Cuba, hora de mudanças

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HISTÓRIA – DAS CAVERNAS AO TERCEIRO MILÊNIO
Cuba, hora de mudanças
Resumo: A era Fidel está se esgotando. O projeto natural para a transição é
combinar controle político nas mãos do PC com reformas capitalistas, ao estilo
chinês. Mas há uma alternativa, que se apóia nos ricos processos de mobilização
social da América Latina
Carlos Gabetta
Todo o mundo se pergunta se haverá “transição” em Cuba e se
acontecerá antes ou depois da morte de Fidel Castro. Os adversários
da Revolução Cubana estão certos de que haverá. Acontecerá
segundo as premissas capitalistas e, ao terminar, terá reconstruído o
sistema, com todas as suas características clássicas.
Há também os que, como nós, entendem que o capitalismo já
deu tudo de bom que poderia e agora só pode oferecer desigualdade,
conflitos, destruição e opressão. Para esses, o problema continua
sendo propor uma alternativa geral. Afinal, depois da experiência
soviética, temos que rever tudo que entendemos por socialismo.
Durante anos, temos insistido em denunciar as agressões
exteriores de todo o tipo a que a revolução cubana é submetida. Só a
má-fé pode ignorar o papel que ataque e bloqueio norte-americanos
exercem sobre a evolução e o caráter do regime político, os
problemas
da
economia
e
as
recorrentes
dificuldades
de
abastecimento da população.
Mas o final da União Soviética e do resto dos países até agora
chamados socialistas, ou a evolução dos que sobreviveram (Vietnã,
China), obrigam-nos a observar problemas que nada têm a ver com
“o cerco e a agressão imperialista”. São dificuldades inerentes ao tipo
de socialismo que se aplicou em diversos países do mundo desde a
revolução soviética: regime de partido único, assimilação do Estado
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pelo
Partido,
censura
e
repressão
à
dissidência
e
economia
centralizada.
Promessas e misérias do "socialismo real"
Como resultado, surgiram ao menos três deformações:
1. Em uma sociedade que se diz sem classes, surge a progressiva
formação de uma classe dirigente e/ou “de negócios” introduzida no
poder, privilegiada e paulatinamente minada pela corrupção.
2. A onipresença do Partido e seus principais líderes sobre o conjunto
da sociedade, a suposta infalibilidade de suas análises e decisões, a
redução da teoria e análise marxistas a formulações dogmáticas, a
repressão de toda a dissidência, o controle total da imprensa e da
educação acabam por eliminar todo o verdadeiro debate de idéias na
sociedade. Desaparece a crítica e, com ela, a dialética entre prática e
consciência social. Se “é a prática que determina a consciência” essa,
produto de tal tipo de socialismo, fica longe do ideal. Estabelece-se,
ao contrário do desejado, uma prática da desconfiança e são
ocultadas as verdadeiras opiniões, o que acaba por determinar uma
consciência cínica e, no fim das contas, reacionária.
3. No plano econômico, os diversos problemas podem se resumir em
um aspecto: a produtividade. O socialismo não conseguiu substituir o
estímulo do progresso individual, próprio do capitalismo, por outro,
de caráter social ou ideológico, capaz de igualar ou superar seus
resultados. A economia socialista foi muito menos produtiva que a
capitalista em qualidade, quantidade e em qualquer de seus níveis:
primário, secundário e terciário. Mesmo que o “socialismo real” tenha
tido êxitos iniciais e procurado maiores níveis de igualdade, não pôde
sustentar essas vantagens muito tempo – precisamente por não ser
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capaz de produzir com eficácia. Assim recaiu-se em uma situação de
pobreza, agravada pelo aumento das expectativas sociais.
Estes três fenômenos articulam-se uns com os outros, o que
multiplica a gravidade dos problemas. Cuba padece claramente
dessas três conseqüências do modelo: é um regime de partido único,
não existe pluralismo de opinião e a economia está totalmente
planificada pelo Partido e pelo Estado.
Consciência crescente da pesada herança soviética
Existe atualmente, entre os dirigentes e intelectuais cubanos,
uma forte corrente de opinião que tem muito claro o peso político e
econômico “herdado”, por força das circunstâncias, do sistema
soviético — assim como a ajuda recebida durante anos da URSS
poupou-os da fase de acumulação originária de capital. Fontes
ocidentais calculam que entre créditos, doações, mecanismos de
preços subvencionados e de outro tipo, Cuba recebeu dos países
socialistas, em seus trinta primeiros anos de revolução, oitenta
bilhões de dólares de ajuda — sem incluir o apoio militar. Mesmo
reduzindo essa cifra pela metade ou menos, trata-se de uma soma
extraordinariamente importante para um país como Cuba. Ao menos,
suficiente para seu crescimento. Porém, ao fim da URSS, Cuba
descobriu
dolorosamente
que
não
havia
se
desenvolvido
completamente.
Em honra à Revolução Cubana e aos seus dirigentes, deve-se
insistir que todo esse dinheiro não parou nas mãos de uma burguesia
corrupta
e
“democracias”
espoliadora,
como
latino-americanas.
ocorreu
Em
sistematicamente
Cuba,
foi
utilizado
nas
para
construir hospitais e escolas e para melhorar o nível de vida da
grande maioria da população. Também para um generoso esforço
internacionalista – não só em dinheiro, mas também em todo tipo de
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solidariedade, até o sacrifício de vidas – dirigido aos movimentos
progressistas e revolucionários da América Latina e do Terceiro
Mundo.
A prova dessa enorme diferença moral é justamente a maneira
com que a sociedade cubana e seus dirigentes saíram com a cabeça
erguida da catástrofe econômica que o desaparecimento da URSS
significou para eles. Uma catástrofe capitalista muito menor, em
termos relativos (como a da Argentina em 2001), deixou o país sem
o controle de seus recursos naturais, mais da metade da população
na pobreza e um quarto na indigência.
Mas a comprovação de que os dirigentes comunistas cubanos
são globalmente honestos e a evidência de que sempre têm contado
com o apoio da maior parte de seu povo não elimina os problemas do
modelo socialista cubano. Trata-se de questões objetivas, que nada
têm a ver com a vontade subjetiva da geração de líderes que iniciou
a revolução com a tomada do Quartel Moncada, em julho de 1953, e
que ainda continua no poder.
A oportunidade única de uma reforma não-capitalista
Há alguns anos, um amigo cubano me disse: “A perestroika
deveria
ter
começado
aqui”.
Não
lhe
faltava
razão,
já
que
seguramente Cuba teria menos dificuldades do que a URSS para
encarar uma série de reformas estruturais, sob a condição de que os
verdadeiros problemas se abordassem de frente, com profundidade e
sem esquematismos.
Quem resiste com boa-fé a essas mudanças (não os burocratas,
fanáticos ou corruptos, que também existem) insiste que seria
impossível controlar uma “abertura” em Cuba, devido à proximidade
e ao enorme poder dos Estados Unidos. O argumento não é nada
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desprezível, mas não elimina os problemas assinalados. Também não
leva em conta que a conjuntura regional — com a aparição de vários
governos progressistas, com projetos de integração conseqüentes e o
progressivo enfraquecimento dos Estados Unidos — configura uma
ocasião única para uma abertura audaz, que combine maior
democracia política com transformações econômicas de inspiração
socialista.
No
fim
das
contas,
o
socialismo
sem
democracia
representa uma contradição em si mesmo.
Cuba sobreviveu à brutal queda da URSS porque tomou um
rumo muito “capitalista”: investimentos estrangeiros privados; dupla
economia (área dólar e área peso; depois, área CUC); abertura ao
capital e à iniciativa privada na área de serviços e outras etc. Foi
dessa maneira, com enormes sacrifícios por parte de uma população
fiel à Revolução e fortes concessões ao ideal socialista, que o
essencial do processo foi salvo.
Um problema que diz respeito a toda a humanidade
Mas duas questões continuam de pé. A primeira, históricopolítica, diz respeito ao destino das revoluções socialistas que
sobreviveram
à
URSS.
Dentro
de
muito
pouco
tempo,
terão
desaparecido por completo as gerações que as formaram. No caso de
Cuba, será um processo que avançará em direção a uma forma de
socialismo ainda a definir? Ou Fidel e seus companheiros haverão
sido, no fim das contas, o que Robespierre e os jacobinos foram para
a Revolução Francesa: a primeira fase de uma revolução — mas não
socialista, e sim emancipadora e, no fim, burguesa e “moderna”?
O segundo, e de enorme interesse para os que entendem que
somente avançando até o socialismo a humanidade começará a
resolver seus graves problemas, é o tema da produtividade socialista.
É a velha disputa teórica que, em Cuba, se deu entre o vice-
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presidente Carlos Rafael e Che. Os estímulos ao trabalho e à
produção devem ser materiais, morais ou uma combinação de
ambos? O ocorrido na URSS dá a resposta do que não funciona, mas
segue em pauta a necessidade de uma alternativa: como envolver a
sociedade
na
produção
socialista
sem
apelar
a
estímulos
–
propriedade privada, competição individual – próprios do capitalismo?
Ao fim de vários anos de crescimento sustentável, o problema segue
vigente em Cuba, já que o aumento do salário médio supera o da
produtividade. Continuar se desenvolvendo dependerá, portanto, de
um sensível acréscimo da disciplina do trabalho e da diminuição dos
custos de produção, que é justamente onde o “socialismo real”
falhou.
O tema da produção-produtividade-igualdade não diz respeito
apenas a Cuba, mas a todas as sociedades. O paradoxo é que esse é
o país que tem mais urgência de que se resolva o problema, e que
está em melhores condições de consegui-lo, ajudando os demais a
trilhar o caminho. Não seria estranho, e em todo caso é de se
esperar, que o povo cubano e seus dirigentes enfrentem o desafio
com o mesmo valor, calma e criatividade que assombrou e
entusiasmou o mundo inteiro, 48 anos atrás.
Da edição argentina do Le Monde Diplomatique
http://diplo.uol.com.br/2007-06,a1601
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