRACT
A State held responsible for a wrongful act should, according to international law, compensate
or make reparation for the damage caused to the State which endured it, which ensures
international legal order. Hence, in case of environmental damage, the interdependence is
enhanced by the nature of the resources, which are scarce. International responsibility of
States gains visibility with the research carried out by International Law Commission of the
United Nations Organization, which resulted in the Draft Articles on Responsibility of States
for Internationally Wrongful Acts, which, despite still being subject to recommendations and
alterations, constitutes important legal doctrine and its articles are often quoted by the
International Court of Justice. The present study aims to highlight some aspects of
International responsibility of States, especially in the environmental area, considering limits,
difficulties and perspectives of its application.
Keywords: International responsibility of the States; Draft articles; International Law
Commission; Environmental damage.
1
Mestranda em Direito Agroambiental (UFMT). Pós-graduada em Direito Ambiental com ênfase em
Desenvolvimento Sustentável (Universidade de Cuiabá – UNIC). Graduada em Direito (Universidade de Cuiabá
– UNIC) e em Letras (UFMT). Servidora do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. Professora
universitária da disciplina de Direito Ambiental (Universidade de Cuiabá-MT). E-mail: [email protected]
254
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
INTRODUÇÃO
O estudo do tema da responsabilidade internacional por dano ambiental, embora
tratado de maneira superficial pelas diversas doutrinas de direito internacional, se mostra de
alta relevância, inclusive com tendência de destaque nos fóruns de discussão, porque, a cada
dia mais, os atos praticados pelos Estados geram consequências que fogem dos seus limites
territoriais, sobretudo se considerar que não raras às vezes, a degradação ambiental deriva de
atividades lícitas e necessárias ao desenvolvimento de determinado Estado.
Aliás, não se pode perder de vista que o meio ambiente não tem fronteiras, caso em
que o dano ambiental, por diversas vezes, não se circunscreve a este ou aquele Estado da
comunidade internacional.
Por sua vez, no Direito Internacional, a responsabilidade por dano ambiental, além de
ser uma garantia da ordem jurídica, mantém possível a cooperação, entendida não como troca
de interesses ou trocas compensatórias entre Estados, mas sim, cooperação em função de um
direito de todos ao meio ambiente saudável e propício a vida.
Considerada a importância na ordem internacional, o tema da responsabilidade
internacional dos Estados, passou a ser discutido e estudado pela Comissão de Direito
Internacional da Organização das Nações Unidas (CDI), desde a década de 1950, o que
resultou no Projeto de Artigos denominado Responsabilidade dos Estados por Atos
Internacionalmente Ilícitos, que foi aprovado em 2001, na 53ª sessão daquela Comissão,
porém, ainda sujeito a recomendações e alterações.
Desta feita, este artigo tem por objetivo apresentar breves considerações acerca do
instituto da responsabilidade internacional dos Estados, utilizando como base o Projeto de
Artigos elaborado pela CDI, com destaque na responsabilização por degradação ambiental,
suas consequências, e ainda, de que forma o tema tem se manifestado nas declarações e
convenções internacionais, que implica, frisa-se, na responsabilidade internacional dos
Estados no âmbito do Direito Internacional do Meio Ambiente.
Nessa linha, o trabalho se divide em duas partes principais: na primeira parte será
feita uma brevíssima análise histórica e dos fundamentos da responsabilidade internacional
dos Estados de uma maneira geral; no segundo momento, serão feitas algumas considerações
sobre as teorias da responsabilidade internacional dos Estados, as excludentes de
responsabilidade e os meios de reparação do dano, sob o enfoque do meio ambiente
internacional.
255
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
1 - DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS EM GERAL
A presente análise recai sobre a responsabilidade internacional dos Estados quando
nas suas relações com outros Estados, notadamente no que toca ao Direito Internacional do
Meio Ambiente, sem querer, portanto, avançar nos estudos sobre a responsabilidade
internacional por violação dos direitos humanos.
A responsabilidade internacional busca a reparação de uma ofensa cometida por um
Estado às normas de Direito Internacional, em oposição a outro Estado. Ou seja, assim como
no direito interno, um Estado responsável pela prática de um ato ilícito, segundo o Direito
Internacional, deve reparação ao Estado que sofreu o dano, situação que tem efeito garantidor
da ordem jurídica.
Sobre o tema, André de Carvalho Ramos, elucida:
No caso do Direito Internacional, a responsabilidade é uma garantia da
ordem jurídica como um todo, já que possibilita a manutenção do equilíbrio
e da equivalência entre os Estados-membros da comunidade internacional, o
que, de resto, mantém possível a cooperação em um mundo de Estados
interdependentes.2
E, em se tratando de dano ambiental, a interdependência dos Estados, que motiva a
cooperação, é ressaltada em função da natureza dos recursos, por sinal, escassos, que
diretamente se pretende proteger.
Nessa linha, se na ordem interna, o Estado responde pelo prejuízo causado por atos
ou omissões praticados por seus órgãos ou agentes, na ordem internacional não é diferente,
vale dizer, os Estados também respondem por seus atos que lesem direitos de outro Estado,
responsabilidade esta extensível às organizações internacionais, seja na figura de autora,
quanto como vítimas do ato ilícito.3
Desta feita, o instituto da responsabilidade internacional se revela como um
instrumento de regulação necessário às relações mútuas, inclusive a título de bem garantir o
respeito à igualdade soberana dos Estados.
2
RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional por violação de direitos humanos. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004. p.65.
3
REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 9. ed., São Paulo: Saraiva, 2002. p.
261.
256
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
1.1 BREVE
HISTÓRICO
DA
TEORIA
GERAL
DA
RESPONSABILIDADE
INTERNACIONAL DOS ESTADOS
Desde Hugo Grotius (1583/1645), passando pelos autores dos séculos XVII e XVIII,
já se discutia acerca da violação dos direitos dos Estados, no qual, nesse período, a resposta ao
ato ilícito dava ensejo a duas situações: legitimar ações de represália contra o violador da
norma e dar causa a uma obrigação de reparar. Nesse período, a violação da norma estava
associada à noção de culpa, no sentido de ligação psicológica entre o agente e o resultado da
ação, o que praticamente tornava impossível atribuir um ato de efeitos danosos ao Estado,
porque este se confundia com a pessoa do governante, que nada fazia de errado.4
Ainda, segundo a tradição do direito natural de Grotius, os reis têm direito de punir
não somente em razão dos danos cometidos contra eles mesmos ou seus súditos, mas também,
em razão de danos que não os afetam diretamente, mas que violam o direito natural ou das
nações em respeito a qualquer outra pessoa. Porém, tal posicionamento sofre mudança com o
entendimento de Emer de Vattel (1758), para o qual nenhum soberano tem o direito de fazer
represália contra uma nação em benefício de uma terceira parte, porque seria o mesmo que
fazer o papel de juiz entre a nação e o terceiro.5
Esta concepção, no sentido de que a responsabilidade somente pode ser invocada
pelo Estado que teve seus direitos infringidos, foi adotada pela maioria dos autores do século
XIX, até ser aperfeiçoada por Dionizio Anzilotti.
Aliás, a teoria de Anzilotti, ‘Teoria generale della responsabilità dello Stato nel
diritto internazionalde’, de 1902 e notadamente o artigo ‘La responsabilité internacionale des
Etats’, de 1906, são considerados como a primeira interpretação sistemática deste ramo do
direito internacional antes da Primeira Guerra Mundial.
Com a teoria geral de responsabilidade do Estado de Dionizio Anzilotti (1902), a
noção de culpa perde o liame psicológico entre o agente e o resultado da ação ou omissão,
anteriormente entendido, para configurar-se como um nexo de causa e efeito entre ambos,
admitindo-se, assim, a imputabilidade do Estado.6
4
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 710/711.
5
NOLT, George. From Dionísio Anzilotti to Roberto Ago: The classical international Law of state
responsability and the traditional primacy of a bilateral conception of international relations. Europian Journal of
International Law. Vol. 13, n. 5, 2002. p. 1083/1098.
6
SOARES, G. F. S. op.cit., p.711.
257
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Por sua vez, apregoa que a violação de uma norma de direito internacional enseja a
reparação, tida como obrigação primária da responsabilidade dos Estados. Acrescenta que
somente atos entre Estados ensejam a responsabilização perante o direito internacional, não
atos entre particulares.
Pela sua importância, após a Segunda Guerra Mundial, a Assembleia-Geral da ONU
requereu a CDI, estudos que levassem a codificação da matéria, o que resultou, após quase 55
anos, no Projeto de Artigos sobre a Responsabilidade dos Estados por Atos
Internacionalmente Ilícitos.
Com os estudos realizados pela comissão, sob a relatoria do Professor Roberto Ago,
a responsabilidade dos Estados é entendida como a consequência de um ilícito internacional,
caracterizada pela violação de uma norma primária, sendo o dever de reparar, uma obrigação
secundária.7
Por fim, não se pode deixar de anotar que se de um lado o pós-Segunda Guerra fez
alavancar os estudos acerca da responsabilidade internacional dos Estados, de outro, é certo
que os diversos casos de desastres ambientais que resultaram em litígios internacionais,
calcados em decisões judiciais e arbitrais, como o caso da Fundição Trail, revelaram a
ausência de normas para a responsabilização dos danos cometidos, seja por ato ilícito ou
lícito, bem assim a necessidade de sua elaboração.
1.1.1 Casos que revelam a importância da responsabilização internacional
É certo que somente após a Segunda Guerra Mundial, por conta das nefastas
violações aos direitos humanos, bem como em razão de acontecimentos e litígios
internacionais, especialmente no campo dos desastres ambientais, é que a responsabilidade
internacional ganhou impulso e novos direcionamentos, inclusive quanto à natureza da
responsabilização, no sentido de se reconhecer a responsabilidade objetiva.
Assim, impende registrar alguns casos relevantes para a construção da
responsabilidade civil internacional que, se não revelam a existência de uma norma violada,
contribui para a sua regulamentação, inclusive com vistas ao aspecto preventivo. Por sua vez,
anota-se que muitos dos casos ocorridos foram solucionados pela via negocial extrajudicial,
mas, mesmo com esse viés, configuram-se relevantes à contextualização do tema tratado.
7
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 712.
258
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Um primeiro evento, citado por grande parte da doutrina especializada, diz respeito
ao caso da Fundição Trail, considerado como a primeira manifestação do Direito
Internacional Ambiental.
No caso, uma grande fundição de chumbo e zinco localizada em Trail, na Columbia
Britânica, no Canadá, emitiu extensas colunas de fumaça tóxica, composta por partículas
sólidas e gases sulfurosos (chuva ácida), que atravessando o Canadá, atingiu os moradores de
Newport, no Estado de Washington, região noroeste dos Estados Unidos, causando toda sorte
de prejuízos nas plantações e nas florestas, um típico caso de poluição transfronteiriça.
Os fazendeiros americanos buscaram uma compensação pelos danos econômicos
sofridos e convenceram o governo americano a intervir em seu favor. Levado o caso a um
tribunal arbitral constituído entre os Estados, o Canadá foi responsabilizado pelos danos
sofridos. A sentença arbitral dispôs, ainda, acerca de comportamentos futuros a serem
adotados pela Fundição Trail, a título de prevenir novos danos, bem como estabeleceu uma
série de regulamentos, inclusive com direito de inspeção às instalações da empresa poluidora
e modificação ou suspensão de suas regras.
Assim, a sentença arbitral prolatada em 1941, considerada por alguns doutrinadores
como um caso clássico do direito internacional ambiental, estabeleceu que:
Nenhum Estado tem o direito de usar seu território ou de permitir o uso de
seu território de maneira tal que emanações de gases ocasionem danos dentro
do território de outro Estado ou sobre as propriedades ou pessoas que aí se
encontrem, quando se trata de consequências graves e o dano seja
determinado mediante prova certa e conclusiva.8
Seguramente o caso é sempre lembrado por ocasião do preceito registrado, que, aliás,
se encontra em diversos instrumentos e decisões internacionais, como no Princípio 21 da
Declaração de Estocolmo9, reiterado no Princípio 2 da Declaração do Rio de Janeiro10, bem
8
SILVA, G. E. do Nascimento e; ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. 15 ed.,
São Paulo: Saraiva, 2002. p. 322.
9
Princípio 21 da Declaração de Estocolmo - De acordo com a Carta das Nações Unidas e com os princípios do
direito internacional, os Estados têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos, de acordo com a sua
política ambiental, desde que as atividades levadas a efeito, dentro da jurisdição ou sob seu controle, não
prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda a jurisdição nacional.
10
Princípio 2 da Declaração do Rio de Janeiro – Os Estados, de conformidade com a
Carta das Nações Unidas e com o princípios de Direito Internacional, têm o direito soberano de explorar seus
próprios recursos segundo suas próprias políticas de meio ambiente e desenvolvimento, e a responsabilidade de
assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados
ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional.
259
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
como foi confirmado pela Corte Internacional de Justiça, quando do julgamento do caso do
Estreito de Corfu e Gabcikovo-Nagymaros, casos que serão relatados mais a frente.
É de notar que a solução ao caso retratado tem relação com o Projeto de Artigos da
Comissão de Direito Internacional, no ponto em que determina a infração de uma obrigação
pré-existente e avalia as consequências legais que surgem dessa infração.11
Por sua vez, o caso do petroleiro Torrey Canyon, de bandeira liberiana, fretado a uma
sociedade californiana e subfretado a uma sociedade britânica, em 1967, ao colidir com um
recife liberou no oceano toneladas de petróleo, atingindo, de início, a Cornualha e depois o
litoral francês, caso de poluição do meio marinho, as chamadas marés negras.
Embora na época já existisse duas Convenções relativas à prevenção de poluição do
mar por óleo, a de Londres de 1954 e a emenda de 1962, com previsão de aplicação de
sanções indenizatórias semelhantes as dos Estados-partes, a Libéria e os Estados Unidos não
eram signatários. Por sua vez, nem o direito francês, nem o inglês, poderia dar a solução
adequada ao caso posto, porque limitavam as indenizações a serem pagas pelos responsáveis
do dano, de sorte que não atingiria a extensão do dano ocasionado.
Dois pontos importantes do caso exposto. O primeiro diz respeito à adoção, dois anos
após o acidente, em 1969, em Bonn, do Acordo para Cooperação no Trato com a Poluição do
Mar do Norte por Óleo, e ainda, da Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil
sobre Danos Causados por Poluição por Óleo e da Convenção Internacional relativa à
Intervenção em Alto-Mar em casos de Baixas por Poluição de Óleo, firmadas em Bruxelas.
Outro fato importante desencadeado pelo acidente foi que o governo britânico decidiu
bombardear o casco do navio avariado, ato até então proibido, mas frente a grave situação do
desastre, tornado legítimo.12
Outro acidente, tão importante na construção da responsabilidade internacional
quanto os anteriores, ocorreu em 26 de abril de 1986, em um dos reatores da usina de
Chernobyl, na União Soviética, que acabou por atingir e ocasionar danos na Áustria, Hungria,
11
DRUMBL, Mark A.. Trail Smelter and the International Law Comission’s Work on State Responsability for
Internationally Wrongful Acts and State Liability. Washington & Lee Public Law and Legal Theory Research
Paper Series. n. 03-06. May 2003. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract_id=411764>. Acesso em:
21.07.2012.
12
De acordo com o Professor Guido Soares, tal decisão “(...) foi citada pela Comissão de Direito Internacional
das Nações Unidas como um exemplo moderno da prática de um ato proibido pelo Direito Internacional
(intervenção de forças armadas, em alto-mar, contra um navio mercante estrangeiro), mas tornado legítimo pela
ocorrência da circunstância de um ‘estado de necessidade’, uma vez que representou ‘o único meio de resguardar
um interesse essencial do Estado contra um perigo grave e iminente’, que teria sido a invasão das praias galesas
por uma onda devastadora de petróleo bruto, ainda maior que aquela que inevitavelmente veia a ocorrer.”(op. cit,
p.692).
260
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Itália, Iugoslávia, Reino Unido, Alemanha, Suécia e Suiça. A relevância do caso se apresenta
não em relação às indenizações pelos danos, que, aliás, não mereceram grande atenção da
doutrina, mas sim, repousa na adoção, pela Agência Internacional de Energia Atômica
(AIEA), de duas Convenções: a Convenção sobre pronta notificação de acidentes nucleares,
que cria a obrigação dos Estados de notificar prontamente aos outros Estados que possam ser
atingidos pelo dano, e a Convenção sobre Assistência no caso de Acidente Nuclear ou
Emergência Radiológica, na qual os Estados se comprometem em cooperar entre si e prestar
pronta assistência em caso de acidente nuclear. Porém, embora importantes, não tratam do
tema da responsabilidade internacional dos Estados.
Voltando ao caso Estreito de Corfu, localizado entre a ilha de Corfu, na Grécia, e a
costa da Albânia, em 1946, foi palco da explosão de dois navios de guerra britânicos, por
conta de minas ali instaladas. A Corte Internacional de Justiça entendeu que a Albânia, por
não dar conhecimento do perigo que significava a navegação naquelas águas, violara o direito
internacional. Aqui também, como no caso da Fundição Trail, não foi tratado, propriamente,
das questões ambientais, mas a importância se dá à medida que a sentença aplicada dita
limites de soberania dos Estados.13
Por fim, o caso Gabcikovo-Nagymaros é considerado pela jurisprudência
internacional, como o mais importante julgamento em que a Corte Internacional de Justiça se
pronunciou sobre o direito ambiental internacional.
Trata-se o caso de uma disputa que envolveu a construção de uma série de usinas
hidrelétricas no rio Danúbio, no qual a Hungria sustentou que a Eslováquia não considerou as
questões ecológicas, tampouco realizou um estudo sobre impacto ambiental. A Corte
Internacional de Justiça entendeu que incumbiam as partes a aplicação das normas de direito
internacional do meio ambiente, de sorte que a negociação se desse em harmonia com os
objetivos dos tratados celebrados, com os princípios do direito internacional, bem como em
razão do direito dos cursos de água internacionais.
Observa-se, assim, que embora os casos demonstrem, em parte, a ocorrência de
indenizações pelos danos causados a particulares, em nenhum deles houve providências de
responsabilização, de fato, do Estado envolvido, para fins de reparação do meio ambiente
prejudicado, o que não afasta a importância dos estudos e o fortalecimento do instituto, se não
13
SILVA, Geraldo Eulálio Nascimento e. Direito ambiental internacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Thex, 2002.
p.16.
261
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
para regulamentar os comportamentos a título de evitar a ocorrência de dano a pessoas e ao
meio ambiente, ao menos para propiciar a criação de um sistema de reparação.
1.2 OS ESTUDOS DE CODIFICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL
DOS ESTADOS NA COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
Os estudos da responsabilidade internacional dos Estados provêm dos trabalhos
realizados pela Comissão de Direito Internacional da ONU, numa tentativa de promover a
codificação e o desenvolvimento progressivo do Direito Internacional.
Em 1955, a Comissão de Direito Internacional deu início aos estudos da
responsabilidade do Estado com a nomeação do relator especial, o cubano Francisco Garcia
Amador, que, durante o período de 1956 a 1961, apresentou seis relatórios ou propostas para
discussão, cujo enfoque se ateve a questão da responsabilidade por danos as pessoas ou a
propriedades de estrangeiros, matéria um tanto quanto limitada.14
O segundo relator nomeado, Roberto Ago (1963), em sintonia com o propósito de se
empenhar a apresentar um trabalho substantivo, propôs uma mudança de foco, no sentido de
que os estudos deveriam abarcar as regras gerais regentes da responsabilidade internacional.
Em 1970, o relator Roberto Ago apresenta o relatório intitulado “A origem da
responsabilidade internacional”, que analisou os princípios do ato internacionalmente ilícito
como fonte de responsabilidade, as condições essenciais para a existência de um ato
internacionalmente ilícito e da capacidade a cometer tais atos. A ele se deve, também, a
estrutura e concepção geral que o projeto passaria a ter, como esquematizado: a primeira parte
centrada na origem da responsabilidade internacional, a segunda parte nos conteúdos, formas
e graus da responsabilidade internacional e a terceira, na aplicação das regras sobre
responsabilidade internacional e resoluções de controvérsias.15
No total, foram oito os relatórios apresentados por Ago, no período de 1963 a 1979, e
embora os avanços nos estudos, não foram suficientes para se proceder a sua codificação. Da
definição de ato ilícito por ele apresentada, impende anotar que sobreviveu a diferentes
propostas, bem como que seu plano de trabalho foi mantido pelos relatores que lhe sucedeu,
14
GARCIA, Márcio P.P. Responsabilidade internacional do Estado: atuação da CDI. Revista de Informação
Legislativa. Brasília, a.41, n. 162, abr./jun.2004. p.279.
15
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 719.
262
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
sujeito apenas a pequenas alterações, o que revela a importância do trabalho realizado nesse
período.
Com a saída de Roberto Ago da relatoria, porque eleito para a Corte Internacional de
Justiça, em seu lugar, em 1979, foi nomeado o jurista Wilhem Riphagen, sucedido por
Gaetano Arangio Ruiz, em 1987, que por sua vez foi substituído pelo jurista britânico James
Crawford, em 1996, em cuja relatoria deu-se a conclusão do projeto de artigos sobre a
responsabilidade internacional dos Estados.
Na 53ª sessão, em 2001, a CDI aprovou o conjunto final de projeto de artigos sobre a
responsabilidade dos Estados por atos internacionalmente ilícitos, porém ainda se encontra
sujeito a novo período de sessões e rodadas de debates, o que pode levar a novas
recomendações da CDI para se atender aos anseios dos Estados.16
Embora a obra da CDI seja considerada como uma importante fonte doutrinária da
atualidade, não se preocupou em dar ênfase ao Direito Internacional do Meio Ambiente. Não
por isso, seguramente, o projeto de artigos exerce relevância na determinação, ainda que de
modo subsidiário, no conteúdo do Direito Internacional. Aliás, não são raras às vezes em que
são invocados pela Corte Internacional de Justiça. Contudo, há que se registrar que ainda não
há consenso entre os Estados de que o projeto de artigos possa convergir a uma Convenção ou
um Tratado. Aliás, de sua aprovação pela Comissão até os dias atuais, não se verifica
qualquer movimento nesse sentido.
O projeto de convenção sobre responsabilidade internacional dos Estados, adotado
em 2001, é composto por 59 artigos que têm aplicação geral em todas as áreas do Direito
Internacional. Por sua vez, o projeto de artigos desenvolve uma estrutura regulatória de
obrigações de um Estado para com outro. Apresenta como tema, dentre outros, a conduta
atribuída ao Estado, determinação da infração, responsabilidade de um Estado em conexão
com atos de outro Estado, excludentes do ilícito, segurança de não repetição, reparação,
compensação, contramedidas, etc.
Nessa linha, o texto encontra-se dividido em quatro partes: Parte I – O ato
internacionalmente ilícito (arts. 1º a 27); Parte II – O conteúdo da Responsabilidade
16
O texto adotado pela Comissão na 53ª sessão, em 2001, e submetido à Assembleia Geral , contém comentários
dos artigos e consta do Yearbook of the international law comission. Vol. II, Part I e II, 2001. Disponível
em:<http://untreaty.un.org/ilc/publications/yearbooks/2001.htm>.Acesso em 24.04.2012.
263
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Internacional do Estado (arts. 28 a 41); Parte III – Implementação da Responsabilidade do
Estado (arts. 42 a 54) e, Parte IV – Disposições Gerais (arts. 55 a 59).17
Impende registrar que o projeto de artigos não estabelece obrigações primárias que
definem padrões de conduta. Na verdade, eles estabelecem obrigações secundárias que
nascem de uma infração de uma obrigação primária independente e preexistente e legitimam o
Estado a pedir a reparação pela violação da norma primária.
Esta distinção entre obrigações primárias e secundárias foi impulsionada por Roberto
Ago (1963/1979) que entendeu ser impossível a elaboração do projeto de artigos sem tal
distinção. Sobre o tema, esclarece Guido Soares:
Posto isto, a responsabilidade, no entender daquele pranteado professor da
Universidade de Milão, seria a consequência de um ilícito internacional, este
configurado como uma violação de uma obrigação primária, sendo o dever
de reparar uma obrigação secundária emergente da violação da primeira.18
Nessa linha de entendimento, a distinção entre normas primárias e secundárias reside
em dizer que as primeiras representam as regras de conduta, que uma vez violadas, fazem
surgir às obrigações secundárias, possibilitando, nos dizeres de André de Carvalho Ramos, na
possibilidade de se “extrair regras gerais de responsabilidade internacional utilizáveis em
todos os ramos do Direito Internacional”19.
1.3 ASPECTOS GERAIS DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS
O
estabelecimento
da
responsabilidade
internacional
dos
Estados
passa
necessariamente pelo estudo de alguns de seus elementos essenciais, sem os quais não se
configura o instituto. Nessa linha, por primeiro, mister apresentar o conceito de
responsabilidade, para então, se chegar em suas características elementares, típicas do
mecanismo de responsabilização.
17
SALIBA, Aziz Tuffi. Projeto da comissão de Direito Internacional das Nações Unidas sobre
responsabilidade internacional dos Estados. Disponível em: < http://novodireitointernacional.com.br/wpcontent/uploads/2012/02/Projeto-da-CDI-sobre-Responsabilidade-Internacional-dos-Estados.pdf>. Acesso em:
15.06.2012.
18
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 712.
19
RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional por violação de direitos humanos: seus
elementos, a reparação devida e sanções possíveis: teoria e prática do direito internacional Rio de Janeiro:
Renovar, 2004. p.76.
264
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
O termo responsabilidade vem do verbo latim respondere, que se traduz em um
direito a determinada resposta frente a uma violação da norma jurídica.
A respeito, Hildebrando Accyoli anota que para a Corte Internacional de Justiça, a
responsabilidade internacional é um princípio de direito internacional, uma concepção geral
do direito e que, qualquer violação de um compromisso implica na obrigação de reparar. 20
Para o jurista português, Jorge Miranda, responsabilidade internacional é:
Sempre que um sujeito de direito viola uma norma ou um dever a que está
adstrito em relação com outro sujeito ou sempre que, por qualquer forma,
causa-lhe um prejuízo, incorre em responsabilidade; fica constituído em
dever específico para com o lesado, Nisto consiste, muito em resumo, a
responsabilidade.21
Conquanto de valia os diversos conceitos trazidos pela doutrina internacional, o
projeto da CDI adotado em 2001, não se preocupou em definir o conceito de responsabilidade
internacional, mas sim, em determinar seu nascimento e suas consequências.
Nesse sentido, expressa o art. 1º:
Art. 1º A responsabilidade do Estado por seus atos internacionalmente
ilícitos.
Todo ato internacionalmente ilícito de um Estado acarreta sua
responsabilidade internacional.22
Dessa forma, acerca do conceito, pode-se concluir que caso um Estado pratique ato
ou fato ilícito contra uma norma jurídica ou obrigação internacional que venha a afetar outro
Estado ou a comunidade internacional como um todo, especialmente se tratar de dano
ambiental, incorrerá em responsabilidade internacional.
Dentre os elementos para a caracterização da responsabilidade internacional, estão à
existência de um ato ou omissão que viole uma obrigação estabelecida por uma norma de
Direito Internacional e que tal ato ou omissão seja imputado ao Estado ou a uma organização
internacional.
20
ACCIOLY, Hildebrando. Príncipes Généraux de La Responsabilité Internacionale D’Après La Doctrine et La
Jurisprudence. Recueil des Cours, vol.96 (1959-I), p.353.
21
MIRANDA, Jorge. Sobre a responsabilidade internacional. Revista da Fundação Escola Superior do
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, ano 10, v. 20, jul./dez. 2002, p.305/317.
22
No texto original: Article 1 - Responsibility of a State for its internationally wrongful acts. Every
internationally wrongful act of a State entails the international responsibility of that State. Disponível em:
<untreaty.un.org/ilc/texts/instruments/english/draf20%articles/9_6_2001.pdf>. Acesso em : 15.06.2012.
265
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Para a caracterização do ilícito (ação ou omissão) impõe-se a afronta a uma norma de
Direito Internacional: um princípio geral, uma regra costumeira, um dispositivo de tratado em
vigor, dentre outros.
Porém, para ensejar a responsabilidade, o ato deve ser ilícito perante o Direito
Internacional. Assim, não serve de escusa ao Estado, o fato do ilícito internacional ser ato
lícito no direito interno.
Acerca do ato ilícito, anota-se o artigo 2º do projeto da CDI:
Art. 2º. Há um ato internacionalmente ilícito do Estado quando a conduta,
consistindo em uma ação ou omissão:
a) é atribuível ao Estado consoante o Direito Internacional; e
b) constitui uma violação de uma obrigação internacional do Estado.
Por sua vez, dispõe o artigo 3º, in verbis:
Art. 3º. A caracterização de um ato de um Estado, como internacionalmente
ilícito, é regida pelo Direito Internacional. Tal caracterização não é afetada
pela caracterização do mesmo ato como lícito pelo direito interno.
A consequência de tal regra, aplicada às questões ambientais, é que um ato ou
omissão plenamente justificados pelo direito interno pode ser considerado ilícito pelo Direito
Internacional, desde que contrário as suas normas escritas ou costumeiras.23
Nessa situação, o Estado será responsabilizado, quer no caso de inexistir norma
interna que regule uma atividade de resultados lesivos em outros Estados, quer no caso de um
particular, que embora siga a risca a legislação local, venha a causar dano no território de
outro Estado, como no citado caso da Fundição Trail.
No que toca a imputabilidade, a doutrina entende como sendo o nexo causal que liga
o ato ilícito ao sujeito de direito responsável pela violação. Mister observar se o ato foi
praticado por um sujeito do Direito Internacional e, bem assim, se há o nexo de causalidade
que liga este sujeito ao ato considerado ilícito.
Segundo Valerio de Oliveira Mazzuoli, a imputabilidade é “o vínculo jurídico que se
forma entre o Estado (ou organização internacional) que transgrediu a norma internacional e o
Estado (ou organização internacional) que sofreu a lesão decorrente de tal violação”24.
23
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 730.
24
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 6. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012. p. 577.
266
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Não se confunde com a autoria, porque nem sempre o autor do ilícito é o responsável
por este perante a ordem internacional. Nessa ordem de ideias, o ilícito praticado pelos
funcionários do Estado, gera responsabilidade internacional para este e não àqueles.
Por sua vez, a atribuição da conduta a um Estado é tratada no projeto da CDI no
Capítulo II, da Parte I, nos artigos 4º a 11:
Art. 4º Conduta dos órgãos de um Estado
1. Considerar-se-á ato do Estado, segundo o Direito Internacional, a conduta
de qualquer órgão do Estado que exerça função legislativa, executiva,
judicial ou outra – qualquer que seja sua posição na organização do Estado e independentemente de se tratar de órgão do governo central ou de unidade
territorial do Estado.
2. Incluir-se-á como órgão qualquer pessoa ou entidade que tenha tal status
de acordo com o direito interno do Estado.
Ressalta-se, ainda, que o artigo 2º, já citado, não fala em imputabilidade, mas em
atribuição do Estado. Isso se dá, segundo Guido Soares, porque em alguns sistemas jurídicos,
a expressão “imputável” significa avaliar o agente, sua vontade, a título de determinar a
responsabilidade criminal, situação que, pelo projeto, não foi alvo de codificação.
Segundo ainda o citado professor, o projeto também não emprega a expressão culpa,
porque, no entender da CDI, o ato gerador da responsabilidade deriva da oposição ao próprio
direito internacional e não de um ato culposo.25
Aliás, tal linha de posicionamento foi objeto de registro pelo Relator James
Crawford, quando da revisão da primeira parte do Projeto de Artigos, no sentido de que este
tem como ponto central em seu capítulo um, que a infração a uma obrigação internacional
impõe a responsabilidade ao Estado, porém, a matéria é tratada sem qualquer outro elemento
adicional, tal como a culpa ou o dano.26
Assim como a culpa, o projeto da CDI não fez menção à ocorrência de dano como
um dos elementos constitutivos do ilícito ambiental. Na visão da CDI, o dano é consequência
do próprio ilícito internacional e se mostra relevante tão somente no momento de determinar o
quantum debeatur. Na verdade, o projeto não levou em conta a prática internacional no
sentido de entender a ocorrência do dano como elemento fundamental da responsabilidade.
25
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 726.
26
CRAWFORD, James. Revising the Draft Articles on Sate Responsibility. European Jornal of International
Law. Vol. 10, n. 2, 1999. p.438.
267
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Vale dizer, o dano não seria um elemento independente, porque contido nas normas primárias
e não nas secundárias, que geram a responsabilidade.
Porém, como anotado por Luis Cesar Ramos Pereira:
A doutrina mais recente assim não entende, tendo em vista ser o
inadimplemento de uma obrigação internacional um elemento necessário,
mas isoladamente sem a demonstração do dano sofrido, não é
suficientemente forte para caracterizar um delito internacional.27
Nessa linha, “se não existe direito lesado, não se pode falar em responsabilidade, no
sentido em que aqui é tomada a palavra”.28
Embora o projeto de artigos aprovado pela CDI não trate expressamente do dano
como elemento da responsabilidade, o art. 31 trata da reparação do prejuízo29, que
compreende tanto o dano material, como o moral causado pelo ato internacionalmente ilícito
de um Estado.
Por este viés, impende anotar que o dano nem sempre será material, ou seja, em nem
todos os casos haverá uma expressão econômica. Há também casos de dano imaterial, ou
moral, que leva o Estado faltoso a uma reparação, porém, destituída de valor econômico.
Nesse contexto, a doutrina recente, em sua grande maioria, define o dano como o
terceiro elemento constitutivo da responsabilidade internacional, contudo, vale frisar que o
dano a um sujeito de direito internacional, por si só, não configura a responsabilidade
internacional, porque, para esta, faz-se necessário, por evidente, que o dano seja decorrente de
um ato ilícito internacional cometido por um Estado ou organização internacional.
Por fim, não se pode deixar de ressaltar a importância do reconhecimento do dano
como elemento da responsabilidade internacional, especialmente em se tratando de
degradação ambiental, onde o dano ambiental gerado assume o papel preponderante na
responsabilização, especialmente na reparação ao status quo ante, ou se impossível, na
indenização.
27
PEREIRA, Luis Cezar Ramos. Ensaio sobre a responsabilidade internacional do Estado e suas consequências
no direito internacional: a saga da responsabilidade internacional do Estado. São Paulo: Ltr, 2000. p. 95.
28
ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1961. p.63.
29
Art. 31. Reparação
1. O Estado responsável tem obrigação de reparar integralmente o prejuízo causado pelo ato internacionalmente
ilícito.
2. O prejuízo compreende qualquer dano, material ou moral, causado pelo ato internacionalmente ilícito de um
Estado.
268
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
2 DOS SISTEMAS DE RESPONSABILIDADE DOS ESTADOS NO DIREITO
INTERNACIONAL
DO
MEIO
AMBIENTE
–
EXCLUDENTES
DE
RESPOSNSABILIDADE E MEIOS DE REPARAÇÃO
Visto os elementos da responsabilidade internacional, cumpre analisar as teorias
aplicáveis a responsabilidade internacional, ou melhor, a natureza jurídica deste instituto.
Neste ponto, duas teorias procuram explicar a responsabilidade internacional dos
Estados, a primeira calcada na teoria da responsabilidade subjetiva, ou com culpa, e a outra,
teoria da responsabilidade objetiva, na qual a responsabilidade advém pela só infração da
norma internacional, sem se perquirir acerca da culpa.
Por sua vez, fixados os termos da responsabilidade, seja por culpa ou objetiva, passase a analisar as excludentes de responsabilidade e os meios passíveis de reparação.
2.1 RESPONSABILIDADE SUBJETIVA OU POR CULPA
A responsabilidade do Estado no sistema da responsabilidade subjetiva decorre do
ato ilícito, advindo de uma conduta culposa praticada por um Estado ou organização
internacional e que se constitui na causa da obrigação de reparar.
É a mais antiga das teorias que tem sua origem no direito romano, segundo o qual
que in culpa non est, natura ad nihil tenetur. No Direito Internacional a sistematização, na
linha do princípio do direito romano, foi desenvolvida por Hugo Grotius, para o qual a culpa
se insere no conceito de responsabilidade internacional do Estado, concepção esta ainda
admitida por alguns autores.
Sua característica fundamental reside na violação da norma internacional (constante
em uma proibição) centrada na noção de culpa. Nesse sentido, um Estado para ser responsável
perante o Direito Internacional precisa não somente violar uma norma internacional, mas
fundamental violá-la com culpa ou dolo.
Vale dizer, para que haja a responsabilidade do Estado, necessário que exista a
intenção ilícita ou a negligência. Nesse sentido, esclarece Luis Cesar Ramos Pereira:
O fato que gera ou origina a Responsabilidade Internacional deve se basear
não só na quebra de uma obrigação internacional anteriormente assumida,
mas, também, deve constituir uma falta ou uma ausência, com base na
omissão, dolo, negligência, imprudência ou imperícia. Ou seja, a doutrina
‘antiga’, admitia comumente que uma violação do Direito Internacional, só
269
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
faz responsável o Estado quando tenha havido, por parte do órgão estatal
infrator, uma ação ou omissão culpável.30
Por sua vez, importa ressaltar que o sistema da responsabilidade subjetiva não se
encontra regulamentado por normas escritas especiais, mas sua regulamentação se dá por
meio de normas esparsas, costumes internacionais, jurisprudências de tribunais e arbitrais,
além dos princípios gerais do direito e da própria doutrina.
Conclui-se, assim, que o elemento essencial que configura a responsabilidade
internacional do Estado no sistema da responsabilidade subjetiva é a ocorrência de um ato ou
omissão culposa atribuível a um Estado ou organização internacional que viole uma norma de
Direito Internacional.
Embora consagrada na jurisprudência internacional, a responsabilidade subjetiva
baseada no elemento da culpa acaba por tornar complicada a responsabilização do Estado que
praticou o ilícito, principalmente em caso de dano ambiental.
Veja-se que nesse sistema cabe à vítima fazer prova de todos os elementos
necessários à questão da responsabilidade. Porém, a prova de uma intenção, do elemento
volitivo em Direito Internacional, muitas vezes é impossível, em virtude da soberania ou
poderio exercido pelo Estado ofensor.
Na verdade, a situação de provar a culpa de um Estado por determinado ato ou
omissão tido por ilícito, acaba por criar uma limitação quase que intransponível ao Estado
ofendido, notadamente se a prova que se pretende levantar diz respeito a ato ou omissão
oriundo de agentes do Estado ou de sua Administração.31
Ademais, não se pode esquecer de que em se tratando de responsabilidade por dano
ambiental, em muitas das vezes, o fato ilícito deriva de uma atividade lícita, o que revela, com
maior expressão, a dificuldade na aplicação desse sistema.
Assim é que, considerada a evidente dificuldade na prova da culpa do Estado
infrator, um novo sistema surge como reação ao anterior, no sentido de não mais utilizar o
elemento culpa na composição da responsabilidade.
30
PEREIRA, Luis Cezar Ramos. Ensaio sobre a responsabilidade internacional do Estado e suas consequências
no direito internacional: a saga da responsabilidade internacional do Estado. São Paulo: Ltr, 2000, p. 102.
31
Idem, p. 103.
270
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
2.2 RESPONSABILIDADE OBJETIVA
O sistema da responsabilidade subjetiva, defendida por Hugo Grotius, sofreu forte
reação de Triepel, que instituiu à responsabilidade uma base objetivista.32 Tal orientação foi
seguida por Dionzio Anzilotti, considerado o maior difundidor desta teoria, cujo dever de
reparação nasce toda vez que houver uma violação da norma internacional.
Assim é que para a corrente objetivista, a responsabilização do Estado tem sua base
tão somente na violação de normas de Direito Internacional, observado o nexo causal entre a
atividade do Estado e o ato ou omissão contrário ao Direito Internacional, não se perquirindo
acerca da culpa ou de qualquer elemento psíquico. Nesse viés, a regulamentação se dá por
meio de normas escritas e precisas, delimitada dentro de um campo de assunto determinado e
que instituem a obrigação de reparação do dano independente do ato (omissão) que lhe deu
causa ser lícito ou ilícito. Vale dizer, ocorrido o dano surge o dever de reparar.33
Nessa linha, o ensinamento de André de Carvalho Ramos
A responsabilidade objetiva é caracterizada pela aceitação da ausência da
prova de qualquer elemento volitivo ou psíquico do agente. Bastaria a
comprovação do nexo causal, da conduta e do dano em si.34
Desta feita, nesta base de fundamento, a CDI adotou a responsabilidade objetiva no
art. 3º (já transcrito), ao indicar os dois elementos do fato ilícito internacional, vale dizer, a
conduta (ação ou omissão) e o fato (violação da norma de Direito Internacional).
De outro lado, parece ser crescente a admissão de uma responsabilidade
internacional por ato lícito, especialmente no campo do Direito Internacional do Meio
Ambiente, na qual o Estado responde pelos danos causados independente das precauções
tomadas, o que, em tese, afasta qualquer cláusula de exoneração de responsabilidade.
Do mesmo modo que a CDI estudou e adotou o projeto de artigos sobre a
responsabilidade internacional do Estado por atos ilícitos, também adotou uma codificação só
para eventos lícitos, provocadores de danos transfronteiriços.
32
ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1961. p. 64.
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001. p. 134/135.
34
RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional por violação de direitos humanos: seus
elementos, a reparação devida e sanções possíveis: teoria e prática do direito internacional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004. p.75.
33
271
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Daí se vê a importância e o crescimento do regime de responsabilidade objetiva por
ato lícito do Estado.
Por sua vez, frisa-se que tal sistema de responsabilidade objetiva por risco, por ser
exceção ao sistema geral do Direito Internacional, que segue a regra subjetiva, deve ser
regulado por normas escritas e precisas35, como a que se deu, por exemplo, com a Convenção
sobre responsabilidade civil contra terceiros no campo da Energia Nuclear, adotada em Paris
em 1960, sob a égide da OCDE.
Vale ressaltar que a previsão desse tipo de responsabilidade expressamente nos
textos do jus scriptum é condição sine qua non para a responsabilização, independentemente,
ainda, de se tratar de ato lícito ou ilícito.
Assim, embora ainda carecedora de maiores estudos pela CDI, a responsabilidade
internacional do Estado por ato lícito, regida pelo sistema da responsabilidade objetiva por
risco, tem sido objeto de convenções em casos especiais que necessitam de um tratamento
diferenciado acerca da responsabilidade internacional, como, por exemplo, as atividades, que
apesar de serem lícitas, são consideradas extremamente perigosas: as que tratam de
lançamentos espaciais, energia nuclear, bem como aquelas que dizem respeito a transporte e
uso de hidrocarbonetos.
Sobre o tema, Rezek esclarece:
Igualmente certo, contudo, é que não se admite em direito das gentes uma
responsabilidade objetiva, independente da verificação de qualquer
procedimento faltoso, exceto em casos especiais e tópicos, disciplinados por
convenções recentes.
‘Assim as atividades nucleares de índole pacífica, bem como as atividades
espaciais, embora perfeitamente lícitas, podem causar danos que o Estado
responsável deve reparar. Seria, entretanto, mais apropriado entender que
neste caso a responsabilidade resulta não dos empreendimentos espaciais ou
nucleares, lícitos em si mesmos, mas da recusa de compensar danos
causados a outrem’.36
Pode-se dizer, então, que neste sistema (por risco) a responsabilidade não depende da
ilicitude do ato, nem se o Estado tomou ou não as precauções exigidas, mas tem por
pressuposto a responsabilidade do agente fundada em bases escritas e bem definidas.
35
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2001. p.134.
36
REZEK, José Francisco. Direito internacional público. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p.263.
272
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Há que se anotar, porém, que não há, ainda, consenso acerca deste regime de
responsabilidade entre os doutrinadores.
André de Carvalho Ramos entende que “a teoria absoluta como uma teoria criadora
de novas obrigações primárias – convencionais ou costumeiras – e não uma autêntica teoria
de responsabilidade internacional do Estado”37.
Por seu turno, para Luis Cezar Ramos Pereira, não se mostra necessária a separação
da responsabilidade, se oriunda de um ato ilícito ou lícito, porque, no seu pensar, em ambos
os casos, a ofensa recai em normas de Direito Internacional.38
No ponto, vale lembrar que o julgado do caso da Fundição Trail, cujo trecho da
sentença já foi objeto de citação, é utilizado largamente em diversos outros casos de
julgamento, seja pela Corte Internacional de Justiça, seja pelos Estados, justamente em
situações que envolvem atos lícitos, porém, danosos.
Mister ponderar, por fim, que a responsabilidade internacional do Estado, sob a
modalidade do risco, surge especialmente no Direito Internacional do Meio Ambiente, em
razão da regra tradicional (subjetiva) não se mostrar suficiente a solução das
responsabilidades derivadas da degradação ambiental, porque, não é demais frisar, que o dano
ambiental, por demais das vezes, reflete além dos limites territoriais de um Estado e advém de
atividades lícitas.
Nessa linha, ressalvadas as dificuldades no avanço da codificação, por despeito dos
próprios Estados que não aderem à norma escrita que, em tese, significaria o “destronamento”
de sua soberania, certo é que já são diversas as convenções que tratam da responsabilidade
internacional do Estado por ato lícito.
Assim, em que pese o sistema da responsabilidade objetiva ser a melhor expressão
para a pronta reparação do dano ambiental, não se pode olvidar de que só tem aplicação
quando prevista em normas escritas, claras e precisas.
Ocorre que, por força do avanço da tecnologia, não se pode prever e responsabilizar
todas as situações passíveis de gerar dano ambiental. De sorte que, se não previstas, não se
pode aplicar a responsabilidade objetiva, o que leva, nesses casos, a aplicação da
37
RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional por violação de direitos humanos: seus
elementos, a reparação devida e sanções possíveis: teoria e prática do direito internacional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004. p.34.
38
PEREIRA, Luis Cezar Ramos. Ensaio sobre a responsabilidade internacional do Estado e suas consequências
no direito internacional: a saga da responsabilidade internacional do Estado. São Paulo: Ltr, 2000. p. 118.
273
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
responsabilidade subjetiva, onde se faz necessário apurar a culpa do suposto Estado ofensor, o
que, como vimos, é altamente comprometedor em se tratando de efetividade na reparação do
dano.
2.2.1 Convenções e Tratados do Direito Internacional do Meio Ambiente que
contemplam normas de responsabilidade objetiva
De acordo com Guido Soares, a responsabilidade objetiva nasceu com os textos jus
scriptum, notadamente quanto à regulamentação de atividades danosas ao meio ambiente,
sendo a Convenção sobre Responsabilidade Civil contra Terceiros no Campo da Energia
Nuclear, adotada em Paris, em 1960, a primeira a versar sobre a responsabilidade
internacional do Estado, frisa-se, no sistema da responsabilidade objetiva.
Alguns autores, no entanto, consideram como primeira manifestação da
responsabilidade objetiva por dano ambiental, os casos da Fundição Trail e do Estreito de
Corfu.
Observa-se, por sua vez, que a idéia de responsabilizar e indenizar um dano
ecológico se encontra prevista no Princípio 22 da Declaração de Estocolmo39, entendimento
corroborado no Princípio 13 da Declaração do Rio de Janeiro40.
Além da Convenção sobre Responsabilidade Civil contra Terceiros no Campo da
Energia Nuclear, adotada em Paris, em 1960, anota-se alguns Tratados e Convenções que se
encontram em vigor internacional e que versam sobre responsabilidade objetiva, de maneira
específica sobre: a) danos nucleares – Convenção de Viena sobre Responsabilidade Civil por
Danos Nucleares, de 1963, promulgada no Brasil em 03.09.1993; b) dano à poluição marinha
por óleo – Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil por Danos Causados por
Poluição por Óleo, Bruxelas, 1969, promulgada no Brasil em 28.03.1977; c) danos causados
39
Princípio 22 da Declaração de Estocolmo. Os Estados devem cooperar para o contínuo desenvolvimento do
Direito Internacional no que se refere à responsabilidade e à indenização, às vítimas de contaminação e de outros
danos ambientais por atividades realizadas dentro da jurisdição ou sob o controle de tais Estados em zonas
situadas fora de sua jurisdição.
40
Princípio 13 da Declaração do Rio de Janeiro. Os Estados devem desenvolver legislação nacional relativa à
responsabilidade e indenização das vítimas de poluição e outros danos ambientais. Os Estados devem ainda,
cooperar de forma expedita e determinada para o desenvolvimento de normas adicionais de direito ambiental
internacional relativas à responsabilidade e indenização por efeitos adversos causados por danos ambientais em
áreas fora de sua jurisdição, por atividades dentro de sua jurisdição ou sob seu controle.
274
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
por objetos espaciais – Convenção sobre Responsabilidade Internacional por Danos Causados
por Objetos Espaciais, Londres, 1972, promulgada em 22.03.1972.41
Ainda, no campo das Convenções que têm papel fundamental no sistema da
responsabilidade objetiva e no Direito Internacional do Meio Ambiente, no quadro do
Conselho da Europa foi adotada a Convenção Européia sobre Responsabilidade Civil dos
Danos resultantes de Atividades Perigosas para o Meio Ambiente (Lugano, 1993).
Cabe aqui sua referência, em especial, porque surge após o impacto gerado pela
poluição gerada no rio Reno pelo incêndio da fábrica Sandoz42. É considerada a primeira
Convenção Internacional que tratou do tema da responsabilidade internacional por atividades
perigosas ao meio ambiente, com declaração expressa de sua finalidade preservacionista.
Referida Convenção (Lugano) adota a regra da responsabilidade objetiva no artigo
6º, no qual o operador será responsável pelo dano causado pelas atividades resultantes de
incidentes ocorridos no período em que encontrava no controle das atividades, e no art. 7º,
que trata da responsabilidade em relação a locais para depósito permanente de resíduos.
Traz, ainda, como ponto inovador, a possibilidade de se restringir o conceito de coisa
julgada, no sentido de que ao Estado ofensor não é dado o direito de continuar a poluir, ainda
que paga a indenização em processo judicial anterior (art. 10).
Também de caráter moderno, o disposto no art. 3º ao inserir no rol das atividades
perigosas, as manipulações com microorganismos geneticamente modificados, quando destas
resultem situações de risco para o homem e o meio ambiente.
De modo não diferente, a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar
(Montego Bay, 1982) adotou a responsabilidade internacional objetiva por risco no caso de
poluição dos mares por vazamento de petróleo (art. 235).
Por sua vez, a Convenção de Bamako (1991), que diz com a interdição da
importação de rejeitos perigosos para a África e ao controle da movimentação transfronteiriça
e a gestão desses rejeitos na África, impõe a responsabilidade objetiva e ilimitada, assim
41
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2001. p.778/ 780.
42
Trata-se, na verdade, dos efeitos que um incêndio numa das fábricas da Sandoz gerou ao meio ambiente. O
problema se deu porque a água utilizada para combater o incêndio num dos depósitos da fábrica que continha
vários produtos químicos, foi lançada diretamente no rio Reno, num período de 24 horas, o que gerou uma onda
tóxica que atravessou o Reno e deixou marcas danosas não só a pessoas, mas principalmente ao meio aquático e,
por conseqüência, ao abastecimento de águas de cidades de outros Estados. Embora a doutrina entenda pela
responsabilidade internacional do Estado Suíço, que foi omisso na supervisão no que respeita as normas de
estocagem de produtos tóxicos, bem como pelos métodos de combate ao incêndio, as indenizações se resolveram
extrajudicialmente, seja com o envio de reclamações diretamente a empresa Sandoz, seja a seguradora.
275
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
como a responsabilidade conjunta e solidária aos produtores de rejeitos perigosos (art. 4º,
alínea 3, letra “b”).
Não excluindo a importância para o Direito Internacional do Meio Ambiente, bem
assim para o instituto da responsabilidade internacional, certo é que tais convenções e tratados
surgem de uma necessidade de adequar situações contraditórias, ou melhor, embora a
atividade seja de risco, não se pode proibir a atuação, por força de sua essencialidade.
Todavia, conquanto tais convenções não signifiquem a efetiva proteção do meio
ambiente, não se pode afastar que a instituição de uma responsabilidade objetiva, por risco,
venha a significar um equilíbrio dos interesses dos Estados em razão de atividades
potencialmente causadoras de danos transfronteiriços, forte nos princípios da cooperação e da
precaução.
2.3 AS EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE NO PROJETO DE CONVENÇÃO
DA COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
A Parte I, Capítulo V, do Projeto da CDI trata das circunstâncias que excluem a
responsabilidade nos artigos 20 a 25.
Frisa-se que as circunstâncias elencadas são causas de exclusão de ilicitude, porém
não isentam, salvo no caso de legítima defesa, o Estado do dever de indenizar por razões de
justiça, igualdade ou de segurança internacional.43
A primeira situação trazida diz respeito ao consentimento (art. 20). Este se dá quando
um Estado consente a outro a prática de um ato que em condições normais seria tido por
ilícito internacional, como no caso do envio de forças por um Estado ao território de outro,
com a permissão deste, para o fim de reprimir alguma atividade terrorista. Contudo, o ato
praticado deve se ater aos limites do que foi consentido.
A legítima defesa (art. 21) pressupõe uma reação imediata a uma agressão injusta,
desde que dentro dos limites da autodefesa permitida pelo art. 51 da Carta das Nações Unidas,
que expressa:
Art. 51 Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima
defesa individual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra
um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha
43
MIRANDA, Jorge. Sobre a responsabilidade internacional. Revista Fundação Escola Superior Ministério
Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, vol. 20, jul/dez. 2002. p.311.
276
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança
internacionais. As medidas tomadas pelos membros no exercício desse
direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao ao Conselho
de Segurança e não deverão de modo algum, atingir a autoridade e a
responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito,
em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao
restabelecimento da paz e da segurança internacionais.44
De maneira a esclarecer:
Frisa-se que a legítima defesa pressupõe sempre uma agressão injusta (sem
causa) e uma reação estatal imediata, levada a efeito pela necessidade de
defesa, necessária à preservação de pessoas e da dignidade do Estado. Essa
reação do Estado deve dar-se por meio de uma medida lícita de defesa,
manifestada de maneira adequada, proporcional ao ataque ou ao perigo
iminente.45
Por sua vez, a contramedida (art. 22) constitui num ato ilícito, porém justificado por
ser o único meio de combate a outro ato igualmente ilícito praticado por outro Estado, e que,
por essa característica, perde o caráter de ilícito. A título de exemplo, citam-se como formas
de contramedida as restrições unilaterais e discriminatórias ao comércio internacional.
No ponto, Guido Soares lança uma crítica que merece o respeito da comunidade
internacional:
O exercício de medidas ilícitas, que se tornem lícitas, porque tomadas em
face da ilicitude de outrem, é por demais excepcionador dos princípios gerais
do Direito, para que possa ser utilizado sem grandes reservas ou
condicionamentos. O grande perigo de permitir ilícitos de maneira não
limitada e, sobretudo de maneira unilateral por parte dos Estados é que
poderia servir de pretexto para a comissão de determinados ilícitos, sob a
capa de proteção de outros valores menos nobres que o princípio da nãointervenção.46
O autor, alerta, ainda, que em se tratando de proteção ao meio ambiente, a
contramedida utilizada por determinado Estado contra outro e que venha a refletir no
comércio internacional, revela-se, nada mais que uma forma de mascarar uma política
protecionista e discriminatória.
44
ONU. Carta das Nações Unidas. Disponível em: < http://www.oas.org>. Acesso em 20.06.2012.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 6. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012. p.592.
46
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2001. p.862.
45
277
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Assim, embora prevista a contramedida como forma excludente de responsabilidade,
há que se ponderar sua aceitação, em especial a justificar a real necessidade de aplicação.
A excludente de força maior (art. 23) é aceita quando o ato ilícito ocorre em razão de
um evento externo imprevisto e fora de controle do Estado. Nesse caso, não há manifestação
de uma vontade ilícita de um Estado, mas o ilícito configura-se por circunstâncias alheias à
vontade do Estado, sem que lhe seja oportunizado qualquer tipo de previsão e resistência a
sua ocorrência.
O artigo explicita, ainda, os casos em que a força maior não será aplicada: quando a
força maior se deve exclusivamente ou em conjunto de fatores a própria conduta do Estado
que a invoca ou quando o Estado assumiu o risco para que a situação ocorresse.47
A excludente do perigo extremo (art. 24) é invocada quando não se tem outro modo
razoável de salvaguardar vidas que estejam confinadas aquele Estado ou a título de proteção
do meio ambiente.
A título de exemplo, registra-se que tal circunstância encontra-se prevista em dois
artigos da Convenção de Montego Bay: no art. 18, § 2º, que trata da paragem e fundeamento
no caso de passagem inocente48 e art. 142, § 3º, que estabelece os direitos dos Estados
costeiros em tomar medidas para prevenir, atenuar ou eliminar um perigo grave e iminente em
seu litoral, resultantes de poluição ou de ameaça de poluição ou outros acidentes causados por
qualquer outra atividade49.
O artigo também aponta duas situações em que a excludente não pode ser aplicada.
Caso a situação de extremo perigo é devida em razão da conduta do próprio Estado que a
invoca e se o ato criar um perigo comparável ou maior (art. 24, § 2º).
Por fim, o art. 25 dispõe acerca do estado de necessidade, que se dará somente
quando não houver outro meio de resguardar o interesse numa situação de perigo iminente e
47
Art. 23. Força maior. 1. A ilicitude de um ato de um Estado em desacordo com uma obrigação internacional
daquele Estado será excluída se o ato se der em razão de força maior, entendida como a ocorrência de uma força
irresistível ou de um acontecimento imprevisível, além do controle do Estado, tornando materialmente
impossível, nesta circunstância, a realização da obrigação. 2. O parágrafo 1º não se aplica se: a) a situação de
força maior é devida, por si só ou em combinação com outros fatores, à conduta do Estado que a invoca; ou b) o
Estado assumiu o risco daquela situação ocorrida.
48
Art. 18, § 2º. A passagem deverá ser contínua e rápida. No entanto, a passagem compreende o parar e o
fundear, mas apenas na medida em que os mesmos constituam incidentes comuns de navegação ou sejam
impostos por motivos de força maior ou por dificuldade grave ou tenham por fim prestar auxílio a pessoas,
navios ou aeronaves em perigo ou dificuldade grave.
49
Art. 142, § 3º. Nem a presente Parte nem quaisquer direitos concedidos ou exercidos nos termos da mesma
devem afetar os direitos dos Estados costeiros de tomarem medidas compatíveis com as disposições pertinentes
da Parte XII que sejam necessárias para prevenir, atenuar ou eliminar um perigo grave ou iminente para o seu
litoral ou interesses conexos, resultantes de poluição ou de ameaça de poluição ou de outros acidentes resultantes
ou causados por quaisquer atividades na Área.
278
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
desde que não produza ofensa grave a um interesse essencial do Estado a qual existia a
obrigação.
Aqui vale lembrar, que no estudo do projeto de artigos da responsabilidade
internacional pela CDI, muito se utilizou dos precedentes judiciais e arbitrais, além dos
costumes para sua formulação, incluído aí, as causas excludentes de ilicitude.
Propriamente quanto à excludente neste ponto tratada, foi caracterizada no Caso
Torrey Canyon, quando o Governo inglês queimou parte do óleo derramado em suas águas ao
bombardear o superpetroleiro a fim de evitar a invasão das suas costas por uma onde de maré
negra de proporções maiores do que até então havia sido atingida.
Quanto à aplicação das excludentes, parece não haver dificuldade nos casos de
responsabilidade subjetiva.
Porém, quando se trata da responsabilidade objetiva, que tem por fundamento o
ferimento de normas claras e precisas de Direito Internacional e tem sua base tão somente na
comprovação do nexo causal entre a atividade do Estado e o ato (ou omissão) contrário ao
Direito Internacional, afastado o elemento da culpa, a aplicação das excludentes também
deverá observar essa característica, vale dizer, observar o disposto na norma escrita, se há ou
não previsão para tanto.
2.4 DOS MEIOS DE REPARAÇÃO PELO ATO INTERNACIONALMENTE ILÍCITO
Como visto, o descumprimento de uma norma de Direito Internacional gera o dever
de reparar. Pode-se dizer que a reparação de forma adequada e justa é o corolário da
responsabilidade internacional50, como, inclusive, disposto no art. 3151.
No campo do Direito Internacional Ambiental tal dispositivo merece especial
atenção, porque constitui um importante instrumento na proteção do ambiente e no
comprometimento dos Estados no sentido de obstarem novas ocorrências do ato ilícito
anteriormente perpetrado.
De acordo com o projeto da CDI, o primeiro requisito a ser observado pelo Estado
quando do descumprimento da obrigação é a cessação da conduta, ou seja, a intenção primeira
50
PEREIRA, Luis Cezar Ramos. Ensaio sobre a responsabilidade internacional do Estado e suas consequências
no direito internacional: a saga da responsabilidade internacional do Estado. São Paulo: Ltr, 2000. p. 382.
51
Ver nota 29.
279
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
é por um fim à violação de sorte a salvaguardar os interesses do Estado ofendido, bem como a
validade da norma primária violada.
Constam do projeto de artigos as seguintes formas de reparação: restituição,
indenização e satisfação (arts. 35 a 37).
Contudo, quando se fala em dano ambiental e reparação/indenização, um problema
se avizinha. Vale dizer, a dificuldade está justamente em estabelecer parâmetros de valores
para o dano que pode ter trazido sérios prejuízos, inclusive para mais de um Estado.
A questão que surge está na possibilidade ou não de se aferir, em termos financeiros,
o dano material e moral, por exemplo, pela perda da biodiversidade.
Não se pode afastar, ainda, a possibilidade de o dano ambiental gerar em
determinados casos, efeitos que se prolongam no tempo, a exemplo de Chernobyl, ou mesmo
no caso dos graves desastres dos petroleiros nas costas dos Estados (Torrey Canyon, Amoco
Cádiz), para não dizer que em determinadas situações o dano pode não ser notado de
imediato.
Aliás, impende registrar que no caso Amoco Cádiz, embora acolhido diversos
pedidos de indenização, o pedido pela perda da biomassa, um dano eminentemente ao meio
ambiente, foi indeferido, pela impossibilidade de avaliação do dano e por se tratar de res
nullius.52
Por fim, não se pode olvidar de que a ausência de normas específicas sobreleva a
dificuldade da aferição da responsabilização, o que dirá do próprio dano e, em especial, o
dano ambiental.
CONCLUSÃO
Conquanto a importância do tema da responsabilidade internacional, certo é que há
grande resistência dos Estados e suscita imperiosas dificuldades.
A discussão acerca da violação dos direitos dos Estados, que gera alguma reparação,
tem suas reminiscências com Hugo Grotius, passando pelos estudos de Dionizio Anzilotti,
mas foi somente após a Segunda Guerra Mundial, com a ocorrência de barbáries humanas,
que a Assembleia Geral da ONU requereu à Comissão de Direito Internacional a codificação
52
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e
responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2001.p.701.
280
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
da matéria, resultando, após 55 anos, em 2001, no Projeto de Artigos sobre Responsabilidade
dos Estados por Atos Internacionalmente Ilícitos.
O projeto de artigos, conquanto ainda esteja aberto a discussões, tem sido utilizado
como importante fonte doutrinária e jurisprudencial na atualidade. Porém, de outro turno, não
afastada sua relevância, observa-se que não se preocupou em dar ênfase ao Direito
Internacional do Meio Ambiente.
De maneira geral, nos termos do disposto no projeto de artigos da CDI, caso um
Estado pratique ato contra uma norma jurídica ou obrigação internacional que venha a afetar
um outro Estado, incorrerá em responsabilidade internacional.
A regra é da responsabilidade subjetiva, na qual se afere a conduta culposa praticada
por um Estado ou organização internacional, que viole uma norma de Direito Internacional e
constitui no dever de reparar. Sua regulamentação não se encontra em normas escritas
especiais, mas sim por meio de normas esparsas, costumes internacionais, jurisprudências de
tribunais e arbitrais, além dos princípios gerais do direito e da própria doutrina.
Porém,
embora
consagrada
na
jurisprudência
internacional,
a
regra
da
responsabilidade subjetiva se apresenta de difícil aplicação, em razão das limitações que
surgem ao tentar atribuir a culpa ao Estado ofensor.
Para tanto, encontra-se em franco desenvolvimento o sistema da responsabilidade
objetiva, onde se prescinde o elemento culpa. Nesse caso, a regulamentação se dá por meio de
normas escritas especiais, delimitada dentro de um campo de assunto determinado e que
instituem a obrigação de reparar o dano independente da culpa, ou ainda, do ato que deu causa
ser ilícito ou lícito.
Tal sistema vem de encontro à necessidade de responsabilização quando se trata de
dano ambiental, que, como anotado, muitas vezes procede de atividades lícitas praticadas pelo
Estado.
Problema que se aponta, está no fato de que tal sistema de responsabilidade somente
pode ser aplicado quando devidamente previsto em norma específica. Em especial quando se
fala em meio ambiente, não se pode prever todos os casos passíveis de gerar dano ambiental.
Assim é que, ainda hoje, na falta de normas específicas, aplica-se a regra geral, com suas
limitações.
Outra dificuldade que se verifica no sistema de responsabilização, seja subjetiva ou
objetiva, notadamente em caso de dano ambiental, quando se consegue responsabilizar, está
em se estabelecer parâmetros de valores quanto ao dano praticado.
281
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Por fim, na realidade posta, foge as evidências de que o projeto de artigos da CDI
possa convergir a uma Convenção ou a um Tratado, forte nas razões de que o direito discutido
envolve Estados livres e soberanos, não há uma jurisdição obrigatória e, por fim, não há um
consenso entre os Estados.
Daí porque, ainda numa visão um tanto quanto longínqua, uma provável solução
satisfatória para o intrincado sistema, notadamente da responsabilidade internacional objetiva
por dano ambiental, esteja na preponderância da cooperação, na negociação e na
regulamentação pelo conjunto dos Estados.
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283
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
OS REFUGIADOS AMBIENTAIS E O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO NA ESFERA
DO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE
LES RÉFUGIÉS ENVIRONNEMENTAUX ET LE PRINCIPE DE LA
COOPÉRATION DANS LE DROIT INTERNATIONAL DE L’ENVIRONNEMENT
Diogo Andreola Serraglio1
Andréia Mendonça Agostini2
RESUMO: O presente artigo visa investigar a necessidade da inclusão dos refugiados ambientais, por
intermédio do princípio da cooperação internacional, nos institutos que garantem os direitos
fundamentais à pessoa humana. Para isso, analisar-se-ão os acontecimentos que resultaram na
Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, em 1951, bem como os acordos
que foram posteriormente elaborados. A mais disso, far-se-á um breve relato de como a mudança
climática no planeta Terra provocou o aparecimento desta nova categoria de refugiados, a qual carece
de tutela jurídica. Com o intuito de encontrar soluções para esta questão, utilizar-se-á o fundamento da
cooperação internacional em matéria ambiental como forma de mobilizar a sociedade contemporânea
da urgência no amparo àqueles que se vêem obrigados a se deslocar em razão das alterações no meio
ambiente.
PALAVRAS CHAVES: Refugiados, Refugiados ambientais, Eco-refugiados, Princípio da
cooperação internacional.
RESUMÉ: Cet article a pour but étudier le besoin de l’intégration des refugiés de l’environnement, à
travers le principe de la coopération internationale, dans les instituts qui garantissent les droits
fondamentaux de la personne humaine. Alors, nous analyserons les événements qui ont entraîne la
Convention des Nations Unies sur le Statut des Réfugiés, en 1951, ainsi que les accords qui ont été
développés dans les annés suivantes. De plus, nous exposerons la façon dont le changement climatique
sur la Terre a amèné à l’apparition de cette nouvelle catégorie de réfugiés, qui n’ont pas de protection
juridique. Afin de trouver des solutions à cette question, nous analyserons les fondements de la
coopération internationale en matière de l’environnement pour vérifiér la mobilisation de la socété
contemporaine face à l’urgence de soutenir ceux qui sont forcés de se déplacer en raison des
changements de l’environnement.
MOTS-CLÉS: Réfugiés, Réfugiés environnementaux, Eco-réfugiés, Principe de la coopération
internationale.
1
Advogado. Mestrando em Direito Econômico e Socioambiental na Pontifícia Universidade Católica do Paraná
(PUC/PR). Bolsista CAPES. Pesquisador no Grupo de Pesquisa “Meio Ambiente: Sociedades tradicionais e
sociedade hegemônica”. Membro da Rede Latino-Americana de Antropologia Jurídica.
2
Assessora de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Mestranda em Direito Econômico e
Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Especializada em Direito Aplicado
pela Escola da Magistratura do Paraná. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
(PUC-PR). Pesquisadora no Grupo de Pesquisa: “Meio Ambiente: sociedades tradicionais e sociedade
hegemônica”. Membro da Rede Latino-Americana de Antropologia Jurídica.
284
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
1 INTRODUÇÃO
O tema central deste projeto tem por objetivo verificar o tratamento dado pelo
Regime Internacional para Refugiados das Nações Unidas a esta nova categoria de refugiados
– refugiados ambientais –, enfatizando-se a imprescindibilidade de inclusão deste grupo,
através do princípio da cooperação internacional, nos conceitos que versam sobre a proteção
internacional dos Direitos Humanos, com especial enfoque na elaboração e adoção de
políticas migratórias que acolham e forneçam a devida tutela a estes refugiados. Pretende-se,
primeiramente, uma rápida pincelada nos fatores históricos que ensejaram no advento da
Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, em 1951, assim como
uma análise minuciosa dos conceitos e estatutos elaborados a partir de então para assegurar a
todos o direito de buscar asilo. Da mesma forma, procurar-se-á compreender como as
intervenções humanas no meio ambiente agravaram a questão da mudança climática no globo,
propiciando o surgimento desta nova categoria, a qual se encontra fora do ordenamento
jurídico internacional. Para tanto, buscar-se-á a identificação de elementos que evidenciam a
mobilização entre os Estados na tentativa de agir em conjunto diante dos problemas de cunho
ambiental, em especial nos documentos resultantes das conferências internacionais com vistas
à cooperação internacional. Por iguais razões, interessa-nos mensurar a conscientização e a
relevância deste princípio na sociedade contemporânea. Por fim, a proposta deste tema é
averiguar como o princípio da cooperação internacional pode ser utilizado para solucionar os
deslocamentos humanos provocados por alterações no meio ambiente.
2 A TUTELA DOS REFUGIADOS PELA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
Relevante sublinhar, inicialmente, que as atrocidades cometidas ao longo da Segunda
Guerra Mundial conscientizaram a comunidade internacional da necessidade de universalizar
a proteção das garantias fundamentais do homem, sendo considerado, desta forma, o marco
histórico que possibilitou o surgimento de uma nova ordem, a qual objetivava a conquista dos
direitos humanos. Em suma,
[...] terminando o profundo abalo que representou a Segunda Grande Guerra,
assistimos a esforços no sentido de trabalhar por um mundo mais justo e
285
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
evitar que se repetissem os horrores pelos quais tinha passado a humanidade
ao longo do conflito. Fazia-se necessário reconquistar a dignidade humana.3
Com efeito, inúmeras estruturas internacionais foram criadas desde então para
efetivar a proteção da pessoa humana. Cai a lanço notar que a proteção internacional dos
Direitos Humanos passou a ser dividida doutrinariamente em três vertentes que convergem de
forma inequívoca, quais sejam, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito
Internacional Humanitário e o Direito dos Refugiados.
Verifica-se que a Organização das Nações Unidas (ONU), criada para
promover a paz da humanidade, incumbiu ao Conselho Econômico e Social das Nações
Unidas (ECOSOC) a criação da Comissão de Direitos Humanos que, por sua vez, em 1948,
elaborou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual se caracteriza como um
“instrumento de civilização internacional que dispôs direitos que devem ser usados no mundo
contemporâneo, como os individuais, os coletivos, civis, políticos e socioeconômicos, que
norteiam a dignidade da pessoa humana.” 4 Surge, assim, o Direito Internacional dos Direitos
Humanos, o qual confirma a universalidade dos direitos fundamentais e reconhece que a
dignidade é inerente a todos os seres humanos, os quais são titulares de direitos iguais e
inalienáveis. Posto isso, a busca de meios capazes de assegurar o cumprimento de seus
dispositivos nos anos subseqüentes ensejou na negociação de dois tratados de caráter
vinculante e obrigatório a todos os Estados: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos
firmados em 1966, promovendo a formação de um regime normativo internacional dos
Direitos Humanos. 5 Ressalta-se que a Declaração Universal de 1948, somada aos dois pactos
internacionais de 1966, constituem a Carta Internacional de Direitos Humanos, a qual
representa
[...] o amplo consenso alcançado acerca dos requisitos minimamente
necessários para uma vida com dignidade. Os direitos enumerados nessa
Carta Internacional podem ser concebidos como direitos que refletem uma
3
ARAUJO, Nadia de. O direito internacional dos refugiados: uma perspectiva brasileira. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001. p. 19.
4
MENEZES, Wagner (Coord.). ESTUDOS DE DIREITO INTERNACIONAL: Anais do 2° Congresso Brasileiro de
Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2004. 1 v. p. 201.
5
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2008. 9 ed.
p. 161-163.
286
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
visão moral da natureza humana, ao compreender os seres humanos como
indivíduos autônomos e iguais, que merecem igual consideração e respeito.6
Por seu turno, o Direito Internacional Humanitário anseia a proteção dos Direitos
Humanos nos casos de conflitos armados. Observa-se que este ramo do direito emerge com a
criação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, em 1863, sendo esta instituição
considerada a principal responsável pela elaboração, disseminação, bem como a aplicação das
normas humanitárias pelo globo. Percebe-se que
[...] o direito internacional humanitário (DIH) é um conjunto de normas
internacionais, de origem convencional ou consuetudinária, cuja finalidade
especial é solucionar os problemas de índole humanitária diretamente
derivados dos conflitos armados, internacionais ou não internacionais, e que
restringem, por razões humanitárias, o direito das partes em conflito a
utilizar os métodos e meios de guerra de sua eleição, ou que protegem as
pessoas e os bens afetados, ou que possam ser afetados pelo conflito. O DIH
costuma chamar-se também de “direito de guerra” e “direitos dos conflitos
armados”. 7
Assevera-se, assim, que esta vertente da proteção humana se propõe a regulamentar o
caos jurídico nos casos de conflitos armados para que os danos e estragos sejam os menores
possíveis, assegurando a sobrevivência da humanidade e, conseqüentemente, promovendo a
paz mundial. 8
Indubitável é a importância dos dois ramos apresentados acima para a
internacionalização dos Direitos Humanos. Todavia, este projeto ater-se-á a uma análise
pormenorizada dos Direitos dos Refugiados, cujo quadro institucional foi elaborado ao longo
das décadas de 50 e 60, destacando-se o Estatuto do Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados (ACNUR), de 1950; a Convenção sobre Refugiados, firmada em 1951; e o
Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, elaborado em 1967.
Após a derrota dos países do Eixo, em setembro de 1945, não restavam dúvidas de
que a Europa encontrava-se extremamente devastada, sem as mínimas condições para
produzir o essencial à sobrevivência de sua população. Os episódios bélicos ocorridos no
continente europeu, os quais tiveram alcance mundial, evidenciaram a necessidade de se criar
6
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2008. 9 ed.
p. 162.
7
Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Direitos do Homem e Direitos Humanitários em Conceitos de
Policiamento Profissional. Genebra, Suíça: 2002. p. 09.
8
MENEZES, Wagner (Coord.). ESTUDOS DE DIREITO INTERNACIONAL: Anais do Congresso Brasileiro de Direito
Internacional. Curitiba: Juruá, 2010. 1 v. p. 837.
287
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
um organismo capaz de solucionar os problemas relacionados às milhares de pessoas que
permaneciam sem lar, sem país e até mesmo sem nacionalidade.
Cumpre assinalar que, até então, as instituições formalizadas com o objetivo de
proteger estas pessoas, além de possuir um caráter não vinculante, apresentavam mandatos
temporários, e freqüentemente eram extintos antes que todas as prerrogativas que lhe haviam
sido atribuídas pudessem ser cumpridas. Em virtude dessas considerações, “era necessário que
uma agência ou organização fosse criada para ficar à frente e ser responsável por orientar
tanto os indivíduos refugiados quando os países que lhe concediam asilo”.
9
Como resposta,
em 1950, foi aprovado o Estatuto do Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiando (ACNUR).
Um ano mais tarde, em Genebra, a comunidade internacional firmou a Convenção
das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, com o intuito de garantir o bem-estar
e a proteção aos refugiados, os quais passaram a ser definidos como qualquer pessoa
[...] que, em conseqüência de acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro
de 1951, e receando com razão ser perseguida em virtude de sua raça,
religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões
políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou,
em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que,
se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha sua residência
habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito
receio, a ele não queira voltar.10
Faz-se necessário mencionar que o referido acordo apresentava eficácia limitada,
tendo em vista que era aplicado tão somente àqueles que adquiriam tal condição antes da
ratificação deste. Ademais, “limitava-se quanto à origem ao determinar a aplicação aos
refugiados europeus. Acreditava-se que a situação dos refugiados não iria atingir os demais
continentes e nem teria importância após 1951.” 11
Nesse lanço, convém ressaltar a importância do Protocolo sobre o Estatuto dos
Refugiados, elaborado em 1967, uma vez que possibilitou a aplicação deste conceito a
qualquer refugiado do mundo e a casos futuros, e não mais tão somente para os eventos
ocorridos antes do dia 1 de Janeiro de 1951.
9
SILVA, Camilla Rodriguez Braz. A questão dos refugiados ambientais: Um novo desafio para o direito
internacional. Disponível em: [http://www.egov.ufsc/br]. Acesso em: 20 jul. 2012.
10
SUÍÇA, Genebra. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. 1951. Disponível em:
[http://www.fd.uc.pt/]. Acesso em: 15 jul. 2012.
11
GALLI, Alessandra. Direito Socioambiental: Homenagem a Vladmir Passos de Freitas. Curitiba: Juruá, 2011.
p. 53.
288
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Posta assim a questão, observa-se que os refugiados ambientais, por não se
caracterizarem como vítimas de conflitos, não se encontram sob a tutela do ACNUR. Admitese, assim, a necessidade de se reestruturar o conceito de refugiado para que este novo grupo
de pessoas também possam ter o direito ao asilo reconhecido:
[...] cabe ao ACNUR, que tem como missão assegurar a todos o direito de
procurar asilo e encontrar refúgio, estender seu mandato àqueles que
precisam de refúgio permanente. O ACNUR deve auxiliar aquelas pessoas
que se tornaram refugiadas por razões ambientais, ele deve acolher esses
refugiados e garantir-lhes o direito de encontrar refúgio.12
3 UMA NOVA CATEGORIA DE REFUGIADOS: OS REFUGIADOS AMBIENTAIS
É indubitável que as mudanças climáticas contribuíram para o surgimento dos
refugiados ambientais do clima, os quais se caracterizam pela carência de proteção jurídica.
De fato,
[...] a questão dos refugiados não é nova no mundo. O que é novo é o
aparecimento de refugiados que saem de seus países por motivos outros que
perseguições. Calcula-se que cerca de 25 milhões de pessoas deixaram seus
lares devido à secas, desertificação, erosão do solo, acidentes industriais e
outras causas ambientais. 13
Cumpre observar, inicialmente, que o aumento da temperatura média do nosso
planeta mostra-se como um dos problemas ambientais mais preocupantes deste século. Não
restam dúvidas que este fenômeno foi acelerado devido à emissão desenfreada de gases de
efeito-estufa na atmosfera decorrentes das ações antropogênicas na busca do desenvolvimento
econômico. Assim, muito embora a qualidade de vida do ser humano tenha melhorado ao
longo dos anos, verifica-se que a velocidade com a qual a sociedade consome os combustíveis
fósseis ultrapassa de longe o tempo necessário para a sua recomposição na natureza,
evidenciando, desta forma, que o planeta Terra é incapaz de absorver toda a poluição gerada
12
SILVA, Camilla Rodriguez Braz. A questão dos refugiados ambientais: Um novo desafio para o direito
internacional. Disponível em: [http://www.egov.ufsc/br]. Acesso em: 15 jul. 2012.
13
PENTINAT, Suzana Borràs. Refugiados Ambientales: El nuevo desafio del derecho internacional del médio
ambiente. Disponível em: [http://www.scielo.cl/]. Acesso em: 15 jul. 2012. 2006, p. 88.
289
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
pelo homem.14 De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas
(IPCC),
[...] a principal fonte de aumento da concentração atmosférica de dióxido de
carbono desde o período pré-industrial se deve ao uso de combustíveis
fósseis, [...]. As emissões fósseis anuais de dióxido de carbono aumentaram
de uma média de 6,4 Gt. por ano na década de 90 para 7,2 Gt. por ano no
período de 2000 a 2005.15
Posta assim a questão, não observa-se que a sobrecarga ocasionada pelo constante
aumento da poluição atmosférica tem provocado reações adversas no meio ambiente, trazendo
em pauta um novo problema para a sociedade internacional: a necessidade de se regulamentar
a situação das vítimas destes eventos naturais. Isto é,
[...] surge perante a sociedade internacional um novo tipo de refugiado: o
ambiental. Este não sai de seu país devido a perseguições políticas, conflitos
armados, guerra civil, instabilidade sociopolítica. Ele é obrigado a deixar o
país de origem porque o seu habitat sofreu tanta alteração que não é mais
possível sustentar a vida. 16
Nota-se que Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados,
ratificada em 1951, limita a sua proteção às pessoas que possuem seus direitos violados
devido a problemas de raça, religião, nacionalidade, convicção política ou ainda àqueles que
pertencem a um grupo social específico. Impõe-se registrar, portanto, que estes novos
refugiados, também chamados de refugiados ambientais ou ecológicos, carecem de proteção
para que tenham seus direitos garantidos. Em outras palavras,
[...] a referida Convenção não previu situações que possam fazer com que
pessoas sejam deslocadas em decorrência de calamidades naturais e,
portanto, que envolvam o meio ambiente, isto é, além dos casos que estão
devidamente arrolados no documento internacional que regula a matéria, não
se pode olvidar que hoje existe uma nova categoria de refugiados que se
14
BRADBROOK, Adrian. OTTINGER, Richard. Energy Law and Sustainable Development. Genebra, Suíça: IUCN,
2003. p. 13-14.
15
Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climática (IPCC). Mudança do Clima 2007: a Base das Ciências
Físicas. Genebra, Suíça: 2007. p. 07.
16
GALLI, Alessandra. Direito Socioambiental: Homenagem a Vladmir Passos de Freitas. Curitiba: Juruá, 2011.
p. 38.
290
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
manifestam em razão dos mais diversos problemas pertinentes aos
fenômenos da natureza: o refugiado ambiental.17
Convém ressaltar a urgência na elaboração de estatutos que possibilitem a tutela aos
eco-refugiados, uma vez que tal migração não ocorre de forma voluntária e por motivos
econômicos, mas sim por questões de sobrevivência, ou seja, há que se falar na migração
obrigatória decorrente do surgimento de condições adversas ao habitat humano. Corroborando
o assunto,
[...] ainda que seja difícil elaborar políticas para lidar com os efeitos da
mudança climática, essas são necessárias, afinal, ilhas estão desaparecendo,
países costeiros vêm sua terra cultivável desaparecer devido à elevação do
nível do mar e diversas áreas do mundo passam por processo de
desertificação.18
O Princípio 1 da Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano dispõe
que:
O homem tem direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de
condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe
permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação
de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras.
A este respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o apartheid, a
segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de
opressão e de dominação estrangeira são condenadas e devem ser
eliminadas.19
Muito embora esses “novos refugiados” não possuam um status jurídico definido,
conceitos têm sido elaborados com o objetivo de tentar resolver o impasse referente à
definição de quem seriam essas pessoas. De acordo com o Programa das Nações Unidas para
o Meio Ambiente (PNUMA),
[...] refugiados ambientais são pessoas que foram obrigadas a abandonar
temporária ou definitivamente a zona tradicional onde vivem, devido ao
visível declínio do ambiente (por razões naturais ou humanas) perturbando a
17
GUERRA, Sidney. Direito internacional ambiental. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2006. p. 110.
SILVA, Camilla Rodriguez Braz. A questão dos refugiados ambientais: Um novo desafio para o direito
internacional. Disponível em: [http://www.egov.ufsc/br]. Acesso em: 15 jul. 2012.
19
SUÉCIA, Estocolmo. Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, 1972. Disponível em:
[http://www.mma.gov.br]. Acesso em: 15 set. 2011.
18
291
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
sua existência e/ou a qualidade da mesma de tal maneira que a subsistência
dessas pessoas entra em perigo. 20
A mais disso, diante da imprescindibilidade de um estatuto jurídico capaz de
promover a proteção que se encontram nesta situação em razão de catástrofes naturais, o
professor egípcio El-Hinnawi, baseado no fato de que os descolamentos ocorrem devido à
degradação ambiental ocasionada pela ação humana, podendo ser de caráter temporário ou
permanente, define esta nova categoria de refugiados como sendo “[...] aquelas pessoas que
foram obrigadas a abandonar o seu habitat tradicional de forma temporária ou permanente,
por causa de uma evidente perturbação ambiental, que ameaça a sua existência e/ou afeta
gravemente a qualidade da sua vida.” 21
Não menos importante, a fim de contribuir com o desenvolvimento desta nova
definição, Myers22 elenca as pessoas que estariam abrangidas por este conceito:
[...] refugiados ambientais são pessoas que não podem mais ter um meio
seguro de vida em suas pátrias tradicionais por causa de fatores de
abrangência incomum, seca acentuada, desertificação, desmatamento, erosão
de terra, escassez de água e mudança de clima, também desastres naturais
como ciclones, ondas de tempestades e inundações. Em face dessas ameaças
ambientais, as pessoas sentem que elas não tem alternativa senão buscar
amparo em outro lugar, dentro de seus próprios países ou além e seja em
uma base semi-permanente ou permanente.
Por isso, mostra-se urgente a necessidade de amparo jurídico para esses refugiados, o
qual só será possível através de mudanças legislativas, bem como através da ampliação de
conceitos, possibilitando assim, que um número maior de indivíduos sejam protegidos ao
deixar seu país de origem.
Impende observar que, além dos eco-refugiados, os quais necessitam se deslocar de
seus países de origem por questões de sobrevivência, há que se falar ainda do contingente
populacional que migra internamente dentro de um Estado em busca de melhores condições
de vida diante dos desastres naturais. São os chamados “deslocados internos” que, segundo o
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos,
20
LISER. Enviromnetal Refugees. Disponível em: [http://www.liser.org/liser_portuguesa.htm]. Acesso em: 15
jul. 2012.
21
GALLI, Alessandra. Direito Socioambiental: Homenagem a Vladmir Passos de Freitas. Curitiba: Juruá, 2011.
p. 52.
22
MYERS, Norman. Environmental Exodus: an emergent crisis in the global arena. Washington DC: Climate
Institute, 1995. p. 19.
292
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
[...] são pessoas, ou grupo de pessoas, forçadas ou obrigadas a fugir ou
abandonar as suas casas ou seus locais de residência habituais,
particularmente em conseqüência de, ou com vista de evitar, os efeitos dos
conflitos armados, situações de violência generalizada, violações dos direitos
humanos ou calamidades humanas ou naturais, e que não tenham
atravessado uma fronteira internacionalmente reconhecida de um Estado. 23
Em verdade, como já mencionado nesta obra, certifica-se que este fenômeno decorre
das manifestações provocadas pelas mudanças climáticas, que atinge, em sua grande maioria,
as populações dos países pobres. Nesse sentido,
[...] as conseqüências das alterações climáticas na migração apresentam à
humanidade desafios sem precedentes. O número de tempestades, secas e
inundações triplicaram nos últimos 30 anos, com devastadores efeitos sobre
as comunidades vulneráveis, em particular no mundo em desenvolvimento.
Em 2008, 20 milhões de pessoas foram deslocadas por fenômenos
meteorológicos extremos, em comparação a 4,6 milhões de deslocados
internos por conflitos e violência no mesmo período. Quantas pessoas serão
afetadas pela mudança climática até 2050? As previsões variam de 25
milhões a 1 bilhão de pessoas, sendo o número de 200 milhões o mais
amplamente citado como estimativa. 24
Constata-se que a inserção desta nova categoria de refugiados gera a violação de
direitos sociais, civis e econômicos, uma vez que estas pessoas acabam por ocupar camadas
menos favorecidas do local de destino. Ademais, verifica-se que as nações com maiores
incidências de desastres naturais, os países subdesenvolvidos, apresentam condições precárias
no que diz respeito à proteção das garantias individuais. Desta feita,
[...] deve-se considerar que não basta tutelar os que migram, mas, também, é
necessário proteger os que não tiveram condições de mudar e permaneceram
na mesma localidade com o diferencial que o seu habitat sofreu degradação,
pois, houve a diminuição da quantidade de água, perda do acesso à terra
agricultável, o declínio da produtividade, entre outras conseqüências. 25
Indaga-se, desde logo, a responsabilidade dos países desenvolvidos pelas mudanças
climáticas no planeta Terra. Não se pode olvidar que o surgimento desses refugiados
23
UNRIC. Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Disponível em:
[http://www.unric.org]. Acesso em: 15 jul. 2011.
24
IOM. Migration, Environment and Climate Change: Assessing the evidence. Disponível em:
[http://publication.iom.int/bookstore/free/migration_and_environment.pdf]. Acesso em: 15 jul. 2012.
25
GALLI, Alessandra. Direito Socioambiental: Homenagem a Vladmir Passos de Freitas. Curitiba: Juruá, 2011.
p. 56.
293
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
ambientais implica na violação de Direitos Humanos por parte dos países desenvolvidos.
Sabe-se que o aumento da média global das temperaturas desde a metade do século XX,
ocorreu, certamente, devido ao nítido aumento nas concentrações de dióxido de carbono,
emitidas por ações humanas, as quais têm contribuído para o aumento das temperaturas e,
conseqüentemente, para a elevação significativa do nível do mar.26
Roborando o assunto, destaca-se que todo ser humano possui o direito a um nível
adequado de vida que lhe garanta saúde e bem-estar. Assim, vale lembrar que tanto os
tratados de Direitos Humanos quanto aqueles que versam sobre a proteção ambiental não se
destinam aos Estados, mas sim ao homem e ao seu direito à vida. Convém notar, neste passo,
que a vida humana mostra-se como o principal fundamento da proteção ambiental. Ou seja, “a
vida humana pertence a uma categoria de valores de dimensão puramente qualitativa e
indivisível, servindo de fundamento dos demais valores”.
27
Diante do exposto, a combinação
destes dois direitos pode ser considerada como pressuposto para a continuidade da vida
humana, uma vez que o equilíbrio ambiental é essencial para o desenvolvimento das garantias
fundamentais do homem, as quais inexistiriam diante de um meio ambiente degradado que
não promovesse uma qualidade de vida sadia.
Como se pode notar, alguns conceitos básicos do direito internacional devem ser
repensados para que se chegue a soluções viáveis:
[...] o próprio conceito de refugiado deve ser reconstruído. Assim como
também as características básicas de sua estrutura. O status de refugiado foi
criado para ser temporário, para que a pessoa pudesse retornar ao seu país de
origem quando cessassem os conflitos ou as perseguições. 28
Impõe-se abordar, neste momento, como a noção de sociedade e natureza na
comunidade internacional encontram-se enraizadas nos problemas ambientais, dificultando o
reconhecimento da identidade das populações atingidas por desastres naturais. Não restam
dúvidas de que as relações internacionais dificultam a transgressão das fronteiras, uma vez
que a soberania estatal é cada vez mais reafirmada.
Assim, há que se falar em outros desdobramentos desta nova realidade, como a
organização político-espacial humana, visto que a integração destes refugiados a outros
26
MENEZES, Wagner (Coord.). ESTUDOS DE DIREITO INTERNACIONAL: Anais do Congresso Brasileiro de
Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2010. 1 v. p. 906.
27
BOITEUX, Elza (Coord.). FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS: Estudos em Homenagem ao Professor Fábio
Koner Comparato. Salvador: Podivm, 2009. p. 41.
28
SILVA, Camilla Rodriguez Braz. A questão dos refugiados ambientais: Um novo desafio para o direito
internacional. Disponível em: [http://www.egov.ufsc/br]. Acesso em: 15 jul. 2012.
294
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
territórios implica no desaparecimento de culturas e na possível relativização da soberania
estatal:
[...] os refugiados são destituídos de Estado, mas num novo sentido; sua
condição sem Estado é alçada a um nível totalmente inédito graças à
inexistência de uma autoridade estatal à qual sua cidadania pode referir-se.
São [...] fora da lei. Não desta ou daquela lei, deste ou daquele país, mas da
lei como tal. São proscritos e fora-da-lei de um novo tipo, produtos da
globalização e principal síntese e encarnação do seu espírito de terra de
fronteira. [...] Mesmo que fiquem parados num lugar por algum tempo, estão
numa jornada que nunca chega ao fim, que seu destino (de chegada ou de
retorno) permanece eternamente incerto, enquanto um lugar que pudessem
chamar de “terminal” permanece eternamente inacessível. 29
Pelo exposto, uma vez verificada a necessária relação existente entre os Direitos
Humanos e o Direito Internacional Ambiental, oportuno se torna averiguar em que as
migrações
ambientais
se distinguem
daquelas já regulamentadas
pela sociedade
contemporânea. Em outras palavras, deve-se buscar a verificação dos parâmetros que definem
o termo “refugiado ambiental” e que visam a formulação de um novo estatuto jurídico para
amparar este grupo de pessoas.
Não restam dúvidas de que o desenvolvimento de um conceito para os ecorefugiados mostra-se imprescindível para que haja a elaboração de um ordenamento jurídico
apropriado e garantidor dos direitos fundamentais para aqueles que sofrem, de modo direto ou
indireto, as conseqüências das mudanças do clima no globo, uma vez que a maior parte dos
refugiados do mundo aguardam soluções para melhorar a sua atual condição. Inobstante “a
questão dos refugiados ambientais represente mais um novo desafio para o direito
internacional e seja uma obrigação de todos os envolvidos a busca de uma solução para este
problema”, deve-se almejar meios tornem possível a existência de uma proteção mínima, em
escala global, a ser respeitada por todos os Estados, a qual pode se dar através da cooperação
internacional, analisada no item a seguir exposto.
4 O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO NA ESFERA DO DIREITO INTERNACIONAL
DO MEIO AMBIENTE
29
BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 96.
295
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Verifica-se que a tutela dos direitos se modifica em prol das necessidades e
interesses do homem em face dos acontecimentos que marcam a sua história, possibilitando
assim, a evolução e a proteção dos direitos e garantias fundamentais do ser humano. Verdade
seja, a intensificação da degradação ambiental ao longo do último século demonstrou que este
problema não se encontrava apenas circunscrito às fronteiras nacionais, mas sim disseminado
por todo o globo, tornando-o, desta forma, uma questão de caráter internacional que
proclamava pela elaboração de cuidados específicos.
Registra-se, assim, que as proporções alarmantes das questões ambientais
despertaram o entusiasmo do direito internacional, pois, além de se tratar de temas que
interessavam a todos, comprovava-se, através dos desastres naturais, que a poluição gerada
não reconhecia fronteiras, tornando-os, “ao menos potencialmente, internacionais, ou melhor,
transfronteiriços”
30
. Em outras palavras, era evidente a necessidade da formação de normas
ambientais que fossem aplicadas a todas as nações e por estas serem respeitadas, trazendo
assim, a consciência a nível global.
Assim posta a questão, é sobremodo importante ressaltar que o direito
internacional, através de seus instrumentos normativos, destaca-se como principal responsável
pela tutela daqueles que se vêm obrigados a se deslocar em razão das mudanças climáticas:
“somente o Direito Internacional dos Direitos Humanos tem as condições mínimas e
adequadas para salvaguardar o ser humano de todos os tipos de violações possíveis dos seus
direitos, sejam estes civis, políticos, sociais, econômicos ou culturais.” 31
Para tanto, faz-se necessário “uma ação conjunta estatal por meio do instituto
da cooperação internacional, que encontra na seara ambiental um universo vasto de
possibilidades e também desafios.”
32
Assinala-se, pois, a importância da cooperação
internacional a fim de buscar alternativas para solucionar os problemas ambientais,
especialmente no que diz respeito àqueles que se veem obrigados a se deslocar em razão das
mudanças climáticas.
Relevante destacar, de início, que a cooperação na esfera global surge com o
fim da Segunda Guerra Mundial, momento este em que “os Estados perceberam que estavam
cada vez mais interdependentes e a cooperação internacional se tornou um objetivo a ser
30
NASSER, Salem Hikmat; REI, Fernando. Direito Internacional do Meio Ambiente. São Paulo: Atlas, 2006. p.
20.
31
ABRAS, Michelle. Os refugiados ambientais e o Direito Internacional face às normas constitucionais e
infraconstitucionais do Estado brasileiro. Disponível em: [http://www.revistajus.com.br]. Acesso em: 20 jul.
2012.
32
MAZZUOLI, Valério. Cooperação internacional para a preservação do meio ambiente: o direito brasileiro e a
Convenção de Aarhus. Disponível em: [http://periódicos.franca.unesp.be]. Acesso em: 20 jul. 2102.
296
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
alcançado.”
33
O termo “cooperação” ganhou destaque com a criação da Organização das
Nações Unidas (ONU) e elaboração da Carta das Nações Unidas, sendo este um dos seus
principais objetivos. Assim dispõe o seu artigo 1º:
Os propósitos das Nações Unidas são: [...] 3. Conseguir uma cooperação
internacional para resolver os problemas internacionais de caráter
econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o
respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem
distinção de raça, sexo, língua ou religião [...].34
Ainda, o mesmo documento, nos artigos 55 e 56, disciplina a cooperação no
âmbito econômico e social:
Art. 55. Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar,
necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no
respeito ao princípio da igualdade de direitos e autodeterminação dos povos,
as Nações Unidas favorecerão: [...] c) a solução dos problemas
internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação
internacional, de caráter cultural e educacional.
[...]
Art. 56. Para a realização dos propósitos enumerados no artigo 55, todos os
membros da Organização se comprometem a agir em cooperação com esta,
em conjunto ou separadamente.35
Denota-se que, a partir de então, os Estados procuraram agir de forma conjunta
uns com os outros com o intuito de solucionar problemas nacionais no âmbito internacional.
No entanto, cumpre observar que a consciência sobre os problemas ambientais na sociedade
contemporânea ganha destaque a partir dos anos sessenta, momento em que os países “se
despertam para as necessidades de um controle internacional e regional da poluição, a qual
toma forma cada vez mais cruéis e cada vez mais impossíveis de ser controladas.”
36
De fato,
os efeitos dos danos ambientais gerados pela poluição motivaram a produção de legislações
que, apesar de atender as necessidades sociais da época, foram elaboradas como medidas
33
DIVARDIN, Danilo. Cooperação Internacional e Meio Ambiente: os programas da USAID no Brasil. São
Paulo: UNESP, 2008. p. 14.
34
Estados Unidos, São Francisco. Carta das Nações Unidas. 1945. Disponível em: [www.unitar.org]. Acesso em:
20 jul. 2012.
35
Estados Unidos, São Francisco. Carta das Nações Unidas. 1945. Disponível em: [www.unitar.org]. Acesso em:
20 jul. 2012.
36
SOARES, Guido Fernando Silva. A Proteção Internacional do Meio Ambiente. Barueri, SP: Manole, 2003. p.
33.
297
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
paliativas. Observa-se que as medidas preventivas e a cooperação entre os Estados emergem
com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em
Estocolmo no ano de 1972.
Nesse lanço, deve-se ressaltar a importância da Declaração de Estocolmo, a
qual, pela primeira vez, trouxe o princípio da cooperação no cenário internacional como
garantidor da proteção, bem como da manutenção, do meio ambiente. De acordo com o seu
Princípio 24,
Todos os países, grandes e pequenos, devem ocupar-se com espírito de
cooperação e em pé de igualdade das questões internacionais relativas à
proteção e melhoramento do meio ambiente. É indispensável cooperar para
controlar, reduzir, e eliminar eficazmente os efeitos prejudiciais que as
atividades se realizem em qualquer esfera, possam ter para o meio ambiente,
mediante acordo multilaterais ou bilaterais, ou por outros meios apropriados,
respeitados a soberania e os interesses de todos os Estados.37
Cai a lanço notar que esta conferência representou um marco no processo de
desenvolvimento da cooperação quanto a assuntos que se referem à preservação ambiental,
sendo este período considerado o “momento em que os países sentaram à mesa para
solucionar problemas ambientais que poderiam gerar conflitos internacionais”. 38
A partir de então, pesquisas científicas passaram a ser realizadas com o objetivo de
buscar soluções para a degradação ambiental, tornando possível a elaboração de um vasto
ordenamento jurídico ambiental, assim como evidenciando cada vez mais a interdependência
entre os Estados e a necessidade de cooperação entre estes.
Vinte anos mais tarde, a última oportunidade de salvar a Terra, modo pelo qual
muitos se referiam a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento, foi precedida por quatro reuniões preparatórias para a elaboração dos
documentos que seriam firmados nas reuniões subseqüentes. Daquelas, destaca-se o Fórum de
Siena, realizado em 1990, o qual se atenta para o dever de cooperação das nações para a
efetiva proteção do meio ambiente, nos seguintes termos:
A obrigação de cooperar manifesta-se como um dever de agir de boa-fé, a
fim de atingir-se uma meta de interesse geral, em face dos Estados
diretamente envolvidos, assim que o interesse da comunidade internacional
37
SUÉCIA, Estocolmo. Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. jun.
1972. Disponível em: [http://www.mp.ma.gov.br]. Acesso em: 20 jul. 2012.
38
DIVARDIN, Danilo. Cooperação Internacional e Meio Ambiente: os programas da USAID no Brasil. São
Paulo: UNESP, 2008. p. 16.
298
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
no seu conjunto. Traçar uma lista de ações precisas a serem levadas à cabo é
uma tarefa impossível, pois cada situação deve ser avaliada à luz das
características específicas em cada caso. Contudo, podem-se citar algumas
ações-tipo de cooperação, referentes aos Estados. Trata-se, em particular, das
obrigações relativas à informação, à notificação, à assistência mútua e à
negociação. Tais ações, frequentemente, completam os sistemas de proteção
do meio ambiente elaborados pelo Direito Internacional. 39
Assim, os objetivos da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento, realizada em 1992, se confundem com o próprio título do acordo, o qual
buscou “a defesa do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável pelo qual a humanidade
é capaz de atender às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das gerações
futuras”. 40 Ficou evidente que era hora de os países pensarem em conjunto no meio ambiente
como um patrimônio comum, e não mais de maneira particular, no qual havia a prevalência
das vantagens econômicas e políticas. No tocante ao princípio da cooperação internacional, os
documentos de maior relevância produzidos foram a Declaração do Rio e a Agenda 21.
Primeiramente, cumpre destacar que a Declaração do Rio se funda amplamente na
cooperação entre os países, em especial entre as nações industrializadas e aquelas que se
encontram em desenvolvimento. Assim dispõe o seu Princípio 07:
Os Estados deverão cooperar com o espírito de solidariedade mundial para
conservar, proteger e restabelecer a saúde e a integridade do ecossistema da
Terra. Tendo em vista que tenham contribuí do notadamente para a
degradação do ambiente mundial, os Estados têm responsabilidades comuns,
mas diferenciadas. Os países desenvolvidos reconhecem a responsabilidade
que lhes cabe na busca internacional do desenvolvimento sustentável, em
vista das pressões que suas sociedades exercem sobre o meio ambiente
mundial e das tecnologias e dos recursos financeiros de que dispõem. 41
Por sua vez, a Agenda 21, documento que prioriza os principais problemas
ambientais que adentrariam o século XXI, sendo composto por mais de cem programas que
estão distribuídos em seiscentas páginas e quarenta capítulos, os quais versam sobre o
combate à pobreza, educação, saúde, saneamento, entre outros, assinala, em seu preâmbulo,
que
39
MAZZUOLI, Valério. Cooperação internacional para a preservação do meio ambiente: o direito brasileiro e a
Convenção de Aarhus. Disponível em: [http://periódicos.franca.unesp.be]. Acesso em: 20 jul. 2102.
40
RIBEIRO, Wagner Costa. A Ordem Ambiental Internacional. 2 ed. São Paulo: Contexto: 2005. p. 108.
41
BRASIL, Rio de Janeiro. Declaração das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento. jun.
1992. Disponível em: [htpp://www.mma.gov.br]. Acesso em: 20 jul. 2012.
299
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
[...] a humanidade se encontra em um momento de definição histórica.
Defrontamo-nos com a perpetuação das disparidades existentes entre as
nações e no interior delas, o agravamento da pobreza, da fome, das doenças
e do analfabetismo, e com a deterioração contínua dos ecossistemas de que
depende nosso bem-estar. Não obstante, caso se integrem as preocupações
relativas a meio ambiente e desenvolvimento e a elas se dedique mais
atenção, será possível satisfazer às necessidades básicas, elevar o nível de
vida de todos, obter ecossistemas melhor protegidos e gerenciados e
construir um futuro mais próspero e seguro. São metas que nação alguma
pode atingir sozinha; juntos, porém, podemos – em uma associação mundial
em prol do desenvolvimento sustentável. 42
Desde então, percebe-se deste princípio nos acordos multilaterais como alternativa de
promoção do desenvolvimento econômico e a preservação dos recursos ambientais, trazendo
o “entendimento de que os problemas globais dependem de soluções compartilhadas”43,
passando, assim, a cooperação internacional ser um novo dever dos Estados para com a
humanidade.
Verifica-se, portanto, a interdependência entre as nações, as quais devem se utilizar
do direito internacional para elaborar um sistema de cooperação globalizado: “[...] é premente
que se saiba que os Estados-nacionais são agora formações influenciadas e integradas na
estrutura de uma ordem jurídica que deixa de ser nacional, e que também não pode ser
compreendida como internacional, senão como uma ordem verdadeiramente global.” 44
Pelo exposto, reconhece-se que a sociedade atual presenciou inúmeras
transformações, principalmente a partir da década de 70, as quais propiciaram uma crescente
interdependência entre os sujeitos do direito internacional. Percebe-se que a Organização das
Nações Unidas (ONU), através da realização de conferências internacionais, desempenhou
papel de relevância para o desenvolvimento e a aplicação da cooperação no que diz respeito
aos assuntos que versam sobre o meio ambiente.
Após breve relado dos principais instrumentos normativos que propiciaram a
consagração do princípio da cooperação no cenário mundial, cumpre-nos, neste momento,
uma análise pormenorizada deste instituto, o qual passou a exercer grande influência na
agenda das relações internacionais.
O artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça elenca os princípios
gerais do direito como fonte autônoma e primária do direito internacional.
42
BRASIL, Rio de Janeiro. Agenda 21. jun. 1992. Disponível em: [htpp://www.mma.gov.br]. Acesso em: 20 jul.
2012.
43
DIVARDIN, Danilo. Cooperação Internacional e Meio Ambiente: os programas da USAID no Brasil. São
Paulo: UNESP, 2008. p. 30.
44
MAZZUOLI, Valério. Cooperação internacional para a preservação do meio ambiente: o direito brasileiro e a
Convenção de Aarhus. Disponível em: [http://periódicos.franca.unesp.be]. Acesso em: 20 jul. 2102.
300
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Embora seja difícil a conceituação dos princípios gerais do direito no plano
internacional, entende-se que são regras que se impõem a todos os Estados,
qualquer que seja o seu grau de civilização e por eles obedecidos por serem
as mesmas ilações lógicas do direito a sua existência. 45
Convém notar, assim, que os princípios gerais do direito emergem da
universalidade de princípios jurídicos que constituem os alicerces de sustentação do
ordenamento interno dos Estados. Apesar de abstratos, buscam “homogeneizar o sistema
jurídico pela continuidade e a estabilidade da ordem jurídica”
46
sem, no entanto, impor
proibições e sanções, mas sim a otimização e a garantia de direitos. Ressalta-se que os
princípios se singularizam de acordo com o ramo em questão, neste caso, o meio ambiente, os
quais
[...] estão voltados para a finalidade básica de proteger a vida [...], e garantir
um padrão de existência para os seres humanos desta e das futuras gerações,
bem como de conciliar os dois elementos anteriores com o desenvolvimento
ambientalmente sustentado. 47
Ainda, como anteriormente elencado, verifica-se que os acordos multilaterais
que versam sobre a proteção ambiental sempre enfatizaram o estabelecimento de critérios e
princípios norteadores da preservação ambiental, neste caso, a cooperação internacional.
Impende observar, inicialmente, que este princípio objetiva a prevenção de atos
que possam degradar o meio ambiente, o qual desconhece a existência de fronteiras,
enfatizando a “necessidade de normativas ambientais (internacionais e nacionais) que
prevejam a atuação conjunta das nações como necessária à efetiva proteção do meio
ambiente.” 48
Assevera-se que o princípio da cooperação se designa pela “atuação conjunta
de países, instituições multilaterais e não-governamentais em busca de um objetivo comum.”
49
Isto é,
45
GUERRA, Sidney. Direito Internacional Ambiental. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2006. p. 46
SILVA, Américo Luís Martins da. Direito do Meio Ambiente e dos Recursos Ambientais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004. p. 404.
47
SILVA, Américo Luís Martins da. Direito do Meio Ambiente e dos Recursos Ambientais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004. p. 404.
48
MAZZUOLI, Valério. Cooperação internacional para a preservação do meio ambiente: o direito brasileiro e a
Convenção de Aarhus. Disponível em: [http://periódicos.franca.unesp.be]. Acesso em: 20 jul. 2102.
49
RIBEIRO, Wagner Costa. A ordem ambiental internacional. São Paulo: Contexto, 2005. p. 432
46
301
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
[...] ações conjuntas levadas a cabo entre todos os Estados ou por certo
número de Estados, com vistas em determinado fim, seja aquelas
concertadas em níveis bilateral ou multilateral (dentro dos mecanismos
existentes no interior de organizações ou entidades institucionalizadas ou em
operações ad hoc), seja aquelas decorrentes de um dever instruído por uma
norma não-escrita.50
Oportuno se faz mencionar o diálogo das nações para que a cooperação se
torne uma “alternativa estratégica para alcançar seus objetivos”
desenvolvimento de estatutos que protejam os eco-refugiados.
51
, neste caso, o
Não restam dúvidas de que,
para que haja a devida institucionalização da cooperação, com a devida consonância com o
ordenamento jurídico internacional, “o princípio da cooperação deve prestar-se a fornecer os
parâmetros para que se estabeleça o plano em que deva ocorrer o diálogo institucionalizado,
legitimando tanto as discussões de natureza ética como as de natureza técnico-científica, sento
a opção por esta ou aquela uma decisão política.” 52
Corroborando o assunto, é de se destacar que o princípio da cooperação pode
assumir outras formas, produzindo os mais variados resultados, tendo em vista a finalidade a
que
se
propõe.53
Considerando
que
a
palavra
“cooperação”
significa
“operar
simultaneamente”, “colaborar”, “trabalhar em comum”, “ajudar” ou “observar”, denota-se que
todos os Estados possuem o dever de contribuir na construção e no desenvolvimento da tutela
jurídica para os refugiados ambientais, participando, de forma efetiva, em soluções que
permitam o deslocamento das pessoas que se vêem obrigadas a migrar, promovendo sempre a
manutenção das garantias fundamentais.
Para tanto, indubitável a necessidade de uma ação em conjunto dos organismos
internacionais a fim de sobrepujar questões que carecem de soluções, como a aplicação dos
compromissos jurídicos assumidos pelos Estados, assim como a compatibilização da
soberania estatal ante a necessidade de viabilizar a recepção dos refugiados ambientais.
À guisa de conclusão, impõe-se que é dever dos Estados encontrar meios para
possibilitar e garantir uma qualidade de vida sadia para todo o ser humano, resguardando,
50
SOARES,
493.
51
NASSER,
33.
52
NASSER,
45.
53
SOARES,
494.
Guido Fernando Silva. A Proteção Internacional do Meio Ambiente. Barueri, SP: Manole, 2003. p.
Salem Hikmat; REI, Fernando. Direito Internacional do Meio Ambiente. São Paulo: Atlas, 2006. p.
Salem Hikmat; REI, Fernando. Direito Internacional do Meio Ambiente. São Paulo: Atlas, 2006. p.
Guido Fernando Silva. A Proteção Internacional do Meio Ambiente. Barueri, SP: Manole, 2003. p.
302
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
assim, o direito a um meio ambiente equilibrado e, principalmente, as garantias fundamentais.
É neste contexto que o princípio da cooperação internacional deve ser utilizado:
Em um Estado ambiental que se encontra exposto a ameaças e aos efeitos de
problemas ambientais de segunda geração, somente se pode conceber uma
proteção reforçada para os interesses de uma comunidade moral heterogênea
e complexa a partir de um reforço sobre a própria consideração do primado
da dignidade da pessoa humana, situado que está agora em uma cultura
constitucional moralmente plural. 54
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inobstante a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados de
1951 considere como refugiados apenas aqueles que são perseguidos em razão de sua raça,
religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou, ainda, da suas opiniões políticas,
dentre outros, restou evidenciado que os refugiados ambientais, por não se caracterizarem
como vítimas de conflitos, não se encontram sob a tutela jurídica oferecida pela ACNUR.
Torna-se imprescindível, portanto, a reestruturação do conceito de refugiado
para que este novo grupo de pessoas também tenha o direito ao asilo reconhecido. Muito
embora a sociedade internacional já tenha consciência da emergência desta questão, este
impasse só será devidamente solucionado diante da cooperação mútua entre as nações, bem
como através da elaboração de novos parâmetros jurídicos capazes de proteger de forma
eficaz os eco-refugiados.
Não restam dúvidas de que o desenvolvimento de um conceito para os ecorefugiados mostra-se imprescindível para que haja a elaboração de um ordenamento jurídico
apropriado e garantidor dos direitos fundamentais para aqueles que sofrem, de modo direto ou
indireto, as conseqüências das mudanças do clima no globo, uma vez que a maior parte dos
refugiados do mundo aguardam soluções para melhorar a sua atual condição.
Em síntese, diante do que fora exposto, constatou-se que esta nova categoria de
refugiados englobaria todas aquelas pessoas que, em razão de desastres naturais, ou ainda em
decorrência da alteração do meio ambiente pela ação humana, tiveram que abandonar o seu
país de origem. Não há que se falar, deste modo, em emigrantes que buscam melhores
54
MAZZUOLI, Valério. Cooperação internacional para a preservação do meio ambiente: o direito brasileiro e a
Convenção de Aarhus. Disponível em: [http://periódicos.franca.unesp.be]. Acesso em: 20 jul. 2102.
303
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
condições de vida, mas sim em uma parcela da população coagida a adentrar em território
estrangeiro.
Cabe, assim, ao direito internacional, o seu maior defensor, buscar alternativas
para a elaboração de institutos normativos para os refugiados ambientais, primando sempre
pelo princípio da cooperação internacional e pela ação conjunta das nações, de modo a
contemplar aqueles, que por determinado motivo, possuem seu vínculo em um novo local
prolongado e também permanente, não apenas temporário.
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306
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
O Caso das Papeleiras: a (im)possibilidade do Meio Ambiente como tema principal do
litígio Argentina-Uruguai.
Pulp Mills Case: the (im)possibility of the environment as the main subject of the
Argentina-Uruguay incident.
Tatiana de Almeida Freitas R. Cardoso1
RESUMO
A proposta deste trabalho é estudar a problemática das papeleiras entre Argentina e Uruguai,
abordando tanto as questões levantadas no âmbito do Mercosul quanto na Corte Internacional
de Justiça. Nesse escopo, faz-se uma revisão acerca dos fatos que tornaram emblemática essa
situação, trazendo os aspectos de direito econômico, da integração e de direito internacional
suscitados na disputa, bem como a impossibilidade do meio ambiente ser tratado como efeito
primário em ambos os sistemas jurisdicionais. Por fim, analisa-se duas possibilidades que
poderiam voltar o foco da questão ao direito ambiental, qual seja, a aplicação do princípio da
cooperação e da precaução nos planos regional e internacional. Para tanto, traça-se um resgate
teórico-qualitativo acerca do tema, com intuito de revisar a bibliografia existente, porém, sem
o condão de querer esgotá-la.
Palavras-chave: Papeleiras, Proteção do Meio Ambiente, Princípios de Direito Internacional
Ambiental.
ABSTRACT
The purpose of this paper is to study the problem of the Pulp Mills between Argentina and
Uruguay, addressing both the issues raised within Mercosur and the International Court of
Justice. In this scope, it presents a review of the facts that made this situation emblematic,
discussing aspects of economic, integration and international law raised in the dispute, as well
as the inability of the environment to be seen as a primary effect on both court systems.
Finally, it analyzes two possibilities that could bring the issue into the environmental law
arena, namely the principle of precaution and cooperation at regional and international levels.
1
Professora de Direito Internacional Público e Privado na Graduação do UniRitter/RS e de Direito Internacional
Ambiental da Pós-Graduação da Feevale/RS. Pesquisadora convidada da Faculdade de Direito da Universidade
de Toronto. Possui mestrado em Direito Público (Unisinos) e pós-graduação em Direito Internacional (UFRGS)
e Língua Inglesa (Unilasalle).
307
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
To do so, a theoretical-qualitative exam on the subject is performed, aiming at reviewing the
existing literature, but not intending to exhaust it.
Key-words: Pulp mills, Environment Protection, International Environmental Law Principles.
1. Introdução: antecedentes do “conflito”.
A questão das papeleiras é considerada um caso emblemático no escopo políticojurídico do Mercosul, haja vista que uma única situação gerou uma enorme problemática em
torno de dois países membros do bloco. As tensões entre a Argentina e o Uruguai foram
tamanhas, que a controvérsia não restou solucionada dentro do espaço do Mercosul, sendo
levada Corte Internacional de Justiça.
O entrave diplomático nascera com a intenção uruguaia em autorizar a instalação de
duas grandes fábricas de papel e celulose em seu território, nas margens do Rio Uruguai, o
qual divide essa nação com a Argentina. A região é próxima das cidades de Frey Bentos, no
lado uruguaio, e de Gualeguaychu, situada no lado argentino, a qual é um grande centro
turístico e um importante ponto de acesso de mercadorias entre os países.
Os investimentos externos aproximados para a construção das plantas de papel e
celulose ultrapassara a casa de um bilhão de dólares, o que geraria um aumento estimado de
até 5% no Produto Interno Bruto (PIB) uruguaio, sendo consideradas os maiores projetos na
história deste país. Por isso, a implantação das papeleiras era realmente vital para essa
pequena nação.
Por outro lado, argumentavam os argentinos que a implantação das papeleiras na
região acabaria poluindo o Rio Uruguai, o que poderia gerar um dano ambiental imensurável
e atingir, consequentemente, os setores do turismo e da agricultura de seu país. Solicitaram,
desta forma, para que o Uruguai negasse a autorização da construção das fábricas, levantando
a necessidade de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) mais aprofundado.
A intenção era de construir duas plantas no Uruguai, uma por uma empresa
espanhola, a ENCE, e a outra por uma empresa finlandesa, a BOTNIA. Todavia, apenas um
projeto saiu do papel. Apesar de ter conseguido a autorização ambiental prévia do governo
uruguaio, em 21.09.2006 a empresa espanhola decidiu não seguir com o projeto. Já o segundo
empreendimento, chamado de Orion, obteve autorização prévia uruguaia em 14.02.2005, foi
finalizado e está em pleno funcionamento desde 9.11.2007 às margens do Rio Uruguai, que
banha as duas nações.
308
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Ocorre que quando a papeleira Orion estava sendo construída, inúmeros protestos
desenvolveram-se nessa região fronteiriça. Impulsionados pelo governo da região de Entre
Ríos e com a indulgência do então presidente Néstor Kirchner, moradores argentinos
montaram barricadas e fecharam a principal o acesso ao Uruguai, a ponte General San Martín,
protestando contra a implantação da fábrica.
O propósito destas manifestações era exatamente em dificultar a circulação de
madeira, a matéria-prima necessária para a fábrica de celulose, o que poderia resultar no
fechamento da papeleira (o que nunca veio a acontecer). O grande problema é que tais
bloqueios acabaram impedindo a livre circulação de mercadorias na região, o que é uma
violação frontal ao artigo primeiro do Tratado de Assunção de 1991 – fonte primária do
Mercosul.
O Uruguai por várias vezes manifestou-se a respeito desses bloqueios ilegítimos, os
quais geraram muitos prejuízos econômicos ao país (em torno de US$ 400 milhões). A
Argentina, por seu turno, não reagiu contra seus moradores no sentido de reestabelecer o livre
acesso na fronteira, alegando que a manutenção da planta de papel e celulose nas margens do
Rio Uruguai era realmente poluente e que causaria danos diretos à saúde, ao meio ambiente e
à economia local.
Por esse motivo é que as relações entre os países estremeceram, fazendo com que o
caso chegasse a Corte Internacional de Justiça, fugindo do seu foro de natural de solução de
controvérsias, qual seja, um Tribunal Ad Hoc no âmbito do Mercosul, conforme previa o
Protocolo de Olivos de 2002, na impossibilidade de negociações diretas entre os parceiros do
bloco florescerem.
Entretanto, inúmeros são os questionamentos que decorrem diretamente desse caso.
O primeiro é se a questão ambiental era realmente o foco central da disputa, haja vista a
despreocupação do governo Argentino frente as turbulências na fronteira e as manifestações
do governo uruguaio.
O segundo, gira em torno da questão ambiental não ter sido sequer levantada no
âmbito do Mercosul, apesar deste tema ter sido abordado tanto no Tratado de Assunção,
quanto no Acordo Marco sobre o Meio Ambiente do Mercosul. Ainda, uma terceira indagação
nasce a respeito das possibilidades desse caso, pois, no tocante ao meio ambiente, ele restou
não solucionado tanto no escopo jurídico-político do Mercosul, quanto na Corte Internacional
de Justiça.
Deste modo, esse artigo foi estruturado em duas sessões, com o objetivo de explorar
as possíveis respostas às perguntas impostas, tendo por parâmetro as noções de direito
309
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
ambiental e de direito internacional, com o intuito de demonstrar a real necessidade e a
importância de uma proteção internacional do meio ambiente, a qual foi deixada em segundo
plano por este caso.
2. O Meio Ambiente como discurso.
A preocupação com o meio ambiente e a criação de normas que o protegessem ainda
são temas muito recentes no âmbito jurídico interno, regional e internacional, porém, que já
estão no centro de inúmeras discussões nos mais diversos foros internacionais, haja vista que
o progresso mundial trouxe consigo a degradação ambiental.
A inquietude da sociedade internacional frente a esse novo dilema, o qual poderia
afetar o curso da humanidade, faz com que a proteção do meio ambiente se tornasse central e,
portanto, exige a criação de regras que proíbam expressamente aquelas atividades que gerem
efeitos danosos à saúde e ao bem-estar da espécie humana (SOARES, 2003, p. 15-16).
Desta feita, através da criação de um subsistema voltado ao meio ambiente dentro do
escopo das Nações Unidas, qual seja o Pnuma, e dos encontros mundiais para a discussão de
formas de proteção (Estocolmo – 1972 e Rio de Janeiro – 1992), que, por sua vez, estipularam
uma série de princípios norteadores de todos os sistemas jurídicos ao redor do globo, uma
rede protetora do ambiente criou forma, mundializando o discurso tutelador deste direito.
Hodiernamente, então, o meio ambiente passa a ser visto como um direito intrínseco
e fundamental para o desenvolvimento do ser humano, o qual não pode ser derrogado, por
mais que certas finalidades econômicas estejam envolvidas. Entretanto, o que se observa no
sistema jurisdicional internacional é que o direito econômico corriqueiramente sobrepõe-se ao
direito ambiental, apesar das várias convenções internacionais que são dedicadas a tutela e o
reconhecimento desta área do direito.2
É exatamente neste ponto é que a questão das papeleiras levantou um grave problema
jurídico-diplomático no bloco de integração do cone sul. Isso porque, a Argentina e o Uruguai
disputaram a atração de empresas de papel e celulose para as suas respectivas regiões, as
quais trariam consigo um significativo montante em dinheiro, o que ocasionaria um grandioso
aumento no PIB do país escolhido.
2
Mais especificamente no âmbito do comércio internacional, o qual é regulado pela Organização Mundial do
Comércio (OMC). Nesse sentido, observar os casos Tuna-Dolphin e Shrimp-Turtle em que o meio ambiente foi
colocado em segundo plano (FONSECA; RUSCHEL, 2006. p. 139-158).
310
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Para conseguir tal feito, iniciou-se a uma “guerra” de vantagens, isto é, uma
competição entre essas nações para ver quem conseguiria atrair este valioso investimento
estrangeiro por meio de incentivos. Ocorre que, pela primeira vez, o Uruguai foi o país
escolhido, conduzindo os potenciais empreendimentos papeleiros para a sua margem do Rio
Uruguai, o que desencadeou os protestos argentinos, supostamente, apenas pela poluição que
causariam. Vale lembrar, nessa época, a Argentina ainda estava tentando encontrar saídas para
a crise política, econômica e social que ocorreu em 2001 (MAGALHÃES, 2006, p. 02).
2.1 Desenvolvimento econômico versus questão ambiental.
O primeiro aspecto polêmico relacionado ao caso das papeleiras e que possivelmente
fora um dos motivos principais para desviar a atenção do meio ambiente é, portanto,
exatamente a questão dos investimentos estrangeiros diretos (IED) – mesmo que esses não
tenham sido citados nos processos existentes tanto dentro do escopo do Mercosul quanto no
da Corte Internacional de Justiça.
Isso, pois, embora a tensão bilateral entre Argentina e Uruguai tenha se agravado pelo
fato do Uruguai não ter disponibilizado um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) mais
detalhado à Argentina antes da concessão das autorizações prévias para a construção das
papeleiras, é possível analisar este caso sob um outro viés: o econômico. Afinal, os fluxos de
IED vêm aumentando significativamente no decorrer dos anos com a globalização econômica,
fazendo com que o interesse dos países cresça consideravelmente em relação aos
investimentos.3
Dentre os países do Mercosul, a Argentina é o que historicamente mais atraiu IEDs. Já
o Uruguai apresenta um papel pouco relevante ao volume do bloco no que tange
investimentos provenientes do exterior. Na década de 1990, enquanto a Argentina acumulava
em média US$ 22 bilhões, no Uruguai o fluxo de IED girava em torno de US$ 107 milhões
(CHUDNOVISKY; LÓPEZ, 1999, p. 16).
Com efeito, apesar das disputas de incentivos fiscais para atrair os investidores
estrangeiros, a Argentina acabou sempre recebendo a maioria desses fluxos de investimentos,
o que justifica possuir em seu território aproximadamente 30 fábricas de papel e celulose
(VALENTE, 2010). Entretanto, em virtude de uma profunda modificação estrutural na
3
De forma ilustrativa, cabe apresentar os números trazidos por CHUDNOVISKY e LÓPEZ (1999, p. 20-21),
que na década de 1990, a América Latina recebera em torno de US$ 6 bilhões de IED, num acréscimo de mais de
US$ 3 bilhões se comparados à década anterior.
311
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
política externa, a qual visava um aumento em IED, e com a adoção de uma “lei florestal que
oferece amplos estímulos para incrementar o plantio de bosques”, o Uruguai passou a ser uma
ótima alternativa (MAGALHÃES, 2006, p. 03).
Nesse sentido, haja vista as atrativas políticas de reflorestamento que geram além de
uma maior produção de madeira, a redução de custos deste insumo em especial, corroborada,
ainda, com a ausência de adequada regulamentação do capital estrangeiro investido no âmbito
do Mercosul4, o setor de papel e celulose no Uruguai cresceu (DOMINGO; VERA, 2007, p.
327-328; FALEIROS; PERECIN, 2008, p. 37-45). Por isso, a escolha deste Estado, em
detrimento da Argentina.
Assim, considerando que o IED “torna-se ferramenta importante para, principalmente,
aumentar a eficiência das economias e o financiamento de projetos no setor industrial, de
infraestrutura, de serviços entre outros” nos países em desenvolvimento, como é o caso da
Argentina, perder um investimento grandioso como o da papeleira finlandesa BOTNIA,
significa perder muito mais do que mais uma planta, pois significa não criar novos empregos,
não abrir novas indústrias secundárias, não movimentar matéria-prima dentro do país e nem
ter o capital gerado reinvestido no Estado (MACHADO, 2005, p. 35-39).
É dentro dessa ótica que persistem dúvidas legítimas sobre a real intenção argentina
sobre a implantação das fábricas de papel e celulose na região ribeirinha, pois, ao ver o
Uruguai como receptor da instalação das papeleiras, a Argentina começou a desviar a atenção
para a questão do meio ambiente, na tentativa de barrar a implantação das fábricas em
território uruguaio – uma medida, ao fundo, lotada de cunho econômico.
Isso, pois, com as manifestações ocorridas na província de Entre Ríos, no lado
argentino, promovida pelos habitantes locais em prol do meio ambiente e contra a possível
poluição que as fábricas poderiam causar, inúmeros caminhões que continham materiais
necessários para a construção das plantas restou retido nos bloqueios das pontes e rodovias
locais (CLÉMENT, 2006, p. 12). Tal fato, portanto, só reforça a ideia de que a questão
ambiental foi pensada em segundo plano, como forma de boicotar a implantação das plantas,
visto que caso a questão ambiental fosse realmente o epicentro da disputa, ela teria sido
abordada antes mesmo da oferta de condições e vantagens às empresas que queriam se
instalar na localidade as margens do Rio Uruguai.
4
Por óbvio que a falta de regras claras que regulassem o investimento estrangeiro na região afetaram esse caso,
sobretudo acerca da concorrência entre essas duas nações, na tentativa de puxar o IED para dentro de seus
territórios. Ressalta-se que existe um protocolo no âmbito regional que aborda esse assunto, qual seja, o
Protocolo de Buenos Aires, porém, que não fora adotado pelos Estados-membros (FLÔRES JUNIOR, 2005).
312
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Outro aspecto que colabora com essa tese é que a Argentina, por seu turno, está sendo
acusada pelo Paraguai pela poluição do Rio Paraná, situado ao norte do país, aonde se
encontram uma dezena de fábricas papeleiras. Segundo um EIA realizado naquele local, os
químicos poluentes mais expressivos derivam diretamente da indústria de celulose argentina.
Na mesma banda, empresas argentinas já foram fechadas preventivamente pela falta de
tratamento de seus efluentes e há casos sendo investigados pelo Ministério do Meio Ambiente
do Paraguai (VALENTE, 2010; DIARIO ABC COLOR, 2006; LÍNEA CAPITAL, 2006).
Nesse diapasão, zelar pela aplicação das normas internacionais de proteção ao meio
ambiente apenas ao seu favor, não demonstra o comprometimento argentino para com a
questão ambiental, mas tão somente para com sua economia. Ainda, é mister ressaltar que
apesar da existência de acordos que abordam a matéria ambiental no bloco, tais não foram
levantadas no escopo jurisdicional regional – o que é mais um exemplo da preocupação
puramente econômica argentina.
Para a Argentina, entretanto, quando optou por não exteriorizar a proteção do meio
ambiente dentro do bloco, mantendo-a apenas presente nas manifestações de seus habitantes,
acreditava reforçar a teoria de que o caso em tela não abrangeria as normas regionais, porém,
apenas uma disputa bilateral, em que o tratado do Estatuto do Rio Uruguai estaria em cena –
afastando quaisquer medidas prejudiciais de cunho vinculante que poderiam surgir no âmbito
do Mercosul, as quais afetariam as demais papeleiras existentes sob sua jurisdição.
Logo, apesar do conflito existente entre desenvolvimento econômico e o meio
ambiente não ter sido abertamente suscitado, é evidente que ele existiu. Também, não restam
dúvidas que o meio ambiente foi um ótimo meio utilizado, para protestar contra o
recebimento de IEDs e a consequente construção das fábricas de papel e celulose no Uruguai.
Curioso, portanto, é que no plano integracionista, mais especificamente no âmbito do
Mercosul, a abordagem do meio ambiente não ocorreu nas vias judiciais, apesar da existência
de provas de que a indústria papeleira pode sim causar danos ao meio ambiente como se
averigua no Rio Paraná, restando a disputa apenas no que tange o direito à Livre Circulação
no bloco.
Na esfera internacional, por sua vez, interessante foi que a Argentina, apesar de levar
ao escopo da Corte Internacional de Justiça (CIJ) a questão ambiental, ela fora abordada de
forma subsidiária a falta de informação (no tocante ao repasse do EIA), ou seja, decorrente
apenas do inadimplemento do Estatuto do Rio Uruguai.
Dessa forma, em que pese à importância da análise das questões abordadas no
judiciário para visualizar que o meio ambiente realmente restou em segundo plano nessa
313
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
disputa entre Argentina e Uruguai, é mister um estudo mais aprofundado acerca dos
posicionamentos levados junto ao Tribunal Ad Hoc e à CIJ.
2.2 Aspectos jurídicos exteriorizados nas disputas judiciais.
No escopo jurídico do Mercosul, a questão ambiental não chegou a ser levantada
pelo governo do Uruguai, ao levar a questão ao Sistema de Solução de Controvérsias do
bloco. Neste Tribunal Ad Hoc, implementado em 06.09.2006, apenas a questão da livre
circulação e da livre expressão de pensamento e reunião foram questionados, senão vejamos a
própria classificação constante no Laudo Arbitral (MERCOSUL, 2006, p. 32):
[trata-se de controvérsia sobre a] “omisión del estado argentino en adoptar medidas
apropiadas para prevenir y/o hacer cesar los impedimentos a la libre circulación
derivados de los cortes en territorio argentino de vías de acceso a los puentes
internacionales San Martín y gral que unen la república argentina con la República
Oriental del Uruguay”.
O Uruguai, demandante, alegou que a Argentina teria descumprido as regras do
Mercosul no sentido de ter-se “omitido a adotar medidas adequadas, razoáveis e eficazes”
para evitar que particulares, sob a sua responsabilidade, impusessem obstáculos nas rotas de
acesso entre um país ao outro (MERCOSUL, 2006, p. 7 e 15). Nesse sentido, peticionou
solicitando certas medidas para que no futuro, caso a situação tornasse a ocorrer, não
houvesse quaisquer bloqueios impedindo a livre circulação dessa área de livre comércio do
sul, haja vista que tais geraram prejuízos enormes às áreas de turismo e transporte de pessoas
e mercadorias (MERCOSUL, 2006, p. 6, 7 e 21).
A Argentina, por seu turno, argumentou em sua defesa que a ação não poderia ter
sido interposta ao Tribunal de Ad Hoc, visto que no momento da apresentação da peça a
situação já havia cessado – fazendo com que perdesse seu foco. Em outras palavras, para este
país, o objetivo seria a desobstrução das pontes e rotas que interligam ambas as nações, o que
não mais ocorria (MERCOSUL, 2006, p. 7). Contestou, além disso, que o Uruguai não teria
tido prejuízos, mas que teria auferido um lucro maior com o início das manifestações
(MERCOSUL, 2006, p. 8).
Contudo, o maior contraponto argentino era exatamente de que entre os direitos
humanos em jogo no caso em tela, quais sejam, o da livre expressão de pensamento e de
reunião, exteriorizados pelas manifestações dos argentinos da região de Entre Ríos, viriam
antes mesmo do que o direito de ir e vir (livre circulação), principal ponto da peça uruguaia
(MERCOSUL, 2006, p. 9). Nesse escopo, a Argentina afirmou que a liberação das pontes e
314
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
rotas por parte do governo seria uma forma de “repressão inaceitável”, visto que a intenção
dos manifestantes não era a alteração do sistema político (MERCOSUL, 2006, p. 9). Noutros
termos, afirmaram serem legítimos os bloqueios realizados entre dezembro de 2005 e
abril/maio de 2006.
Portanto, o Tribunal Ad Hoc do Mercosul decidiu parcialmente procedente em favor
do Uruguai, considerando que a Argentina realmente não observou as normativas
mercouslistas referentes à livre circulação. Isto pois, esse é um princípio essencial a um bloco
que almeja a integração econômica total.
Nesse viés, mesmo que o bloco ainda esteja em fase de desenvolvimento, tal como
fora afirmado no Laudo (MERCOSUL, 2006, p. 19-20), não se pode permitir que uma parte
imponha restrições na passagem entre uma nação e a outra. Essa restrição, consoante o direito
originário do Mercosul, inclui qualquer medida “de caráter administrativo, financeiro, cambial
ou de qualquer natureza, mediante a qual um Estado Parte impeça ou dificulte, por decisão
unilateral, o comércio recíproco”, nos termos do Tratado de Assunção – artigo 2(b). Assim, o
Tribunal Ad Hoc entendeu que as barreiras de trânsito impostas pelos manifestantes eram, na
verdade, barreias ao comércio e a um objetivo do bloco, qual seja, a da livre circulação
econômica (MERCOSUL, 2006, p. 20-21).
A Argentina chegou a tecer comentários no sentido de ela não ter sido responsável
por essa restrição, visto que foram particulares que formaram tais barreiras. Entretanto, esse
posicionamento foi rejeitado pelo Tribunal, de vez que o Estado argentino deveria tomar todas
as diligências possíveis para que outro Estado não fosse afetado negativamente pelas ações
ocorridas em seu território, incorrendo em uma responsabilidade direta (e não por omissão)
por não ter “prevenindo ou corrigido os atos dos particulares” (MERCOSUL, 2006, p. 22).
Até mesmo porque, quando uma nação está obrigada a uma determinada finalidade,
como a da livre circulação, quer dizer que tudo que ela não cumpre é visto como um desvio da
própria norma (CARNEIRO, 2006, p. 364-366) – e, portanto, se a região de Entre Ríos
continuou pelo período de, em média, cinco meses sem permitir a passagem entre os dois
lados da ponte, a Argentina descumpriu uma regra primária de direito da integração, não
cabendo a sua escusa de culpar os particulares, já que as suas atividades eram diretamente
vinculadas às obrigações do governo para com os demais países do bloco (MERCOSUL,
2006, p. 21-22).
O ponto que não fora concedido pelo Tribunal ao Uruguai, todavia, diz respeito a
possibilidade desta corte em adotar ou promover “determinações sobre condutas futuras”, cuja
possibilidade feriria os princípios de igualdade e reciprocidade das normas originárias do
315
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
bloco (MERCOSUL, 2006, p. 34). Isso, pois, tal previsão vincularia somente um dos EstadoPartes.
O Tratado de Assunção dispõe em seu artigo segundo que “o Mercado Comum estará
fundado na reciprocidade de direitos e obrigações entre os Estados”. Nesse sentido, como
assevera Kronberg (2003, p. 69), “os Estados devem sempre tratar e serem tratados pelos
demais da mesma forma, sem que haja benefícios ou imposições de sanções ou restrições de
qualquer espécie”. Por conseguinte, é evidente que prescrever uma medida somente à
Argentina iria de encontro com a disposição desse tratado constitutivo do Mercosul.
O princípio da reciprocidade nos remete a outro princípio que seria violado no caso
de uma decisão totalmente procedente em favor do Uruguai, qual seja, o supra mencionado
princípio da igualdade, pois são interligados. Esse princípio da isonomia não é apenas aquele
que prevê o tratamento igualitário entre produtos do Estado e dos demais países que compõe o
bloco, prescrito no artigo sétimo do Tratado de Assunção – ele vai muito mais além.
Representa o princípio de Direito Internacional da igualdade entre os Estados, o qual promove
condições jurídicas igualitárias e equilibradas a todas as nações, abrangendo todo o sistema
jurídico – o qual deve ser respeitado, como bem fez o Tribunal Ad Hoc (KRONBERG, 2003,
p. 37; SOARES, 1999, p. 97).
Já com relação ao argumento levantado pela Argentina de que ela “não poderia ter
tomado medidas mais enérgicas” em virtude do direito humano da liberdade de expressão
prevalecer, quando em choque com outro direito humano que é o da livre circulação (ir e vir),
foi desconsiderado pela corte do Mercosul (2006, p. 22-24). Isso pois, como restou
fundamentado em seu laudo, “os direitos de cada pessoa estão limitados pelos direitos dos
demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum” [grifo nosso] – que
é o Mercosul, como um bloco regional formado por quatro países (MERCOSUL, 2006, p. 29).
Na verdade, houve no julgamento uma real ponderação de direitos humanos
fundamentais pelo Tribunal Ad Hoc. Primeiramente, cabe ressaltar que a livre circulação é um
componente essencial para a constituição de um bloco econômico, sendo considerado um bem
comum no âmbito do direito da integração (CARNEIRO, 2007). Apesar de não ser absoluta, é
prevista em diversos acordos internacionais, como no Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos (artigo 12), Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 22) e na própria
Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 29).
Por outro lado, o direito a liberdade de expressão, o qual também não é absoluto,
evita que o indivíduo venha “a sofrer um impedimento” quando envolvido em uma atividade
(MEYER-PFLUG, 2009, p. 29). Não é um direito apenas individual (oponível ao Estado,
316
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
garantindo a atuação livre do ser humano), mas também social, sendo “necessário para o
desenvolvimento pleno da sociedade” (MEYER-PFLUG, 2009, p. 31). É também previsto no
plano internacional, como no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (artigo 18),
Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 13) e na própria Declaração Universal
dos Direitos Humanos (artigo 19).
Ocorre que, na ponderação de direitos humanos fundamentais, a escolha de um
perante o outro se dá pela busca de uma maior eficácia para os direitos em choque (PULIDO,
2003, p. 79). No caso em tela, a liberdade de ir e vir não estava apenas prejudicando o
Uruguai, como também a própria sociedade argentina no que tange a circulação de produtos
(para o comércio), além das demais pessoas de outras regiões que por ali circulavam,
enquanto que o discurso efetuado contra a implantação das papeleiras havia apenas um
“favorecido” (MERCOSUL, 2006, p. 28 e 32).
Logo, parece sensato pensar em prol da liberdade de locomoção, ante a liberdade de
expressão (e reunião), tal como proferiu o Tribunal, visto que a harmonia para ambos os lados
do Rio Uruguai estaria estabelecida (MERCOSUL, 2006, p. 26-27). Ainda, se era o objetivo
desses países ao ratificarem o Tratado de Assunção em 1991 criar uma região de livre
comércio, o comprometimento para com o bem jurídico da liberdade de circulação entre as
fronteiras parece ser mais valioso (MERCOSUL, 2006, p. 29).
Nesse diapasão, o caso perante a corte do Mercosul, foi favorável ao Uruguai (apesar
de ter sido parcialmente procedente), uma vez que restou claro que a Argentina, por mais que
não tivesse a intenção de bloquear as rotas, deveria ter tomado algum tipo de ação para
impedir que a circulação entre os dois países fosse paralisada, tal como ocorrera entre 20052006. Sendo que o meio ambiente, o mais prejudicado do caso em questão, foi apenas visto
como a origem do conflito, por ser o motivo das manifestações dos argentinos, os quais
vieram a bloquear os acessos internacionais – não sendo sequer levantado no mérito da
decisão mercosulina (2006, p. 16).
Na Corte Internacional de Justiça (CIJ), principal órgão judicial das Nações
Unidas, o meio ambiente já passou a figurar no campo central da disputa, porém, viabilizado
somente através do Estatuto do Rio Uruguai (ERU), firmado entre Argentina e Uruguai, o
qual fixa limites quanto a real possibilidade da questão ambiental realmente ser analisada.
O caso foi levado a Corte por ela ser o meio válido para dirimir disputas que tratem
de descumprimentos de tratados, pois faz parte de sua jurisdição, nos termos do artigo 36 do
seu Estatuto. Ainda mais, ambas as partes já tinham aceitado a jurisdição compulsória deste
órgão com relação à matéria objeto do litígio, conforme o disposto no artigo 60 do ERU.
317
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Desta feita, essa disputa chegou à CIJ por intermédio da Argentina, que em 04.05.2006
adentrou com uma petição contra o Uruguai pelo suposto descumprimento do Tratado
referente ao Rio, o qual fora firmado entre as partes em 26.02.1975 e estava em vigor desde
então.
A Argentina alegou que o Uruguai descumpriu tanto obrigações procedimentais,
como obrigações substantivas referentes ao citado Estatuto, além de outras obrigações de
direito internacional, principalmente no que toca os acordos de direito ambiental e que, em
virtude disso, deveria ser responsabilizado internacionalmente por seus atos danosos.
Contudo, o primeiro fato relevante quanto a essa disputa foi que antes mesmo da
decisão da CIJ, ambas as partes solicitaram a tomada de medidas provisórias. Primeiramente
foi a Argentina, que em seu memorial, solicitou a suspensão das construções até o final do
litígio, pois acreditava que tais podiam causar danos irreversíveis ao meio ambiente. A Corte,
todavia, pela falta de evidências apresentadas de que as plantas seriam fontes de poluição do
Rio a rejeitara por maioria absoluta o pedido em 13.07.2006 (CIJ, 2006, p. 43).
O Uruguai, por sua vez, requereu em 30.11.2006 uma manifestação da Corte ante os
novos bloqueios que haviam sido efetuados pela população civil argentina nas rotas
internacionais de acesso entre os dois países,5 com fulcro na Ordem de 13.07.2006 da própria
Corte (a mesma que negou o pedido argentino), a qual solicitava às partes “a se absterem de
tomar quaisquer medidas que talvez pudessem dificultar a resolução do presente caso” (CIJ,
2006, p. 14). Entretanto, a CIJ em 23.01.2007, igualmente por maioria absoluta, negou tal
solicitação “pela falta de perigo de prejuízo iminente aos direitos uruguaios na disputa” (CIJ,
2007, p. 16).
Quanto ao mérito, este só veio a ser decidido em 20.04.2010, quando a Corte
condenou o Uruguai pelo descumprimento de obrigações procedimentais, afirmando que este
país realmente cometera violações ao referido Estatuto. Isso em razão de haver no Tratado
uma obrigação mútua de cooperação quanto a preservação do Rio, onde as partes deveriam
informar uma a outra, por intermédio de uma Comissão específica, quando pretendessem
utilizar tais águas para outros fins, visto que a finalidade pretendida poderia afetar a qualidade
destas. Explicitamente, são os termos do artigo sétimo do Estatuto do Rio Uruguai:
La parte que proyecte la construcción de nuevos canales, la modificación o
alteración significativa de los ya existentes o la realización de cualesquiera otras
obras de entidad suficiente para afectar la navegación, el régimen del río o la calidad
5
Conforme a petição uruguaia à CIJ, as rotas haviam sido fechadas no mês de novembro de 2006; e os
manifestantes argentinos afirmaram que iriam manter os bloqueios por, no mínimo, mais três meses,
similarmente como havia sucedido no ano anterior àquele (CIJ, 2006a, p. 2).
318
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
de sus aguas, deberá comunicarlo a la Comisión, la cual determinará sumariamente,
y en un plazo máximo de treinta días, si el proyecto puede producir perjuicio
sensible a la otra parte. [grifo nosso]
Nesse sentido, restou comprovada a inadequação uruguaia quanto à informação
transmitida à Comissão Administrativa do Rio Uruguai (CARU), uma vez que ela deveria ter
sido realizada através do próprio governo antes mesmo da concessão prévia de permissão para
a construção das papeleiras, com o intuito de evitar que uma das partes agisse de maneira
unilateral, sem a devida discussão conjunta acerca das finalidades das águas – o que não
sucedeu no caso em tela (CIJ, 2010, p. 31).
Inicialmente, insta notar que a transmissão dos primeiros Estudos de Impacto
Ambiental à CARU foi feita pelas próprias empresas que construíam as fábricas de papel e
celulose. De acordo com as manifestações do Uruguai, representantes da ENCE e da
BOTNIA haviam repassado à Comissão as informações necessárias para uma eventual
comunicação entre os países, antes mesmo das concessões de construção serem efetivamente
emitidas pela agência uruguaia responsável (CIJ, 2010, p. 39).
Entretanto, como bem salienta o Estatuto, corroborado pela interpretação da Corte,
quem deveria ter transmitido tais dados era o próprio Poder Público uruguaio – e não o setor
privado (CIJ, 2010, p. 39 e 41). Inclusive, acredita-se que esse país, na tentativa de corrigir
seus atos, acabou incorrendo em mais dois erros cruciais, os quais realmente garantiram a sua
condenação, quais sejam: (a) terem igualmente repassado o EIA de ambas as plantas ao
governo argentino, porém, sem utilizar-se da CARU, conforme o artigo sétimo do ERU; e (b)
o fez posteriormente ao licenciamento das obras, de acordo com o seu regimento interno –
desconsiderando totalmente as normativas internacionais.6
Portanto, a decisão da confirmou que no tocante aos procedimentos, o Uruguai
transgrediu o ERU. Todavia, quanto a supostas violações de obrigações substanciais do
referido Estatuto, as quais fazem referência a possíveis danos ambientais, o Uruguai fora
absolvido, por não restarem comprovadas nenhuma ligação entre a Papeleira, que já se
encontra em funcionamento, e supostos aumentos de poluente nos índices do Rio Uruguai.
Isso, pois, a Argentina falhou em demonstrar que a permanência das papeleiras
naquela região estava causando e poderia causar, no futuro, danos irreversíveis ao ecossistema
local (CIJ, 2010, p. 54 e 65). A Argentina não apresentou evidências suficientes em nenhum
dos quesitos levantados por ela perante a Corte. Apesar de ter submetido inclusive
demonstrações numéricas de que a qualidade da água havia sido alterada, não demonstrou
6
Planta da ENCE: transmissão (pelo governo) em 27.10.2003, licença em 9.10.2003. Planta da BOTNIA:
transmissão (pelo governo) entre agosto e janeiro de 2006, licença em 14.02.2006 (CIJ, 2010, p. 41).
319
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
nenhuma ligação entre esses aumentos e a construção e funcionamento das fábricas de
celulose (CIJ, 2010, p. 65-66).
A decisão da CIJ, portanto, favoreceu a Argentina no sentido de ter reconhecido que
o Uruguai realmente havia descumprido com o acordado no ERU. Entretanto, haja vista que
somente obrigações procedimentais foram descumpridas, a Corte entendeu que não haveria
sentido em desmantelar a fábrica de papel, como forma de punição pelo ato ilegal uruguaio –
mantendo a papeleira em operação (CIJ, 2010, p. 66).
Verifica-se, contudo, que realmente o meio ambiente poderia ter ganhado essa
disputa se não tivesse sido utilizado como mero discurso de uma nação para atingir seu
objetivo maior, que era receber o IED. Por óbvio que um empenho maior em demonstrar os
reais danos ambientais, como também expor a legislação ambiental em vigor poderiam ter
ajudado o meio ambiente a ganhar essa “batalha comercial” ente argentinos e uruguaios.
Logo, passamos a análise de dois pontos que poderiam ter sido abordados na disputa
em tela em favor do meio ambiente, tanto no âmbito mercosulino quanto na CIJ, os quais
teriam feito uma diferença substancial no julgamento em prol do ecossistema.
3. E se o Meio Ambiente fosse uma realidade?
A política ambiental7 não é uma unanimidade ao redor do globo. Apesar de todos os
povos admitirem a necessidade de uma proteção ambiental para a continuidade da espécie
humana, o desenvolvimento e o crescimento econômico sempre se destacaram nesse período
de globalização. A facilidade do comércio internacional e a possibilidade de auferir enormes
riquezas tornam muito mais distantes as políticas de proteção ambiental (DERANI, 1997, p.
120-126).
A consciência em prol do meio ambiente, porém, vem sendo alvo de enormes
discussões no plano internacional, tendo em vista a evidência de que os danos ambientais
desconhecem as fronteiras geográficas dos Estados (CONSELHO PONTIFÍCIO DE
JUSTIÇA E PAZ, 2006, p. 30). Logo, é crescente o pensamento de que não se pode mais
deixar de avaliar os efeitos ambientais que surgem ao lado do desenvolvimento econômico.
Afinal, se este tem como finalidade aumentar o bem-estar (WICKE , 1991, p. 517) e aquele
envolve o meio em que o ser humano nasce e interage (SANTILLI, 2005, p. 70-71), um não
7
Para os fins deste trabalho, entende-se política ambiental como sendo “uma série de estratégias e instrumentos”
adotados por governantes ou por empresas privadas que refletem na proteção concreta do meio ambiente
(RAMOS, 2009, p. 69).
320
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
pode dissociar-se do outro sem implicar da inviabilidade da vida humana (FENSTERSEIFER,
2008, p. 89).
Desta feita, a proteção ambiental deveria ser uma realidade, inclusive estando ao
mesmo nível da própria evolução econômica dos países, uma vez que as ações ambientais
hodiernas refletem diretamente em benefício de toda a comunidade internacional, pois
garantem uma “segurança ecológica para a humanidade”, de forma a assegurar uma melhor
qualidade de vida no presente, a “ser transmitida às gerações futuras” (CARVALHO, 2008, p.
86-87).
Como já previa a Declaração de Estocolmo da Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente datada de 1972, em seu segundo princípio, “a proteção e a melhoria do meio
ambiente humano constituem desejo premente dos povos do globo e dever de todos os
Governos, por constituírem o aspecto mais relevante que afeta o bem-estar dos povos e o
desenvolvimento do mundo inteiro” – demonstrando desde aquela época a real a necessidade
de haver um equilíbrio entre a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento econômico
que se desdobrava em virtude da interligação das economias mundiais.
Destarte, passa-se a abordar duas possibilidades que poderiam ter sido levantadas na
questão das papeleiras em ambas as jurisdições movimentadas pelas partes, as quais teriam
tornado real essa vontade da comunidade internacional em garantir um meio ambiente (e,
consequentemente, bem-estar) melhor ao ser humano, quais sejam, o princípio da cooperação
e o princípio da precaução.
3.1 O caso no Âmbito do Mercosul e o Princípio da Cooperação.
No âmbito do Mercosul, nenhuma manifestação em relação a questão ambiental fora
proferida pelo Tribunal Ad Hoc. A única menção ao meio ambiente suscitada foi na tentativa
de justificação ao protesto dos habitantes da região argentina de Entre Ríos, haja vista que as
atitudes dos manifestantes eram sustentadas pela suposta falta de atenção do governo
uruguaio frente ao impacto ambiental que a obra poderia causar no ecossistema em torno do
Rio Uruguai, o que afetaria diretamente a região argentina.
Exatamente por não ter sido deliberada nesse foro, manteve-se aberta a suposta
existência de dano ambiental com a implantação da papeleira finlandesa nas margens do Rio,
a qual poderia ter sido abordada na resposta formulada pela própria Argentina, frente a
reclamação uruguaia, haja vista a existência de normas ambientais no âmbito do bloco.
321
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
No Tratado Constitutivo do Mercado Comum do Sul, isto é, no Tratado de Assunção
a questão ambiental já é vislumbrada em seu preâmbulo, onde resta estabelecido que a
preservação do meio ambiente é uma das condições fundamentais para que se alcance a
implantação do mercado comum e do desenvolvimento econômico dos Estados-Parte com
justiça social. Em outras palavras, quer isto dizer que o meio ambiente é um princípio
elementar da ordem jurídica do Mercosul, o qual deve ser respeitado e protegido pelos
parceiros do bloco.
Em 1995, o Conselho do Mercado Comum (CMC) decide criar um ‘Programa de
Ação do Mercosul até o Ano de 2000’, o qual abordava uma série de questões a serem
desenvolvidas pelos países do bloco com o intuito de aprofundar e aperfeiçoar a sua
integração econômica. Portanto, no item que tratava da dimensão global da integração, restou
acordado que o meio ambiente deveria ser tutelado e que, para tanto, deveriam ser criadas
estratégias e diretrizes que garantissem a sua proteção, com base nos princípios de
desenvolvimento sustentável e cooperação, emanados pela Conferencia das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992
(MERCOSUL, 1995, Parte II).
Nesse sentido, visto que a diversidade crescente da agenda interna e externa do
processo de integração inclui o meio ambiente, não poderia o Mercosul olvidar essa matéria.
Logo, o subgrupo de trabalho de número seis, apresentou um projeto para tomada de um
Acordo-Marco sobre o Meio Ambiente no Mercosul, o qual foi aprovado pela CMC em 2001.
Esse Marco regulatório reafirma os compromissos dos Estados-membros do bloco à
Declaração do Rio de Janeiro de 1992 e a Agenda 21, principalmente no que tange a
cooperação dos países para a proteção do meio ambiente e a utilização sustentável dos
recursos naturais – exatamente o que poderia ter sido argumentado pela Argentina, frente às
ações uruguaias em prol da construção das fábricas de papel e celulose.
Isso porque, é crescente a importância do princípio da cooperação no plano
internacional. Esse princípio “postula uma política mínima de cooperação solidária entre os
Estados em busca de combater os efeitos devastadores da degradação ambiental, o que
pressupõe ajuda, acordo, troca de informações e transigência” global, exatamente porque essa
é uma questão que pode gerar prejuízos a todos aqueles que compõe sociedade internacional
(FENSTERSEIFER, 2008, p. 141).
Esse princípio também “orienta a realização de [...] políticas relativas ao objetivo de
bem-comum, inerente à razão constituidora do Estado”, as quais impõe “uma adequação entre
os interesses mais significativos”, em prol da proteção ambiental (DERANI, 1997, p. 120322
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
157). Nesse sentido, o princípio da cooperação entre os povos transpassa as necessárias
“regras de coordenação” entre as nações (MENEZES, 2007, p. 210), exigindo um
comprometimento maior de todos os integrantes da sociedade internacional a perseguir os
objetivos considerados comuns, como são os ecossistemas e os recursos naturais (NASSER,
2005, p. 204).
Desta feita, se o objetivo comum era exatamente proteger o Rio Uruguai de uma
poluição e/ou da degradação do ecossistema local pelos resíduos tóxicos emanados pela
fábrica de celulose, os Estados envolvidos no caso em tela, quais sejam, Argentina e Uruguai,
deveriam aliar-se para tornar efetiva a proteção do meio ambiente, garantindo, assim, o
desenvolvimento da comunidade ribeirinha e do ecossistema local com a devida qualidade e
equilíbrio – e não adentrar em disputas que encobrissem o verdadeiro problema (HÄBERLE,
2007).
Uma vez levantada essa questão e vislumbrada a falta de comprometimento do
Uruguai em relação a aplicação das normativas do boco, como também pela não adoção de
medidas conjuntas com a Argentina para minimizar quaisquer riscos que poderiam ou
poderão ocorrer em virtude da alocação das plantas em tal localidade8, poder-se-ia alegar que
o Uruguai teria descumprido a legislação do Mercosul (incluindo normas específicas e
genéricas de direito ambiental, como anteriormente abordadas), além do próprio princípio de
Direito Internacional da cooperação, podendo ser penalizado por sua transgressão, com base
no Protocolo de Olivos, datado de 2002, em seu artigo 34.
Nesse sentido, caso restasse comprovada a real poluição do ecossistema da região de
Entre Ríos exatamente pela sua falta de harmonia e coordenação perante os demais EstadosMembro, a situação poderia ser efetivamente elevada ao Tribunal Ad Hoc do Mercosul,
podendo inclusive incidir na aplicação de medidas compensatórias no caso de um eventual
descumprimento daquilo prescrito pelo laudo proferido por essa Corte, conforme prescreve o
referido Protocolo de Olivos, em seus artigos 27 e 31. Assim, em suma, é possível afirmar que
a questão ambiental poderia ter sido resolvida ainda dentro do âmbito do bloco, não expondo
a fragilidade do mesmo no plano internacional, caso esses pontos tivessem sido argumentados
pela parte argentina, mesmo que em contestação ao pedido inicial uruguaio.
Todavia, a Argentina preferiu levar a questão à CIJ, tendo em vista o que havia sido
acordado ainda em 1975 com o Uruguai em relação ao Rio, o qual vinculou esses dois países
ao estabelecimento de mecanismos comuns para um aproveitamento melhor e racional das
8
Insta ressaltar que o ERU, em seu capítulo IX, também previa implicitamente o princípio de cooperação.
323
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
águas da região. Ocorre que, mesmo tendo o foco efetivamente ambiental, a Corte maior das
Nações Unidas não considerou os argumentos levantados, tendo em vista a falta de provas
suficientes para conectar a crescente contaminação percebida ao longo do Rio com a papeleira
situada no território uruguaio.
Nesse escopo, cabe ressaltar, que uma decisão totalmente diferente poderia ter sido
proferida, tal como demonstramos no plano do Mercosul, no caso da observação de outro
princípio, qual seja, o da precaução já no escopo externo ao bloco.
3.2 O caso na Corte Internacional de Justiça e o Princípio da Precaução
O caso perante a CIJ, como ora abordado, levantou primeiramente as obrigações
encontradas no escopo do ERU e em segundo lugar, as questões ambientais, como a poluição
de rios transfronteiriços, a poluição do ar e inclusive os efeitos da construção na
biodiversidade local, as quais conduziriam a região de Entre Ríos a sofrer diversos danos
irreparáveis em seu ecossistema. Como é sabido, porém, a Argentina falhou em apresentar
evidências concretas à Corte, o que resultou no afastamento da questão ambiental e manteve o
foco somente no Estatuto do Rio Uruguai.
Pode-se dizer, logo, que o meio ambiente fora preterido em função desta falha
procedimental da parte argentina. Entretanto, se estamos diante de um bem tão mínimo e
essencial para o ser humano, que é o meio ambiente, será que a Corte Internacional de Justiça
não deveria ter julgado em prol desse direito? Afirma-se, nesse caso, que sim, exatamente
pela sua característica fundamental, sendo corroborado pelo princípio da precaução.
Meio ambiente, para Derani (1997, p. 71), “não se reduz a ar, água, terra, mas deve
ser definido como o conjunto das condições de existência humana, que integra e influencia o
relacionamento entre os homens, sua saúde e seu desenvolvimento”. Evidente, portanto, que o
“meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental do ser humano”, sem o
qual o ser humano não sobrevive, pois afeta diretamente na sua saúde e na própria qualidade
de vida (LEUZINGER, 2003, p. 192).
Desta feita, a relação existente entre homem e meio ambiente é indissociável, pois o
comprometimento deste pode impedir o indivíduo de gozar de todos os demais direitos que
lhe cabem, sendo considerado a condição mínima necessária, devendo ser efetivamente e
universalmente tutelados (MORATO LEITE; AYALA, 2002, p. 48; CANÇADO
TRINDADE, 1993, p. 71). Nesse diapasão, teria sido essencial para comprovar o meio
ambiente como um direito intrínseco do ser humano, a decisão plenamente favorável à
324
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Argentina, tendo em vista a possibilidade da planta de pasta de papel em causar danos
irreversíveis ao meio ambiente.
É neste ponto que o princípio da precaução se sobressai entre os demais princípios no
plano do direito internacional ambiental. Justamente por ser utilizado quando as
consequências de determinado ato não são detalhadamente conhecidas, se reconhece a
necessidade de alguma medida ser tomada com o intuito de precaver-se quanto às
possibilidades e previsibilidades danosas futuras (MACHADO, 2001, P. 55), bastando que
haja somente a incerteza quanto à verificação do risco (CUNHA, 2004, p. 116).
Esse princípio é encontrado no artigo 15 da Declaração do Rio – documento
formulado na Conferência de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas de 1992.
Nesta ocasião, restou estipulado que “na existência de ameaças de danos sérios ou
irreversíveis ao meio ambiente, a falta de uma absoluta certeza científica não deve ser usada
como uma razão para se adiar a adoção de medidas economicamente efetivas para prevenir a
degradação ambiental”.
Verifica-se, desse modo, que apenas “a plausibilidade da ocorrência de danos
ambientais graves”, e não apenas os efeitos nocivos iminentes, certos e já conhecidos, já seria
suficiente para impor limites às atividades industriais de certos países, como por exemplo, a
manutenção de papeleiras (SAMPAIO; WOLD; NARDY, 2003, p. 17). Afinal, o
desconhecimento dos impactos pode inclusive por em risco a própria existência do homem,
haja vista a ligação existente entre esses dois bens jurídicos, conforme já manifestou o
Ministro Gilmar Mendes (STF, 2008, p. 7).
Ocorre que muitas vezes no âmbito internacional é exigido a demonstração
específica de que certo produto possa efetivamente desenvolver o dano, tal como ocorreu no
caso em tela. Não se conseguiu comprovar que a papeleira finlandesa em funcionamento na
margem uruguaia, apesar de utilizar a ultima tecnologia em tratamento de água, cujo padrão é
semelhante ao sutilizado pela União Europeia, poderia levar a poluição das águas do Rio
Uruguai.9
Contudo, exatamente nesse ponto é que esse princípio deveria ter sido utilizado, de
vez que “toda a idéa de se adotar medidas de precaução sustenta-se exatamente no
desconhecimento dos impactos negativos associados a determinado curso de ação”, como
9
Semelhante fora o caso julgado pelo painel do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC entre Estados
Unidos e União Europeia, em que essa pretendia barrar a entrada de carne bovina originária daquele, haja vista a
utilização de hormônios de crescimento nos bois que poderiam gerar câncer, o qual não fora comprovado –
sendo, portanto, negado o pedido europeu, autorizando retaliações estadunidenses semelhantes as sofridas pelos
pecuaristas americanos com o embargo.
325
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
bem apontam Sampaio, Wold e Nardy (2003, p. 18). Vale dizer, da mesma forma, que o
instituto da precaução é utilizado frente ao perigo abstrato, em que uma ação é formulada
antecipadamente, para impor um limite final ao risco/perigo desconhecido (MARCHESAN,
2008, p. 31).
O entendimento da CIJ, entretanto, fora diverso no caso em tela. Apesar de ter
reconhecido ainda na opinião consultiva acerca da Legalidade da Ameaça do Uso de Armas
Nucleares de 1996 (p. 242) que “o Estado tem a obrigação de garantir que as atividades
dentro de sua jurisdição respeitem o meio ambiente dos demais Estados, como também das
áreas que vão além de seu controle”, a Corte preferiu nesta ocasião manter-se fiel ao que
previa (ou não) o ERU – indo de encontro com as próprias normativas consuetudinárias
internacionais.
Caso o processo perante a CIJ possa ser entendido como um caminho para tornar
reconhecido um direito perante a comunidade internacional, como o meio ambiente, visto que
é um procedimento justo e equitativo, realizado em contraditório, o qual garante, assegura,
amplia e efetiva os direitos em debate, o mesmo deveria seguir o entendimento comum
internacional de que há um dever maior de proteção ambiental, visto que este é um valor
fundamental e essencial para o ser humano (JAYME, 2005, 134).
Suas decisões, exatamente por interpretarem situações problemáticas que decorrem
da vida em sociedade, acabam tendo grande visibilidade pela comunidade internacional, a
qual a toma como um ponto de referência, mesmo sabendo que a decisão ali proferida é
vinculante somente entre as partes, nos termos do seu Estatuto – artigo 59. Assim, se o direito
ambiental já está assentado no seio da comunidade internacional como “condição de direito
fundamental da pessoa humana”, quando levantado no âmbito da Corte, o conceito de
inderrogabilidade e individualidade desse valor fundamental deveria permanecer, inclusive a
frente do ERU.
No momento em que não há hierarquia entre as fontes primárias de direito
internacional previstas no Estatuto da Corte Internacional de Justiça, deveria haver uma
ponderação entre os tratados e costumes aplicáveis no caso concreto (BROWNLIE, 1979, p.
3). Nesse sentido, cabe ressaltar o pensamento de Brierly (1963, p. 58) quando afirma que um
tratado será considerado fonte de direito internacional quando o mesmo é celebrado entre
vários Estados, demonstrando um entendimento comum acerca de determinada matéria ou
fato.
326
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Portanto, apesar do próprio ERU ser considerado “lei entre as partes” em virtude do
pacta sunt servanda,10 o direito consuetudinário da preocupação para com a preservação da
espécie humana, garantindo a ela um meio ambiente saudável e equilibrado para o seu correto
desenvolvimento, o qual surgiu em Estocolmo em 1972, parece muito mais relevante na
questão das papeleiras entre Argentina e Uruguai.
Outrossim, insta ressaltar que o meio ambiente, por fazer parte do rol dos direitos
humanos de terceira geração, é igualmente considerado uma norma peremptória11, ou seja,
“uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo,
como norma da qual nenhuma derrogação é permitida”, como prescreve o artigo 53 da
Convenção de Viena do Direito dos Tratados de 1969. Em outras palavras, percebe-se que se
trata de norma cogente, a qual está presente nas raízes da consciência internacional, sendo
considerada um valor intrínseco (RAGAZZI, 1997. p. 54).
Nenhum tratado pode suspendê-la, pois são regras fundamentais da comunidade
internacional e constituem um dos princípios mais importantes do ordenamento jurídico
internacional (JANIS, 2003, p. 65). Caso tenha sido firmado um acordo que vá de encontro
com essa regra, tal é passível de declaração de invalidez por um órgão imparcial (tal como a
CIJ), visto que a norma peremptória só pode ser modificada caso haja a superveniência de
outra norma cogente que trate da mesma matéria (McCORQUODALE, 2003. p. 88, 91-94).
Logo, esta é outra razão evidente para que o meio ambiente no caso das papeleiras
visse a ser protegido a partir do princípio da precaução, em detrimento da limitada aplicação
do ERU. Isso porque, normas peremptórias são sempre mais relevantes que os próprios
tratados firmados entre as partes.
Desta feita, para que o meio ambiente fosse efetivamente uma realidade no âmbito da
CIJ, dever-se-ia aplicar o princípio da precaução, no sentido da Argentina poder tomar
providências acautelatórias relativas aos efluentes da fábrica de papel presente no Uruguai, a
qual pode vir a causar danos ambientais no futuro – haja vista a possibilidade, mesmo que
incerta, de atingir-se diretamente as famílias que habitam a região ribeirinha, bem como a sua
fauna e flora.
10
Cabe relembrar que o pacta sunt servanda é um princípio geral de direito internacional, considerado uma
norma auxiliar, isto é, secundária dentre as fontes do direito internacional, prevista na alínea c do artigo 38 do
Estatuto da CIJ.
11
É mister salientar a diferença existente entre normas costumeiras e normas ius cogens. Enquanto aquelas
devem obter um consenso mínimo dos Estados estas devem ultrapassar tal consenso, e atingir uma concordância
majoritária ou absoluta entre todas as nações, construindo um valor mínimo da sociedade internacional (JANIS,
2003, p. 66).
327
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
O ERU, nesse escopo, somente deveria ser utilizado como mais um elemento
comprobatório dessa necessidade, de vez que sua normativa previa uma “utilização otimizada
e racional do Rio” no artigo primeiro, a qual não estaria sendo seguida. Este não deveria ser
visto como a fonte de direito internacional principal a ser discutida pela Corte, tal como foi no
julgamento, caso a intenção fosse realmente fazer valer a regra ambiental.
Nesse diapasão, tais princípios da cooperação e da precaução reproduziriam muito
bem a idéia atual de que o meio ambiente é um direito que compõe a estrutura básica do
homem, o qual deve ser assegurado pela comunidade internacional concomitantemente à
atração de um maior investimento estrangeiro para seu território. Sem um meio ambiente
equilibrado não há nem mesmo um local seguro e sadio para o desenvolvimento econômico,
justamente porque um depende direitamente do outro para a sua total fruição.12
4. Considerações Finais
O caso das papeleiras é sem dúvidas um novo caso emblemático do direito
internacional e da integração, haja vista a pluralidade de jurisdições movimentadas para tentar
sanar uma disputa referente à implantação de fábricas de papel nas margens de um rio
transfronteiriço, situado entre Argentina e Uruguai.
Os desdobramentos das duas decisões, entretanto, abordaram situações totalmente
diferentes, havendo apenas um ponto em comum, qual seja, a impossibilidade de vislumbrar o
meio ambiente como tema principal. Seja em razão da livre circulação ou da aplicação estrita
do Estatuto do Rio Uruguai, restou claro que o ponto principal da disputa girava em torno da
atração de investimentos estrangeiros direitos e do fortalecimento econômico, e não da defesa
do ecossistema local.
Da mesma forma em que a integração regional impulsionou a entrada de empresas
estrangeiras à Argentina por vários anos, o Uruguai teve pela primeira vez a oportunidade de
celebrar um contrato de tamanho valor monetário – o que levou àquela nação a uma
insatisfatória posição de ser preterida, criando tamanho um desgosto ao governo, que, por sua
vez, nada fez a fim de evitar o fechamento por parte de seus habitantes dos pontos de entrada
e saída entre ambos os países, gerando um grande transtorno regional.
12
Os draft principles sobre direitos humanos e meio ambiente, formulado no âmbito da Assembleia Geral do
sistema onusiano, no ano de 1994, assinala essa conexão quando redige o seu artigo segundo nos seguintes
termos: “todas as pessoas tem o direito a um meio ambiente seguro, saudável e ecologicamente equilibrado. Esse
direito e os outros direitos humanos, incluindo os direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais são
universais, interdependentes e indivisíveis” (ONU, 1994).
328
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Para muitos, essa questão inclusive estremeceu as relações do bloco, haja vista a
impossibilidade da livre circulação (finalidade maior do Mercosul) ser efetivamente garantida.
De fato, o bloco viu-se em um impasse nunca antes vislumbrado, do qual brotou a
necessidade de uma legislação para a concorrência entre as nações do bloco.
No escopo da Corte Internacional de Justiça, outro problema também emergiu – o
meio ambiente fora deixado de fora da análise, focando-se apenas no Tratado constituído
pelas partes e nas obrigações procedimentais, olvidando-se do papel fundamental que o meio
ambiente carrega hodiernamente, que já fora inclusive emanado pela mesma Corte em
situações anteriores, demonstrando certo descompasso entre as próprias jurisprudências desse
órgão.
Todavia, se tais foram chamados de efeitos diretos, os efeitos indiretos dessa disputa
são os que mais preocupam, exatamente por envolver o meio ambiente, sem o qual o ser
humano não pode se desenvolver plenamente. E justamente esses efeitos que ficaram em
segundo plano em ambas as disputas jurisdicionais.
Muito se afirma que hodiernamente tanto as relações econômicas quanto a busca por
um ambiente mais saudável são preocupações transnacionais, as quais rompem com os
tradicionais limites geográficos das nações. Porém, se se começa a desenhar um “direito
internacional ambiental que aos poucos passa a incidir nas relações comerciais
internacionais”, esse caso deveria ter sido resolvido com fulcro na questão ambiental em
ambos os planos jurisdicionais, e não apenas nos efeitos direitos exteriorizados nas disputas.
Isso pois, mesmo que a finalidade do direito ambiental coincida com a do direito
econômico, qual seja, propiciar um aumento na qualidade de vida do ser humano e no próprio
bem-estar do individuo, sem o meio ambiente equilibrado e sustentável, a humanidade está
fadada a chegar a um fim. Nesse sentido, seria indispensável que o meio ambiente passasse a
assumir um papel maior perante a comunidade internacional. Por isso, foi abordado a
utilização de dois princípios de direito internacional que ajudariam as questões a serem
resolvidas com base no direto ambiental, tanto no Mercosul quanto na CIJ.
No escopo do bloco, a cooperação entre os Estados, seria uma condição
importantíssima para que os problemas relativos ao meio ambiente, os quais afetam a
persecução do bem comum, fossem contornados. Afinal, a primazia dos objetivos comuns
internacionais, como a sustentabilidade ambiental, é condição para a própria existência dos
Estados, agindo em prol do ser humano – e não contra ele.
Já no plano da Corte Internacional de Justiça, o princípio da precaução deveria obter
destaque, justamente por agir em prol da segurança do meio ambiente (direito tanto
329
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
costumeiro quanto cogente) quando houvesse um perigo desconhecido que emergisse de certa
ocasião – atuando in dubio pro securitate. Afinal, esse princípio assegura a existência de uma
qualidade mínima de vida à comunidade atual, permitindo, ainda, a sua transferência às
gerações futuras, exatamente pela premissa que carrega, qual seja, de cessar os riscos mais
indetermináveis, porém, presentes.
Por fim, se esses princípios mencionados fossem seguidos, o meio ambiente passaria
de um mero discurso, para o efeito principal de ambos os casos originados pela questão das
papeleiras, introduzindo a realidade a busca incansável pela proteção da espécie humana
nesses dias globalizados, em que muitas vezes uma economia mais próspera fala mais alto –
apesar de carregar consigo o alto risco de tornar a humanidade inexistente em um futuro
próximo, haja vista o consumo desenfreado dos recursos naturais, a poluição dos rios, a
destruição da camada de ozônio, para citar alguns exemplos que se originam dessa realidade.
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334
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A LEI DE ANISTIA E O CASO ARAGUAIA:
ENTRE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
THE AMNESTY LAW AND THE ARAGUAIA CASE:
BETWEEN THE SUPREME COURT AND THE FEDERAL
INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS
Maurício Gabriele1
Resumo: Este artigo versou sobre a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos, à decisão do Supremo Tribunal Federal sobre tal condenação, à Lei de
Anistia (nº. 6.683/79) e à Guerrilha do Araguaia. A sentença da CIDH e a sentença do STF
geraram um conflito sobre a constitucionalidade da Lei de Anistia, que protegeu os agentes
dos crimes de leso-humanidade cometidos durante a ditadura, os quais perduram até o
presente momento, devido à ausência do Controle de Convencionalidade por parte do Estado,
caracterizando a violação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e o Pacto de San
Jose da Costa Rica.
Palavras chave: Guerrilha do Araguaia; Lei de Anistia; Corte Interamericana de Direitos
Humanos; Supremo Tribunal Federal.
Abstract: This article was about the sentencing of Brazil by the Inter-American Court of
Human Rights, the decision of the Brazilian Supreme Court on such condemnation, the
Amnesty Law (no.. 6.683/79) and the Araguaia Guerrilla. The judgment and sentence of the
Inter-American Court of Human Rights and the Brazilian Supreme Court generated a conflict
over the constitutionality of the Amnesty Law, which protected the agents of injury-humanity
crimes committed during the dictatorship, which lasted until the present time, due to a lack of
control by conventionality the state, characterizing the violation of International Human
Rights Treaties and the Pact of San Jose da Costa Rica.
Keywords: Araguaia Guerrilla; Amnesty Law; Inter-American Court of Human Rights;
Brazilian Supreme Court
Sumário: 1. Introdução – 2. Teoria do Estado Constitucional Cooperativo – 3. O Julgamento
do CIDH – 4. O Julgamento do STF – 5. Entre o STF e a CIDH – 6. Conclusão – 7.
Referências
1. Introdução
1
Mestrando em Direito pela Universidade Nove de Julho – Uninove, com ênfase em Justiça, Empresa e
Sustentabilidade, linha de Concentração escolhida: Justiça e o Paradigma da Eficiência.
335
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A Guerrilha do Araguaia foi um movimento de resistência ao regime militar integrado
que implantou a ditadura no Brasil a partir de um golpe, para evitar que João Goulart,
sucessor de Jânio Quadros, tomasse posse da Presidência da República (AUAD, 2004).
O grupo de guerrilheiros era constituído por 70 jovens (entre os quais existiam
estudantes, médicos, advogados, professores, bancários, camponeses regionais) membros do
Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que se organizaram a partir de 1967, com o objetivo de
fomentar uma revolução socialista. Os guerrilheiros instalaram-se às margens do Rio
Araguaia, atual divisa dos estados de Tocantins e Pará (CASAGRANDE, 2012).
Para combater as ações revolucionárias daquele grupo, o Exército brasileiro iniciou
uma forte repressão no período que compreendeu de 1972 a 1974, enviando cerca de 5 mil
soldados à região, cujo resultado da operação foi a morte e desaparecimento de todos os
guerrilheiros existentes naquela região (SEDH, 2007).
Já na fase final do regime militar e com a lenta retomada da democracia no país, foi
promulgada a Lei de Anistia - Lei 6.683/79 (por acordo entre civis e militares), que concedeu
anistia a todos aqueles que tivessem cometido crimes políticos, eleitorais, e os chamados
‘crimes conexos’, ocorridos no período compreendido entre setembro de 1961 e agosto de
1979.
Constam dados alegando que os corpos dos capturados foram desenterrados e
queimados ou atirados nos rios da região. Não foi possível estabelecer o número exato de
pessoas mortas, já que, ao serem capturados pelo Exército, os combatentes eram torturados e
executados sumariamente, sendo seus corpos queimados ou jogados nos rios da região, para
evitar que sua identidade ou seu paradeiro fossem possíveis (CASAGRANDE, 2012).
A Lei de Anistia surgiu para impedir que os vários crimes cometidos pelos militares
ocasionassem sua perseguição; ao mesmo tempo em que permitiu o retorno dos exilados, e
concedeu o perdão aos servidores afastados, na prática, serviu para garantir proteção aos
militares que praticaram tortura, assassinatos, abuso sexual e o desaparecimento forçado de
pessoas, entre elas os dissidentes políticos, incluídos os crimes praticados durante a Guerrilha
do Araguaia, evitando assim que os responsáveis fossem processados e condenados, a
qualquer tempo (SEDH, 2007).
Trinta anos após a aprovação da Lei de Anistia, reabriu-se a discussão sobre buscas
pelas vítimas e sobre a punição dos militares responsáveis, a partir de um forte movimento
dos familiares das vítimas da ditadura militar. Grupos influentes da sociedade civil passaram a
defender que a Lei de Anistia não deveria servir para garantir a impunidade de agentes da
repressão que praticaram tortura, assassinatos e outras atrocidades.
336
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
A Ordem dos Advogados do Brasil ingressou com uma Arguição de Descumprimento
a Preceito Fundamental (ADPF 153/2008) perante o Supremo Tribunal Federal, pedindo para
que a Lei de Anistia fosse interpretada no sentido de não favorecer “os crimes comuns
praticados por agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar” (CFOAB, 2010).
Passados dois anos, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a ADPF
153/2008, por 7 votos a 2, declarando que a Lei de Anistia não teria perdido a sua validade
jurídica, de modo que os crimes praticados por militares com motivação política durante a
ditadura foram anistiados, não podendo os seus autores serem processados ou condenados
criminalmente (MORAES, 2011).
Inconformados com a decisão, os familiares das vítimas subteram o caso à Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o [Caso Gomes Lund e Outro (“Guerrilha do
Araguaia”) v. Brasil] (MPF, 2010).
Em novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o
Brasil pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas pertencentes à Guerrilha do Araguaia, no
contexto da ditadura militar e considerou a Lei de Anistia brasileira é um obstáculo à
investigação, ao julgamento e à punição desses crimes.
O Tribunal Internacional reconheceu o Governo do Brasil como omisso, “face à falta
de apuração dos desaparecimentos forçados durante a Guerrilha do Araguaia (DEZEM,
2012)”.
Assim, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que
determinou:
“o pagamento de indenizações aos familiares das vítimas, consideradas como
desaparecidos políticos; realizar persecução criminal dos autores dos crimes
cometidos no Araguaia; localizar e identificar as vítimas ou seus restos mortais;
permitir o acesso aos arquivos históricos e a divulgação de suas informações, dentre
outras medidas” (BASSIOUNI, 2007).
A Constituição Federal de 1988 contempla a dignidade da pessoa humana, visando à
proteção aos direitos humanos.
Face aos tratados internacionais de proteção das vítimas dos Crimes contra a
Humanidade, e, estando passível de novas condenações internacionais, como manter em vigor
a Lei de Anistia?
Como resposta a essa questão, está a clara necessidade do Supremo Tribunal Federal
rever seu posicionamento e realizar o Controle de Convencionalidade para julgar a Lei de
Anistia.
337
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
O presente artigo tem como Objetivo Geral abordar a Teoria do Estado Constitucional
Cooperativo, face à obrigatoriedade das nações-membro ao cumprimento dos pactos
concernentes aos Direitos Humanos.
Já os objetivos específicos consistem em apresentar os conflitos existentes entre os
Acordos Internacionais firmados pelo Brasil e a Legislação interna vigente, que contraria
aqueles acordos, enquanto a Lei de Anistia persistir vigente.
Como metodologia adotada para sua elaboração, definiu-se pela pesquisa
bibliográfica, a partir do levantamento de teóricos especializados no assunto (JARDILINO,
ROSSI e SANTOS, 2000).
Quanto à técnica, optou-se pela descritiva exploratória, que consiste “na observação,
registro, análise e correlacionamento de objeto específico” (JARDILINO et al, op.cit).
1.1. A Guerrilha do Araguaia e a Lei de Anistia – Lei nº. 6.683/79
Poucos fatos foram divulgados sobre o desaparecimento forçado dos componentes do
grupo guerrilheiro do Araguaia. Segundo a versão oficial, as operações militares naquela
localidade teriam ocorrido dentro da normalidade que se espera de um combate antiguerrilha
(CASAGRANDE, 2010).
As Forças Armadas alegaram não possuir qualquer documento acerca do ocorrido na
região do Araguaia entre 1972 e 1974, afirmando ainda que todos os documentos atinentes à
repressão feita pelo regime militar à Guerrilha do Araguaia foram destruídos sob o respaldo
da legislação brasileira. Assim, nenhum dos crimes praticados por militares foi punido, nem
sequer investigado.
A Lei de Anistia – Lei nº. 6.683, datada de dezembro de 1979, estabelece em seu
Artigo 1º. que:
“Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre
02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos
ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos
suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações
vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e
Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos
com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer
natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação
política.
§ 2º – Excetuam-se dos benefícios da anistia, os que foram condenados pela
prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal” (CASA
338
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
CIVIL, 1979).
O período compreendido entre meados do Século XX até a atualidade apresenta entre
suas principais características, “a violência, na forma de guerras, insurgências, ações
repressivas permitidas pelos Estados e impunidade instituicionalizada”, levando á morte,
milhões de pessoas, especialmente civis, ao redor do mundo (BASSIOUNI, 2007).
Em seu texto original, esse perdão foi concedido a
“todos aqueles que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da
Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos
servidores do Poder Legislativo e do Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e
representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e
Complementares” (CASA CIVIL, 1979).
A Guerra Fria (tomada do poder por meio de Golpe Militar) submeteu a população
brasileira à pesada mão do militarismo, caracterizando-se pela prática de tortura e sumiço de
pessoas, além de graves violações (periódicas), ensejando a manutenção do controle do país
tomado à força, através da repressão de manifestações populares, da suspensão dos direitos
dos cidadãos e da liberdade de expressão, de uma forma geral: nada podia ser dito, escrito ou
divulgado sem que fosse autorizado pelo comando militar (AUAD, 2004).
Espelhando-se em outros países, quando retomada a democracia nacional, a Lei de
Anistia teve o caráter de licença legal para que os crimes classificados como leso-humanidade
não fossem investigados, e com isso, os responsáveis pelos mesmos não fossem julgados ou
punidos (MORAES, 2011).
Em toda a América Latina, foram promulgadas leis de anistia, face ao temor dos
militares quanto às possíveis punições a que estariam submetidos, a partir da reabertura
democrática. Em outras palavras, “A Lei de Anistia resultou de um pacto “imposto” pelo
Governo militar da época”.
À Justiça Transicional cabe o “esforço para construção da paz sustentável após um
período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos
(TEITEL, 2005)”.
Essas ações compreendem o enfrentamento claro e transparente das violências
ocorridas no passado, evitando “sua reincidência a qualquer tempo, visando ainda promover a
paz e reconciliar e proteger os direitos humanos” (BASSIOUNI, 2007).
Já Angélica Retberg define que “a transição operada por cima” reflete que “os acordos
de justiça transicional são realizados entre quatro paredes, para com isso, serem ocultados os
meios e motivos pelos quais foram feitos em tempos de repressão (PETRUS, 2010).
339
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Sobre a responsabilização pelos crimes contra os Direitos Humanos ocorridos no
período ditatorial, a Carta de São Paulo considera que:
"a efetiva transição para a democracia republicana somente estará concluída quando
houver a promoção da verdade e a responsabilização dos autores dos graves crimes
cometidos durante a ditadura militar", cabendo ao Ministério Público desempenhar o
papel conciliador para reconciliar as famílias das vítimas com o Estado brasileiro,
investigando, punindo e dando respostas às dúvidas que persistem até o presente,
sobre pessoas e seus restos mortais (REVISTA ÂMBITO JURÍDICO, 2012).
Por fim, a Lei de Anistia concedeu impunidade aos Crimes contra a Humanidade
praticados contra civis brasileiros, garantindo a herança jurídica do autoritarismo à recém
retomada democracia (MORAES, 2011).
1.2. Breve História dos Regimes de Governo no Brasil
Desde o seu descobrimento, o Brasil foi submetido às leis estabelecidas pela Coroa
Portuguesa. Entre as várias fases e regimes praticados ao longo da história da humanidade, foi
na Grécia que surgiu o conceito e das práticas relativas à Democracia.
Entre a Idade Média e até à Idade Moderna, o regime democrático ficou esquecido,
sendo retomado a partir do Século XVIII, através do pensamento e movimentos de filósofose
suas teorias clássicas sobre democracia, que era o governo dos representantes do povo, para
atendimento de suas necessidades e anseios (AUAD, 2004).
As práticas democráticas foram retomadas a partir do Século XVIII, quando
ocorreram movimentos “de luta pela derrubada do poder absolutista dos monarcas, bem como
a conquista de liberdades individuais em face do Estado, abrindo caminho para a ascensão
política de pessoas civis, não descendentes de famílias nobres, mas detentoras de poder
econômico, fruto do comércio”.
A Proclamação da Independência do Brasil foi o 1º. processo constitucional nacional,
através do decreto assinado pelo príncipe D.Pedro I, mediante a convocação da 1ª.
Assembléia Geral Constituinte e Legislativa da História Nacional (AUAD, 2004).
Em julho de 1934, foi promulgada a 2ª. Constituição do Brasil, instituindo o voto
secreto, os direitos trabalhistas e o nacionalismo econômico, fase que foi denominada como
Era Vargas, subdividida em três fases: o Governo Provisório (1930 a 1934); o Governo
Institucional (1934 a 1937): eleição do Presidente da República pelo voto secreto e indireto,
impedindo o manejo eleitoral pelo coronelismo; e o Governo Ditatorial (1937 a 1945):
340
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
combate ao Comunismo, fechamento do Congresso Nacional; promulgação da 3ª.
Constituição Federal, dando início ao Estado Novo, com a extinção dos partidos políticos
(AUAD, 2004).
A 4ª. Constituição Federal foi considerada Liberal, vigindo de 1946 a 1964, garantia
ao cidadão, o direito à liberdade de pensamento, crença religiosa, expressão, locomoção e
associação de classe, enquanto era aprovado no cenário internacional, um documento para
defesa dos direitos de todos os cidadãos, denominado Declaração Universal dos Direitos
Humanos (COTRIM, 2009).
Em 1955, findo o mandato Vargas, realizaram-se eleições presidenciais, elegendo
Juscelino Kubitschek para presidente, e João Goulart como vice-presidente. De 1946 a 1950,
através da Guerra Fria e o Anticomunismo, João Goulart foi deposto da presidência por um
Golpe Militar, quando o Comando das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica),
tomou o Estado Brasileiro, dando lugar à instalação da Ditadura no Brasil, pondo fim ao
período democrático, que foi substituído pelo Autoritarismo.
Foi um período marcado pela inexistência de diálogo com os vários setores da
sociedade, momento em que o Brasil passou a ser governado com base nos Atos Institucionais
– AI’s, que se sobrepunham à Constituição Federal, impondo a censura à livre expressão e aos
meios de comunicação existentes: rádio, televisão, jornais e revistas.
Foram 5 os presidentes militares que governaram o Brasil ao longo de mais de 20 anos
(1964 – 1985), até que a democracia voltasse a legislar no país, ao longo dos quais, o Brasil
foi governado com base em Atos Institucionais – AI’s, que pesaram severamente sobre a
população, conforme seguem (COTRIM, 2009):
 AI-1 (abril de 1964): o Executivo cassou mandatos de parlamentares, suspendeu
direitos políticos de todos os cidadãos, modificou a Constituição e decretou a situação
de estado de sítio sem necessitar da aprovação do Congresso; período de forte
repressão interna contra sindicatos e contra a União Nacional dos Estudantes (UNE), e
a cassação de direitos políticos, inclusive dos ex-presidentes civis, Juscelino
Kubistchek, Jânio Quadros e João Goulart;
 AI-2: o Governo adquiriu poderes para cassar mandatos e direitos políticos,
permitindo a existência de apenas 2 partidos políticos: a Aliança Renovadora Nacional
(Arena), para apoiar o Governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), para
oposição, criação da Lei de Segurança Nacional, para enquadrar opositores do governo
autoritário (COTRIM, 2009);
341
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
 AI–3: fim das eleições diretas para governadores e prefeitos: enquanto os primeiros
passaram a ser indicados pelo presidente, sob aprovação da Assembléia Legislativa, os
prefeitos seriam indicados pelos governadores;
AI-4 (1967): promulgada a nova Constituição para fortalecer o presidente da
República e enfraquecer o Poder Legislativo e Judiciário. Foi indicado pelo Alto
Comando Militar (para a presidência), o Marechal Artur da Costa e Silva; de 19671969, ocorreram inúmeras foram as manifestações públicas contra a ditadura:
estudantes nas ruas, greves de operários, políticos da oposição discursavam contra a
violência, padres discursando contra a fome do povo e contra as práticas de tortura
contra pessoas contrárias àquele regime;
 AI-5 (1968): conhecido como o período dos ‘anos de chumbo’, tendo à frente, o Gal.
Emílio Garrastazu Médici, vigorando de 1969-1974; o AI-5 foi o mais terrível
instrumento do regime militar: condeceu poderes irrestritos ao presidente da nação,
fechou o Congresso Nacional por prazo indeterminado, cassou deputados estaduais e
federais, vereadores e prefeitos, afastou os ministros do Supremo Tribunal Federal.
Foi um período marcado pela violência repressiva contra as oposições e o poder
ditatorial foram ainda piores do que os períodos anteriores, já que todos os direitos
básicos dos cidadãos foram suspensos, “pesando nas escolas, nas fábricas, nos teatros,
na imprensa” a “mão de ferro” do autoritarismo.
Na atualidade, momento em que o Brasil cresce economicamente aos olhos das
grandes potências mundias, exceto pelo destacado “atraso em sua cultura jurídica
internacional” (GOMES, 2010).
Ao manter impunes aqueles que torturaram e mataram milhares de brasileiros,
perpetua-se o “encarceramento da história do Brasil nos porões mais sombrios do
esquecimento (PETRUS, 2010).
2. Teoria do Estado Constitucional Cooperativo
O Estado de Constitucional Cooperativo deve primar pela prática de políticas de paz
para com os demais países, a partir do Direito Internacional (HABERLE, 2007).
Nas palavras do autor, ”é aquele que encontra sua identidade também no Direito
Internacional, noentrelaçamento das relações internacionais e supranacionais, na percepção da
342
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
cooperação e responsabilidade internacional, assim como no campo da solidariedade”.
Assim, cabe ao Estado, subordinar-se às normas jurídicas internas, tanto quanto às
externas, uma vez que "não são apenas os indivíduos (ou os particulares) que vivem
subordinados a normas jurídicas. Igualmente o Estado e as demais instituições que exercem
autoridade pública devem obediência ao Direito (incluindo ao Direito que criam)" (SILVA,
2012, apud MIRANDA, 2002).
O Estado Constitucional constitui-se pelo conjunto dos princípios constitucionais
materiais e formais, a partir dos Direitos Fundamentais, do Estado Social de Direito, da
Divisão de Poderes e da Independência dos Tribunais.
Para Mendes (2012, apud HABERLE, 2003), “o Estado constitucional cooperativo
estaria inserido em uma comunidade universal de Estados constitucionais, ou seja, em um
contexto em que os Estados constitucionais não existem mais para si mesmos, mas, sim, como
referências para os outros Estados constitucionais membros de uma comunidade”.
Corresponde o Estado Constitucional Cooperativo ao desenvolvimento e cumprimento
de um Direito Internacional, visando a cooperação entre os Estados-membro (HABERLE,
2007).
Como pressupostos para suas práticas, estão:
“as necessidades de cooperação no plano econômico, social e humanitário,
assimcomo – falando antropologicamente – da consciência de cooperação
(internacionalização da sociedade, da refe de dados, opinião pública mundial, das
demonstrações com temas de política externa, legitimação externa) (HABERLE,
2007).
A iniciativa para criação da cooperação entre os países, surgiu do trabalho das Nações
Unidas, visando promover a paz entre os povos, através de “codificações, declarações e
resoluções para os presuspostos formais”, que por sua vez, são representados pela Convenção
de Viena sobre os Tratados de 1969, e a Convenção diplomática de Viena em 1961
(HABERLE, 2007).
Em seu texto original, a Carta das Nações Unidas estabelece que “as crenças nos
direitos fundamentais da pessoa, na dignidade e valor da personalidade humana, na igualdade
de tratamento entre homeme e mulher, assim como entre todas as nações, ainda que grande ou
pequena, devem ser novamente fortalecidas” (HABERLE, 2007)
Os efeitos da referida Carta agem diretamente sobre a questão da proteção dos direitos
humanos, independentemente da nacionalidade da pessoa humana. Com isso, ao aderir aos
Tratados Internacionais, os países signatários obrigam-se a cumprir as leis por eles definidos,
que passam a ter o caráter supralegal relativamente à Constituição vigente em casa país, ou de
343
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
outra forma, “tornam-se regidos pelos direitos fundamentais através de uma instância
supranacional”.
São claras as características do Estado Constitucional ocidental: permissão para
modificações de extensão variável; é juridicamente limitado, face aos acordos internacionais e
a questão da instância supranacional; demanda abertura política (interna e externa); deve
orientar-se por uma democracia pluralista; manter o respeito aos direitos fundamentais;
respeitar a divisão de Poderes; primar pela independência de seu Poder Judiciário (SILVA,
2012, apud HABERLE, 1998).
Mendes (2012) defende que, no entendimento do Supremo Tribunal Federal, “os
diplomas normativos de cartáter internacional adentram o ordenamento jurídico interno no
patamar da legislação ordinária”, ou de outra forma, têm o caráter de “atributo de
supralegalidade”.
Reflete sobre o Estado Cooperativo, as questões referentes à soberania compartilhada,
que compreende,
“como em qualquer processo de descentralização, com grande raio de poder nos
terrenos político, legal, administrativo e financeiro, mas sua força política vai além
disso.
A peculiaridade da federação reside exatamente na existência de direitos originários
pertencentes aos pactuantes subnacionais – sejam estados, províncias, cantões ou até
municípios, como no Brasil. Tais direitos não podem ser arbitrariamente retirados
pela União e são, além do mais, garantidos por uma Constituição escrita, o principal
contrato fiador do pacto político-territorial” (ABRUCIO, 2005).
O fim do estado totalitário consiste nos direitos humanos reconhecidos e protegidos
pela Constituição de uma nação, servindo como instrumento limitador contra arbitrariedades
sobre o indivíduo.
Outro conceito fundamental a referir, aborda o “Bloco de Constitucionalidade, que é a
somatória daquilo que se adiciona à Constituição escrita, emfunção dos valores e princípios
nela consagrados” (LAFER, 1988).
3. O julgamento da CIDH
A CIDH entendeu que:
“as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de
graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção
Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um
obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e
punição dos responsáveis, e tampouco podem “ter igual ou semelhante impacto a
respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Convenção Americana ocorridos no Brasil” (MORAES, 2011).
Mediante esse entendimento, aquela Corte Interameticana determinou ainda que o
Brasil deverá “conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos
fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades
penais e aplicar efetivamente as sanções e conseqüências que a lei preveja” (CIDH, 2009).
Dentro deste contexto, há que se arrazoar sobre a convivência dos posicionamentos
antagônicos de duas cortes: a CIDH que condenou o Brasil pelo desaparecimento forçado de
62 pessoas pertencentes à Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar e pela sua
Lei de Anistia representar um obstáculo à investigação e punição dos culpados, e o Supremo
Tribunal Federal que decidiu nao rever a Lei de Anistia, por considerar essa constitucional e
ter marcado a transição do regime ditatorial ao democrático, não cabendo revisão, no tempo
presente, de fatos que fizeram sentido na época em que ocorreram.
Sob a ótica da CDIH, o Brasil manteve-se ao longo do tempo isolado dos demais
países latino-americanos, devido à ausência de um posicionamento claro sobre a revisão
necessária ao teor da referida Lei.
“Dentro de um determinado território, contudo, o Estado é o principal sujeito,
responsável pela organização daqueles inseridos dentro de seus limites territoriais (PETRUS,
2010)”.
Face à retomada das questões relativas aos Crimes contra a Humanidade, aos pactos
internacionais, e à Lei de Anistia ainda vigente no Brasil, em março de 2009 a Convenção
Americana, de acordo com seus artigos 51 e 61 “submeteu à Corte uma demanda contra a
República Federativa do Brasil, que se originou na petição apresentada em agosto de 1995,
pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pela “Human Rights
Watch/Americas”, em nome de pessoas desaparecidas no contexto da Guerrilha do Araguaia”
(CF-OAB, 2012).
Decidida a “submeter o caso à jurisdição da Corte, a Comissão também enfatizou o
valor histórico do caso e a possibilidade de o Tribunal afirmar a incompatibilidade da Lei de
Anistia e das leis sobre sigilo de documentos com a Convenção Americana” (PETRUS,
2010).
Entre os países latino-americanos, o Brasil foi e ainda é atualmente, o único país sulamericano que deixou de investigar, julgar e punir aos responsáveis pelos crimes comuns,
considerados como lesa-humanidade, ocorridos durante a ditadura militar.
Esta postura caracteriza-se como uma violação das obrigações assumidas pelo Estado
345
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
perante a Convenção Americana, e tratados de direitos humanos frente à Organização dos
Estados Americanos, e aos objetivos centrais da Organização das Nações Unidas, por um
“sistema internacional de defesa aos direitos humanos”, o Brasil feriu os princípios da Justiça
de Transição (CF-OAB, 2012).
Aos deveres da Justiça de Transição, estão vinculadas as políticas que visem reparar às
vítimas e familiares dos regimes, devendo:
“revelar os crimes passados, reformar ou extinguir instituições ditatoriais, com a
finalidade de promover a reconciliação dentro do Estado”. Por sua vez, “estão
vinculados a essas políticas, outros quatro princípios: reforma das instituições para a
democracia, direito à memória e à verdade, direito à reparação e o direito ao igual
tratamento legal e à justiça (MPF, 2010).
Após a proposição de demanda apresentada em 7 de agosto de 1995, pelos familiares
das vitimas e grupos defensores de direitos humanos, ao Sistema Interamericano de Direitos
Humanos, o Brasil foi condenado no dia 24 de novembro de 2010, pela Corte Interamericana
de Direitos Humanos (CIDH, 2009).
Em sentença histórica, a Corte Internacional (CIDH) da Organização dos Estados
Americanos (OEA) responsabilizou internacionalmente o Brasil pelo desaparecimento de 70
pessoas, entre os anos de 1972 e 1974, na região conhecida como Araguaia (IBCC, 2010).
Trata-se da quarta condenação internacional do país na Corte Interamericana e a
primeira condenacao envolvendo crimes da ditadura militar e analise da Lei de Anistia.
Contrariando o Pacto de São José da Costa Rica, o Brasil violou o que segue definido
para todos os seus signatários, e com isso, foi condenado pela Convenção Americana de
Direitos Humanos nos aspectos mencionados:
“1º.: desaparecimento forçado e os direitos violados das 62 pessoas desaparecidas;
2º.: aplicação da Lei de Anistia como empecilho à investigação, julgamento e
punição dos crimes; 3º.: ineficácia das ações judiciais não penais e, 4º.: falta de
acesso à informação sobre o ocorrido com as vítimas desaparecidas e executada –
violação do direito à liberdade de pensamento e expressão” (CASA CIVIL, Decreto
nº. 4.463, 2002).
Para estabelecer a condenação do Brasil, a CIDH baseou-se ainda na Convenção de
Viena, a Corte Interamericana analisou vários casos ocorridos na América Latina e em outros
lugares ao redor do mundo, para estabelecer a condenação do Brasil (CONVENÇÃO DE
VIENA, 1969).
No que se refere aos Tratados Internacionais a que estão submetidos os países
membros da do Segundo a Convenção de Viena, os tratados internacionais determina que:
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Artigo 53: Tratados incompatíveis com uma norma imperativa de direito
internacional geral (jus cogens) é nulo todo o tratado que, no momento da sua
conclusão, seja incompatível com uma norma imperativa de direito internacional
geral. Para os efeitos da presente Convenção, uma norma imperativa de direito
internacional geral é uma norma aceite e reconhecida pela comunidade internacional
dos Estados nos eu todo como norma cuja derrogação não é permitida e que só pode
ser modificada por uma nova norma de direito internacional geral com a mesma
natureza (CONVENÇÃO DE VIENA, 1969).
Novo parâmetro pode ser estabelecido, a partir da decisão unânime do Supremo
Tribunal Federal, que definiu, por unanimidade, ser contrário à prisão do Depositário Infiel.
Segundo o Pacto de San José da Costa Rica, sentenciar o devedor pecuniário à prisão
fere os princípios dos Direitos Humanos, ocasionando sua violação.
No caso do Brasil, como signatário do PSJC e, definindo contra a prisão do devedor, o
Estado submeteu-se à tese da supralegalidade, confirmando a intitucionalização das normas
internacionais (BARROS, 2007).
4. O julgamento do STF
Ao assumir o poder em março de 1979, o Gal. Figueiredo assumiu a missão de
conduzir o projeto de reabertura política. Em agosto do mesmo ano foi promulgada a Lei
nº. 6.683 de 1979, também conhecida como Lei de Anistia (CASA CIVIL, 1979).
Considerada como lei-medida, serviu para findar o regime militar, permitindo a
retomada lenta do democrático, perdoando os crimes politicos ou conexos praticados durante
o regime dictatorial no Brasil entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Trinta anos depois, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil propôs
uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153, 2008), ao entender
incosntitucional a interpretação de que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos
ou conexos se estende, também, aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão
contra opositores políticos durante o regime militar (ADPF 153, 2008).
Intentava-se, pois, que o Supremo Tribunal Federal declarasse a não recepção, pela
Carta Magna, do parágrafo primeiro do artigo primeiro da Lei de Anistia, excluindo da
acolhida legal os crimes comuns praticados pelos militares, como, tortura, desaparecimento
forçado, abuso de autoridade, estupro e atentado violento ao pudor.
No decorrer de 2009, face aos avanços sociais ocorridos ao longo de 30 anos, e aos
pactos internacionais firmados entre os países pela defesa dos Direitos Humanos, reabriu-se a
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
discussão sobre a referida Lei, com base na “Arguição de Descumprimento a Preceito
Fundamental (ADPF 153, 2008).
Tal arguição foi impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil junto ao Supremo
Tribunal Federal, requerendo que a Lei de Anistia tivesse modificada a sua interpretação, “no
que se refere ao não favorecimento dos crimes comns praticados por agentes da repressão
contra opositores políticos durante o regime militar (CF– OAB, 2010).
Essa condenação foi a primeira contra o Brasil, pelos crimes cometidos durante a
ditadura militar, os quais não podem permanecer impunes.
Tal processo atribuiu ao Governo Brasileiro tanto o desaparecimento forçado das
vítimas, como a situação de impunidade, deflagrando a falta de transparência da nação
brasileira sendo que as decisões daquela corte devem ser acatadas, face ser o Brasil, signatário
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Assim,
a
CIDH
determinou
pela
investigação, denúncia e sanção daqueles que ocasionaram os desaparecimentos.
Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal prolatou decisão pela improcedência da
ação, apresentando 7 votos pela improcedência contra 2 pela revisão da lei.
Por sua vez, o Ministro Relator Eros Grau referiu Nilo Batista, para mencionar a
importância da obediência a que o Brasil deva submeter-se, quanto à internalização de normas
internacionais, de modo que passem a vigir dentro do ordenamento jurídico nacional.
Ainda para o relator do julgamento da ADPF20 153/DF, Ministro Eros Grau (CF –
OAB, 2010):
“a lei de anistia deu-se por solução consensual das partes (em plena época da
ditadura), quenão era aplicável a jurisprudência internacional (não seria anistia
‘unilateral’, mas recíproca, sem questionar quem foi que se autoconcedeu anistia) e
que o cidadão tinha direito á verdade (mas não se sobrepor à relutância de Comissão
de ‘Verdade’, que não tinha qualquer finalidade de persecução penal) (PETRUS,
2010)
Todas as violações dos direitos humanos praticadas durante o Governo Militar ainda
refletem o sentimento de milhares de famílias brasileiras, cujos entes foram dizimados, de três
formas:
“impede, em primeiro lugar, que as violações aos direitos humanos sejam
investigadas; sabota a compreensão histórica crítica que nos habilitaria a promover
transformações sociais significativas no presente; e, por fim, opera a sensação de
queo tempo passou e nada mudou, convencendo-nos de que certas práticas e
instituições – sobretudo as imcompatíveis com a ideia de Estado Democrático de
Direito – não se modificaram na transição de regimes (GOMES, 2010)”.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Na tentativa de que o fim da ditadura representasse página virada na história nacional,
em verdade, deu-se a “simplificação feita por vários setores conservadores, impondo certas
práticas autoritárias ao regime democrático” (PETRUS, 2010).
5.
Entre O STF e a CIDH
Várias são as controvérsias surgidas no julgamento da CIDH e do STF relativas aos
Direitos Humanos e suas vítimas.
Para a Corte IDH, “a impunidade é a falta em seu conjunto de investigação,
persecução, captura, julgamento e condenação dos responsáveis das violaçlões dos direitos
protegidos pela Convenção Americana [...]” (BALDI, 2010).
Em sua 1ª. decisão (Novembro/2010), a Corte Interamericana de Direitos Humanos
atribuiu ao Estado brasileiro o desaparecimento forçado das 62 pessoas que integraram a
Guerrilha do Araguaia, no decorrer da ditadura que assolou o país.
Sob a análise da CIDH, exista total incompatibilidade da Lei de Anistia vigente no
Brasil com o que determina a Convenção Americana de Direitos Humanos. Diante disso, a
CIDH condenou o Estado à revisão da referida lei, visando à reconciliação de parentes das
vítimas com a nação brasileira (CIDH, 2010).
Segundo Baldi (2010), “a Corte entendeu que os atos de caráter contínuo ou
permanente perduram durante todo o tempo em que o fato continua, mantendo-se sua falta de
conformidade com o Direito Internacional (§ 17)”.
Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal entendeu ser improcedende a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153, 2008), de proposição do Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, sendo que, sob essa ótica, definiu pela não
revisão da referida Lei de Anistia, posto considerá-la constitucional frente à Constituição
vigente.
O STF não observou o Controle de Convencionalidade, mesmo sendo o principal
órgão da cúpula do judiciário e guardião da Constituição Federal.
Diante da postura adotada pelo STF, coube à CIDH realizar tal Controle, face “às
obrigações internacionais do Brasil contidas na Convenção Americana (§ 48). E isto não era
invasão de competência do STF” (BALDI, 2010).
Nas palavras de Barroso (2001), o Direito Fundamental não pode permitir que o
Estado retroceda nas questões de amparo do cidadão, aspecto previsto pela jurisprudência
349
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
européia, denominado como Princípio da Vedação do Retrocesso.
“A vedação do retrocesso torna-se, assim, uma forte ferramenta frente a uma possível
invasão por parte do legislador em conquistas já consolidadas, e mais uma maneira de se
afirmar que o Estado deve fazer cada vez mais pelo cidadão, nunca menos” (BARROSO,
2001).
Ao redesenhar o ordenamento jurídico brasileiro, sobre a legalidade do depositário
infiel, o STF definiu que “os tratados valem mais do que a legislação infraconstitucional, mas
menos do que a Constituição Federal. No caso da prisão civil, o Pacto de São José da Costa
Rica a permite só para devedor de pensão alimentícia. A Constituição brasileira permite
também para o depositário infiel” (PIOVESAN, 1997).
Já o Decreto 4.463/2002, que promulgou o reconhecimento da competência
obrigatória da Corte:
Art. 1o. É reconhecida como obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado,
a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos
relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de São José), de 22 de novembro de 1969, de acordo com art. 62 da
citada Convenção, sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a 10
dezembro de 1998. (CASA CIVIL, 1979, Decreto 4.463/2002).
Nesse sentido, o Estado brasileiro alegou que não poderia ser responsabilizado pela
Corte por fatos anteriores ao reconhecimento de sua jurisdição contenciosa, com base no
princípio da anterioridade. Entretanto, a Corte refutou tal argumentação, afirmando que:
“ (...) em sua jurisprudência constante, este Tribunal estabeleceu que os atos de
caráter contínuo ou permanente perduram durante todo o tempo em que o fato
continua, mantendo-se sua falta de conformidade com a obrigação internacional. Em
concordância com o exposto, a Corte recorda que o caráter contínuo ou permanente
do desaparecimento forçado de pessoas foi reconhecido de maneira reiterada pelo
Direito Internacional dos Direitos Humanos” (GONZALES, 2012).
Pretendia-se que o Supremo Tribunal Federal declarasse a não recepção, pela Carta
Magna, do Parágrafo 1º. do Artigo 1º. da Lei de Anistia, excluindo da acolhida legal os crimes
comuns, praticados pelos militares, como, tortura, desaparecimento forçado, abuso de
autoridade, estupro e atentado violento ao pudor (PLANALTO, 2002).
Entretanto, “contrariando a condenação da CIDH, pela ausência de investigações e de
punições, e ainda, pela defesa dos direitos dos cidadãos brasileiros, o Supremo Tribunal
Federal, prolatou decisão e julgou improcedente a ação constitucional, por 7 votos pela
improcedência contra 2 pela revisão da lei (CASAGRANDE, 2012)”.
O Ministro relator espancou a argumentação de que a interpretação do §1º. da Lei de
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Anistia é tecnicamente obscura, afirmando que todo texto é obscuro até que seja dada a ele
uma interpretação.
Já no que tange ao principio da isonomia em matéria de segurança, “arrazoou não
haver ofensa, defendendo a existência da desigualdade entre a prática de crimes políticos e
crimes conexos com eles, de sorte que a lei pode tratar desigualmente os desiguais e, pois,
anistiá-los, ou não, desigualmente” (REZEK, 2007).
Sobre o direito de receber informações de interesse particular ou coletivo dos órgãos
públicos, considerou igualmente não existirem ofensas, já que “caracteriza a anistia a sua
objetividade, referida a um ou mais delitos e não a determinadas pessoas. Ademais, apontou
que existem leis em trâmite a respeito da abertura de arquivos secretos (CASAGRANDE,
2012)”.
Sobre a alegação de que a dignidade da pessoa humana e do povo brasileiro não poder
ser negociada, não considerou a questão, por entender ser de argumentação exclusivamente
política, não jurídica.
No que diz respeito à obediência de normas internacionais pelo Brasil, o relator citou
texto de Nilo Batista, o qual menciona a necessidade de se internalizar normas para que essas
possam valer no ordenamento jurídico brasileiro e uma menção à condenação do Brasil pela
CIDH que estaria por vir alguns meses depois. Assim:
“... em primeiro lugar, instrumentos normativos constitucionais só adquirem força
vinculante após o processo constitucional de internalização, e o Brasil não
subscreveu a Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos
Crimes contra a Humanidade de 1968 nem qualquer outro documento que contivesse
cláusula similar; em segundo lugar, ‟o costume internacional não pode ser fonte de
direito penal‟ sem violação de uma função básica do princípio da legalidade; e, em
terceiro lugar, conjurando o fantasma da condenação pela Corte Interamericana, a
exemplo do precedente Arellano x Chile, a autoridade de seus arestos foi por nós
reconhecida plenamente em 2002 (Dec. n. 4.463, de 8 de novembro de 2002) porém
apenas para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998 (CASAGRANDE,2012) ”.
Enquanto a Lei de Anistia é lei-medida, cosiderou-se fazer sentido quando foi editada,
considerou o STF que não lhe caberia revisar a lei, uma vez que se trata de atribuição
exclusiva do Poder Legislativo, se assim o desejasse.
Persistem ainda, sob a ótica da Justiça de Transição, fatores relevantes como o Direito
à Memória e à Verdade, conforme Piovesan (2009):
O direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da história e da
memória coletiva. Traduz o anseio civilizatório do conhecimento de graves fatos
históricos atentatórios aos direitos humanos. Tal resgate histórico serve a um duplo
propórsit: assegurar o direito à memória das vítiimas e confiar às gerações futuras a
responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas.
351
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Vincula-se ainda ao Direito à Memória e à Verdade, a “consolidação da
responsabilidade, a responsablização pública, cabendo ao Estado, praticar políticas
harmoniosas com o presente, preservando o futuro, mas reparando erros do passado da nação,
já que “o direito à reparação é consagrado no direito internacional, cabendo às reparações
simbólicas, a reconstrução da memória coletiva e o restabelecimento da dignidade humana”.
Ainda Piovesan (2009) defende que:
O direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da história e da
memória coletiva. Traduz o anseio civilizatório do conhecimento de graves fatos
históricos atentatórios aos direitos humanos. Tal resgate histórico serve a um duplo
propósito: assegurar o direito à memória das vítimas e confiar às gerações futuras a
responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas.
A ocorrência de pactos de silêncio enseja ao esquecimento dos fatos ocorridos, que
por sua vez, constituem-se em estratégia dos regimes autoritários, manipulando pessoas e
situações em sua busca por benefícios políticos, no que se refere à omissão dos atos
praticados contra a pessoa humana (BARBOSA e VANNUCHI, 2009).
6. CONCLUSÃO
O Brasil aderiu em 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poolíticos (art.
11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica
(art. 7º., 7), entre outros tratados internacionais firmados entre os países-membro de
organismos iberoamericanos pela defesa dos direitos humanos (MENDES, 2012).
Ao aderir aos referidos tratados, toda nação abdica do exercício da soberania plena,
para então, passar a exercer a soberania compartilhada, submetendo-se aos diplomas
estabelecidos de comum acordo pelos outros membros existentes, visando salvaguardar a
dignidade e a vida humana.
No que concerne à legislação que versa sobre os Crimes contra a Humanidade,
especialmente aqueles cometidos ao longo de regimes militarese práticas opressivas, aqueles
considerados no Brasil, como ‘conexos’, como tortura, subjugo da moral e da dignidade da
pessoa humana, abusos físicos, sexuais e de outras ordens, morte e desaparecimento de
pessoas, não podem ser classificados como crimes políticos e/ou ideológicos.
Face ao consentimento legal da destruição dos documentos referentes à ditadura que
assolou o país durante os governos militares, e à falta de investigação, julgamento e punição
352
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
dos responsáveis e ainda, pela falta de respostas aos parentes e familiares das vítimas desse
regime, o Brasil, cuja economia e desenvolvimento comercial e financeiro permitem excelente
posicionamento no ranking da 6ª. economia global, contrariou até mesmo suas decisões
anteriores, a exemplo daquela referente ao Depositário Infiel.
Enquanto o Supremo Tribunal Federal definiu pela constitucionalidade da Lei de
Anistia, absteve-se do exercício do Controle de Convencionalidade, estabelecendo que a
revisão da referida Lei restringe-se ao Poder Legislativo.
Vale ressaltar que a Lei de Anistia não estabeleceu direitos equalitários para todos os
envolvidos, na medida em que excluiu os direitos das vítimas e de seus familiares.
Além disso, o entendimento do STF sobre a constitucionalidade da Lei de Anistia
violou aos Princípios de Legalidade, da Anterrioridade e da Irretroatividade penais, uma vez
que o desaparecimento forçado é um delito de caráter contínuo ou permanente, já que seus
efeitos não cessam enquanto as vítimas não forem localizadas.
Por sua vez, da Comissão Internacional dos Direitos Humanos, ao condenar o Brasil à
solução das questões relativas aos crimes leso-humanidade ocorridos no período em que
reinou a ditadura no país, entendeu que não se tratava de revisitação à posição do STF, mas
simplesmente, analisando a Lei de Anistia, confrontou-a com o Pacto da Costa Rica,
verificando sua incompatibilidade com a proteção aos Direitos Humanos.
Assim, sentenciou o Estado a rever sua posição, quer pelo Poder Judiciário ou pelo
Legislativo.
Em que pese que a ocorrência dos Crimes de Leso-Humanidade deu-se antes da
assinatura do pacto, segundo A CIDH e Tratados Internacionais dos Direitos Humanos, são
crimes classificados de continuação permanente, na medida em que não foram investigados
nem solucionados, permanecendo todas as vítimas desaparecidas.
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357
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
ENTRE COMPROMISSOS CONSTITUCIONAIS E VAZIOS NORMATIVOS: UMA
ANÁLISE DA INCORPORAÇÃO DA CONVENÇÃO N.° 169 DA OIT NO DIREITO
BRASILEIRO E A PROTEÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS E TRIBAIS
BETWEEN CONSTITUTIONAL COMMITMENTS AND NORMATIVE EMPTINESS: AN
ANALYSIS OF THE INCORPORATION OF ILO CONVENTION N. 169 IN BRAZILIAN
LAW AND THE PROTECTION OF INDIGENOUS AND TRIBAL PEOPLES
Tatyana Scheila Friedrich1
Rafael Soares Leite2
RESUMO
Esse artigo tem como proposta investigar em que medida a Convenção n.° 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) pode ser utilizada como instrumento normativo
para articular as demandas dos povos indígenas e das comunidades remanescentes de
quilombos no direito brasileiro, em razão da distância existente entre a promessa
constitucional de respeito às diferenças culturais e a sua baixa implementação normativa. Para
essa finalidade, impõe-se a análise do novo modelo constitucional referente às relações entre
o Estado brasileiro e os povos indígenas bem como a importância da Convenção n. 169 e da
estrutura e funcionamento da própria OIT com vistas à proteção desses grupos. Examina-se,
por fim, se políticas públicas têm considerado a Convenção, e se ela tem sido aplicada pelo
Poder Judiciário, utilizando, para tal propósito, de estudo de casos judiciais.
PALAVRAS-CHAVE: Convenção n. 169; Organização Internacional do Trabalho (OIT);
multiculturalismo; brechas de implementação.
ABSTRACT
This article proposes to investigate in what measure International Labour Organisation (ILO)
Convention n. 169 can be applied as a normative instrument to articulate indigenous peoples
and African descendants communities demands in Brazilian law, considering the distance
between constitutional commitments in respect of cultural distinctions and its soft normative
implementation. For such purposes, it analyzes the new constitutional model of relations
between the Brazilian state and indigenous peoples as well as the importance of Convention
169 and the structure and workings of the ILO for their protection. In the final part, it
examines if public policies have considered the terms of the Convention, and if it has been put
into practice by Tribunals, using, for such purpose, case law.
KEYWORDS: Convention n. 169;
multiculturalism; implementation gaps.
International
Labour
Organization
(ILO);
1
Doutora, professora de Direito Internacional da UFPR. E-mail: [email protected]
Mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
[email protected].
2
E-mail:
358
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
1 Introdução
Para além da restauração das instituições democráticas e da centralidade dos direitos
fundamentais, a Constituição Federal de 1988 inovou ao estabelecer direitos antes ignorados
para dois tipos de sociedades tradicionais componentes da nação brasileira: os povos
indígenas e as comunidades remanescentes de quilombos. Para os povos indígenas, pela
primeira vez, foi estabelecido no texto constitucional o respeito à sua cultura e aos seus
costumes, bem como uma pluralidade de prerrogativas sobre as terras que ocupam
tradicionalmente. Para as comunidades remanescentes de quilombos, a Constituição passou a
prever expressamente – ainda que em um dispositivo situado no Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT) – a propriedade definitiva das terras ocupadas.
Essa promessa constitucional, entretanto, não foi seguida de uma reformulação
normativa sistemática para a efetiva implementação dos direitos enunciados. Embora parte
dele não tenha sido recepcionada pela Constituição, os direitos dos índios e de suas
comunidades continuam a se basear no desatualizado Estatuto do Índio. Nessa lei, a perda
cultural dos indígenas é implicitamente percebida como imprescindível para sua integração à
sociedade brasileira por um processo de aculturação, em um espírito de todo incompatível
com a cláusula intercultural inserida na Constituição Cidadã. Para as comunidades
remanescentes de quilombos, a afirmação pós-constitucional desses grupos a partir do
reconhecimento de seus direitos culturais não foi acompanhada de um correspondente
desenvolvimento legal.
Contudo, se no plano doméstico tem imperado o descompasso normativo entre as
aspirações constitucionais e sua implementação legal, o direito internacional, nas últimas
décadas, presenciou o florescer de normas jurídicas internacionais e de um corpo de decisões
de órgãos internacionais amigável às pretensões dos povos indígenas e de outras sociedades
tradicionais. Entre os instrumentos internacionais veiculadores desse novo quadro jurídico,
destaca-se a Convenção n.° 169 da Organização Internacional do Trabalho (doravante OIT),
de 1989. Essa Convenção enumera uma série de direitos aos povos indígenas e tribais a serem
respeitados pelos Estados, por vezes inovando e ampliando aqueles reconhecidos na ordem
jurídica interna dos Estados-partes da referida Convenção.
A Convenção n.° 169 da OIT foi ratificada pelo Brasil em 25 de julho de 2002 e
incorporada ao direito brasileiro pelo Decreto n.° 5.051, de 19 de abril de 2004. Nesse
359
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
contexto normativo, o presente artigo tem como objetivo examinar se, diante do vácuo legal
percebido, esse tratado internacional pode e tem sido aplicado como instrumento de
atualização dos direitos constitucionais reconhecidos aos povos indígenas e às comunidades
remanescentes de quilombos.
Na primeira parte desse artigo, expomos o que a Constituição de 1988 trouxe de
inovador para os povos indígenas e as comunidades remanescentes de quilombos, bem como
a nova visão que ela apresenta, em ruptura com as Cartas anteriores.
Em um segundo momento, passa-se a examinar o papel da OIT e da Convenção n.°
169 para a proteção dos povos indígenas e tribais, com igual atenção à estrutura dessa
organização internacional e aos mecanismos de monitoramento destinados a garantir o
cumprimento das obrigações do tratado.
Por fim, buscamos responder à indagação se a aplicação da Convenção n. 169 da OIT
aponta para possibilidades de preenchimento do vazio normativo reconhecido, a partir da
análise de iniciativas governamentais e práticas judiciais brasileiras que aplicam dispositivos
desse tratado.
2 A Constituição brasileira de 1988: do modelo integracionista para uma proposta intercultural
Desde a independência, a posição oficial do Estado brasileiro em relação aos povos
indígenas sempre foi de assimilação à sociedade nacional. Percebidos como contingentes
humanos que se encontram culturalmente em um passado distante, incumbiria ao Estado,
mediante políticas governamentais, trazê-los ao “progresso” ordenado na bandeira nacional. O
modelo assimilacionista predominante possuiu reflexo em quase todas as Constituições
brasileiras promulgadas no século anterior. As Constituições de 1934 (art. 5°, XIX, ‘m’), de
1946 (art. 5°, XV, ‘r’) e a de 1967 (art. 8°, XVII, ‘o’) expressamente atribuíram à União a
competência para legislar sobre “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”. 3
Somente tem sentido incorporar aquilo que é considerado como não pertencente. No
caso dos povos indígenas, essa percepção pautou-se pelos seus traços culturais, tidos como
distintos daqueles demais membros da “comunhão nacional” e por vezes até mesmo
incompatíveis, em uma visão dicotômica entre “eles”, os índios, e “nós”, os civilizados. A
3
Souza Filho (1993, p. 310) dá notícia ainda de outros termos encontrados na legislação indigenista pátria com o
objetivo de integrá-los, ditos na conformidade do discurso legal e da linguagem de cada época: “se tente a sua
civilização para que gozem dos bens permanentes de uma sociedade pacífica e doce” (1808); “despertar-lhes o
desejo do trato social” (1845); “até a sua incorporação à sociedade civilizada” (1928); “integrá-los, progressiva e
harmoniosamente, à comunhão nacional” (1973).
360
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
perenidade da expressão constitucional – “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”
– aponta para a continuidade da política indigenista oficial: tratava-se de absorver esses povos
na sociedade dominante, e essa assimilação somente poderia ocorrer por meio da diluição de
sua cultura e da sua inserção em uma outra cultura prioritária, a “comunhão nacional”.
Como aponta Souza Filho (2011, p. 110),
A forma como se dá a garantia às terras, os dispositivos que atribuem
competência para legislar sobre o processo de assimilação e as leis
regulamentadoras deixam claro que o ideário assimilacionista do século XIX
está presente até o advento da Constituição de 1988: os índios devem deixar
de ser índios!
Essa visão assimilacionista – igualmente presente na legislação ordinária, como
veremos em seguida – foi rompida com a promulgação da Constituição de 1988.
A
Constituição de 1988 não mais fala em “incorporação”. Ao revés, a novidade constitucional
situa-se no reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos
indígenas. A partir do momento em que se reconhece uma cultura como distinta, não se pode
adotar medidas voltadas à assimilação ou supressão das diferenças étnicas e culturais.
Assim, o capítulo VIII do Título VIII (Da ordem social) de nossa Constituição,
entitulado “Dos índios”, é integralmente devotado ao reconhecimento das culturas indígenas,
definindo ainda o direito dessas comunidades sobre as terras tradicionalmente ocupadas e
atribuindo à União o dever de proteção de seu modo de vida e de seu patrimônio. Quanto às
comunidades remanescentes de quilombos4, a Constituição decidiu-se espartana. Reservou um
artigo no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que é igualmente
econômico em seu conteúdo: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que
estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitirlhes os títulos respectivos.” Embora a cultura das comunidades quilombolas encontre suporte
jurídico também nas normas protetivas dos art. 215 e 216 de nossa Lex Legum5, o art. 68 do
ADCT se tornou o único dispositivo a regulamentar o direito dessas comunidades sobre as
4
Embora a Constituição utilize o termo “remanescentes de comunidades de quilombos”, ele passou a ser
ressemantizado, inclusive por atos normativos oficiais (Portaria n. 25, de 15 de agosto de 1995, da Fundação
Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura), e em uma inversão adotou-se como preferível
“comunidades remanescentes de quilombos”, destacando o caráter coletivo dessa organização societária. Sobre o
tema, v. Figueiredo (2011, p. 50-51). É esse o termo que utilizaremos no decorrer desse trabalho.
5
Assim diz o art. 215, § 1°, da Constituição Federal: “O Estado protegerá as manifestações das culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. (...)
E no art. 216, § 5°: “Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos
antigos quilombos.”
361
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
terras que ocupam. 6
Essa inovação está em consonância com uma nova função constitucional atribuída
por Canotilho às Constituições contemporâneas: a função de inclusividade multicultural. De
acordo com o autor,
A função integradora da constituição carece hoje de uma profunda revisão
originada pelos fenômenos do pluralismo jurídico e do multiculturalismo
social. Designa-se pluralismo jurídico a situação em que existe uma
pluralidade heterogênea de direitos dentro do mesmo campo social. O
‘pluralismo de direitos’ pressupõe uma sociedade multicultural (“pluralismo
cultural”) formada por vários grupos culturais (“índios”, “hispânicos”,
“cabo-verdianos”, “africanos”, “turcos”, “indianos”) que produzem normas
(relativa, por ex., a casamentos, modas, contratos, ensino de religião) que
actuam no mesmo espaço social e interagem com as normas produzidas
pelas “macroculturas” dominantes nesse mesmo espaço. (CANOTILHO,
2002, p. 1435, grifo do autor)
É a partir desse reconhecimento de culturas distintas existentes no Brasil que se pode
falar em uma cláusula intercultural. A Constituição de 1988 não foi tão longe a utilizar em seu
texto expressões como “plurinacional”, como ocorreu nas constituições do Equador e da
Bolívia vigentes, talvez por ter sido uma das primeiras a garantir direitos aos povos indígenas
numa nova onda constitucional 7 , que posteriormente abraçaria o continente. Todavia, ao
determinar o respeito às formas de organização social e cultural dos povos indígenas, a
Constituição de 1988 inaugura um novo marco na relação entre o Estado brasileiro e esses
grupos humanos. Não mais pautado por uma política que vise integrá-los à sociedade
brasileira por meio da aculturação ou negação de sua cultura, o parâmetro constitucional passa
a ser de acomodação: incumbe ao Estado brasileiro permitir que as comunidades indígenas
celebrem suas culturas e formas de organização social, atribuindo a elas o controle do
processo de sua participação na sociedade e no Estado brasileiro.
De acordo com Souza Filho (1993, p. 310), “Esta concepção é nova, e juridicamente
revolucionária, porque rompe com a repetida visão integracionista. A partir de 5 de outubro de
1988, os índios, no Brasil têm o direito de ser índio.” E ainda sobre essa ruptura , aponta outra
6
Importante notar que a dimensão fundiária dos direitos conferidos aos povos indígenas posteriormente
passariam a ser reclamados em processos de identificação das comunidades remanescentes de quilombos e pelas
denominadas “comunidades tradicionais”, em grande quantidade na região amazônica. Sobre o tema, v.
OLIVEIRA, 2008, p. 270; FIGUEIREDO, 2011, p. 39. Sobre uma análise da interpretação do art. 68 do ADCT e
sua ressemantização, v. FIGUEIREDO, 2011, p. 16-20.
7
Souza Filho (2011) aponta ter sido a Constituição brasileira a primeira a na América Latina a admitir que os
povos indígenas têm direito a ser grupo diferenciado na sociedade nacional, estabelecendo seus direitos sociais e
territoriais.
362
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
autora:
Toda a legislação anterior continha referências expressas à integração ou
assimilação inevitável e, por outro lado, desejável dos índios da sociedade
brasileira. A nova mentalidade assegura espaço para uma interação entre
esses povos e a sociedade envolvente em condições de igualdade, pois que se
funda na garantia do direito à diferença. (LEITÃO, 1993, p. 228).
Todavia, a refundação constitucional das relações entre o Estado brasileiro e os
povos indígenas não foi acompanhada de um desenvolvimento normativo capaz de endereçar
a nova visão. Para os povos indígenas, o aspecto mais emblemático é o fato de que a principal
lei que os rege ser ainda o Estatuto do Índio (Lei n.° 6.001, de 19 de dezembro de 1973), cuja
intenção, conforme afirma seu art. 1°, de uma forma um tanto confusa e contraditória, é de
“preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.”
Após o advento da Constituição de 1988, o Estatuto do Índio manteve-se incólume, não
sofrendo alterações legislativas e nem sendo substituído por outra lei em melhor
conformidade com o novo paradigma constitucional. 8
De acordo com Oliveira,
...o Estado não adota mais como finalidade garantir a integração dos
indígenas na comunidade nacional, reconhecendo-lhes explicitamente “sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (art. 231, caput).
Ao contrário o Estatuto do Índio, de 19/12/1973, inseria-se numa perspectiva
assimilacionista, eufemizada pelo favorecimento de um “processo de
aculturação livre e espontânea” (como estipulava no art. 1°, item I, letra d, da
Lei 5.371, de 5/12/1967, de criação da FUNAI). Em função dessa guinada
radical, as políticas públicas e assistenciais doravante deveriam contribuir
para a manutenção e fortalecimento de culturas indígenas. (OLIVEIRA,
1998, p. 253)
Parte dessa inércia localiza-se no âmbito do processo legislativo. Está em trâmite,
desde o início da década de 90, o Projeto de Lei n.° 2.057/1997 9, de autoria do Deputado
Aloizio Mercadante, que dispõe sobre o “Estatuto das Sociedades Indígenas.” Contudo,
passadas duas décadas desde o início de sua tramitação, não há, no curto prazo, previsão de
sua apreciação pelos órgãos legislativos. 10
Para as comunidades remanescentes de quilombos, também a atualização legislativa
tem se demonstrado deficiente. Desde o reconhecimento constitucional dessas comunidades
8
Souza Filho se manifesta em favor da recepção do Estatuto do Índio pela Constituição de 1988, embora
considerando-a “insuficiente.” (SOUZA FILHO, 1993, p. 311)
9
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=17569>. Acesso
em: 9 mar. 2013.
10
Sobre outros projetos de lei, v. Oliveira (2008, p. 254-255).
363
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
pela Constituição, iniciou-se um amplo movimento de organização e de identificação dessas
comunidades, vinculado a uma “luta pela titulação das terras” (LEITE, 2008, p. 284-285). Sob
uma perspectiva normativa, o principal instrumento que passou a regulamentar o direito à
propriedade reconhecido na Constituição constitui-se no Decreto n.° 4.887, de 20 de
novembro de 2003. Esse Decreto reconhece não só a auto-atribuição como caráter
determinante para dizer se tal ou qual comunidade figura como quilombola, como também
imputa à comunidade o direito coletivo de propriedade sobre a terra. Esse Decreto é objeto de
da uma Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, proposta pelo Partido Democratas.
Um dos principais pontos levantados nessa ADI diz respeito ao “uso indevido da via
regulamentar”, apontando que seria necessária a mediação de um instrumento legislativo.11
Não há no panorama jurídico nacional um instrumento legislativo que regulamente
especificamente o direito das comunidades remanescentes de quilombos. A par do
desenvolvimento tardio da disciplina jurídica aplicável aos quilombolas 12, permanece ainda,
na legislação produzida nacionalmente, um vazio quanto à regulamentação de seus direitos e
uma melhor definição de seu status.
Contudo, tanto para essas comunidades como para os povos indígenas, a deficiência
do regime jurídico aplicável, decorrente de uma concepção incompatível com o paradigma
intercultural da nova Constituição, tem sido suplantada por um prolífico desdobrar do Direito
Internacional. Em verdade, em paralelo a um processo de reforma constitucional
desencadeado na América Latina a partir da década de 1980, o Direito Internacional está sob
um processo de reformulação e redefinição das bases legais dos povos indígenas. Além da
Convenção n.° 169, de 1989, da OIT13 – que prevê uma série de direitos aos povos indígenas
e tribais – órgãos internacionais, como o Comitê de Direitos Humanos (CDH), a Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Comitê para a Eliminação de Discriminação
Racial (CEDR), tem feito uma leitura amigável de tratados internacionais de direitos humanos
para acolher a reivindicação dos povos indígenas.
11
Petição
inicial
da
ADI
3239.
Disponível
em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqo
bjetoincidente=2227157>. Acesso em: 09 mar. 2013.
12
V. Lei federal n.° 12.288, de 20 de julho de 2010, denominado “Estatuto da Igualdade Racial”, em especial: art.
8°, parágrafo único; art. 12; a importante cláusula cultural do art. 18; o art. 31, que reproduz o art. 68 do ADCT;
e os arts. 32, 33 e 34, referente ao manejo das terras e políticas de incentivo.
13
A Convenção n. 169 substituiu a anterior Convenção n. 107, de 1957, da OIT, que possuía, assim como o
Estatuto do Índio em vigor, o caráter nitidamente integracionista, encarando a situação do índio como meramente
transitória, e admitindo políticas estatais destinadas a incorporá-los à sociedade nacional, em desconsideração à
sua identidade cultural.
364
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
De um conjunto de princípios e regras de inspiração imperial, que sistematicamente
ignorou ou coisificou os povos “não-civilizados” (ANAYA, 2004; RODRÍGUEZ-PIÑERO,
2005), o Direito Internacional converteu-se, nas últimas décadas, em um dos principais
instrumentos de resgate e proteção da sobrevivência física e cultural das comunidades
indígenas e quilombolas14. Diante desse recente cativar na cena internacional, a proteção dos
povos indígenas passa a repercutir, inevitavelmente, no direito doméstico dos Estados. Esse
surpreendente momentum do Direito Internacional tem como marco significativo a Convenção
n.° 169 da OIT.
3 A OIT e a proteção dos povos indígenas e tribais
A Organização Internacional do Trabalho, cujo objetivo é criar um sistema de
proteção internacional do trabalho, apresenta algumas características comuns e outras
diferenciadas em relação às demais Organizações Internacionais existentes atualmente.
Já na sua origem a OIT apresenta algumas peculiaridades. Enquanto as demais
Organizações Internacionais foram criadas depois da Segunda Guerra, após o surgimento da
ONU, à qual se vincularam através de acordos específicos, a OIT apareceu em 1919, na parte
XIII do Tratado de Versalhes, como entidade autônoma. Ela estava vinculada à Liga das
Nações, a primeira organização internacional de caráter universal criada para assegurar a paz
e segurança mundiais, após o término da Primeira Guerra Mundial. 15 Os países que aderissem
à Liga automaticamente passavam a fazer parte da OIT, embora a recíproca não fosse
verdadeira.
A Constituição da OIT reflete, já em seu preâmbulo, o contexto internacional do
período pós-guerra em que estava inserida, ao expor que “a paz para ser universal e duradoura
deve assentar sobre a justiça social” e que “existem condições de trabalho que implicam, para
grande número de indivíduos, miséria e privações, e que o descontentamento que daí decorre
põe em perigo a paz e a harmonia universais”.
14
Em relação à importância que o direito internacional vem exercendo no reconhecimento de direitos de um
povo descendente de um quilombo no Suriname, o povo Saramaka, v. PRICE (2011), com especial destaque a
processos e decisões na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
15
O Artigo 23 do Pacto da Liga das Nações, de 1919, estabelecia que “Sob reserva e na conformidade das
disposições das convenções internacionais atualmente existentes ou que forem ulteriormente celebradas,os
membros da Sociedade: a) Esforçar-se-ão por assegurar e manter condições de trabalho equitativas e humanas
para o homem, a mulher e a criança nos seus próprios territórios, bem como em todos os países aos quais se
estendam suas relações de comércio e de indústria e, para este fim, fundarão e manterão as necessárias
organizações internacionais; b) (...)”.
365
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
O pioneirismo da OIT colocou-a entre os precedentes históricos do processo de
internacionalização e universalização dos direitos humanos, tendo em vista que, ao proteger
no plano internacional os trabalhadores, estava em verdade, resgatando a dignidade humana.
Ao lado do Direito Humanitário e da Liga das Nações, a Organização
Internacional do Trabalho (International Labour Office, agora denominada
International Labour Organization) também contribuiu para o processo de
internacionalização dos direitos humanos. Criada após a Primeira Guerra
Mundial, a Organização Internacional do Trabalho tinha por finalidade
promover padrões internacionais de condições de trabalho e bem estar.
Sessenta anos pós a sua criação, essa Organização já contava com mais de
uma centena de Convenções internacionais promulgadas, às quais os
Estados-partes passavam a aderir, comprometendo-se a assegurar um padrão
justo e digno nas condições de trabalho. (PIOVESAN, 2000, p. 125)
Em 1944, foi celebrada a Declaração de Filadélfia, que se incorporou à Constituição
da OIT pelo “Instrumento para a Emenda à Constituição”, em 1946. 16 Adaptando a
organização ao novo cenário mundial, a Declaração tornou mais específicos os objetivos da
OIT e reafirmou seus princípios fundamentais já no primeiro artigo:
I. A Conferência reafirma os princípios fundamentais sobre os quais repousa
a Organização, principalmente os seguintes: a) o trabalho não é uma
mercadoria; b) a liberdade de expressão e de associação é uma condição
indispensável a um progresso ininterrupto; c) a penúria, seja onde for,
constitui um perigo para a prosperidade geral; d) a luta contra a carência, em
qualquer nação, deve ser conduzida com infatigável energia, e por um
esforço internacional contínuo e conjugado, no qual os representantes dos
empregadores e dos empregados discutam, em igualdade, com os dos
Governos, e tomem com eles decisões de caráter democrático, visando o
bem comum.
A estrutura da OIT apresenta três órgãos principais: a) A Conferência Internacional
do Trabalho, da qual participam os representantes de todos os Estados-Membros, através de
delegações compostas por 4 delegados: 2 representando o governo do país, 1 representando os
empregados e 1 representando os empregadores. Sua principal atribuição é realizar a produção
normativa da organização, expedindo resoluções, recomendações e convenções a serem
ratificadas pelos Estados; b) o Conselho de Administração, órgão executivo composto por 56
membros, dos quais 28 representam os governos (destes, 10 são nomeados pelos Estados
Membros de maior importância industrial, com cadeira fixas, e 18 são nomeados pelos
Estados Membros designados para esse fim pelos delegados governamentais da Conferência),
16
Neste mesmo período, a OIT celebrou acordo com a ONU e tornou-se o primeiro organismo especializado das
Nações Unidas.
366
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
14 representam os empregadores e outros 14 representam os empregados; c) a Repartição
(Bureau) Internacional do Trabalho (RIT ou BIT), sob a direção de um Diretor Geral
designado pelo Conselho de Administração, responsável pelos trabalhos burocráticoadministrativos, tais como informações, estudos e inquéritos.
De acordo com o artigo 16 da Constituição da OIT, a Conferência pode adotar dois
tipos de atos normativos: as Convenções, cujas normas terão que ser internalizadas pelos
Estados-membros pelo processo da ratificação, nos termos de cada direito interno, e as
Recomendações, que exigem a sua transformação em lei interna ou a tomada de medida de
outra natureza, conforme seu texto indicar.
As Convenções da OIT apresentam aspectos específicos que as diferenciam dos
demais tratados internacionais celebrados pelos Estados. SÜSSEKIND resume-os nas
seguintes regras:
a)
a convenção entrará em vigor, em relação a cada Estado-membro, doze meses após a data em que houver sido registrada sua ratificação, desde
que já vigore no âmbito internacional;
b)
o prazo de validade de cada ratificação é de dez anos;
c)
após a fluência dos dez anos, o Estado-membro poderá denunciar a ratificação, mediante comunicação oficial dirigida ao Diretor Geral da RIT, para o devido registro. Todavia, a denúncia surtirá efeito somente doze meses
após o referido registro.
d)
decorrido o prazo de doze meses após o período de validade da ratificação, sem que o respectivo Estado use da faculdade de oferecer denúncia,
verificar-se-á a renovação tácita da ratificação, por mais dez anos. Nesta hipótese, a faculdade de denúncia renascerá após o decurso de segundo decênio de vigência da ratificação, aplicando-se a mesma regra aos decênios que
se sucederem.
Além da denúncia voluntária ou expressa, pode ocorrer a denúncia tácita, resultante da ratificação da convenção revisora da anteriormente ratificada pelo mesmo país. (SÜSSEKIND, 1994, p. 39-40)
Conforme os arts. 22 e seguintes da Constituição da OIT, a Organização realiza controle da aplicação das suas normas pelos Estados, seja através dos relatórios (também denominados "memórias") que eles devem enviar periodicamente à “Comissão de Peritos”, que
analisa se a normativa OIT recebeu a devida atenção do Estado; seja através do procedimento
contencioso oriundo de "reclamações" formuladas por organismos de empregados e empregadores ou de "queixas" feitas por um Estado contra outro, para os casos de não aplicação pelo
Estado de Convenção que ratificou e que ocorre perante a “Comissão de Aplicação de Convenções e Recomendações”.
Sobre os relatórios, devem ser enviados um para cada Convenção ratificada pelo Estado. Eles devem ser apresentados anualmente, no caso das citadas Convenções Fundamen-
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tais, ou a cada cinco anos, no caso das demais Convenções. A forma e os itens do conteúdo a
serem abordados nesses documentos devem ser aqueles previstos pelo Conselho de Administração da Organização, que expede “Formulários de Memória”, especificamente aprovados
para cada Convenção em particular. Os Relatórios são analisados pela Comissão de Peritos
em Aplicação de Convenções e Recomendações, um órgão composto por 20 especialistas
independentes que atuam na área jurídica e social, que se reúne anualmente e que tem o resultado de seus trabalhos de exame dos Relatórios publicado em Informe específico da OIT (“Informe III - Parte 1A”)
No caso das “Reclamações” feitas pelas organizações patronais ou de trabalhadores,
quando elas são feitas, é constituído um comitê tripartite formado por membros do Conselho
de Administração, responsável pelo exame da reclamação e devolução do caso ao Conselho
de Administração, para adoção de conclusões. O informe do comitê acerca da Reclamação é
tornado público e cabe à Comissão de Peritos, a partir das Conclusões do Conselho de Administração, dar seguimento ao diálogo com o governo concernente. O procedimento de Queixa,
de um Estado contra outros, não é utilizado.
Do mesmo modo, para dar efetividade às Convenções, o Conselho de Administração
da OIT frequentemente cria comissões para facilitar seu trabalho, tal como ocorreu com a
Comissão Consultiva de Desenvolvimento Rural, a Comissão Permanente sobre as Empresas
Multinacionais, as Comissões de Indústria e Análogas, a Comissão Consultiva de Empregados e Trabalhadores Intelectuais, a Comissão Consultiva de Desenvolvimento Rural, a Comissão Paritária Marítima as Comissões Consultivas Regionais Asiática, Africana e Interamericana, os Comitês Mistos OIT-OMS sobre Medicina do Trabalho e Saúde dos Marítimos.
Sobre a Liberdade Sindical, a sistemática é mais complexa e há dois organismos especializados – a Comissão Mista (ONU- através do ECOSOC- e OIT) de Investigação e de Conciliação em Matéria de Liberdade Sindical (1950) e o Comitê de Liberdade Sindical (1951) – com
a função de examinar reclamações apresentadas por organizações de empregados ou empregadores contra seus Estados, quando estes descumprirem alguma convenção da matéria de
liberdade de associação, mesmo que não a tenha ratificado.17
De um modo geral, pode-se dizer que todos os principais aspectos das relações de trabalho estão abordados no plano jurídico internacional, através da normativa OIT. Além de
todas as Convenções, Recomendações e Resoluções já editadas, em 19 de junho de 1998, a
Conferência Internacional do Trabalho adotou a “Declaração da OIT sobre os Princípios e
17
Sobre o procedimento da OIT referente à Liberdade Sindical, ver Passos e Friedrich (2013).
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Direitos Fundamentais no Trabalho”, assinada pelo Presidente da Conferência e o Diretor
Geral do BIT.
Tal Declaração expressa que “todos os Membros, ainda que não tenham ratificado as
convenções aludidas, têm um compromisso, devido do fato de pertencer à Organização, de
respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a Constituição, os
princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções” (item 2). E
enumera tais princípios:
(a) a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva;
(b) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório;
(c) a efetiva abolição do trabalho infantil; e
(d) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação.
Mas a temática da OIT não se limitou a isso e os povos indígenas e tribais também
receberam seu tratamento protetivo. Especificamente sobre a Convenção 169 sobre Povos
Indígenas e Tribais, trata-se de instrumento que exige que os povos indígenas e tribais tenham
garantidos plenamente os direitos humanos e liberdades fundamentais, além das garantias
relacionadas a suas instituições, bens, culturas e meio ambiente, conforme seus interesses.
(art. 3o. e 4o.), respeitando-se seus valores e práticas sociais, culturais, religiosas e espirituais
(art.5o.).
Sendo uma Convenção adotada sob os auspícios da OIT, há a preocupação expressa
de que os Estados devem adotar, "com a participação e cooperação dos povos interessados,
medidas voltadas a aliviar as dificuldades que esses povos experimentam ao enfrentarem novas condições de vida e de trabalho". (art. 5o,c). Do mesmo modo, a organização desses povos é estimulada, exigindo que sejam consultados e que participem das tomadas de decisões
que lhes digam respeito (art. 6o.)
Também está previsto o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento de suas regiões, com vistas à melhoria das condições de
vida e de trabalho e do nível de saúde e educação, exigindo dos governos que sejam efetuados
estudos sobre o impacto dessas atividades desenvolvimentistas junto aos povos interessados
com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente
(art. 7o.).
Os Estados devem efetuar uma adaptação da legislação nacional quando ela for aplicada aos povos, devendo-se levar em conta seus costumes ou seu direito consuetudinário, inclusive na área penal (art. 9o.), desde que estes não sejam incompatíveis com os direitos fun-
369
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damentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. (art.8o.). Os Estados devem dar preferência a tipos de punição outros
que o encarceramento (art. 10) e suas leis devem "proibir a imposição, a membros dos povo
interessados, de serviços pessoais obrigatórios de qualquer natureza, remunerados ou não,
exceto nos casos previstos pela lei para todos os cidadãos" (art. 11). Nessa linha, o artigo 12
estabelece que:
Os povos interessados deverão ter proteção contra a violação de seus
direitos, e poder iniciar procedimentos legais, seja pessoalmente, seja
mediante os seus organismos representativos, para assegurar o respeito efetivo desses direitos. Deverão ser adotadas medidas para garantir
que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais, facilitando para eles, se for necessário, intérpretes ou outros meios eficazes.
A Convenção também impõe aos governos regras sobre as terras indígenas, reconhecendo aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam, os direitos sobre os recursos naturais ali existentes (solo e subsolo), e o
direito de retorno, sempre respeitando-se as modalidades de transmissão dos direitos sobre a
terra por eles estabelecidas, e garantindo a imposição de sanções contra toda intrusão não autorizada nas terras. (arts. 13 a 19)
A Convenção discorre também sobre direitos na contratação, condições de emprego,
formação profissional, bem como extensão progressiva aos povos dos regimes de seguridade
social e saúde (arts. 20 a 25). Também trata de educação, que deve ser adaptada a sua cultura,
proporcionar conhecimentos gerais e aptidões que lhes permitam participar plenamente e em
condições de igualdade na vida de sua própria comunidade e da comunidade nacional, de
forma a lhes dar a conhecer seus direitos e obrigações especialmente no referente ao trabalho
e às possibilidades econômicas, às questões de educação e saúde, bem como aos serviços sociais. (arts. 26 a 30)
O artigo 31 exige atitude os Estados no sentido de acabar com o preconceito contra
esses povos, tão presente nas sociedades:
Deverão ser adotadas medidas de caráter educativo em todos os setores da comunidade nacional, e especialmente naqueles que estejam em
contato mais direto com os povos interessados, com o objetivo de se
eliminar os preconceitos que poderiam ter com relação a esses povos.
Para esse fim, deverão ser realizados esforços para assegurar que os
livros de História e demais materiais didáticos ofereçam uma descri-
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ção equitativa, exata e instrutiva das sociedades e culturas dos povos
interessados.
O monitoramento da Convenção 169 se dá pelas vias ordinárias supracitadas, devendo os Estados enviarem seus Relatórios a cada 5 anos. O Conselho de Administração da OIT,
em 1990, expediu o "Formulário relativo à Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais",
estabelecendo 65 itens que devem ser objeto de resposta pelos Governos. O documento sugere
que os Estados elaborem os Relatórios consultando esses povos (item VIII), que devem sempre receber uma cópia.
O Brasil entregou seu último relatório para avaliação em setembro de 2012. Em fevereiro de 2013, depois de analisá-lo, os peritos solicitaram ao Brasil que inclua o relato de interlocutores sociais e das organizações indígenas nos próximos relatórios, que explique de
forma mais detalhada o processo de regulamentação da consulta prévia (em janeiro de 2012 o
Governo criou um grupo de trabalho interministerial para a elaboração da proposta de regulamentação do direito de consulta prévia, com previsão de ser apresentada em 2014); que indique a maneira prevista para garantir a proteção efetiva dos direitos das comunidades indígenas nas terras que ocupam tradicionalmente e que serão afetadas pela construção da usina
hidrelétrica de Belo Monte; que apresente informações sobre os processos judiciais que questionam a obra da transposição do Rio São Francisco, inclusive o que tem análise pendente
sobre a constitucionalidade do projeto; que forneça informações sobre o plano de segurança
pública implantado pelo Governo para proteger as comunidades Guarani-Kaiowá, no processo
de demarcação no Mato Grosso do Sul; e também que o Brasil discorra sobre a remoção consentida e informada de povos quilombolas na base de lançamento da empresa Alcântara Cyclone Space, no Maranhão.18
Em relação ao procedimento de Reclamações, já foram apresentadas mais de 15 em
relação à Convenção 169. O Brasil ratificou-a em 2004 e desde então já recebeu uma reclamação, apresentada pelo Sindicato dos Engenheiros do Distrito Federal. Na América Latina,
contra a Argentina foi feita uma reclamação, pela Unión de Trabajadores de la Educación de
Río Negro); contra a Bolívia uma, pela Central Obrera Boliviana; Colômbia, duas, pela Central Unitária de Trabajadores e pela Asociación Médica Sindical Colombiana; Equador, uma,
pela Confederación Ecuatoriana de Organizaciones Sindicales Libres); Guatemala, uma, pela
18
OIT. Comissão de Peritos em Aplicação de Convenções e Recomendações. Informe III Parte 1A. Aplicação
das normas internacionais de trabalho (I). 2013. Disponível em:
<http://www.oit.org.br/sites/default/files/topic/gender/doc/comitedeperitos2013_991.pdf>. Acesso em: 11 mar.
2013.
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Federación de Trabajadores del Campo y la Ciudad) e Peru, uma, pela Confederación General
de Trabajadores del Perú. Contra o México já foram interpostas 6 reclamações.
São as formas de monitoramento comuns à Organizações Internacionais, que se utilizam das regras de Direito Internacional Público, pouco coercitivas em relação aos Estados
que não cumprem as normas das Convenções, mas que tem o poder de causar o constrangimento ao Estado, ao ver seu descumprimento se tornar público ao ser publicado nos órgãos
respectivos.
4 Diálogos entre o direito brasileiro e a Convenção n.° 169 da OIT
Apesar da nova proposta da Constituição de 1988 e o que contém a Convenção n.° 169
da OIT, verifica-se um distanciamento entre os direitos e compromissos reconhecidos no
plano constitucional e internacional e a sua efetiva realização, em um sentido que acolha essa
nova visão. A essa dissonância entre reconhecimento de direitos e efetivação, Stavenhagen
(2008, p. 130) 19 denominou “brechas de implementação”, um “vacío entre la legislación
existente y la práctica administrativa, jurídica y política.”. De acordo com esse autor, existe
uma
brecha de la implementación entre los avances realizados por numerosos
países en sus legislaciones nacionales en que se reconoce a los pueblos
indígenas y sus derechos, y las realidades cotidianas en las que se encuentran
numerosos problemas para el adecuado cumplimiento de estas medidas
legislativas. (STAVENHAGEN, 2008, p. 115)
Ainda de acordo com esse autor, uma das categorias de “brecha de implementação” é
brecha entre as normas e princípios internacionais em matérias de direitos humanos indígenas
e a legislação doméstica, bem como a inconsistência entre essas leis (STAVENHAGEN, 2008,
p. 117). Sobre esse hiato entre Constituição e regulamentação, nota ainda SOUZA FILHO
(2011, p. 153):
Este mesmo reconhecimento aparece nos acordos internacionais, como o
Convênio 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada em
26 de junho de 1989. (...) Esta concordância não significa que os países
latino-americanos têm aceitado as normas internacionais, o que demonstra a
insinceridade das elites locais que sempre imaginam que suas Constituições
podem deixar de ser aplicadas por falta de leis que as regulamentem, e por
isso permitem a inclusão de avanços nas Constituições para depois restringir
sua regulamentação. Na realidade, a aceitação das normas internacionais,
especialmente a Convenção 169, significaria a regulamentação de suas
avançadas constituições, que podem ser apenas declarações de princípios
19
Ex-Relator especial sobre a situação dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais dos Povos indígenas
do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas.
372
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inaplicáveis frente a interesses da economia global...
É sobre esse fenômeno que estamos a tratar aqui: diante de uma Constituição
propícia à interculturalidade e de um vazio normativo existente, como implementar, no plano
doméstico, as normas reconhecidas pelo direito internacional, em especial aquelas inseridas
na Convenção n.° 169 da OIT?
Como apontado, a Convenção n.° 169 da OIT qualifica-se como um tratado
internacional. Tendo sido ratificada pelo Estado brasileiro e observado o trâmite regular de
incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico interno, ela passa a gozar do
status normativo dos demais tratados internacionais. Nesse diapasão, de acordo com as regras
aplicáveis à incorporação de tratados internacionais no direito brasileiro (AMARAL JÚNIOR,
2008, P. 477-487), a Convenção n.° 169 possui hierarquia de lei, e, nesse sentido, possui
aplicação direta em nosso ordenamento jurídico.20
Considerando o avanço constitucional e o vazio normativo, a Convenção n.° 169 da
OIT é capaz de servir como um parâmetro normativo válido a regulamentar a Constituição?
Para proceder a essa análise, é preciso observar o que diz a Constituição quando disciplina o
direito dos povos indígenas e das comunidades remanescentes de quilombos.
No art. 231, a Constituição Federal expressamente dispõe que é reconhecido aos
índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens.” É nesse dispositivo que se localiza uma cláusula de
interculturalidade. Se o Estado reconhece aos povos indígenas sua cultura (organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições), incumbe ao Estado adotar medidas que visam à
proteção cultural desses povos. Implícito no reconhecimento desse direito está, ademais, a
necessidade de adequar quaisquer políticas públicas voltadas aos povos indígenas à sua
cultura, em áreas tais como saúde, educação e trabalho.
Como aponta Oliveira (2008, p. 266),
A Constituição de 1988 efetuou uma reviravolta completa quanto a tendência
de buscar a integração de populações pagãs exclusivamente a partir de
20
A Convenção n.° 169 da OIT estatui uma série de direitos que têm sido reconhecidos como direitos humanos
indígenas. Em seu preâmbulo, faz expressa referência à Declaração Universal dos Direitos Humanos e aos
Pactos Internacionais de Direitos Humanos. Precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos
encontram igualmente subsídios nessa Convenção para interpretar a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos. Diante disso, é legítimo concluir que os direitos encartados na referida Convenção gozam do status
hoje atribuído pela jurisprudência do STF aos tratados internacionais de direitos humanos: na hierarquia das leis,
encontra-se acima das leis ordinárias, embora abaixo da Constituição, conferindo-se assim um status supralegal.
É esse, inclusive, o entendimento da Desembargadora Selene Maria de Almeida no processo n.
2006.39.03.000711-8/PA, que tramita no 1° TRF e será estudado em seguida.
373
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
mecanismos de homogeneização e anulação das diferenças culturais. Pela
primeira vez os indígenas foram reconhecidos como portadores de culturas
distintas (das do Ocidente e entre si), que deveriam ser respeitadas como
parte do patrimônio cultural do país. As ações que os membros dessas
culturas executam movidos por suas crenças e costumes não podem ser
consideradas como desprovidas de sentido, nem estigmatizadas como
símbolo de atraso.
A normatização da política pública voltada aos povos indígenas não é uma novidade
no direito brasileiro. O Estatuto do Índio prevê em seus arts. 48 a 55 políticas destinadas aos
índios no campo da saúde, trabalho, educação e previdência. Na área da educação, determina
que a alfabetização ocorra na língua do grupo indígena, além do português. No trabalho,
determina o direito à formação profissional adequada. No campo da saúde, prevê aos índios a
mesma proteção dos meios “facultados à comunhão nacional”.
Contudo, tais políticas públicas não atribuem aos povos indígenas o controle e
participação na sua formulação e manifestam, em sintonia com o propósito assimilacionista da
lei, o ideal de integrá-las à sociedade nacional e promover o seu alinhamento com o modelo
vigente da “comunhão nacional”. É assim que o art. 50, ao disciplinar a educação, estabelece
que “A educação do índio será orientada para a integração na comunhão nacional mediante
processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e valores da sociedade nacional,
bem como do aproveitamento das suas aptidões individuais.” e o art. 53, embora pretenda
estimular o artesanato e as indústrias rurais, tira com a outra mão, ao inserir, no mesmo
dispositivo, que essa norma deve ser aplicada “no sentido de elevar o padrão de vida do índio
com a conveniente adaptação às condições técnicas modernas.” De acordo com Oliveira
(2008, p. 251), o Estatuto do Índio “...expressa claramente uma postura autoritária e
centralizadora no trato das questões administrativas.”21
Portanto, se o pressuposto do Estatuto do Índio é a integração do indígena à
sociedade, todas as políticas públicas ali delineadas vão ter como finalidade realizar essa
integração. Mas, uma vez que a Constituição Federal rompe com esse assimilacionismo ao
reconhecer a cultura indígena, como implementar políticas públicas de caráter social, tais
como educação, saúde e trabalho, sem se resvalar no mesmo viés integracionista?
A Convenção n.° 169 da OIT oferece um importante eixo normativo ao centralizar
nos direitos de participação e consulta dos povos indígenas um aspecto crucial na formulação
das políticas públicas a ele destinadas, bem como prever uma gradual descentralização para
que eles próprios administrem seu sistema educacional. Assim prevê o seu art. 27, ao tratar
21
No mesmo sentido, v. LEITÃO, 1993, 231.
374
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
sobre educação:
1. Os programas e os serviços de educação destinados aos povos interessados deverão ser desenvolvidos e aplicados em cooperação com eles a fim de
responder às suas necessidades particulares, e deverão abranger a sua história, seus conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e todas suas demais aspirações sociais, econômicas e culturais.
2. A autoridade competente deverá assegurar a formação de membros destes
povos e a sua participação na formulação e execução de programas de educação, com vistas a transferir progressivamente para esses povos a responsabilidade de realização desses programas, quando for adequado.
3. Além disso, os governos deverão reconhecer o direito desses povos de criarem suas próprias instituições e meios de educação, desde que tais instituições satisfaçam as normas mínimas estabelecidas pela autoridade competente em consulta com esses povos. Deverão ser facilitados para eles recursos
apropriados para essa finalidade.
Normativa de natureza semelhante se aplica no campo da saúde, consoante prediz o
art. 25 da Convenção. A mudança de foco é significativa: de um modelo em que as políticas
são formuladas de cima para baixo, agora são as próprias comunidades indígenas que passam
a deter voz e gradualmente controle sobre sua formulação, impondo ainda ao Estado o
respeito aos processos culturais e sociais próprios desses povos no momento em que essas
políticas são implementadas.
Como sustenta Oliveira (2008, p. 271),
A separação entre o que deve (ou não) ser incorporado, sobre as inovações e
recriações, não deve mais ser realizada pelas autoridades oficiais nem pelos
especialistas (antropólogos, indigenistas, ONG’s), mas sim pelas próprias
coletividades (isto é, suas lideranças e intelectuais orgânicos). Já não são
aceitos mais critérios que venham a colocar os indígenas em condições de
subordinação em relação aos processos decisórios.
Assim, o reconhecimento dos direitos culturais encartados no caput do art. 231 da
Constituição de nada adiantaria se fosse mantida a atávica concepção do Estatuto do Índio de
que a cultura deve ser integrada e incorporada à sociedade dominante. O reconhecimento
cultural se torna efetivo quando o Estado, ao desenvolver e implementar políticas públicas,
leva em consideração a necessidade de proteção desses valores. Nesse sentido, diante do vazio
normativo, a Convenção n.° 169 pode preencher uma notável lacuna, apontando diretrizes
para o respeito à cultura dos povos indígenas. Não só atribuindo direitos no campo da saúde,
da educação e da previdência, a Convenção n.° 169 também regulamenta o direito de escolher
prioridades no desenvolvimento econômicos e social (art. 7°) e o respeito aos costumes e
direito consuetudinário (arts. 8° e 9°).
Portanto, se o art. 231 prevê aos povos indígenas o exercício de direitos culturais,
375
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
diante do superado Estatuto do Índio, a Convenção n.° 169 oferece uma importante base
principiológica e normativa para a sua realização e efetivo respeito.
Também se destacam as possibilidades de aplicação da Convenção n.° 169 da OIT
em relação à disciplina jurídico-constitucional das terras indígenas. A Constituição Federal de
1988, nos parágrafos 1° a 7° do art. 231, prevê o direito dos índios às terras tradicionalmente
ocupadas e encontra similitude com o que prevê a Convenção em seus arts. 13 a 17.
Como um dos mais relevantes exemplos da interface entre a Constituição Federal de
1988 e o conteúdo da Convenção n.° 169 da OIT, é interessante mencionar o que está previsto
no art. 231, § 3º:
O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos,
a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser
efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades
afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na
forma da lei. (grifo nosso)
Se o dispositivo menciona que as comunidades afetadas devem ser ouvidas, pouco
informa sobre a forma e o procedimento em que essas comunidades deverão ser consultadas.
Contudo, a Convenção n.° 169, ao estabelecer os direitos de consulta e participação dos povos
indígenas22, oferece um conjunto de diretrizes normativas sobre como esse direito se realiza.
O seu art. 6° dispõe, por exemplo, que as consultas “deverão ser efetuadas com boa fé e de
maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o
consentimento acerca das medidas propostas.” E o art. 15, § 2°, determina
Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos
do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes na terras, os
governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a
consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses
desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender
ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos
existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre
que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber
indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado
dessas atividades.
Nesse sentido, ao apontar a maneira como as comunidades devem ser ouvidas e quais
as obrigações dos Estados contidas nesse dever de consulta, a Convenção n.° 169 desenvolve
22
Os direitos de participação e consulta dos povos indígenas são identificados como uma das mais essenciais
garantias para a proteção desses povos, tanto para que eles próprios possam influenciar a definição de seus
direitos como impactar em determinadas práticas institucionais. V. KINGSBURY, 2001, p. 239.
376
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
normativamente um direito reconhecido no plano constitucional, demandando assim o
reconhecimento de um diálogo entre o que prevê a Constituição e o que resta estabelecido
como obrigação do Estado brasileiro em um tratado internacional. Assim, na configuração de
uma “brecha de implementação” entre o anseio constitucional e a insuficiente ou incoerente
legislação nacional, a implementação da Convenção n.° 169 firma-se como um ato necessário
à efetivação dos direitos dos povos indígenas reconhecidos na Constituição.
No caso das comunidades remanescentes de quilombos, também se observa a
configuração das “brechas de implementação”. Como aponta Leite (2008, p. 286), com base
em observações de Almeida
...após a Constituinte, o quilombo como direito tornou-se objeto da ação do
Poder Executivo e de uma política governamental. O eixo da ação
governamental e, em especial, sua retórica, tem contudo variado, gerando
certo descompasso entre a consolidação jurídica dos territórios e a
implantação de políticas sociais com predomínio das últimas. Também é
possível observar uma tendência à intensificação dos debates sobre os
princípios e critérios de classificação do que vem a ser um quilombo,
sobretudo como tentativa de limitá-lo.
O mencionado art. 68 do ADCT figura-se como insuficiente para verbalizar as
expectativas do movimento articulado ao entorno das comunidades rurais negras. Ele não
apresenta nem uma definição segura do que sejam remanescentes de quilombos e nem como
será processado e disciplinado o reconhecimento desses direitos territoriais. Como já
apontado, não houve disciplina mediante lei formal a respeito de como ocorreria esse
reconhecimento do direito à propriedade. A principal tentativa de regulamentação – e que, à
época da elaboração desse artigo, permanece vigente – consiste do Decreto n.° 4.887, de 20
de novembro de 2003, ato emanado do Poder Executivo e objeto da Ação Direta de
Inconstitucionalidade, já noticiada.
Sobre essa distância e o papel da releitura desse dispositivo sob uma perspectiva
multicultural, argumenta Figueiredo (2011, p. 45)
Se lida na sua literalidade, a norma constitucional apontava para uma
interpretação restritiva, de caráter exclusivamente reparatório,
individualizante na definição de seu sujeito de direito e cujo objeto era
definido exclusivamente no campo do direito agrário. Interpretado no
contexto comunitarista da Constituição de 1988, e mesmo no contexto mais
ampliado de reconhecimento do multiculturalismo pelos mecanismos de
direito internacional, apontava para a abertura que se produziu pelos
movimentos, que definiu os sujeitos como grupos étnicos-raciais e o direito à
terra como direito ao reconhecimento das formas particulares de
territorialidade.
377
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Portanto, a Convenção n.° 169 da OIT apresenta grandes possibilidades de interface
com vazios normativos deixados pela brecha entre a proposta constitucional e uma legislação
velha ou insuficiente. Nesse sentido, sua aplicação poderá seguramente auxiliar os órgãos
estatais na elaboração de uma política indígena consentânea com um modelo de respeito à
diferença, que tenha como base os direitos culturais e territoriais de assento constitucional.
De acordo com Villares (2009, p. 49),
...a Convenção deve ser observada integralmente. Ela estabelece as bases
para a política indigenista com autonomia para os povos indígenas e
inúmeras obrigações estatais para proteção dos povos indígenas, sua vida,
territórios, instituições, cultura e saúde. A Convenção 169 da OIT revela sua
importância na influência que exerceu nas mudanças constitucionais levadas
pelos países latino-americanos na década de 90.
Destacar a aplicação da Convenção n.° 169 como mecanismo de superação ou
diminuição das brechas de implementação não significa dizer que outros desenvolvimentos
normativos no plano doméstico não sejam necessários. A própria Convenção n.° 169 admite
que a situação dos povos indígenas e dos Estados com quem se relacionam varie
significativamente. 23 Por conseguinte, as normas gerais nela estabelecidas deverão ser
aplicadas com base nas particularidades dos processos econômicos, sociais e culturais das
sociedades a que se vinculam os Estados signatários. Trata-se do que Boaventura do Sousa
Santos denomina de “geometria variável”, em que não há soluções institucionais uniformes a
serem adotadas pelo conjunto de Estados (SANTOS, 2009, p. 218). Para a implementação
desses direitos, podem ser necessários outros atos normativos, seja de caráter administrativo,
seja de caráter legislativo. Todavia, o Estado não poderá se escusar de aplicar essas normas ao
argumento de que precisaria regulamentar o tratado internacional. Para a adoção dos
princípios e de determinadas regras contidas na Convenção, prescinde-se de interposição
legislativa.
Nesse ponto, é importante ressaltar que o Estado brasileiro, nos últimos anos, tem
gradualmente desenhado políticas públicas indígenas com referência ou com vistas a
implementar a Convenção n.° 169. Entre essas iniciativas, destaca-se a criação da Comissão
Nacional de Política Indigenista – CNPI, em 22 de março de 2006, que conta com a
participação de organizações indígenas,
Além da CNPI, é importante apontar o Decreto n.° 7.747, de 5 de junho de 2012, que
institui o Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI
23
Artigo 34. A natureza e o alcance das medidas que sejam adotadas para por em efeito a presente Convenção
deverão ser determinadas com flexibilidade, levando em conta as condições próprias de cada país.
378
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
que tem como objetivo, nos termos de seu art. 1°, “garantir e promover a proteção, a
recuperação, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das terras e territórios
indígenas, assegurando a integridade do patrimônio indígena, a melhoria da qualidade de vida
e as condições plenas de reprodução física e cultural das atuais e futuras gerações dos povos
indígenas, respeitando sua autonomia sociocultural, nos termos da legislação vigente.” Esse
Decreto faz expressa referência à Convenção n.° 169 da OIT como um dos fundamentos de
sua regulamentação.
Especificamente visando à implementação da própria Convenção, a Portaria
Interministerial n.° 35, de 27 de janeiro de 2012, estabeleceu um Grupo de Trabalho
Interministerial “com a finalidade de estudar, avaliar e apresentar proposta de regulamentação
da Convenção n º 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos
Indígenas e Tribais, no que tange aos procedimentos de consulta prévia dos povos indígenas e
tribais.”
Logo, essas importantes movimentações já demonstram o impacto da Convenção n.°
169 na reorganização da política indigenista brasileira, com a finalidade de harmonizá-la com
os parâmetros internacionais e com a Constituição de 1988.
Por outro lado, é importante asseverar que a indicação das possibilidades de
aprofundamento normativo pela referida Convenção não reduz ou elimina a autoaplicabilidade dos dispositivos constitucionais. Nessa medida, as regras inseridas na
Constituição que titularizam direitos tanto aos povos indígenas como às comunidades
remanescentes de quilombos podem ser aplicadas diretamente, sem necessidade de mediação
legal. O que o desenvolvimento normativo favorece é a ampliação das garantias e conferição
de segurança jurídica à qualidade desses direitos reconhecidos.
Se a Convenção n.° 169 da OIT apresenta um grande potencial para ocupar vazios
normativos decorrentes do descompasso entre a vontade constitucional e a legislação nacional,
tudo dependerá de sua aplicação pelo Estado brasileiro e a forma como passa a ser tratada em
foros judiciais e em órgãos internacionais. Portanto, diante da vigência da Convenção n.° 169
no direito brasileiro, quais as principais formas de se fazer cumprir a Convenção? Destacamos
principalmente duas: o papel dos órgãos da OIT no monitoramento de sua aplicação, por meio
de recomendações diretas ao Estado, e o papel dos tribunais na solução de controvérsias
relacionadas aos povos indígenas e quilombolas. Uma vez que o papel da OIT foi apreciado
no item anterior, passamos a analisar a aplicação da Convenção n.° 169 pelos tribunais.
Como aponta Stavenhagen (2008, p. 121),
379
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Uno de los temas más importantes que requiere de atención sostenida es el
papel de los tribunales em la interpretación y aplicación de la legislación
nacional y las normas internacionales de derechos humanos en cuestiones
relativas a lós derechos humanos de los pueblos indígenas.
A aplicação da Convenção n.° 169 da OIT pelos tribunais nacionais pode ser direta,
desde que o sistema jurídico correspondente admita que os tratados internacionais, uma vez
incorporados, passam a ser imediatamente aplicados. Contudo, as consequências da
incorporação de um tratado internacional não se resumem à sua aplicação imediata. A força
normativa de um tratado internacional em determinado ordenamento jurídico dependerá
igualmente do status a que se atribui a esse tratado bem como à natureza normativa nele
reconhecida.
Um exemplo disso é a força normativa declarada pela Corte constitucional da
Colômbia à Convenção n.° 169. A Corte constitucional colombiana tem sido reconhecida por
construir uma sólida jurisprudência em relação aos direitos dos povos indígenas e
comunidades afrodescendentes
24
. Essa Corte tem aplicado a Convenção n.° 169,
reconhecendo que esse tratado integra o bloco de constitucionalidade colombiano. Tal posição
foi reafirmada na Sentença T-376/12, em trechos que insta transcrever:
3. Un elemento imprescindible para una adecuada interpretación y aplicación
de las normas y principios asociados a la protección, respeto y garantía de
los derechos de las comunidades cultural o étnicamente diversas, es el
enfoque de diversidad y autonomía planteado por la comunidad internacional
desde la aprobación del Convenio 169 de 1989 de la OIT. Ese enfoque, en
síntesis, plantea que las culturas indígenas o afrodescendientes poseen
vocación de permanencia y que los Estados deben respetar al máximo su
derecho a definir sus prioridades y asuntos propios, como manifestación del
principio de autodeterminación de los pueblos.
(…)
7. El Convenio 169 de la OIT - última de las fuentes citadas en la sentencia
SU-039 de 1997 como fundamento del derecho a la consulta previa- es el
instrumento de mayor relevancia en la interpretación y aplicación de los
derechos de los pueblos indígenas en el orden interno, no sólo por el
avance que supuso en el respeto por su autodeterminación, sino también
porque hace parte del bloque de constitucionalidad, así que sus
disposiciones son aplicables directamente en el orden interno, con fuerza
constitucional. (grifo nosso)
Os Tribunais e juízes de Estados da América Latina têm aplicado a Convenção n.°
24
Um relatório da organização sediada na Inglaterra, Minority Rights Group International, se refere ao conjunto
de decisões da Corte Constitucional da Colômbia como um ‘modelo de jurisprudência de padrão
mundial’(world-class model of jurisprudence) (State of the World’s Minorities and Indigenous Peoples 2012.
2011. p. 28.)
380
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
169 a diversos casos (INTERNATIONAL LABOUR ORGANISATION, 2009). Cumpre
analisar, a partir de dois casos recentes, como a Convenção está sendo aplicada pelos juízes
brasileiros.
Um dos primeiros casos em que se aplicou a Convenção n.° 169 se refere a um
mandado de segurança em que figuraram no polo ativo diversas pessoas pertencentes a uma
comunidade remanescente de quilombo em Alcântara, no Maranhão 25. A ação foi instaurada
contra as atividades da base aeroespacial localizada próximo à comunidade. Nos termos da
petição inicial, as atividades da base aeroespacial afetariam as formas tradicionais de
produção, impedindo o cultivo do campo pela comunidade. Os impetrantes pleitearam que o
centro de lançamento cessasse as atividades que impediam a comunidade de plantar e colher
as culturas de subsistência em suas áreas tradicionais.
Na decisão prolatada nesse caso, entendeu-se que a previsão constitucional de bemestar para todos alcança também as comunidades remanescentes de quilombos,
particularmente quando o Estado brasileiro confirma a intenção de estabelecer uma política
pública para combater a discriminação contra estilos de vida tradicionais de povos indígenas e
tribais, nos termos do Decreto-Legislativo n.° 43/2000, que ratifica a Convenção n.° 169 da
OIT.
Nesse feito, o Poder Judiciário reconheceu o estilo de vida tradicional da comunidade
remanescente de quilombo, bem como o dever de o Estado respeitar a cultura, sem poder
adotar medidas que impeçam o manejo da terra conforme o modo cultural daquela
comunidade, fazendo expressa referência à Convenção.
Mais complexo e envolvendo grandes interesses é o caso da Usina Hidrelétrica de
Belo Monte. No processo n. 2006.39.03.000711-8/PA26, está se discutindo se foi exercido o
direito de consulta prévia das comunidades indígenas afetadas antes da deliberação pelo
Estado quanto à concessão e construção da referida Usina. No caso, o Ministério Público
Federal pretendia impedir o prosseguimento da execução de obras de Usina Hidrelétrica de
Belo Monte enquanto não fossem ouvidas as comunidades indígenas afetadas. Ainda,
discutia-se a validade do Decreto Legislativo n.° 788, de 2005, que autorizou o Poder
Executivo a implantar o Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte no trecho do Rio Xingu,
25
Essas informações foram extraídas de ILO, 2009, p. 61-62. O processo a que se refere é o registrado sob n.°
2006.37.00.005222-7.
26
Esse não é o único processo instaurado pelo Ministério Público Federal relacionado à Usina Hidrelétrica de
Belo Monte. Para outros processos, v. <http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2013/processos-judiciais-do-casobelo-monte-sao-publicados-na-integra-pelo-mpf> . Acesso em: 21 mar. 2013.
381
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
pois editado sem ouvir previamente as comunidades e sem o prévio estudo de impacto
ambiental. O cerne dessa demanda era, portanto, o direito dos povos indígenas serem ouvidos
a respeito do megaprojeto que afetaria o seu modo tradicional de vida. A sentença julgou
improcedente o pedido do Ministério Público.
Em grau de apelação, inicialmente a 5ª Turma do 1° Tribunal Regional Federal
entendeu que havia ocorrido a consulta e que ela não precisaria ser prévia ao Decreto
Legislativo n.° 788, de 2005. Houve divergência, restando vencida a Desembargadora Federal
Relatora Selene Maria de Almeida, para quem não foi observado o que dispõe a Convenção
n.° 169 quanto à consulta prévia. É interessante trazer à baila alguns excertos do voto vencido
da Relatora, pela sua referência à Convenção n.° 169 da OIT e a percepção de sua posição no
ordenamento jurídico brasileiro:
Neste contexto, requereu o Ministério Público Federal, ora apelante, a aplicação das regras da Convenção 169 da OIT porque, com a sua ratificação pelo Congresso Nacional, as regras internacionais passaram a ser normas internas brasileiras. O direito de consulta das populações indígenas, no Brasil,
foi incorporado à legislação nacional e agora tem a mesma hierarquia das
normas constitucionais.
A Emenda Constitucional 45, que acrescentou o parágrafo 3º do artigo 5º da
Constituição Federal, dispõe que “os tratados e convenções internacionais
sobre Direitos Humanos são equivalentes às emendas à Constituição”.
O Supremo Tribunal Federal atribuiu aos tratados internacionais em matéria
de direitos humanos, superioridade jurídica em face da generalidade das leis
internas brasileiras, reconhecendo as referidas convenções internacionais
qualificação constitucional (HC 87585 – Pleno, DJE de 26/26/2009).
Temos, portanto, de um lado, o direito das comunidades indígenas de serem
ouvidas quando houver proposta de atividade econômica em suas terras, ex
vi do artigo 231, parágrafo 3ª, da Constituição Federal de 1988, onde também consta a previsão da necessidade do Congresso Nacional autorizar a exploração de recursos minerais e do potencial energético em terras dessas populações.
De outra parte, tem-se o direito de consulta, incorporado no ordenamento jurídico nacional com a ratificação pelo Estado brasileiro da Convenção 169
da OIT.
(...)
Segundo prescrições da Convenção 169 da OIT, inseridas no nosso
ordenamento jurídico em nível de norma constitucional, a consulta prévia
(artigo 6º) e a participação (artigo 7º), constituem direito fundamental que
têm os povos indígenas e tribais de poder decidir sobre medidas legislativas
e administrativas, quando o Estado permite a realização de projetos. A
intenção é proteger a integridade cultural, social e econômica além de
garantir o direito democrático de participação nas decisões que afetam
diretamente essas populações tradicionais.
Contra a decisão que negou provimento ao apelo, o Ministério Público opôs
382
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
embargos de declaração. Em uma reviravolta, o 1° TRF modificou essa decisão, considerando
que diversos dispositivos da Convenção n.° 169 da OIT não foram observados, acolhendo os
embargos de declaração e dando parcial provimento ao apelo do Ministério Público Federal.
Do voto-condutor pelo Desembargador Federal Souza Prudente se extrai:
Como se observa das letras desses dispositivos [da Convenção n.° 169] de
âmbito internacional a que aderiu o Brasil com a responsabilidade social de
lhe dar eficácia plena, afirma-se nas letras desses dispositivos o direito
fundamental à liberdade dos povos indígenas como direito humano de livre
participação do seu destino, não se admitindo que seja empregada nenhuma
forma de força ou de coerção que viole os seus direitos humanos e as suas
liberdades fundamentais, como povos interessados no desenvolvimento das
suas culturas e também no desenvolvimento nacional. Se entendermos, à luz
dessas disposições, que o Congresso Nacional agiu corretamente ao editar o
Decreto Legislativo 788/2005 sem ouvir antes as comunidades indígenas
sobre os impactos ambientais em suas terras, em suas culturas, em suas
tradições, estaremos admitindo, então, o regime de força condenado pela
Convenção OIT nas letras do seu art. 3º, item II.
Não se tem notícia ainda de uma análise derradeira pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) ou pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) a respeito da Convenção n.° 169 da OIT.
Contudo, das duas decisões acima mencionadas, extrai-se que o Poder Judiciário entendeu
pela sua aplicação imediata. Do caso de Belo Monte, o 1° TRF deliberou até mesmo pela
invalidação de Decreto Legislativo por não observar as normas da Convenção n.° 169 27 .
Diante desse precedente, no caso de a Convenção n.° 169 da OIT ser invocada – ao menos
quanto ao direito de consulta prévia – é possível que os tribunais passem a utilizá-la como
parâmetro normativo direito, isto é, sem exigir interposição legislativa para aplicá-la.
5 Conclusão
A Constituição Federal de 1988 imprimiu um novo paradigma de condução das
relações entre o Estado brasileiro e as comunidades indígenas e remanescentes de quilombos.
Ao invés da negação ou incorporação, o norte constitucional aponta para o respeito às
diferenças e o reconhecimento de uma intrínseca relação entre cultura e território. Contudo,
essa mudança de perspectiva não foi acompanhada de um desenvolvimento normativo
correspondente no plano doméstico, resultando em vazios normativos e conduzindo ao que
Stavenhagen denominou “brechas de implementação”.
Por outro lado, no plano internacional, a Convenção n.° 169 da OIT passou a
27
Na data de elaboração desse artigo, a decisão ainda não havia transitado em julgado, pois pendente de
apreciação de recursos excepcionais.
383
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
regulamentar o direito dos povos indígenas e tribais, reconhecendo a essas coletividades um
conjunto de prerrogativas destinadas à sua proteção física, cultural e espiritual. A Convenção
n.° 169 é monitorada e aplicada pelos órgãos da OIT, que têm auxiliado e cooperado com o
Estado brasileiro no cumprimento dos seus dispositivos. Como resultado disso, pode-se
mencionar iniciativas do governo brasileiro para definir uma política indigenista voltada ao
manejo territorial, como o PNGATI, e o estabelecimento de um grupo interministerial com a
finalidade de regulamentar o direito à consulta prévia dos povos indígenas e tribais previsto
na Convenção.
Além desses desenvolvimentos recentes no âmbito do Poder Executivo, o Poder
Judiciário tem demonstrado existir um espaço para que violações aos direitos contidos na
Convenção n.° 169 da OIT sejam diretamente levadas ao seu conhecimento e, com base nela,
proferidos julgamentos voltados à proteção das sociedades tradicionais abrangidas pela
Convenção.
Como destacou a Desembargadora Selene Maria de Almeida quanto à sua importância:
Quanto a isso, as prescrições da Convenção 169 da OIT, além de vinculantes, podem ser de enorme valia na construção interna desse modelo de processo de consulta das populações indígenas. Assim é porque um aspecto relevante da Convenção é o capítulo sobre terras indígenas e tribais. A Convenção reconhece a relação especial que os indígenas têm para com as terras
e territórios que ocupam ou utilizam de alguma maneira e, em particular, os
aspectos coletivos desta relação. É reconhecido o direito de posse sobre as
terras que tradicionalmente ocupam. Os direitos dos povos indígenas e tribais existentes em suas terras devem ser protegidos.28
Assim, embora a Convenção n.° 169 não tenha ainda se inserido com vigor no
discurso oficial corrente do Estado brasileiro, iniciativas e decisões judiciais precursoras estão
sendo tomadas com base na Convenção. Nesse sentido, pode-se concluir que a Convenção
tem servido como instrumento normativo hábil a articular demandas que não encontram
amparo na legislação doméstica, figurando como um relevante mecanismo de proteção dos
povos indígenas e tribais e conferindo maior densidade normativa aos anseios constitucionais.
REFERÊNCIAS
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2008.
28
Voto como Relatora na Apelação Cível nº 2006.39.03.000711-8/PA.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA OU RESPONSABILIDADE DE PROTEGER:
COMO PARAMETRIZAR TAIS CONCEITOS FRENTE AOS PRINCÍPIOS
ESTRUTURANTES DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS
Guilherme Nogueira Soares1
Renata Mantovani de Lima2
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo primordial traçar um paralelo entre as teorias dominantes
que orientavam as relações internacionais, para, após, evidenciar os valores que ensejaram a
confecção da Carta das Nações Unidas (ONU). Com isso, ato contínuo é estabelecer a
conceituação dos pilares da Carta, nessa perspectiva à proibição de intervenção, fundamento
da igualdade e garantia da paz internacional, bem como do instituto da intervenção
humanitária - ou dever de proteger – sob a ótica da tutela internacional dos direitos humanos.
Ao final, busca-se confrontar a possibilidade de coexistência destes dois institutos do direito
internacional, com o intuito de propor uma reflexão, no que couber, através da teoria da
tipicidade conglobante, com espeque em Eugênio Raúl Zaffaroni, responsável por sustentar
uma possibilidade de coexistência, no sistema jurídico, de institutos aparentemente
antinômicos.
PALAVRAS-CHAVE: Intervenção Humanitária; Responsabilidade de Proteger; Direitos
Humanos; Antinomia; Tipicidade Conglobante.
HUMANITARIAN INTERVENTION OR RESPONSIBILITY TO PROTECT:
CONCEPTS SUCH AS FRONT PARAMETERIZE STRUCTURING PRINCIPLES OF
THE CHARTER OF THE UNITED NATIONS
ABSTRACT
This article aims to primary draw a parallel between the dominant theories that guided
international relations, for, after it shows the values that gave rise to the making of the Charter
1
Advogado, especialista em direito privado pela Universidade Candido Mendes, Rio de Janeiro, aluno do
Programa de Mestrado da Universidade de Itaúna/MG, com concentração no âmbito da proteção dos direitos
fundamentais, linha de pesquisa Organizações Internacionais e Proteção dos Direitos Fundamentais.
2
Advogada, Doutora e Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, tendo realizado suas
pesquisas na Universidade de Pisa-Itália, Professora da Graduação e Mestrado da Universidade de Itaúna/MG,
Professora e ex- Coordenadora do Curso de Direito do Centro Universitário UNA, Professora e Coordenadora da
Pós-Graduação Lato Sensu do Centro Universitário de Belo Horizonte – UNIBH, Membro do Jurídico do Grupo
Ânima Educação.
387
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
of the United Nations (UN). With this continuous act is to establish the concept of the pillars
of the Charter, that the prohibition on intervention perspective, the basis of equality and
ensuring international peace and the institute of humanitarian intervention - or duty to protect
- from the perspective of the international protection of human rights. At the end, we seek to
confront the possibility of coexistence of these two institutes of international law, in order to
propose a reflection, as appropriate, through the theory of tipicity conglobante with Eugenio
Raúl Zaffaroni in stanchion, responsible for sustaining a possibility coexistence, in the legal
system, apparently antinomical institutes.
KEYWORDS: Humanitarian Intervention; Responsibility to Protect; Human Rights;
Antinomy; Conglobante Tipicity.
Sumário
1. Introdução. 2. Os paradigmas clássicos de convivência internacional e sua influência
na confecção da Carta da ONU. 3. Do princípio da Não-Intervenção. 4. Intervenção
Humanitária ou Responsabilidade de Proteger? 5. Da antinomia entre Não-Intervenção
e Intervenção Humanitária. 6. Considerações Finais.
1. Introdução
Os episódios autoritários verificados em alguns países da Europa, quais sejam
fascismo, nazismo, franquismo e salazarismo, aliados aos efeitos nefastos gerados pelos
embates durante a Segunda Grande Guerra Mundial e pelo Holocausto, determinaram a
conjectura política sob a qual foi erigida a Carta da Organização das Nações Unidas. Para
tanto, foi idealizada uma Organização Internacional com fins a deter a guerra entre países e
que fornecesse uma plataforma de diálogo capaz de promover a cooperação em matéria de
direito internacional, segurança internacional, desenvolvimento econômico, direitos humanos
e a defesa da paz mundial.
Tais condições, em suma, pretendiam evitar a reedição dos horrores historicamente
vivenciados, tendo em vista os princípios que foram esculpidos em seu texto. Ou seja, surge
como meio de reação às hostilidades perpetradas nos períodos de guerras, ao mesmo tempo
em que objetiva controlar a sociedade internacional, muitas vezes propensa à autodestruição,
em virtude de interesses conflitantes, ou antagônicos.
A conjuntura estava traçada, e a Carta das Nações Unidas foi elaborada pelos
representantes de 50 países presentes à Conferência de São Francisco, realizada entre 25 de
abril a 26 de junho de 1945. As Nações Unidas, entretanto, começaram a existir oficialmente
388
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
apenas em 24 de outubro de 1945, após a ratificação da Carta pela China, Estados Unidos,
França, Reino Unido e a ex-União Soviética, bem como pela maioria dos Estados signatários.
É certo que, em breves linhas, esse é o relato histórico contextualizador dos auspícios
da ONU. Aliás, imprescindíveis para que se entenda, à luz do preconizado pela Carta, as
atuais práticas internacionais no que diz respeito à defesa dos direitos humanos, preceito que,
por sua vez, fundamenta e justifica uma séria de medidas deflagradas em âmbito
internacional. No entanto, com vistas a verificar os institutos da Intervenção Humanitária e
Responsabilidade de Proteger, impõe-se, em um primeiro momento, por meio de uma análise
teórica, evocar os paradigmas clássicos que norteiam a sociedade internacional, para assim,
apreciar os princípios erigidos na Carta da ONU que orientam a convivência internacional e a
solução dos conflitos, consagrados pelo artigo 2º do referido diploma.
Superado esse caminho preliminar, necessário estabelecer o conceito de Intervenção
Humanitária e Responsabilidade de Proteger, no sentido de determinar seus alcances, bem
como verificar a existência de eventual antinomia com os princípios estruturantes do Direito
Internacional. Haveria uma incompatibilidade entre o princípio da não-intervenção e das
recentes práticas humanitárias realizadas pela sociedade internacional? Defesa dos direitos
humanos ou ofensa aos pilares estruturantes do Direito Internacional? É possível compor
questões tão contrastantes? Esses são os questionamentos que permeiam o estudo
bibliográfico proposto, que tende a concluir pela congruência do ordenamento internacional.
2. Os paradigmas clássicos de convivência internacional e sua influência na confecção da
Carta da ONU
Antes de passar à análise dos princípios erigidos pela Carta da ONU, orientadores da
convivência internacional e da solução dos conflitos internacionais, impõe-se evocar os três
modelos clássicos de convivência internacional, conforme sistematização de Martin Wight: o
hobbesiano-maquiavélico, o grociano e o kantiano (LAFER, 1995).
No primeiro paradigma, hobbesiano-maquiavélico, o entendimento é pela
manutenção dos atores internacionais em um temível “Estado de Natureza”, no qual estes
permanecem em uma constante animosidade internacional, em que a condição de beligerância
é latente, e a guerra, iminente. Contraria a condição interna de cada sociedade, onde a
presença do poder mantém a condição de paz e tranquilidade. A ausência de um poder
soberano na esfera internacional impossibilitaria a paz entre as nações. Nesse sentido, para
389
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Hobbes, os atores internacionais têm o dever de se pautar pela prudência e pela permanente
sombra de um ataque iminente, de forma que, a única solução dos conflitos é pela imposição,
traduzida pelo poder. Acredita-se, segundo essa linha de pensamento que a soberania é
absoluta, gerada pela total cessão dos poderes do povo para o Estado. (LAFER, 1995)
Nesses termos, leciona Celso Lafer:
O paradigma hobbesiano-maquiavélico, que a Carta da ONU procura superar,
considera que a sociedade internacional se caracteriza ainda pelo Estado de
Natureza, ou seja, pelo estado de guerra de todos contra todos. Como não existe, no
plano internacional, diferentemente do que ocorre no interior dos Estados, um poder
unificado, não há como solucionar o problema da anarquia dos significados que, no
plano interno, é resolvido pelo poder soberano. Por isso para Hobbes, como
precursor do positivismo jurídico, o direito é comando, não sabedoria. Daí a
plenitude sem limites da soberania dos Estados e a convicção de que a única lei do
sistema internacional é a da sobrevivência. Assim, as regras básicas da vida
internacional são a prudência e o expediente, pois a política internacional é tão
somente a política do poder (LAFER, 1995).
Por sua vez, Hugo Grócio propõe um modelo em que os institutos de direito
internacional público regeriam a necessária convivência entre as nações, pautadas pelo
sentimento de cooperação, socialidade e solidariedade. Compõem o sistema, além das nações,
as organizações internacionais, valorizadas pelo seu papel transnacional. Pautam-se essas
inter-relações pela interdependência e cooperação. Ou seja, o pano de fundo é o interesse
recíproco de cada uma das nações.
No mesmo sentido:
(...) o modelo da convivência que remete a Grócio, pressupõe a existência na
sociedade internacional de um potencial de sociabilidade e solidariedade que torna
possível conceber a política internacional como um jogo que não é, inapelavelmente,
de soma-zero. Decorre dessa premissa o efetivo papel desempenhado pelo sistema
jurídico do Direito Internacional Público, pelas organizações internacionais, e a
valorização do transnacionalismo dos atores não-governamentais, expressão da
interdependência e da cooperação, ou seja, de um abrangente processo do interesse
recíproco dos Estados e de suas populações. A Carta da ONU, assim como antes
dela o Pacto da Sociedade das Nações, contém importantes ingredientes grocianos
(LAFER, 1995).
No terceiro paradigma, Immanuel Kant, em sua obra “À Paz Perpétua” (1795), traça
uma nova possibilidade, determinando que a convivência pacífica das nações deva
permanecer, não sob a mesma perspectiva de Hugo Grócio – interdependência e mútuo
interesse – mas pelo sentimento internacional da incessante busca pela paz, objetivo de todas
as nações. Evidencia condições negativas para que, como medidas a serem adotadas, evitem o
conflito futuro, promovendo diretamente a paz. Estabelece as mínimas condições necessárias
390
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
para que sejam eliminadas as principais razões de guerra entre os Estados. Nesses termos, traz
para o centro de todo o postulado, os desideratos de proteção do ser humano, respeito à sua
dignidade,
refletindo,
consequentemente,
no
respeito
mútuo
entre
os
Estados,
independentemente de sua estatura.
Corroborando com essa vertente, são valiosos os ensinamentos de Pádua Fernandes:
Do ponto de vista moral e jurídico, Kant, todavia, rompeu com a antiga doutrina da
guerra justa, e realizou em “À Paz Perpétua” uma “radical desqualificação da
guerra” (Castillo, 2001, p.33). Há um dever jurídico de sair do estado de guerra, o
que só pode ser feito por meio de uma associação de estados ... Höffe (1990, p. 261262), com razão, ressalta que, para o filósofo prussiano, a paz é o mais alto bem
político. A paz perpétua é uma ideia e não pode ser completamente realizada na
realidade; no entanto, há um dever de se aproximar dessa ideia, e esse dever é
jurídico (FERNANDES, 2004).
Dessa feita, concluiu-se, pelo menos como fator inspirador da consciência dos
“Povos das Nações Unidas” ao celebrarem a adoção da Carta da ONU, o paradigma kantiano.
O parâmetro não poderia ser outro, haja vista as circunstâncias que levaram à realização da
Conferência de São Francisco em 1945.
Os desmandos dos totalitarismos que terrorizavam vários países da Europa e que
levaram ao megaconflito haviam consolidado a percepção kantiana de que os
regimes democráticos apoiados nos direitos humanos eram os mais propícios à
manutenção da paz e da segurança internacionais. Daí a necessidade de apoiar em
normas internacionais o ideal dos direitos humanos (LAFER, 1995).
Não seria de bom alvitre que o sentimento fosse outro. Permitir que se fossem
olvidados os horrores da guerra e do Holocausto, manter-se-ia o status quo.Ou seja, não
haveria a ruptura do paradigma de encetar a real proteção aos direitos fundamentais dos
homens, com a sua internacionalização e determinar, em um compromisso multilateral, a
vedação à guerra.
Para confirmar o exposto, apresenta-se o preâmbulo da Carta da ONU, in verbis:
NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar as
gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa
vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos
fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de
direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a
estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de
tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a
promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade
ampla.
E PARA TAIS FINS, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como
bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança
391
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos,
que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um
mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os
povos. (Carta da ONU).
Neste contexto, a Carta das Nações Unidas estabelece, logo em seu art. 2º, os
princípios que regem as relações entre a organização e os Estados membros no cumprimento
de seus desideratos; são eles: igualdade soberana de todos os Estados; cumprimento de boa-fé
das obrigações contidas na carta; solução pacífica de controvérsias internacionais, de modo
que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais; proibição da ameaça
ou do uso da força nas relações internacionais; assistência a todas as ações promovidas pelas
Nações Unidas e proibição de prestar auxílio a Estado contra o qual a Organização esteja
agindo de modo preventivo ou coercitivo; obrigação de fazer que os Estados não membros da
Organização atuem em conformidade com a Carta a fim de manter a paz e a segurança
internacionais; e proibição de intervenção, por parte da organização, nos assuntos de
competência essencialmente interna dos Estados, exceto por meio de medidas coercitivas
previstas no Capítulo VII da Carta.
Vinte e cinco anos após a edição da carta da ONU, a menção à Declaração atinente
aos princípios do direito internacional no que diz respeito às relações amigáveis e à
cooperação entre os Estados nos termos da Carta das Nações Unidas, é extremamente
oportuna. Aprovada em consonância generalizada pela Assembleia Geral, em 24 de outubro
de 1970, através da Resolução 2625 (XXV), consagra sete princípios: proibição do uso da
força, solução pacífica das controvérsias, não intervenção nos assuntos de jurisdição
doméstica dos Estados, obrigação de cooperação entre os Estados, igualdade de direitos e
autodeterminação dos povos, igualdade soberana dos Estados e cumprimento de boa-fé das
obrigações internacionais.
Contrariando o conteúdo de todos os acordos internacionais precedentes, a Carta da
ONU estabelece regras extremamente claras ao estatuir restrições ao uso da força pelos
Estados. Desde o preâmbulo, decorrendo todo o seu corpo normativo, as restrições à atividade
beligerante e ao uso da ameaça nas relações internacionais restou bastante rechaçada,
principalmente pela ideologia adotada e a sua disposição principiológica.
Dentre os princípios supramencionados, em respeito aos objetivos traçados pelo
presente trabalho, necessário se faz uma leitura do relativo à proibição de intervenção nos
assuntos de competência essencialmente interna dos Estados, que se passa a aprofundar.
392
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
3. Do princípio da Não-Intervenção
Apesar das inúmeras propostas de emendas aos textos originais que circundaram a
criação da carta da ONU, e os inflamados debates acerca das disposições dogmáticas e
contextuais dos textos envolvendo os membros presentes na Conferência de São Francisco
(BÖHLKE, 2011, p. 121), uma leitura desatenta do art. 2º, § 7º da Carta da ONU pode
oferecer interpretações muito restritivas ao verdadeiro conteúdo conceitual do princípio da
não intervenção, senão vejamos:
ARTIGO 2, §7º: Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas
a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer
Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos
termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das
medidas coercitivas constantes do Capitulo VII.
Percebe-se, pela literalidade do comando normativo que a proibição de intervenção
direciona-se somente à ONU, e não aos demais Estados membros. Essa interpretação não
pode prosperar, uma vez que, no mesmo Art. 2º, agora em seu §4º, determina que todos os
Estados signatários da Carta, assim como não signatários (art. 2º, §6º), devam abster-se do
uso da força e da ameaça no âmbito de suas relações internacionais. Ademais, a não
intervenção entre os Estados não decorre somente dessa base pactual, mas precipuamente do
direito consuetudinário, que remonta ao direito natural, já consolidada como jus cogens desde
o pacto Kellog-Briand.
Nessa perspectiva, preleciona o mestre de Viena, Hans Kelsen:
O princípio da não-intervenção não reflete exatamente o princípio da nãointervenção nos assuntos internos previstos no direito internacional geral, pois o
princípio referido na Carta impede a intervenção da Organização, especificamente,
nas questões internas dos Estados, e não de um Estado nas questões de outros. Para
o autor, o dever de não interferir nos assuntos internos de outros Estados, apesar de
não estar previsto expressamente na Carta, decorre, de maneira implícita, do
disposto no art. 2º, § 4º, que proíbe a ameaça ou o uso da força nas relações
internacionais.(KELSEN, 1951, p.770)
O dever de não-intervenção, em sua clássica conceituação doutrinária, traduz o dever
por parte de Estados soberanos e organizações internacionais em não intervir na esfera de
jurisdição interna de um Estado soberano ou comunidade política independente (BULL, 1984,
p.1). Todavia, numa visão mais atual, e em razão da grande abertura de possibilidades que o
termo intervenção pode permear, dado que o alcance do termo soberania é extremamente
393
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
amplo e, de outra sorte, a exigência de uma cautelosa motivação em situações de ingerência
militar , preferiu-se não adotar uma conceituação fechada, sob o receio de uma desnecessária
estagnação conceitual, o que encerraria verdadeira inoperabilidade do instituto.
Esse é o entendimento de Rosalyn Higgins, citada por Marcelo Böhlke:
Acredita não ser possível traçar uma linha divisória nítida entre o que seria
interferência tolerada e o que seria considerado intervenção proibida. Conforme
Higgins, o propósito da “doutrina da intervenção do direito internacional” seria
“criar equilíbrio aceitável entre a igualdade soberana e a independência dos Estados,
por um lado, e a realidade de um mundo interdependente e compromissos com o
direito internacional com a dignidade humana, por outro. (BÖHLKE, 2011, p.138)
Após essa (in)definição conceitual do instituto da proibição de intervenção em
assuntos internos dos Estados soberanos, sobeja salientar que, à luz de outra perspectiva, não
decorreria este princípio de outros institutos de direito internacional senão o da igualdade dos
Estados soberanos e da busca pela autodeterminação dos povos. O primeiro desponta como
marco inicial para se estabelecer limites mínimos para se lograr uma ambientação da
sociedade internacional, de modo a não subordinar nenhum Estado soberano a outro , ou
mesmo a qualquer organização internacional. Nesse sentido, soberania seria nada mais que a
vontade própria do Estado, fator determinante da preeminência no plano interno, bem como
da independência internacional. Já o segundo princípio implica a liberdade de todos os
Estados escolherem de sua forma de governo, e seu próprio destino sem interferências
externas.
O que desponta como ponto chave na delimitação do instituto da proibição de
intervenção em assuntos internos dos Estados seria, justamente, a delimitação de assuntos
internos. A definição do conteúdo engloba antiga e larga discussão de toda a comunidade
internacional, haja vista seu conteúdo flexível, que, com o decorrer do tempo, vem sofrendo
inúmeras mutações, assim como a própria estrutura do direito internacional, bem como os
motivos e razões que determinam a ingerência dos organismos internacionais e Estados
soberanos. Assim, caberá tanto à doutrina, quanto à jurisprudência, o papel de preencher este
conteúdo, que, em realidade, depende sua delimitação, da atividade interpretativa das normas
abstratas face ao caso concreto, assim como ocorre com os conceitos jurídicos indeterminados
e os elementos normativos, contidos nos tipos penais em branco.
Seguindo essa linha de entendimento, a melhor solução para se traçar uma definição
sobre “assuntos internos” seria, não exatamente direta ou conceitual, mas por meio da
ponderação do binômio “soberania x direitos humanos”. Nesse sentido, o respeito aos direitos
394
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
humanos pelos Estados funcionaria como um termômetro para a intervenção ou não.
Consequentemente, a ação estaria agasalhada pela legitimidade sempre que fosse necessário
tutelar os direitos humanos, , não conflitando, pois, com os institutos da soberania e do dever
de não-intervenção.
Nesta linha, ensina Marcelo Böhlke:
A aplicação dos mecanismos de proteção de direitos humanos baseados em tratados
internacionais não fere a soberania nem o princípio da não-intervenção. O conflito
entre aquele princípio e a defesa dos direitos humanos ocorre quando são propostas
medidas não previstas no direito internacional e que envolvem a ameaça ou o uso da
força, principalmente de modo unilateral, como meio de coerção na aplicação das
normas de direitos humanos. (BÖHLKE, 2011, p.230)
Assim, as intervenções internacionais, apesar de expressamente vedadas pela art. 2º,
§4º da Carta da ONU, têm, pelo menos, duas exceções que merecem registro: a legítima
defesa, prevista no art. 51 da Carta, entendida como medida suficiente para repelir a agressão
sofrida, não devendo, contudo, extrapolar a ação recebida; e as limitações previstas no
Capítulo VII da Carta, que compreendem ações relativas aos tratados de paz, rupturas da paz e
atos de agressão, os quais devem sofrer interpretação restritiva, à luz da norma imperativa jus cogens- a proibição de intervenção.
4. Intervenção Humanitária ou Responsabilidade de Proteger?
Após as considerações pertinentes aos princípios basilares da Carta da ONU,
sustentáculo para a manutenção da ordem mundial, e que visam impedir a eclosão de novos
episódios bélicos, ao menos no plano jurídico, urge salientar a necessária presença das
intervenções humanitárias. Esta entendida como institutos determinantes à observação do
cumprimento dos tratados de direitos humanos e que permite a fiscalização de todos os
Estados, mesmo aqueles não integrantes das Nações Unidas, pelo imperativo do art. 2º, §6º,
da Carta.
Com a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, foram consagrados
valores de cunho universal a serem observados por todos os Estados, sem exceções, pautados
no dever de respeito à dignidade humana. Desses direitos decorre o dever dos organismos
internacionais e de todos os Estados que compõe a sociedade mundial de observar e tutelar a
garantia às mínimas condições de vida digna em qualquer que seja o Estado. Havendo
395
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
violação aos direitos humanos, há verdadeiro dever de agir. Trata-se de normas imperativas de
Direito Internacional - jus cogens.
Esse dever de agir, todavia, nem sempre foi assim tratado. Aliás, desde 1948, com a
nova ordem mundial bipolarizada, difícil era a possibilidade de ação por parte do Conselho de
Segurança das Nações Unidas (CSNU), tendo em vista os vetos que travavam a sua ação.
Desse modo, não havia muita efetividade em se proteger, via organismos internacionais, os
direitos humanos, sendo, pois, relegados à sorte de um interesse político, dado o descrédito de
alguns países à força dos organismos internacionais, passando a “atropelar” os tratados
internacionais relativos à observância dos direitos humanos, dando ensejo à atuação unilateral
por parte das potências, que, em regra, agiam pela via bélica.
A queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética alteram o cenário
anteriormente delineado. Findado o período de tensão travado pela Guerra Fria, constata-se
uma maior atuação do Conselho de Segurança. Com a expansão da mídia mundial, torna-se
latente que a responsabilidade dos atores internacionais recrudesceria, de sorte a serem
chamados a intervir de forma mais efetiva nas questões humanitárias. Assim, deu-se maior
amplitude à “oportunização” de soluções pacíficas pela busca do respeito aos direitos
humanos. Com a participação efetiva dos organismos internacionais pela vigilância dos
direitos humanos, não havia mais espaço para a inércia da ONU, e, com isso justificar a
adoção de medidas unilaterais (em regra beligerante). A prioridade passava pela busca da
resolução dos conflitos de forma amistosa, fomentando o desenvolvimento social e
econômico como métodos de combate às violações humanitárias.
No entanto, para que se possa entender o instituto da Intervenção Humanitária,
importa conceituá-la. Para tanto, toma-se por empréstimo as palavras de Marcelo Böhlke, para
quem, resultam de um somatório de elementos:
A doutrina apresenta diferentes definições para intervenção humanitária, que
geralmente contém os seguintes elementos: (i) uso da força armada; (ii) por Estado
ou grupo de Estados; (iii) sem o consentimento do Estado onde se processa a
operação; (iv) com o objetivo de conter violações maciças aos direitos humanos em
sentido amplo, incluindo as liberdades fundamentais e as normas do direito
internacional humanitário; e (v) independentemente da nacionalidade das vítimas.
(BÖHLKE , 2011, p.236)
Dessa forma, pressuposto principal das intervenções humanitárias é o uso da força
armada para proteger seres humanos em condições de risco dentro de Estados violadores de
regras seculares. Mas não se trata somente do uso de força armada, mas também com uma
latente violação de um dos pilares da Carta da ONU – a proibição de intervenção.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Haveria, na hipótese, uma antinomia entre o princípio da não intervenção e a
intervenção humanitária? Esse cenário já encetou o maior número de discussões em todas as
camadas do direito internacional no âmbito da proteção dos direitos humanos: se de um lado
há a norma jus cogens pela prevalência dos direitos humanos, do outro lado estão a soberania
dos Estados e a vedação à intervenção.
O ex-secretário geral da ONU, Kofi Annan trouxe, no bojo de seu artigo “The two
concepts of sovereignty” dois panoramas distintos sobre o tema: a intervenção da ONU no
Kosovo e a não intervenção em Ruanda. Nas duas hipóteses, ele faz uma leitura crítica das
(in)ações internacionais: relativamente ao Kosovo, faltou a atividade do Conselho de
Segurança, agindo a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em violação à carta
da ONU, no tocante ao princípio da não-agressão. Na segunda hipótese, a inação dos atores
internacionais diante do genocídio de aproximadamente 800.000 (oitocentas mil) pessoas
causa perplexidade.
São as palavras do ex-secretário geral da ONU:
Para aqueles que consideram que a maior ameaça ao futuro da ordem internacional é
o uso da força na ausência de mandato do Conselho de Segurança, alguém poderia
dizer: deixe o Kosovo de lado por um instante e pense em Ruanda. Imagine por um
momento que, naqueles dias e horas difíceis que levaram ao genocídio, houvesse
uma coalizão de Estados pronta e disposta a agir em defesa da população tutsi,
porém o Conselho tivesse se recusado ou demorado a dar o sinal verde. Deveria tal
coalizão ter ficado inerte enquanto o horror acontecia? (BÖHLKE , 2011, p.313)
Não por outra razão que no ano seguinte instaurou-se uma Comissão Internacional
sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS), com o fito de se estabelecer novas fórmulas de
respostas às violações de direitos humanos e direito internacional humanitário. Ao cabo das
rodadas, fora emitido um relatório finalresponsável por formatar uma nova perspectiva para as
intervenções humanitárias: criou-se uma nova categoria denominada Responsabilidade de
Proteger.
A Responsabilidade de Proteger tem por base a conceituação de soberania trazida por
Kofi Annan:
(...) o conceito de soberania está sendo redefinido pelas forças da globalização e da
cooperação internacional. ... os Estados são instrumentos a serviço de seus povos.
Portanto, a soberania estatal inclui, além de direitos (nas relações internacionais),
uma série de responsabilidades dos Estados em relação aos indivíduos. (BÖHLKE ,
2011, p.312)
397
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
Esse é o mesmo contexto adotado pela ICISS, que define como a principal
responsabilidade do Estado soberano o dever de proteger sua população. Assim, haveria no
conceito de soberania uma dupla responsabilidade: internacional, relativamente às relações
com os demais Estados soberanos, e no plano interno, sob o dever de respeitar a dignidade e
os direitos das pessoas que estão no seu território.
À luz de toda essa discussão e alterações do cenário internacional de uma nova
perspectiva adotada pela ICISS, percebe-se a preocupação dos atores internacionais em
definirem parâmetros e procedimentos mais claros no que tange a tutela internacional do
direito humanitário, delimitando efetivamente as responsabilidades dos Estados soberanos em
tutelar os direitos de seus cidadãos, impondo-lhes uma moderna faceta de soberania, bem
como retirando deste panorama a presença de palavras indesejáveis na perspectiva da ordem
internacional, como por exemplo, intervenção humanitária. Nesse sentido, defende Marcelo
Böhlke: “o objetivo é, em última análise, buscar termo menos polêmicos, que permitisse
aceitação consensual.” (2011, p. 326).
Nessa linha, percebes-se que, inobstante os esforços da ICISS em desmistificar o
instituto da intervenção humanitária, substituindo-o por outro, com um nome cujo efeitoé a
maior aceitação pela sociedade internacional – Responsabilidade de proteger – o status quo
foi mantido, não havendo uma verdadeira alteração no cenário das investidas internacionais.
Seja como Intervenção Humanitária, ou Responsabilidade de Proteger, encerram as mesmas
medidas bélicas, não gerando qualquer alteração no resultado prático.
5. Da antinomia entre Não-Intervenção e Intervenção Humanitária
Como disposto anteriormente, há na sociedade internacional uma grande resistência
em se utilizar o termo “Intervenção Humanitária” para se legitimar a ação de organismos
internacionais e Estados em situações de conflitos armados em outros Estados, na defesa dos
direitos humanos, principalmente pelas disposições principiológicas da Carta da ONUproibição de intervenção e proibição do uso da força e ameaça entre os Estados. O termo
geraria certo constrangimento, o que levou a ICISS a determinar uma agenda com um único
desiderato: estabelecer um novo modelo que atendesse os anseios da sociedade internacional.
Todavia, não se vislumbra tal necessidade de alteração paradigmática com tanta
profundidade somente em razão da incompatibilidade entre os institutos. Nessa ótica, o
398
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
operador do direito, perceberia, em uma simples observação dos institutos, que os fatores
clássicos para a resolução de antinomias aparentes não resolveriam a situação, senão vejamos:

Critério Cronológico: trata-se da prevalência da norma posterior, em caso de
antinomia entre duas normas criadas ou vigoradas em dois momentos
cronológicos distintos. Designa-se a este princípio o termo em latim lex
posterior derogat legi priori, ou seja, lei posterior derroga leis anteriores.
Não é o caso, pois ambos os institutos estão consagrados pela carta da ONU.

Critério Hierárquico: consiste na preferência dada, em caso de antinomia, a
uma norma portadora de status hierarquicamente superior ao seu par
antinômico. Também não é o caso, pois não há hierarquia normativa das
disposições constantes da carta da ONU.

Critério Específico: em caso de normas incongruentes, uma geral, e uma
especial, prevalece a especial. Do mesmo modo que os critérios anteriores,
não é aplicável tendo em vista a idêntica conformação jurídica.
Assim, após uma profunda busca para se compatibilizar a coexistência da proibição
de intervenção com a intervenção humanitária, tendo em vista pertencerem ao mesmo
arcabouço jurídico, buscou-se na teoria da tipicidade conglobante do Professor Eugênio Raúl
Zaffaroni, a solução para o problema.
À primeira vista, tal analogia com o direito penal pode causar estranheza, mas há
grande compatibilidade entre os institutos, precipuamente no que tange a estabilidade do
ordenamento jurídico e a convivência normativa dos institutos. O ordenamento normativo ao
qual faz parte a Carta da ONU tem que ser harmônico e coerente, do contrário imperaria o
caos. Não é possível que a Carta proíba condutas que ela mesma determina em algumas
situações, eis que repercutiria na sua própria inconsistência. Se assim proceder, não se estará
diante de um ordenamento normativo, mas sim de um amontoado de normas em gravidade
zero.
Nessa perspectiva, Eugênio Raúl Zaffaroni valeu-se, para dar sustentáculo à sua
teoria, do instituto do estrito cumprimento do dever legal. Este, inicialmente pertencente à
categoria jurídico-penal da antijuridicidade, ou seja, segundo elemento da teoria analítica do
crime, formada pela conjugação do fato típico, com a antijuridicidade e, finalmente com a
culpabilidade (ZAFFARONI , 2011, 343). Zaffaroni, acertadamente, deslocou o instituto da
antijuridicidade para o interior do fato típico, à justificativa de que, como não haveria
399
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
contrariedade entre a conduta do agente e o ordenamento jurídico, não haveria justificação
para a instauração de eventual procedimento investigatório sobre o fato, vez que, se
permanecesse dentro da estrutura da antijuridicidade, o fato, apesar de eventualmente não
antijurídico, seria, ab initio, típico, encetando a investigação criminal.
Exemplificando: quando o policial prende em flagrante delito um agente e usa de
violência para efetuar a prisão, sua conduta seria inicialmente típica para o direito penal,
porém justificável. Assim, o policial agiu em estrito cumprimento do dever, mas como sua
conduta é imposta pelo Estado, tendo este um dever de agir, não se pode falar em
cometimento do delito lesão corporal com excludente de ilicitude, não restando outro
resultado senão a atipicidade da conduta. Não há, pois, conflito no ordenamento jurídico,
sendo apenas uma antinomia aparente. Aplica-se uma correção ao juízo de tipicidade.
Assim ensina Eugênio Raúl Zaffaroni:
Daí que a tipicidade penal não se reduz à tipicidade legal (isto é, à adequação à
formulação legal), e sim que deva evidenciar uma verdadeira proibição com
relevância penal, para o que é necessário que esteja proibida à luz da consideração
conglobada da norma. Isto significa que a tipicidade penal implica a tipicidade legal
corrigida pela tipicidade conglobante, que pode reduzir o âmbito de proibição
aparente, que surge da consideração isolada da tipicidade legal. (ZAFFARONI ,
2011, 479).
Relativamente ao direito internacional, como os tratados são uma de suas fontes, há,
na doutrina da tipicidade conglobante, hipótese de aplicação da teoria especificamente aos
acordos firmados pelas partes. Como sinônimo de tratados, pactos, protocolos e demais
nomenclaturas, os acordos são formas, no direito penal contemporâneo, de aquiescência que
configuram atipicidade das condutas relativas à proposição. Explica-se: o acordo é o âmbito
de liberdade ao exercício de um direito. Assim, seu titular pode, desde que tenha capacidade
para firmar seu consentimento, restringir o âmbito de proteção da norma em seu direito
disponível e redutível.
Assim, os ensinamentos de Eugênio Raúl Zaffaroni:
O acordo é precisamente o exercício da disponibilidade que o bem jurídico implica,
de modo que, por maior que seja a aparência de tipicidade que tenha a conduta,
jamais o tipo pode proibir uma conduta para a qual o titular do bem jurídico tenha
prestado sua conformidade. (ZAFFARONI, 2011, p.482)
Mutatis mutandis, como os países signatários da Carta da ONU tinham capacidade e
liberdade em consentir com os termos que foram reduzidos ao corpo legal daquela, não há de
se falar em contrariedade da norma intervenção humanitária e vedação à intervenção, sendo
400
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apenas uma aparente antinomia, resolvida facilmente pela estabilidade do ordenamento
jurídico da Carta, aplicando-se a teoria da tipicidade conglobante, no que couber, para se
corrigir discussão acerca da possibilidade de intervenção, restando, se for o caso, apenas uma
inadequação terminológica, que evidenciaria apenas um receio à luz da nomenclatura
consagrada.
6. Considerações Finais
Ante as considerações tecidas no presente trabalho, é possível verificar, desde a
elaboração da Carta da ONU uma dicotomia entre Intervenção Humanitária e proibição de
intervenção, potencializada pela vedação do uso da força pelos Estados soberanos, bem como
dos organismos internacionais.
Não resta dúvida que um dos maiores anseios dos organismos internacionais
perpassa pelo estabelecimento de procedimentos e mecanismos que legitimem a intervenção
dos organismos internacionais com o fito de proteger e tutelar os direitos humanos,
extensivos, aliás, para o próprio Estado, que por sua vez, tem o dever precípuo de observar e
garantir a proteção desses direitos em seus territórios. Daí falar em Intervenções ou
Responsabilidade de Proteger. Esta tendente a romper com a idéia de ilicitude, ou mesmo
contrariedade com os princípios que fundamental o arcabouço jurídico internacional.
Desnecessário, eis que em realidade trata-se de nomenclaturas distintas para um mesmo
objetivo, qual seja, tutela de direitos.
Nesse sentido, apoiado nos ensinamentos de Zaffaroni, autor da teoria da tipicidade
conglobante, percebe-se que essa dicotomia levantada a respeito da vedação à intervenção e
intervenção humanitária não deve prosperar, pois o sistema é um todo harmônico, não
havendo apenas aparência antinômica, uma vez que o que uma norma fomenta, dentro do
sistema, outra não proíbe, não sendo caso de conflito, mas de verdadeira hipótese de aplicação
da norma ou não.
Em um episódio em que se vislumbrar o conflito entre as duas possibilidades, um dos
institutos ou será completamente aplicável ou não. Desse modo, ou o episódio da vida será
integralmente de não intervenção internacional - por não se constatar situação de violação de
direitos humanos, ou nos demais casos do Capítulo VII da carta da ONU ou em caso de
legítima defesa -, ou estar-se-á diante de uma hipótese em que a intervenção internacional será
401
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
legítima, independente de sua nomenclatura: Intervenção Humanitária ou Responsabilidade
de Proteger.
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CRIMES FINANCEIROS E A CRIMINALIDADE ORGANIZADA
TRANSNACIONAL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A EXPANSÃO INTERNACIONAL
DO DIREITO PENAL
FINANCIAL CRIMES AND TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME:
CONSIDERATIONS ABOUT INTERNATIONAL EXPANSION OF THE CRIMINAL
LAW
Fillipe Azevedo Rodrigues1
Kathy Aline de Medeiros Silva2
RESUMO
Apresenta uma abordagem constitucional da ordem financeira brasileira. Parte de uma análise
sucinta dos princípios norteadores do Sistema Financeiro Nacional. Trata da tutela penal do
Sistema Financeiro Nacional, com destaque para os delitos de lavagem de dinheiro e evasão
de divisas, mais recorrentes e de maior potencial ofensivo, relacionando-os com a
criminalidade organizada. Sustenta a importância de uma resposta enfática do Poder Público
ao crime organizado, através de uma tutela penal eficiente, que não se encaminhe para uma
expansão desenfreada do Direito Penal, mas que revisite seus institutos em prol de resultados
mais satisfatórios. Discorre sobre a necessidade da cooperação internacional no combate aos
crimes financeiros, sobretudo os delitos de evasão de divisas e lavagem de dinheiro, por
repercutirem fortemente na fragilização das organizações criminosas, dificultando-lhes o
financiamento de suas atividades ilícitas. Destaca que o Direito Penal requer uma terceira e
uma quarta velocidades voltadas para a proteção de uma ordem internacional segura para
relações políticas, sociais e mercantis, hoje fortemente ameaçadas pelas organizações
criminosas. Afirma que, nesse contexto, o princípio da complementaridade deve ser
observado, pois desempenha um importante papel para definir os limites da jurisdição pública
internacional, preservando a soberania particular de cada Estado.
PALAVRAS-CHAVE: Cooperação Jurídica Internacional; Crime Organizado Transnacional;
Ordem Financeira.
ABSTRACT
Features a constitutional approach of Brazilian financial order. Starts with a brief analysis of
the guiding principles of the National Financial System. Discusses the penal protection of the
National Financial System, highlighting the offenses of money laundering and tax evasion,
the most recurring and potentially offensive, linking them to organized crime. Supports the
1
Advogado e Consultor do Estado do Rio Grande do Norte, possui graduação em Direito pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte - UFRN (2010) e, atualmente, é discente do Mestrado em Direito Constitucional
e da Graduação em Gestão de Políticas Públicas, ambos os cursos oferecidos pela UFRN. Tem experiência na
área de Direito, com ênfase em Análise Econômica do Direito e Direito Administrativo. E-mail:
<[email protected]>.
2
Especialista e Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e
Bolsista do Programa Petrobras de Formação de Recursos Humanos PRH-ANP nº 36. E-mail:
<[email protected]>.
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importance of an emphatic response of the government to organized crime, through an
effective penal tutelage that does not refer to an unchecked expansion of criminal law, but
revisits its institutes towards more satisfactory results. Discusses the need for international
cooperation in fighting financial crimes, especially crimes of tax evasion and money
laundering, for they reverberate strongly in the weakening of organized crime, hindering the
financing of their illicit activities. Highlights that criminal law requires a third and fourth gear
aimed at the protection of an international order to secure political, social and mercantile
relations, strongly threatened by criminal organizations. States that, within this context, the
principle of complementarity should be observed as it plays an important role in defining the
limits of public international jurisdiction, preserving the sovereignty of each particular state.
KEYWORDS: International Juridical Cooperation; Transnational Organized Crime;
Financial Order.
1. INTRODUÇÃO
A tutela da ordem financeira no ordenamento jurídico brasileiro é estruturada desde a
Constituição Federal até um complexo sistema normativo infraconstitucional, que contempla
uma gama de prescrições normativas administrativas e penais.
Com relação à tutela penal, releva-se a importância da proteção do Sistema
Financeiro Nacional (SFN), com destaque para os delitos de lavagem de dinheiro e evasão de
divisas, mais recorrentes e de maior potencial ofensivo, sobretudo por estarem normalmente
associados ao crime organizado.
As organizações criminosas costumam valer-se de mecanismos de lavagem de
capital para financiar suas atividades ilícitas fins, razão pela qual as políticas de repressão a
tais estruturas obtêm maior sucesso ao buscar identificar e combater essas manobras
financeiras, muitas vezes realizadas em caráter transnacional.
Definida a problemática em análise, o presente trabalho será desenvolvido
utilizando-se do método dedutivo-analítico, por meio de pesquisa bibliográfica em obras
acadêmicas consagradas e de vanguarda, tanto de repercussão nacional como internacional.
No tocante aos objetivos, propõe-se a realizar, uma análise conjunta dos crimes
financeiros e da criminalidade organizada, inseridos dentro de um contexto globalizado, onde
os mecanismos de combate domésticos são ineficientes, o que torna imprescindível a
Cooperação Jurídica Internacional.
Para tanto, inicialmente serão empreendidas algumas considerações gerais acerca da
ordem financeira brasileira a fim de trabalhar a tutela penal do SFN. Em seguida, proceder-seá a uma interseção entre os crimes de evasão de divisas, lavagem de dinheiro e quadrilha ou
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 15 - Direito Internacional
bando, destacando-se as inovações trazidas pelas Leis Federais n.º 9.034, de 3 de maio de
1995, e n.º 9.613, de 3 de março de 1998.
Em um momento posterior, o trabalho passará a abordar a importância da cooperação
técnico-jurídica internacional no combate aos crimes financeiros praticados por organizações
criminosas transnacionais, mediante um estudo sintético de tratados e compromissos bilaterais
e multilaterais firmados pelo Estado Brasileiro, ao passo que suscita a inevitabilidade da
migração de uma parcela do sistema cooperativo penal (Direito Internacional Privado) para a
internacionalização do Direito Penal propriamente dita, por intermédio de organismos
internacionais de jurisdição criminal mais ampla (Direito Internacional Público).
Por fim, os princípios da complementaridade e soberania serão apontados no
contexto do Estatuto de Roma a fim de se chegar ao debate sobre a necessidade de um Direito
Penal de terceira ou até de quarta velocidade que contemple uma estrutura de jurisdição
internacional legitimada para processar e julgar organizações criminosas transnacionais,
sobretudo no âmbito do sistema financeiro.
2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A ORDEM FINANCEIRA BRASILEIRA
A Constituição de 1988 inovou ao trazer capítulo destinado exclusivamente a
disciplinar o Sistema Financeiro Nacional (SFN), ao passo que as cartas políticas anteriores
relegaram a matéria à legislação infraconstitucional tão somente.
O novo contexto jurídico-constitucional confere demasiada importância às atividades
econômicas e financeiras próprias do segundo setor (Mercado) por atribuir-lhes uma estrutura
de comandos constitucionais norteadores da intervenção do Estado em tais searas, o que
enseja uma ordem favorável ao desenvolvimento social e econômico do país de forma
harmônica.
Não obstante, NASCIMENTO (1999, p. 139), sustenta que “na Constituição estão
explicitados apenas a diretriz e os princípios que devem nortear o legislador na construção do
novo sistema (...)”. Mais adiante, complementa:
Mesmo assim, a Constituição da República dedica capítulo específico ao sistema
financeiro nacional, que contempla as instituições que participam diretamente das
operações realizadas nos mercados financeiros e de capitais, cumprindo destacar
dentre elas: a) captação, intermediação ou custódia de ativos financeiros ou de
divisas; b) prestação de garantias de que cuida o item anterior; c) criação de meios
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de pagamento ou regulação, fiscalização e controle das atividades aqui referidas.
(NASCIMENTO, 1999, p. 139)
Trata-se do Título VII da Constituição da República, o qual estabelece princípios e
regras que regem a Ordem Econômica e Financeira do Estado brasileiro, cabendo ao
correspondente Capítulo IV, precisamente no art. 192 (Emenda Constitucional n.º 40, de
2003), dispor sobre o SFN. Segue o dispositivo:
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o
desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em
todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será
regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do
capital estrangeiro nas instituições que o integram. (BRASIL, 2011).
Depreende-se dessa estrutura normativa os princípios constitucionais do (i)
desenvolvimento equilibrado do País, da (ii) supremacia dos interesses da coletividade e dos
(iii) limites à participação do capital estrangeiro,3 os quais funcionam como os fins e as
arestas a ser observados pelos órgãos e entidades que compõem o SFN.4
3. TUTELA PENAL DA ORDEM FINANCEIRA
A própria Constituição Federal prescreve a necessidade de lei para dispor sobre a
responsabilização ampla das pessoas jurídicas integrantes do SFN, bem como de seus
dirigentes, com relação aos atos danosos contra a ordem financeira e econômica do País.
Trata-se do art. 173, § 5º, cujo teor firma pressuposto para os atos normativos
infraconstitucionais que tipificam condutas delituosas contra tal bem jurídico difuso:
Art. 173. (...)
(...)
§ 5º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa
jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis
com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e
contra a economia popular. (BRASIL, 2011).
3
“São importantes o sentido e os objetivos que a Constituição imputou ao Sistema Financeiro Nacional, ao
estabelecer que ele será “estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos
interesses da coletividades’, de sorte que as instituições financeiras privadas ficam, assim, também, e de modo
muito preciso, vinculadas ao cumprimento de funções sociais bem caracterizadas”. (SILVA, 2008, p. 754)
4
Segundo NASCIMENTO (1999, p. 141), “o Sistema Financeiro Nacional é integrado pelos Órgãos, a saber: a)
Conselho Monetário Nacional; b) Banco Central do Brasil; c) Banco do Brasil S/A; d) Banco de
Desenvolvimento Econômico e Social; e) demais instituições financeiras públicas e privadas”.
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Para ARAÚJO JÚNIOR (1995, p. 144-145), os crimes contra a ordem financeira
geralmente enquadram-se em um dos seguintes perfis: (i) crimes contra a organização do
sistema financeiro; (ii) crimes contra a regularidade dos instrumentos financeiros; (iii) crimes
contra a confiança no sistema financeiro; e (iv) crimes contra a segurança dos negócios
financeiros.
Os delitos financeiros, segundo ARAÚJO JÚNIOR (1995, p. 175-178), “estão
incluídos no Direito Penal Econômico, que é o ramo do Direito Penal que se destina a
sancionar com uma pena as graves violações à ordem econômica”.
3.1. CRIMES EM ESPÉCIE CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO
A legislação infraconstitucional contém uma série de diplomas que tutelam
criminalmente a segurança do sistema financeiro como bem jurídico difuso. Consubstanciam
um micro-sistema normativo penal que permeia atos normativos de caráter processual penal,
bem como tratados internacionais incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro.
Nessa perspectiva, deve-se apontar os seguintes diplomas que se encaixam na
r
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