¡Esa es la experiéncia del pueblo boliviano!

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39O ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS
GT 11: Democracia na América Latina: política, cultura, sociedade
¡Esa es la experiéncia del pueblo boliviano!
IDENTIDADES INDÍGENAS E ESTADO NA BOLÍVIA EM TRÊS MOMENTOS
Aiko Ikemura Amaral
(University of Essex - UK)
Fomento: CAPES (Processo BEX 0391.14.0)
O presente documento foi realizado com base em pesquisa de mestrado desenvolvida
junto ao Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo sob a orientação da professora Doutora Rossana Rocha Reis e financiada pela CAPES e FAPESP.
Como forma de alternar entre os argumentos desenvolvidos e as referências às experiências do campo, estas serão apresentadas em itálico, destacando as citações – apresentadas
no idioma original – em recuo.
***
Em uma sexta-feira ensolarada de agosto, o presidente Evo Morales discursava durante
o encerramento da Cumbre Antiimperialista, na cidade de Cochabamba, na Bolívia. Em
sua fala, o presidente recuperou elementos de sua trajetória de vida, como sua infância
simples nos Andes; o imenso apoio popular de seu governo; seu orgulho em estar à frente da nação boliviana. Defendeu uma vida sem luxos e a proteção da pachamama para
vivir bien. Exaltou o desenvolvimento da nação boliviana e apontou para centralidade
da reforma agrária neste processo. Conclamou, por fim, a solidariedade latinoamericana na luta contra o imperialismo através de novas lideranças democráticas.
¡Deben gobernar autoridades electas democráticamente, junto a su pueblo,
junto a los movimientos sociales! ¡Esa es la experiencia del pueblo boliviano!
Em frente ao palanque, uma multidão se estendia na avenida: vestidos em indumentária
característica, representes de setores mineiros e indígena-campesinos agitavam wiphalas. No palco, o presidente, com seu tradicional colar de coca, sentava-se ao lado de seu
vice, Álvaro Garcia Linera (também com colar de coca), e diversos membros do governo
boliviano e convidados de outros países da América Latina. Em meio à exaltação do desenvolvimento e da pátria, ecos de antigas experiências entre os povos indígenas e o
Estado se faziam presentes, enquanto as reticências sobre a atual ruptura entre parte
desta base e o governo de Morales apontavam para problemas na forma de descolonização avançada pelo proceso de cambio.
Através de três distintos momentos vivenciados entre os meses de julho e outubro
de 2013 o presente artigo explora transformações e permanências nas relações entre os
movimentos indígenas e o Estado boliviano, com ênfase na questão identitária. A indige-
neidade na política boliviana, tanto em suas manifestações populares como institucionais,
ganha centralidade a partir da confluência entre processos locais e internacionais após a
retomada da democracia representativa e a adoção de políticas de cunho neoliberal no
país (YASHAR, 2005). Os levantes sociais durante a primeira metade da década de 2000,
que colocaram em xeque as medidas econômicas neoliberais, revelaram o potencial de
coesão oferecido por uma identidade social ampliada de base indígena (WEBBER, 2011).
A partir de uma pauta duplamente descolonizadora (ERNST; SCHMALZ, 2012) – antiimperialista e a favor de uma transformação profunda nas relações entre Estado e povos
indígenas –, a indigeneidade ganhou o centro de um novo modelo de desenvolvimento –
o vivir bien – e de Estado – agora, plurinacional. O governo de Morales assumiu em 2006
com um claro mandato, a consolidação do proceso de cambio iniciado nas ruas, e apontava para uma nova relação entre indígenas e Estado na qual descolonização seria a
palavra de ordem e, interculturalidade, o leitmotif institucional.
De fato, o primeiro governo de Evo Morales (2006-2010) esteve marcado pelo
avanço da proposta que emergira das ruas, haja vista a nacionalização de setores estratégicos e a adoção do vivir bien como “paradigma teleológico de descolonização”
(FONTANA, 2012), culminando com a convocação de uma Assembleia Constituinte na
qual, pela primeira vez, os indígenas tiveram voz. Os movimentos indígenas e campesinos – plasmados na constituição como indígena originario campesinos – lograram a
constitucionalização de pautas históricas (SCHAVELZON, 2009), tais como o reconhecimento de formas indígenas de exercício democrático e de sujeitos indígenas enquanto
constitutivos do povo boliviano (BOLIVIA, 2009). Em outra frente, o novo governo levou
à cúpula antigos ativistas e sindicalistas, além de intelectuais ligados à causa indígena.
Neste aspecto, o governo de Evo apontava para o fim de uma história de assimilação dos
povos indígenas pelo Estado.
Durante o segundo governo de Morales (2010-2014) se postulam, entretanto, novas
questões para a indigeneidade na Bolívia. Por um lado, houve retrocessos legais em certos aspectos, impulsionados não apenas pela oposição, mas também por setores ligados
ao governo. Estas incongruências levantam sérios questionamentos sobre as possibilidades de se criar formas cogovernativas entre modelos representativos e comunitários de
democracia, ao passo em que as reformas nos parâmetros de cidadania parecem apontar
não para a pluralização, mas sim para a conformação de um novo ideal nacionalhomogeneizante que reifica a identidade indígena. Repensar o Estado a partir do próprio
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Estado provou-se uma tarefa árdua para as novas elites políticas e uma realidade distante
para os setores indígenas que se afastaram do MAS desde então. Interculturalidade e descolonização tornaram-se conceitos de prática difícil e conteúdo ambíguo, para os quais a
política dos povos indígenas parece se chocar com os interesses modernizantes do Estado
boliviano. Com esta conjuntura em mente, o presente artigo discute algumas destas “experiências do povo boliviano” em sua relação com a indigeneidade e como estas podem
apontar para novas concepções de transformação do Estado.
MOMENTO I: Campesinação e Indianização
No dia 02 de julho de 2013 o presidente Evo Morales retornava de uma viagem oficial à
Rússia quando seu voo recebeu ordens de que não poderia ingressar no espaço aéreo de
diversos países Europeus. Fora o resultado de um imbróglio diplomático acerca da possibilidade de que o ex-técnico da CIA e procurado pelas autoridades estadounidenses,
Edward Snowden, estivesse a bordo. A fala do presidente no fechamento da Cumbre Antiimperialista, um mês após este incidente, foi marcada por referências ao episódio e ao
que Evo apontou como uma decrescente soberania de países que tiveram sua história
marcada pelo colonialismo, tal qual França, Portugal e Espanha. Morales caminhou
paulatinamente para a questão da retomada da soberania boliviana durante seus mandatos. Os principais pontos de toque foram o avanço da reforma agrária e da justiça
social, apontadas como grandes conquistas do povo boliviano. Cada frase era acompanhada pelo balançar de wiphalas e estandartes dos representantes de movimentos
campesinos e mineiro – estrategicamente posicionados logo à frente do palanque.
Em 1952, a Revolução Nacionalista marcou o fim da hegemonia oligárquico-liberal
na Bolívia, com a ascensão do Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR) ao poder
recebendo grande apoio do operariado mineiro e das incipientes camadas médias urbanas
(RIVERA, 2003; ALBÓ, 2009a). A Revolução conduziu a um processo de conformação de
uma nova identidade nacional e de ampliação da presença e controle do Estado sobre seu
território e recursos naturais. O alargamento e intensificação do espaço estatal foram
acompanhados pela consolidação do apoio popular através da criação de um sistema de
cidadania mais inclusivo, logrado essencialmente por uma combinação de direitos políticos e sociais – tais quais a extensão universal do sufrágio, reforma agrária, expansão da
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educação formal (em espanhol) e introdução de um sistema básico de segurança social e
leis trabalhistas (ALBÓ, 2009a; YASHAR, 2005).
Antes de avançar, cabe ressaltar que a compreensão da conformação da identidade
indígena na contemporaneidade remete a um padrão colonial de dominação entre europeus e indígenas que se reproduz na relação entre cidadãos de primeira e segunda classe
no contexto do Estado-nação (QUIJANO, 2008). Com a conformação dos Estados no período pós-colonial, o indígena seguiu endereçado como um povo “indominável e
ingovernável que não pode ser completamente incorporado à cidadania ou à economia
nacionais” (BRIGGS et al., 2008, p. 642)1, mantido à margem do desenvolvimento da nação. Desta forma, o caráter absoluto da territorialidade estatal se complementava com os
diversos critérios de cidadania para definir as fronteiras e a permeabilidade da identidade
nacional a sujeitos individuais e coletivos em seu interior, de forma a marginalizar quaisquer oposição ao poder instituído (HARVEY, 2009).
Em termos gerais, é possível dizer o discurso indígena se apresenta como “unidade
em meio à diversidade”, onde confluem distintas demandas, etnias e realidades
(RADCLIFFE et al., 2002, p. 6). De fato, há uma pluralidade de identidades étnicas que são
entendidas como indígenas. Neste sentido, conhecido o risco de reificarem-se os conteúdos e as disputas existentes no seio de uma concepção ampla de identidade indígena,
prioriza-se aqui a noção de fronteiras como essencial para compreensão da conformação
e politização da etnicidade (BARTH, 2011; POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011). Isto significa que a forma homogeneizante da categoria que marca a alteridade com relação aos
grupos dominados torna-se também a chave de uma luta para evidenciar a base étnica da
dominação e para a conformação da indigeneidade, enquanto identidade plural.
A construção da identidade não resulta, enfim, apenas de processos internos de definição, mas de uma interação destes com processos de categorização conduzidos por
atores externos à coletividade em questão, sendo que grupos dominantes tem capital influência sobre a compreensão da identidade social (JENKINS, 2003). Assim que o largo
histórico de marginalização de sujeitos indígenas no contexto do Estado resultou em uma
identidade sustentada em uma relação de oposição, mas também de aproximação, com as
categorias existentes no contexto estatal. Enquanto a exclusão do corpus nacional é responsável por criar uma fronteira bem delimitada entre as identidades em questão, o
1
Tradução nossa, como as demais apresentadas neste documento.
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acesso à cidadania iguala-se ao acesso a direitos e serviços oferecidos pelo Estado, de
forma que a identidade cidadã é delineada como um oposto e um objetivo. Destarte, a
construção da identidade indígena ao longo do tempo deve muito, portanto, a sua forma
de interação com processos de definição das fronteiras étnicas e culturais institucionalizadas no Estado.
Retomando os eventos de 1952, a incorporação do indígena no regime de cidadania
boliviano implicou assimilação total; neste contexto, a cultura indígena foi retratada a
partir da ótica folclorista do indigenismo, ao passo em que a figura do mestizo foi alçada
ao paradigma do cidadão boliviano moderno (SANJINÉS, 2005). O discurso indigenista da
mestizaje serviu de base para a para a “des-etnização” da dualidade colonial entre povos
dominados e dominantes, apagando o termo indio do discurso oficial sem de fato eliminar o cisma étnico que embasava as relações sociais (RIVERA, 2003).
Concomitantemente, o Estado de 1952 conferiu às organizações sindicais maior
centralidade no processo de nacionalização, transformando-as nos principais intermediários entre o Estado e a sociedade. Tais processos resultaram na imposição de identidades
de classe em detrimento de outras formas de identificação e organização, implicando
também na associação, no discurso oficial, entre o indio e o meio rural através da figura
do campesino. A cooptação de lideranças sindicais pelo mecanismo burocrático do Estado contribuiu para fomentar a dualidade rural e urbana, particularmente exacerbada
quando do quando da chegada dos militares ao poder, em 1964. Seguindo a tendência
regional pautada pelo clima bipolar da Guerra Fria, os militares buscaram afastar a influência do operariado mineiro selando o Pacto Militar-Campesino (PMC), que garantiu
– através de práticas clientelistas – o apoio popular ao governo ditatorial (DUNKERLEY,
1984). A despeito dos sucessivos esforços de assimilação e cooptação do indígena-quacampesino pelo Estado nacionalista, a marginalização social, econômica e política dos
sujeitos indígenas na Bolívia permanecia. E é justamente contra este pano de fundo que
emerge um primeiro movimento organizado em torno da identidade indígena.
Em resposta à fusão de identidades étnicas e classistas do discurso indigenista, intelectuais indígenas urbanos das terras altas passaram se organizar na defesa de sua própria
narrativa e perspectiva histórica, através do katarismo (RIVERA, 2003; ALBÓ, 2009a).
Particularmente influente sobre a organização katarista foi a obra indianista de Fausto
Reinaga, evidenciada pelo rechaço contundente à assimilação do indígena pela via da
homogeneização e da campesinação. A sustentação crítico-afirmativa do autor passava
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necessariamente pela retomada das lutas de resistência do período colonial para reclamar
um processo libertador da dominação a partir do índio, e não do campesino (REINAGA,
2010). Um tom similar foi adotado pelo movimento katarista que construiu sobre a memória de Tupak Katari sua liderança simbólica e inspiração insurrecional. Katari fora
responsável por promover, ao final do século XVIII, uma revolta contra o Estado colonial, com forte impacto sobre o imaginário da população urbana de La Paz – reduzida, à
época, a um quarto de seu total – e para os indígenas – por sua ação de resistência ao poder instituído (RIVERA, 2010; THOMSON, 2010).
Ao retomar o protagonismo de Katari enquanto o indio alzado (índio rebelado)
contra a opressão estatal, o katarismo buscou conciliar o que Silvia Rivera Cusicanqui
(2003, 2010) apontou como sendo os distintos “horizontes de memória” da mobilização
indígena do país. Para a autora, tais horizontes são conformados por uma memoria larga
(memória longa) – referente às lutas anticoloniais e à conformação étnica boliviana no
período que antecede à chegada dos espanhóis – e uma memoria corta (memória curta) –
referente à atuação dos sindicatos e das milícias campesinas na Bolívia após a Revolução
de 1952 (RIVERA, 2003, p. 179). Tal leitura oferece um sentido de continuidade histórica
às demandas indígenas, além de dotá-las de um significado anticolonial e revolucionário,
ao promover a centralidade da resistência indígena como mote para os processos de
transformação política na Bolívia. A recuperação de formas de socioespacialidade indígena – como o ayllu – também se provou crucial para construir a indigeneidade como um
marcador de distinção e de resistência aos esforços de homogeneização avançados pelo
Estado. A disseminação da releitura histórica a partir do movimento indígena foi crucial
fomentar um novo sentido de identidade e de relação com o Estado. Neste aspecto, é no
interior do discurso katarista que emergiram, ainda na década de 1980, as primeiras demandas em torno da plurinacionalização do Estado boliviano.
A ênfase na defesa da pátria, na reforma agrária e na nacionalização de recursos naturais se alternavam na fala de Morales. Frente à multidão agitada em Cochabamba, o
presidente alinhou a luta anti-imperialista com a luta anticolonial. Ao mesmo tempo em
que apontava para o Sul como uma orientação para o futuro da humanidade, Morales
compartilhava sua experiência com aquela de outros indígenas antes dele. Morales mostrava também fazer história.
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Este dos de agosto, después que dos de agosto era el día del indio, el dos de
agosto era el día de la reforma agraria, de la revolución agraria y comunitaria. Yo diría ahora llego, llego a la conclusión de el dos de agosto es el día
del antiimperialismo, del anticolonialismo. A esta conclusión llego. Seguimos
marcando la historia. Y seguimos haciendo historia y historia con victorias.
Historias con victoria ante el imperio, ante estos poderes políticos que sólo
hacen daño al ser humano en todo el mundo.
MOMENTO II: Entre o indio alzado e o indio permitido
Em 16 de outubro de 2016, o seminário Manejo del Discurso Indígena – Identidad y Situación na Universidad Mayor de San Andrés em La Paz contou com a presença de dois
convidados de peso: o ex-vice-presidente Víctor Hugo Cárdenas e o ex-candidato à presidência Felipe “el Mallku” Quispe. Figuras polêmicas, ambos os políticos têm em
comum a origem aimará e certo envolvimento com o movimento katarista, tendo percorrido, entretanto, caminhos particularmente diversos ao longo da década de 1990 e 2000.
Cárdenas falou antes. Identificando três distintos discursos indígenas que permearam a
política boliviana: o indigenismo do Estado de 1952, que reduziu a questão indígena à
questões de classe; o indianismo de Fausto Reinaga, que eliminou a dimensão socioeconômica da luta indígena e, enfim, o katarismo, que reclamou como sua herança política.
No se niega la complejidad de la lucha de clases, no se niega los conflictos
socioeconómicos, pero tampoco se niega los conflictos étnico-nacionales. Y
se los articula en un marco que se ha llamado desde ese período del colonialismo interno... hasta 1985 era el colonialismo externo. Si se supera los dos
reduccionismos y ha expresiones en políticas públicas.
Em 1993, o primeiro indígena chegava à vice-presidência da Bolívia. A eleição de
Víctor Hugo Cárdenas se deu no contexto de um complexo processo de redemocratização
institucional, com o retorno do MNR ao poder, profunda reestruturação econômica e uma
nova forma de organização indígena pouco relacionada ao katarismo das origens do político. Ao fim de décadas de governos nacionalistas-autoritários no país, o tumultuado
processo de redemocratização boliviano (1982) foi seguido pela reformulação neoliberal
do Estado, iniciada em 1985. Este novo momento foi pautado pela redução substancial de
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políticas sociais, oposição franca a direitos trabalhistas e uma nova ênfase na primazia do
indivíduo (KOHL; FARTHING, 2007). Demissões em massa, privatização do setor público
e o fechamento de minas estatais foram passos definitivos rumo à debilitação dos sindicatos, alterando profundamente as relações entre o Estado e a sociedade. O subsequente
crescimento do desemprego conduziu à explosão da informalidade e ao boom migratório
aos centros urbanos e à região do Chapare, onde se desenvolvia o setor cocalero
(WEBBER, 2011). Tais mudanças, enfim, contribuíram de forma decisiva à fragmentação
da base popular do katarismo na região andina.
Outras formas de organização, entretanto, passaram a emergir neste contexto. Valendo-se de uma nova abordagem, novos movimentos indígenas passaram a organizaremse nas terras baixas. Distantes da atuação dos sindicatos andinos e dos discursos indianistas que inflamaram a luta social no altiplano, os movimentos indígenas da porção oriental
da Bolívia foram fortemente influenciados por organizações não-governamentais (ONGs)
e pela Igreja, que contribuíram para a disseminação de discursos globais sobre proteção
ambiental e soberania territorial e cultural (YASHAR, 2005; VAN COTT, 2005).
Esta nova pauta ganhou expressão a partir de uma marcha, realizada em 1990, na
qual grupos das terras baixas atravessaram o país rumo à cidade de La Paz em defesa da
proteção do Parque Nacional Isidoro-Secure contra os avanços de pequenos e grandes
proprietários – colonizadores e madeireiros, respectivamente (REGALSKY, 2003). As novas demandas indígenas em grande parte não seguiram as mesmas estratégias
insurrecionais e afirmativas do indianismo, mas sim a linguagem liberal “universal” de
direitos (YASHAR, 2005). O crescimento do movimento desde as terras baixas pautou-se
sobre a defesa da autonomia territorial e autogoverno, tendo logrado atrair o apoio de setores urbanos, assim como de organizações de corte étnico-classistas das terras altas. Em
1992, a realização da Asamblea de las Nacionalidades (AN) selou a união entre povos
indígenas do altiplano e das terras baixas, ao passo em que buscou criar uma nova arena
de deliberação baseada em normas e costumes (ALBÓ, 2009a). Simultaneamente, a AN
consolidou demandas por território, autonomia e reconhecimento dos povos indígenas no
contexto do Estado, distanciando-se de uma versão mais contenciosa da luta indígena
(ALBÓ, 2009a). Destarte, tais movimentos requisitaram o reconhecimento de sua identidade indígena não pelo distanciamento e resistência ao Estado, mas como cidadãos
legítimos sob a circunscrição deste (GUIMARÃES, 2009).
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A consolidação de tal abordagem legalista e internacionalizada da indigeneidade –
com a qual muitos bolivianos não-indígenas também simpatizavam – contribuiu para
uma guinada na compreensão geral do indio – agora indígena –, transformando mais uma
vez as relações entre a indigeneidade e o Estado-nação (ALBÓ, 2009a). Evidentemente,
os governos neoliberais estiveram mais dispostos a negociar o reconhecimento de direitos indígenas do que socioeconômicos mais abrangentes em um cenário de crescente
desigualdade e desemprego (HALE, 2002). A crescente solidariedade e popularidade do
pleito indígena foi rapidamente absorvida pelo sistema institucional. Isto ficou claro
quando das eleições de 1993, na qual Cárdenas foi escolhido como a vice junto ao candidato do MNR, Gonzalo “Goni” Sánchez de Lozada (GRAY MOLINA, 2003).
Durante sua fala, Cárdenas retomou diversas das políticas adotadas durante seu período no executivo, que descreveu como sendo a verdadeira herança katarista para a
política.
Puedo hacer una lista longa de políticas públicas efectivas de beneficio a los
sectores postergados por las condiciones del colonialismo interno en el país,
porque al fin y al cabo la política no es solo discurso. La política, la prueba
de fuego de la política y de la construcción de los discursos políticos es la
construcción de políticas públicas (...). La lucha política en democracia es
construcción de políticas públicas, construcción de instituciones que vayan
cumplir estas políticas públicas y construcción de instituciones que garanticen los derechos sociales, económicos, culturales, políticos, lingüísticos,
étnicos que se de a los sectores postergados.
O primeiro governo de Goni (1993-1997) fora marcado pela implementação de
uma ampla reforma política, econômica e social no país – o Plan de Todos (KOHL;
FARTHING, 2007). Caracterizado por um “indigenismo liberal” (GUSTAFSON, 2002), este
pacote adotou elementos de valorização das culturas indígenas aliados a um projeto de
descentralização e otimização da administração pública, o que respondia às pressões indígenas ao passo em que seguia a orientação de organismos internacionais de
financiamento (POSTERO, 2009). As reformas avançadas pelo Plan reconheceram diversos direitos culturais, educacionais e de escolha de autoridades próprias, a partir de usos e
costumes utilizados no contexto das comunidades. Introduziu-se, enfim, um novo modelo
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de inclusão social estruturada desde o Estado, que apontava para outras possibilidades de
autonomia, organização e atuação dos povos indígenas não só com relação a eles próprios, mas também às instituições estatais e à sociedade boliviana como um todo. Foi
também através do Plan que se abriram as arenas municipais para a participação de partidos locais, contribuindo para a criação de novas siglas partidárias e para a maior
participação de indígenas no sistema representativo. Nestes âmbitos, o Plan consolidou
uma série de mudanças rumo à ampliação da base da cidadania boliviana, indo ao encontro de demandas sustentadas pelos movimentos das terras baixas, ao passo em que
corroboravam para os objetivos de desenvolvimento de uma sociedade de mercado de
moldes neoliberais no país.
Cabe também ressaltar que a adoção do Plan se inseriu em um contexto global de
liberalização, na qual o multiculturalismo se consolidou como uma abordagem da diferença cultural em consonância com princípios de igualdade advogados pelo liberalismo
(KOHL; FARTHING, 2007; GUSTAFSON, 2002). Neste aspecto, consta essencial a inclusão
de uma dimensão coletiva de direitos para além da gama de direitos civis e políticos individuais, de forma a “reconhecer e acomodar as distintas identidades e necessidades de
grupos etnoculturais” (KYMLICKA; NORMAN, 2000, p. 2). Neste sentido, o multiculturalismo buscava criar certa “cidadania cultural”, a fim de impedir que grupos sejam
excluídos da participação na esfera decisória em função de tratos que definem tais coletividades (YÚDICE, 2006). Ao mesmo tempo, direitos culturais coletivos visavam reduzir
“as oportunidades de injustiça e poderiam reforçar o sentido da cidadania no Estado como um todo para membros de minorias nacionais, dado que elas passam a vislumbrar os
governos centrais e locais como garantidores de seus direitos” (KYMLICKA; NORMAN,
2000, p. 40, ênfase nossa).
Tem-se, pois, que a criação de políticas públicas voltadas para a inclusão de tais
coletividades nas estruturas existentes reorganiza as bases dos grupos hegemônicos. Com
isso, renova-se a sustentação das forças no poder e de seu capacidade de institucionalizar
suas classificações sobre formas próprias de definição dos grupos dominados. Ao criar
uma “política de representação” da diferença, o multiculturalismo
situa as questões relativas à cidadania dentro dos meios de representação, perguntando nem tanto quem conta como cidadão, mas como ele é construído; não
quais são seus direitos e deveres, mas como eles são interpretados; não quais
são os canais de participação na formação de opinião e na tomada de decisão,
mas quais as táticas que permitem que se intervenha nesses canais e processos
10
decisórios em prol dos interesses dos subordinados (YÚDICE, 2006, p. 224,
grifos no original)
Charles Hale (2002, 2004) avança uma crítica similar da experiência multiculturalista na América Latina, em particular com relação às populações indígenas na região.
Para o autor, a contradição do multiculturalismo repousa em empoderar sujeitos indígenas através de uma nova gama de direitos de cidadania ao passo em que determina
parâmetros restritos de quem pode aceder a tais direitos. Para o autor,
atores políticos e econômicos poderosos usam o multiculturalismo neoliberal
para afirmar a diferença cultural ao passo em que mantêm a prerrogativa de
discernir entre direitos culturais consistentes com o ideal de pluralismo democrático liberal e direitos culturais contrários a este ideal. Destarte, eles
avançam uma ética universalista que constitui a defesa da própria ordem capitalista neoliberal (HALE, 2002, p. 191).
Enfim, o reconhecimento da luta e identidade indígenas pelo regime neoliberal gera
uma nova categoria, a do indio permitido pelo Estado. A incorporação de certas demandas e discursos identitários indígenas pelo aparato do Estado compete, simultaneamente,
por determinar, desde os interesses das grupos no poder, o que pode ser legitimamente
reconhecido ou não como indígena (HALE, 2004; HALE; MILLAMÁN, 2006).
Tendo chegado atrasado ao evento, el Mallku teve a prerrogativa de ser o último palestrante. Diferentemente de Cárdenas, Quispe remontou não discursos, mas a dominação e
as lutas que marcaram a história do indio desde a chegada do europeu. Após ter iniciado sua fala em aimará, el Mallku chamou atenção para outras formas de reprodução da
colonialidade que se mantém viva no seio da sociedade boliviana.
Bueno, yo creo que, según la nueva constitución, el idioma aimara es oficial,
¿no es? Por esto estoy hablando. No se enojen... voy hecho a ponerle en castellano, discúlpenme. Porque he aprendido a hablar en castellano muy bien a
mis veinte años en el cuartel. Entonces voy a procurar de hacerlo bien. Pero
no voy a hablar igual que el Víctor Hugo Cárdenas. Porque el está trabajando por el Goni, siempre ha estado con él, le gusta vivir bajo las barbas de los
liberales, ¿no es cierto?
A despeito de oferecer uma ampliação em termos de direitos, a consolidação do
multiculturalismo compreendeu a institucionalização da diferença e a conformação de
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um novo modelo sobre o que vem a ser autorizado a se reclamar enquanto indígena. Ao
invés de criar mecanismos que validassem as formas de deliberação indígena, consolidou
o sistema representativo enquanto superior às formas comunitárias e populares de deliberação política, por um lado. Por outro lado, delineou um novo índio permitido, a quem a
entrada no esquema de cidadania se dava pela inclusão desde uma lógica individualista
de mercado. Por parte do Estado, o reconhecimento se limitou a mais uma forma de assimilação de indivíduos indígenas à estrutura vigente, no papel de legítimos cidadãos
bolivianos, imbuídos dos direitos de votar e de ser elegidos representantes, desviando-se,
portanto, de uma proposta mais radical de inclusão democrática a partir da transformação
das estruturas vigentes desde um paradigma pluralista. As limitações do multiculturalismo salientam também as limitações da lógica do reconhecimento para a compreensão da
dinâmica entre a luta indígena e o Estado. Neste aspecto, o processo de reconhecimento
da pluralidade – tanto em termos culturais como políticos – pelo Estado torna-se também
define o que pode vir a ser ou não reconhecido.
A fala de Quispe evidenciou a oposição entre os últimos dois palestrantes. Em sua disputa pela herança de Katari, Cárdenas, o primeiro vice-presidente indígena, se colocava
como a definição do indio permitido, a adequação da indigeneidade aos parâmetros
permitidos pelo Estado. Por sua vez, a figura polêmica e radical d’el Mallku reivindicava a indigeneidade para além das imposições q’ara, reclamando sua posição enquanto
continuidade da revolta do indio alzado.
De ese gran hombre nosotros le arrancamos el Tupak-Katarismo revolucionario. No el katarismo de Gonzalo Sánchez de Lozada, no se confundan
compañeros y compañeras. No el katarismo traidor... Sino que aquél tiempo,
mira, nosotros nos hemos lanzado en armas. Víctor Hugo Cárdenas era vicepresidente del Gonzalo Sánchez de Lozada ahí al año de 1992. O sea que había dos kataristas. Unos kataristas sirviendo a lo neoliberal (...). Y otros
kataristas estábamos en la cárcel. Castigado por terrorista, por lanzarse en
armas. Eso es pasado. Eso es la realidad. Está escrito en los periódicos. Investiguen (...). Hay que hablar la verdad. Entonces por eso que nosotros
hemos seguido el camino de las armas. Hemos pisado las huellas de Tupak
Katari. Nosotros somos Tupak Kataristas de Tupak Katari. No de otra cosa.
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A despeito de seu fracasso eleitoral e de seus anos no ostracismo forçado da prisão, é
Quispe e não Cárdenas quem desempenhou papel central nos levantes e bloqueios que
pararam o país na sequência da Guerra del Água, em 2000, assim como na articulação
entre as lutas rurais e urbanas durante a Guerra del Gás, em 2003.
MOMENTO III. Indigeneidade ampliada e a luta antineoliberal
Em 20 de setembro de 2013, os carros da comitiva presidencial cortaram o caminho do
ônibus em que estávamos rumo à cidade de Achacachi. Imaginávamos seguir na mesma
direção: o presidente era esperado para abrir as comemorações dos 10 anos da Guerra
del Gás, iniciada após um sangrento confronto entre a polícia e manifestantes locais que
bloqueavam uma rodovia. A praça estava lotada; em sua maioria estudantes da escolaayllu da localidade de Warisata. Após um largo período de espera teve início o evento,
conduzido quase em sua totalidade em aimará. Entre o céu e as montanhas, crianças e
idosos, cartazes e wiphalas, chicotes e apthapis, uma ausência ilustre: onde estava o presidente?
Entre os meses de setembro e outubro de 2003 a Bolívia passou por um período de
intensa convulsão política e social. Na sequência de um crescente insurrecional pautado
por diversas mobilizações sociais, o avanço das políticas neoliberais e da desigualdade
socioeconômica e o desgaste do sistema partidário, Goni retornou à presidência (2002)
após eleições acirradas, cujo resultado fora decidido pelo Congresso. A insatisfação com
as privatizações marcou também a polarização entre interesses populares e os interesses
das elites políticas e econômicas – estas particularmente centradas nos departamentos
orientais que compõem a Meia-Lua. Após rumores acerca da conformação de um consórcio internacional para a construção de uma rede de exportação de gás natural para os
Estados Unidos, explodiu, na região andina, a Guerra del Gás (KOHL; FARTHING, 2007).
No dia 17 de outubro de 2003, com a fuga de Goni para os Estados Unidos, tinha fim a
Guerra del Gás. Dez anos depois, na cidade de El Alto, a data fora promulgada “Dia de
Dignidade Nacional”. Na Ceja lotada, a data fora descrita como o início do proceso de
cambio. A partir daí que se consolidaram as demandas sobre nacionalização dos recursos naturais e da nova constituinte, processo “encabeçado pelo presidente Evo que
devolveu a dignidade a todo o povo boliviano”. Em sua fala, o presidente refletiu:
13
¿Qué ha sido el día 17 de octubre? La final de un modelo neoliberal. ¿Qué
ha sido el 17 de octubre de 2003? Total agotamiento, total... descomposición
de este modelo neoliberal (...). Los representantes del modelo neoliberal,
quienes implementaron este modelo de saqueo no es que vendieron la patria,
creo que, hermanos y hermanas, nos equivocamos: no vendieron la patria, se
la regalaran la patria, se lo llevaron la patria, compañeros y compañeras.
Porque ahora saben ustedes los resultados que tenemos, totalmente diferente
que antes.
A despeito de o atual governo situar o início do proceso de cambio nos eventos de
2003, os processos que conduzem à chegada de Morales no poder têm início em uma
confluência de fatores que antecedem à Guerra del Gás. A chegada dos anos 2000 marcou o início de uma crise generalizada das instituições políticas e do casamento entre
neoliberalismo econômico e a democracia liberal-representativa na Bolívia (PROGRAMA
DE
LAS NACIONES UNIDAS PARA EL DESARROLLO, 2010, p. 68). Desenrola-se um novo
ciclo protestos, desta vez marcados por uma tônica duplamente anticolonial (ERNST;
SCHMALZ, 2012), tanto em seu aspecto político-econômico – contra o neoliberalismo e o
imperialismo – como em seu aspecto étnico-cultural – de submissão dos povos indígenas
às categorias ocidentais avançadas pelo Estado boliviano.
Ao longo dos cinco primeiros anos do novo milênio a Bolívia vivenciou a emergência de uma nova constelação de forças sociais em que se destacam elementos
indígenas e antineoliberais. Este novo bloco em formação logrou subverter o consenso
político hegemônico em torno dos partidos tradicionais e conduzir uma nova organização
ao poder, o Movimiento al Socialismo (MAS). De certa forma, é possível dizer que o surgimento das novas siglas deva algo aos processos de descentralização democrática que
tiveram lugar na Bolívia durante a década de 1990 (VAN COTT, 2000, 2003). Neste contexto, as ruas e rodovias do país não são mais os únicos loci de atuação política indígena,
mas também a via eleitoral se constituíra como uma forma de acesso à participação nos
processos de tomada de decisão no âmbito local e nacional (SILVA, 2009).
É com este pano de fundo que surge, em 1999, o MAS. Criado como como um instrumento político dos movimentos sociais, o MAS consolidou-se como a expressão do
crescente protagonismo do sindicalismo cocalero no interior do movimento indígenacampesino (WEBBER, 2011). Na luta contra a repressão doméstica e internacional ao cul-
14
tivo da coca, o líder Evo Morales ganhou maior destaque no cenário político nacional,
conferindo relevo à crítica ao neoliberalismo não só como forma de exploração dos trabalhadores mas, também como forma de usurpação da cultura andina. No simbolismo da
folha de coca reuniam-se vários elementos defendidos pelo MAS, tanto no seu aspecto
andino-tradicional do consumo da planta, como na resistência dos cocaleros contra o imperialismo investido na guerra contra as drogas (KOHL; FARTHING, 2007; ZUAZO, 2009).
O surgimento do MAS e de outras siglas que fazem uso de elementos indígenas na
defesa de suas plataformas denota o avanço paulatino da indigeneidade como elemento
aglutinador e legitimador na disputa política institucional. Similarmente, a identidade indígena também prestou coesão a outras ações políticas extra-institucionais que não
estritamente ligadas aos movimentos indígenas. Isto se tornou evidente a partir da chamada Guerra del Água, na cidade de Cochabamba, em 2000. A privatização de um do
sistema de água da cidade reuniu diversos setores em uma pauta anti-mercantil, criando
uma solidariedade oposicionista em torno da defesa da gestão comunitária e soberana dos
recursos naturais fundamentada em usos e costumes (LINS, 2009). A adoção do elemento
indígena na defesa da soberania sobre recursos naturais contribuiu para alastrar o apoio
ao movimento (KOHL; FARTHING, 2007). Esta conexão é evidenciada quando el Mallku
convocou um bloqueio de rodovias em solidariedade a Cochabamba, logrando isolar a
cidade de La Paz e retomando o terror ao cerco de Katari (WEBBER, 2011).
No âmbito das propostas, a identidade indígena também surgira como base para a
divulgação de uma plataforma pró-constituinte e por transformações mais profundas das
instituições Estado boliviano, francamente desgastadas, e apontava um incipiente, mas
intenso, processo construção de um novo projeto político no país (CENTRO
DE
COMUNICACIÓN Y DESARROLLO ANDINO, 2012). Em setembro de 2002, organizações indígenas e campesinas selaram o Pacto de Unidad (PU), que visava avançar uma nova
proposta constituinte que incluísse mecanismos de usos e costumes à prática democrática
através da consolidação da plurinacionalidade (CONFEDERACIÓN SINDICAL ÚNICA
DE
TRABAJADORES CAMPESINOS et al., 2004). A indigeneidade surge aqui como forma de
oposição à lógica ocidental da dominação e a persistência de uma perspectiva colonial
contra formas comunitárias de organização política e socioespacial. Esta aglutinação de
novas pautas contribuiu para a ampliação das fronteiras da identidade indígena, aproximando-a de “reivindicações campesinas e de classe, à demanda pela terra e pelo território
e, pouco a pouco, à luta pelo controle dos recursos naturais” (REGALSKY, 2007, p. 56).
15
Ainda que não tivera participação central nos eventos mencionados, a união destes
elementos pela plataforma do MAS foi essencial para canalizar a mobilização pública em
votos para o partido. Naquele contexto o partido logrou ir ao encontro da nova forma de
identidade complexa que emanava das ruas e buscava maior representação na política
institucional, contribuindo para um acréscimo em sua popularidade (CANESSA, 2006).
Independente das pautas que marcaram sua origem na luta cocalera, o partido foi capaz
de relacionar os elementos particularistas da identidade indígena com uma luta mais ampla contra a influência externa no país.
Em um contexto de descrédito cada vez maior das instituições partidárias tradicionais, a plataforma do MAS colocou-se como uma alternativa conta-hegemônica plausível
na arena representativa, agregando diversos pleitos à sua própria base original. Ainda que
não tenha sido protagonista neste processo de mudanças, o MAS se colocou como o representante capaz de direcionar a insatisfação deste núcleo emergente – além de outros
estratos médios entre os extremos da polarização social – rumo a uma alternativa eleitoral-democrática de sucessão à orientação neoliberal dos partidos tradicionais (SILVA,
2009). Isto se prova um aspecto crítico para entender o surpreendente resultado eleitoral
do MAS no pleito seguinte que seguiram; em 2002, o partido de Morales alcançou o segundo lugar nas eleições gerais, pouco atrás de Goni. Como aponta Andrew Canessa
(2006, p. 251), à diferença de Felipe Quispe, Morales colocou-se como uma opção étnica
mais branda, de defesa da pátria, ao tornar “as questões indígenas, questões nacionais”.
A despeito disto, é el Mallku quem desempenha um papel crucial na concatenação
entre o elemento indígena e a luta antineoliberal deflagrada em El Alto. Quispe contribuiu para articular a violenta reprimenda ao conflito na rodovia de Achacachi ao crescente
ressentimento acerca da privatização e exportação do gás, conectando o movimento indígena-campesino às juntas vicinais e demais organizações urbanas da cidade de El Alto. E
na confluência destes fatores, nas marchas e bloqueios populares contra uma violenta,
mas insuficiente, repressão estatal, que contribuem para consolidar a luta contra os governos neoliberais. Esta luta se baseia, enfim, em uma nova pauta em torno da temática
da soberania e da luta anticolonial contra a exploração dos recursos naturais do país
(WEBBER, 2011). Ao passo em que o neoliberalismo se delineava como um inimigo comum, a indigeneidade prestou coesão aos grupos envolvidos, de forma que a
problemática da soberania nacional foi representada como uma questão indígena contra
força exógenas (CANESSA, 2006, p. 254). A truculência das sucessivas tentativas de re16
primir a revolta resultaram custosas para a manutenção da legitimidade do governo, tendo contribuído para reforçar o apoio social ao levante por parte tanto de uma série de
movimentos populares como de setores de classe média (WEBBER, 2011, p. 222).
Evo seguidamente saudava a presença de dirigentes e representantes de movimentos sociais. Nenhuma menção ao movimento indígena. Mais a frente, relembrou aos próprios
protagonistas dos eventos, a sequência dos fatos que precederam os embates de El Alto.
Dos eventos de Achacachi, apenas os mortos foram relembrados. Evo, que passara quase todo o mês de agosto no exterior, se descreveu presente nos debates que decidiram os
rumos da guerra. Quispe, obviamente, não foi mencionado.
O saldo da Guerra del Gás foi a fuga de Goni para os Estados Unidos, dezenas de
mortos e centenas de feridos, além da consolidação de duas demandas centrais que guiariam os próximos passos rumo à alteração do status quo na Bolívia: a chamada Agenda
de Octubre (AO). Figuram centrais neste momento as pautas pró-nacionalização dos recursos naturais, contra o neoliberalismo como orientação política e econômica e em torno
da proposta de convocação de uma Assembleia Constituinte que reconhecesse e aprofundasse as formas comunitárias e populares de tomada de decisão e participação política
(WEBBER, 2011). Neste contexto, certa indigeneidade colocou-se como base de uma comunidade imaginada de caráter contra-hegemônico, a qual apresenta uma ancoragem
histórica, um repertório simbólico e de performance que a coloca como a epítome de uma
resistência secular contra o avanço dos interesses das potências ocidentais sobre a Bolívia
(FONTANA, 2012, p. 40).
Com relação ao MAS, por sua vez, a capacidade de a sigla e seu líder em capitalizar sobre os processos populares – particularmente em El Alto – competiu, juntamente à
paulatina suavização de seu discurso, para atrair votos para o partido. A eleição de Morales, em 2005 combinou feitos inéditos: o de eleger diretamente – pela primeira vez com
mais de 50% dos votos – um presidente de origem claramente indígena.
Morales sublinhou a importância dos eventos em El Alto para o desencadeamento do
proceso de cambio, ao passo em que destacou os avanços conquistados pelo seu governo
desde 2005. Se até então quaisquer menção aos movimentos indígenas tinha passado ao
largo do discurso do presidente, no encerramento de sua fala à população alteña Evo
reclamou para si a continuidade da luta iniciada por Katari.
17
Hermanas y hermanos, una liberación no solamente de carácter social, no
solamente de carácter económico, no solamente de carácter cultural, sino
sobretodo para dignificarnos. Para liberarnos de estos patrones que imponían las políticas económicas (...). Porque es la lucha de nuestros
antepasados. Mineros, originarios, todos. ¡Eso nos dejaron con la cabeza de
Tupaq Katari, de Bartolina Sisa... tantos (...)! Hermanos y hermanas también
recordarles algo importante. Nuestra lucha, tanta lucha no han sido para el
beneficio personal, sino la reivindicación nacional. Hemos luchado para el
pueblo boliviano (...).Pero también, quero decirles, hermanos y hermanas,
que hicimos en corto tiempo. Ahora somos dignos. Y jamás humillados ni
vendidos, hermanos y hermanas. (...) Ya no estamos vendidos como nos dejaron. Por eso mediante la Asamblea Constituyente hemos pasado de un
Estado colonial mendigo a un Estado plurinacional digno. Esta es nuestra
lucha.
A chegada do MAS à presidência colocou-se, enfim, como a formalização de um
proceso de cambio iniciado nos protestos sociais dos anos anteriores. Morales buscou
reunir em sua figura os elementos que compunham a curta e longa memória dos movimentos indígenas, reivindicando para seu governo o papel de protagonista na
concretização de séculos de luta anticolonial. Comprometido com as propostas da Agenda de Octubre, o governo de Morales rapidamente engendrou a convocação da
Assembleia Constituinte (AC), em março de 2006, e a nacionalização do gás, em primeiro de maio do mesmo ano. Com estes passos iniciais o MAS reclamou as rédeas da
consolidação de uma “dupla descolonização” do país, de caráter político-econômico e
cultural-epistemológico (ERNST; SCHMALZ, 2012, p. 14), referidas especificamente à
quebra do anterior pacto democrático-neoliberal e da hierarquia étnica que subjugava a
epistemologia indígena como inferior ao pensamento ocidental. Da perspectiva do próprio partido, a ideia do proceso de cambio relacionava-se, enfim, com uma perspectiva
de “revolução democrática” coroada pela eleição de Morales (DUNKERLEY, 2007).
RETORNO(S). Avanços e retrocessos na nação indigeneizada
18
Em retrospectiva, a fala de Evo Morales em Cochabamba referia-se muito mais à luta
indígena do que no momento posterior, em El Alto. Em seu discurso na Cumbre, o tema
da descolonização ganhara muito mais destaque na luta anti-imperialista do que no discurso perante à população alteña.
¡Hermanas y hermanos!, otra de las tareas que tenemos es como, como empezar a descolonizarnos. ¡Si queremos cambiar el mundo tenemos que
empezar a cambiar nosotros!
Após sua chegada ao Palácio Quemado, o MAS-governo enfrentou a dura tarefa de
concretizar seu objetivo revolucionário a partir dos nada revolucionários quadros burocráticos do Estado. A tarefa de descolonização institucional foi avançada no interior do
executivo, por um lado, por uma intelectualidade de classe média representando uma tradição de pensamento social de esquerda, focada em questões étnico-classistas; e, por
outro, por lideranças ativistas saídas diretamente dos movimentos sociais (DUNKERLEY,
2007). Sobre o primeiro grupo, a presença dos intelectuais, e particularmente do vice Álvaro Garcia Linera, resultou em uma larga produção bibliográfica conduzida pelos
próprios atores do processo, justificando as ações do governo e criticando os opositores.
Sobre o segundo grupo, Morales promoveu a inserção dos dirigentes mais próximos à
abordagem masista, tendo fortalecido estas organizações na medida em que afastava
aqueles cuja postura era menos coincidente com a orientação do partido (ESCÁRZAGA,
2012, p. 152).
A ideia de “descolonização” da estrutura estatal cobra, enfim, centralidade no proceso de cambio masista. Emanando da luta indígena, o processo deveria necessariamente
incluir tal elemento enquanto conformador das instituições – o que se daria tanto através
da convocação de uma nova AC, por um lado, como pela adoção do conceito de suma
qamaña ou vivir bien como paradigma teleológico de um novo ideal de desenvolvimento
(FONTANA, 2012, p. 244). Neste novo contexto, o Estado – representado como a expressão de um poder popular e indígena – passa a ser o “protagonista e o promotor do
desenvolvimento”, que deve incorporar os interesses dos marginalizados e excluídos na
conformação de um novo programa econômico e social (MINISTERIO DE PLANIFICACIÓN
DEL DESARROLLO,
2007, p. 15). Mais além, através da constituinte, este novo Estado se-
ria transformado profundamente com a participação destes setores até então
19
marginalizados – prerrogativa para a consolidação da plurinacionalidade demandada pelos movimentos sociais organizados no PU.
A consolidação de um Estado plural sugere a possibilidade de unificação e integração a partir do reconhecimento “da existência de lealdades múltiplas dentro de um social
descentralizado” ao marcar “uma ‘outra’ agenda nacional pensada desde os sujeitos historicamente excluídos na visão unitária do Estado, nação e sociedade” (WALSH, 2008, p.
142). A partir de uma concepção institucional, social e cultural de caráter plural, ganha
centralidade uma perspectiva intercultural, que aponta para “um processo e projeto sociopolítico dirigido à construção de sociedades, relações e condições de vida novas e
distintas” (WALSH, 2008, p. 140). Neste processo, “lógicas, racionalidades e modos socioculturais de viver historicamente negadas e subordinadas [...] contribuem de forma
chave e substancial para uma nova construção – a uma transformação – social e estatal de
orientação descolonial” (WALSH, 2008, p. 145). Uma tal transformação descolonizadora
implicaria, enfim, na “refundação” do Estado; entendida como tarefa central a fim de suplantar a concepção eurocêntrica, monolítica e excludente do Estado-nação, o que
também indica a necessidade de superar a perspectiva multiculturalista baseada na representação da diferença (DE SOUSA SANTOS, 2010). De acordo com Boaventura de Souza
Santos (2007), indígenas deveriam desempenhar papel central neste processo, uma vez
que sua luta política aponta tanto para uma socioespacialidade que transcende a associação entre o Estado e nação como para formas político-governativas que extrapolem os
limites da democracia liberal-representativa. Para o português, o protagonismo indígena
neste processo sugere, enfim, a possibilidade de “uma nova institucionalidade (plurinacionalidade), uma nova territorialidade (autonomias assimétricas), uma legalidade nova
(pluralismo jurídico), um regime político novo (democracia intercultural) e novas subjetividades
individuais
e
coletivas
(indivíduos,
comunidades,
nações,
povos
nacionalidades” (DE SOUSA SANTOS, 2007, p. 72).
Entretanto, no caso boliviano, a compatibilização destes ideais pluralistas com a
orientação crescentemente nacional-desenvolvimentistas do governo trouxeram à tona
tensões entre os grupos que conformaram a base que conduziu o MAS ao poder. Começando pelo processo constituinte, a conformação da AC (em 2006), assim como de
confecção e aprovação do novo texto constitucional (em 2009) foram conturbados, fazendo emergir novas e velhas disputas sociais, políticas e econômicas, assim como a
dualidade étnica de fundo colonial que perpassava tais cismas. Por um lado, a presença
20
de indígenas pela primeira vez em uma AC conduziu à inclusão de demandas históricas
dos movimentos – a despeito das diversas demonstrações de racismo enfrentadas por
membros da constituintes (GARCÉS, 2012; SCHILLING-VACAFLOR, 2012). Representantes
do PU na AC possibilitaram a articulação dos movimentos indígenas e campesinos que
consolidaram uma proposta conjunta na qual a prerrogativa à autoidentificação, assim
como o direito à autodeterminação, tornaram-se elementos centrais (SCHAVELZON, 2013,
p. 236). Resultando desta articulação, o estabelecimento de governos autônomos geridos
por normas e costumes próprios em determinado território, tornou-se a prerrogativa legal
a partir do que se delinearia o direito à terra e aos recursos naturais. A esta forma de autogoverno comunitário seria acrescida a representação direta nos poderes públicos a
partir de normas e costumes, para além do sufrágio universal (PACTO DE UNIDAD, 2006).
Evidentemente, a inclusão de elementos da proposta do PU não foi livre de percalços; ainda assim, a nova constituição avançou significativamente em certos aspectos se
comparada com a normativa anterior. Particularmente importante, a constitucionalização
da existência de sujeitos coletivos, rompeu com noções de homogeneidade da identidade
nacional e de contiguidade entre a unidade territorial do Estado e a totalidade do corpus
nacional. Com isto, o direito à autodeterminação de sujeitos políticos coletivos adquire
uma importância central na temática plurinacional, pois implica repensar tanto a territorialidade estatal como o pluralismo jurídico, além das possibilidades cogovernativas entre
os diversos sujeitos coletivos e o Estado.
Na CPE, o “sujeito-chave” (SCHAVELZON, 2009) a partir do qual novas instituições
democráticas seriam pautadas foram as “nações e povos indígena originário campesino”
(IOC). Este termo composto refletia as formas de identificação utilizadas dos grupos representados pelo PU surgem como essencialmente equivalentes – a dizer, para aqueles do
altiplano, originários, para os da terras baixas, indígenas e para aqueles cuja estrutura
organizativa espelhassem as formas sindicais, campesinos (ALBÓ, 2009b, p. 87; GARCÉS,
2012, p. 85). Há que ser ressaltado que a concepção de “nações e povos IOC” como uma
nova categoria, para além de efetivamente reconhecer uma identidade comum, conformada na luta social, institucionaliza tal aliança como base para a definição de políticas
públicas para um grupo com objetivos políticos bastante diversos. Neste aspecto, a conformação do sujeito IOC estabelece uma nova forma legitimada de indigeneidade.
Resulta importante apontar que as distinções entre os termos permanecem entre sujeitos indígenas e campesinos, não apenas no que privilegia sua identificação com bases
21
étnicas ou classistas e quanto a suas estruturas organizativas – em sindicatos ou ayllus – ,
mas como isto repercute em concepções distintas acerca da terra e do território
(CRABTREE; CHAPLIN, 2013). Neste aspecto, a junção entre identidades classistas e étnicas na conformação do sujeito IOC refletiria uma compreensão ruralizada da
indigeneidade (GARCÉS, 2012), ecoando o projeto nacionalizador de 1952 e excluindo do
processo setores não rurais e migrantes.
Em sua forma final, portanto, o povo boliviano segue descrito como o todo da população no contexto da totalidade territorial – sendo o Estado definido de forma Unitária
Social de Direito Plurinacional Comunitário(BOLIVIA, 2009). Com isto, a plurinacionalidade, como a existência de múltiplas identidades nacionais, coexistiria com uma ideia
mais ampla de nacionalidade boliviana como um status, mas também como uma identidade, que compartilha uma história e propósito comum, a qual abarca as demais contidas
em seu interior. A inclusão do sujeito IOC na composição da totalidade da nação boliviana resulta em que, ao passo em que o povo como um todo passa a ser titular da
soberania, o mesmo conceito se refere também à diversidade que compõe o conceito de
IOC, criando duas concepções possíveis de relação entre sujeitos políticos coletivos e as
modalidades de representação destas identidades (KOMADINA, 2009, p. 105).
Ainda que se tenha logrado haver participação indígena neste processo de “refundação do país”, parte das estruturas que subordinavam a população indígena no passado
ainda persistem no contexto plurinacional. Salienta-se com isso o cerceamento da proposta indígena em face da continuidade de práticas políticas consolidadas e as
dificuldades de consolidação do pleito intercultural. As correlações de forças entre governo e oposição e, na base do governo, entre indígenas e campesinos, contribuíram para
gerar um texto que, não obstante avanços inegáveis em termos de pluralização institucional, distava em muitos aspectos da proposta indígena. Com a chegada do segundo
mandato de Morales, estas tensões se evidenciam e polarizam a base do governo do MAS
(GARCÉS, 2012).
Em dezembro de 2009, Evo Morales foi eleito o primeiro presidente após a ratificação da nova Constituição, com 64,22% do total de votos para o Congresso (MOKRANI;
CHÁVEZ, 2012, p. 376). Ficou saliente então a “vitória” da luta popular sobre as forças de
oposição ao proceso de cambio, conclamando a centralidade do MAS como instrumento
dos movimentos sociais e liderança em um novo momento político e social do país. Neste novo cenário observa-se a emergência de um discurso cada vez mais “indigeneizado”
22
por parte do governo, enquanto, por outro lado, as políticas terminam por isolar cada vez
mais o papel das vozes indígenas dissidentes. Particularmente a partir das leis regulatórias de 2010, observa-se retrocessos contundentes com relação ao texto constitucional,
contribuindo assim para a retomada de uma política que exclui a perspectiva pluralista
que alimentou o debate constitucional durante o mandato anterior (GARCÉS, 2013, p. 55).
Tais leis restringiram as possibilidades reais de atuação a partir de normas e costumes, assim como a efetividade dos mecanismos de consulta no sentido de alterar os
rumos das políticas públicas. A subordinação de territórios indígenas às fronteiras departamentais e municipais; redução dos assentos exclusivos aos indígenas no legislativo;
crescente valorização da democracia representativa em detrimento das demais formas
reconhecidas na constituição; e o crescente tom desenvolvimentista, em contraste com a
retórica do vivir bien, apontaram para um desgaste cada vez maior entre o governo do
MAS e aquela que parecia ser sua base histórica (GARCÉS, 2012).Neste sentido, resta
como opção institucional viável apenas a inclusão nos quadros institucionais a partir da
forma tradicional de postulação e escolha de representantes: o partido. O aumento do
apoio ao MAS nas eleições de 2009 – que ainda se coloca na esfera representativa como
O ator da mudança e instrumento dos movimentos sociais – reflete ainda mais o isolamento de formas políticas comunitárias (MOKRANI; CHÁVEZ, 2012, p. 383). Este
descompasso entre o argumento pluralista e a centralidade maior no partido-governoEstado fez-se evidente com o conflito deflagrado na região do TIPNIS em 2011.
O problema desenrolou a partir da construção de uma rodovia pela região que,
ademais de ser parque de preservação ambiental, havia logrado ser também declarado
território indígena como resultado das negociações após a Marcha de 1990. A ausência
de consulta prévia aos povos da região se misturou com os interesses de pequenos proprietários – os chamados colonizadores ou interculturais – ali assentados, bem como com
os interesses brasileiros investidos ligação com o Oceano Pacífico que se facilitaria com
a realização da via (CRABTREE; CHAPLIN, 2013). Em termos gerais, o discurso do governo apresentou o projeto da rodovia como uma proposta de desenvolvimento que
impulsiona a inclusão dos povos indígenas a partir da ideia de suma qamaña. Neste sentido, a proposta desenvolvida aponta para o Estado como propulsor deste
desenvolvimento “consciente” a respeito da necessidade de preservação ambiental e cultural; não obstante, aponta também para a ideia de desenvolvimento dos povos indígenas
como forma de integração ao projeto de Estado (GARCÍA LINERA, 2010).
23
O crescente apoio à mobilização indígena do TIPNIS nas esferas nacional e internacional, contribuiu por polarizar os grupos no PU entre os que apoiavam a mobilização
ou o governo (CRABTREE; CHAPLIN, 2013). As sucessivas tentativas de negociação – enfrentadas com pouca flexibilidade por ambos os lados – e a duríssima reprimenda policial
aos marchistas lançaram mais luz sobre o distanciamento real entre uma política de desenvolvimento dita indígena e as demandas dos próprios indígenas e entre, de um lado,
uma perspectiva intercultural e plurinacional e, de outro, os interesses da nação conforme
expressos pelo governo (FUNDACIÓN UNIR, 2011).
O discurso seguia; ora passando pela soberania alimentar e o incremento na produção
de batatas, ora pela questão do gás e petróleo, ora retomando a luta indígena. Sempre
usando a primeira pessoa do plural, o presidente enfatizava os avanços logrados em seu
mandato, associando o governo do MAS a forma do Estado descolonizado e descolonizador, ao passo em que sutilmente alinhava críticas a uma lógica privada, associada a
forças capital-imperialistas. A política se traduzia, na fala de Morales, à intermediação
partidária, a qual canaliza e efetiva a refundação do Estado.
En cualquier sector social uno se organiza para combatir al privado, al patrón privado o el patrón Estado. Ahora en Bolivia ya no hay el patrón
Estado. Somos uno solo. Pero se organiza para las reivindicaciones. Como
en el sector obrero, en el sector originario puede haber organizaciones proimperialistas, pro-capitalistas. De verdad no puedo entender esta situación.
Cuando algunos sectores sociales dicen que tiene que imperar el pluralismo
ideológico. ¡Que falsedad, que mentira! Y antes nos decían que el sindicato
no puede hacer política. ¡Nos engañaron tanto! La derecha también decía esto! Y la gran experiencia dentro del movimiento campesino originario en
Bolivia ahora con casi todos los sectores sociales que ¡hemos pasado de la
lucha sindical, de la lucha comunal, de la lucha social a una lucha electoral!
Esta nuestra experiencia en nuestros últimos años! Por eso hermanas y hermanos, escuchemos decir: ¡hay que refundar! Hay que refundar a los
Estados mediante a una Asamblea Constituyente (...). De aquí hemos pasado
de un Estado colonial a un Estado plurinacional mediante a una Asamblea
Constituyente que embaza la conciencia del pueblo boliviano. Esta es la historia del pueblo boliviano.
É legitimando sua ação a partir desta base ainda bastante larga de apoio popular nas
urnas que o MAS retoma a centralidade do Estado como o veículo de transformação social e de desenvolvimento econômico. Cabe ressaltar que ainda que a presença de
indígenas nas instituições políticas – seja em cargos eletivos, seja nos quadros burocráti-
24
cos do Estado – tenha efetivamente aumentado, isto não implica necessariamente que a
orientação destas estruturas tenha sofrido uma alteração considerável no sentido de quebrar com a hegemonia de formas liberais de atuação política. Similarmente aos processos
engendrados sob o Estado de 1952, cria-se uma forma de ampliação do escopo do Estado
no qual o desenvolvimento de uma identidade comum é suporte essencial para o avanço
das políticas de ordem econômica. A este respeito, os processos de refundação de Estado
boliviano são analisados desde uma perspectiva “indigeneizante” como notado pelo vicepresidente e principal articulador ideológico do MAS neste texto de agosto de 2013:
[C]om a nova constituição
- A nação boliviana é a nação estatal que nos abraça os mais de dez milhões
de bolivianos que nascemos em nossa pátria. É como uma casa comum
que acolhe-nos a todos
- Dentro dela, existem nações culturais indígena-originárias que possuem
uma identidade pré-existente à república, e mesmo à colônia, com capacidade de livre determinação e que nutrem a identidade boliviana
- Mas, além, o bloco indígena-originário-campesino é o que agora articula,
organiza, lidera a construção e os conteúdos da nação boliviana e do Estado na perspectiva de um Estado integral (GARCÍA LINERA, 2013, p. 3-4)
A ênfase na articulação de processos políticos por parte de uma base legitimada,
IOC, e sua relação orgânica com a conformação do novo bloco no poder delineia a tônica
de uma nova ideia de pátria e nação. A contradição entre a lógica intercultural e da crescente ênfase na nação enquanto um todo coeso ganha maior destaque em função de uma
abordagem que trata posicionamentos críticos como minoritários. Assim como nos processos multiculturais da década de 1990, há uma dualidade entre a indigeneidade
abraçada pelo Estado e aquela avançada por certos movimentos e povos indígenas.
Neste aspecto, ao passo em que retoma a história da luta do “povo boliviano” – seja
através de discursos do presidente, seja através dos textos publicados por García Linera
na página oficial da vice-presidência – uma nova reformulação da relação entre indígenas
e Estado é apresentada, na qual o partido, transformado em governo e posteriormente em
Estado, é o protagonista da descolonização. Ao passo em que desqualifica certa indigeneidade crítica a seu governo, o MAS reclama para si a única forma de representação
legítima da indigeneidade. Neste aspecto, o MAS como governo redireciona seu centro
de poder da base de movimentos sociais para a arena institucional, que se torna o “espaço
de validação de capitais sociais, culturais e simbólicos amplamente dominado por grupos
sociais alheios aos que constituem a base social do próprio ‘instrumento’ [o MAS]” (DO
ALTO; STEFANONI, 2010, p. 354).
25
É possível que, uma vez consolidada sua maioria legislativa, a força de pressão dos
movimentos sociais torna-se prescindível, reforçando as possibilidades de que se reproduza “um esquema vertical de tomada de decisões que debilitaria as possibilidades de
visões críticas dentro do projeto político de mudanças” (MOKRANI; CHÁVEZ, 2012, p.
383). Assim, a política popular é novamente deslegitimada em vista da possibilidade de
inclusão institucional – que é efetivada apenas para determinados setores, no caso os que
seguem apoiando a política do MAS. Defende-se aqui, portanto, que o partido passa a
avançar por uma via contraditória: ao passo em que se institucionaliza e se distancia de
parte da base e da identidade social que o conduz ao poder, ele também reclama ser o
portador legítimo desta mesma identidade, convocando para si o poder de defini-la.
Uma compreensão de Estado-nação indigeneizado – ou, mais além, de um Estado
que se arroga o monopólio da caracterização legítima da indigeneidade – não apenas
subverte as demandas dos movimentos indígenas por inclusão de sua dimensão política
nas estruturas do Estado, como destila seu potencial contestatório, transformando a identidade indígena em base para a legitimação do poder instituído. Segue-se que, ao passo
em que define os parâmetros de participação de sujeitos coletivos nas instituições estatais, o governo apresenta a identidade indígena como a base do desenvolvimento de um
novo Estado e, de forma ainda mais interessante – desde uma perspectiva analítica, salienta-se –, de uma nova nação. Como apresentado anteriormente, uma das críticas que
fundamenta e motiva a ação contenciosa dos movimentos indígenas é a própria ideia de
sobreposição entre uma identidade nacional homogênea e uma unidade territorial total.
Esta crítica fundamenta a demanda por autonomia e autogoverno de sujeitos coletivos a
partir de normas próprias, além de prover a base para a conformação de processos identitários autônomos nos quais as categorizações do Estado não se imponham sobre as
classificações realizadas pelo próprio grupo.
Esta demanda esteve presente desde quando o katarismo emergiu no sindicalismo
durante a expansão da identidade nacional mestiza e da imposição da categoria campesina sobre os povos indígenas. Evidentemente, naquele momento bem como no atual a
inclusão no regime de cidadania possibilitou a participação política a partir da via eleitoral, assim como o acesso a direitos e benefícios sociais que antes não tocavam às
populações indígenas. Entretanto, é justamente contra a imposição de uma categorização
alheia e as condições políticas daí decorrentes que se levantam os movimentos indígenas,
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reclamando a autonomia e o fim da perpetuação de uma lógica colonial por parte do Estado.
No presente momento, a construção da identidade nacional aponta para processos
distintos de politização da identidade indígena. A partir da própria base que conduz o novo partido ao poder sustenta-se, pois, a legitimidade da constituição de uma nova
identidade nacional, compartilhada por todos, que também neste momento embasa a política estatizante do governo Morales. Como ressalta Canessa (2012, p. 204), a
“[i]ndigeneidade provê seu governo com a legitimidade para governar e uma plataforma
que protege a nação contra globalização cultural e econômica; em resumo, a indigeneidade é a fundação de um novo nacionalismo”. Este novo nacionalismo constitui, pois, um
novo ideal de cidadania na qual o indígena se transforma no “cidadão paradigmático”
(CANESSA, 2012). Transforma-se o paradigma do Estado a partir de uma compreensão
culturalista do reconhecimento da identidade indígena, retirando a legitimidade de sua
luta social e seu potencial como agente de transformação das estruturas vigentes.
Ressalta-se, portanto, um atual estágio no qual se observa, por um lado, a repressão
à crítica desde a perspectiva indígena, o que se desenrola a partir dos retrocessos em processos constitucionais; e, por outro, a consolidação de uma indigeneidade
institucionalizada, incorporada ao discurso oficial enquanto base da identidade nacional.
Evo, o índio alçado ao poder pelo povo, criara a partir de seu próprio molde um ideal de
índio permitido. Nesse momento, Evo e Bolívia se transformam em um só: de um passado indígena pobre e faminto, emerge um novo país, uma promessa nacional, com seu
rosto indígena mirando o futuro. Hermanas y hermanos, ¡esta es la experiencia del pueblo boliviano!
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