in illo tempore: o mito e a emergência do mundo

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IN ILLO TEMPORE: O MITO E A EMERGÊNCIA DO
MUNDO HUMANO
ALEXANDRO F. SOUZA
MEMBRO DO NÚCLEO DE ESTUDOS IBÉRICOS E IBERO-AMERICANOS DA UFJF.
FORMADO EM FILOSOFIA PELA UFJF.
ALUNO DO CURSO DE MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO DA UFJF.
[email protected]
Introdução
Aos olhos de um ocidental do século XXI, instalado em meio às conquistas
tecnológicas, o estudo do mundo das representações míticas pode parecer um mero
passatempo. Nada além de curiosidades superficiais pode suscitar essas velhas estórias,
absurdas à primeira vista, que compõem o mundo mítico. Por vezes nos deparamos com
tais relatos que, apesar de belos e comoventes em sua forma, são tidos apenas como
estorinhas de tempos de ignorância. Entretanto, cabe-nos resgatar o viço que os relatos
míticos possuíam no passado, a força paradigmática com que eram revestidos pelos
homens que não possuíam nenhum outro tipo de conhecimento a não ser o advindo das
narrativas míticas. Elemento primordial no processo de adaptação do homem ao mundo, o
relato mítico possui uma enorme riqueza para aqueles que se dedicam ao estudo do homem
e da formação da cultura humana.
Este breve trabalho pretende abordar a narrativa mito-poética através da
perspectiva de alguns importantes pensadores ocidentais, tais como Mircea Eliade e Ernst
Cassirer. A abertura do diálogo entre a sabedoria de outrora e o pensamento ocidental
pode, como demonstram tais autores, trazer novas e instigantes perspectivas sobre o
homem e sua cultura. A nós, latino-americanos, o diálogo entre a perspectiva mítica dos
povos que aqui habitavam e o pensamento ocidental pode ser encarado como uma busca de
nossa própria face cultural, possibilitadora de uma autêntica tomada de posição frente à
hegemonia das culturas européia e norte-americana. Não uma posição de enfrentamento,
antagonismo, mas uma posição de co-laboração, de troca de perspectivas de mundo, de
concepções sobre o homem e o mundo da cultura; co-laboração essa que nos permita
superar o aparente estado de submissão demonstrado frente à hegemonia de tais culturas.
I - A Presença do sagrado
Talvez a tarefa de investigar os modos característicos com os quais a categoria
do sagrado se apresenta dentro do pensamento mítico se nos apresente como uma
perspectiva bastante rica e instigante na tentativa de uma abordagem filosófica desse
mesmo tipo de pensamento. Em sua obra “O sagrado”, Rudolff Otto parece ter levado a
cabo tal empreendimento, resultando daí uma maravilhosa obra que, pelo âmbito da
experiência sensível do sagrado, oferece a todo aquele que atraído pela vivacidade e brilho
do pensamento mítico-religioso, deseja se debruçar ante às questões suscitadas por tais
tipos de construções.
O sagrado se manifesta naquilo que ultrapassa o homem. Poderíamos eleger tal
afirmação como síntese da constatação da categoria do sagrado por parte do homem.
Estaríamos dizendo assim que o sagrado se manifesta naquilo que ultrapassa a força, a
capacidade
humana.
Diante
dessa
constatação,
desse
sentimento
de
nulidade
experimentado frente àquilo que o ultrapassa, o homem sente-se apequenado e subjugado
por essa estranha força que o domina e o arrasta em sua determinação. O sagrado se
manifesta naquilo que é inapreensível na existência quotidiana do homem consigo mesmo
e com as coisas do mundo: o nascimento, a morte, a força da natureza; e diante dessa
estranha manifestação, o homem parece não possuir nenhum modo de interferência eficaz.
Cabe-lhe apenas a postura de espectador passivo e assombrado diante do espetáculo do
sagrado que se desenrola ante seus sentidos. Essa constatação de forças que se colocam em
uma esfera inacessível ao domínio e ao conhecimento humano curiosamente se dá por um
amálgama de sensações que já há bastante tempo nos acostumamos a considerar como
contraditórias; geralmente tal percepção daquilo que o ultrapassa desencadeia no homem
das sociedades míticas um misto de sentimentos do tipo atração e repulsão, medo e
fascinação. Em sua lúcida e profunda análise sobre o sentimento religioso, R. Otto vai
nomear esse misto de impressões de mysterium tremendus, de majestas; é a constatação de
uma realidade outra, diferente daquela experimentada na quotidianidade pelo homem das
sociedades míticas. O sentimento do sagrado, a percepção da presença do numinoso,
aparece então como algo que afugenta, mas que, ao mesmo tempo atrai a atenção do
homem para as forças que escapam ao seu entendimento e domínio. O sagrado, o
mysterium tremendum, como nos diz Otto, “designa unicamente o que está escondido, o
que não é manifesto, aquilo que não é nem concebido nem compreendido, o extraordinário
e o estranho, sem indicar com precisão a qualidade”1.
Uma experiência terrífica, irracional e profundamente instigante, tal parece ser
a experiência do sagrado. Ao experienciar de uma força estranha une-se a constatação de
eficácia, de força plena e transformadora, capaz de operar importantes mudanças no espaço
quotidiano. É-nos lícito afirmar que, diante desse confuso feixe de impressões, diante da
observação da eficácia do sagrado, tem-se a expressão do Ser em toda sua plenitude. O
arrebatamento oriundo do encantamento provocado pelo encontro com o sagrado equivale
à observação da eficácia e plenitude dessa mesma categoria. Como nos chama a atenção
Mircea Eliade, “o sentimento de pavor diante do sagrado, diante desse mysterium
tremendum, dessa majestas que exala uma superioridade esmagadora de poder”2 é a
expressão perfeita da plenitude do Ser.
Plenitude, eficácia e presença, tais são as características principais do Ser,
advindos da experiência sensível do sagrado; poderíamos dizer também que, dessa
experiência surge também a característica que marca o sagrado como fundamento de toda
realidade, como substrato de onde toda a realidade se pode dar. Real seria, portanto, aquilo
que se expressa de modo análogo ao sagrado, aquilo que se apresenta e se reveste da
mesma eficácia e plenitude do ser, e que possui o mesmo poder de arrebatamento, temor e
atração do sagrado. Aquela característica que desencadeou o sentimento de presença do
sagrado, aquela característica de plenitude diante do objeto desencadeador do sentimento
1
2
- OTTO, Rudolf. O sagrado, p. 22;
- ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, p. 16;
de nulidade e ineficácia do gênero humano torna-se o índice denotador da realidade por
excelência. Real é tudo aquilo que se apresenta como pleno, eficaz, é tudo aquilo que está
cheio de Ser, onde toda manifestação sagrada se pode dar e onde o homem deseja
alimentar-se, tomar contato com o primordial de onde advém toda a realidade, todo o
mundo circundante.
Tal estabelecimento, ou antes, tal observação da presença do sagrado acaba por
dicotomizar o mundo no qual se insere o homem das sociedades míticas. Ao sagrado, ao
índice de toda plenitude e eficácia, opõe-se o espaço profano, ineficaz e carente onde quer
que se manifeste. O homem que vive no e a partir do pensamento mítico opõe agora o
Profano, o irreal, ao Sagrado, o real e fonte de toda justificação e eficácia. Enquanto a
categoria do sagrado torna-se a medida de toda ação significativa, o profano se estabelece
como índice de desagregação, a decadência desse caráter primordial e originário do
sagrado. Como tal, o profano deve ser abandonado, desprezado, e toda ação que se deseja
significativa, eficaz, deve pautar-se por aquela eficácia demonstrada pela manifestação
primordial do sagrado. O sagrado equivale ao Cosmos, o presente, o eficaz, o Ser em toda a
sua plenitude, enquanto que o profano corresponde ao Caos, ao amorfo, à não presença, ao
não ser e ao devir constante do qual é preciso, se possível, afastar-se. É interessante
notarmos como essa oposição entre o sagrado e o profano se dá nas sociedades orientadas
pela concepção mítica de mundo; em um mito kaiapó, por exemplo, assim fica expressa
essa oposição entre sagrado e o profano:
A nação indígena dos Kaiapós habitava uma região onde não havia o Sol e
nem a Lua, tampouco rios ou florestas, ou mesmo o azul do céu. Alimentavam-se
apenas de alguns animais e mandioca, pois não conheciam peixes, pássaros ou frutas.
Certo dia, estando um índio a perseguir um tatu-canastra, acabou por
distanciar-se de sua aldeia. Inacreditavelmente, à medida que o índio se afastava, sua
caça crescia cada vez mais.
Já próximo de alcançá-la, o tatu rapidamente cavou a terra, desaparecendo
dentro dela. Sendo uma cova imensa, o indígena resolveu seguir o animal, ficando
surpreso ao perceber que, ao final da escuridão, brilhava uma faixa de luz. Chegando
até ela, maravilhado, viu que lá existia um outro mundo, com um céu muito azul e o sol
a iluminar e a aquecer as criaturas; na água, muitos peixes coloridos e tartarugas. Nos
lindos campos floridos, destacavam-se as frágeis borboletas; florestas exuberantes
abrigavam belíssimos animais e insetos exóticos, contendo ainda diversas árvores
carregadas de frutos. Os pássaros embelezavam o espaço com suas lindas plumagens.
Deslumbrado, o índio ficou a admirar aquele paraíso, até o cair da noite.
Entristecido ao acompanhar o pôr-do-sol, pensou em retornar, mas já estava
escuro...Novamente surge à sua frente outro cenário maravilhoso: uma enorme Lua
nasce detrás das montanhas, clareando com sua luz de prata toda a natureza. Acima
dela, multidões de estrelas faziam o céu brilhar. Quanta beleza! E assim permaneceu,
até que a Lua se foi, surgindo novamente o Sol.
Muito emocionado, o índio voltou à tribo e relatou as maravilhas que viera
a conhecer. O grande pajé Kaiapó, diante do entusiasmo de seu povo, consentiu que
todos seguissem um outro tatu, descendo um a um pela sua cova através da imensa
corda, até o paraíso terrestre. Lá seria o magnífico Mundo Novo, onde todos viveriam
felizes3.
Como fica bem expresso no relato mítico, o quotidiano é o profano, onde não há
o Sol e nem a Lua, e onde toda ação parece enfadonha e destituída de um sentido. Ao
contrário, o Mundo Novo, o sagrado, se apresenta como o lugar da beleza e da abundância
por excelência, onde a vida parece se manifestar em todas as suas cores, onde o pulsar da
vida é pleno. O sagrado é um outro mundo de um céu muito azul e abundante de vida,
contrapondo-se ao profano carente, precário e enfadonho. Do cenário do sagrado o homem
não mais deseja se apartar, o que nos leva a afirmar então que, de uma passiva posição de
espectador assombrado diante do bailar da plenitude e eficácia do Ser, o homem das
sociedades míticas assumirá uma posição ativa diante desse mesmo espetáculo, procurando
compreendê-lo e dele fazer uso, procurando uma forma de, sempre que necessário, reestabelecer essa manifestação de puro poder e eficácia. Isso talvez se dê no processo de
construção das narrativas míticas, onde, arriscaríamos dizer, que o homem empreende uma
tarefa intelectual de apreensão e sistematização desse sentimento da presença do sagrado.
Ao realizar a oposição entre sagrado e profano, o homem das sociedades míticas realiza
uma primeira diferenciação qualitativa da realidade; daquele substrato de impressões “onde
tudo está pré-contido, mas onde não se efetuou ainda a separação original entre o
verdadeiro e o falso, o ser e o nada, o saber e a opinião, o racional e o não racional”4; o
homem das sociedades míticas realiza uma diferenciação entre o real e o irreal, entre o
precário e a plenitude, entre a eficácia e não eficácia, diferenciação essa que lhe permitirá
compreender e, de certa forma, operar a realidade.
3
4
- SILVA, Waldemar de Andrade e. Lendas e Mitos dos índios brasileiros;
- LADRIÈRE, Jean. Vida Social e destinação, p
Espaço, tempo e pensamento mítico
Se detivermos nossa atenção sobre as categorias de espaço e tempo, veremos
que, segundo o pensamento mítico, estas também se inserem na dicotomia entre o sagrado e
o profano.
O espaço, segundo o pensamento mítico, se diferencia qualitativamente entre
espaço sagrado e espaço profano, entre espaço onde toda manifestação do Ser acontece e
espaço onde desenrola-se o devir da quotidianidade profana. Segundo o pensamento mítico,
o espaço é heterogêneo, diferenciando-se qualitativamente do espaço profano porque
encerra em si a possibilidade de manifestação da plenitude do Ser. É comum observarmos
nas diversas formas do relato mítico a prescrição de zelar pelo solo sagrado. Tal prescrição
visa recortar, delimitar o espaço sagrado - aquele espaço de onde o Ser irradia toda a sua
plenitude - do espaço profano, o irreal por excelência. Assim, quando Iahwé, no meio da
sarça ardente fala a Moisés, este recebe a advertência de não pisar calçado naquele espaço,
sagrado por excelência e local de manifestação do Ser. Seria interessante contrapor essa
concepção, que se diferencia qualitativamente, da concepção
físico-matemática
contemporânea do espaço. Este se difere apenas quantitativamente e, uma vez que é
homogêneo, possui a mesma forma e as mesmas propriedades. Poderíamos dizer que,
enquanto este é um espaço teórico-conceitual, aquele, o espaço do pensamento mítico, é um
espaço concreto, vivido, onde a manifestação do sagrado se dá em toda sua plenitude.
Enquanto o espaço teórico pode ser abstraído, porque é fruto da capacidade simbólicodiscursiva do entendimento humano, o outro só pode ser apreendido em sua concretude
física, em sua manifestação sensível; o signo, no pensamento mítico, está como que fundido
naquilo que procura significar. Não pises em solo sagrado, desfaça-te de todo vestígio de
terra santa, tais advertências nos indicam o posicionamento e o modo como o homem das
sociedades míticas se relaciona, em sua existência, com o espaço.
Voltemos agora a nossa atenção para a questão do tempo nas sociedades míticas;
aqui, como era de se esperar, repete-se novamente a oposição entre o sagrado e o profano,
real e irreal. Enquanto o tempo profano aparece como o tempo de degeneração, o tempo
sagrado, o tempo fabuloso dos primórdios aparece como o tempo onde o Ser se apresenta
em toda sua completude e eficácia. O tempo profano geralmente está ligado ao tema da
queda, e aqui é possível novamente observar a presença da precariedade; esse tempo
profano é fruto de uma falta original, de um pecado que lança o homem na precariedade e
derelição do tempo ineficaz. Tempo ilusório, degeneração da ordem primordial, esse tempo
tem sua existência marcada pela finitude, ele é limitado pelo tempo sagrado, tempo
fabuloso que é sua origem e fundamento. Esse tempo, o tempo fabuloso do princípio, é o
tempo dos deuses, heróis e antepassados que deram origem ao mundo e que o constituíram
tal como o homem das sociedades míticas o percebe, e que, devido a isso transborda a
plenitude do Ser. Este é o tempo que o homem das sociedades míticas coloca como télos de
sua existência, pois ele é o real, fonte de onde emana a eficácia e o fundamento do mundo.
Novamente, no todo, podemos dizer que o tempo é, para o homem que se orienta pela
perspectiva mítica, um tempo heterogêneo, cheio de fissuras; nele insere-se o tempo
fabuloso do princípio e o tempo precário da quotidianidade. Em “O mito do eterno
retorno”, Eliade nos mostra como as sociedades míticas compreendem o tempo. O tempo
que dá origem ao mito do eterno retorno é o tempo fabuloso do princípio, tempo esse que é
origem e fim de toda existência.
O mito como investigação ontológica
Até aqui afirmamos que o sagrado é, para o homem das sociedades míticas, o
real por excelência, a manifestação do Ser em toda a sua plenitude. Com tais afirmações
preliminares, podemos também caracterizar o pensamento mítico como uma ontologia
arcaica, uma vez que tal pensamento parece preocupar-se com os fundamentos últimos de
toda a realidade. A realidade última das coisas é trazida à luz do entendimento humano pela
força da narrativa mítica. Com Eliade, seria-nos permitido dizer que:
Pouco importa que as fórmulas e as imagens através das quais o
“primitivo” exprime a realidade nos pareçam ingênuas e até ridículas. É o sentido
profundo do comportamento primitivo que é revelador: Esse comportamento rege-se
pela crença numa realidade absoluta que se opõe ao mundo profano das “irrealidades”;
em última instância, aquele não é verdadeiramente um “mundo”, mas o “irreal’ por
excelência, o não-criado, o não existente, o nada.
Podemos portanto falar de uma ontologia arcaica, e só através dela
compreenderemos – e por isso, não desprezaremos – o comportamento do “mundo
primitivo”, até mesmo o mais extravagante; com efeito, esse comportamento
corresponde a um esforço desesperado para não perder o contato com o ser5.
Ao relato mítico, podemos atribuir um caráter ontológico; a narrativa mítica
proporciona ao homem das sociedades arcaicas a história, a gênese e as formas como o Ser
se manifesta em todas as suas particularidades. Como exemplo de relato que assume esse
caráter de narrativa ontológica podemos citar “A teogonia”, de Hesíodo, narrativa do
surgimento da realidade em todos os seus pormenores. Encontramos, entre os astecas, um
relato que também pode assumir esse caráter de narrativa ontológica. Transcrevo o relato a
fim de melhor ilustrar a questão:
Quetzalcóatl e Tezcatlipoca observaron a Tlaltecuhtlu cuando cruzaba el
océano, mientras buscaba alimento con sus bocas hambrientas. Indignados con la
presencia de ese monstruo repulsivo que acababa con toda la vida que ellos creaban,
decidieron destruirlo. Bajaron del cielo, se transformaron en serpientes gigantescas y
atacaron a Tlaltecuhtlu. Qetzalcoatl asió una pata, Tezcatlipoca tomo la otra y jalaron
en direcciones opuestas, partiendo el monstruo en dos. Con una mitad del cuerpo,
Quetzalcóatl y Tezcatlipoca crearon la tierra, y con la otra el cielo.
Los cabellos de Tlaltecuhtlu se volvieron flores, hierbas y árboles de los
bosques. La piel de la diosa se transformó en hermosos campos; de sus ojos brotaron
pozos, manantiales y se formaron cuevas; las bocas dieron paso al nacimiento de los
ríos y su nariz formó montañas y valles.
Sin embargo, para proporcionar a los hombres los frutos y los alimentos
que los permitieran subsistir, Tlaltecuhtlu exigió un pago en sangre: corazones
humanos. Por esta razón, ofrecer sacrificios humanos a Tlaltecuhtlu era, para los
aztecas, un ritual obligado puesto que, de no practicarlo de manera regular, la diosa
dejaría de producir alimentos y el pueblo moriría de hambre.6
Em nossa sintética análise a respeito da manifestação da presença do sagrado
buscamos observar o sentimento de pequenez e ineficácia do homem diante da irrupção do
mesmo em sua quotidianidade. Para fins de análise, a posição do homem nessas
considerações iniciais caracterizou-se como uma posição de passividade ante o espetáculo
que se desenrola diante de seus olhos. Tal divisão, porém, não alcança o cerne dessa
5
6
- ELIADE. O mito do eterno retorno, p. 106;
- JANUARY, Brendan. Sorpréndete com la mitologia universal.
experiência em sua totalidade e seria de uma enorme arrogância tentar abarcar a totalidade
dessa experiência em tão despretensioso ensaio. Onde começa a expressão e termina a
impressão é-nos impossível dizer, entretanto, assim dividida, a análise se apresenta como
tarefa menos hercúlea. Talvez seria mais acertado falarmos de uma impressão que já é
uma expressão, um primeiro deixar-se tocar pela manifestação do sagrado que, ao mesmo
tempo, já encerra em si uma evocação expressiva, uma tomada de posição. A expressão, a
tentativa de resposta dada a essa vivência de uma situação que é limite para o homem
talvez se dê na formulação das narrativas míticas, que apareceria-nos como uma tentativa
humana de organizar, orientar e tornar perene tais impressões.
A paixão do mito
Para o homem que vive e se orienta a partir da perspectiva mítica, a
manifestação arrebatadora do sagrado tem um caráter concreto e, portanto, afetivo. Este é
tocado sensivelmente pelo sagrado que, por sua vez, também só pode se manifestar preso à
materialidade. A natureza se lhe apresenta como um jogo de forças, como um grande
embate de desejos, de sentimentos. Se a terra treme é porque a serpente sagrada se move,
se a seca se abate sobre a plantação é porque o deus está zangado por algum motivo. Com
Cassirer, poderíamos dizer que:
O mundo do mito é dramático – de ações, forças e poderes conflitantes. Em todo
fenômeno da natureza nada mais vê que o embate desses poderes. A percepção mítica está sempre
impregnada destas qualidades emocionais: o que se vê ou se sente é cercado de uma atmosfera
especial – de alegria ou tristeza, angústia, excitação, exaltação ou depressão. (...) Todos os objetos
são benignos ou malignos, amigos ou inimigos, familiares ou sobrenaturais, encantadores e
7
fascinantes, repelentes ou ameaçadores
.
Claro que, depois de nossa sucinta análise sobre o sentimento da presença do
sagrado torna-se uma redundância reafirmar o caráter emotivo desse sentimento. Dissemos
acima, que a constatação da presença do sagrado em algum objeto é fator desencadeador
de um amálgama de sentimentos que arrebatam o homem das sociedades míticas.
Entretanto, voltar a afirmar tal característica parece extremamente importante para
7
- CASSIRER, Ernst. Antropologia Filosófica, p. 128;
compreendermos o modus operandi do mito e a concepção de mundo advinda desse modo
de operar a realidade. Poderíamos dizer que o pensamento mítico é uma forma de
pensamento holístico/afetiva, uma vez que procura compreender o mundo em sua
totalidade e uma vez que compreende esse mesmo mundo como um constante embate de
forças divinas. Assim, em muitos relatos míticos, a criação do homem se liga ao tema da
solidão de deus, o surgimento desta ou daquela montanha tem sua origem numa disputa de
amor. Exemplifiquemos a questão com alguns relatos míticos, este que se segue, pertence
à tradição dos aborígines dos Andes peruanos:
Sucedió en la región de Huanuco.
Una gran sequía, que duró muchos días, hizo que todas las plantas
perecieran, incluidos los líquenes y los musgos. La tierra se cuarteó polvorienta, sin
árboles que dieran sombra a los animales. La flor de kantu, la que brota en la aridez del
desierto, sintió que sus pétalos morían. Un capullo, aún intacto y reacio a morir,
comenzó a transformar sus pétalos en alas y agitándolos durante toda una noche,
consiguió desprenderse de la planta calcinada convertido en colibrí.
Se dirigió hacia la cordillera i llegó hasta el lago Huacracocha, cuyas
aguas se habían secado. Contempló la superficie, admiro el lugar y voló durante días
hacia la cumbre del cerro Huaitapallana. Ya cansado, se poso en la cima helada por el
viento y en su último esfuerzo suplicó piedad al espíritu de Huaitapallana y salvación
para la sequía. Luego el colibrí murió.
El cerro se mostró acongojado por esa muerte y por la tierra estéril y
devastada. Sintió en su cima al aroma fresco de la flor de kantu y se entristeció; esa flor
solía adornar los atuendos de los hombres en la fiesta que le tributaban antes del
invierno. Su dolor fue tal que lágrimas de dura roca resbalaron hasta la superficie del
lago Huacracocha. Enseguida las aguas se abrieron haciendo resonar la tierra.
El estruendo y las lágrimas del cerro Huaitapallana llegaron hasta el
fondo del lago y despertaron al Amaru, que descansaba con su largo cuerpo enroscado a
lo largo de la cordillera y su cabeza sobre el fundo del lago.
Los días que el Amaru se desperezaba, la tierra se movía con violencia.
Así se sucedió en la laguna; de inmediato sus aguas se agitaron en un oleaje
tempestuoso. Entre la espuma de la superficie apareció la cabeza del Amaru y luego su
cuerpo de serpiente alada con cabeza de llama y cola de pez. Los ojos cristalinos, el
hocico rojo.
Entonces el Amaru se elevó en el aire eclipsando el sol y el mundo vio sus
ojos que estallaron de ira. Diez mil guerreros con corazas e flechas se lanzaron a
combartilo. La lucha duró muchos días y noches; desde entonces el mundo se pobló de
nuevos elementos. Del hocico del Amaru surgió la niebla que habita los cerros de las
montañas, del movimiento de sus alas, la lluvia; de su cola de pez, el granizo y de los
reflejos dorados de sus escamas, el arco iris.
Así renació la vida cuando ya parecía extinguida. Así renació la tierra y se
colmaron de agua clara los arroyos.
Todo estaba escrito en las escamas del Amaru, la vida, las palabras, las
noches, el destino, los sueños…8
Ou ainda esse próximo relato, pertencente à tradição dos já extintos Selknan,
que habitaram a Terra do Fogo:
Kenós era un coloso de extraordinaria altura.
Habito la Tierra durante los tiempos en que solo se veía un inmenso y
desolado desierto. Su padre era Temaukel, el creador del universo. Había enviado a
Kenós para que diera forma y creara vida sobre la superficie del mundo. Luego de
mucho tiempo de vivir en soledad, sintió la necesidad de un compañero. Miró con
tristeza hacia el cielo de la noche fría y Temaukel entendió su lamento. Le concedió la
capacidad de criar otros dioses grandes e semejantes a él.
En poco tiempo, Kenós creó tres hermanos gigantes. Sus nombres fueron:
Cenuque, Cóoj e Taiyín. Con ellos recorrió el mundo formando montañas, cubriendo
con nieves sus cumbres, creando los bosques, los animales grandes e pequeños, los que
vivían de día y de noche. Formaron todas las plantas: las que tienen raíces afirmase por
sí solas y las que cuelgan desde los árboles. Cada uno de los seres de la tierra fue obra
de Kenós, Cenuque, Cóoj e Taiyín.
Las infinitas travesías agotaron el cuerpo de Kenós. Un día, sintiéndose
muy viejo y cansado llamó a sus tres compañeros para avisar que había llegado el
tiempote su muerte. Pidió a sus hermanos que lo acompañaran hacia el sur, ya que
mirando el sur mueren los guerreros.
Emprendieron lo camino.
Cuando llegaron al lugar elegido por Kenós, éste les indicó la manera en
que debían darle sepultura. Tenían que cavar el suelo durante tres días y acomodar su
cuerpo de manera tal que pudiese mirar a Temaukel.
Cuando la fosa estuvo lista, Kenós miró a sus tres hermanos ancianos y
antes de descender les dijo:
- Todas las formas tienen su tiempo. Aguarden y entenderán.
Los colosos se marcharon. Pero luego de seis inviernos vieron a Kenós
pararse en sus pies. Comprendieron, entonces, que eran inmortales y que cada cantidad
de años siempre volverían ser jóvenes.
8
- JANUARY, Brendan. Sorpréndete com la mitologia universal.
Los gigantes vivieron su destino de dar color y forma al desierto. Esa tarea
estaba a punto de concluirse cuando Cóoj el más enérgico, el más puro, se acercó a
Kenós y le dijo:
- Otra vez ha llegado mi hora de reposo. Ahora, sin embargo, no deseo
volver a renacer. Mi cuerpo está muy cansado y mi alma anhela su sitio final junto a
Temaukel.
Kenós lo miró con tristeza, pues sabía que su naturaleza de inmortales los
condenaba a estar lejos de Temaukel. Así se lo hizo saber a Cóoj. El reposo de sus
almas no podía encontrar su lugar definitivo en la tierra.
Nada supo decir Cóoj.
No comprendía el significado de inmortal y se marchó muy triste.
Caminó rumbo al este, derramando con amargura ríos y ríos de lágrimas
que cayeron sobre la tierra cubriéndola de agua salada. Era un agua que el calor del sol
no alcanzaba a secar.
Aquel sentido llanto anegó las quebradas y los valles de oriente.
Su pena fue tan grande que cuando detuvo su marcha y miró hacia
poniente pensando en regresar junto a Kenós, no vio los territorios por los que había
andado.
Aquellas lágrimas habían formado enormes lagos.
Entonces Cóoj entendió cuál había sido su último gran trabajo y supo del
destino final de su alma. Con un último esfuerzo inclinó su cuerpo sobre las orillas,
besó por última vez la roca seca y se sumergió en el mar9.
Os relatos acima transcritos felizmente não são uma exceção dentro do
universo das narrativas míticas, parecem que são, aliás, uma regra do proceder mitológico.
O emotivo liga-se ao tempo fabuloso do princípio e a natureza nada mais é do que
resultado da paixão do mito ocorrida in illo tempore.
Mito e homogeneidade da vida
Outro ponto característico do pensamento mítico encontra-se no fato de ser ele
um pensamento que abarca a vida em toda a sua diversidade. Para o pensamento mítico
não há uma divisão fixa entre ao variadas espécies e, até mesmo, entre seres animados e
inanimados. Toda a realidade, sendo sagrada, é plena da manifestação primordial do Ser
9
- JANUARY, Brendan. Sorpréndete com la mitologia universal.
da qual tudo se originou e que ainda se mantém presente na quotidianidade; isso basta,
portanto, para que todo objeto que emana a presença do sagrado seja considerado “vivo”
para o pensamento mítico. Montanha, mar, animais, todos eles comunicam-se com o
homem, e essa comunicação é instaurada pelo caráter sagrado que todos encerram em si;
seus seres são resultados da criação original, estes estão repletos de Ser, nada mais natural,
portanto, que a comunicação entre os vários níveis da vida e os vários níveis da natureza
seja possível. Homens que se transformaram em montanhas, deuses que se fazem homens,
animais que se tornam grandes guerreiros e vice e versa; tais temas são constantes dentro
das tradições míticas e isso, talvez se dê pelo fato de todos se unirem pelo laço do sagrado.
A antropomorfização da natureza e de seus processos, da vida em suas mais variadas
formas seria, nesse sentido, apenas uma imagem ilusória do mundo mítico. O homem das
sociedades míticas não se coloca no centro da realidade, não estende sua forma aos
fenômenos que o cerca, antes, tal plasticidade torna-se possível justamente pelo fato de
toda expressão da vida ser abundante do mesmo Ser. Homem e animal, mar e montanha,
todos trazem a presença do sagrado, que é sua fundamentação última e origem comum. O
pensamento mítico, nesse âmbito, revela-se então como um pensamento do Cosmos, é a
ordem advinda do tempo fabuloso, daquele fiat originador de toda a realidade que
possibilita a comunicação e a transformação entre as mais variadas formas de vida. No
mito encerra-se um pensamento que se enraíza profundamente na natureza, uma natureza
que só se torna compreensível pelo fato de comunicar-se com o homem. O homem é, de
certa forma, imagem da natureza e está aberta comunicativamente a ela. Essa característica
nos fica bem expressa no relato abaixo:
Sinaá, o mais poderoso pajé da tribo Juruna, era filho de mãe índia e pai
onça. Do felino herdara o poder de enxergar também pelas costas, o que lhe permitia
observar tudo o que se passava ao seu redor. Caminhava com sua gente por toda a
região, ensinando seus companheiros a serem bons e bravos.
Seu povo alimentava-se de farinha de mandioca, raspa de madeira, jabutis
e sucuris, cobras imensas que habitam na água.
Certa vez, uma enorme sucuri foi capturada e queimada por haver
devorado diversos índios. Inesperadamente brotaram de suas cinzas diversas espécies
de vegetais, como a mandioca, o milho, o cará, a abóbora, a pimenta, e algumas plantas
frutíferas, até então desconhecidas para aquela tribo. Foi um pássaro surgido do céu que
os ensinou a utilizar e preparar tais alimentos e também a fazê-los multiplicar-se. A
partir daquele dia, fartas roças se formaram.
Para garantir o sustento de seu povo, sinaá, em face das fortes chuvas e da
ameaça de inundação, construiu uma imensa canoa, onde plantou mudas de cada
espécie. Em poucos dias o rio transbordou e a enchente cobriu toda a região, mas o
grande pajé livrou seu povo da fome.
Já mais velho, Sinaá casou-se com uma aranha, que lhe teceu novas vestes
para melhor abrigá-lo. Chegando a atingir idade bastante avançada, já ostentava longas
barbas brancas. Seus poderes, porém, permitiam-lhe remoçar a cada banho de
cachoeira, para que pudesse viver até o fim de seu povo, como tanto queria. Quando
isso ocorresse, Sinaá derrubaria a forquilha de uma enorme árvore que apontava para o
céu, sustentando-o. O céu desabaria sobre todos os povos e o mundo teria chegado a seu
fim10.
É importante ressaltarmos essa característica da comunicabilidade entre
homem e mundo, entre homem e coisas do mundo. Aí talvez se encerre o ponto mais
característico da sistematização operada pelo pensamento míticos nos vários níveis da
realidade. Poderíamos dizer que essa visada da existência de uma forma de comunicação
com o mundo e as coisas desse mundo é que traz ao homem a possibilidade de construir, a
partir dessa comunicação, um sistema de conhecimento que lhe permita influir nos
processos da realidade. Se a natureza lhe fala, se o mundo e o homem pulsam num mesmo
ritmo, o ritmo cósmico, torna-se possível, de certa forma, penetrar nos mistérios dessa
mesma natureza; ela, não sendo tão insondável assim, talvez possa apresentar fissuras que
possibilitem a intervenção do homem. Por ser acessível ao homem, o ritmo cósmico pode
também ser por ele modificado. Através da observação estrita de tais ritmos e a apreensão
de suas mais fortes características torna-se possível ao homem, de alguma forma, superar a
passividade inicial e o sentimento de derelição que este experimenta ante a presença do
sagrado.
10
- SILVA, Waldemar de Andrade e. Lendas e Mitos dos índios brasileiros;
II - O mito e a emergência do mundo humano
Acabamos de afirmar que o homem das sociedades míticas, pelo laço do
sagrado que o une a todos as coisas da natureza, percebeu que elas lhe falam, que lhe
transmitem seus ritmos vitais, e até mais, que o próprio homem pulsa no mesmo ritmo,
uma vez que ambos compartilham da mesma origem comum. Essa descoberta pode,
portanto, levar o homem a, de certa forma, dominar a natureza, colocá-la a seu serviço;
para tanto basta observar mais atentamente aquilo que a natureza lhe comunica, aquilo que
ela diz de si ao homem. A natureza aberta à comunicação com o homem permite-se ser
compreendida e permite que o próprio homem se compreenda ao compreendê-la. De uma
postura passiva experimentada ante a manifestação da presença do sagrado, o homem
percebe que, agora uma nova face da natureza se lhe abre e se lhe mostra aberta à sua
influência. Essa grande e revolucionária descoberta, pode–se dizer que é “a descoberta de
si presente na totalidade e a descoberta da totalidade presente na intimidade do si. Ou
ainda, é a experiência da abertura enquanto tal, a descoberta do ser finito e da realidade
infinita, é pois o ultrapassar da finitude e da temporalidade e também o ultrapassar da
experiência de derelição”11.
Dissemos mais acima que essa tentativa de superação da heterogeneidade do
mundo se dá com a sistematização da experiência da presença do sagrado num complexo
de narrativas míticas que organiza e direciona as forças do Ser que se manifestam nessa
experiência. Podemos dizer, portanto, que o mito é um veículo possibilitador da
compreensão do mundo e do homem, bem como uma forma de prescrever modos eficazes
de interferência nos processos cósmicos e de se organizar o todo social. Com a forma do
mito, o homem vislumbra a possibilidade de, sobre o mundo natural, instaurar um mundo
humano ideal, um mundo do seu tamanho, onde se torna possível interferir e guiar os
processos do mundo natural segundo seus desejos. Podemos dizer que a emergência de um
mundo mítico é que torna viável a emergência de um mundo humano. Ao mundo da
natureza, ou entre ele e o mundo humano, o homem contrapõe o mundo mítico que:
11
- LADRIÈRE, Jean. Vida Social e destinação, p. 41;
Tornando compreensível o mundo da cultura (...) permite ao homem
compreender-se, dizer a sua própria situação e apreender-se como ser mediador,
enraizado na natureza, mas ao mesmo tempo capaz de instaurar uma ordem de regras e
símbolos que já não é mais a da natureza, mas ligada ao mundo das potências sobrehumanas, porém ao mesmo tempo instalada em seu próprio reino que é precisamente
um lugar intermediário, totalmente mediação12.
Com um conjunto de narrativas míticas, o homem tem acesso à história do
surgimento do mundo em todos os seus detalhes e, ao relatar a gênese de tudo aquilo que
é, de certa forma o mundo narra o processo que deu origem ao próprio homem. Com
Eliade poderíamos dizer que:
Os mitos relatam não só a origem do mundo, dos animais, das plantas e do
homem, mas também todos os acontecimentos primordiais em conseqüência dos quais o
homem se transformou naquilo que é hoje, ou seja, um ser mortal, sexuado, organizado
em sociedade, obrigado a trabalhar para viver e trabalhando segundo determinadas
regras. Se o Mundo existe, se o homem existe, foi apenas porque os Seres Sobrenaturais
desenvolveram uma atividade criadora nas “origens”13.
Ao derivar toda a sua situação atual de um acontecimento mítico ocorrido no
tempo fabuloso, o homem sacia a sua própria sede de sentidos para a sua existência e se
arma de formas eficazes de construir o seu próprio mundo, pois, sendo imagem da criatura
divina, tendo em si a aura mítica que emana das coisas sagradas, o homem pode também
construir um mundo propriamente seu, o mundo da cultura. Uma nova dimensão da
realidade se abre ao homem com o poder do mito; agora ele não mais se encontra à mercê
dos acontecimentos cósmicos, mas, por conhecer a gênese do real, pode colocar algo como
mediação entre ele e a natureza. “O pensamento mítico” – diz Cassirer – “apreende uma
estrutura inteiramente determinada, concreta e espacial, a fim de, a partir dela, levar a
termo o conjunto de “orientação do mundo””14. Aquele sentimento de pura passividade e
nulidade, o escorrer do acontecer fenomênico do mundo natural, que era sentido como
algo ultrapassante e inapreensível torna-se, com a força do relato mítico, uma realidade
capaz de ser conhecida pelo homem; e com esse conhecimento da realidade trans-humana
torna-se possível a articulação de um horizonte dotado de sentido e menos hostil ao gênero
12
- LADRIÈRE. Op. cit., p. 205;
- ELIADE, Mircea. Aspectos do mito, p.17;
14
- CASSIRER, Ernst. Filosofia das formas simbólicas. Vol. II – O pensamento mítico, p. 167;
13
humano. Diríamos que o mundo mítico é o esteio do mundo humano; um alicerce que
permite ao homem instaurar um mundo seu sobre o devir constante da realidade
fenomênica. Há uma realidade maior, mais eficaz, originadora que cerca o homem, e o
conhecimento dessa realidade permite a superação da dominação dessa mesma realidade:
A existência do Mundo é o resultado de um ato divino de criação, as suas
estruturas e os seus ritmos são conseqüência de acontecimentos que ocorreram no início
do Tempo. A Lua tem a sua história mítica, e também o sol e as Águas, as plantas e os
animais. Todo o objeto cósmico tem uma “história”. Isso significa que é capaz de
“falar” ao homem. E porque “fala” de si mesmo, sobretudo de sua “origem”, do
acontecimento primordial em conseqüência do qual passou a existir, o objeto torna-se
real e significativo, Já não é um “desconhecido”, um objeto opaco, inapreensível e
desprovido de significado, em suma, “irreal”. Ele participa do mesmo “Mundo” do
homem.
Uma tal comparticipação não só torna o Mundo “familiar” e inteligível,
torna-o também transparente. Através dos objetos deste Mundo, o homem apercebe-se
dos vestígios do Seres e dos poderes de um outro mundo. É por isso que (...) para o
homem arcaico o Mundo é simultaneamente aberto e misterioso. Falando de si mesmo
o Mundo remete para os seus autores e protetores e conta a sua “história”. O homem
não se encontra num mundo inerte e opaco, e, por outro lado, ao decifrar a linguagem
do Mundo, ele conforta-se com o mistério. Porque a “Natureza” desvenda e camufla
simultaneamente o “sobrenatural”, e é aí que, para o homem arcaico, reside o mistério
fundamental irredutível do Mundo. Os mitos revelam tudo o que aconteceu, desde a
cosmogonia até ao estabelecimento das instituições socioculturais15.
Nessa sucinta afirmação podemos perceber o inestimável valor do mito; como
a partir de suas formas, o homem pode sair da opaca e hostil plenitude do mundo natural
dos acontecimentos e fundar um mundo que lhe seja permitido direcionar. Como Cassirer,
citando Max Muller, nos diz, “seria completamente impossível agarrar e reter o mundo
exterior, conhecê-lo e entendê-lo, concebê-lo e designá-lo sem esta metáfora fundamental,
sem esta mitologia universal, sem este ato de insuflar o nosso próprio espírito dentro do
Caos dos objetos, e refazê-los, voltar a criá-los, segundo a nossa própria imagem”16.
15
16
- ELIADE. Aspectos do mito, p. 121;
- MULLER, Max apud CASSIRER. Linguagem, mito e realidade, p. 105;
Caos e Cosmos
Geralmente encontramos nas narrativas míticas o contraste primordial entre o
Caos e o Cosmos, entre o Nada e a Criação. “Naquele tempo” – dizem as narrativas
míticas – “só havia água sobre a superfície da Terra, até que deus decidiu, sentindo-se só,
criar todas as coisas”. Tais relatos contam como, nos fabulosos tempos do princípio, um
deus, um herói ou um antepassado civilizador fizeram surgir a ordem de um estado
amorfo, onde ainda nada se podia vislumbrar. Ao proferir o fiat instaurador de toda ordem,
o deus, o herói ou o antepassado faz emergir do Caos indiferenciado a ordem apresentada
pelo mundo na perspectiva do homem das sociedades míticas. Atrelado sempre ao “como”
cada coisa veio a existir, o relato mítico explica também o “por quê” tal coisa veio à
existência. Junto à sua origem encontra-se o télos justificador do objeto em questão. O
contraste entre Caos e Cosmos apresenta-se como uma categoria interessante às nossas
observações, pois é desse momento primordial que se origina toda a realidade, e também
por esse evento ser a demonstração cabal da eficácia dos Seres divinos. Esse aspecto salta
à nossa observação pelo fato de ser essa eficácia a medida para toda ação humana que se
deseja significativa. O fiat originador do Cosmos constitui um modelo primordial para
toda ação humana justamente pelo fato de ser abundante da plenitude e do poder
transformador manifestado in illo tempore. O contraste entre Caos e Cosmos, nãoexistência e existência surge-nos, portanto, como uma das principais, quiçá a principal,
característica do pensamento mítico. Ao narrar o modo como as coisas vieram à
existência, ao narrar o combate primordial entre o elemento agregador e o elemento
desagregador, o mito aponta o modo como o homem deve agir na sua atividade criadora,
onde quer que esta se dê. Para onde quer que olhemos, dentro da perspectiva mítica toda
ação transformadora segue esse mesmo princípio, é preciso transformar o Caos em
Cosmos, ou seja, é preciso fazer com que o real venha à existência, e isso se faz
principalmente pela ação transformadora do mito.
Rito e tempo sagrado
É interessante notar como se articulam as categorias do rito, do espaço e do
tempo sagrado nas sociedades que se orientam pela perspectiva mítica. Acabamos de
afirmar o aspecto modelar do mito e aqui apontamos como o rito se constitui o elemento
possibilitador da evocação desse fiat originário. Nos detivemos também, mais acima, nos
aspectos heterogêneos do tempo, do modo como a consciência mítica articula tempo
sagrado e tempo profano. Dissemos que enquanto o tempo profano é aquele tempo
precário, onde a ordem estabelecida pelo ato cosmogônico se deteriora, o tempo sagrado é
o tempo forte onde ainda se pode perceber a total manifestação do Ser. O tempo fabuloso
do princípio é o tempo pleno, eficaz e indeclinável, que se situa nos primórdios do Mundo,
mas que ainda pode ser sentido na manifestação da presença do sagrado. A narrativa
mítica bem expressa essa dicotomia uma vez que:
O mito explica o mundo presente vinculando-o, pela força da narrativa, a
um tempo original em que este mundo foi talhado a partir de um elemento anterior,
informe e indiferenciado. O tempo original não é o tempo atual, de cujas propriedades
profundamente difere: o tempo atual é a passagem, deterioração, queda, desagregação,
iminência sempre ameaçadora de um desmoronamento radical, de um retorno ao
indiferenciado, enquanto o tempo original é a capacidade sempre ativa, força
organizadora sempre atuante, operando no atual, capaz de reefetuações indefinidamente
repetidas, sempre suscetível de ser chamado do fundo do seu passado imemorial, desde
sempre revolvido, para vir salvar o presente da dissolução que o ameaça. O tempo
presente está aqui, mas instável e sem força. O tempo original está indefinidamente
longínquo, mas sempre ativo e indeclinável. A origem está, portanto, distante e próxima
ao mesmo tempo, é estabelecida numa descontinuidade radical com este mundo, dentro
do qual, porém, ao mesmo tempo é sempre interpelável, e sua reatualização assegura
que este mundo se mantenha na figura ordenada que é a sua17.
Como bem expressa Ladrière, o tempo fabuloso das origens pode ser evocado,
tornado presente novamente; ao tempo que deve a sua heterogenia à dicotomia entre tempo
sagrado e tempo profano, podemos somar também esse caráter de descontinuidade do
tempo sagrado. É o mito do eterno retorno que nos aparece em sua mais clara configuração.
O tempo fabuloso do princípio pode ser re-efetuado; a plenitude do ser pode ser novamente
evocada através desse princípio simples de retorno ao indeclinável e pleno tempo de
origem. O tempo profano, como tempo desagregador, que tende a levar o Cosmos
17
- LADRIÈRE, Jean. A articulação do sentido, p. 191;
novamente para a forma indiferenciada, pode ser anulado ou revertido com o processo de
evocação do tempo fabuloso das origens, manifestação plena do elemento agregador,
civilizador. Essa evocação faz-se por intermédio do rito, que possui por função justamente
evocar esse tempo fabuloso dos primórdios. Através do rito, o homem das sociedades
míticas instala-se novamente naquele tempo primordial, pleno de eficácia e de onde tudo se
originou. Ele bebe novamente da fonte primordial de onde emanou a vida. Ao fazer uma
regressão ao início dos tempos, o homem das sociedades míticas anula os efeitos
degradantes do tempo profano, re-instalando o mundo naquele momento mágico onde
ocorreu a separação entre Caos e Cosmos. O momento mítico da cosmogênese pode ser
repetido indefinidamente, o Cosmos pode ser re-atualizado. Ao evocar esse tempo fabuloso,
o homem re-engendra o mundo, cosmiciza-o novamente, dá-lhe o mesmo vigor de outrora.
Como bem nos diz Eliade, esse tempo fabuloso dos primórdios “é a suprema manifestação
divina, o gesto exemplar de força, superabundância e criatividade. O homem religioso é
sedento de real. Esforça-se, por todos os meios, para instalar-se na própria fonte da
realidade primordial, quando o mundo estava in statu nascendi”18.
Essa tentativa de instalar-se novamente no viço do mundo in statu nascendi é
conseguida pela força re-engendradora, re-constituidora do mito. O tempo fabuloso das
origens está presente, por exemplo, no tempo litúrgico onde homem experimenta a força do
real em seu primeiro aparecer.
Se seguirmos um pouco mais adiante em nossa análise, perceberemos que não só
o regresso ao fabuloso tempo do princípio é possível; assim como é reversível, o tempo
pode também ser acelerado em seu processo de desagregação. Assim como regredir,
avançar no tempo profano e acelerar o seu processo de destruição também é possível. A
prática da aceleração do processo de degradação do Cosmos tem sua expressão mais forte
nos mitos que relatam, ou prescrevem, a forma de se cultivar a terra. Nesses momentos
torna-se preciso re-engendrar o Cosmos, torna-se necessário fazê-lo regredir ao estado de
pura indeterminação, onde nada está criado, mas onde tudo se pode dar. Assim, quando se
faz a semeadura, tem-se uma imagem desse retorno ao amorfo, ao indiferenciado da
natureza, de onde a planta poderá surgir como uma nova vida, um novo Cosmos, pleno da
manifestação do sagrado. É aí que têm lugar os ritos de aceleração da ação degenerativa do
18
- ELIADE. O sagrado e o profano, p. 72;
tempo profano. Geralmente, tais ritos se caracterizam pela degeneração da ordem social
estabelecida, vive-se um momento de caos frenético que se assemelha ao Caos inicial de
antes da criação. Estes são os ritos de bebedeira, de orgias, onde pela experiência do frenesi
orgiástico tem-se lugar a desagregação do Cosmos, a sua volta ao estado caótico da
indiferenciação. Os ritos de ano novo geralmente se inscrevem nessa descrição, quando as
festas tomam conta dos rituais e onde acontece a degradação total do ano velho e
possibilita-se o surgimento do ano novo em toda a sua plenitude. Temos, num mito chibcha,
uma versão interessante desse processo de degradação:
El deporte que más acostumbraban los chibchas era el atletismo, pues les
gustaba hacer las carreras atléticas en los días de sus fiestas. Su deidad patrono de las
carreras era el dios Chaquén.
En los días de fiestas especiales dedicadas a las carreras los indígenas
concurrían con el cacique de cada tribu o parcialidad. Traían danzas con música de
flautas, fotutos y tambores. Sus vestidos eran adornados con mucha plumería y pieles de
animales, con diademas de oro fino en la cabeza que eran a modo de medias lunas, con
las puntas hacia arriba. Gustaban mucho las invenciones nuevas en las danzas. Hacían en
el camino mil entremeses y juegos con gran regocijo.
Cuando llegaban a la meta en las carreras, los ganadores recibían mantas
como premios. Asimismo, recibían premios las mejores danzas, juegos de regocijos y
vestidos vistosos y bien arreglados. En estas fiestas tomaban mucha chicha y brindaban
con alegría por su dios Chaquén.
Cuando se acababan las fiestas, regresaban a sus bohíos y las terminaban
con grandes borracheras.
El dios Chaquén también era el vigilante de los linderos de las sementeras
de los indios muiscas.
En los primeros meses del año, celebraban sus fiestas agrícolas “en las
cabas de sus labranzas”, esto es, en los límites de los sembrados. Se realizaban fiestas
mágicas para lograr buenas cosechas, y el dios protector de estas fiestas en los lindes de
los sembrados era Chaquén.
Las fiestas eran principalmente de las cosechas, para lograr la bendición de
los dioses. En ellas bailaban en grupo y “asíanse de las manos hombres con mujeres,
haciendo corro y cantando canciones, ya alegres, ya tristes, en que se referían las
grandezas de los mayores, pausando todos a una y llevando el compás…al son de flautas
y fotutos…: tenían en medio las múcuras de chicha, de donde iban esforzando a los que
cantaban otras indias que estaban dentro del corro, que no se descuidaban de darles de
beber. Duraba esto hasta que caían embriagados y tan excitados a la lujuria con el calor
del vino, que cada hombre y mujer que se juntaba con el primero que encontraba, porque
para esto había general licencia en estas fiestas aun con las mujeres de los caciques e
nobles”.
Las fiestas de la cosecha alrededor de los lindes de los sembrados eran de
carácter mágico-religioso, pues eran propiciatorias para la fertilidad agrícola. A su
alrededor los ritos sexuales de libertad se manifestaban como un costumbre social para
el estímulo mágico de la fertilidad. De acuerdo con el ritual de los dioses chibchas, al
dios Chaquén se le ofrecían los adornos de la borrachera y de las fiestas, con toda la
plumería que usaban en ellas y en las guerras.
Los chibchas acostumbraban los juegos en las fiestas de las siembras o
cosechas. Les gustaba llevar disfraces de animales; unos iban representando osos; otros
figuras de leones o de tigres u otros animales. También les gustaba llevar máscaras.
Saltaban de alegría, diciendo que el sol les concedía muchas gracias. Según sus
creencias, estos juegos eran vigilados y protegidos por el dios Chaquén.19
Rito e cosmicização do espaço
Com o espaço o mesmo esquema se repete e, antes de habitá-lo é preciso
cosmicizá-lo, retirar dele todo aspecto de estranhamento e hostilidade, todos aspecto de
incriado, pois só o sagrado é digno de ser habitado pelo homem. Assim, se foi a
manifestação do sagrado que, num tempo fabuloso dos primórdios, fundou ontologicamente
o mundo, da mesma forma é preciso fundar novamente esse espaço desconhecido que agora
se quer habitar, é preciso trazê-lo à existência ou, como nos diz Eliade, “para viver no
Mundo é preciso fundá-lo – e nenhum Mundo pode nascer no “caos” da homogeneidade e
relatividade do espaço profano”20. É preciso então consagrá-lo, dotá-lo da manifestação e
força do Ser, possibilitando assim, que este se torne habitação para o homem, pois “se todo
território habitado é um “cosmos”, é justamente, porque, de um modo ou outro, esse
território é obra dos deuses ou está em comunicação com o mundo deles”21. Se a dimensão
sagrada é a justificação do espaço humano, se é a dimensão vertical que orienta e justifica a
realidade horizontal, torna-se necessário então fazer com que o espaço torne-se um espaço
sagrado, comunicando-o com a dimensão transcendente pela força do cosmicização e, nesse
sentido, “o ritual pelo qual o homem constrói um espaço sagrado é eficiente à medida que
19
- JANUARY, Brendan. Sorpréndete com la mitologia universal;
- ELIADE. O sagrado e o profano, p. 26;
21
- ELIADE. Op. cit., p. 33;
20
ele reproduz a obra dos deuses”22, pois é justamente a presença do sagrado que torna
possível a “fundação do Mundo”, pois, “lá onde o sagrado se manifesta no espaço, o real se
revela, o Mundo vem à existência”23.
Como podemos perceber, para o pensamento mítico, portanto, espaço e tempo
são re-constituíveis e reversíveis em sua força, em seu viço; e se essa força se manifesta no
ato cosmogônico, então é esse que novamente tem lugar quando se processa o rito. Quando
plantam, quando constroem, nascem ou morrem, os homens das sociedades míticas reengendram o Cosmos, repetem o ato original do deus, do herói ou do antepassado. O
mundo, poderíamos dizer, perpetuamente começa para a consciência mítica.
A ação modelar do mito
Dizíamos há pouco que o ato primordial através do qual se originou todo o
Cosmos se coloca para a consciência mítica como paradigma para toda ação humana que se
queira eficaz. O homem tem, no sistema mítico, um apanhado de conhecimentos que
possibilitam que o mesmo possa exercer a sua ação no espaço de maneira eficaz. Através do
re-engendramento do Cosmos, da evocação do tempo fabuloso das origens e da observância
dos modos como os deuses, os heróis ou os antepassados míticos se portaram, o homem das
sociedades míticas tem as formas paradigmáticas de seu modo de ser no mundo. Ele deve
de todas as formas tentar igualar-se aos deuses, heróis e antepassados míticos e, uma vez
que aqueles lhe são próximos pelos laços do sagrado que os unem, esse igualar-se aos
deuses torna-se completamente viável. O culto e o rito equivalem, portanto, a uma reatualização do gesto primordial originador do Cosmos. Mais que simples encenação e
simbolismo, mais que evocar aquele tempo fabuloso dos primórdios, o rito e o culto tem por
função tornar presente novamente o contraste primordial entre o Caos e a Criação. Como
percebido em nossa sucinta abordagem do tempo e do espaço:
Para o homem das sociedades arcaicas, aquilo que se passou ab origene é
suscetível de se repetir pelos ritos. Para ele, portanto, o essencial é conhecer os mitos.
Não só porque os mitos lhe fornecem uma explicação do Mundo e da própria maneira de
22
23
- ELIADE. Op. cit., p32;
- ELIADE. O sagrado e o profano, p. 59;
estar no Mundo, mas, sobretudo porque, ao recordar, ao reatualizá-los ele é capaz de
repetir o que os Deuses, os Heróis ou os Antepassados fizeram ab origene. Conhecer os
mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Por outras palavras, aprende-se não só
como as coisas passaram a existir, mas também onde as encontrar e como fazê-las
ressurgir quando elas desaparecerem24.
O conhecimento mítico é, portanto, um reservatório de saber cultural, uma
instância que indica modos de ser no mundo, que orienta o todo social em seu devir
quotidiano. É claro que, como manifestação daquilo que é sagrado por excelência, o mito é
uma instância orientadora da conduta humana. A perspectiva de sociedade, de vivência
comunitária é, certamente dada pelo mundo das narrativas míticas. Toda a organização
social, todo modo de se portar no mundo é perpassado pela influência da esfera sagrada, ela
é que indica a realidade, a significância e a eficácia da ação. Se foi assim que fizeram os
antepassados, se tal ou tal deus se portou dessa maneira diante de determinada situação,
essa é, portanto, a medida da eficácia da ação. O gesto do antepassado, do deus ou do herói
deve ser seguido, uma vez que ele é o substrato de toda ação transformadora, realmente
capaz de interferir na realidade. Novamente, com o auxílio de Eliade, poderíamos dizer que:
O mito garante ao homem que aquilo que ele se prepara para fazer já foi
feito, ajuda-o a dissipar as dúvidas quanto ao resultado de seu cometimento. Por que
hesitar perante uma expedição marítima, uma vez que o Herói mítico já a efetuou num
Tempo lendário? Basta seguir o seu exemplo. Do mesmo modo, por que temer instala-se
num território desconhecido se se sabe o que é necessário fazer? Basta repetir o ritual
cosmogônico e o território desconhecido transforma-se em “Cosmos”, passa a ser uma
imago mundi, uma “habitação” ritualmente legitimada. A existência de um modelo
exemplar em nada entrava a atividade criadora. O modelo mítico é suscetível de
aplicações ilimitadas25.
É somente através do mito, portanto, que o homem pode lançar-se criativamente
no mundo das coisas, somente através do ato primordial, referência de ação que, sobre o
mundo natural, o homem das sociedades míticas vislumbra a possibilidade de um mundo
humano.
24
25
- ELIADE. Aspectos do Mito, p. 19;
- ELIADE. Op. cit., p 120;
Com o relato mítico, com a narrativa de seus feitos nos fabulosos tempos dos
primórdios, os deuses deixaram aos homens as formas pelas quais estes podem seduzir a
natureza e colocá-la a seu serviço, como nos diz Eliade:
À primeira vista o homem das sociedades arcaicas não faz mais do que
repetir indefinidamente o mesmo gesto arquetípico. Mas, no fundo, ele está a conquistar
infatigavelmente o mundo, está a organizar e a transformar a paisagem natural em meio
cultural. Graças ao modelo exemplar revelado pelo mito cosmogônico, o homem tornase, por sua vez, criador. Parecendo votado a paralisar a iniciativa humana, os mitos
incitam, no fundo, o homem a criar, abrem continuamente novas perspectivas ao seu
espírito inventivo26.
Mito e destino pessoal
Muito já foi dito sobre o caráter coletivo do mito; este seria uma forma de
organização que não permite a expressão singular de criatividade, pois, se todo ato
cosmogônico é ato modelar por excelência, então a irrupção de novas formas de agir tornase inútil, insignificante. Realmente o ato modelar do gesto cosmogônico é o único no qual o
homem das sociedades míticas tem garantida a eficácia de sua ação. Como metáfora
fundamental da ordem total, o mito não conhece a expressão singular da criatividade
humana e, sendo assim, a vida só é vida em comunidade. O destino pessoal de cada
indivíduo deve se ajustar ao destino do clã, essa é a forma na qual ele deve se engajar. Se
não há uma expressão singular nisso, há no entanto, uma responsabilidade que só ao
individuo das sociedades míticas cabe. Unir o seu destino ao destino coletivo equivale a
zelar pela integridade do Cosmos, equivale a assumir responsabilidades no tocante à tarefa
diária de manter a ordem primordial desse Cosmos, salvando-o da degradação pela qual este
é constantemente ameaçado pelo tempo e espaço profanos. Ele mesmo não se vê fora dessa
comunidade vital e, para o pensamento mítico, como nos diz Cassirer:
O eu sente a si mesmo apenas na medida em que se compreende como
membro de uma comunidade, na medida em que se vê unido outros na unidade de um
clã, de uma tribo, de uma liga social. Somente nesta unidade e através dela, ele possui a
si mesmo; sua vida e existência próprias estão ligadas, em cada uma de suas
26
- ELIADE. Aspectos do mito, p 120;
manifestações, à vida do conjunto que os abrange, como se por laços mágicos
invisíveis27.
Ou, como nos diz Eliade, “o homem das culturas tradicionais só se reconhece
como real na medida em que deixa de ser ele próprio (...) e se contenta em imitar e repetir
os gestos de um outro. Por outras palavras, ele só se reconhece como real, isto é, como
“verdadeiramente ele próprio” na medida em que deixa precisamente de o ser”28.
O mito é a instância instauradora de uma comunicabilidade entre o todo coletivo
e a face singular do homem, assim como é possibilitadora da ação humana sobre o mundo
natural. Essa comunicabilidade, no entanto, outorga responsabilidades ao homem, uma vez
que este deve zelar pela preservação do Cosmos, pela realidade na qual habita e só na qual
pode habitar. Há um mito venezuelano que deixa bem expressa essa característica do relato
mítico:
En el tiempo en que los hombres vivían siglos e siglos existió sobre la
falda del cerro Auyantepuy uno llamado Maichapue. No sabía hacer nada. Ni pescar, ni
tejer cestas, ni colar la harina. Como salía de pesca o de cacería sin llevar arcos, flechas,
redes ni anzuelos, siempre volvía con las manos vacías y los animales y demás hombres
se burlaban de él.
Un día en que no había pescado nada, como de costumbre, se sentó muy
triste a la orilla del río. Un pequeño hombre salió del agua y al ver su desconsuelo le
obsequió con una vasija mágica.
- Cuando pongas un poco de agua en ella, el río se secará y podrás recoger
todos los peces que necesites. Pero ten mucho cuidado, si la llenas todas puede
derramarse el agua e inundar la tierra. No se le enseñes a nadie porque la perderás.
Maichapue hizo lo que le mandó aquel hombre del río y por fin consiguió
muchos peces.
De regreso en el pueblo, los hombres y mujeres se preguntaron unos a
otros:
- ¿Cómo ha hecho para conseguírlos?
A partir de entonces todos quisieron saber cómo hacía para pescar tanto.
Pero Maichapue no dijo nada.
27
28
- CASSIRER. Filosofia das formas simbólicas – Vol. II: O pensamento mítico, p. 298;
- ELIADE. O mito do eterno retorno, p. 49;
Un día, mientras Maichapue estaba en la selva, la gente del pueblo revisó
su bolsa y halló la vasija. Quien finalmente se la apropió, la llevó al río para beber;
cuando tomó el agua se asustó al ver que el río se secaba. Avisó a todos:
- ¡Así es cómo pesca Maichapue! – dijeron -. Ahora conocemos su secreto.
Volvieron a llenar la vasija, pero como no sabían usarla el agua se derramó
e inundó la tierra.
La vasija fue arrastrada por la corriente, y un pez se la tragó.
Maichapue entristeció. Durante muchos días buscó aquella pieza mágica,
pero no tuvo éxito. Sin ella ya no pudo volver a pescar.
Un día, mientras cazaba, se encontró con un mono que cargaba una
calabaza con semillas en una de sus patas. En un momento, el mono se hirguió sobre sus
patas traseras, hizo sonar la calabaza tres veces y se refugió en su cueva. Enseguida
apareció una manada de tapires. Maichapue los codició, pero como no tenía nada útil
con que cazarlos no pudo hacerse con ninguno. Regresó con una expresión de tristeza en
los ojos.
Tras meditarlo algunos días, decidió conseguir a toda costa aquella
calabaza a fin de poder llamar a los tapires. Así que volvió a la selva dispuesto a
quitársela al mono. Cuando éste asomó su cabeza de la cueva, Maichapue aprovechó
para dar un brinco y quitarle la calabaza. Enseguida comenzó a tocar, pero los tapires no
aparecían. El mono salió de la cueva para ver a quien le había robado. Resignado a no
recuperarla, le aconsejó a Maichapue que no hiciera sonar la calabaza más de seis veces
a riesgo de que los tapires lo rodearan y se la quitaran.
Desde esa tarde Maichapue siempre regresó a la aldea con muchos tapires.
Los hombres, admirados, volvieron a vigilarlo y un día que Maichapue fue a cazar,
algunos lo siguieron sigilosamente y descubrieron su artilugio. En secreto, consiguieron
robarle la calabaza, pero como ignoraban la manera de usarla, los tapires los rodearon y
se la llevaron. Cuando Maichapue advirtió la ausencia pasó varios días buscándola pero
no halló nada. En su camino encontró a un indio araguato que se estaba peinando. A
medida que el araguato se alisaba el cabello, aparecían muchas aves que se posaban
alrededor de él.
Maichapue le pidió el peine pero el araguato respondió que era el único
que tenía. Fueron tantas las súplicas de Maichapue que el araguato terminó por acceder y
se lo obsequió, advirtiéndole que se no peinara más de seis veces seguidas ya que las
aves vendrían y se lo arrebatarían.
Desde aquel día, Maichapue regresó con aves deliciosas. Pero una vez más,
los hombres de la aldea empezaron a vigilarlo. Como vieron lo que hacía pero no como
lo hacía, aquellos que finalmente se apropiaron del peine y trataron de usarlo fueron
rodeados enseguida por miles de pájaros.
Entonces Maichapue regresó y vio que su peine había desaparecido. Se
puso muy triste y luego muy furioso con toda la tribu y anunció que iba a marcharse ya
que no quería seguir viviendo en la aldea.
Maichapue se fue lejos y conoció infinidad de aventuras. Llegó hasta el
mundo de arriba, que se encuentra más allá de los cielos. Aprendió a cazar, a pescar y a
tejer redes.
Después de mucho tiempo, cuando era viejo, regresó al pueblo. Allí
describió los lugares que conoció y enseñó a la tribu todo lo que había aprendido.
En sus últimos años, Maichapue conoció la veneración de su pueblo.29
Como podemos perceber no relato de Maichapue, ao homem das sociedades
arcaicas cabe preservar o Cosmos e utilizar corretamente os ensinamentos dos antepassados
míticos, uma vez que a não observância dessa orientação pode acarretar a desagregação do
Cosmos. A tribo de Maichapue, no entanto, ao não seguir essa orientação, acaba por
diversas vezes, a atrair graves incidentes para si.
O mito e a memória
Sendo o conjunto de narrativas míticas um reservatório de saber, de formas de se
interferir de modo eficaz nos processos cósmicos, cabe ao homem das sociedades míticas,
portanto, cuidar para que esse apanhado cultural, essa importante ferramenta de organização
da vida humana, não se perca. Nas sociedades que se orientam pela perspectiva mítica e
que, na maioria dos casos, não conhecem escrita, é à memória que cabe esse papel. Não
esquecer dos maravilhosos feitos dos antepassados míticos, de suas grandes proezas
realizadas nos fabulosos tempos dos primórdios equivale a assegurar que o homem terá
formas eficazes de intervenção na natureza e em seus processos. É preciso manter viva a
tradição originada pelo gesto civilizador do Herói mítico, uma vez que essa é a única forma
de se aceder ao real. O conhecimento, portanto é mantido pelas tradições orais, pelas
constantes re-efetuações do Cosmos em sua força primordial. A memória é uma importante
aliada na preservação desse Cosmos, uma vez que é nela que encontra-se depositado os
gestos primordiais do antepassados míticos; esquecer esses gestos equivale a lançar o
Cosmos na escuridão do amorfo, de onde nada significativo pode se originar.
29
- JANUARY, Brendan. Sorpréndete com la mitologia universal;
III – O mito e a face perplexa do homem diante da realidade
Durante toda essa breve investigação, procuramos observar a perspectiva mítica
pelo âmbito da possibilidade de superação da realidade inapreensível do mundo natural.
Essa realidade, em sua profunda estranheza certamente não poderia constituir refúgio
seguro para a presença do homem e, torna-se necessário então, que este, numa atitude de
distanciamento e reflexão dessa realidade, hostil à primeira vista, procure pontos de fissura
que o possibilitem instaurar uma ordem apreensível. Essa fissura é conseguida através do
próprio sentimento de inapreensibilidade do mundo, uma vez que a partir do sentimento da
presença do sagrado é que o homem intui a existência de uma realidade que lhe é mais
eficaz e que tem o poder supremo de intervir e operar importantes modificações na
realidade. A partir dessa constatação, parece certo ao homem das sociedades míticas tentar
se aproximar compreensivamente dessa totalidade que o circunda, precede e o determina.
Essa é a sua única esperança de orientação diante da polivocidade do escorrer fenomênico
do tempo e espaço naturais. Como grande força transformadora, como eficácia suprema,
esse outro mundo se torna o modelo para a conduta humana, e o homem, para superar a
heterogeneidade do mundo natural, assume a perspectiva sagrada, possibilitando assim a
concatenação da polivocidade do mundo natural em um sistema mítico dotado de
significação.
Alegoria, símbolo e metáfora
Durante a história do pensamento humano, o mito foi abordado sobre várias
perspectivas, desde a aparente oposição radical no florescer da filosofia grega até às
contemporâneas abordagens de nomes de peso como os de Mircea Eliade e Ernst Cassirer.
Duas abordagens se sobressaem nesse apanhado cultural da história do pensamento: a que
vê no mito uma forma alegórica de se compreender a realidade, e a que vê no mito a
primeira tentativa humana de estabelecer um conhecimento através do símbolo. A essas
duas perspectivas, procura-se somar aqui uma outra, a do mito como uma metáfora
fundamental que procura compreender o mundo natural através das experiências vividas
nesse próprio mundo.
Os sofistas, os estóicos e Platão, para citarmos somente alguns, entenderam o
mito pela forma da alegoria, ou seja, a linguagem do relato mítico é apenas um simulacro
que esconde a significação real do mito. É preciso efetuar uma interpretação das fabulosas
figuras míticas a fim de retirar desse aparente mundo mágico de sonhos e ilusões a verdade
encerrada por detrás dos devaneios da poesia mítica. Literalmente, o mito nada mais é que a
junção de absurdas figuras, fruto da imaginação e da atividade poética do ser humano.
Cabe, ao filósofo, ao sábio, saber penetrar as entranhas do relato mítico, abrindo caminho
entre os seres fantásticos e buscando a verdade que se esconde no fundo da narrativa.
Assim, Platão, quando lança mão das figuras míticas para expressar o seu pensamento,
deixa expresso em que sentido ele as usa. No mito da caverna, por exemplo, o Sol é
equivalente à verdade, as imagens no fundo da caverna são o mundo da opinião e o seu
exterior equivale ao mundo do conhecimento, ao mundo da realidade. As figuras míticas só
possuem sentido num relato que se “esconde” por detrás das mesmas. Sem a referência a
um metarelato, o relato mítico, do ponto de vista alegórico, passa a ser nada mais que uma
fábula absurda destinada a alimentar a imaginação e os sonhos dos homens.
Já o símbolo, podemos dizer, opera uma ruptura radical entre signo e
significado. O significado passa a ser independente do signo, do substrato onde se
manifesta. Esse é o modo pelo qual opera a filosofia e a ciência modernas. O caráter
universal de seus enunciados já não mais dependem da expressão física; o signo não está
fundido àquilo que procura significar, podendo inclusive ser usado em várias outras
relações de sentidos diferentes. O signo passa a ser uma ferramenta importante, uma
ferramenta que possui muitos equivalentes que podem se permutar sem o detrimento
daquilo que procuram significar. Essa característica do simbolismo é uma conquista enorme
para o conhecimento humano, pois permite que este abandone as configurações particulares
dos fenômenos e empreenda uma gloriosa aventura rumo aos universalismos e à eficácia
maior de sua linguagem e de seus processos de conhecimento da realidade. Sendo o sentido
completamente independente de sua expressão particular, novas e variadas formas de
transmiti-lo podem se dar, formas mais ágeis e mais eficazes.
Na metáfora, porém, temos ainda uma coincidência total, uma fusão entre o
signo e entre aquilo que ele procura significar, e esse é, justamente, o modo pelo qual opera
a perspectiva mítica. Por ser uma experiência que afeta religiosamente o homem, o mito
não pode se desprender daquilo que proporciona e experiência do sagrado, essa é ainda uma
experiência de uma consciência que se guia fundamentalmente pela emoção e não de uma
consciência capaz de abstrações e construções teórico-discursivas. Apesar de já ensaiar um
distanciamento da imediaticidade do mundo natural, apesar de já ser uma forma mediadora
de relação, o conhecimento mítico não consegue, entretanto, se desprender da magia da
manifestação e da experiência do sagrado. Sobre essa questão, em A articulação do sentido,
assim se expressa Ladrière:
É realmente o visível em sua totalidade que assim é atingido, não como
uma soma, mas como uma organização, como um todo figurado. Deste modo, na
representação mítica da cosmogonia encontramos uma tematização daquilo que constitui
a unidade da natureza, isto é, do cosmos. Está aberto o domínio no qual o pensamento
cosmológico poderá liberar-se. Contudo, este domínio, como tal, não é ainda pensado,
somente no exercício o mito nos encaminha a ele. O mito é um pensamento que está
envolvido numa operação, significa em executando30.
É por essa razão que mais atrás dizíamos que o rito é um processo pelo qual se
torna possível trazer o mundo novamente à tona, justamente pelo fato de a palavra ritual
ainda conter a força do gesto primordial realizado pelo antepassado mítico. Ao proferir tais
palavras, ao realizar o mesmo gesto primordial do antepassado mítico, o homem das
sociedades míticas efetua o movimento mais uma vez, e não apenas aponta para o mesmo,
simbolizando-o, lembrando-se de um tempo fabuloso onde o fato ocorreu. O gesto contém a
força do tempo fabuloso dos primórdios e evocá-lo significa torná-lo presente, real e eficaz
novamente. O pensamento mítico ainda não pode expressar-se de uma maneira abstrata
justamente pelo fato de ainda alicerçar-se no mundo das emoções da experiência do
sagrado. Como jogo divino, a natureza não pode ainda mostrar-se como uma realidade que
o homem pode, a seu bel-prazer, interferir. Uma atitude como essa só é permitida com a
licença dos deuses, é o próprio mundo natural que deve “conceder” ao homem a permissão
de nele intervir.
Esse caráter metafórico do mito se dá pelo fato de o horizonte lingüístico do
homem das sociedades míticas ser ainda um horizonte precário, não desenvolvido o
bastante para abarcar um conhecimento abstrato do tipo metafísico; daí então, podemos
dizer que é só através da forma metafórica, de figuras retiradas da sua realidade quotidiana,
que o homem das sociedades míticas pode expressar a sua intuição da presença do sagrado.
Somente com o alargamento desse horizonte lingüístico é que a forma mítica, ou antes, a
30
- LADRIÈRE, Jean. A articulação do sentido, p. 192;
experiência que a forma mítica descreve, pode ser esboçada num conhecimento do tipo
abstrato-teórico. Essa afirmação pode ser melhor aclarada se for estendida ao cenário da
Grécia dos filósofos pré-socráticos, onde também encontraremos um discurso que, apesar
de já ser um distanciamento da forma mítica de expressão, ainda não consegue abarcar o
todo da realidade de uma maneira teórico-abstrata. Como bem nos lembra Nietzsche, tal
processo pode ser observado na filosofia de Tales de Mileto e a sua proposta de unidade,
que encontra a dificuldade de se exprimir de modo “filosófico”, ou seja, abstrato. Ao falar
da Água como princípio de onde tudo provém, o filósofo jônico realiza um procedimento
ainda puramente mítico; a sua proposta de arché ainda se alicerça num modo mítico
metafórico de expressão:
A filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a
proposição: a água é a origem de todas e a matriz de todas as coisas. Será mesmo
necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar,
porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar,
porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora
apenas em face de crisálida, está contido o pensamento “Tudo é um”. (...) Assim,
contemplou Tales a unidade de Tudo o que é: e quando quis comunicar-se, falou água!31
Assim, temos na forma metafórica do pensamento mítico - que é já um sair da
imediaticidade do mundo natural para a mediaticidade do pensamento discursivo - uma
proto-matéria do pensar simbólico que caracterizam a filosofia e a ciência modernas:
O processo do pensamento filosófico se move tipicamente, desde uma
primeira apreensão inadequada mais ardente, de alguma idéia nova, expressa
figurativamente, para uma compreensão cada vez mais precisa, até que a linguagem
alcança a introvisão lógica, prescinde da Figura e a expressão literal toma o seu lugar.
Conceitos realmente novos, desprovidos de nomes na linguagem corrente, sempre fazem
seu primeiro aparecimento em afirmações metafóricas32.
O surgimento do pensamento abstrato-teórico seria, então, um desenrolar
da primeira intuição do mundo mítico em direção a formas outras de se responder ao
espanto primordial do homem face à realidade natural que se lhe apresenta no
quotidiano. Poderíamos dizer ainda que, “o mundo das imagens míticas, assim como os
mundos da linguagem ou da arte, serve aqui como um dos instrumentos fundamentais
31
32
- NIETZSCHE apud SOUZA, Jose Cavalcante de, (org), Os pensadores, pág, 43-46;
- LANGER, Susanne K. Filosofia em nova chave, p. 12;
através do qual se realiza a “contraposição” entre eu e mundo. Essa contraposição se dá
na medida em que a figura do deus ou do salvador, de certa forma, se interpõe entre o eu
e o mundo; ela igualmente os vincula e os separa33.
Assim como a filosofia, a ciência, a arte ou a religião, o que move a consciência
mítica é o desejo humano de superar o sentimento de profunda estranheza em face da
realidade. Perplexo diante do desenrolar fenomênico, aparentemente impenetrável e
profundamente indiferente ao gênero humano, o homem procura uma fissura que
possibilite o seu estabelecimento nessa realidade e a construção de um mundo mais
aprazível à sua existência. O espanto primordial com a realidade é um só, entretanto, várias
são as formas de se explicar esse primordial espanto, originador de todo movimento
construtor de conhecimento. O homem constrói o seu mundo ao tentar apreender e reter a
forma do mundo natural, ao tentar estabelecer uma comunicação com o mundo natural. As
formas várias com que o homem tenta responder aos desafios da realidade e estabelecer
uma relação com essa mesma realidade nos revelam a grandeza desse empreendimento. O
pensamento, se movendo em várias direções diferentes, precisa de variadas formas de
expressão; sendo assim, às vezes torna-se necessário “nos voltarmos para outras formas de
expressão humana, para a pintura, a música, a poesia, para dizer a dor, evocar os poderes
terríveis, conjurar os demônios do abismo, também para cantar (...) as misteriosas criaturas
que anunciam na angústia”34.
33
34
- CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas, Vol: II – O pensamento mítico, p. 345;
- LADRIÈRE, Jean. Vida social e destinação, p. 30.
Bibliografia:
- CASSIRER, Ernst.
A filosofia das formas simbólicas – Vol. II – O
pensamento mítico. Tradução: Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Martins Fontes, 2004;
- ______. Antropologia filosófica. Tradução: Dr. Vicente Félix de Queiroz.
São Paulo: Editora Mestre Jou, 1972;
- ______.
Linguagem, mito e religião. Tradução: Rui Reininho. Porto: Rés
Editora, [19--];
- ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Tradução: Manuela Torres. Lisboa:
Edições 70, coleção Perspectivas do homem, 1986;
- ______.
O mito do eterno retorno.
Tradução; Manuela Torres. Lisboa:
Edições 70, coleção Perspectivas do Homem, 1988;
- ______. O sagrado e o profano. Tradução: Rogério Fernandes. São Paulo:
Martins fontes, 1995;
- JANUARY, Brendan. Sorpréndete com la mitologia universal. Colleción
Biblioteca para niños e jovene. Biblioteca Pública de Nueva York, 2003
- LADRIÈRE, Jean.
A Articulação do sentido.
Tradução: Salma Tannus
Muchail. São Paulo: EPU/EDUSP, 1977;
- ______________. Vida social e destinação. Tradução: Maria Ivone da silva
Oliveira da Conceição Silva. São Paulo: Editora Convívio, 1979;
- LANGER, Susanne K. Filosofia em nova chave. Tradução: Janete Meiches e
J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, Coleção Debates, 1989;
- OTTO, Rudolf. O sagrado. Tradução: João Garcia. Lisboa: Edições 70,
coleção Perspectivas do homem, 1992;
- SILVA, Waldemar de Andrade e, (org). Lendas e mitos dos índios brasileiros.
Apresentação de W. Andrade e Silva; Introdução de Joya Eliezer; Prefácio de Orlando
Vilas Bôas. 2ª Edição. São Paulo: FTD, 1999.
- SOUZA, Jose Cavalcante de, (org). Os pré-socráticos. Coleção Os pensadores.
São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.
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