uma análise da obra o cortiço à luz das pseudociências

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1
UMA ANÁLISE DA OBRA O CORTIÇO À LUZ DAS PSEUDOCIÊNCIAS
DETERMINISTAS: A NECESSIDADE DO DESCONSTRUTIVISMO
APLICADO À PESQUISA JURÍDICA
Jessica Hind Ribeiro Costa1
Brenno Cavalcanti Araújo Brandão2
“E pobres são como podres e todos sabem como se
tratam os pretos.” (Caetano Veloso – Haiti)
SUMÁRIO: Resumo – 1. Introdução – 2. Resumo da obra – 3.As diversas
formas de determinismo na obra de Golud – 3.1. Biológico – 3.2. Social – 3.3.
Genético – 4. Pseudociência – 5. A desconstrução da ciência e a necessidade
de repensar o paradigma - 6. Conclusão
RESUMO
O presente trabalho visa à desconstrução do paradigma dominante na seara da
metodologia da pesquisa. O texto se propõe em analisar a obra literária “O
Cortiço”, de autoria de Aloísio Azevedo, destacando seus argumentos
deterministas à luz da obra a Falsa Medida do Homem, de Sthephen Jay
Gould. A partir disso, se define a ciência determinista como pseudociência, a
qual deve ser necessariamente superada. Esta superação pressupõe a
desconstrução do modelo científico vigente em detrimento de um novo
paradigma reflexivo e transdisciplinar da pesquisa.
ABSTRACT
The present work aims to deconstruction of the dominant paradigm in the
harvest of the research methodology. The text aims to analyze the literary work
"The Slum", authored by Aloisio Azevedo, establishing the deterministic
arguments in light of the work to False Measure of Man Sthephen of Jay Gould.
From this, we define the deterministic science as pseudoscience, which must
necessarily be overcome. This requires overcoming the deconstruction of the
prevailing scientific model rather than a new paradigm reflective and
transdisciplinary research.
PALAVRAS-CHAVES:
Metodologia
da
pesquisa.
Pseudociência. Desconstrução. Transição paradigmática.
1
Determinismo.
Mestranda em Direito Privado pelo Programa de Pós-Graduação da UFBA. Pós-graduanda em
Responsabilidade Civil - Universidade Estácio. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia.
2
Advogado. Mestrando em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação da UFBA. Pós-graduando
em Ciências Criminas pelo JusPodivm. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia.
2
1)
INTRODUÇÃO
O surgimento da Universidade determinou a fragmentação do conhecimento.
Esta divisão epistemológica teve por finalidade a facilitação na transmissão da
informação científica, o que não acontecia nos períodos anteriores, os quais
são marcados pelos grandes filósofos, que dominavam o conhecimento de
forma mais ampla. Esta imposição de barreiras dentro da produção científica
trouxe como consequência positiva a possibilidade de especialização e de
aprofundamento em determinados campos da ciência. Isto porque, com o
maior recorte teórico, mais salientado seria o debate em torno de determinado
tema pontual3.
Com efeito, tornou-se perceptível, nas ciências em geral, inclusive no campo
jurídico, um movimento constante pela busca de uma especialização – leia-se,
o domínio de um pequeno fragmento do conhecimento produzido. Ocorre que
esta busca restritiva infinita, pelo que se observa atualmente, esbarrou na
necessidade de se observarem conceitos outrora abdicados, por se tratarem de
considerações eminentemente genéricas e que não teriam o caráter de
conceito científico aos olhos dos novos produtores do conhecimento.
Fundamental, assim, caminhar no sentido inverso. A produção científica deve
ser enxergada da forma mais ampla possível, com maiores intersecções entre
as disciplinas criadas. O novo cientista deve ocupar-se de construir pontes, ao
invés de levantar muros4. Mas não é só. Deve-se recorrer para além das
disciplinas estanques da ciência, no intuito de buscar a transposição dos
3
MORIN, Edgard. A cabeça bem feita: Repensar a forma, Reformar o pensamento. 8 ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. P. 101.
4
Neste sentido, importantes são as considerações de Boaventura Sousa Santos no que diz
respeito ao caráter transdisciplinar que domina o campo científico atual: “Depois da euforia
cientista do século XIX e da consequente aversão à reflexão filosófica, bem simbolizada pelo
positivismo, chegamos a finais do século XX, possuídos pelo desejo quase desesperado de
complementarmos o conhecimento das coisas com o conhecimento das coisas, isto é com o
conhecimento de nós próprios. A segunda faceta desta reflexão é que ela abrange questões
que antes eram deixadas aos sociólogos. A análise das condições sociais, dos contextos
culturais, dos modelos organizacionais, da investigação científica, antes acantonada no campo
separado e estanque da sociologia da ciência, passou a ocupar papel de relevo na reflexão
epistemológica”. (In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre a ciência, 4ª ed. São
Paulo: Cortez, 2006.pps. 50/51.)
3
obstáculos criados ao longo do tempo5. É este o objetivo do presente trabalho.
À luz de uma análise do determinismo social, a partir da perspectiva de
diversas vertentes do conhecimento (quais sejam: Filosofia, Antropologia,
Psicologia, Sociologia e da Biologia), salientando a importância da Literatura haja vista que o ponto de partida para o presente trabalho encontra-se na obra
“O Cortiço” de Aloísio Azevedo – pretende-se demonstrar que se torna cada
vez mais elementar a ruptura de paradigmas já determinados, em especial, no
âmbito da pesquisa jurídica, onde a concepção cartesiana predomina.
2)
RESUMO DA OBRA
Para que se possa desenvolver o trabalho e atingir o fim aqui buscado, antes
mesmo de apresentar as diversas formas de determinismo social que podem
ser verificadas nos estudos de alguns ramos científicos, é necessária uma
breve explanação acerca da obra literária central, desde já destacando o
recorte pretendido. Por óbvio, não será feita observação minuciosa dos
acontecimentos pelo risco de desvirtuamento que não se pretende incorrer.
“O Cortiço” foi escrito por Aluísio Azevedo, no fim do século XIX (mais
especificamente, em 1890), e marcou o início da escola literária denominada
de Naturalismo. A corrente naturalista era voltada à abordagem dos temas com
a tentativa de representação fiel da realidade social, buscando no contexto
social e no fator da hereditariedade a justificativa para os fatos e perfis dos
personagens. Isto muito se verá na obra em destaque.
O início do romance coloca em destaque o personagem João Romão. Isso
porque era dele o cortiço em que ocorreriam todos os acontecimentos
posteriores e, talvez para dar destaque à forma já desvirtuada do nascimento
do estabelecimento (marcada pela ganância e avareza do proprietário), o autor
ocupa-se em apresentar este comerciante português.
João Romão iniciou a sua riqueza em decorrência da herança de um
mercadinho. A partir dele, começa a sua ascensão social. Todavia, esta
5
LEFF, Enrique. Aventuras da epistemologia ambiental: da articulação das ciência ao diálogo
de saberes. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. p.35.
4
ascensão dá-se à base da exploração dos trabalhos de Bertoleza, a quem
enganara falsificando uma carta de alforria e, também, abstendo-se de
qualquer gasto com luxo, investindo, apenas, em algo que poderia trazer-lhe
benefício econômico no futuro.
O rápido enriquecimento de João Romão desperta a inveja de Miranda, seu
vizinho, também português, que é casado com Estela e que, em decorrência
deste laço matrimonial, mais especificamente, do dote que patrocinou a união,
é rico, ocupando a alta classe na sociedade, chegando, inclusive, a ganhar o
título de nobre. O seu casamento com Estela não passa de um jogo de
interesses, ganhando destaque a ausência de amor entre ambos e o interesse
meramente patrimonial que existia.
Um fator curioso da obra dá-se, pois, no momento em que João Romão
começa a enriquecer bastante e passa a retribuir a inveja de seu vizinho
Miranda, em razão deste ter o título de nobre, o que leva João a querer casarse com a filha de seu compatriota.
Um dos investimentos feitos por João Romão é a construção de uma pedreira,
que se encontra em terreno vizinho. A importância desta pedreira é a chegada
do personagem Jerônimo. Este será o primeiro personagem que mais
drasticamente sofrerá as influências do meio e demonstrará o determinismo
social que acompanha a obra.
Jerônimo era português e fora contratado por João Romão para ocupar o cargo
de supervisor da pedreira, vindo a residir no cortiço com a sua esposa Piedade
e a sua filha. Era um trabalhador exemplar, tendo suas qualidades bastante
enaltecidas pelo autor, a fim de que seja inquestionável a sua transformação
tanto no campo pessoal, quanto no profissional. Inicialmente, era forte, disposto
e honesto. Ao fim da narrativa, ganha as característica da brasilidade,
tornando-se malandro e preguiçoso.
O que marca a grande transformação sofrida por Jerônimo é a sua paixão por
Rita Baiana, brasileira, sensual e que atrai as atenções dos homens,
despertando neles a libido. Isto pode levar à conclusão de que Rita Baiana
representaria o fruto proibido, pois, enquanto não havia a relação de Jerônimo
com ela, a vida dele era “perfeita”: trabalhador exemplar, bem casado, bom pai,
5
bom marido e que estava encaminhando-se para alcançar o sucesso
profissional com a ascensão pessoal e financeira. Todavia, após se envolver
com a brasileira, a sua vida entra em colapso. Ele cai em desgraça. Torna-se
desonesto, preguiçoso, alcoólatra e termina por perder o capital que havia
acumulado após abandonar a sua esposa e filha.
Por fim, para os fins que este trabalho pretende, é imprescindível a
apresentação da personagem Pombinha.
Ela é apresentada com beleza angelical, linda, e extremamente correta. Era
muito querida por todos que moravam no cortiço, porque ela escrevia as cartas
para os seus familiares, bem como as lia para os seus vizinhos. Além disso, lia
o jornal diário para todos e tinha a vida extremamente regrada e casta:
frequentava a igreja, não detinha qualquer vício e tinha um noivo. Tal qual uma
rosa em um lamaçal, Pombinha era a demonstração de que qualquer pureza
haveria de ser substituída pela lascívia e desregramento que acompanhada a
vida das pessoas do cortiço.
O destino, então, ocupou-se de corromper a última esperança do cortiço. A
figura de Leónie é a responsável pela transformação radical da personagem.
Após convencer Pombinha e a sua mãe de visitá-la, a prostituta Leónie faz
pombinha beber vinho e, em seguida, tem uma relação sexual com a virgem do
cortiço. Este será o marco transformador de Pombinha no enredo da obra, pois
esta passa a ser prostituta com Leónie, mergulhada em todo o mar de pecados
e desvirtuamentos que acompanham a sociedade de classe baixa do cortiço.
A partir destas considerações preliminares, é possível dar início ao tema
propriamente almejado neste trabalho. Essencial, pois, tratar sobre o
determinismo e, mais especificamente, o enfoque dado pelo filósofo Stephen
Jay Gould.
3)
AS DIVERSAS FORMAS DE DETERMINISMO NA OBRA DE GOULD
O êxito das teorias científicas, levou o cientista francês Marquês de Laplace, no
início do século XIX, a argumentar que o Universo era completamente
determinista. Em decorrência desta máxima sugeriu que devia haver um
6
conjunto de leis científicas que permitisse predizer tudo o que aconteceria no
Universo. Por exemplo, se conhecêssemos as posições e velocidades do Sol e
dos planetas em determinado momento, podíamos usar as leis de Newton para
calcular o estado do sistema solar em qualquer outro momento. Embora, o
determinismo parece bastante apropriado às ciências exatas, Laplace passou a
admitir que haviam leis semelhantes que governavam tudo, incluindo o
comportamento humano6.
Assim, uma série de determinismos de descortinaram tentando explicar as
mais diversas características e comportamentos humanos. Assim, duas
máximas refletiram as principais correntes deterministas. A ideia de que o
homem tem suas condições definidas desde o nascimento e a noção de que o
indivíduo decorre do meio em que vive. Ambos terminam por fundamentar a
crença de uma sociedade desigual, cunhada em elementos que justificam a
diferença e a hierarquia dos grupos humanos.
No
entanto,
importante
iniciar
o
estudo
dos
determinismos
e
das
pseudociências a partir da seguinte reflexão:
“Terá havido no mundo alguma sociedade realmente igualitária
na qual os homens desfrutassem de maneira semelhante os
bens e as oportunidades da vida social? Parece que não. As
evidências históricas mostram que a cultura humana esteve
sempre intimamente ligada, desde os seus primórdios, à idéia
da distinção e da discriminação entre grupos sociais. Mesmo
nas sociedades mais homogêneas e simples existiam
diferenças de sexo e idade atribuindo aos grupos assim
discriminados funções diferentes, certa parcela de poder,
determinados direitos e deveres. A partir de então nas
sociedades que foram se tornando mais complexas, os
membros não tinham igual acesso a certas vantagens, como,
por exemplo, o poder de decisão e a liberdade. O patriarcado
existente nas mais remotas civilizações, garantindo aos
homens o poder sobre a família e seus bens, demonstra que a
igualdade é, antes de mais nada, uma utopia, um ideal ainda
não vivido pela humanidade”7
Neste sentido, muitos estudiosos se dedicaram a estudar posicionamentos
contrapontos, sendo que parte deles se dedicaram a fundamentar as teorias
deterministas, e outros a desconstruí-las. Stephen Jay Gould
6
foi um
HAWKING, Stephen. Uma Breve História do Tempo. São Paulo, Editora Rocco, 1991, p. 35.
COSTA, Cristina. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. 2 ed. São Paulo: Moderna,
1997.p. 254.
7
7
paleontólogo e biólogo evolucionista. Importante autor no que diz respeito
à história da ciência. Como escritor, este adotou o segundo grupo de
pesquisadores, lutando contra a opressão cultural, e, principalmente, contra a
pseudociência legitimadora do racismo.
Uma das suas principais obras é “A falsa medida do Homem”, que se dedica a
mostrar que todas as "comprovações científicas" da inferioridade de raças e
povos na verdade são apenas fruto da aspiração dos cientistas em
comprovarem seus pontos de vista - leia-se preconceito.
Isto porque, no âmbito dos argumentos deterministas as conclusões já são
preestabelecidas, e os cientistas se dedicavam apenas a procurar provas que
defendam sua tese assim como um advogado que defende uma tese,
dedicando-se a encontrar argumentos que corroborem para a sua acusação ou
defesa. A pseudociência determinista trata-se, pois, conforme restará
comprovado, de uma “ciência advocatória” uma vez que é nítida a sua
tendência a defender as suas conclusões racistas com base em supostos
fundamentos científicos.
3.1)
BIOLÓGICO
O determinismo biológico se alicerça na noção de raça, atribuindo aos
indivíduos características que os definiriam como membros de um grupo racial
específico. Esta teoria, além de fazer distinção entre as raças, se incorporou do
argumento evolucionista8 para estabelecer uma hierarquia entre elas.
O principal expoente da Teoria Evolucionista foi Charles Darwin, que introduziu
o conceito seleção natural para explicar a evolução das espécies. Para Dawin,
a mudança evolutiva ocorre quando modificações genéticas (nas estruturas
8
O evolucionismo (também chamado transformismo ou teoria da evolução) é uma doutrina que
admite a evoluçãoorgânica das espécies. Presente desde a Antiguidade, inquietando espíritos
mais avisados (como Anaximandro, Tales eaté Aristóteles), a tese da evolução dos seres vivos
só se conseguiu impor com o advento da paleontologia e dostrabalhos de Lamarck e de Darwin
no século XIX.
8
físicas) melhoram a capacidade do indivíduo de sobreviver e reproduzir-se,
sendo essas mudanças passadas adiante9.
Esta teoria é amplamente aceita no âmbito científico, restando pacificada a sua
aplicabilidade no que tange a evolução das populações de animais, haja vista
que foi submetida a uma série de testes e comprovações. É a teoria adotada
pois em quase todas as escolas, sendo geralmente confrontada com a teoria
evolucionista proposta por Lamarck, que se baseava na ideia de herança dos
caracteres adquiridos, e a esta considerada superior.
Por óbvio, se tratando do mundo animal, estes cientistas que pesquisavam a
noção de evolução se utilizavam da noção e do conceito de raça. Ocorre que,
neste período as ciências sócias, que já tinham se incorporado deste conceito,
tomaram novo fôlego para continuar difundindo sua concepções racistas
aplicadas aos seres humanos.
“Algumas publicações periódicas versaram o tema (raça), e a
ideia de que a raça entrou numa nova fase da carreira. Mas
ainda faltava qualquer coisa. As ideias evolucionistas eram
lugar-comum antes de 1859, quando Darwin explicou como se
operava, na realidade, o processo evolutivo. As filosofias
raciais estavam muito espalhadas, mas faltava-lhes uma
explicação satisfatória para a superioridade de umas raças
sobre a outras.”10
A partir da incorporação do discurso do Darwinismo Social, determinados
fatores, como por exemplo, constituição física e deformações corporais
passaram a ter o condão de influenciar decisivamente sobre a personalidade
do indivíduo. Importante destacar, que apesar de muitas sociedade terem se
utilizado deste discurso, a significação social de uma característica física era
culturalmente. Diferentes culturas atribuem diferentes significados aos atributos
físicos, valorizando e depreciam determinados caracteres como cor da pele e
volume corporal11.
Geralmente, nas culturas ocidentais a noção do preconceito de cor foi
amplamente difundida, sendo em regra atribuída uma condição de inferioridade
aos indivíduos de cor preta. Esta realidade foi amplamente difundida pela
9
DAVIDOFF, Linda L. Introdução à Psicologia: 3ªed. Tradução LENKE PERES. São Paulo:
Pearson Makron Books, 2001. p. 51.
10
BANTON, Michael. A Racialização do Ocidente. In: A Ideia de Raça. Lisboa. Edições 70. 1979. p. 37.
11
MARCONI, Marina de Andrade, PRESOTTO, Zelia Maria Neves. Antropologia: uma
introdução.7 ed. São Paulo: Atlas, 2008.p. 187.
9
literatura, estando presente também no Cortiço. Uma passagem que deixa
explícito esta noção de que a raça branca seria superior pode ser encontrada
no seguinte excerto, que se refere a relação d Bertoleza com João Romão:
“Ele propôs-lhe morarem juntos e ela concordou de braços
abertos, feliz em meter de novo com um português, porque,
como toda cafuza, Bartoleza não queria sujeitar-se a negros e
procurava institivamente o homem numa raça superior a sua”.
Um ramo das ciências sociais que incorporou estes argumentos científicos para
estudar os seres humanos foi a Antropologia. Esta disciplina tem pelo menos
trê ramos principais, quais sejam: a Antropologia Geral, a Antropologia Social e
a Antropologia Biológica. Esta última estuda o homem enquanto ser biológico,
analisando detidamente suas características físicas e sua carga genética,
definindo o seu percurso evolutivo. Fazem parte desta seção antropológicas as
famosas medições de crânios e esqueletos, que tinham por objetivo
estabelecer sinais diacríticos que pudessem servir como diferenciadores das
‘raças’ humanas12 .
Destacou-se no âmbito jurídico a Teoria do Criminoso Nato, de Cesare
Lombroso, que tinha por fundamento os argumentos antropométricos —
particularmente craniométricos — destinados a justificar a classificação
hierárquica das raças e a condição inata de criminoso dos delinquentes.
Lombroso buscava encontrar estigmas simiescos em indivíduos como forma de
justificar o delito, partindo do pressuposto de que para estudar o crime seria
“preciso culpar (e estudar) a vítima, não seu ambiente”13.
Felizmente, como iremos ver com mais atenção adiante, a noção de raça
humana está superada, sendo absurdo pretender tirar do conceito qualquer
implicação de caráter sócio-cultural com a mesma cientificidade como se fazia
antigamente.14
12
DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 1987, p. 28.
13
GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.
136.
14
DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 1987, p. 28.
10
3.2)
SOCIAL
O determinismo social se fundamenta em uma série de argumentos que
definiriam a personalidade e a condição do indivíduo, dentre eles pode-se
destacar a questão econômica – acesso a recursos, a geográfica – local de
nascimento e o nível socioeconômico. Sendo estes, elementos determinantes
do comportamento humano.
Assim, o elenco do Cortiço contempla as classes sociais brasileiras menos
abastadas. Assim, a obra retrata a grande massa das classes oprimidas,
principalmente negros e mulatos, moradores das favelas e periferias das
cidades. Estas pessoas são representadas nas figuras dos habitantes daquele
ambiente descrito como responsável por corromper as pessoas, animalizandoas inclusive.
Neste sentido, o cortiço atua inclusive como personagem, na medida em que é
o assinalado como responsável direto pela condição de miserabilidade
daqueles indivíduos. A convivência com as pessoas ali residentes, e com o
meio de “insalubridade” ali narrado acaba por corromper as duas figuras que se
destacavam em meio ao “lamaçal” representado, Pombinha e Jerônimo.
Esta condição de inferioridade está relacionada, assim como no determinismo
biológico, com a noção de hierarquia entre os indivíduos. No entanto aqui, a
hierarquia que se apresenta tem como fundamento as classes sociais a que
estão adstritos os personagens. Aqueles de maior condição financeira, João
Romão e Miranda, se destacam dos demais, fazendo inclusive questão de
demonstrarem a sua superioridade no ambiente em que vivem.
Esta desigualdade dos componentes do Cortiço refletem a disparidade social
existente na maioria das sociedades ou grupos. A ideia de “todos são iguais
perante a lei” não passou, até aqui, de um generoso projeto, realizado apenas
parcialmente nas conquistas liberais e assegurado apenas formalmente pela
lei15. Machado Neto afirma que “todas as sociedades até hoje conhecidas
15
Neste sentido, Sabadell estabelece que “Uma forma de discriminação das classes inferiores
dava-se mediante aplicação do princípio da negligência. Os legisladores que estabeleciam em
nível constitucional os princípios de liberdade e de igualdade não mostravam nenhuma
preocupação em garantir a satisfação das necessidades da população desfavorecida. Não
podemos, por exemplo, afirmar que existe liberdade e igualdade no acesso aos bens
11
apresentam o fenômeno eminentemente político da hierarquia. Todas elas
estão internamente divididas, pois, em estratos”16.
“O termo ‘estratificação’ é utilizado na geologia para indicar a estrutura das
rochas que são compostas por diversas camadas ou estratos”
17
. As ciências
sociais incorporaram este termo para indicar que a sociedade se divide em
camadas situadas em diferentes planos, constatando-se um fenômeno de ou
hierarquização das camadas sociais estabelecidas.
Conforme já dito, a estratificação social se caracteriza pela sobreposição
hierárquica de camadas sociais. A depender da importância e da transparência
com as quais as sociedades se estratificam pode-se estabelecer três
categorias de estratificação: a) castas; b) classes e; c) estamentos. Estas serão
explicadas a seguir explicadas pelo sociólogo Adelino Brandão18.
A casta é uma camada social de caráter hereditário, cujos membros possuem
determinadas características que os identificam como grupo, como por
exemplo, adotam a mesma religião ou exercem as mesmas profissões. As
castas se incorporam com o nascimento e apenas delas de libertam com a
morte.
Já as classes são formadas pelo conjunto de pessoas que se encontram na
mesma posição no que pertine ao poder ou prestígio econômico e político dos
indivíduos que as constituem. O autor destaca a ideia de Ginsberg, para quem
uma classe social se caracterizaria pela fonte de renda, formadas assim pelas
pessoas que ocupam a mesma posição no processo de produção formam uma
classe.
educacionais e culturais, pelo fato de existir uma norma que permite o acesso de todos a tais
bens. Se os preços destes bens são inacessíveis para a maioria da população, então a
liberdade e a igualdade perdem todo o significado. Assim sendo, podemos afirmar que o
sistema jurídico ‘neutro’ corresponde sempre aos interesses dos mais fortes, porque trata de
forma igual pessoas desiguais. Esta opção favorece, na prática, a desigualdade social”
(SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: Introdução a uma leitura externa do
Direito. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.p. 220/221).
16
MACHADO NETO, Antônio Luís. Sociologia Jurídica. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 1987. P. 255.
SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: Introdução a uma leitura externa do
Direito. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 211.
17
18
BRANDÃO, Adelino. Iniciação à sociologia do Direito: teoria e prática: suas implicações com
o novo Código Civil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003.pps. 162/163.
12
Já os estamentos se referem a camadas sociais semelhantes as castas, porém
menos fechadas, haja vista que não obrigam o sujeito a nela entrar apenas
pelo nascimento e a permanecer até a morte.
Apesar de se existir uma inegável influência na formação do indivíduo, não se
pode afirmar que este sempre irá determinar características do sujeito, sob
pena de legitimar-se um discurso veementemente racista. Existem pesquisas
que evidenciam que crianças negras frequentemente veem o futuro sem
perspectivas, e dado a esta sua condição mental inferioridade, pode parecer
sem sentido lutar pelos tipos de habilidades acadêmicas favoráveis aos
resultados de QI19.
Este tipo de associação acaba por oprimir ainda mais estes indivíduos que
estão numa suposta condição de vulnerabilidade. Aqui exemplificados pelos
os bóias-frias, os empregados na limpeza, as empregadas domésticas... Estes,
imbuídos na condição de “inferiores” e incapaz de organizar-se para reivindicar.
Assim, acabam por cumprir um desígnio histórico que lhes é imposto, qual seja
entrar no sistema e se admitirem na condição da classe intrinsecamente
oprimida, cuja luta terá de ser a de romper com a estrutura de classes. Sendo
necessário, urgentemente, desfazer a sociedade para refazê-la de forma mais
justa e coerente20.
3.3)
GENÉTICO
Incialmente, interessante trazer à baila uma citação de Gold, em que este
apresenta a ideia de que velhos argumentos são sempre maquiados pela
ciência. Isto porque, mudando-se a roupagem do argumento é possível
defende-lo a partir de uma nova perspectiva.
“A ciência é – e como poderia dizê- lo de forma diferente?
– mais divertida, quando joga com ideias interessantes,
examina as suas implicações e conclui que uma antiga
informação
pode
ser
explicada
de
maneira
19
DAVIDOFF, Linda L. Introdução à Psicologia: 3ªed. Tradução LENKE PERES. São Paulo:
Pearson Makron Books, 2001. p. 307.
20
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.p. 209.
13
surpreendentemente nova. A teoria evolucionista goza
desse incomum vigor no presente momento”21.
O determinismo genético veio, assim, estabelecer novos argumentos para
fundamentos velhos preconceitos. “Vivemos num século mais sutil, mas os
argumentos parecem nunca mudar. As toscas avaliações do índice craniano
foram substituídas pela complexidade dos testes de inteligência”22. A noção de
determinismo genético não se encontra claramente revelada na obra de Aloísio
Azevedo, haja vista que, sendo escrita em 1890, não podia se referir a
conceitos genéticos recentes, como a noção de genoma humano que alicerça
o determinismo genético.
O genoma humano é a denominação que se dá ao conjunto do material
genético contido nos cromossomos de uma célula, responsáveis por distinguir
as pessoas umas das outras. A identidade genética do indivíduo seria assim
base biológica de sua identidade pessoal23. No entanto, o fato de influenciar o
comportamento e algumas características do indivíduo, não tem o condão de
determinar sua identidade.
Importante destacar que os indivíduos tem direito de não serem geneticamente
discriminados24. Isto porque as descobertas científicas devem ser instrumentos
de reforço aos direitos conquistados, dentre os quais se destaca o direito à
igualdade e a um tratamento não discriminatório. Isto porque, caso não se
filiem a esta orientação, acabam por tornar-se “ferramentas para a construção
de novas formas de discriminação e preconceito, como a redução do ser
humano ao seu genoma (reducionismo ou determinismo genético).”25
Apesar da crise da ciência, esta ainda desempenha um papel extremamente
influente nas relações sociais, sendo imprescindível tentarmos delimitar as
acerca dos “benefícios e males da biotecnologia, em especial os provenientes
do campo das investigações e manipulações do genoma humano”.26
21
GOULD, Stephen Jay. A galinha e seus dentes e outras reflexões sobre história natural. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1992.p. 256.
22
GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.
144.
23
PETTERLE. Selma Rodrigues. O direito fundamental à Identidade Genética na Constituição
Brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 175.
24
LIMA NETO, Francisco Vieira. O direito de não sofrer discriminação genética.Rio de Janeiro:
Lúmen Juris. 2008, p. 89.
25
Ob. cit, pps. 49 e 50.
26
Ob. cit, p. 42.
14
4)
PSEUDOCIÊNCIA
Feitas as considerações anteriores, consolidando o conceito de determinismo e
todas as diferentes ramificações pelas quais perpassa, pode-se, somente
agora, traçar a relação entre o determinismo e o que se entende por
pseudociência, na visão do filósofo da ciência argentino Mario Bunge, quando
assinala:
“(_) (iii) Pseudociencia: un cuerpo de creencias y practicas
cuyos cultivadores desean, ingenua o maliciosamente, dar
como ciencia, aunque no comparte con ésta ni el
planteamiento, ni las técnicas, ni el cuerpo de conocimientos.
Pseudociencias aún influyentes son, por ejemplo, la de los
zahoríes, la investigación espiritista y el psicoanálisis.”27
Com efeito, o vínculo existente entre as correntes deterministas e o conceito de
pseudociência
de
Bunge
torna-se
ululante.
É
de
se
notar
que
o
estabelecimento de preceitos para a linha do determinismo não está vinculado
à sua comprovação científica, tampouco com a comprovação da veracidade do
que se sustenta28, por muitas vezes, inclusive, tornando absolutamente inócuo
e autoritário o discurso assumido.
A construção teórica do determinismo, portanto, é pautada em dogmas e
consiste, por vezes, numa forma de satisfação do ímpeto humano da busca da
resposta a todas as indagações possíveis em vida. Isto vem ganhando mais e
mais espaço no contexto atual, uma vez que, com o desenvolvimento
acentuado das técnicas científicas e o significativo fortalecimento do campo
das ciências exatas (com descobertas e avanços seguindo em ritmo
acelerado), há a tentativa de fazer com que o contentamento do ser humano
esteja restrito ao que se produz com o auxílio das novas tecnologias, o que
exclui a possibilidade de questionamento das conclusões29.
27
BUNGE, Mario. La investigación científica. Su estrategia y su filosofia. Ed. correg. Barcelona:
Ariel, 1985. p. 54.
28
A esta conclusão chega Bunge: “Lo malo de la pseudociencia es, en primer lugar, que se
niega a fundamentar sus doctrinas y que no puede, además, hacerlo porque rompe totalmente
con nuestra herencia científica” (Ob cit. p. 55)
29
É este o posicionamento de Volnei Garrafa e Dora Porto: “A tecnologia impulsionada pela
crença amplificou exponencialmente a assimetria de poder desde o pós-guerra, tornando as
relações totalmente desiguais. Saber e poder, associados, instituíram a Santíssima Trindade
15
O discurso determinista, ainda nos dias de hoje, consiste numa pseudociência
e, mais especificamente, numa forma de justificar as disparidades que existem
no seio social, na busca incessante pela redução de risco de qualquer tipo de
movimento que coloque o próprio sistema em risco de colapso. Neste sentido,
são as ponderações de Cristina Costa, ao afirmar:
“Se por um lado não podemos conceber o desenvolvimento
independente dos sistemas econômicos como se eles
possuíssem uma lógica autônoma e isenta da ação humana,
também não podemos cair no outro extremo que procura no
perfil da população as justificativas para sua condição
subalterna. Além do caráter preconceituoso dessas teorias, que
muito facilmente encontraram explicações ‘naturais’ e
biológicas para a condição social das populações carentes, nós
sabemos que o homem, como ser essencialmente cultural,
apresenta características que o próprio meio social lhe
propiciou desenvolver”30.
A ciência vive, pois, o eterno dilema entre a genética e o meio social, ora
atribuindo ao homem mais importância aos elementos biológicos, ora tratandoo como produto do meio em que vive. Essa noção irá variar de corrente para
corrente, de tempo para tempo, mas nunca irá estabelecer uma resposta
científica imparcial,
pois,
como toda
pseudociência
irá apresentar-se
tendenciosa a um dos possíveis determinismos.
O que é marcante e que acompanha a tendência determinista – podendo
auxiliar na percepção deste domínio da ciência hermética – é o contexto social
como
sendo
decisivo
para
estabelecer
os
horizontes
da
corrente
pseudocientífica em comento. Ou seja, as pretensões dominantes (de cunho
ético, político ou mesmo religioso) servirão para delinear o caminho e mesmo a
construção teórica da produção científica determinista31.
da nova crença imposta pela minoria dominante. O saber, a ciência, é o Pai. O poder, a
tecnologia, é o Filho, corporificado nos artefatos tecnológicos que transformam, maravilham e
atemorizam o cotidiano. E o Espírito Santo é a mão invisível que entre eles toca, com as garras
do sistema econômico, os corpos e os espíritos. A eficácia santifica a crença nessa ideologia
que conduz os rumos do saber e alimenta o poder da minoria dos habitantes do planeta. A
associação entre a eficácia e o bem, e entre a ciência e a verdade, sustenta a exploração do
sistema econômico e a opressão política”. (GARRAFA, Volnei; PORTO, Dora. Bioética, Poder e
Injustiça: por uma ética de intervenção. In Bioética: Poder e Injustiça. Org: Volnei Garrafa.Léo
Pessini. São Paulo: São Camilo, Loyola, 2004, p. 43).
30
COSTA, Cristina. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. 2 ed. São Paulo: Moderna,
1997. p. 261.
31
Em semelhante ideia, aduz Francisco Vieira Lima Neto: “(...) a produção científica reflete os
valores e as conquistas de uma sociedade. A história da ciência é também a história dos
valores e preconceitos de uma época. Se uma sociedade é racista, maior a possibilidade de
16
A quebra deste paradigma, por evidência (e como se quis demonstrar até aqui)
faz-se necessária. Uma das saídas possíveis para libertar o campo da
produção do conhecimento desta tendência é a valorização do papel dos seres
humanos na sociedade e, com isso, o reconhecimento do seu valor e da real
igualdade existente entre os membros componentes do organismo social. Não
bastam revoluções que entonem este discurso. O essencial é que se enalteça
a natureza individual e pretenda desenvolver trabalhos no campo do
conhecimento que sejam válidos para a totalidade dos indivíduos, não apenas
beneficiando um seleto grupo32.
5)
A
DESCONTRUÇÃO
DA
CIÊNCIA
E
A
NECESSIDADE
DE
REPENSAR O PARADIGMA
Superado o recorte sobre as correntes deterministas que são fundamentais
para o desenvolvimento deste trabalho (com o fim de enriquecer a
exemplificação, em especial, contextualizada com a obra literária em
destaque), chega-se à construção filosófica do desconstrutivismo, sua
necessária relação com a ciência e os paradigmas modernos e a consequente
forma de repensar o modelo vigente, o qual se encontra em crise, sem que,
todavia, tenha-se uma proposta de solução ideal33.
Certo é que, ainda que não se tenha a fórmula perfeita (o que se duvida ser
possível alcançar) para encontrar a forma ideal da produção do conhecimento
científico, o modelo determinista não o é.
produzir estudos, por mais absurdos que pareçam, ‘provando’ a ‘inferioridade’ dos negros, por
exemplo.” (LIMA NETO, Francisco Vieira. O direito de não sofrer discriminação genética. Rio de
Janeiro: Lúmen Juris, 2008, p. 66).
32
Esta ideia pode ser extraída das conclusões de Ilya Prigogini, ao arrematar: “(...) acredito que
a mudança do ponto de vista determinístico para uma visão que reconhece o papel central da
probabilidade e da irreversibilidade é associada a uma visão mais otimista da natureza e do
papel dos seres humanos” (PRIGOGINI, Ilya. Ciência, razão e paixão. 2ª ed. São Paulo:
Livraria da física, 2009.p. 70.)
33
Francisco Vieira Lima Neto aponta neste mesmo sentido, no que vale conferir os seus
dizeres: “A crise de paradigmas é particularmente angustiante, porque a contestação do atual
padrão, do que está a ser substituído, do que se esgotou, não significa originar imediatamente
um novo, que traga de volta a harmonia e a paz. Na verdade, podemos passar muitos anos sob
o pálio desta crise, afinal não nos esqueçamos de que o paradigma científico/racional somente
se implantou alguns séculos após Descartes e Bacon.”( LIMA NETO, Francisco Vieira. O direito
de não sofrer discriminação genética. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008, p. 47.)
17
O determinismo vai de encontro à ideia de cientificidade, tornando, inclusive,
impossível a aplicação do método de Karl Popper de certificação do caráter
científico por meio da falseabilidade das afirmações, conforme menciona
Stephen Jay Gould, na seguinte passagem:
“O filósofo Karl Popper há décadas vem argumentando que o
principal critério da ciência é a falsidade de suas teorias. Não
podemos jamais provar de forma absoluta, mas podemos
falsificar. Um conjunto de ideias que em princípio não possa
ser falsificado não constitui ciência”34
Com efeito, é comum depararmos com a ideia de que a ciência reproduz uma
verdade comprovada e infalível. Todavia, não é assim que a comunidade
científica deve ver a ciência, pois, o conhecimento científico não é irrefutável e
suas verdades são sempre provisórias, pois duram enquanto não são
retificadas por uma nova teoria ou experiência35.
As ideias deterministas não devem encontrar ambiente fértil para proliferaremse, tendo em vista que a busca pela rotulação de algumas ideias como dogmas
intransponíveis é capaz de negar a própria concepção da ciência e sua
finalidade, qual seja, a busca contínua pelo conhecimento.
A partir do momento em que se estabelecem limites, inquestionáveis para a
própria ciência, está-se negando, consequentemente, o poder de alcance da
produção científica, a qual estará obstada de investigar os pontos já
determinados. A imposição de limites pode condizer com a pretensão de
determinados interesses da sociedade, mas não se coaduna à produção de
conhecimento científico.
Boaventura de Sousa Santos propõe um novo modelo de ciência a partir da
inter-relação entre ciências naturais e ciências sociais, fraturando o modelo
totalitário das ciências naturais, via única e possível para atingir-se uma
34
GOULD, Stephen Jay. A galinha e seus dentes e outras reflexões sobre história natural. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1992.p. 256.
35
É a lição que se extrai das observações de Renan Springer de Freitas, ao afirmar que: “Em um
plano imediato, sua teoria abre ‘candidata a paradigma’ de que a ciência evolui
de acordo com esquema ‘paradigma-ciência normal-crise-novo paradigma’
levando o problema da relação entre crise e revolução científica”. FREITAS,
Renan Springer de. Sociologia do conhecimento, pragmatismo e pensamentos evolutivos.
Bauru: Edusc, 2003.p. 76.
18
“verdade”. Assim, a interação entre as ciências se apresenta como caminho
para uma maior compreensão do objeto de pesquisa36.
6)
CONCLUSÃO
Em linhas de arremate, cumpre fazer uma brevíssima digressão das ideias que
foram expostas aqui, para que, em seguida, possa-se sintetizar a pretensão à
qual se destina o presente trabalho.
Iniciou-se com a demonstração de que a evolução do estudo científico, em
especial, no que diz respeito à necessidade de transmissão do conhecimento
em sede de ensino nas universidades, quando houve a significativa
transformação do conhecimento mais amplo e que perpassava por todas as
diferentes áreas (numa concepção de unicidade), para o entendimento do
conhecimento fracionado – o que permitiu maior aprofundamento das matérias.
Todavia, desde o início, demonstrou-se a necessidade de superação do
paradigma dominante, uma vez que a produção científica no âmbito das
academias não pode estar dissociada do contexto que a circunda. O
conhecimento científico não pode habitar uma ilha, distante de toda a realidade
social e das intersecções entre os diversos campos do próprio conhecimento,
porque, se assim for, não alcançará o fim primordial ao qual se pretende, qual
seja: dar um resultado significativo no campo prático.
Por esta razão, este trabalho é pautado em obra da literatura brasileira do
período denominado naturalismo, qual seja, “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo.
Este período histórico é marcado pelo determinismo, o qual não se restringiu à
Literatura, espraiando-se pela Psicologia, Antropologia, Biologia e, por que não
dizer, pela própria Filosofia.
Neste sentido, ocupou-se de apresentar as especificidades dos diferentes
“determinismos”, suas definições nos ramos científicos e a sua marca comum a
36
SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2008. p.
88.
19
todos: a vinculação às pretensões políticas, religiosas e morais, voltadas a
promover uma estabilização do cenário sócio-econômico.
Novamente, retorna-se, com essa ideia, à necessidade de superação do
pensamento restritivo, adotando-se a quebra da barreira imposta por uma
classe dominante, a fim de que se retorne à produção científica ampla,
transdisciplinar. É o momento em que são apresentadas as correntes do
desconstrutivismo, momento em que se ressaltou a sua importância para a
derrubada dos “muros de Berlim” que separaram os ramos do conhecimento de
forma equivocada, entretanto, preordenada.
Diante disto tudo, é possível trazer toda esta relação e aplicá-la à produção no
campo da pesquisa jurídica. Isso porque o Direito, inegavelmente, constitui, em
grande parte das vezes, numa das formas de transmitir as pretensões de
determinada classe – geralmente, a detentora do poder. Isto porque, não à toa,
o poder de dizer as leis, em que pese tratar-se de democrático em muitos
países, não representa a vontade da maioria da população.
O Direito constitui uma forma de garantir que a estratificação social seja
mantida, os muros sejam cada vez mais elevados, de forma sorrateira e
aparentemente despretensiosa.
À medida em que o conhecimento no campo jurídico é produzido, há a tentativa
de limitação das ideias e, caso sejam ideias consonantes às que pretendem ver
defendidas aqueles que ocupam a classe social dominante, a pretensão é que
recebam o rótulo de dogmas e verdades insuperáveis.
Isto é muito observado no campo da pesquisa jurídica. Tanto na parte que diz
respeito à metodologia a ser utilizada, quanto nos resultados e objetivos dos
trabalhos.
A necessidade de superação das barreiras faz-se presente e, no Direito, é
ainda mais urgente, uma vez que é impossível pensar-se nele de forma
dissociada do contexto social e da realidade que o circunda. Direito que não se
ocupa de atender aos anseios sociais é, para além de ineficaz, inexistente.
20
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