A EDUCAÇÃO ESCOLAR E A CULTURA DOS INSTRUMENTOS DISCIPLINARES. Caroline Martello1 Resumo: A carteira escolar como instrumento disciplinar começa a ser utilizada na Região do Alto Vale do Rio do Peixe em meados de 1930, quando instala-se dois colégios na região. Dessa forma, nos seus variados instrumentos, a educação escolar em Caçador marcou uma época de progresso. O Museu Histórico e Antropológico da Região do Contestado no seu papel de salvaguarda e comunicação expõe uma dessas carteiras escolares duplas, tendo espaço para a pesquisa museológica que juntos formam o tripé da museologia dentro das instituições museológicas. Diante das perspectivas que a carteira representa para o contexto educacional, este artigo tece considerações sobre a cultura disciplinar implícita em seu uso, configurando uma análise da realidade mediante os recursos criados no decorrer da história educativa. Palavras Chaves: Cultura disciplinar. Educação. Carteira Escolar. Pesquisa Museológica. INTRODUÇÃO “A vida só é possível se reinventada” (Cecília Benevides de Carvalho Meirelles) O presente artigo aborda a carteira escolar como objeto de pesquisa museológica. Iniciando o texto, a partir do principio e do surgimento do primeiro núcleo escolar na região, mais precisamente na cidade de Caçador, região meio-oeste do Estado de Santa Catarina. A constituição do referido núcleo viabilizou-se na década de 30 a instalação efetiva de dois ginásios na cidade, assim a migração de crianças e jovens do interior para o centro interessados em uma educação escolar tornase freqüente, logo Caçador vira pólo em educação. Para tanto, métodos e normas eram criados e seguidos dentro das instituições educacionais para que Caçador cada vez mais crescesse em torno da educação. O mobiliário, por exemplo, era disposto dentro de uma reforma escolar do ano 1911 que seguia um designer tosco e desconfortável: Caroline Martello, acadêmica da 5ª fase de Bacharelado em Museologia pela Fundação Educacional Barriga Verde. 1 A organização da “escola moderna” apoiava-se nos itens seguintes: Prédio Escolar, Mobília Escolar, Material Escolar, Livros Didáticos, Disciplina, Ensino e Programa. O ordenamento adequado de todos eles garantiria uma escola primária eficaz e de qualidade. (NOBREGA, p. 02) Tentando entender aspectos da vida educacional do município, optouse na análise do uso da carteira escolar pelas alunas do Ginásio Nossa Senhora Aparecida, inaugurado em 1936, e que hoje se encontra exposta no Museu Histórico e Antropológico da Região do Contestado, esta carteira foi escolhida dentre tantos objetos para ser fonte de pesquisa e relatos. A pesquisa justifica-se pela significação histórica escondida atrás de símbolos, neste caso a carteira, representa traços culturais remontando formas de vidas e fornecendo mediante a pesquisa museológica, subsídios imprescindíveis para a compreensão da organização social e, em decorrência, da organização educacional. Engana-se quem pensa que a pesquisa museológica é a que alimenta a ficha técnica. Não é. Mas é nela, na ficha, e na base de dados, que nasce a pesquisa museológica. Porque essa pesquisa parte do objeto catalogado para ampliar o conhecimento sobre a sua inserção no mundo. Por meio dela passamos a observar cada objeto por seus múltiplos aspectos. (REIS, 1993, p. 01) Para tal pesquisa foi utilizado o método histórico, com abordagem qualitativa através da técnica de entrevista oral. Partindo do princípio de que as atuais formas de vida social, as instituições e os costumes têm origem no passado, é importante pesquisar suas raízes, para compreender sua natureza e função. Assim, o método histórico consiste em investigar acontecimentos, processos e instituições do passado para verificar sua influência na sociedade de hoje, pois as instituições alcançaram sua forma atual por meio de alterações de suas partes componentes, ao longo do tempo, influenciadas pelo contexto cultural particular de cada época. Seu estudo para uma melhor compreensão do papel que atualmente desempenham na sociedade, deve remontar aos períodos de sua formação e de sua modificação (LAKATOS; MARCONI, 2004, p. 91) O mesmo objeto visto por pessoas diferentes, em épocas e espaços diferentes, gerará sempre interpretações diferentes. Essa leitura dos objetos estará sempre ligada ao ambiente dos museus, instituição que tem como função conservar e estudar os produtos materiais e imateriais do saber humano. A Educação no Vale do Rio do Peixe e no Estado Os fatos históricos comprovam que o Vale do Rio do Peixe foi um dos mais prejudicados com os reflexos da Guerra do Contestado2 . Só a partir de 1928 (quase 12 anos após o final do conflito) é que se sente a necessidade de uma alfabetização na região, a partir disso instala-se na cidade de Caçador a primeira escola da região meio-oeste do estado de Santa Catarina, o conhecido “Colégio Aurora”, ficando a responsabilidade para dois imigrantes italianos: Dante Mosconi e sua esposa Albina Mosconi. Em São Paulo, o casal começou o aprendizado da língua portuguesa, mas não conseguiu entrosamento com a colônia italiana local (THOMÉ Nilson, 1993). Decidiu partir e a escolha recaiu no Rio Grande do Sul, seguindo os dois para a cidade de Sarandi. No ano de 1924, resolveram se mudar para Passo Fundo, onde Albina lecionou Matemática e Francês no colégio dos Irmãos Maristas, enquanto Dante trabalhava em projetos e construções, inclusive no Departamento de Engenharia da Prefeitura Municipal. Naquele tempo, a Companhia Estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande e diversas empresas particulares estavam colonizando as terras desocupadas pelo governo devido a construção da ferrovia e ainda iniciava-se a formação de diversos povoados junto a algumas estações ao longo do Vale do Rio do Peixe pelos operários da estrada. No antigo território do Contestado estavam se instalando centenas de famílias de imigrantes e seus descendentes, na maioria egressos das colônias velhas do Rio Grande do Sul. 2 A Guerra do Contestado foi um conflito armado entre a população cabocla e os representantes do poder estadual e federal brasileiro travado entre outubro de 1912 a agosto de 1916, numa região rica em erva-mate e madeira pretendida pelos Estados do Paraná e Santa Catarina. A Guerra do Contestado teve origem em conflitos sociais, frutos de desmandos, em especial no tocante à regularização da posse de terras por parte dos caboclos. Representando, ao mesmo tempo, a insatisfação da população com sua situação material, o conflito era permeado pelo fanatismo religioso, expresso pelo messianismo e pela crença, por parte dos caboclos revoltados, de que se tratava de uma guerra santa. Num dia qualquer do ano de 1928, aportou na estação ferroviária o cidadão Dante Mosconi, vindo de Passo Fundo para conhecer melhor esta região, atraído pelas maravilhas a ele contadas por Leônidas Coelho de Souza numa viagem de trem, “que o convenceu a ficar em Caçador, onde se lutava ativamente para a criação do Município, no lugar de grande futuro, com população crescente em ritmo acelerado, mas absolutamente carente de escolas, médicos, paróquia, etc., assim como de homens de espírito de grandes iniciativas para promover o seu progresso” (THOMÉ Nilson, 1993). Depois de uma longa conversa, surge a possibilidade da fixação de Dante Mosconi em Caçador, onde poderia desenvolver suas atividades na construção civil, adicionada ao vasto e promissor campo de trabalho para sua esposa no magistério. Já em 1934, Caçador alcançou sua emancipação política, tornando-se referência em educação no oeste do estado, colonos do interior migravam para o centro atrás de estudo digno para seus filhos e “muitas famílias do Rio Grande do Sul buscavam o futuro no Vale do Rio do Peixe” (THOMÉ Nilson, 1993). Logo a necessidade de criar um internato não foi dispensada. E para somar a educação na época através dos padres da Paróquia São Francisco de Assis foi contactada a congregação das irmãs de São José, com sede em Curitiba – Paraná, para instalarem na cidade um outro estabelecimento educacional, desta forma em 1936 é inaugurado o Ginásio Nossa Senhora Aparecida. REGULAMENTAÇÃO EDUCACIONAL No início da República, São Paulo dá início a um processo de modernização de sua instrução pública primária que repercutiria em outros estados brasileiros (TANURI, 1970). Esta reorganização da escola primária pressupunha a uniformização e seriação dos conteúdos, distribuídos racionalmente no tempo de curso, e uma homogeneização dos grupos de alunos de modo que em cada grupo todos estivessem dentro de um mesmo grau de desenvolvimento escolar e sujeitos ao ensino simultâneo. E ainda, a adoção de determinado método de ensino – lastreado em certa concepção de conhecimento, de homem, de sociedade: liberal e positivista – chamado “método intuitivo” ou “lição de coisas”. No Brasil, inicialmente em São Paulo, deu-se este tipo de organização escolar graduada que foi nomeada Grupo Escolar, expressando o processo pelo qual foram criadas: reunião ou agrupamento de escolas primárias preexistentes em determinada localidade, sob novo prédio. (SOUZA, 1998) A Reforma Escolar no Estado de Santa Catarina elaborada no governo de Vidal Ramos em 1911 e inspecionada no estado de Santa Catarina por Orestes de Oliveira Guimarães, foi sentida na construção dos dois Ginásios que surgiam em Caçador nos anos 30. A primeira delas foi à separação de gêneros a partir da quarta série: No primário, no ensino primário da época, que era de primeira a quarta série de hoje, ali era junto, depois os meninos não podiam mais estudar no Colégio Nossa Senhora Aparecida, então os meninos iam para o Colégio Aurora Marista e as meninas ficavam no Aparecida, daí elas seguiam após o primário, veja bem como é, tinha o primário de uma a quarta série e tinha o ginásio (THOMÉ, Nilson, entrevistado). Outra novidade incorporada à estrutura do prédio, mas que, como as demais, tinham um fim pedagógico, foram os quadros negros. Em 1909, Guimarães assim se referia a eles: Foram construídos quadros negros corridos nas paredes de todas as classes. Este último melhoramento é um dos melhores introduzidos, pois facilita muitíssimo o ensino de todas as matérias, principalmente aqueles que dependerem do processo tabulário (GUIMARÃES, 1909, p.15). Não obstante a isso, a introdução da carteira escolar dupla era encarada como forma disciplinadora e punitiva aos alunos que de alguma forma ultrapassassem os limites estabelecidos pelo professor. Essas carteiras eram usadas, lá ainda, dentro de uma determinação que eu não consegui encontrar o regulamento original, mas que determinava que os alunos devessem sentar em duplas, dois a dois, por isso que as carteiras não eram individuais, eram para dois alunos. (THOMÉ, Nilson, entrevistado). PESQUISA MUSEOLÓGICA - A CARTEIRA ESCOLAR Vivemos no “tempo dos objetos”. No passado, não muito distante, havia uma perenidade que hoje não se vê: os objetos viam o nascimento e a morte de gerações humanas. Atualmente, são os homens que assistem ao início e ao fim dos objetos (RAMOS, 2004, p. 67) É nesse contexto que os museus entram como espaços que ancoram determinados significados e valores, tanto valores de exposição, quanto de valores de culto, como diria Walter Benjamin. Nos museus esses significados são partilhados por um conjunto maior de pessoas. E é através da pesquisa museológica que o museu e o objeto dialogam. E esse dialogo resulta em uma interação com o visitante. Os museus também são casas de comunicação e de investigação. Em meu entendimento um museu só se completa quando desenvolve essas funções básicas. Assim, como estou tentando deixar claro, considero a pesquisa como uma das funções do museu. Estou ciente de que em alguns casos essa função não esta presente ou, na melhor das hipóteses, esta “relegada para um segundo ou terceiro plano”. (CHAGAS, 2005, p. 59) Desta forma para chegar ao resultado deste artigo a entrevista oral foi utilizada de maneira a aproximar o objeto de seu contexto. A história oral preocupa-se com o que é importante e significativo para a compreensão de determinada sociedade. Esse levantamento, realizado por meio mecânicos ou manuais, tem como finalidade preservar as fontes pessoais, obtendo dados que podem preencher lacunas em documentos escritos, registrando, inclusive, a linguagem, os sotaques, as inflexões, até mesmo as entonações dos entrevistados. Tudo o que se pode coletar sobre o passado de certos indivíduos, suas opiniões e maneiras de pensar e agir, procurando captar principalmente dados desconhecidos (MARCONI e LAKATOS, 2005, p. 61) A carteira escolar em suas diferentes faces trouxe a compreensão de uma determinada época, participou da vida de diferentes pessoas, carregando em si histórias de felicidade, educação, sofrimento e disciplina. Pois é, a carteira escolar especificadamente estava dentro de uma sala de aula, então você imagine que numa sala de aula que na época era uma base de trinta, quarenta alunos, né?! De 1936, isso funcionou até 1970, digamos trinta e cinco anos, trinta e cinco turmas de entorno a quarenta á cinqüenta alunos cada uma. Quantas pessoas do ano inteiro sentaram obtendo a instrução, a educação, a parte familiar, era muito interessante, era uma educação rígida. (THOMÉ, Nilson, entrevistado). De outra maneira o uso desta carteira, levava intencionalmente ou não a exclusão das crianças com alguma deficiência motora, ou até mesmo de aprendizagem. O professor instruído para tal ação, fazia com que o aluno mais desobediente senta-se ao lado do que tinha mais dificuldades de aprendizagem, criando uma ação constrangedora para ambos os alunos. Seu designer desconfortável – com tábuas intercaladas e as costas de um servindo com mesa para o de trás, era para muitas crianças a forma mais bela do contato com um novo mundo, com seu futuro e com uma vida próspera. De maneira geral esta carteira de imbuia remonta um cenário, de pleno desenvolvimento econômico da região através das madeireiras que se instalavam cada vez com mais freqüência pela grande quantidade de mata existente por ali. Famílias se deslocavam de diversos lugares, atrás de melhores condições de vida depois de um dos mais sangrentos conflitos que aconteceu na região oeste. A população se vê salva e acolhida pelas instituições educacionais que surgiam. Em 1970, o Colégio Nossa Senhora Aparecida sofre uma mudança administrativa e a Fundação Educacional do Alto Vale do Rio do Peixe, atual Universidade do Contestado assume a sua administração e reformulam novas práticas de ensino, descartando o que era utilizado pelas irmãs, inclusive as carteiras que foram preservadas por um antigo aluno que relata: ... por que nem o colégio aurora preservo, nem ninguém tem dessas carteiras e seu pudesse eu teria preservado mais, não deu tempo hábil de eu pegar tudo que precisava. E depois se levo muita coisa embora para Curitiba também, quando as irmãs foram elas levaram junto... (THOMÉ, Nilson, entrevistado). CONCLUSÃO A vinda de algumas irmãs da Sociedade Beneficente CaritativaCongregação das Irmãs de São José para a administração do Ginásio Nossa Senhora Aparecida, trouxe novos conceitos e novas formas de disciplinas para as meninas que pretendiam estudar nesse colégio. A carteira escolar era mais um instrumento educacional utilizado de forma disciplinadora e comportamental. A mesma funcionava com a caneta bico de pena, com o nanquim, com o papel, porém assume fundamental importância quanto a caracterização de uma vida escolar promissora, como foi a de Caçador. Concluindo este artigo percebe-se a gama de informações que se pode relatar através da pesquisa do objeto. Visitar museu proporciona milhares de sensações, mas a mais preciosa é quando descobrimos a nossa verdadeira história. Essa história que reflete na memória das diferentes pessoas e que se vê exposta nos museus pode ser dita como uma grande “vitrine de memórias”. REFERENCIAS LAKATOS, Eva Maria;MARCONI, Marina Andrade. Metodologia Cientifica – 4. ed. – São Paulo : Atlas, 2004. RAMOS, Francisco Regis Lopes. A Danação do Objeto: o museu no ensino de história – 1ª edição – Chapecó : Argos, 2004. GRANATO, M; SANTOS,C.P. MAST Colloquia. Vol.7 Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciência Afins, 2005.100 p. TANURI, L. M. Contribuição Para o Estudo da Escola Normal no Brasil. In: Centro Regional de Pesquisas Educacionais - CRPEP- Prof. Queiroz Filho. São Paulo, n. 13, 1970. Internet: THOMÉ, Nilson. História da Instituição Escolar “Colégio Aurora”, de Caçador. (SC) – acessado em 15/07/2008 – Disponível em: http://www.cdr.unc.br/PG/layoutNovo/edicoes/numeroquinze/ColegioAurora.pdf THOMÉ, Nilson. A Nacionalização do Ensino no Contestado, Centro-Oeste de Santa Catarina, na primeira metade do século XX. – acessado em 16/07/08 – Disponível em: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_frames/artigo_087.html NÓBREGA. de Paulo. ORESTES GUIMARÃES E AS QUESTÕES EDUCACIONAIS DE SUA ÉPOCA: da Direção do Colégio Municipal de Joinville à Reforma do Ensino Catarinense de 1911. – acessado em 16/07/2008 - Disponível em: http://www.anped.org.br/reunioes/24/P0291926962769.DOC REIS, Claudia Barbosa. 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