1 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS Joyce Louback Lourenço1 RESUMO O presente trabalho deseja construir uma perspectiva acerca das tendências dos movimentos e mobilizações sociais organizados na América Latina contemporânea, e as considerações da teoria social aos novos sujeitos sociais emergentes. Para tanto, abordaremos as trajetórias boliviana e argentina, as quais nos informam sobre algumas das principais formas de ação coletiva engendradas após os avanços do neoliberalismo no subcontinente. Ademais, são enfocadas leituras de tal processo, elaboradas por algumas correntes da teoria social contemporânea, as quais contribuem para a formulação de uma interpretação mais próxima ao contexto latino-americano atual. Pretendemos, desta forma, apontar alguns dos principais desafios colocados às Ciências Sociais do subcontinente, a partir da observação de um dos fatores mais significativos para as transformações dos países da região. PALAVRAS-CHAVE: América Latina; Teoria social; Movimentos sociais; Neoliberalismo. 1. INTRODUÇÃO A América Latina assistiu, nas últimas décadas, a uma renovação dos movimentos sociais, processo que resultou no protagonismo de diversos setores populares e na reorganização da vida política e social de alguns países da região. Tal processo insere-se em um quadro geral marcado tanto pelo triunfo do modelo neoliberal quanto pela complexificação da modernidade, em cuja fase atual nota-se uma importante tendência à pluralização da vida social, fator que favorece a propulsão de novas forças populares na condução de um projeto democrático, no qual a cidadania e obtenção de direitos tornam-se centrais. Inaugura-se um importante ciclo de mobilizações sociais, que colocam em sua pauta reivindicatória não apenas o “direito a ter direitos”, mas também a afirmação de novos laços de pertencimento territorial, étnico, de raça, gênero, etc., além da luta pela garantia de autonomia frente ao Estado e às imposições do mercado. Ademais, o debate em questão inclui definitivamente as novas relações estabelecidas entre Estado e sociedade civil, as quais são redefinidas a partir dos movimentos e mobilizações populares no subcontinente. CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. 2 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS Desenha-se, interessante portanto, dinâmica uma do movimento indígena na Bolívia e as de diferentes vias de mobilização social aprofundamento da democracia, que oriundas interferiu trajetória bastante eficazes para a percepção das latino-americana nas últimas décadas, transformações na “política de direitos” por meio da organização de uma (DELAMATA, 2009) e na revitalização resistência da da criação diretamente na anti-sistêmica, além na Argentina, cidadania, exemplos proporcionadas, em de novos espaços de grande medida, pelo deslocamento dos participação. Desta maneira, a “lugares da política”, antes confinados à que esfera estatal, para a sociedade civil. formulação de alternativas transcendam os limites impostos pelo Interessa-nos saber paradigma neoliberal desponta como experiências coletivas um importante fenômeno, que revela a conseguiram profundidade da crise social enfrentada dispersas, por meio da reclamação pela pelo subcontinente, assim como os concessão de direitos até então negados rearranjos possíveis, a alguns setores da população. Assim mediante a abertura à pluralização e sendo, entendemos que os antagonismos heterogeneidade das identidades sociais. sociais e políticos na atualidade são O objetivo deste trabalho é enfrentados através da projeção de societários compreender articular populares demandas novos sujeitos sociais que certamente emergência dos novos movimentos avançaram no sentido da construção de sociais Latina novas formas de direção política e contemporânea, seus variados aspectos ideológica da luta anti-sistêmica, além e peculiaridades, estabelecendo um de provocarem alterações, ainda que diálogo com as interpretações da teoria moleculares, na estrutura social. O social. Pretendemos analisar o escopo debate gerado tanto pela construção da das mudanças operadas pela ação de tais identidade movimentos e mobilizações sociais no movimento que deu origem a um amplo contexto regional e, sobretudo, no que processo tange institucional ao fenômeno e tais da na o como América aprofundamento da indígena de na Bolívia reforma , quanto políticopela democracia. Para tanto, escolhemos “protestasocial” argentina organizada como casos fundamentais a organização contra os abusos do mercado, e as CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. 3 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS consequentes perdas sociais resultantes teoria social crítica elaborada na região. do esgotamento do modelo neoliberal Nossa análise deseja construir, portanto, nos interessa em grande medida, uma uma perspectiva que consiga articular vez a tais dimensões interpretativas e, por profundidade e a importância da forma fim, colabore para o entendimento do de fazer política às margens do Estado. atual ciclo político em curso na América que põe em manifesto Se o que caracteriza o momento Latina. histórico atual do subcontinente é a Além da análise dos casos interação entre tradição e modernidade, boliviano e argentino, estabelecemos percebida como um dos eixos principais deste pelo resgate da ancestralidade, através da afirmação de trabalho identidades elementos que possam contribuir para a étnicas, valores a indicação de alguns de elaboração de uma teoria social latino- solidariedade, nos perguntamos: em que americana, mais adequada aos desafios medida o processo de ampliação dos enfrentados pela região. A partir dos mecanismos democráticos e as inúmeras compromissos alterações no cenário social decorrentes enunciados, conduziremos nossa análise deste movimento colaboram para um tentando oferecer uma leitura geral dos processo de ruptura com as práticas e movimentos e mobilizações sociais na instituições vigentes? Quais seriam os América Latina contemporânea, por ganhos pelos meio de uma orientação que estabelece movimentos de emancipação social nos as diferenças entre a realidade local e as países em questão, e na região de modo perspectivas geral, tendo em vista as limitações teoria social, com frequência, utilizadas estruturais das investidas capitaneadas no tratamento da questão. Deste modo, pelas forças populares no enfrentamento a análise dos fatos combina-se a uma da no crítica aos modelos epistemológicos subcontinente? A proposição de tais vigentes, e a construção de um estudo perguntas nos leva à consideração das igualmente crítico da trajetória latino- imbricações desta discussão tanto com o americana, debate que envolve a esquerda latino- projetos emancipatórios engendrados americana nos países citados. comunitários e novas reais alcançados hegemonia e formas seus contemporaneidade, neoliberal propósitos quanto com na e pressupostos clássicas através do legadas pela exame a CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. dos 4 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS muitas vezes não solucionados através 2. BOLÍVIA, ARGENTINA E A TEORIA SOCIAL CONTEMPORÂNEA O indígena estudo do bolivianoe das movimento da aplicação integral de seus conceitos. Torna-se, pois, indispensável olharmos para os limites e proposições dos elementos consagrados pela teoria principais social crítica, com o propósito de expressões da ação coletiva argentina desvendar os diversos aspectos que nos oferece um quadro geral dos compõem movimentos populares organizados na enredam os novos sujeitos políticos da América Latina nos quais permitem a contemporaneidade. compreensão de questões referentes à avaliação conjuntura política e social dos países concernentes estudados, além de nos conduzir a um bolivianos e argentinos, pretendemos debate de natureza teórica, fundamental avançar em direção a uma reflexão cujo para os objetivos perseguidos. Nossa objetivo é colaborar para a formulação realidade impõe desafios às teorias de uma teoria crítica dos movimentos clássicas e, por isso, exige um tipo de sociais latino-americanos, a partir dos orientação mais preocupada com a pressupostos da nossa própria realidade. problemática que envolve as relações Nesta seção desejamos construir atuais entre Estado e sociedade civil e, uma análise acerca do nosso objeto de da mesma forma, as mobilizações estudo, a partir de algumas abordagens sociais propriamente ditas. fundamentais. A primeira delas retoma as dos tramas sociais Para além problemas aos que da práticos movimentos Partimos da ideia de que as uma discussão iniciada no início deste análises das mobilizações coletivas trabalho ao mobilizar as contribuições latino-americanas de pensadores como Daniel Bensaïd representam uma tendência que se insere em um contexto (2008), autor ideológico e teórico até então clivado identificam-se com a tradição marxista, fundamentalmente pelas categorias de e são dedicados tanto à reflexão das análise marxistas. As ações coletivas transformações desenham um horizonte em que os hegemonia do capital na modernidade, debates tradicionais se deparam com quanto uma realidade particular, dotada de uma revolucionário dinâmica própria, a qual impõe desafios mobilizações populares em curso na à cujos trabalhos provocadas avaliação dos do pela potencial movimentos CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. e 5 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS contemporaneidade – o que inclui, “novo bloco de forças progressistas” necessariamente, os movimentos sociais (SADER, 2009, p. 173) forjaram um latino-americanos. ciclo de mobilizações, que agora se Ademais, o estudo de John Holloway (2003) nos transformou fornece construção importantes subsídios para o tratamento neoliberal. em de dilema um quanto projeto à pós- do tema referente à conquista do poder Após o mapeamento das teorias político pelos movimentos, apontado que tratam das questões relativas à como o elemento central para a crítica ao capitalismo e à luta anti- transformação radical da sociedade. Tal sistêmica, passaremos à análise dos debate nos auxiliará na reflexão acerca movimentos dos movimentos sociais em destaque argentinos, neste estudo, os quais, cada um a sua problematização dos seus dilemas e maneira, apresentam novas formas de novidades. Os aportes selecionados aqui realizar mudanças e alcançar respostas serão redefinidos à luz da nossa às suas demandas particulares, mesmo a realidade, respeitando os padrões dos partir de processos moleculares, longe fenômenos em debate. Sugerimos, desta de A forma, algumas impressões que se confrontação natural com o debate dirigem a construção de uma análise marxista contemporâneo é interessante, abrangente das mobilizações sociais, a pois revela os limites e novidades de fim de contribuir para a elaboração de ambas as abordagens e ainda fornece uma teoria crítica latino-americana. ambições revolucionárias. sociais tendo bolivianos em vista e a um panorama da discussão acerca das lutas sociais na atualidade. Por fim, sintetizaremos o 2.1. CONSIDERAÇÕES MARXISTAS SOBRE OS DEBATES CONTEMPORÂNEOS argumento de Emir Sader (2009), cujo trabalho enfatiza a trajetória da esquerda A assertiva mudar o mundo sem os tomar o poder1 traduz eficazmente a esforços dos movimentos sociais da tendência contemporânea de recusa ao região na formação de uma resistência conceito clássico de revolução e a anticapitalista. A crise da hegemonia adoção de uma via de resistência à latino-americana, assim como neoliberal e a consequente abertura de 1 um espaço para o aparecimento de um Trata-se do título do livro de John Holloway (2003). CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. 6 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS opressão que não passa necessariamente etc., a precarização do mundo do pela da trabalho, além do aparente esgotamento sociedade, como indica o modelo do sindicalismo como força política marxista de relevante no campo da mobilização mudanças social descortinam um cenário em que a transformação estrutural clássico. A compreendermos as desencadeadas no sociabilidade plano no contemporâneo, algumas fim período revisaremos leituras da luta social cumpre uma função ambígua e limitada. agora elaboradas por Destacamos, ainda, que uma das temáticas frequentes em algumas analistas herdeiros do legado marxista, tendências do pensamento marxista diz as quais revelam como esta vertente da respeito à superação do dilema entre teoria social responde aos processos em partidos políticos e movimentos sociais, curso contemporâneo cujo influxo se nota tanto na teoria (sobretudo, nos contextos periféricos) e, social, quanto no escopo das novas lutas especialmente, às críticas oriundas da sociais organizadas ao redor do mundo. teoria social. Deseja-se que os sujeitos A crise das formas de representação e o sociais excluídos deixem de “negociar enfraquecimento do suas condições de exploração” e se imposição agenda levantem parâmetros estimularam a mobilização de setores democracia importantes e, com isso, um interessante definitivamente processo de reinvenção da democracia, suas demandas e anseios. A atomização através de ações descentralizadas, cujo dos movimentos sociais e a dispersão mote é dar voz a grupos subalternos. As dos campos de luta diversos levam a novas uma do caracterizam-se, pois, pela negação de discurso dominante (BENSAÏD, 2008: possíveis articulações com o Estado, 33), a visando o objetivo da sua afirmação transformação socialista se afirme em como sujeitos autônomos. A construção face de no mundo contra estabelecidos capitalista, pela impondo constante impedindo, da os interiorização portanto, lógica que dominante do um da Estado mobilizações projeto coletivo, pela neoliberal populares contra- capitalismo. O questionamento do papel hegemônico, democrático e, sobretudo, do Estado, o esvaziamento de conceitos plural, está alicerçada na ideia de clássicos “reconhecimento mútuo das pessoas” e, da teoria social, como soberania, território, luta de classes, principalmente, na “dissolução CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. do 7 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS poder” (HOLLOWAY, 2003: 37), uma do pensamento de esquerda nos conduz investida contra as hierarquias que à leitura do processo que envolve o impediam a representação das novas surgimento das lutas anticapitalistas na subjetividades. o América Latina. A crise da hegemonia movimento zapatista no México como o neoliberal na região levou setores “sujeito crítico revolucionário” que sociais de diversos países à organização assume o desafio contemporâneo de e mobilização contra o influxo perverso oferecer um novo modelo de sociedade, do modelo. Tal tendência é denominada a partir da criação de um espaço de por “antipoder”, fora do âmbito estatal, e da neoliberalismo, a qual, apesar de não se rebelião contra a ordem vigente. constituir como uma alternativa bem Hollowayelege Emir Sader como pós- Contrariando o pensamento pós- fundamentada, diz respeito à negação ao moderno de que “a hegemonia não tem paradigma neoliberal e também a “um mais relevância” (EAGLETON, 1998: conjunto 115), compõem as alianças sobre as quais se o recupera marxismo a contemporâneo concepção de que a experiência das lutas deve levar à híbrido de forças que baseiam os novos projetos” (SADER, 2009: 64). formação daquilo que Bensaïd chama A organização de uma resposta à de opção política autêntica, ou seja, degradação cultural, política e social uma articulação social que conduza à provocada pela globalização neoliberal hegemonia, sem que isso implique na se faz dentro dos parâmetros impostos negação do Estado e do poder. Segundo pelo próprio sistema, consistindo em essa vertente, o socialismo ainda figura uma reação à ideologia predominante como o objetivo final, uma alternativa colocando novas questões, até então incontestável, que deve necessariamente compreendidas colocar-se no horizonte dos movimentos clássicas. sociais. identidades não permitem o vazio, pelas Segundo identidades Sader, se “as acabam preenchidas por outras” (Ibid.: 2.2- O PÓS-NEOLIBERALISMO E A NOVA ESQUERDA LATINOAMERICANA 61); e essas, devido a sua fragmentação, impuseram grandes dificuldades à construção de uma força hegemônica A análise dos principais argumentos em que se sustenta a crítica capaz de mudar definitivamente a realidade. Assim sendo, o pós- CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. 8 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS neoliberalismo marca um período de única de ação que se manifesta na afirmação de novos grupos sociais, sem organização dos movimentos sociais que isso resulte necessariamente em através da idéia de autonomia, por uma ruptura radical. exemplo. As novas experiências geradas Ao colocarmos em perspectiva a na América Latina a partir da crise do proposição de Holloway, que enxerga neoliberalismo correspondem a uma virtudes tentativa de resistir e minimizar as movimentos sociais do Estado e da perdas resultantes do momento de esfera instabilidade. Entretanto, Sader nos políticos, indica que, em razão da ofensiva limites do pós-neoliberalismo estão neoliberal, intrinsecamente os movimentos sociais neste de afastamento influência dos compreendemos ligados dos partidos que os a esta insurgentes, assim como as demais tendência, o que coloca em risco seus iniciativas do campo popular, sofrem bons êxitos. Entretanto, de acordo com uma indefinição no que diz respeito às Sader, “‘o outro mundo possível’ só suas políticas, sobretudo se comparadas pode ser criado com novas estruturas de aos de poder, não apenas a partir da resistência participação. A prática dos movimentos, de base” (SADER, 2009:141). Em por vezes, restringiu-se ao plano da outros termos, é fundamental que os denúncia e da ação direta, sem que isso movimentos fujam do isolamento e envolvesse ambições políticas ou um consigam projetar sua luta, de modo a desejo claro pela revolução. A atuação inserir-se dos movimentos esbarrou na presença recuperação e concessão de direitos das ONG’s, atores sociais que se fundamentais caracterizam pela rejeição à política neoliberalismo formal, e que operam junto à sociedade através da implementação de políticas civil, em detrimento de um diálogo governamentais amplo e permanente com a esfera demandas oriundas da sociedade civil estatal. a (Ibid.:142).A composição de governos neoliberalismo ou alternativas pós-neoliberais deve ter hegemônica, em vista não apenas o aparelhamento do organizadora do social, tendo em vista a Estado, mas também sua refundação, imposição “velada” de uma condição tornando-o mecanismos Tal profundidade enquanto tradicionais fenômeno do ideologia revela na esfera política. expropriados um somente que espaço é A pelo possível atendam de as disputa CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. 9 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS legítimo. Através da “democratização” vinculadas ao objeto estudado, sem do Estado, e da “desmercantilização das reproduzirmos relações sociais”, isto é, “tirar da esfera modelos do mercado para transferir para a esfera centrais. Optaremos por uma análise pública à mais abrangente, tributária de uma visão cidadania, substituindo o consumidor que nos aponta os problemas próprios pelo cidadão” (Ibid.:147), é possível do combater o neoliberalismo e chamar à através da confrontação das leituras participação cidadã todos os setores feitas pela teoria crítica, e do alcance sociais, dentro de uma estrutura que prático dos processos em curso aqui contemple descritos. A avaliação do processo de os direitos essenciais plenamente os anseios populares. integralmente importados associativismo das os nações latino-americano, formação dos movimentos sociais aqui trabalhados nos fornece os elementos 2.3. TEORIA CRÍTICA, MOVIMENTOS POPULARES E A NOVA PAISAGEM SOCIAL LATINO-AMERICANA para o debate acerca de sua influência tanto no contexto político, quanto no plano ideológico da América Latina. Faremos uma leitura atenta aos desafios A revisão da crítica elaborada e aos avanços alcançados atingidos no pela teoria crítica às novas formas de caminho em direção à superação do resistência e combate ao capital nos neoliberalismo. oferece um conceitual importante para a arcabouço análise dos Cabe ressaltar que nossa análise dos movimentos e mobilizações sociais movimentos bolivianos e argentinos bolivianos aqui importância trabalhados. pressupostos A legados partir argentinos das raízes destaca a culturais, teorias simbólicas e históricas dos países macroestruturais, desejamos fazer aqui citados no entendimento dos rumos da uma aquelas ação coletiva, e também na formulação teorizações que se baseiam nos debates de uma reflexão teórica mais próxima tradicionais e os dilemas próprios da dos dilemas latino-americanos. Ainda América Latina, os quais, muitas vezes, que não são analisados adequadamente pela diretamente as teorias dos movimentos teoria social crítica. Tentaremos elencar sociais, o estudo de caso desenvolvido algumas coloca-se em franco diálogo com as comparação das pelas dos e entre principais variáveis não tenhamos mobilizado CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. 10 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS interpretações vigentes, na medida em que preconiza os desdobramentos arranjos relativos e ao Cumpre destacar agora a preeminência da questão identitária na aparecimento de novos atores sociais na orientação cena mostra sociais da América Latina. No caso fundamental no nosso estudo é a boliviano, a identidade étnica emerge percepção da recorrência de alguns em caráter definitivo e traz consigo temas e tendências dos movimentos alguns sociais, os quais nos permitem operar para o tratamento do tema. A tentativa em uma linha interpretativa particular. do Estado boliviano em estabelecer uma pública. O que se das novas mobilizações questionamentos importantes Assim, após a definição da identidade nacional homogênea, capaz paisagem intelectual à qual pretendemos de unir todos os grupos étnicos através confrontar nossa análise, esboçaremos da identidade camponesa, deu início a uma leitura dos casos boliviano e um processo em que os sindicatos se argentino, seguindo um caminho que estabeleceram como mediador legítimo compila temas das relações entre esta população e o apresentados pelos movimentos em Estado. É sabido também que tal debate. esforço os principais Trataremos das questões não logrou um resultado separadamente, procurando estabelecer irrestrito, já que abriu espaço para as algum tipo de comparação entre os dois mobilizações indígenas, articuladas em eventos, cujo propósito é definir um torno quadro geral da ação coletiva latino- “reconhecimento estatal da diversidade americana. Entendemos que ambos os étnica” (GUIMARÃES, 2009: 91) e a casos selecionados representam duas participação política, por exemplo. Os tendências presentes em quase todas as valores demais experiências coletivas em curso disseminados na região. rechaçados pelos povos indígenas, que de demandas tipicamente pelo como o modernos Estado foram se levantaram contra a destruição do seu 2.4. PRINCIPAIS TEMAS E DILEMAS PRESENTES NA AÇÃO COLETIVA BOLIVIANA E ARGENTINA passado e a negação de um futuro como sujeitos coletivos autônomos. Concordamos com Domingues (2007) quando afirma que a etnicidade Identidade boliviana não é “folclórica”, na medida CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. 11 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS em que não se afirma baseando-se em plurinacional. traços pré- portanto, com a afirmação de que o modernos (DOMINGUES, 2007: 27). A movimento consiste em uma “mistura ideia aqui entre componentes étnicos e de classe” considerada foi concebida “a partir de (Ibid.: 99) e articula-se de forma a diferentes reunir os setores populares, indígenas e puramente de coloniais, identidade indígena memórias reconstrução da atualização na sociais, história vida da e sua cotidiana, médios Estamos urbanos. de acordo, Segundo García da Linera, esta disposição conciliadora e articulação entre passado e presente, aglutinadora dos interesses presentes no tradição e modernidade, denúncias e país, transforma o processo em curso projetos” (GUIMARÃES, op. cit.: 99). em O encontro das razões modernas com a cultural simbologia ancestral e as formas de descolonizadora” (GARCÍA LINERA, organização do 2006: 31), uma vez que promove constroem uma intervenção social, mundo “arcaico” alternativa sem que uma “revolución democrática revolución democrática o de naturalmente se estrutura do Estado, e da sociedade de preconize um viés ou outro. uma modificação na modo geral. A mobilização dos cocaleros e a A identidade é, de fato, um tema eleição do líder indígena Evo Morales fundamental para o entendimento da nos mostra como a chegada ao poder foi dinâmica da ação coletiva engendrada inserida no horizonte do movimento na América Latina. Quando olhamos indígena para o caso argentino, percebemos que a boliviano, significativamente. transformando-o Guimarães nos reconfiguração das subjetividades alerta que, para o movimento cocalero, contribuiu a organização de novas formas de luta etnicidade tornado-se uma é instrumentalizada, identidade prática, decisivamente empreendidas contra para o a influxo mobilizada com o objetivo de aglutinar neoliberal. Como vimos nas seções os interesses em disputa. O MAS, ao anteriores, a Argentina assistiu a um contrário dos movimentos de corte processo exclusivamente étnico, não evoca temas identidades sociais clássicas, e de uma recorrentes no movimento indígena, consequente pluralização da sua vida como a societária. O surgimento de uma massa Estado de desempregados, muitos dos quais a questão reivindicação por territorial um e de transformação CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. das 12 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS oriundos dos setores médios e o detentoras de demandas variadas e, empobrecimento cada vez maior dos muitas vezes, incompatíveis. Na medida grupos em populares contribuiu para que incorporam projetos que “eldebilitamiento de los mecanismos de contemplam a diversidade dos grupos integración social sobre los marcos de sociais, os movimentos formam sua inteligibilidad social y cultural de identidade política e dirigem sua ação lossujetos” 19), para a realização de objetivos próprios. determinando a configuração única Não há, neste caso, uma identidade pré- assumida pelas mobilizações sociais estabelecida, argentinas. de movimentos de maneira vertical, e sim, “desnaturalização” impõe ao indivíduo uma multiplicidade de interesses que uma nova postura, a qual o obriga a dão origem a uma forma específica de estabelecer uma nova relação com o exercer sua atividade reivindicatória. mundo exterior (Ibid.: 20). Assim, a Compreendemos, assim, que as situação de vulnerabilidade de grande identidades mobilizações são parte da sociedade produziu novas fortalecidas a partir de suas práticas e expressões culturais, subculturais e, sua cultura política é gestada a cada especialmente, políticas, cujos efeitos encontro ou ação conjunta. O embate foram percebidos tanto no âmbito da direto com o “inimigo” a ser combatido, vida cotidiana, quanto nos contornos ou até mesmo as tensões relativas às das novas mobilizações sociais. Prova diferenças da importância deste movimento de membros, reconfiguração configuração (SVAMPA, O 2000: processo identitária é o aparecimento de novas questões, tais que das organiza originárias entre contribuem da os seus para a cosmovisão do movimento. como os temas socioambientais e a formação de novos tipos de militantes, Autonomia X hegemonia como o ativista cultural. Outro fator a ser destacado em relação à importância da identitária para movimentos argentinos diz os respeito questão à Eis outro ponto fundamental para nossa análise. Os diferentes caminhos tomados pelo movimento sua indígena boliviano e pelas lutas sociais configuração e atuação, a partir da argentinas podem ser lidos, entre outros abertura a classes sociais distintas, aspectos, através do dilema que envolve CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. 13 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS a demanda crescente por autonomia, e a dos sindicatos torna-se significativa, luta pela construção de uma hegemonia colocando as ambições por autogestão e política. A resistência anticapitalista auto-representação no centro de sua erguida nos dois países em destaque nos atuação. apresenta como questão essencial o organização autônoma seja fundamental modo ao para a vida das populações indígenas, neoliberalismo colocou-se no campo percebemos que a necessidade da ideológico dos movimentos sociais construção latino-americanos, a fim de resolverem decisiva para a inclusão definitiva desta a crise de hegemonia vigente na região camada social. A sublevação de Evo (SADER, 2009: 140). Morales à presidência do país define a como As a superação mobilizações contra Porém, de ainda uma que hegemonia a é a estratégia da nova esquerda boliviana homogeneização das identidades sociais em direção à constituição de um Estado na Bolívia não se encerraram nas caracterizado pela presença dos setores exigências por reconhecimento jurídico. populares, A chamada “politizaçãodas identidades consolida nas urnas e também no plano étnicas” (DOMINGUES, 2007: 27), ideológico. entre outras coisas, muniu o movimento indígena de ambições política que se LuisTapia (2008) nos ajuda a e compreender a profundidade da questão direcionou suas lutas pela modificação boliviana e a trajetória do país rumo à das formas de participação política. democracia. A experimentação da vida Chegar ao poder e transformar a social, sociedade a partir do aparelhamento (re)arranjos societários articulados “no estatal do subsolo político” (TAPIA, 2008: 85) movimento ao longo de sua trajetória. resultaram na composição de um bloco No final da década de 90, verificamos de que as organizações indígenas assumem nacionalmente, definitivamente tal discurso, e seguem protagonista de um momento político reivindicando a “descolonização do cuja marca é a democratização das Estado” (GUIMARÃES, 2009: 96), instituições assim como a defesa da sua autonomia. participação. O peso dos movimentos A independência dos movimentos em sociais neste processo é imenso, uma relação à tutela dos partidos políticos e vez que sua organização e mobilização tornou-se um políticas, força objetivo assim forças como que os logrou diversos projetar-se tornando-se e das formas CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. o de 14 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS conduziram os setores populares – uma muito povos complexa do que um movimento social. indígenas – à ocupação de postos de Afirma-se no país um tipo de ação poder, além do reconhecimento e política que se organiza a partir de atendimento demandas estruturas tradicionais, não modernas, específicas. Tapia nos fala das formas cujas ambições referem-se a demandas da uma de inclusão e participação nas instâncias diferença fundamental entre o Estado (e de poder, além de uma reforma que as os modifique as condições de exploração movimentos sociais. O primeiro é o vigentes. A articulação dos povos lugar da política moderna, a qual originários se faz, portanto, em relação consagra a reprodução da ordem social, à descolonização das relações entre as enquanto os segundos dedicam-se à comunidades problematização dessa mesma ordem. O modernas, a sociedade dominante, que surgimento subordina especialmente, de política, formas os suas estabelecendo institucionais) de movimentos e sociais configuração mais e as diversa as instituições culturas tradicionais. implica, portanto, na diversificação de Assim, sujeitos políticos e, por isso, desloca o compreensão lugar da política, ao abrir novas políticos na Bolívia atual, é necessário possibilidades de ação. O autor nos ter em conta a ação dos movimentos mostra que contra o argumento do sociais, esse “não lugar” da política, em enfraquecimento e esvaziamento da cujo núcleo se articulam as forças que política está a noção de que os pressionam por mudanças no modelo movimentos sociais promovem uma atual, e pela garantia dos bens e complexificação da vida social, e uma necessidades possibilidade social de reconstrução do entendemos e de que, dos para a desdobramentos básicas setores à reprodução subalternos. A Estado, uma vez que conduzem a conjuntura boliviana atual é, pois, contínuos alinhamentos sociais, tendo entrecortada por um movimento de em vista os sujeitos sociais e políticos descentralização política, baseado na que despontam como reformadores. crítica aos parâmetros políticos liberais, Tapia Bolívia, nos mostra encontramos que, na em exemplos de representativa, e na demanda por maior protesto, rebelião e mobilização social e especial participação e a democracia inclusão, fatores política (Ibid.: 63), os quais possuem CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. 15 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS fundamentais para uma transformação autonomia e profunda do país. movimentos. afastamento A dos organização da A despeito das críticas e dos sociedade civil e a construção de uma problemas que possivelmente surgirão alternativa viável de luta em relação aos da combinação dos interesses classistas partidos que compõem o bloco de forças repercussão, e projetadas nacionalmente, a Bolívia interessante para vive exemplar, sociais de um modo geral. Estamos de sobretudo se considerarmos que, neste acordo com a ideia de que a crítica à momento, democracia uma experiência há uma força política políticos alcança impõe as um dilema mobilizações deliberativa e o população à hegemônica, que opera tanto junto às chamamento bases, quanto em âmbito estatal. Ainda participação social pela via direta, sem é prematuro afirmar se o projeto intermediários, são vitais para o bom étnico/democrático em desenvolvimento andamento do regime democrático e na Bolívia terá “irradiação continental e para a restauração de uma sociedade em mundial” (GARCÍA LINERA, 2006: crise. No entanto, concluímos que o 30), mas há que se considerar sua enfraquecimento da política formal importância para os demais movimentos pode comprometer significativamente sociais da região. Espera-se, portanto, os rumos das lutas sociais naquele país. que se construam alternativas O da grande caso dos movimentos emancipatórias que consigam combinar argentinos é emblemático, haja vista certo grau de institucionalidade com a que seu impasse está na sustentação de manutenção dos “seus círculos locais um discurso anti-institucional, frente à permanentes na vida cotidiana”, além de cooptação “construir pontes com outros contextos, interna dos movimentos esgota suas neste caso, globais” (DOMINGUES, potencialidades, loc.cit.: 229). “refundação do sistema político, que Se, na Bolívia, o movimento estatal. A ao fragmentação impedir a segue congelado na reprodução de um a ‘peronismo infinito’, cujas inclinações – um dúbias, de fato – à esquerda complicam genuíno – e molecular – processo de ainda mais a situação” (DOMINGUES, transformação social, 2007: 35.). A recusa ao poder e às indígena caminhou institucionalização verifica-se uma em e forte direção conduziu na Argentina tendência à formas de participação política CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. 16 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS consagradas representa um recuo relativas às diferenças originárias entre altamente prejudicial para a organização seus membros, contribuem para a dos setores populares argentinos. Ao configuração gritarem “¡que se vayan todos!”, o movimento. movimento piquetero, maior expressão dos movimentos do Os repertórios e discursos das ações coletivas populares analisadas aqui nos manifesta toda a tensão inerente à apresentam uma importante guinada nas prática política não-institucional, cujo lutas sociais da região. O movimento mote é “manter uma suposta ‘pureza’ da piquetero, assim como as assembléias esfera de bairro e o movimento das fábricas diretamente que as do cosmovisão país, social, sociais da representaria ‘bases’ contra as recuperadas propõem a formulação de cúpulas, consideradas automaticamente novas formas de intervenção e ilegítimas como forma de representação enfrentamento do modelo neoliberal. Os política” (SADER, 2009: 146). temas concernentes ao mundo do A superação da dinâmica dos trabalho, antes restritos ao debate partidos políticos e dos sindicatos conduzido pelos partidos de esquerda coloca-se como exigência e orienta os clássicos, são deslocados para o plano movimentos em direção a uma política da sociabilidade e adquirem novas autogestionária. A consciência dos seus significações. A problematização das interesses de condições de trabalho, sem dúvida, foi construir uma alternativa própria, sem a feita alicerçada no repertório herdado outorga pré- dos sindicatos e partidos. Entretanto, determinada, define paulatinamente o construiu-se sob novas bases e formas tipo de intervenção e o repertório de de ação sociais particulares. As atividades dos referidos que movimentos mostram que as demandas incorporam projetos e demandas que por boas condições de trabalho, a contemplam das cobrança pelas perdas dos diretos organizações, a identidade política do laborais e também pelo desemprego movimento é formada, voltando-se para crescente foram articuladas a partir de a realização de objetivos próprios. O arranjos embate direto com o “inimigo” a ser reivindicação combatido, ou até mesmo as tensões participação. Deste modo, entendemos e de dos analisados. a vontade maior uma identidade movimentos Na a medida em diversidade atuação, incorporando próprios, que pelo questões incluem direito CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. a à 17 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS que a crítica a concepção liberal de analisar os pontos em que as lutas locais cidadania reverberação colocam-se na esteira de um processo importante, tão significativa quanto o maior de emancipação dos seus países ideal de construção de uma nova de origem, realçando suas formas de sociedade. organização alcança Entendemos que os movimentos e mobilizações lograram sociais alguns argentinos avanços no estruturas e atuação formais. junto É às importante ressaltar ainda que a América Latina vive um período marcado pela aprofundamento da democracia, mas emergência de governos populares, os seu quais introduzem uma nova agenda afastamento comprometeu das instituições os política e ideológica, que responde resultados do processo em curso. Se, plenamente às vozes emergentes no por um lado, houve uma importante plano transformação no interior da sociedade, reconheçamos a partir do incremento das formas de surgimento de blocos de poder apoiados participação e decisão, por outro, – verificamos que o afastamento dos entendemos que ainda não superamos o setores populares da política formal não neoliberalismo, permitiu vigoroso na maioria dos países e que, que convertessem significativamente tais em resoluções políticas se mais nos e societário. a que importância do – formados casos Ainda o pelas qual boliviano massas, se e mostra argentino, abrangentes, ou na participação da perpetua-se, por exemplo, através da população da esfera estatal. Enquanto a manutenção de sua política macro- Bolívia experimenta um momento de econômica, ou pela cooptação dos reestruturação do Estado e de integração movimentos sociais, implicando no das camadas subalternas da população, retrocesso das lutas políticas. os movimentos argentinos limitaram-se à crítica da visão liberal da cidadania. Concluímos que o dinamismo inovador dos movimentos sociais revela 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS: “A REBELDIA DA REALIDADE CONCRETA CONTRA OS DOGMAS2” limites e lacunas importantes, as quais A avaliação que desenvolvemos devem ser revistas tanto no âmbito das práticas, quanto pela teoria social. Torna-se, portanto, imprescindível ao 2 longo do trabalho inclui SADER, 2009:125. CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. a 18 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS organização dos movimentos sociais na Neste sentido, consideramos que América Latina e, de modo igual, os as experiências dos movimentos sociais termos em que o debate teórico é latino-americanos, em especial aqueles conduzido subcontinente. oriundos nos países aqui trabalhados Reconhecemos a contribuição da teoria são positivas, bem-sucedidas, tendo em crítica, seus conceitos e interpretações vista a execução de um programa que para a construção de uma reflexão privilegia os anseios de grupos até então atenta às transformações da dinâmica sub-representados, o qual que se mostra social Todavia, eficaz no enfrentamento dos problemas pretendemos avançar em alguns pontos colocados por uma conjuntura altamente que consideramos fundamentais, a fim desfavorável. de que não caiamos na armadilha da organização da sociedade civil em reprodução pura e simples de categorias momentos de crise intensa contribui que não contemplam plenamente nossa substancialmente trajetória. Sem incorporar os ideais e aprofundamento objetivos da geração de 68, ou colocar o podendo capacitar os indivíduos para a comunismo como o fim último a ser construção alcançado, conduzimos uma análise autônomos. Vimos, ainda, que, nos cujo as casos estudados, há uma divergência no progressivas que tange à formação de projetos transformações ocorridas na Bolívia e políticos mais sólidos, capazes de na Argentina no campo dos direitos aglutinar as diferentes forças sociais no sociais cidadã. âmbito estatal. Contudo, enxergamos Tencionamos apresentar um balanço das virtudes neste caminho que leva à lutas sociais na América Latina, tendo autonomia dos movimentos. O desafio em vista os contextos específicos de colocado é, de fato, a projeção desses cada país analisado, considerando o movimentos modo como “diferentes temáticas se vigorosas, convirtieron em reclamos públicos y democracia através dos mecanismos de éstos em demandas de ciertosderechos” participação tradicionais, mas também é (DELAMATA, 2009: 21), além de o da resistência às formas de cooptação avaliarmos as respostas estatais a tais do Estado e dos partidos políticos, demandas. fenômeno no na atualidade. propósito fragmentadas, e da foi porém reconhecer participação Entendemos de para da capazes a o democracia, projetos como que que forças de políticos políticas refundar implica CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. a na 19 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS desmobilização e interrupção da marcha em direção a consolidação da democracia nos países da região. Uma discussão fundamental a ser considerada e que dialoga diretamente com os quadros teóricos O movimento indígena boliviano apresentados, diz respeito à centralidade nos mostra como a demanda por do autonomia e afirmação das identidades organização das lutas sociais. Vimos étnicas do aqui uma crítica à fragmentação dos reconhecimento jurídico, e se coloca sujeitos sociais e, em contrapartida, uma como uma força articuladora mais cobrança quanto a uma articulação dos ampla, que passa a exigir, entre outras movimentos em torno dos elementos coisas, a redefinição dos parâmetros da classistas. participação política, fundamental para marxismo contemporâneo nos sugerem os protonacionalismo que “o verdadeiro sujeito político é a indígena. Com efeito, percebemos uma classe operária” e que, portanto, a luta série foge ao rumos de do reducionismo problemas predominância deste debate de esquerda Algumas para vertentes a do vinculados à de classes não se esgotaria diante das tipo de identidades e interesses comunitários reivindicação, muitos deles já listados (BENSAÏD, aqui, mas não desejamos situar nossa interpretativos análise em um polo altamente crítico, marxismo nos apresentam uma análise que identifica na conjuntura atual um do movimento operário atravessado círculo vicioso, eternamente alimentado pelas dicotomias clássicas burguesia- pelas novas estratégias capitalistas, as proletariado, quais não oferecem saída da sua Percebemos, no entanto, que para o condição hegemônica. O caso boliviano estudo dos movimentos sociais mais nos indica que é possível articular uma recentes, plataforma reivindicatória mais ampla, Argentina, é fundamental adaptar tal que pelo tipologia às particularidades de cada identidades organização. O modelo de ação do subalternas, mas que também seja capaz movimento dos desocupados e de de grande contemple reconhecimento incluir a das questões luta pertinentes à 2008). padrões consagrados pelo capital-trabalho, como parte Os os das piqueteros etc. na mobilizações redistribuição material, assim como ao organizadas no país, vimos, possui um plano cultural e simbólico da população caráter pragmático, estratégico, cuja indígena. finalidade é o restabelecimento da CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. 20 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS normalidade, sem que isso importantes, como, por exemplo, a necessariamente envolva um ideal de ampliação dos “não lugares” da política, transformação estrutural. fundamentais para a democratização dos Assim sendo, entendemos que os países da região. movimentos da região, sejam eles mais Ainda que de maneira limitada, articulados ou muito fragmentados, procuramos propositivos ou apenas “de protesto”, questões para a construção de uma não incluem necessariamente em seu teoria crítica mais abrangente dos repertório o anseio pela ruptura radical, movimentos sociais do nosso cenário a qual resultaria em um processo regional. revolucionário, no sentido clássico. O modos de articulação das lutas sociais movimento na atualidade com o pensamento de piquetero é um bom apontar as Decidimos confrontar esquerda, que sua atuação fundamenta-se nos conceitos e parâmetros desta vertente confrontos diretos e na denúncia dos tanto no âmbito da teoria social, quanto altos índices de desemprego, elementos no campo das práticas políticas. Assim que destituem tal grupo de ambições como Svampa, entendemos que se faz revolucionárias. Percebemos, ainda que, necessário no indígena americana a incorporação de um olhar boliviano, há de fato um espaço aberto à regional, sem deixar de atender às politização especificidades do das movimento identidades, mas à à primazia os exemplo desta tendência, na medida em caso devido principais teoria crítica das dos latino- realidades entendemos que isso não está ligado à nacionais, além de colocar em relevo a superação do tema da etnicidade, ou à análise das subjetividades, elementos afirmação de uma ideologia política que revelam a lógica por trás das totalizante. Deste modo, respondemos a múltiplas pergunta inicial acerca do papel dos fenômenos políticos da região. Desta movimentos e mobilizações sociais na forma, a fim de responder as questões instauração de uma nova ordem social relativas concluindo que, na América Latina, subcontinente, nos posicionamos contra observa-se uma tendência à perpetuação os das clivagens de classe, etnia, raça, reducionistas gênero etc (Id., 2009: 197), mas que interpretações fatalistas ou respostas opera prematuras a processos ainda em curso. transformações moleculares facetas à assumidas crise dogmas e, pelos hegemônica no vigentes, leituras sobretudo, àquelas CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013. 21 TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS A elaboração de uma sociologia regional, que observa com minúcias os desdobramentos construção dos de processos uma KEYWORDS: Latin America; Social Theory; Social movements; Neoliberalism. de nova REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS institucionalidade, coloca-se como um importante objetivo para os cientistas sociais do subcontinente, os quais devem assumir a tarefa de pensar criativamente as diversas possibilidades oferecidas pela prática militante e os arranjos societários em constante renovação. ABSTRACT This paper aims to provide a perspective on tendencies of organized social movements and mobilization in contemporary Latin America and an assessment on considerations offered by social theory on new emerging social subjects. For this purpose, Bolivian and Argentinian paths will be analyzed, given they provide valuable information about some of the main forms of collective action engendered after the advance of neoliberalism in the subcontinent. Moreover, we focus on interpretations of this process provided by some trends in contemporary social theory which contribute to the formulation of a closer comprehension to Latin American current context. We intend, thus, to point out some of the main challenges Social Sciences face in the subcontinent, through the analyses of one of the most significant transformation factors observed in Latin American countries. 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