Resumo: o presente artigo é uma leitura do conto Tentação, de

Propaganda
O AMOR SEGUNDO
CLARICE LISPECTOR
Célia Sebastiana Silva
Resumo: o presente artigo é uma leitura do conto Tentação,
de Clarice Lispector, à luz da teoria de Platão exposta em ‘O banquete’. Serão abordados, também, como conseqüência desse enfoque
sobre o amor, a questão da identidade, o tema do olhar, tão revelador
do sentido espelhístico que permeia todo o conto e ainda uma sondagem sobre a idéia de tentação, que justificaria o título do texto. Ao
longo de uma leitura detida do conto serão feitas relações com outras obras e textos representativos de Clarice Lispector.
Palavras-chave: amor, Platão, Clarice Lispector, identidade,
tentação
“O
amor, mesmo, é a espécie rara de se achar” (1994, p. 798), assim
reflete uma das personagens de Guimarães Rosa, no conto A Estória de Lélio e Lina, em No Urubuquaquá, no Pinhém. Se, de fato, o amor não
é a “espécie rara” de um ser se achar num outro ser, ele é, pelo menos, a procura, a busca, constante e irremediável, desse encontro. Isso é o que confirma,
também, o mito platônico do amor, expresso no discurso de Aristófanes, em
O banquete. Interessa aqui, de modo particular, uma verificação de como o
amor, visto sob essa perspectiva de busca, de procura de si mesmo, expressa
pelo mito platônico, instala-se na ficção de Clarice Lispector e, mais especificamente, no conto Tentação, de A legião estrangeira.
O que se observa, via de regra, na obra de Clarice, é que o tema do
amor se faz sempre presente, mas contraditoriamente marcado, a um só
tempo, por uma força ambígua de presença e falta; possibilidade e impossibilidade; beleza e feiúra; bondade e ódio; entrega e medo; avanço e recuo;
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 785-797, set./out. 2008.
785
vida e morte ou de suprimento e carência, para falar mais em consonância
com Platão1 e de despojo e acréscimo, para falar em consonância com
Lispector (1997, p. 173). Nesse sentido, Nunes (1969, p. 118) afirma:
Reflexivos, distanciados de si mesmos, de ânimo especulativo, os seres
criados por Clarice Lispector não coincidem com os sentimentos e
paixões que experimentam. Conseqüentemente a essa posição de
alheamento reflexivo, eles assistem, muitas vezes, como espectadores, à constante metamorfose de seus estados afetivos. O que é agora
amor, no instante seguinte pode tornar-se ódio.
Esse conto ora em análise apresenta um enredo aparentemente banal: é a história de uma menina ruiva que, num dia de muito sol, está sentada na porta de sua casa, segurando uma bolsa velha, e, de repente, aparece
um basset, também ruivo, com sua dona. Os dois – a menina e o basset –
olham-se detidamente, enamoram-se profundamente e, logo depois,
o cãozinho segue seu caminho, sem olhar para trás, “nem uma só vez”.
A aparente despretensão do conto é percebida até mesmo pelo fato de que,
na vasta fortuna crítica de Clarice, em raríssimos momentos, esse conto é,
pelo menos, mencionado. Percebe-se, porém, em seu sentido mais fundo,
que um intenso drama íntimo se configura no interior das personagens e o
texto, por sua vez, ganha o mesmo tom de densidade e mistério, é possível
dizer, dos contos e romances mais conhecidos da autora.
O MITO PLATÔNICO
Há, intermediado pelo pensamento filosófico, um estreito laço entre
o pensar mítico e o pensar lingüístico, e Cassirer (1972, p. 101) diz que “a
estrutura do mundo mítico e do linguístico, em largos segmentos, é determinada e dominada pelos mesmos motivos espirituais”. É nesse enlaçamento
entre mito e linguagem que se vêem configurados, num mesmo plano, a
exposição do mito platônico sobre o amor, especialmente no discurso da
personagem Aristófanes, de O banquete, e o conto Tentação, de Clarice
Lispector. Uma leitura do conto deixa muito evidente uma ilustração, e de
forma muito especial, do mito sobre o amor de Platão.
Diz esse mito que, outrora, havia na natureza humana não apenas
duas espécies – o macho e a fêmea – mas três. O terceiro gênero era formado
dos dois primeiros. Chamavam-se Andróginos. Estes herdaram de seus
genitores as formas esféricas e os movimentos circulares. Diferenciavam-se
786
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 785-797, set./out. 2008.
as três espécies pelo fato de o macho ter sido engendrado pelo sol; a fêmea
pela terra e o sexo composto pela lua, filha da terra e do sol. Os Andróginos,
fortes, ágeis e corajosos, empreenderam uma escalada aos céus para guerrear
com os deuses. Receberam de Júpiter o castigo de terem seus corpos divididos em dois para que ficassem enfraquecidos. Consumada a separação,
cada metade passou a desejar, ardentemente, unir-se à sua outra metade:
Quando depois se encontravam, atiravam-se nos braços uma da outra,
enlaçavam-se tão fortemente que, pelo desejo de se fundirem, se deixavam morrer de fome, inertes, sem desejo de nada empreender cada uma
em separado. Quando morria uma das metades, a outra que ficava procurava estreitar-se à outra metade abandonada, quer se tratasse do que
hoje chamamos mulher, quer de homem (PLATÃO, 1959, p. 41).
Dessa forma, a raça foi extinta e Júpiter, compadecido, obrigou que a
concepção e a geração se fizessem, não mais à maneira das cigarras, mas pela
união do macho e da fêmea e isso fez com que a raça humana se propagasse.
Como herança dos seres primitivos, os homens são, portanto, esses
seres incompletos que, movidos pela força de Eros, buscam-se errantes pelo
mundo. E o amor é, então, o desejo da metade perdida de nós mesmos.
Desejo que está fadado a ser sempre falta, porque, em verdade, quando
encontramos o outro, por mais que as duas metades se aproximem, elas não
se acoplam com perfeição, afinal, são diferentes uma da outra. Nesse ponto,
pode-se, ainda em Platão, associar o mito do discurso de Aristófanes ao de
Sócrates que diz que o Amor, como filho que é de Pênia, a deusa da Pobreza
e de Poros, o deus da Abundância, apresenta-se como “rude e sórdido, anda
descalço, deita-se na terra, sem leito, dormindo ao relento” e, por outro lado,
anda sempre no encalço do belo e do bom, é “ousado, tenaz, valente urdidor
de intrigas, sequioso de saber, perspícuo, filosofante, feiticeiro, mágico”
(PLATÃO, 1959, p. 62). Tem-se, assim, reforçada nessa visão dialética, a
idéia de que o amor, embora seja algo que supre, é ainda falta, é carência,
pois a sua natureza indigente o impede de se saciar plenamente. Em A paixão segundo G. H., de Lispector, há, numa reflexão da personagem G. H.,
idéia similar: “Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso
destino maior. [...] o amor é tão inerente quanto à própria carência”
(LISPECTOR, 1997, p. 174).
No conto Tentação, há transfigurados e, até mesmo, ‘denunciados’
fortes indícios do mito platônico. Mas vale observar que, nesse conto, o
encontro não é entre dois humanos, mas entre um ser humano e um aniFRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 785-797, set./out. 2008.
787
mal. E é em mais um dos componentes do banquete de Platão que se pode
justificar essa união insólita. Erixímaco, em seu discurso, diz: “o amor não
reside apenas na alma dos homens que procuram realizar-lhe a beleza; mas
também, para vários outros fins, em muitos outros sêres: nos corpos dos
animais, nas plantas que brotam da terra, em toda a natureza em suma”
(PLATÃO, 1959, p. 33).
E o próprio narrador do conto – na verdade, Clarice Lispector – diz
que a possibilidade de comunicação surge para a menina ruiva “encarnada”
na figura de um cão, ou seja, a palavra encarnada sugere que há um sentido
mais transcendente nessa “possibilidade de comunicação” entre os dois seres. O cão seria apenas um pretexto, essa possibilidade poderia advir de
qualquer outro ser. É, pois, do encontro de uma menina desalentada no sol
da tarde, involuntariamente revoltada por ser ruiva numa terra de morenos,
e de um basset “lindo e miserável” (a própria encarnação do Amor, “rico e
indigente”), também ruivo, que se podem testemunhar dois seres buscando, ávidos, cada qual a sua metade. O próprio narrador diz, em evidente
diálogo com o mito de Platão:
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. [E ainda:] Entre tantos seres que estão prontos para
se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo
para ter aquele cachorro. [Ou:] E no meio de tantas ruas a serem
trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava
uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne (LISPECTOR,
1991a, p. 59)2.
O fato de a personagem humana ser uma criança, no conto, é significativo, pois o infante representa uma indefinição sexual que remete à figura do ser Andrógino platônico e retira a idéia de amor num sentido mais
mundano, carnal, e eleva-o a um sentido de busca da unidade, de reintegração da alma e corpo divididos. Tanto é assim que o grande desalento da
personagem é sentir-se estrangeira em seu mundo exterior e interior: “Numa
terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária” (1991a, p. 59).
O encontro da menina ruiva com o basset ruivo desencadeia nela a consciência do estar-no-mundo, porque é como se ela se visse a si mesma a primeira
vez. Nesse caso, o sentido desse encontro na infância prenuncia o esboço de
um novo ser. Esse prenúncio vem expresso na voz do narrador: “Ela com
sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela
fosse mulher. [Ou:] Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la
788
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 785-797, set./out. 2008.
erguer insolente uma cabeça de mulher?”. A marca a que se refere o narrador
é exatamente o fato de ser ruiva. O que na cabeça de uma menina é uma
revolta involuntária, na cabeça de uma mulher é motivo de insolência.
O ponto culminante do conto e do mito platônico é, no entanto, a
impossibilidade de uma metade encaixar-se na outra metade de forma a
permitir o encontro pleno de um ser com outro. O conto destaca, em um
parágrafo bem distinto, introduzido pelo conectivo ‘Mas’ essa impossibilidade: “Mas ambos eram comprometidos”. Ela, por causa de sua infância
impossível e inocente, ele, por “sua natureza aprisionada”.
Ora, nessa situação em que as duas personagens sucumbem, espantadas, mas sem resistência, à impossibilidade de se unirem por serem comprometidos, fica confirmada a idéia de que, na verdade, um ser afasta-se do
outro – cedendo à gravidade com que se pedem – muito mais porque, na
realidade, está em busca de si mesmo. A natureza aprisionada do basset ruivo
é significativa à medida que o aprisionamento é um indício do desencontro
amoroso. O basset já tinha dona: “A dona esperava impaciente sob o guarda-sol.” (LISPECTOR, 1991, p. 60). E a natureza servil, obediente e submissa dele o impede de ceder à tentação de unir-se à “sua outra metade neste
mundo”. Esse adestramento talvez justifique a adjetivação inusitada sobre
o basset: “desprevenido, acostumado, cachorro”. E a menina é comprometida com sua infância impossível, o que confirma a idéia, já exposta, de que,
por ser desprovida da noção de sexualidade, por ser um andrógino pela
natureza infantil, está também impossibilitada de ceder à “tentação”. Fica
evidente, porém, que a menina é quem mais sofre com essa impossibilidade: “Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que
nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que
mal acreditavam [...]”. E isso ocorre justamente porque ela detém uma
inocência que promete abrir-se, quando “ela fosse mulher”. Diferentemente, o basset não tem nenhuma promessa de liberdade, por isso “ele foi mais
forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás”.
Vale notar que não só o tema do amor, mas, em específico, o da
impossibilidade amorosa recorre em Clarice Lispector. E, na autora, a impossibilidade de o amor atingir a sua plenitude está no fato de que ele sempre esbarra no seu extremo: “a cruel necessidade de amar” (A Menor Mulher
do Mundo – LISPECTOR, 1991b, p. 91) defronta-se com “o medo de não
amar” e de “não ser amado” (LISPECTOR, 1998, p. 94); o amor que é
“vertigem de bondade” (Amor – LISPECTOR, 1991b) às vezes “só esgota
sua paixão no ódio” (LISPECTOR, 1998, p. 61). E o mesmo amor que é
“desesperada forma canhestra que o viver e o morrer tomam” (LISPECTOR,
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 785-797, set./out. 2008.
789
tação. O amor entre a menina e o basset ruivos não é dito, é figurado e, nesse
ponto, um outro elemento fundamental, no conto e na obra de Clarice,
entra em cena: o olhar, a potência mágica do olhar.
A POTÊNCIA MÁGICA DO OLHAR
“E assim, da energia constantemente despendida em contemplar, da
própria emanação do que é contemplado, nasce o Amor: olhar pleno do
que vê, visão unida a uma imagem” (PLATÃO, 1959, p. 108). Ainda uma
vez em Platão. Aí está a relação entre o olhar e o amor.
É importante chamar a atenção para a presença marcante do olhar
que Lispector lança para o mundo e o criva para a sua obra e a presença, mais
marcante ainda, do olhar na obra da autora. Defendendo a idéia de que o
forte vínculo do olhar cria uma identificação entre o sujeito que vê e o objeto
que é visto, Pontieri (1999) fundamenta a sua obra Clarice Lispector: uma
poética do olhar. E Nunes (1969) faz referência a um “confronto pelo olhar”
como se lê, por exemplo, nos contos O Búfalo, Amor e, obviamente, em
Tentação. E o crítico se refere, ainda, à “potência mágica do olhar [e ao]
descortínio contemplativo silencioso” (NUNES, 1973, p. 83), que recorrem tanto nos contos quanto nos romances claricianos.
No conto Tentação, a potência do olhar dispensa as palavras e toda
a comunicação que ocorre na história dá-se por meio da percepção visual.
Em nenhum momento, no texto, tem-se qualquer indício de diálogo verbal e
muitas coisas são ditas pelo confronto do olhar.
A princípio, o narrador apresenta a menina ruiva, com soluço, sentada nos degraus de sua casa com “seu olhar submisso e paciente”; logo depois,
uma primeira identificação. Esta entre o narrador e a menina: “Que fazer
de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento
contra desalento”. O olhar se revela impotente, nesse primeiro momento.
O narrador não vê saída para a ruivice da menina e, mais à frente, ele reflete:
“Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária”. Mas, eis
que surge, “no ângulo quente da esquina”, o olhar mais petrificador, mais
potente, mais sedutor e mais espelhístico dentre todos: o basset ruivo, “a
possibilidade de comunicação”, a possibilidade de um ser unir-se a outro
ser. E é um vendo o outro e se vendo no outro que eles se entregam à magia
do instante: “A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado,
o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam”.
É curioso notar que, basicamente, toda a narrativa gira em torno deste instante mágico em que as personagens se encontram e se fitam “profundos, en790
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 785-797, set./out. 2008.
tregues, ausentes de Grajaú” e a abstração do tempo é evidente: “Quanto
tempo se passava?”
Em A paixão segundo G. H., a narradora-personagem assim reflete
sobre o olhar: “[...] há vários modos que significam ver: um olhar o outro
sem vê-lo, um possuir o outro, um comer o outro, um apenas estar num
canto e o outro estar ali também. Tudo isso significa ver” (LISPECTOR,
1997, p. 80). Nesse romance, olhar significa, em específico, comer; no conto
O Búfalo, olhar significa odiar e em Tentação, olhar significa ver-se: de um
lado, “foi quando aproximou-se a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú” e, do outro lado, “lá estava a menina como se fora carne
de sua ruiva carne.” E olhar significa, também e principalmente, dizer: “Que
foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos”. Essa
passagem final faz lembrar a avidez com que as metades repartidas dos seres
andróginos se buscam na outra metade e se desejam.
Um aspecto que não passa despercebido no conto é a excessiva claridade e o sol flamejante das duas horas da tarde que testemunham o encontro da menina com o cachorro. Os gregos consideravam que havia um
parentesco entre os olhos e o sol e, na etimologia latina, olho está ligado à
idéia de luz. Somado a isso, há, no conto, a semelhança de cor entre o cabelo
da menina, o pêlo do basset e o sol. Pode-se dizer, então, que entre um ser
e outro (a menina e o cachorro ruivos), há o olho que refrata a luz e faz com
que a imagem de um se reflita no outro, de modo a levá-los a se descobrirem
e, no caso da menina em específico, a se encontrar e, sobretudo, a se aceitar,
pois há a promessa de que a marca da diferença – ser ruiva – é que iria “fazêla erguer insolente uma cabeça de mulher”. E, para retomar o mito platônico, é plausível dizer que o excesso de claridade, de luminosidade sugere
miticamente uma reintegração da alma dividida e, pelas vias do olhar, o
espelhamento de um ser no outro reflete, ao mesmo tempo, a harmonia que
os une e as contingências que os separam.
O OUTRO SOU EU
Merleau-Ponty (1971, p. 139) diz que “somos plenamente visíveis
para nós mesmos, graças a outros olhos” e Bosi (1982, p. 437) complementa
essa idéia, afirmando, em análise da obra de Machado de Assis, que “o olhar
do outro é o primeiro espelho”. Essas reflexões colocam a questão da identidade, do duplo, tão cara à Psicanálise, especialmente, à de Freud e de Lacan
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 785-797, set./out. 2008.
791
e tão recorrente na literatura. Otto Rank diz que a origem dos duplos na
literatura situa-se no Romantismo alemão (1939) e é exemplar da presença
do duplo, o conto O Homem de Areia, de Hoffman, estudado por Freud
para analisar o fenômeno do ‘estranho’. Na literatura moderna, seja na prosa
ou na poesia4 , a presença do duplo não é menos recorrente até mesmo porque,
como afirma o mito platônico, temos, desde a origem, nossa unidade perdida e perambulamos como fragmentos estilhaçados que se projetam e se
desdobram em outros eus, sempre na busca de encontrar-se.
Em Lispector, verifica-se que os momentos epifânicos quase sempre
se dão no instante em que uma personagem encontra o seu duplo, a sua
identidade, a sua metade perdida . É o que ocorre, por exemplo, entre Ana
e o cego, em Amor; a mulher e o búfalo, em O Búfalo, a moça e o mendigo,
em A Bela e a Fera; G.H. e a barata, em A paixão segundo G. H.
No conto Tentação, fica evidente que o olhar do basset ruivo representa para a menina um espelho em que ela se vê pela primeira vez. A intensidade e a profundidade do encontro entre ambos é para ela um abrir-se
para o conhecimento de si mesma e para a assumência de sua condição
humana. Tanto é verdade que constatamos nela uma passagem do estado
de insatisfação – o soluço é sugestivo nesse sentido –, de passividade inicial para, senão uma tomada de atitude diante da impossibilidade de ficar
com seu objeto narcísico, pelo menos uma quase indignação ante o rompimento com o contemplar-se na figura do cão: “Ela ficou espantada, com
o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam [...]”.
Apesar das contingências que separam menina e cão, não ocorre entre eles
uma quebra da hegemonia imagética. Opera-se neles um processo de
descoberta mútua. O instante do olhar e do ver-se no outro fica petrificado e, na menina, isso fica como promessa de uma mulher marcada pela
singularidade.
Curiosamente, para a menina ruiva (e para muitas outras personagens de Clarice), o desdobramento do eu, a descoberta de um duplo à sua
imagem e semelhança dá-se na figura de um animal. A própria Lispector faz
uma distinção, numa fala do professor para Joana, em Perto do coração
selvagem. O professor diz que “na busca de prazer está resumida a vida animal.
A vida humana é mais complexa: resume na busca do prazer, no seu temor,
e sobretudo na insatisfação dos seus intervalos” (LISPECTOR, 1998, p. 52).
Desse ponto de vista, o que diferencia o animal do homem é a complexidade maior deste representada pelo remorso, piedade, bondade, temor e o
desespero e as buscas de outros caminhos, na insatisfação dos intervalos.
792
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 785-797, set./out. 2008.
A ânsia é a busca do prazer comum também no animal. O diferencial da
raça humana talvez seja exatamente a existência do amor representada pelo
temor e pela idéia de incompletude (o que mais uma vez confirma a visão
platônica).
A observação de Nunes (1973, p. 131) é também elucidativa em
relação à presença do animal na obra de Clarice:
Os animais gozam, no mundo de Clarice Lispector, de uma liberdade
incondicionada, espontânea, originária que nada [...] seria capaz
de anular. Se o reino que eles formam está [...] firmemente assentado
na própria Natureza, é porque se acham integrados ao ser universal
de que não se separaram e de que guardam a essência primitiva, ancestral e inumana.
Ora, vemos nessa observação que a idéia de animais “integrados ao
ser universal de que não se separaram” coloca-os, sob a ótica do mito platônico, em oposição ao ser humano, visto que este tem, na sua essência
primitiva, a perda da unidade, justamente por ter sido dividido. Enquanto
o animal apresenta uma “identidade sem fissuras” (NUNES, 1973, p. 131),
o homem apresenta uma identidade estilhaçada, por isso está sempre na busca
do outro. Pode-se dizer, então, que o basset ruivo atua como mediador da
ruptura que a menina tem com a própria imagem e com o mundo. A primeira parte do conto infere que ela não se aceita: “Sentada nos degraus de
sua casa, ela ‘suportava’”. A ausência do objeto no verbo sugere que a menina ‘suportava’ tanto o calor, quanto a sua condição de ser ruiva numa terra
de morenos.
Diante disso, é possível dizer que o modo de ser narcísico é da natureza do homem e a busca eterna dos mais fundos arquétipos é atitude humana que se justifica por ser uma forma de autoconservação, de reintegração
da unidade perdida ou ainda uma “garantia de imortalidade”, conforme
Freud (1976, p. 294) explica o duplo. Mas em relação a tudo isso – o homem, o animal (o basset), a busca, o amor, nós e, por que não, o conto
Tentação – é mesmo Clarice Lispector que vem nos dar um “soco no estômago”. Ela diz, na já citada crônica “É pra lá que eu vou”: “Oh, cachorro,
cadê a tua alma? está à beira do teu corpo? Eu estou à beira do teu corpo e
feneço lentamente. Que estou a dizer? Estou dizendo o amor. E à beira do
amor estamos nós”. E, ante a dificuldade de nos encontrarmos e de encontrarmos o amor, “por dentro”, estamos fadados a ficar sempre à beira dele,
na busca, no desejo, na tentação.
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 785-797, set./out. 2008.
793
A TENTAÇÃO
A palavra tentação vem do latim tentatio e liga-se à idéia de desejo
veemente, apetite, impulso, sedução. Em outro sentido, significa impulso
para a prática de algo censurável ou não recomendável. Como palavra derivada de tentiginis significa ardor amoroso. Ante tais sentidos para o termo, percebe-se que o título do conto de Clarice Lispector não é
despretensioso. A palavra é carregada de segundas intenções – que o digam
Adão e Eva no Paraíso – como carregada de segundas intenções está a autora, ao usá-la num texto que envolve aparentemente dois seres desprovidos
da noção de sexualidade. Mas o texto indicia o tempo todo a força de Eros.
O modo como a menina ruiva e o basset ruivo se pedem é pura veemência:
“Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos”. Esse talvez seja o modo como também nós, seres do desejo por natureza, nos movemos desde a origem, seja a origem do mito adâmico ou a do mito platônico.
No conto, até quase ao final do segundo parágrafo, o narrador se ocupa
de apresentar o desalento da menina com sua ruivice realçada pelo sol e pela
claridade das duas horas. O signo sol é significafivo: é metáfora do princípio masculino e, no mito platônico, o macho foi engendrado pelo sol. No
penúltimo período do segundo parágrafo, o narrador menciona uma bolsa
velha que a menina segura: “O que a salvava era uma bolsa velha de senhora,
com alça partida”. O verbo salvar, sem um objeto indireto, deixa no leitor
uma questão: a bolsa salvava a menina de quê? Logo em seguida, é mencionado, pela única vez no conto, a palavra amor acompanhada do modificador
conjugal: “Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a
contra os joelhos”. Segunda questão para o leitor: O que significa a bolsa e
o amor conjugal? Uma resposta plausível para a primeira pergunta é de que
a bolsa salvava a menina de sua condição de estrangeira, do fato de ser ruiva
e de não se aceitar. Nesse sentido, a bolsa poderia ser uma metáfora do
encontro futuro da menina com a sua metade. Agarrar-se à bolsa é safar-se
do estrangeiro e aí a segunda questão se explica. O amor conjugal é “já
habituado”, é familiar. A bolsa é o primeiro e único apego, leia-se, também,
afeto, que a menina tem até então. Até então porque: eis que a tentação maior
surge trotando, no ângulo quente da esquina, e estaca diante dela – é o basset
ruivo, “a sua outra metade neste mundo”. O fascínio e a ruptura que o instante
do encontro provoca na menina é tal que, quando o basset desprega-se dela
e vai embora, ela fica, espantada, “com o acontecimento nas mãos”. Ora,
nesse ponto, a bolsa e o acontecimento se equivalem. Ela segura ambos nas
mãos (no corpo e na alma, pode-se dizer), porque, apesar da retirada do
794
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 785-797, set./out. 2008.
cachorro parecer quebra do “acontecimento”, fica com ela o desejo veemente, o fascínio, a tentação, e por que não, o ardor amoroso.
Mas a tentação vai além desse instante mágico em que um ser encontra-se com outro ser. Ela surge também como uma estratégia narrativa, na
relação autor-leitor. E aí aparece o outro sentido da palavra-título. Clarice
seduz o leitor, a começar pelo título, para a prática de algo possivelmente
censurável: ler o conto. E faz isso recorrendo mais que às entrelinhas comuns ao seu estilo, ela vale-se de uma linguagem inusitada, insólita, marcada
por lacunas. Quando diz, por exemplo, “Era um basset lindo e miserável,
doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.”, na palavra “fatalidade” há
uma lacuna. O leitor fica a indagar a que se refere tal fatalidade: à condição
de cachorro do basset? ao fato de ser ruivo? à impossibilidade de unir-se a
sua outra metade? à sua natureza aprisionada? Essas e outras lacunas ficam
a cargo e a termo do leitor que irá preenchê-las, conforme o grau de tentação que o texto lhe proporcionar.
CONCLUSÃO
“O essencial não foi destinado a ser compreendido”, assim diz
Lispector em A maçã no escuro. Ao fim dessa leitura do conto Tentação,
pode-se dizer quão difícil é penetrar a essência do amor e, mais difícil ainda,
é falar do infalável, como quer Barthes, pois, até em Clarice, que “sempre
perseguiu o indizível” (KANAAN, 2003, p. 21), a linguagem se faz precária para dizer o amor.
É importante ressaltar que Tentação é um conto bastante singular,
como singular é a menina ruiva numa terra de morenos. Por essa razão, ele
exige uma leitura também singular. Nesse sentido, fica ainda intocados alguns
aspectos que nele se impõem inquietantes como o fato de a personagem “ser
ruiva numa terra de morenos”. Esse tema, que dialoga intertextualmente
com a história do patinho feio, do canário azul, é fértil na produção literária
de Lispector. Kanaan (2003, p. 36) diz que “Clarice foi testemunha de vários
êxodos” e por isso a própria autora deve ter experimentado muito o que é
ser diferente em terra de iguais. Aliás, em se tratando de Clarice, ainda que
nunca tivesse saído da terra dos iguais, ela seria sempre estrangeira. E a menina
ruiva não deixa de ser um desdobramento da própria autora. No caso dela,
se o exílio não vem de fora, vem de dentro. Outro aspecto que pode ser
explorado no conto é, na mitologia cristã, a idéia de tentação e a simbologia
da cor vermelha, representada na menina, no cão, no sol e na tentação cujo
símbolo – a maçã – é também vermelho.
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 785-797, set./out. 2008.
795
Enfim, pode-se dizer que retomar o mito platônico do amor, pelas
vias do texto de Clarice Lispector, é uma forma de mostrar como a escritura
da autora é capaz de permitir um retorno às origens e ao desejo de unidade,
manifesto no “élan amoroso”.
Notas
1
2
3
4
Para Platão (1959, p. 106), o amor nasceu de Pênia, a deusa da pobreza, e de Poros, o deus da Abundância.
Pelo fato de o conto Tentação ser bem breve não faremos mais as citações de página, quando nos
referimos a ele.
Expressão usada pelo narrador de A Quinta História, ao comparar a petrificação das baratas (pelo uso
do açúcar e gesso) justamente com a “palavra cortada da boca: Eu te ...” (LE, 1991a, p. 83).
O subtítulo desta parte do trabalho, O Outro Sou Eu, é inspirado numa frase do poeta Rimbaud.
Referências
BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: F. Alves, 1994.
BOSI, Alfredo et al. Machado de Assis: antologia e estudos. São Paulo: Ática, 1982.
CASSIRER, E. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 1972.
FREUD, S. O estranho. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Obras Psicológicas Completas, v. 17).
KANAAN, D. A.-B. À escuta de Clarice Lispector: entre o biográfico e o literário: uma ficção possível.
São Paulo: Limiar; Educ, 2003.
LISPECTOR, C. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
LISPECTOR, C. A legião estrangeira. São Paulo: Ática, 1991a.
LISPECTOR, C. Laços de família. Rio de Janeiro: F. Alves, 1991b.
LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
LISPECTOR, C. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LISPECTOR, C. A bela e a fera. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LISPECTOR, C. Melhores contos. São Paulo: Global, 2001.
MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1971.
NUNES, B. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969.
NUNES, B. Leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Quíron, 1973.
PLATÃO. O banquete. São Paulo: Atena, 1959.
PONTIERI, R. Clarice Lispector: uma poética do olhar. São Paulo: Ateliê, 1999.
RANK, O. O duplo. Tradução de Mary B. Lee. Rio de Janeiro: Alba, 1939.
ROSA, G. No Urubuquaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. (Ficção Completa, V. I).
796
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 785-797, set./out. 2008.
Abstract: the purpose of this study is to explore how Manoel de Barros
creates and composes his poems. His poetic discourse is marked by his own
universe whose themes are so important to modern lyric. It also points to
some connections between this aspect of his work and literary tradition;
self reflexive poetry; lyrical self development in different selves; fragmentary
aesthetics; negation and identification with the worst human beings. The
data was collected, particularly, from Retrato do artista quando coisa as
well as other poeta pantaneiro´s poems.
Key words: Modern Lyric, Manoel de Barros, Literary Tradition and
Language
CÉLIA SEBASTIANA SILVA
Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília. Professora no Departamento de Letras
da Universidade Católica de Goiás e da Universidade Estadual de Goiás.
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 785-797, set./out. 2008.
797
Download