A IDENTIDADE DO NEGRO NA OBRA DE MONTEIRO LOBATO Amanda Pinheiro Marinho (UFRN) [email protected] Elizabeth Nascimento de Lima (UFRN) [email protected] Iranildo Mota da Silva (UFRN) [email protected] Karina Dantas Villar Ramalho (UFRN) [email protected] Micarla Gabriela Ramos (UFRN) [email protected] Orientador: Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira [email protected] INTRODUÇÃO A literatura infanto-juvenil abre novos caminhos, novas maneiras de ler o mundo, não sendo apenas aquela que tem como objetivo o ato de ensinar, ela desliga-se da ideia de recorte didático e pedagógico. Essa ideia perdura por muito tempo, via-se a literatura infanto-juvenil como um meio de conselhos e ensinamentos. Os primeiros livros para crianças começaram a ser produzidos ao final do século XVII e durante o século XVIII, antes disso não se escrevia para crianças, porque não existia “infância”. A mudança começou quando emergiu uma nova concepção de família. Nesse novo modelo de relação familiar, a criança passa a ser valorizada, considerando sua faixa etária e, principalmente, percebendo esse indivíduo como alguém que merece atenção especial. Cabe à família ou responsáveis a responsabilidade da garantia de que essa criança chegará à vida adulta de forma saudável. Em 1808 com a chegada da família real e também da imprensa, houve um prenúncio de literatura infanto-juvenil, já em 1889 o contexto era de urbanização e modernização, começava-se a sistematizar os primeiros esforços para uma formação de uma literatura infantil brasileira. Com o avanço da modernização, o desenvolvimento das cidades, o aumento da população urbana, o fortalecimento das classes sociais (surgimento da classe média), entra em cena um público virtual. Este é favorável ao contato com livros e literatura. Essa época foi marcada pela participação da burguesia como sendo patrocinadora da expansão e melhoria do sistema educacional de um modo geral e, consequentemente, responsável pela elaboração e organização desse sistema. Na medida em que o consumo desses bens espelha o padrão da escolarização e cultura com que esses novos segmentos sociais desejam apresentar-se frente a outros grupos, com os quais buscam ou a identificação (no caso da alta burguesia) ou a diferença (os núcleos humildes de onde provieram) (LAJOLO, 2007, p. 27). Num primeiro momento da literatura infantil, os autores ainda concebiam os modelos europeus como ponto de partida para suas produções, ou seja, se faziam traduções de obras francesas e produziam, porém, com temáticas importadas desses outros países, como atos cívicos, com o propósito de desenvolver nas crianças o amor à sua pátria, como afirma Gouvêa (2005): 1 Na produção literária das duas primeiras décadas do século XX já havia uma preocupação com a nacionalização da produção. Porém, esta se traduzia em textos que falavam do país numa perspectiva marcadamente ufanista, que glorificavam as grandezas do nosso povo e da nossa terra, claramente identificados com a cultura europeia. Tratava-se de desenvolver o sentimento de amor à pátria e, ao mesmo tempo,veicular um ideal civilizatório europeizado. (GOUVÊA, 2005, p.83) Somente em 1920 que a literatura infantil se configura com originalidade, pois nessa época, os autores modificam os temas tratados no livro infantil, não correspondendo aos estilos europeus, mas sim ampliando o campo cultural e, principalmente, contemplando a identidade do povo brasileiro. As misturas e origens raciais, a linguagem, as raízes culturais, eram temáticas dessas obras, ou seja, a literatura infantil dialogava com as diversas representações culturais e sociais do povo brasileiro. Para Bignotto (1999): A grande participação de crianças reais nas aventuras de Pedrinho e Narizinho reforça a hipótese de preocupação de Lobato com os interesses do público leitor. E confere a historicidade à sua obra infantil. O diálogo das personagens do Sítio com crianças do mundo real, sejam elas leitores desconhecidos ou não, e uma das formas com que Lobato articula a dialética entre o mundo de ficção do Sítio do Picapau Amarelo e o mundo real. Mas não é a única. Informações históricas e discussões sobre problemas sociais, políticos ou culturais, do Brasil ou do exterior, permeiam toda a obra infantil. (BIGNOTTO, 1999, p. 84 e 85). Diante disso, em 1920 houve a consolidação da literatura infanto-juvenil. Em 1921, Monteiro Lobato publica Narizinho Arrebitado (segundo livro de leitura para uso das escolas primárias), o precursor da literatura infantil no Brasil. Narizinho Arrebitado foi adotado nas escolas públicas do estado de São Paulo. A partir de então, Lobato, já escritor famoso, passa a investir progressivamente na literatura para crianças, como autor e empresário, fundando editoras como a Monteiro lobato e Cia., depois a Companhia Editora Nacional e a Brasiliense, publicando os próprios livros. O ano que seguiu ao do lançamento de Narizinho Arrebitado era muito festivo, pois era a comemoração do Centenário da independência política do Brasil. Nesse período houve também a expansão da cultura regional popular, e a valorização da cultura local devido a Semana de Arte Moderna de 1922. Uma década muito importante foi a de 1930, pois foi uma etapa muito fértil para a literatura infanto-juvenil. Além do aparecimento de novos autores, como Viriato Correia, que concorreu com Lobato na preferência das crianças e Malba Tahan, incorporam-se à literatura infantil escritores modernistas. Com isso, romancistas de 30 participam da evolução da literatura infantil brasileira. É inegável a contribuição de Monteiro Lobato para a literatura brasileira, pois ele fez surgir um novo estilo literário no Brasil baseado num aspecto ideológico, no qual sua disseminação foi extremamente relevante para a literatura brasileira. (DIAS, 2008, p. 01) 2 1. O negro da literatura infantil de Monteiro Lobato Nas obras produzidas entre 1900 e 1920, praticamente não havia histórias com personagens negros, como afirma Gouvêa (2005) em seu artigo: Nos textos pesquisados, produzidos entre 1900 e 1920, o negro era um personagem quase ausente, ou referido ocasionalmente como parte da cena doméstica. Era personagem mudo, desprovido de uma caracterização que fosse além da referência racial. Ou então personagem presente nos contos que relatavam o período escravocrata, como na obra: Contos pátrios, de Olavo Bilac e Coelho Neto, de 1906, em que os autores descrevem com ternura a figura submissa de Mãe Maria (GOUVÊA, 2005, p.83 e 84). Contudo, em 1930 a participação do negro em obras infantis passa a ser quase maciça, principalmente ocupando a posição de contadores de histórias, estabelecendo uma relação entre a cultura brasileira e a africana, como a tradição oral. Nessa perspectiva, acontece o resgate das origens culturais. Pode-se perceber que na maioria dos textos infantis publicados até a década de 30, a personagem feminina negra é invariavelmente representada como a empregada doméstica, retratada com um lenço na cabeça, um avental cobrindo o corpo gordo: a eterna cozinheira e babá. Como empregada de uma família branca, passa a maior parte do tempo confinada em uma cozinha, como Tia Nastácia, em Lobato. Em meados da década de 80 em diante, encontramos alguns livros que rompem um pouco com as consagradas formas de representação da personagem feminina negra e também da cultura afro-brasileira. É possível encontrar obras mostrando personagens negras na sua resistência ao enfrentar os preconceitos, resgatando sua identidade racial, desempenhando funções sociais diferentes, valorizando as mitologias e as religiões de matriz africana, rompendo, assim, com o modelo de desqualificação presente nas narrativas dos períodos anteriores. Nas obras de Monteiro Lobato, por exemplo, a autonomia é umas das principais características dos personagens. E cada um daqueles que figuram suas obras retrata um modelo humano encontrado na sociedade da época e presente ainda nos dias atuais. Para que possamos alcançar nosso objetivo com mais precisão, julgamos necessário observar com certa minúcia traços físicos e psicológicos marcantes de alguns desses personagens como Tia Anastácia, Tio Barnabé e Emília que fazem parte de um dos trabalhos literários mais conhecidos em nosso país, O Sítio do Pica-pau Amarelo, para que assim, tenhamos fundamentação para pôr em questionamento e análise do preconceito ou crítica na obra de Monteiro Lobato. 1.1 Tia Nastácia Cozinheira de mão-cheia, conhecida por seus quitutes esta personagem traz a marca da brasilidade com características físicas e culturas típicas dos descendentes africanos. Negra, com lábios grandes, assustada e cheia de pavor, usufrui do carinho e da ternura da família branca para a qual trabalha, e mesmo tendo livre acesso por toda casa é na cozinha que a velha quituteira encontra seu refúgio, se sentido mais à vontade, e que segundo Lajolo (1998) encontra o emblema se seu confinamento e de sua desqualificação social. 3 Foi por meio de Tia Anastácia que várias histórias do rico folclore brasileiro foram contadas à turminha do Sítio, foi através de sua boca que personagens até então com pouco apreço do nosso folclore se tornaram conhecidos no universo infantil. Por causa desse traço marcante a de “contadora de histórias” a quituteira virou livro, intitulado “Histórias de Tia Nastácia” em que representa a sabedoria popular na qual podemos perceber esta particularidade em frases como: “[...] Uma ideia que eu tive. Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando de um para outro, ela deve saber. Estou com o plano de espremer tia Nastácia para tirar o leite do folclore que há nela” (LOBATO, 1995, p. 07). É pela posição social em que ocupa, a de empregada doméstica, que é transmitida a esta personagem a marca da inferioridade sociocultural, por isso, não cumpri o papel de intermediaria da cultura escrita, ficando sempre à mercê das críticas dos seus ouvintes. Pode-se perceber então, que tia Nastácia ocupa um papel de detentora do saber popular e dos costumes da classe menos favorecida da década de 20 e 30, uma personagem cujas características são simples e possuidora de uma linguagem extremamente coloquial. Com essa personagem Lobato inova na literatura brasileira em vários aspectos, entre eles o fato de uma personagem negra, simples e de linguagem coloquial trazer consigo todos os saberes populares e dotes culinários, dotes estes que nem mesmo os personagens brancos os detinham. 1.2 Tio Barnabé Com características parecidas com as de Tia Anastácia o Senhor Barnabé Semicúpio da Silva é um ex-escravo que vive em uma cabana de sapé. Um homem vivido e da roça, tem sua habitação nas redondezas do sítio, com a permissão de Dona Benta, dona do sítio, passando a ajuda - lá nas várias tarefas existentes no local, inclusive o de entreter os netos de Dona Benta com suas histórias e vivencias. É ele quem inicia as crianças na “cultura popular”, pois, é este negro velho junto a seu cachimbo pertencente a grande camada desprivilegiada, que usufrui de conhecimentos sobre a floresta, do folclore e das superstições. Com essas peculiaridades tornou-se grande amigo do levado e destemido Pedrinho a quem Tio Barnabé inclusive já ensinou a “pegar” um Saci. 1.3 Emília Emília faz parte de outra categoria de personagens, constituída por bichos, objetos animados, como por exemplo Visconde e Rabicó. São personagens com origem no mundo do faz-de-conta, ou seja, são personificações do imaginário infantil. A bonequinha que toda menina gostaria de ter, uma das personagens mais conhecidas e queridas do público infantil, foi criada por Tia Nastácia para a neta de Dona Benta, Narizinho. A principio não falava, mas após uma consulta com o doutor Caramujo que lhe receitou “uma pílula” falante conseguiu essa façanha, daí em diante Emília não parou mais de falar. Feita de pano, cheia com marcela e com olhos de retrós preto foi se transformando e ficou parecendo gente de verdade, mas mesmo assim conservou seu tamanho inicial de 40 cm. Resultado de um sonho e do maravilhoso é um ser instável. Entre todos os personagens do sítio é a mais dinâmica e inquieta. Mesmo sendo uma boneca se mostra independente nos seus pensamentos e nas suas ações demonstrando esperteza e destreza para resolver, ou melhor, “se livrar” de determinadas situações. 4 Intrépida fala sempre o que quer sem se preocupar com os sentimentos alheios e não faz a menor questão de ser convencional, essas suas atitudes a torna muitas vezes cruel na sua forma de agir e em seus comentários. [...] Só aturo estas histórias como estudo da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas. Não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e bárbaras – coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto. Não gosto e não gosto (LOBATO, 1937, p. 31). O que podemos perceber com essa criação de Lobato, é que Emília nitidamente vem ao longo das narrativas mostrando-se adversa as características físicas de Tia Nastácia. Notamos que ela é contra a forma coloquial de como fala Nastácia, bem como lhe causa náuseas a cor negra dos demais personagens, chegando até a adjetivar a pobre cozinheira de “negra beiçuda”. Observa-se que Emília tem comportamentos que podem assegurar um grande preconceito que ela carrega consigo e que Lobato mostra claramente no decorrer de suas obras infantis. 2. Histórias de Tia Nastácia Segundo Lajolo (1998), publicada em 1937, a obra é uma antologia de contos populares contados em uma moldura narrativa, familiar à obra de Lobato. Tia Nastácia desfia histórias para os demais moradores do sítio que, na posição de ouvintes, comentam as histórias que ouvem. À medida que o livro prossegue, as relações entre Tia Nastácia e seus ouvintes vão se tornando mais tensas quanto mais cresce a insatisfação da plateia com as histórias narradas, às quais ninguém poupa críticas: Eu (...) acho muito ingênua esta história de rei e princesa e botas encantadas, disse Narizinho. Depois que li Peter Pan, fiquei exigente. Estou de acordo com a Emília (LOBATO,1937, p.13 ) Histórias de Tia Nastácia, contudo, ainda se diferencia dos demais livros, pelo fato de que as histórias nele contadas e a situação de contá-las- decorrem de uma espécie de projeto explicitamente enunciado por Pedrinho, que, a partir de um artigo de jornal começa a interessar-se por folclore: [...]As negras velhas - disse Pedrinho - são sempre muito sabidas. Mamãe conta de uma que era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas, uma de nome Esméria, que foi uma escrava de meu avô. Todas as noites ela sentava-se na varanda e desfiava histórias e mais histórias. Tia Nastácia é o povo. Tudo o que o povo sabe e vai contando de um para outro, ela deve saber. Estou com o plano de espremer Tia Nastácia para tirar o leite de folclore que há nela (LOBATO,1937, p.3 ) Lobato reproduz a história encenando a situação de narração e recepção, pondo, pois, em confronto o mundo da cultura negra, da qual Tia Nastácia é legítima porta-voz e o mundo da modernidade branca, à qual dão voz tanto as crianças como a própria Dona Benta, também ela ouvinte de Tia Nastácia e também ela insatisfeita com as histórias que ouve, mas ao contrário dos outros ouvintes, capaz de apontar, com objetividade, as razões da insatisfação: 5 [...] As histórias que correm entre nosso povo são reflexos da era mais barbaresca da Europa. Os colonizadores portugueses trouxeram estas histórias e soltaram-nas por aqui - e o povo as vai repetindo, sobretudo na roça. A mentalidade de nossa gente roceira está ainda muito próxima da dos primeiros colonizadores. - Por que, vovó? -Por causa do analfabetismo. Como não sabem ler , só entra na cabeça dos homens do povo o que os outros contam - e os outros só contam o que ouviram. A coisa vem assim num rosário de pais a filhos. Só quem sabe ler e lê os bons livros, é que se põe de acordo com os progressos que as ciências trouxeram ao mundo (LOBATO,1937, p.85)” 3. Preconceito ou crítica? Em uma época em que as relações sociais eram marcadas por acentuada divisão de classes, e as menos favorecidas não tinham e nem conheciam e sequer pleiteavam os seus direitos. Dentro desse contexto de sua formação, Lobato coloca em integra em seus livros infantis um grupo diferente social, cultural e racial uma nova estética em sua linguagem e no seu enredo. Fora dos livros, na sociedade real, as relações eram marcadas por uma espécie de hierarquia de classe social e de raça: branco senhor, preto serviçal; senhor culto, empregado inculto. Pode-se pensar que o fato de a crueldade contra os negros ser considerado normal, contando com o respaldo de membros do clero, da aristocracia, revela o retrato de uma época e de relações sociais naquela complexa fase da história nacional. A forma como Monteiro Lobato construiu narrador e personagens, e contou a história, revela muito sobre como enxergava, apreendia, entendia o tema tratado. Os ângulos que seu olhar procura (...) o foco que escolhe, os detalhes que ilumina, o recorte que faz, podem revelar um pouco da ideia que fazia de seus objetos. São sinais que podem levar à identificação de uma maneira de pensar – a maneira de pensar de um observador privilegiado daquela República que começava. Privilegiado porque Lobato participou ativamente, como intelectual e empresário, de sua época (BIGNOTTO, 1999, p.4). Tendo em vista alguns aspectos que Monteiro Lobato aborda em suas obras, nos é permitido defender aqui que esse autor não trata o negro de forma pejorativa tampouco insere em seus personagens negros o seu lado preconceituoso como cidadão nem como escritor. O fato é que é necessário não só levantarmos esse questionamento, mas também, buscarmos, ao mesmo tempo, em sua obra, trechos que venham a esclarecer alguns posicionamentos que ele toma em sua vasta obra infantil. Para isso deveremos levar em consideração inúmeros fatos que vieram a influenciar na obra de Monteiro Lobato, principalmente influenciar na escolha das características físicas e psicológicas dos seus personagens e de sua linguagem. Monteiro, no seu conjunto de obras infantis, traz para o leitor um rompimento a dependência brasileira dos estilos clássicos, uma nova linguagem, personagens que representavam à cultura popular e um enredo fantasioso e real ao mesmo tempo. Além 6 disso, outros fatos como o 13 de Maio de 1888, a sua vida pessoal, a semana de arte moderna e seu interesse para com a realidade nacional, veio também a influenciar na escrita desse ícone da literatura infanto-juvenil do nosso país. A literatura infantil espelhava a representação social das relações interraciais no Brasil, representação em que uma visão racista e etnocêntrica fazia-se presente, escapando à idealização pretendida pelos autores das obras infantis (GOUVÊA, 2005, p.89). O que defendemos aqui é que Monteiro lobato não metaforiza nos seus personagens o preconceito contra essa classe predominante no Brasil da época, mas sim que é através destes personagens que Monteiro vai fazer uma crítica a uma futura e possível rejeição a sua forma de narração por parte da então sociedade letrada. Seria mais que evidente que ao trazer uma linguagem coloquial, em plena transição do Parnasianismo no Brasil, tendo essa linha literária como principal característica a formalidade na língua, essa sociedade não iria receber com braços abertos obras que quebrassem essa forma de escrever, tampouco obras que possuíssem personagens e enredo que não fossem os característicos da época. Durante a semana de Arte Moderna em 1922 foi que percebemos essa rejeição a forma moderna de escrita, foi durante essa semana que alguns dos seus principais precursores, ao apresentarem os objetivos da escrita moderna, foram vaiados e ignorados por apenas trazerem uma nova literatura, uma nova forma de poesia e prosa. Foi com essa preocupação que Monteiro escreveu suas primeiras obras infantis. Diante disto ele trouxe uma metáfora da sociedade a qual ele estava inserido e outra metáfora sua. Uma das obras que mais enxergamos essas metáforas é na sua obra “O sítio do pica-pau amarelo”, no qual ele cria duas personagens principais: Emília, metáfora da sociedade brasileira que critica de forma preconceituosa não apenas os personagens das histórias de Tia Nastácia, mas também a linguagem desta. E a própria Tia Nastácia, metáfora do próprio Monteiro, que através de suas histórias trás algo novo para aqueles que a ouvem. As narrações de Tia Nastácia são no geral de negros ou de personagens que retratam a cultura nacional, cultura essa tão defendida por Monteiro Lobato. Com isso, Monteiro Lobato construiu uma realidade, na qual busca introduzir em seus leitores o novo, o crítico, especialmente, a ruptura da dicotomia que até então prevalecia na literatura infantil brasileira, pois é notória em todas as suas obras a inquietação mostrada através dos seus personagens no que diz respeito à linguagem e aos personagens do seu enredo. Para melhor analisarmos in loco esse possível preconceito metaforizado em Emília, vejamos algumas citações da fala dessa personagem no Sitio do Pica-pau Amarelo: Pois cá comigo – disse Emília – só aturo estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras – coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto! (LOBATO, 1957, p. 30) “Bem se vê que é preta e beiçuda! Não tem a menor filosofia, esta diaba. Sina é o seu nariz, sabe? Todos os viventes têm o mesmo direito à vida, e para mim matar um carneirinho é crime ainda maior do que matar um homem. (...) A boneca botou-lhe a língua. (LOBATO, 1957, p. 30) 7 No entanto, a representação do negro, em Lobato, não é diferente da produção de boa parte da intelectualidade brasileira. Longe de desqualificar a questão, essa ambiguidade torna-a ainda mais relevante. Mas os melhores ângulos para discuti-la não se esgotam na denúncia bem-intencionada dos xingamentos de Emília, absolutamente verossímeis e, portanto, esteticamente necessários numa obra cuja qualidade literária tem lastro forte na verossimilhança das situações e na coloquialidade da linguagem. Todavia nos é pertinente levantarmos dois questionamentos acerca dessa escolha de Lobato em suas metáforas: Por qual motivo ele torna Emília tão crítica e por que ele põe em Tia Nastácia todo o saber cultural da sociedade? Para Lajolo (1998), esses posicionamentos de Emília no livro de Lobato deixam caminho aberto para o afloramento de contradições inevitáveis num projeto – o da modernização brasileira – que põe face a face diferentes segmentos sociais. Como resultado do enfrentamento, é inevitável a transformação de ambas as culturas; mas só leva a melhor a que dispõe da infraestrutura material e simbólica essencial à produção, circulação e consumo de cultura no mundo moderno, que passa a devorar a outra. Contudo, os personagens do Sítio não prestigiam muito as histórias de Tia Nastácia. Após cada história contada pela cozinheira, há comentário dos personagens. A maior parte destes comentários fala da pobreza e da ingenuidade da imaginação popular. Todos criticam as histórias de tia Nastácia, principalmente Emília, que as considera bobagens de negra velha. Para Lobato, Tia Nastácia é sua legítima porta-voz e o mundo da modernidade branca é representado pelo egoísmo, preconceito e incompreensão de Emília. Se o conjunto da obra infantil Lobatiana confirma e reforça a marginalidade do seu novo estilo literário inserido na sociedade por Tia Nastácia, essa marginalidade ganha tintas trágicas nas obras do escritor. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se pôde verificar, existe uma tensão entre o mundo da cultura de uma negra analfabeta e o da cultura das crianças brancas que escutam suas histórias e as desqualificam não pelas histórias, mas pela condição da narradora, preta, doméstica. Porém essa situação não é tematizada e sim diluída em afeto complacente. O estudo das atividades sociais dos personagens criados por Lobato podem nos sugerir uma interação entre os aspectos reais da época, como valores, sentimentos, conceitos intelectuais e comportamentos e as ideias que pretendeu incorporar nas suas ficções. Se em alguns livros fica clara a ideia da superioridade racial, em outros momentos, esse autor resgata o elemento de origem africana e reconhece seu papel na cultura brasileira, como na caracterização de Tia Nastácia e Tio Barnabé, personagens representantes do saber popular. E tampouco se esquiva em denunciar as crueldades do escravismo, diante de uma sociedade preconceituosa, incompreensível e cega para algumas mudanças sejam essas sociais ou na própria Literatura. Enfim, a análise revelou que, dentro desse contexto de sua formação, Lobato coloca e integra em seus livros infantis um grupo diferente social, cultural. A análise nos permitiu perceber que o negro não pode com exatidão ser a metáfora do preconceito de Lobato, mas uma forma de criticar uma sociedade tão contrária aos seus ideais. Inclusive, se compararmos as duas personagens: Dona Benta e Tia Nastácia (branca x negra), perceberemos a valorização de ambas e não como uma superior a outra, como nos diz Bignotto (1999): 8 A influência que dona Benta e tia Nastácia vão exercer sobre Narizinho é fundamental. A branca dona Benta, avó sábia e culta, conversará com chefes de estado. A negra tia Nastácia, tia por carinho e porque assim eram chamados os negro, inculta mas ainda assim sábia, conquistará chefes de estado com seus bolinhos. Duas mulheres de condições sociais completamente diferentes, duas representações da mulher brasileira, que se relacionarão de formas diversas. (BIGNOTTO, 1999, p. 95). Portanto, observa-se uma diferenciação entre as raças, mas não de exploração e preconceito, apenas uma forma de apresentar as diferenças sociais da época sem, no entanto, desvalorizá-las. Como se observa nos dizeres de Bignotto (1999), as duas personagens têm importância e valor na literatura de Lobato. Por isso, é importante ressaltar que algumas obras retomam traços e símbolos da cultura afro-brasileira, tais como as religiões de matrizes africanas, a capoeira, a dança e os mecanismos de resistência diante das discriminações, objetivando um estímulo positivo e uma autoestima favorável ao leitor negro e uma possibilidade de representação que permite ao leitor que não é negro tomar contato com outra face da cultura afro-brasileira que ainda é pouco explorada na escola, nos meios de comunicação, assim como na sociedade em geral. Trata-se de obras que não se prendem ao passado histórico da escravização. O que devemos concretizar é que não podemos ficar restritos apenas na denúncia de que a imagem do negro é estereotipada, a exemplo de Tia Nastácia, mas mostrar, também, o quanto, inconscientemente, os professores e os leitores dessas obras poderão acentuar esse preconceito dentro deles. E nos resta, como futuros professores de Literatura, instigar os nossos alunos e leitores a buscarem novas leituras e percepções acerca dessa temática e não assumirmos posicionamentos muitas vezes insertos e pobres de argumentação. Pois um homem que escreve livros como “Negrinha”, escrito na década de 1920, não pode ser considerado preconceituoso. REFERÊNCIAS BIGNOTTO, Cilza Carla. Personagens Infantis da obra para crianças e da obra para adultos de Monteiro Lobato: convergências e divergências. Tese. (Doutorado). Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas: UNICAMP, 1999. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?view=vtls000224320. Acesso em 03 Out 2011. DIAS, Alfrancio Ferreira. A identidade cultural do negro na literatura infantil de Monteiro Lobato. 2008. Disponível em: http://www.posgrap.ufs.br/periodicos/revista_forum_identidades/revistas/ARQ_FORU M_IND_3/SESSAO_L_FORUM_Pg_103_109.pdf. Acesso em: 18 de Nov de 2010. GOUVÊA, Maria Cristina Soares de. Imagens do negro na literatura infantil brasileira:análise historiográfica. São Paulo: Educação e Pesquisa v.31, n.1, p. 77-89, jan./abr. 2005. LAJOLO, Mariza. A figura do negro em Monteiro Lobato. Revista Presença Pedagógica, São Paulo, set. out, 1998. 9 _______________. ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira: Histórias e histórias. São Paulo: Ática, 2007. LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo: Brasiliense, 7.ed., 1957. QUINTANA, Suely da Fonseca. Ruptura e tradição na literatura infanto-juvenil brasileira e cubana. 2009. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Eixo%20e%20a%20Roda%2018, %20n2/08-Suely-Quintana.pdf. Acesso em 18 de Nov de 2010. ZILBERMAN, R. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2003. 1