teoria social e américa latina: perspectivas sobre os movimentos

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TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS MOVIMENTOS
SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
Joyce Louback Lourenço1
RESUMO
O presente trabalho deseja construir uma perspectiva acerca das tendências dos movimentos e
mobilizações sociais organizados na América Latina contemporânea, e as considerações da
teoria social aos novos sujeitos sociais emergentes. Para tanto, abordaremos as trajetórias
boliviana e argentina, as quais nos informam sobre algumas das principais formas de ação
coletiva engendradas após os avanços do neoliberalismo no subcontinente. Ademais, são
enfocadas leituras de tal processo, elaboradas por algumas correntes da teoria social
contemporânea, as quais contribuem para a formulação de uma interpretação mais próxima ao
contexto latino-americano atual. Pretendemos, desta forma, apontar alguns dos principais
desafios colocados às Ciências Sociais do subcontinente, a partir da observação de um dos
fatores mais significativos para as transformações dos países da região.
PALAVRAS-CHAVE: América Latina; Teoria social; Movimentos sociais; Neoliberalismo.
1. INTRODUÇÃO
A América Latina assistiu, nas últimas décadas, a uma renovação dos movimentos
sociais, processo que resultou no protagonismo de diversos setores populares e na
reorganização da vida política e social de alguns países da região. Tal processo insere-se em
um quadro geral marcado tanto pelo triunfo do modelo neoliberal quanto pela
complexificação da modernidade, em cuja fase atual nota-se uma importante tendência à
pluralização da vida social, fator que favorece a propulsão de novas forças populares na
condução de um projeto democrático, no qual a cidadania e obtenção de direitos tornam-se
centrais. Inaugura-se um importante ciclo de mobilizações sociais, que colocam em sua pauta
reivindicatória não apenas o “direito a ter direitos”, mas também a afirmação de novos laços
de
pertencimento
territorial,
étnico, de raça, gênero, etc., além da luta pela garantia de autonomia frente ao Estado e às
imposições do mercado.
Ademais, o debate em questão inclui definitivamente as novas relações estabelecidas
entre Estado e sociedade civil, as quais são redefinidas a partir dos movimentos e
mobilizações populares no subcontinente.
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
2
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
Desenha-se,
interessante
portanto,
dinâmica
uma
do movimento indígena na Bolívia e as
de
diferentes vias de mobilização social
aprofundamento da democracia, que
oriundas
interferiu
trajetória
bastante eficazes para a percepção das
latino-americana nas últimas décadas,
transformações na “política de direitos”
por meio da organização de uma
(DELAMATA, 2009) e na revitalização
resistência
da
da
criação
diretamente
na
anti-sistêmica,
além
na
Argentina,
cidadania,
exemplos
proporcionadas,
em
de
novos
espaços
de
grande medida, pelo deslocamento dos
participação.
Desta
maneira,
a
“lugares da política”, antes confinados à
que
esfera estatal, para a sociedade civil.
formulação
de
alternativas
transcendam os limites impostos pelo
Interessa-nos
saber
paradigma neoliberal desponta como
experiências
coletivas
um importante fenômeno, que revela a
conseguiram
profundidade da crise social enfrentada
dispersas, por meio da reclamação pela
pelo subcontinente, assim como os
concessão de direitos até então negados
rearranjos
possíveis,
a alguns setores da população. Assim
mediante a abertura à pluralização e
sendo, entendemos que os antagonismos
heterogeneidade das identidades sociais.
sociais e políticos na atualidade são
O objetivo deste trabalho é
enfrentados através da projeção de
societários
compreender
articular
populares
demandas
novos sujeitos sociais que certamente
emergência dos novos movimentos
avançaram no sentido da construção de
sociais
Latina
novas formas de direção política e
contemporânea, seus variados aspectos
ideológica da luta anti-sistêmica, além
e peculiaridades, estabelecendo um
de provocarem alterações, ainda que
diálogo com as interpretações da teoria
moleculares, na estrutura social. O
social. Pretendemos analisar o escopo
debate gerado tanto pela construção da
das mudanças operadas pela ação de tais
identidade
movimentos e mobilizações sociais no
movimento que deu origem a um amplo
contexto regional e, sobretudo, no que
processo
tange
institucional
ao
fenômeno
e
tais
da
na
o
como
América
aprofundamento
da
indígena
de
na
Bolívia
reforma
,
quanto

políticopela
democracia. Para tanto, escolhemos
“protestasocial” argentina  organizada
como casos fundamentais a organização
contra os abusos do mercado, e as
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
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TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
consequentes perdas sociais resultantes
teoria social crítica elaborada na região.
do esgotamento do modelo neoliberal 
Nossa análise deseja construir, portanto,
nos interessa em grande medida, uma
uma perspectiva que consiga articular
vez
a
tais dimensões interpretativas e, por
profundidade e a importância da forma
fim, colabore para o entendimento do
de fazer política às margens do Estado.
atual ciclo político em curso na América
que
põe
em
manifesto
Se o que caracteriza o momento
Latina.
histórico atual do subcontinente é a
Além da análise dos casos
interação entre tradição e modernidade,
boliviano e argentino, estabelecemos
percebida
como um dos eixos principais deste
pelo
resgate
da
ancestralidade, através da afirmação de
trabalho
identidades
elementos que possam contribuir para a
étnicas,
valores
a
indicação
de
alguns
de
elaboração de uma teoria social latino-
solidariedade, nos perguntamos: em que
americana, mais adequada aos desafios
medida o processo de ampliação dos
enfrentados pela região. A partir dos
mecanismos democráticos e as inúmeras
compromissos
alterações no cenário social decorrentes
enunciados, conduziremos nossa análise
deste movimento colaboram para um
tentando oferecer uma leitura geral dos
processo de ruptura com as práticas e
movimentos e mobilizações sociais na
instituições vigentes? Quais seriam os
América Latina contemporânea, por
ganhos
pelos
meio de uma orientação que estabelece
movimentos de emancipação social nos
as diferenças entre a realidade local e as
países em questão, e na região de modo
perspectivas
geral, tendo em vista as limitações
teoria social, com frequência, utilizadas
estruturais das investidas capitaneadas
no tratamento da questão. Deste modo,
pelas forças populares no enfrentamento
a análise dos fatos combina-se a uma
da
no
crítica aos modelos epistemológicos
subcontinente? A proposição de tais
vigentes, e a construção de um estudo
perguntas nos leva à consideração das
igualmente crítico da trajetória latino-
imbricações desta discussão tanto com o
americana,
debate que envolve a esquerda latino-
projetos emancipatórios engendrados
americana
nos países citados.
comunitários
e
novas
reais
alcançados
hegemonia
e
formas
seus
contemporaneidade,
neoliberal
propósitos
quanto
com
na
e
pressupostos
clássicas
através
do
legadas
pela
exame
a
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
dos
4
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
muitas vezes não solucionados através
2. BOLÍVIA, ARGENTINA E A
TEORIA
SOCIAL
CONTEMPORÂNEA
O
indígena
estudo
do
bolivianoe
das
movimento
da aplicação integral de seus conceitos.
Torna-se, pois, indispensável olharmos
para os limites e proposições dos
elementos
consagrados
pela
teoria
principais
social crítica, com o propósito de
expressões da ação coletiva argentina
desvendar os diversos aspectos que
nos oferece um quadro geral dos
compõem
movimentos populares organizados na
enredam os novos sujeitos políticos da
América Latina nos quais permitem a
contemporaneidade.
compreensão de questões referentes à
avaliação
conjuntura política e social dos países
concernentes
estudados, além de nos conduzir a um
bolivianos e argentinos, pretendemos
debate de natureza teórica, fundamental
avançar em direção a uma reflexão cujo
para os objetivos perseguidos. Nossa
objetivo é colaborar para a formulação
realidade impõe desafios às teorias
de uma teoria crítica dos movimentos
clássicas e, por isso, exige um tipo de
sociais latino-americanos, a partir dos
orientação mais preocupada com a
pressupostos da nossa própria realidade.
problemática que envolve as relações
Nesta seção desejamos construir
atuais entre Estado e sociedade civil e,
uma análise acerca do nosso objeto de
da mesma forma, as mobilizações
estudo, a partir de algumas abordagens
sociais propriamente ditas.
fundamentais. A primeira delas retoma
as
dos
tramas
sociais
Para
além
problemas
aos
que
da
práticos
movimentos
Partimos da ideia de que as
uma discussão iniciada no início deste
análises das mobilizações coletivas
trabalho ao mobilizar as contribuições
latino-americanas
de pensadores como Daniel Bensaïd
representam
uma
tendência que se insere em um contexto
(2008),
autor
ideológico e teórico até então clivado
identificam-se com a tradição marxista,
fundamentalmente pelas categorias de
e são dedicados tanto à reflexão das
análise marxistas. As ações coletivas
transformações
desenham um horizonte em que os
hegemonia do capital na modernidade,
debates tradicionais se deparam com
quanto
uma realidade particular, dotada de uma
revolucionário
dinâmica própria, a qual impõe desafios
mobilizações populares em curso na
à
cujos
trabalhos
provocadas
avaliação
dos
do
pela
potencial
movimentos
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
e
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TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
contemporaneidade – o que inclui,
“novo bloco de forças progressistas”
necessariamente, os movimentos sociais
(SADER, 2009, p. 173) forjaram um
latino-americanos.
ciclo de mobilizações, que agora se
Ademais, o estudo de John
Holloway
(2003)
nos
transformou
fornece
construção
importantes subsídios para o tratamento
neoliberal.
em
de
dilema
um
quanto
projeto
à
pós-
do tema referente à conquista do poder
Após o mapeamento das teorias
político pelos movimentos, apontado
que tratam das questões relativas à
como o elemento central para a
crítica ao capitalismo e à luta anti-
transformação radical da sociedade. Tal
sistêmica, passaremos à análise dos
debate nos auxiliará na reflexão acerca
movimentos
dos movimentos sociais em destaque
argentinos,
neste estudo, os quais, cada um a sua
problematização dos seus dilemas e
maneira, apresentam novas formas de
novidades. Os aportes selecionados aqui
realizar mudanças e alcançar respostas
serão redefinidos à luz da nossa
às suas demandas particulares, mesmo a
realidade, respeitando os padrões dos
partir de processos moleculares, longe
fenômenos em debate. Sugerimos, desta
de
A
forma, algumas impressões que se
confrontação natural com o debate
dirigem a construção de uma análise
marxista contemporâneo é interessante,
abrangente das mobilizações sociais, a
pois revela os limites e novidades de
fim de contribuir para a elaboração de
ambas as abordagens e ainda fornece
uma teoria crítica latino-americana.
ambições
revolucionárias.
sociais
tendo
bolivianos
em
vista
e
a
um panorama da discussão acerca das
lutas sociais na atualidade.
Por
fim,
sintetizaremos
o
2.1.
CONSIDERAÇÕES
MARXISTAS SOBRE OS DEBATES
CONTEMPORÂNEOS
argumento de Emir Sader (2009), cujo
trabalho enfatiza a trajetória da esquerda
A assertiva mudar o mundo sem
os
tomar o poder1 traduz eficazmente a
esforços dos movimentos sociais da
tendência contemporânea de recusa ao
região na formação de uma resistência
conceito clássico de revolução e a
anticapitalista. A crise da hegemonia
adoção de uma via de resistência à
latino-americana,
assim
como
neoliberal e a consequente abertura de
1
um espaço para o aparecimento de um
Trata-se do título do livro de John Holloway
(2003).
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
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TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
opressão que não passa necessariamente
etc., a precarização do mundo do
pela
da
trabalho, além do aparente esgotamento
sociedade, como indica o modelo
do sindicalismo como força política
marxista
de
relevante no campo da mobilização
mudanças
social descortinam um cenário em que a
transformação
estrutural
clássico.
A
compreendermos
as
desencadeadas
no
sociabilidade
plano
no
contemporâneo,
algumas
fim
período
revisaremos
leituras
da
luta social cumpre uma função ambígua
e limitada.
agora
elaboradas
por
Destacamos, ainda, que uma das
temáticas
frequentes
em
algumas
analistas herdeiros do legado marxista,
tendências do pensamento marxista diz
as quais revelam como esta vertente da
respeito à superação do dilema entre
teoria social responde aos processos em
partidos políticos e movimentos sociais,
curso
contemporâneo
cujo influxo se nota tanto na teoria
(sobretudo, nos contextos periféricos) e,
social, quanto no escopo das novas lutas
especialmente, às críticas oriundas da
sociais organizadas ao redor do mundo.
teoria social. Deseja-se que os sujeitos
A crise das formas de representação e o
sociais excluídos deixem de “negociar
enfraquecimento
do
suas condições de exploração” e se
imposição
agenda
levantem
parâmetros
estimularam a mobilização de setores
democracia
importantes e, com isso, um interessante
definitivamente
processo de reinvenção da democracia,
suas demandas e anseios. A atomização
através de ações descentralizadas, cujo
dos movimentos sociais e a dispersão
mote é dar voz a grupos subalternos. As
dos campos de luta diversos levam a
novas
uma
do
caracterizam-se, pois, pela negação de
discurso dominante (BENSAÏD, 2008:
possíveis articulações com o Estado,
33),
a
visando o objetivo da sua afirmação
transformação socialista se afirme em
como sujeitos autônomos. A construção
face
de
no
mundo
contra
estabelecidos
capitalista,
pela
impondo
constante
impedindo,
da
os
interiorização
portanto,
lógica
que
dominante
do
um
da
Estado
mobilizações
projeto
coletivo,
pela
neoliberal
populares
contra-
capitalismo. O questionamento do papel
hegemônico, democrático e, sobretudo,
do Estado, o esvaziamento de conceitos
plural, está alicerçada na ideia de
clássicos
“reconhecimento mútuo das pessoas” e,
da
teoria
social,
como
soberania, território, luta de classes,
principalmente,
na
“dissolução
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
do
7
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
poder” (HOLLOWAY, 2003: 37), uma
do pensamento de esquerda nos conduz
investida contra as hierarquias que
à leitura do processo que envolve o
impediam a representação das novas
surgimento das lutas anticapitalistas na
subjetividades.
o
América Latina. A crise da hegemonia
movimento zapatista no México como o
neoliberal na região levou setores
“sujeito crítico revolucionário” que
sociais de diversos países à organização
assume o desafio contemporâneo de
e mobilização contra o influxo perverso
oferecer um novo modelo de sociedade,
do modelo. Tal tendência é denominada
a partir da criação de um espaço de
por
“antipoder”, fora do âmbito estatal, e da
neoliberalismo, a qual, apesar de não se
rebelião contra a ordem vigente.
constituir como uma alternativa bem
Hollowayelege
Emir
Sader
como
pós-
Contrariando o pensamento pós-
fundamentada, diz respeito à negação ao
moderno de que “a hegemonia não tem
paradigma neoliberal e também a “um
mais relevância” (EAGLETON, 1998:
conjunto
115),
compõem as alianças sobre as quais se
o
recupera
marxismo
a
contemporâneo
concepção
de
que
a
experiência das lutas deve levar à
híbrido
de
forças
que
baseiam os novos projetos” (SADER,
2009: 64).
formação daquilo que Bensaïd chama
A organização de uma resposta à
de opção política autêntica, ou seja,
degradação cultural, política e social
uma articulação social que conduza à
provocada pela globalização neoliberal
hegemonia, sem que isso implique na
se faz dentro dos parâmetros impostos
negação do Estado e do poder. Segundo
pelo próprio sistema, consistindo em
essa vertente, o socialismo ainda figura
uma reação à ideologia predominante
como o objetivo final, uma alternativa
colocando novas questões, até então
incontestável, que deve necessariamente
compreendidas
colocar-se no horizonte dos movimentos
clássicas.
sociais.
identidades não permitem o vazio,
pelas
Segundo
identidades
Sader,
se
“as
acabam preenchidas por outras” (Ibid.:
2.2- O PÓS-NEOLIBERALISMO E A
NOVA
ESQUERDA
LATINOAMERICANA
61); e essas, devido a sua fragmentação,
impuseram
grandes
dificuldades
à
construção de uma força hegemônica
A
análise
dos
principais
argumentos em que se sustenta a crítica
capaz de mudar definitivamente a
realidade.
Assim
sendo,
o
pós-
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
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TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
neoliberalismo marca um período de
única de ação que se manifesta na
afirmação de novos grupos sociais, sem
organização dos movimentos sociais
que isso resulte necessariamente em
através da idéia de autonomia, por
uma ruptura radical.
exemplo.
As novas experiências geradas
Ao colocarmos em perspectiva a
na América Latina a partir da crise do
proposição de Holloway, que enxerga
neoliberalismo correspondem a uma
virtudes
tentativa de resistir e minimizar as
movimentos sociais do Estado e da
perdas resultantes do momento de
esfera
instabilidade. Entretanto, Sader nos
políticos,
indica que, em razão da ofensiva
limites do pós-neoliberalismo estão
neoliberal,
intrinsecamente
os
movimentos
sociais
neste
de
afastamento
influência
dos
compreendemos
ligados
dos
partidos
que
os
a
esta
insurgentes, assim como as demais
tendência, o que coloca em risco seus
iniciativas do campo popular, sofrem
bons êxitos. Entretanto, de acordo com
uma indefinição no que diz respeito às
Sader, “‘o outro mundo possível’ só
suas políticas, sobretudo se comparadas
pode ser criado com novas estruturas de
aos
de
poder, não apenas a partir da resistência
participação. A prática dos movimentos,
de base” (SADER, 2009:141). Em
por vezes, restringiu-se ao plano da
outros termos, é fundamental que os
denúncia e da ação direta, sem que isso
movimentos fujam do isolamento e
envolvesse ambições políticas ou um
consigam projetar sua luta, de modo a
desejo claro pela revolução. A atuação
inserir-se
dos movimentos esbarrou na presença
recuperação e concessão de direitos
das ONG’s, atores sociais que se
fundamentais
caracterizam pela rejeição à política
neoliberalismo
formal, e que operam junto à sociedade
através da implementação de políticas
civil, em detrimento de um diálogo
governamentais
amplo e permanente com a esfera
demandas oriundas da sociedade civil
estatal.
a
(Ibid.:142).A composição de governos
neoliberalismo
ou alternativas pós-neoliberais deve ter
hegemônica,
em vista não apenas o aparelhamento do
organizadora do social, tendo em vista a
Estado, mas também sua refundação,
imposição “velada” de uma condição
tornando-o
mecanismos
Tal
profundidade
enquanto
tradicionais
fenômeno
do
ideologia
revela
na
esfera
política.
expropriados
um
somente
que
espaço
é
A
pelo
possível
atendam
de
as
disputa
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
9
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
legítimo. Através da “democratização”
vinculadas ao objeto estudado, sem
do Estado, e da “desmercantilização das
reproduzirmos
relações sociais”, isto é, “tirar da esfera
modelos
do mercado para transferir para a esfera
centrais. Optaremos por uma análise
pública
à
mais abrangente, tributária de uma visão
cidadania, substituindo o consumidor
que nos aponta os problemas próprios
pelo cidadão” (Ibid.:147), é possível
do
combater o neoliberalismo e chamar à
através da confrontação das leituras
participação cidadã todos os setores
feitas pela teoria crítica, e do alcance
sociais, dentro de uma estrutura que
prático dos processos em curso aqui
contemple
descritos. A avaliação do processo de
os
direitos
essenciais
plenamente
os
anseios
populares.
integralmente
importados
associativismo
das
os
nações
latino-americano,
formação dos movimentos sociais aqui
trabalhados nos fornece os elementos
2.3.
TEORIA
CRÍTICA,
MOVIMENTOS POPULARES E A
NOVA
PAISAGEM
SOCIAL
LATINO-AMERICANA
para o debate acerca de sua influência
tanto no contexto político, quanto no
plano ideológico da América Latina.
Faremos uma leitura atenta aos desafios
A revisão da crítica elaborada
e aos avanços alcançados atingidos no
pela teoria crítica às novas formas de
caminho em direção à superação do
resistência e combate ao capital nos
neoliberalismo.
oferece
um
conceitual
importante
para
a
arcabouço
análise
dos
Cabe ressaltar que nossa análise
dos movimentos e mobilizações sociais
movimentos bolivianos e argentinos
bolivianos
aqui
importância
trabalhados.
pressupostos
A
legados
partir
argentinos
das
raízes
destaca
a
culturais,
teorias
simbólicas e históricas dos países
macroestruturais, desejamos fazer aqui
citados no entendimento dos rumos da
uma
aquelas
ação coletiva, e também na formulação
teorizações que se baseiam nos debates
de uma reflexão teórica mais próxima
tradicionais e os dilemas próprios da
dos dilemas latino-americanos. Ainda
América Latina, os quais, muitas vezes,
que
não são analisados adequadamente pela
diretamente as teorias dos movimentos
teoria social crítica. Tentaremos elencar
sociais, o estudo de caso desenvolvido
algumas
coloca-se em franco diálogo com as
comparação
das
pelas
dos
e
entre
principais
variáveis
não
tenhamos
mobilizado
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
10
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
interpretações vigentes, na medida em
que
preconiza
os
desdobramentos
arranjos
relativos
e
ao
Cumpre
destacar
agora
a
preeminência da questão identitária na
aparecimento de novos atores sociais na
orientação
cena
mostra
sociais da América Latina. No caso
fundamental no nosso estudo é a
boliviano, a identidade étnica emerge
percepção da recorrência de alguns
em caráter definitivo e traz consigo
temas e tendências dos movimentos
alguns
sociais, os quais nos permitem operar
para o tratamento do tema. A tentativa
em uma linha interpretativa particular.
do Estado boliviano em estabelecer uma
pública.
O
que
se
das
novas
mobilizações
questionamentos
importantes
Assim, após a definição da
identidade nacional homogênea, capaz
paisagem intelectual à qual pretendemos
de unir todos os grupos étnicos através
confrontar nossa análise, esboçaremos
da identidade camponesa, deu início a
uma leitura dos casos boliviano e
um processo em que os sindicatos se
argentino, seguindo um caminho que
estabeleceram como mediador legítimo
compila
temas
das relações entre esta população e o
apresentados pelos movimentos em
Estado. É sabido também que tal
debate.
esforço
os
principais
Trataremos
das
questões
não
logrou
um
resultado
separadamente, procurando estabelecer
irrestrito, já que abriu espaço para as
algum tipo de comparação entre os dois
mobilizações indígenas, articuladas em
eventos, cujo propósito é definir um
torno
quadro geral da ação coletiva latino-
“reconhecimento estatal da diversidade
americana. Entendemos que ambos os
étnica” (GUIMARÃES, 2009: 91) e a
casos selecionados representam duas
participação política, por exemplo. Os
tendências presentes em quase todas as
valores
demais experiências coletivas em curso
disseminados
na região.
rechaçados pelos povos indígenas, que
de
demandas
tipicamente
pelo
como
o
modernos
Estado
foram
se levantaram contra a destruição do seu
2.4.
PRINCIPAIS
TEMAS
E
DILEMAS PRESENTES NA AÇÃO
COLETIVA
BOLIVIANA
E
ARGENTINA
passado e a negação de um futuro como
sujeitos coletivos autônomos.
Concordamos com Domingues
(2007) quando afirma que a etnicidade
Identidade
boliviana não é “folclórica”, na medida
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
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TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
em que não se afirma baseando-se em
plurinacional.
traços
pré-
portanto, com a afirmação de que o
modernos (DOMINGUES, 2007: 27). A
movimento consiste em uma “mistura
ideia
aqui
entre componentes étnicos e de classe”
considerada foi concebida “a partir de
(Ibid.: 99) e articula-se de forma a
diferentes
reunir os setores populares, indígenas e
puramente
de
coloniais,
identidade
indígena
memórias
reconstrução
da
atualização
na
sociais,
história
vida
da
e
sua
cotidiana,
médios
Estamos
urbanos.
de
acordo,
Segundo
García
da
Linera, esta disposição conciliadora e
articulação entre passado e presente,
aglutinadora dos interesses presentes no
tradição e modernidade, denúncias e
país, transforma o processo em curso
projetos” (GUIMARÃES, op. cit.: 99).
em
O encontro das razões modernas com a
cultural
simbologia ancestral e as formas de
descolonizadora” (GARCÍA LINERA,
organização
do
2006: 31), uma vez que promove
constroem
uma
intervenção
social,
mundo
“arcaico”
alternativa
sem
que
uma
“revolución
democrática
revolución
democrática
o
de
naturalmente
se
estrutura do Estado, e da sociedade de
preconize um viés ou outro.
uma
modificação
na
modo geral.
A mobilização dos cocaleros e a
A identidade é, de fato, um tema
eleição do líder indígena Evo Morales
fundamental para o entendimento da
nos mostra como a chegada ao poder foi
dinâmica da ação coletiva engendrada
inserida no horizonte do movimento
na América Latina. Quando olhamos
indígena
para o caso argentino, percebemos que a
boliviano,
significativamente.
transformando-o
Guimarães
nos
reconfiguração
das
subjetividades
alerta que, para o movimento cocalero,
contribuiu
a
organização de novas formas de luta
etnicidade
tornado-se
uma
é
instrumentalizada,
identidade
prática,
decisivamente
empreendidas
contra
para
o
a
influxo
mobilizada com o objetivo de aglutinar
neoliberal. Como vimos nas seções
os interesses em disputa. O MAS, ao
anteriores, a Argentina assistiu a um
contrário dos movimentos de corte
processo
exclusivamente étnico, não evoca temas
identidades sociais clássicas, e de uma
recorrentes no movimento indígena,
consequente pluralização da sua vida
como
a
societária. O surgimento de uma massa
Estado
de desempregados, muitos dos quais
a
questão
reivindicação
por
territorial
um
e
de
transformação
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
das
12
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
oriundos dos setores médios e o
detentoras de demandas variadas e,
empobrecimento cada vez maior dos
muitas vezes, incompatíveis. Na medida
grupos
em
populares
contribuiu
para
que
incorporam
projetos
que
“eldebilitamiento de los mecanismos de
contemplam a diversidade dos grupos
integración social sobre los marcos de
sociais, os movimentos formam sua
inteligibilidad social y cultural de
identidade política e dirigem sua ação
lossujetos”
19),
para a realização de objetivos próprios.
determinando a configuração única
Não há, neste caso, uma identidade pré-
assumida pelas mobilizações sociais
estabelecida,
argentinas.
de
movimentos de maneira vertical, e sim,
“desnaturalização” impõe ao indivíduo
uma multiplicidade de interesses que
uma nova postura, a qual o obriga a
dão origem a uma forma específica de
estabelecer uma nova relação com o
exercer sua atividade reivindicatória.
mundo exterior (Ibid.: 20). Assim, a
Compreendemos,
assim,
que
as
situação de vulnerabilidade de grande
identidades
mobilizações
são
parte da sociedade produziu novas
fortalecidas a partir de suas práticas e
expressões culturais, subculturais e,
sua cultura política é gestada a cada
especialmente, políticas, cujos efeitos
encontro ou ação conjunta. O embate
foram percebidos tanto no âmbito da
direto com o “inimigo” a ser combatido,
vida cotidiana, quanto nos contornos
ou até mesmo as tensões relativas às
das novas mobilizações sociais. Prova
diferenças
da importância deste movimento de
membros,
reconfiguração
configuração
(SVAMPA,
O
2000:
processo
identitária
é
o
aparecimento de novas questões, tais
que
das
organiza
originárias
entre
contribuem
da
os
seus
para
a
cosmovisão
do
movimento.
como os temas socioambientais e a
formação de novos tipos de militantes,
Autonomia X hegemonia
como o ativista cultural.
Outro fator a ser destacado em
relação
à
importância
da
identitária
para
movimentos
argentinos
diz
os
respeito
questão
à
Eis outro ponto fundamental
para
nossa
análise.
Os
diferentes
caminhos tomados pelo movimento
sua
indígena boliviano e pelas lutas sociais
configuração e atuação, a partir da
argentinas podem ser lidos, entre outros
abertura a classes sociais distintas,
aspectos, através do dilema que envolve
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
13
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
a demanda crescente por autonomia, e a
dos sindicatos torna-se significativa,
luta pela construção de uma hegemonia
colocando as ambições por autogestão e
política. A resistência anticapitalista
auto-representação no centro de sua
erguida nos dois países em destaque nos
atuação.
apresenta como questão essencial o
organização autônoma seja fundamental
modo
ao
para a vida das populações indígenas,
neoliberalismo colocou-se no campo
percebemos que a necessidade da
ideológico dos movimentos sociais
construção
latino-americanos, a fim de resolverem
decisiva para a inclusão definitiva desta
a crise de hegemonia vigente na região
camada social. A sublevação de Evo
(SADER, 2009: 140).
Morales à presidência do país define a
como
As
a
superação
mobilizações
contra
Porém,
de
ainda
uma
que
hegemonia
a
é
a
estratégia da nova esquerda boliviana
homogeneização das identidades sociais
em direção à constituição de um Estado
na Bolívia não se encerraram nas
caracterizado pela presença dos setores
exigências por reconhecimento jurídico.
populares,
A chamada “politizaçãodas identidades
consolida nas urnas e também no plano
étnicas” (DOMINGUES, 2007: 27),
ideológico.
entre outras coisas, muniu o movimento
indígena de ambições
política
que
se
LuisTapia (2008) nos ajuda a
e
compreender a profundidade da questão
direcionou suas lutas pela modificação
boliviana e a trajetória do país rumo à
das formas de participação política.
democracia. A experimentação da vida
Chegar ao poder e transformar a
social,
sociedade a partir do aparelhamento
(re)arranjos societários articulados “no
estatal
do
subsolo político” (TAPIA, 2008: 85)
movimento ao longo de sua trajetória.
resultaram na composição de um bloco
No final da década de 90, verificamos
de
que as organizações indígenas assumem
nacionalmente,
definitivamente tal discurso, e seguem
protagonista de um momento político
reivindicando a “descolonização do
cuja marca é a democratização das
Estado” (GUIMARÃES, 2009: 96),
instituições
assim como a defesa da sua autonomia.
participação. O peso dos movimentos
A independência dos movimentos em
sociais neste processo é imenso, uma
relação à tutela dos partidos políticos e
vez que sua organização e mobilização
tornou-se
um
políticas,
força
objetivo
assim
forças
como
que
os
logrou
diversos
projetar-se
tornando-se
e
das
formas
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
o
de
14
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
conduziram os setores populares –
uma
muito
povos
complexa do que um movimento social.
indígenas – à ocupação de postos de
Afirma-se no país um tipo de ação
poder, além do reconhecimento e
política que se organiza a partir de
atendimento
demandas
estruturas tradicionais, não modernas,
específicas. Tapia nos fala das formas
cujas ambições referem-se a demandas
da
uma
de inclusão e participação nas instâncias
diferença fundamental entre o Estado (e
de poder, além de uma reforma que
as
os
modifique as condições de exploração
movimentos sociais. O primeiro é o
vigentes. A articulação dos povos
lugar da política moderna, a qual
originários se faz, portanto, em relação
consagra a reprodução da ordem social,
à descolonização das relações entre as
enquanto os segundos dedicam-se à
comunidades
problematização dessa mesma ordem. O
modernas, a sociedade dominante, que
surgimento
subordina
especialmente,
de
política,
formas
os
suas
estabelecendo
institucionais)
de
movimentos
e
sociais
configuração
mais
e
as
diversa
as
instituições
culturas
tradicionais.
implica, portanto, na diversificação de
Assim,
sujeitos políticos e, por isso, desloca o
compreensão
lugar da política, ao abrir novas
políticos na Bolívia atual, é necessário
possibilidades de ação. O autor nos
ter em conta a ação dos movimentos
mostra que contra o argumento do
sociais, esse “não lugar” da política, em
enfraquecimento e esvaziamento da
cujo núcleo se articulam as forças que
política está a noção de que os
pressionam por mudanças no modelo
movimentos sociais promovem uma
atual, e pela garantia dos bens e
complexificação da vida social, e uma
necessidades
possibilidade
social
de
reconstrução
do
entendemos
e
de
que,
dos
para
a
desdobramentos
básicas
setores
à
reprodução
subalternos.
A
Estado, uma vez que conduzem a
conjuntura boliviana atual é, pois,
contínuos alinhamentos sociais, tendo
entrecortada por um movimento de
em vista os sujeitos sociais e políticos
descentralização política, baseado na
que despontam como reformadores.
crítica aos parâmetros políticos liberais,
Tapia
Bolívia,
nos
mostra
encontramos
que,
na
em
exemplos
de
representativa, e na demanda por maior
protesto, rebelião e mobilização social e
especial
participação
e
a
democracia
inclusão,
fatores
política (Ibid.: 63), os quais possuem
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
15
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
fundamentais para uma transformação
autonomia
e
profunda do país.
movimentos.
afastamento
A
dos
organização
da
A despeito das críticas e dos
sociedade civil e a construção de uma
problemas que possivelmente surgirão
alternativa viável de luta em relação aos
da combinação dos interesses classistas
partidos
que compõem o bloco de forças
repercussão,
e
projetadas nacionalmente, a Bolívia
interessante
para
vive
exemplar,
sociais de um modo geral. Estamos de
sobretudo se considerarmos que, neste
acordo com a ideia de que a crítica à
momento,
democracia
uma
experiência
há
uma
força
política
políticos
alcança
impõe
as
um
dilema
mobilizações
deliberativa
e
o
população
à
hegemônica, que opera tanto junto às
chamamento
bases, quanto em âmbito estatal. Ainda
participação social pela via direta, sem
é prematuro afirmar se o projeto
intermediários, são vitais para o bom
étnico/democrático em desenvolvimento
andamento do regime democrático e
na Bolívia terá “irradiação continental e
para a restauração de uma sociedade em
mundial” (GARCÍA LINERA, 2006:
crise. No entanto, concluímos que o
30), mas há que se considerar sua
enfraquecimento da política formal
importância para os demais movimentos
pode comprometer significativamente
sociais da região. Espera-se, portanto,
os rumos das lutas sociais naquele país.
que
se
construam
alternativas
O
da
grande
caso
dos
movimentos
emancipatórias que consigam combinar
argentinos é emblemático, haja vista
certo grau de institucionalidade com a
que seu impasse está na sustentação de
manutenção dos “seus círculos locais
um discurso anti-institucional, frente à
permanentes na vida cotidiana”, além de
cooptação
“construir pontes com outros contextos,
interna dos movimentos esgota suas
neste caso, globais” (DOMINGUES,
potencialidades,
loc.cit.: 229).
“refundação do sistema político, que
Se, na Bolívia, o movimento
estatal.
A
ao
fragmentação
impedir
a
segue congelado na reprodução de um
a
‘peronismo infinito’, cujas inclinações –
um
dúbias, de fato – à esquerda complicam
genuíno – e molecular – processo de
ainda mais a situação” (DOMINGUES,
transformação social,
2007: 35.). A recusa ao poder e às
indígena
caminhou
institucionalização
verifica-se
uma
em
e
forte
direção
conduziu
na
Argentina
tendência
à
formas
de
participação
política
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
16
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
consagradas
representa
um
recuo
relativas às diferenças originárias entre
altamente prejudicial para a organização
seus membros, contribuem para a
dos setores populares argentinos. Ao
configuração
gritarem “¡que se vayan todos!”, o
movimento.
movimento piquetero, maior expressão
dos
movimentos
do
Os repertórios e discursos das ações
coletivas populares analisadas aqui nos
manifesta toda a tensão inerente à
apresentam uma importante guinada nas
prática política não-institucional, cujo
lutas sociais da região. O movimento
mote é “manter uma suposta ‘pureza’ da
piquetero, assim como as assembléias
esfera
de bairro e o movimento das fábricas
diretamente
que
as
do
cosmovisão
país,
social,
sociais
da
representaria
‘bases’
contra
as
recuperadas propõem a formulação de
cúpulas, consideradas automaticamente
novas
formas
de
intervenção
e
ilegítimas como forma de representação
enfrentamento do modelo neoliberal. Os
política” (SADER, 2009: 146).
temas concernentes ao mundo do
A superação da dinâmica dos
trabalho, antes restritos ao debate
partidos políticos e dos sindicatos
conduzido pelos partidos de esquerda
coloca-se como exigência e orienta os
clássicos, são deslocados para o plano
movimentos em direção a uma política
da sociabilidade e adquirem novas
autogestionária. A consciência dos seus
significações. A problematização das
interesses
de
condições de trabalho, sem dúvida, foi
construir uma alternativa própria, sem a
feita alicerçada no repertório herdado
outorga
pré-
dos sindicatos e partidos. Entretanto,
determinada, define paulatinamente o
construiu-se sob novas bases e formas
tipo de intervenção e o repertório de
de
ação
sociais
particulares. As atividades dos referidos
que
movimentos mostram que as demandas
incorporam projetos e demandas que
por boas condições de trabalho, a
contemplam
das
cobrança pelas perdas dos diretos
organizações, a identidade política do
laborais e também pelo desemprego
movimento é formada, voltando-se para
crescente foram articuladas a partir de
a realização de objetivos próprios. O
arranjos
embate direto com o “inimigo” a ser
reivindicação
combatido, ou até mesmo as tensões
participação. Deste modo, entendemos
e
de
dos
analisados.
a vontade maior
uma
identidade
movimentos
Na
a
medida
em
diversidade
atuação,
incorporando
próprios,
que
pelo
questões
incluem
direito
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
a
à
17
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
que a crítica a concepção liberal de
analisar os pontos em que as lutas locais
cidadania
reverberação
colocam-se na esteira de um processo
importante, tão significativa quanto o
maior de emancipação dos seus países
ideal de construção de uma nova
de origem, realçando suas formas de
sociedade.
organização
alcança
Entendemos que os movimentos
e
mobilizações
lograram
sociais
alguns
argentinos
avanços
no
estruturas
e
atuação
formais.
junto
É
às
importante
ressaltar ainda que a América Latina
vive
um
período
marcado
pela
aprofundamento da democracia, mas
emergência de governos populares, os
seu
quais introduzem uma nova agenda
afastamento
comprometeu
das
instituições
os
política e ideológica, que responde
resultados do processo em curso. Se,
plenamente às vozes emergentes no
por um lado, houve uma importante
plano
transformação no interior da sociedade,
reconheçamos
a partir do incremento das formas de
surgimento de blocos de poder apoiados
participação e decisão, por outro,
–
verificamos que o afastamento dos
entendemos que ainda não superamos o
setores populares da política formal não
neoliberalismo,
permitiu
vigoroso na maioria dos países e que,
que
convertessem
significativamente
tais
em
resoluções
políticas
se
mais
nos
e
societário.
a
que
importância
do
–
formados
casos
Ainda
o
pelas
qual
boliviano
massas,
se
e
mostra
argentino,
abrangentes, ou na participação da
perpetua-se, por exemplo, através da
população da esfera estatal. Enquanto a
manutenção de sua política macro-
Bolívia experimenta um momento de
econômica, ou pela cooptação dos
reestruturação do Estado e de integração
movimentos sociais, implicando no
das camadas subalternas da população,
retrocesso das lutas políticas.
os movimentos argentinos limitaram-se
à crítica da visão liberal da cidadania.
Concluímos que o dinamismo
inovador dos movimentos sociais revela
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS: “A
REBELDIA
DA
REALIDADE
CONCRETA
CONTRA
OS
DOGMAS2”
limites e lacunas importantes, as quais
A avaliação que desenvolvemos
devem ser revistas tanto no âmbito das
práticas, quanto pela teoria social.
Torna-se,
portanto,
imprescindível
ao
2
longo
do
trabalho
inclui
SADER, 2009:125.
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
a
18
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
organização dos movimentos sociais na
Neste sentido, consideramos que
América Latina e, de modo igual, os
as experiências dos movimentos sociais
termos em que o debate teórico é
latino-americanos, em especial aqueles
conduzido
subcontinente.
oriundos nos países aqui trabalhados
Reconhecemos a contribuição da teoria
são positivas, bem-sucedidas, tendo em
crítica, seus conceitos e interpretações
vista a execução de um programa que
para a construção de uma reflexão
privilegia os anseios de grupos até então
atenta às transformações da dinâmica
sub-representados, o qual que se mostra
social
Todavia,
eficaz no enfrentamento dos problemas
pretendemos avançar em alguns pontos
colocados por uma conjuntura altamente
que consideramos fundamentais, a fim
desfavorável.
de que não caiamos na armadilha da
organização da sociedade civil em
reprodução pura e simples de categorias
momentos de crise intensa contribui
que não contemplam plenamente nossa
substancialmente
trajetória. Sem incorporar os ideais e
aprofundamento
objetivos da geração de 68, ou colocar o
podendo capacitar os indivíduos para a
comunismo como o fim último a ser
construção
alcançado, conduzimos uma análise
autônomos. Vimos, ainda, que, nos
cujo
as
casos estudados, há uma divergência no
progressivas
que tange à formação de projetos
transformações ocorridas na Bolívia e
políticos mais sólidos, capazes de
na Argentina no campo dos direitos
aglutinar as diferentes forças sociais no
sociais
cidadã.
âmbito estatal. Contudo, enxergamos
Tencionamos apresentar um balanço das
virtudes neste caminho que leva à
lutas sociais na América Latina, tendo
autonomia dos movimentos. O desafio
em vista os contextos específicos de
colocado é, de fato, a projeção desses
cada país analisado, considerando o
movimentos
modo como “diferentes temáticas se
vigorosas,
convirtieron em reclamos públicos y
democracia através dos mecanismos de
éstos em demandas de ciertosderechos”
participação tradicionais, mas também é
(DELAMATA, 2009: 21), além de
o da resistência às formas de cooptação
avaliarmos as respostas estatais a tais
do Estado e dos partidos políticos,
demandas.
fenômeno
no
na
atualidade.
propósito
fragmentadas,
e
da
foi
porém
reconhecer
participação
Entendemos
de
para
da
capazes
a
o
democracia,
projetos
como
que
que
forças
de
políticos
políticas
refundar
implica
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
a
na
19
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
desmobilização e interrupção da marcha
em
direção
a
consolidação
da
democracia nos países da região.
Uma discussão fundamental a
ser
considerada
e
que
dialoga
diretamente com os quadros teóricos
O movimento indígena boliviano
apresentados, diz respeito à centralidade
nos mostra como a demanda por
do
autonomia e afirmação das identidades
organização das lutas sociais. Vimos
étnicas
do
aqui uma crítica à fragmentação dos
reconhecimento jurídico, e se coloca
sujeitos sociais e, em contrapartida, uma
como uma força articuladora mais
cobrança quanto a uma articulação dos
ampla, que passa a exigir, entre outras
movimentos em torno dos elementos
coisas, a redefinição dos parâmetros da
classistas.
participação política, fundamental para
marxismo contemporâneo nos sugerem
os
protonacionalismo
que “o verdadeiro sujeito político é a
indígena. Com efeito, percebemos uma
classe operária” e que, portanto, a luta
série
foge
ao
rumos
de
do
reducionismo
problemas
predominância
deste
debate
de
esquerda
Algumas
para
vertentes
a
do
vinculados
à
de classes não se esgotaria diante das
tipo
de
identidades e interesses comunitários
reivindicação, muitos deles já listados
(BENSAÏD,
aqui, mas não desejamos situar nossa
interpretativos
análise em um polo altamente crítico,
marxismo nos apresentam uma análise
que identifica na conjuntura atual um
do movimento operário atravessado
círculo vicioso, eternamente alimentado
pelas dicotomias clássicas burguesia-
pelas novas estratégias capitalistas, as
proletariado,
quais não oferecem saída da sua
Percebemos, no entanto, que para o
condição hegemônica. O caso boliviano
estudo dos movimentos sociais mais
nos indica que é possível articular uma
recentes,
plataforma reivindicatória mais ampla,
Argentina, é fundamental adaptar tal
que
pelo
tipologia às particularidades de cada
identidades
organização. O modelo de ação do
subalternas, mas que também seja capaz
movimento dos desocupados e de
de
grande
contemple
reconhecimento
incluir
a
das
questões
luta
pertinentes
à
2008).
padrões
consagrados
pelo
capital-trabalho,
como
parte
Os
os
das
piqueteros
etc.
na
mobilizações
redistribuição material, assim como ao
organizadas no país, vimos, possui um
plano cultural e simbólico da população
caráter pragmático, estratégico, cuja
indígena.
finalidade é o restabelecimento da
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
20
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
normalidade,
sem
que
isso
importantes, como, por exemplo, a
necessariamente envolva um ideal de
ampliação dos “não lugares” da política,
transformação estrutural.
fundamentais para a democratização dos
Assim sendo, entendemos que os
países da região.
movimentos da região, sejam eles mais
Ainda que de maneira limitada,
articulados ou muito fragmentados,
procuramos
propositivos ou apenas “de protesto”,
questões para a construção de uma
não incluem necessariamente em seu
teoria crítica mais abrangente dos
repertório o anseio pela ruptura radical,
movimentos sociais do nosso cenário
a qual resultaria em um processo
regional.
revolucionário, no sentido clássico. O
modos de articulação das lutas sociais
movimento
na atualidade com o pensamento de
piquetero
é
um
bom
apontar
as
Decidimos
confrontar
esquerda,
que sua atuação fundamenta-se nos
conceitos e parâmetros desta vertente
confrontos diretos e na denúncia dos
tanto no âmbito da teoria social, quanto
altos índices de desemprego, elementos
no campo das práticas políticas. Assim
que destituem tal grupo de ambições
como Svampa, entendemos que se faz
revolucionárias. Percebemos, ainda que,
necessário
no
indígena
americana a incorporação de um olhar
boliviano, há de fato um espaço aberto à
regional, sem deixar de atender às
politização
especificidades
do
das
movimento
identidades,
mas
à
à
primazia
os
exemplo desta tendência, na medida em
caso
devido
principais
teoria
crítica
das
dos
latino-
realidades
entendemos que isso não está ligado à
nacionais, além de colocar em relevo a
superação do tema da etnicidade, ou à
análise das subjetividades, elementos
afirmação de uma ideologia política
que revelam a lógica por trás das
totalizante. Deste modo, respondemos a
múltiplas
pergunta inicial acerca do papel dos
fenômenos políticos da região. Desta
movimentos e mobilizações sociais na
forma, a fim de responder as questões
instauração de uma nova ordem social
relativas
concluindo que, na América Latina,
subcontinente, nos posicionamos contra
observa-se uma tendência à perpetuação
os
das clivagens de classe, etnia, raça,
reducionistas
gênero etc (Id., 2009: 197), mas que
interpretações fatalistas ou respostas
opera
prematuras a processos ainda em curso.
transformações
moleculares
facetas
à
assumidas
crise
dogmas
e,
pelos
hegemônica
no
vigentes,
leituras
sobretudo,
àquelas
CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 7, ed. 15, jan./abr. 2013.
21
TEORIA SOCIAL E AMÉRICA LATINA: PERSPECTIVAS SOBRE OS
MOVIMENTOS SOCIAIS BOLIVIANOS E ARGENTINOS
A
elaboração
de
uma
sociologia
regional, que observa com minúcias os
desdobramentos
construção
dos
de
processos
uma
KEYWORDS: Latin America; Social
Theory;
Social
movements;
Neoliberalism.
de
nova
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
institucionalidade, coloca-se como um
importante objetivo para os cientistas
sociais do subcontinente, os quais
devem assumir a tarefa de pensar
criativamente as diversas possibilidades
oferecidas pela prática militante e os
arranjos
societários
em
constante
renovação.
ABSTRACT
This paper aims to provide a perspective
on tendencies of organized social
movements and mobilization in
contemporary Latin America and an
assessment on considerations offered by
social theory on new emerging social
subjects. For this purpose, Bolivian and
Argentinian paths will be analyzed,
given they provide valuable information
about some of the main forms of
collective action engendered after the
advance of neoliberalism in the
subcontinent. Moreover, we focus on
interpretations of this process provided
by some trends in contemporary social
theory which contribute to the
formulation of a closer comprehension
to Latin American current context. We
intend, thus, to point out some of the
main challenges Social Sciences face in
the subcontinent, through the analyses
of one of the most significant
transformation factors observed in Latin
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Doutoranda Sociologia Instituto de Estudos
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