O Verdeamarelismo

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Curso de Pedagogia
Associação de Ensino e Cultura Pio Décimo
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Curso de Pedagogia
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Antropologia Cultural
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Antropologia Cultural
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Curso de Pedagogia
ASSOCIAÇÃO DE ENSINO E CULTURA “PIO DÉCIMO” S/C LTDA
FACULDADE “PIO DÉCIMO”
COORDENAÇÃO DO CURSO DE PEDAGOGIA
DISCIPLINA: Antropologia Cultural
CÓDIGO DA DISCIPLINA: PD.315.5
CARGA HORÁRIA: 40
CRÉDITOS: 02
DOCENTE: Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
1. EMENTA
Conceito básico. Reflexão sobre os padrões culturais em sua diversidade, explorando os valores do comportamento social e cultural sob uma visão
antropológica, com ênfase na educação, escola, religião e instituições. Discriminação de arquétipos, estereótipos, parentesco, arte, tabus, mitos,
ritos. Análise sobre aculturação, etnocentrismo, juízo de valor e de realidade.
2. OBJETIVO GERAL

Apresentar a Antropologia Cultural como uma vertente da Antropologia que trata da compreensão do “outro” (alteridade), da diversidade
cultural e da interpretação e análise dos sistemas simbólicos da vida social;
3. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Conhecer a Antropologia Cultural como campo do conhecimento importante para a compreensão de conceitos fundamentais na formação
dos diversos grupos sociais;

Identificar as concepções de homem: do natural ao cultural, a evolução humana;
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
Discutir as concepções de sociedade e de cultura: mitos, tabus, arquétipos e estereótipos;

Possibilitar a reflexão de temas como: ideologia, relativismo moral e cultural, multiculturalidade e identidade nacional;

Fornecer elementos para que os discentes possam desenvolver uma visão ampla e contextualizada dos fatos culturais: notícias, eventos,
costumes, educação, religião, etc;

Refletir acerca das questões básicas sobre a organização das comunidades e instituições sociais, especialmente a escola;

Estimular o desenvolvimento da capacidade de redação dos alunos, através da elaboração de pequenos textos em sala de aula.
4. UNIDADES DE ENSINO
1. A Antropologia como campo de conhecimento: conceito e principais escolas:

Escolas :evolucionista; difusionista, funcionalista, estruturalista, o particularismo histórico e a antropologia interpretativa;

Antropologia no Brasil: Darcy Ribeiro e Roberto Damatta;

A formação do conceito de homem: a condição humana – do natural ao cultural;

As estruturas elementares do parentesco.
2. Concepções de Sociedade e de Cultura:

Mito e Ideologia;

Relativismo Moral e Cultural;

A questão da Identidade Nacional;

Conceitos de Cultura: símbolos e valores.
3. Antropologia Cultural e Educação:

Cultura Popular e Educação;

Antropologia e Educação: origens de um diálogo;

A crítica da Modernidade;
4. Antropologia na Sociedade Contemporânea:

A Indústria Cultural;
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
As novas tecnologias e as formas de sociabilidade;

Pluralidade Cultural e Democracia: analisando valores da sociedade brasileira.
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5. METODOLOGIA
A disciplina será ministrada numa sistemática de trabalho que privilegie a interação entre docente e alunos, buscando uma práxis ativa destes em
todos os momentos. Serão utilizados procedimentos de ensino-aprendizagem como: aulas expositivas, leituras e discussão de textos,
acompanhamento em análise de vídeo, estudos em grupo, orientação individual e em grupo, propiciando-se, assim, uma vivência efetiva das
diferentes abordagens de ensino durante a disciplina. Os recursos didáticos empregados serão: Data show, tv/vídeo, transparências, textos e outros
materiais que venham a ilustrar os conteúdos estudados.
6. AVALIAÇÃO
A Avaliação de desempenho do aluno incide sobre a freqüência e aproveitamento, abrangendo assimilação progressiva de conhecimento, trabalho
individual expresso em tarefa de estudo e de aplicação de conhecimento, trabalho em grupo, avaliações de rendimento acadêmico e seminário. As
notas referentes aos trabalhos serão cumulativas e se somarão as notas finais de cada bimestre. Teremos duas avaliações de rendimento acadêmico
e uma prova final. Cada avaliação será aplicada com data previamente marcada, de acordo com a Portaria do Exmº Sr. Diretor da Faculdade e com o
Calendário Acadêmico, ao final de cada bimestre. A prova final será para aqueles que não obtiverem a média estabelecida no Regimento da
Faculdade (5,0), em data posterior ao período da última avaliação.
7. BIBLIOGRAFIA BÁSICA
BORDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Traduzido por Fernando Tomaz. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
CARVALHO, Maria do Carmo Brant de (org). A família contemporânea em debate. São Paulo: EDUC/Cortez, 1995.
CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. Coleção História do Povo Brasileiro. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? 11ª Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
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________________ Relativizando: uma introdução à antropologia social. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
GEERTZ, Clifford. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1997.
______________ Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Traduzido por TomazTadeu Silva; Guacira Lopes Louro. 6ª Ed. Rio de Janeiro: DP & A,
2001.
LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. Traduzido por Marie-Agnes Chauvel. 1ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. (Coleção Antropologia Social).
LEAL, Ondina Fachel (org). Corpo e significado: ensaios de antropologia social. Porto Alegre: UFRGS, 1995.
MALINOWSKI, Bronislaw. Coleção grandes cientistas sociais. Nº 55. Eunice Durham (org) e Florestan Fernandes (coord.) São Paulo: Ática, 1986.
RIBEIRO, Darcy. O
Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 16ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 2005. (Coleção Primeiros Passos, 110).
VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. 5ª ed. R.Janeiro: Zahar ed., 1999.
Contatos com a Professora:
Fone: (079) 9949-4907/2106-3071.
E-mail: [email protected]
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Breve introdução à Antropologia
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nos seus aspectos físicos, na sua relação com a natureza,
seja
Definição
na
sua
antropológico
especificidade
o
conceito
de
cultural.
Para
cultura
abarca
o
saber
diversas
dimensões: universo psíquico, os mitos, os costumes e rituais,
A Antropologia é a ciência que estuda o homem por
inteiro, como um todo, preocupando-se com os vários
suas histórias peculiares, a linguagem, valores, crenças, leis,
relações de parentesco, entre outros tópicos.
aspectos da existência humana.
A Antropologia, sendo a ciência da humanidade e da
cultura, tem um campo de investigação extremamente vasto:
Principais Escolas Antropológicas:
Evolucionista
abrange, no espaço, toda a terra habitada; no tempo, pelo
menos dois milhões de anos, e todas as populações
Marcada pela discussão evolucionista, a antropologia
socialmente organizadas. Divide-se em duas grandes áreas
do Século XIX privilegiou o Darwinismo Social, que
de estudo, com objetivos definidos e interesses teóricos
considerava a sociedade europeia da época como o apogeu
próprios: a Antropologia Física (ou Biológica) e a Antropologia
de um processo evolucionário, em que as sociedades
Cultural, que se centram no desejo do homem de conhecer a
aborígenes eram tidas como exemplares "mais primitivos".
sua origem, a capacidade que ele tem de conhecer-se, nos
Esta visão usava o conceito de “civilização” para classificar,
costumes e no instinto.
julgar e, posteriormente, justificar o domínio de outros povos.
Esta maneira de ver o mundo a partir do conceito
Para pensar as sociedades humanas, a antropologia
civilizacional de superior, ignorando as diferenças em relação
preocupa-se em detalhar, tanto quanto possível, os seres
aos povos tidos como inferiores, recebe o nome de
humanos que as compõem e com elas se relacionam, seja
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etnocentrismo. É a Visão Etnocêntrica, o conceito europeu do
A Antropologia Difusionista reagiu ao evolucionismo e
homem que se atribui o valor de “civilizado”, fazendo crer que
foi sua contemporânea. Privilegiava o entendimento da
os outros povos, estavam “situados fora da história e da
natureza da cultura, em termos de origem e extensão, de uma
cultura”.
sociedade a outra. Para os difusionistas, o empréstimo
cultural seria um mecanismo fundamental de evolução
Nesta forma de apreender a experiência humana,
todas
as
sociedades,
mesmos
as
desconhecidas,
progrediriam em ritmos diferentes, seguindo uma linha
cultural. O difusionismo acreditava que as diferenças e
semelhanças culturais eram consequência da tendência
humana para imitar e a absorver traços culturais.
evolutiva. Isso balizou a idéia de que a demanda colonial
seria "civilizatória", pois levaria os povos ditos "primitivos" ao
Funcionalista
"progresso tecnológico-científico" das sociedades tidas como
"civilizadas". Há que ver estes equívocos como parte da visão
de mundo que pretendiam estabelecer as diretrizes de uma lei
universal de desenvolvimento.
O Funcionalismo inspirava-se na obra de Èmile
Durkheim. Advogava um estreito paralelismo entre as
sociedades humanas e os organismos biológicos (na forma
de evolução e conservação) porque em ambos os casos a
A sistematização do conhecimento acerca destes
harmonia dependeria da inter-dependência funcional das
povos, primitivos, ocorreu em gabinetes, sem qualquer
partes. As funções eram analisadas como obrigações, nas
contato com os povos, recorrendo apenas a relatos escritos
relações sociais. A função sustentaria a estrutura social,
de viajantes diversos.
permitindo a coesão, fundamental, dentro de um sistema de
relaçoes sociais.
Difusionista
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Estruturalista
parentesco. Nesta análise, Lévi-Strauss demonstra que as
alianças são mais importantes para a estrutura social que os
A Antropologia Estrutural nasce na década de 40. O
seu grande teórico é Claude Lévi-Strauss. Centraliza o debate
na idéia de que existem regras estruturantes das culturas na
laços de sangue. Termos como exogamia, endogamia,
aliança,
consagüinidade
passam
a
fazer
parte
das
preocupações etnográficas.
mente humana, e assume que estas regras constroem pares
Culturalista ou Particularismo Histórico
de oposição para organizar o sentindo.
Para fundamentar o debate teórico, Lévi-Strauss
recorre a duas fontes principais: a corrente psicológica criada
por Wilhelm Wundt e o trabalho realizado no campo da
lingüistica,
por
Ferdinand
de
Saussure,
denominado
Estruturalismo. Influenciaram-no, ainda, Durkheim, Jakobson
(teoria linguística), Kant (idealismo) e Marcel Mauss.
Para a Antropologia Estrutural as culturas definem-se
como sistemas de signos partilhados e estruturados por
princípios que estabelecem o funcionamento do intelecto. Em
1949 Lévi-Strauss publica “As estruturas elementares de
Defendida por Franz Boas, rejeita, de maneira
marcante, o evolucionismo que dominou a antropologia
durante a primeira metade do século XX.
A discussão desta corrente gira em torno da idéia de
que cada cultura tem uma história particular e de que a
difusão cultural se processa em várias direções.. Cria-se o
conceito de relativismo cultural, vendo também a evolução
como fenómeno que pode decorrer do estado mais simples
para o mais complexo.
Interpretativa
parentesco”, obra em que analisa os aborígenes australianos
e, em particular, os seus sistemas de matrimônio e
A Antropologia Interpretativa analisa a cultura como
hierarquia de significados, pretendendo que a etnografia seja
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uma “descrição densa”, de interpretação escrita e cuja análise
analisando os materiais colhidos, fazer aparecer
a lógica específica da sociedade que se estuda.
A antropologia, finalmente, consiste em um
segundo nível de inteligibilidade: construir
modelos que permitam comparar as sociedades
entre si...” (Laplantine, 1996:25).
é possível por meio de uma inspiração hermenêutica. É
crucial a leitura da leitura que os “nativos” fazem de sua
própria cultura.
Mas no final das contas é tudo Antropologia.
Seu
principal
provavelmente,
depois
ícone
de
é
Clifford
Claude
Geertz,
Lévi-Strauss,
que
é
o
Alteridade
antropólogo cujas idéias causaram maior impacto na segunda
Descoberta proporcionada pela distância
em relação a nossa sociedade: “aquilo que
tomávamos por natural em nós mesmo é, de
fato, cultural; aquilo que era evidente é
infinitamente
problemático”
(Laplantine,
1996:21).
metade do século 20, não apenas no que se refere à própria
teoria e à prática antropológica mas também fora de sua área,
em disciplinas como a psicologia, a história e a teoria
literária.Considerado o fundador da chamada Antropologia
Hermenêutica ou Interpretativa.
Daí a necessidade na formação antropológica do
“estranhamento”, isto é, a perplexidade provocada pelo
Diferenças entre as expressões
encontro das culturas que são para nós as mais distantes,
Vale salientar que:
levando tal encontro à modificação do olhar que se tinha de si
“a etnografia, a etnologia e a antropologia
constituem os três momentos de uma mesma
abordagem. A etnografia é a coleta direta, e o
mais minucioso possível, dos fenômenos que
observamos, por uma impregnação duradoura e
contínua e um processo que se realiza por
aproximações sucessivas (...). A etnologia
consiste em um primeiro nível de abstração:
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mesmo.
Presos a uma única cultura ficamos cegos às outras e
míopes em relação a nossa.
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A experiência e elaboração da alteridade levam a ver
aquilo que nem se consegue imaginar devido à dificuldade em
prestar atenção ao que é habitual, familiar, cotidiano e
considerado evidente.
“olhar”, implicando num descentramento radical, ruptura com
a idéia de há um “centro do mundo”.
Descoberta da alteridade é descobrir relação que nos
permite deixar de identificar nossa pequena província de
Através da experiência da “diferença” passa-se a notar
que o menos dos comportamentos não é natural, causando
surpresa sobre nós mesmos.
humanidade como a humanidade e assim deixar de rejeitar o
presumido “selvagem” fora de nós.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O conhecimento antropológico de nossa cultura passa
pelo conhecimento das outras culturas.
Para a antropologia o que caracteriza “unidade” do
homem é sua aptidão para inventar modos de vida e formas
de organização social muito diversos. O que seres humanos
têm em comum é a capacidade para se diferenciar uns dos
outros,
para
elaborar
costumes,
línguas,
modos
de
conhecimento, instituições, jogos muito diversos.
DAMATTA, Roberto (1987) Relativizando; Uma Introdução à
Antropologia Social. Rio de Janeiro, Rocco.
LAPLANTINE, François (1996) Aprender Antropologia. 9ª
edição. São Paulo, Editora Brasiliense.
MELLO, Luiz Gonzaga (1987) Antropologia Cultural. Iniciação,
Teoria e Temas. 4ª edição. Petrópolis, Editora Vozes.
O INCESTO COMO REGRA DE PROIBIÇÃO
UNIVERSAL
O projeto antropológico consiste no reconhecimento e
Paulo Santos Dantas, UFS
conhecimento junto com a compreensão de humanidade
plural. A abordagem antropológica provoca a revolução do
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Os
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pressupostos
vão
determinar imediatamente o círculo dos parentes e dos
verificar uma certa regularidade nas relações humanas de
aliados, isto é, os sistemas que prescrevem o casamento com
sociedades tradicionais. Tais pressupostos são fundados em
um certo tipo de parente. Ou, se preferirmos, os sistemas
aspectos observáveis, tanto nessas sociedades tradicionais
que, embora definindo todos os membros do grupo como
quanto nas modernas. Contudo, Claude Lévi- Strauss
parentes, dividem-nos em duas categorias, a dos cônjuges
preferirá trabalhar com “estruturas elementares” e “estruturas
possíveis e a dos cônjuges que se limitam a definir o círculo
complexas”, em vez de sociedades tradicionais e sociedades
dos
complexas. Antes de prosseguirmos na descrição do que
econômicos
esse autor entende por estruturas elementares e estruturas
determinação do cônjuge” (LÉVI-STRAUSS, 1982:19). Essa é
complexas,
a conceituação e esse o centro do seu argumento em favor
em
básicos
detrimento
das
do
estruturalismo
chamadas
sociedades
tradicionais e complexas, é importante descrevermos o que o
mesmo entende por “estrutura”. A partir de sua definição
sobre esse termo, Lévi-Strauss concentrará sua atenção na
forma como as relações de parentesco se constituem, e é em
razão disso que se torna imprescindível apreendermos o seu
conceito, pois ele é o centro do seu debate.
parentes
e
e
que
deixam
psicológicos,
a
a
outros
tarefa
de
mecanismos,
proceder
à
da regularidade das relações elementares de parentesco.
O “parentesco” acima citado nos permite perceber,
segundo Lévi-Strauss, os impedimentos e as alianças
possíveis entre indivíduos dentro de um grupo. O que
antecipadamente podemos observar é que há uma regra
segundo a qual são possíveis ou não os matrimônios. Tal
Segundo Lévi-Strauss, as relações de parentesco
regra refere-se à proibição do incesto, e se constitui dentro de
descrevem também outras formas possíveis de estrutura, e
um campo universal, pois poderá ser encontrada, conforme o
por isso a definição: “Entendemos por estruturas elementares
autor, desde as estruturas elementares de parentesco até as
do parentesco os sistemas nos quais a nomenclatura permite
estruturas complexas.1 O incesto é, desta forma, a regra
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proibitiva que tem um caráter universal, constitui um tipo de
que o ser humano inicia um processo de linguagem. A lógica
relação que impõe sua própria norma e a transcende. Ou
estruturalista, segundo a qual os impedimentos da vida sexual
seja, na medida em que os impedimentos de alianças entre
estão constituídos como aspecto duplamente exterior ao
“parentes próximos” num mesmo grupo (para as sociedades
grupo social (tradicional ou moderno), tem essa característica
tradicionais) ou de matrimônios entre indivíduos de uma
devido a duas razões: a primeira diz respeito ao fato de já
mesma família (para as sociedades modernas), constitui uma
existir a proibição do incesto antes mesmo da organização
regra social generalizante, é nesse nível que a proibição do
mais “social” e do domínio da natureza dos grupos humanos;
incesto transcende a própria regra, pois não é uma proibição
a segunda razão, que se configura como exterior ao grupo,
particular a um caso específico ou a uma família. Tal
está no fato de essa regra se estender aos demais grupos ou
proibição é partilhada, como regra, nas famílias de uma
às demais sociedades (modernas ou tradicionais). Dessa
sociedade moderna, ou nos grupos2 de uma sociedade
forma, o aspecto duplamente exterior da regra do incesto está
tradicional. Para Claude Lévi-Strauss, este é o aspecto
relacionado,
universal da proibição do incesto.
(inconsciente) de preservação do grupo, quanto à extensão
Entretanto, para compreendermos o estruturalismo,
segundo
Lévi-Strauss,
tanto
à
idéia
da regra às demais sociedades humanas.
precisamos nos apropriar de sua lógica de explicação a partir
Então, para Lévi-Strauss, a proibição do incesto como
de um aspecto da vida sexual duplamente exterior (pré-social)
regra (“social por sua natureza de regra”) é pré-social porque,
ao grupo. Na mesma direção conforme a qual Lévi-Strauss
segundo ele, “exprime no mais alto grau a natureza animal do
explica esse duplo aspecto exterior ao grupo, ele também irá
homem e atesta, no próprio seio da humanidade, a
comentar a passagem do estado de natureza para o estado
sobrevivência mais característica dos instintos”. (...)
de cultura, relacionando esse fenômeno com o momento em
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Depois, “seus fins são transcendentes, novamente de duas
etc., etc.) se apresentam como um novo aspecto de sua
maneiras, pois visam satisfazer os desejos individuais, que se
“natureza”, a cultura (LÉVI-STRAUSS, 19982:41).
sabe suficientemente constarem entre os menos respeitosos
das convenções sociais, ou tendências específicas que
ultrapassam igualmente, embora em outro sentido, os fins
propostos da sociedade” (LÉVI-STRAUSS, 1982:50).
Ou seja, segundo o autor, o problema está no fato de,
a partir desse indivíduo, o estado de natureza não ser mais
um aspecto unicamete determinante na vida humana. Agora o
ser humano tem o domínio da linguagem, fabrica instrumentos,
Claude Lévi-Strauss se opõe a duas explicações
constrói os seus mitos, enfim, a cultura aparece como um
tradicionais acerca da passagem do estado de natureza para
novo instrumento de sobrevivência. Sobre a análise estrutural
o estado de sociedade (ou para o estado de cultura, como ele
em lingüística e em antropologia, Lévi-Strauss vai dizer que o
prefere). A primeira convenção combatida por Lévi-Strauss
estruturalismo recusa opor o concreto ao abstrato, não
diz respeito à separação entre natureza e cultura. Para ele, o
reconhecendo neste último um valor privilegiado. Mas
ser humano é, ao mesmo tempo, um ser bilógico e um ser
adiante, o autor vai dizer que “a forma se define por oposição
social. Entre as respostas que o ser humano dá às suas
a uma matéria que lhe é estranha; mas a estrutura não tem
excitações (exteriores ou interiores), nos diz Lévi-Strauss,
conteúdo distinto: ela é o proprio conteúdo, apreendido numa
algumas vão depender de sua natureza, e outras de sua
organização
condição social. Aqui se apresenta um problema intrigante:
(LÉVISTRAUSS, 1993, pp. 121-123). Em outras palavras, a
para Lévi Strauss, o Homem de Neanderthal, com o seu
linguagem, segundo o estruturalismo de Lévi-Strauss, não
provável conhecimento da linguagem, suas indústrias e seus
está no campo “privilegiado” do abstrato em oposição ao que
ritos, não pode ser considerado como vivendo no estado de
pode ser percebido corretamente. Isto porque, segundo ele,
natureza, pois tais instrumentos (linguagem, rituais, costumes,
citando um outro autor (Vladimir Propp), na lingüística, “cada
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lógica
concebida
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como
propriedade
real”
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frase constrói um motivo, e a análise dos contos deve ser
evolucionista, mas do ponto de vista de uma transformação
conduzida a um nível que chamaríamos hoje ’molecular’ ”
tanto física qunto social, natureza e cultura não são etapas
(Lévi-Strauss, 1993:123).
sobrepostas. Segundo a teoria de Lévi-Strauss, elas se
Mas se o Homem de Neanderthal não está mais no
estado de natureza, está no estado de cultura. Portanto,
marca uma passagem onde a natureza cede o seu lugar à
associam como atributos que se complementam, não
enquanto
aspectos
que
se
separam.
Tais
são
os
pressupostos básicos do estruturalismo.
cultura. Essa é a concepção corrente em boa parte dos
O conceito de cultura, segundo o estruturalismo, já
estudos sobre natureza e cultura. Contudo, tal teoria, segundo
estaria apresentado acima, mas essa questão tem outros
Lévi-Strauss, é apressada e distorcida, na medida em que
desdobramentos que se tormam importantes e merecem ser
dispensa a natureza humana, estando ela presente no seu
discutidos. O primeiro ponto levantado por Lévi-Strauss
cotidiano, apesar da cultura. Em outras palavras, é certo que
remonta à natureza humana. Ou seja, para ele, “o homem é
o surgimento da cultura sugere a “passagem” de um estado a
um ser biológico ao mesmo tempo que um indivíduo social”
outro, mas essa não se dá como num desligamento físico.
(Lévi-Strauss, 1982:41). Esse é o ponto de partida que levará
Para Lévi-Strauss, o ser humano responde às suas
este debate para um campo extremamente controverso nas
excitações (interiores e exteriores) algumas vezes, segundo a
ciências sociais. A questão que se apresenta indaga sobre
sua natureza, e outras conforme a condição social, sem uma
onde acaba o estado de natureza e onde começa o estado de
relação necessariamente hierárquica entre elas. Ambos os
cultura.
aspectos da “natureza humana” funcionam segundo as suas
particularidades. Apesar de haver uma evolução humana, não
no
sentido
que
o
termo
ganhou
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quanto
na
escola
Segundo
Lévi-Strauss,
diversos
métodos
foram
organizados na tentativa de perceber o instante em que a
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natureza humana dá lugar à cultura. Todos eles, contudo,
O estado de cultura ainda nos coloca diante das formas
segundo esse autor, decepcionaram. E as razões para as
como as representações coletivas e individuais vão se
decepções não são difíceis de ser entendidas. Conforme sua
apresentar num grupo. Marcel Mauss, comentado por Roberto
análise, as experiências que pretenderam resolver essa
Cardoso de Oliveira, vai dizer que, nas consciências, as
questão partiam do princípio (equivocado) de que o ser
representações coletivas são distintas das representações
humano poderia regredir ao estágio temporal anterior. “As
individuais. Essas representações coletivas dizem respeito às
’crianças selvagens’, quer sejam produto do acaso quer sejam
representações do inconsciente. Para Mauss, as consciências
da experimentação, podem ser mostruosidades culturais, mas
individuais agem e reagem umas sobre as outras num grupo
em nenhum caso testemunhas fiéis de estado anterior” (Lévi-
formado
Strauss, 1982:41).
representações coletivas. Tais representações coletivas,
O conceito de cultura, para o estruturalismo, pode ser
compreendido, portanto, segundo um aspecto universal
conforme o qual a) natureza e cultura constituem, ao mesmo
tempo, o ser humano; b) as regras de impedimento
matrimoniais
(incesto)
são
encontradas
em
todas
as
sociedades humanas, isto é, assinalam um aspecto unitário,
nesse ponto de vista; e c) a cultura é inerente à espécie
humana, mas não exclui a natureza do gênero humano.
e
esse
aspecto
constitui,
segundo
ele,
as
segundo Marcel Mauss, terão, contudo, um papel autônomo
em relação às consciências individuais. Para Mauss, “Não
somente as representações coletivas são feitas de outros
elementos diferentes das representações individuais, mas
ainda têm na verdade um outro objeto. O que elas exprimem,
com efeito, é o próprio estado de sociedade” (in CARDOSO
DE OLIVEIRA, 1979)3
Em As estruturas elementares do parentesco (1982),
Claude
Lévi-Strauss
explicará
como
as
formas
do
inconsciente de um grupo constituído perpassam seus fins;
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nesse sentido, é interessante perceber como este autor
Em As estruturas elementares do parentesco, o
avança sobre Marcel Mauss. Essa discussão se estende
método estruturalista de Lévi-Strauss se efetiva com o rigor
sobre toda a obra As estruturas elementares do parentesco,
da observação que, em geral, se espera das ciências sociais,
mas aqui retomaremos o debate sobre o Problema do
mas este aspecto não é constituído como “uma camisa de
Incesto, bastante discutido neste trabalho. Neste ponto,
força”.
veremos que, segundo Lévi-Strauss, a vida sexual é
percebe um caráter universal nas estruturas elementares do
duplamente exterior ao grupo, tendo em vista que – conforme
parentesco, do ponto de vista da proibição do incesto,
citação já comentada - “exprime no mais alto grau a natureza
contudo,
animal do homem, e atesta, no próprio seio da humanidade, a
convencional que o mesmo ganhou nas ciências sociais,
sobrevivência
sobretudo) não será levado às “últimas conseqüências” do
mais
característica
de
instintos”
(LÉVI-
STRAUSS, 1982:50).
Ou seja, Lévi-Strauss avança sobre as explicações de
autores como Marcel Mauss, na medida em que perceberá
um aspecto transcendente das representações em relação ao
grupo constituído. Para Lévi-Strauss, o grupo ou a sociedade
tem a consciência e o controle das convenções gerais de sua
vida, entretanto algumas representações os ultrapassam, no
sentido de terem uma independência em relação ao que se
espera dos mesmos (enquanto unidade geral).
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
O
método
tal
estruturalista,
aspecto
estrutural
segundo
(segundo
Lévi-Strauss,
o
sentido
que se espera de uma explicação “estrutural”. O método
estruturalista, conforme nossa compreensão, se efetiva, não
procurando se legitimar em torno dele próprio, mas perpassa
essa possível pretensão, na medida em que percebe a
elasticidade da regra de proibição do incesto, por exemplo.
Esse é um aspecto bastante interessante das explicações
estruturalistas de Lévi-Strauss. Para ele, a proibição do
incesto não cria apenas relações sociais; ela tende ainda a
relacionar a natureza com a cultura.
Antropologia Cultural
16
Faculdade Pio Décimo
Do nosso ponto de vista, as explicações do método
Curso de Pedagogia
estruturalista de Claude Lévi-Strauss sobre os impedimentos
Lévi-Strauss, Claude. Antropologia estrutural, dois. 4ª
edição; Tempo Brasileiro, 1993.
sociais, dos quais a proibição de alianças4 num mesmo grupo
_________________________________________________
(o incesto) se efetiva segundo um caráter universal, traz para
1
a Antropologia uma discussão muito presente e forte no
campo da Psicologia ou da Psicanálise freudiana. Embora
esse debate talvez tenha ganho maior destaque e talvez
Contudo, para efeitos de uma maior clareza, utilizaremos os termos sociedades
tradicionais, para estruturas elementares e sociedades modernas, para estruturas
complexas. Além disso, procuraremos fazer pouco uso de aspas, tendo em vista
que a discussão sobre a propriedade ou não de um ou outro termo não é objeto
deste artigo.
2 A diferenciação de “grupo” em relação à “família” e de “aliança” em relação ao
discute com muita propriedade e independência teórica. Para
“matrimônio” refere-se mais à dificuldade de termos comuns às chamadas
sociedades tradicionais em relação às modernas que uma relação hierárquica
entre os termos. Seja como for, preferimos “conceder” os termos grupo e aliança
às sociedades tradicionas, e os termos família e matrimônio às sociedades
complexas.
nós, acerca desse tema, essa é a maior contribuição do
3 Esta citação está em Cardoso (1979), e foi extraída de: Mauss, Marcel. Oeuvres.
maior acúmulo de pesquisas no âmbito da Psicanálise,
principalmente pelo pioneirismo de Freud, Lévi-Strauss o
estruturalismo de Claude Lévi-Strauss para as Ciências
Humanas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
V.III, pp. 160-61.
4 O termo aliança é, também para nós, o mais adequado para as análises que
fazemos sobre os “matrimônios” ou “casamentos” internos aos grupos sociais –
tradicionais ou modernos, contudo, os termos matrimônios ou casamentos dizem
respeito às sociedades modernas, marcadamente ocidentais, capitalistas etc.
CULTURA – uma visão dialética
Cardoso de Oliveira, Roberto. Apresentação in Mauss. São
Paulo: Ática, 1979 (Grandes cientistas sociais; 11).
É sempre uma dificuldade discutir o conceito de cultura,
Lévi-Strauss, Claude. As estruturas elementares do
parentesco; tradução de Mariano Ferreira; 2ª edição,
Petrópolis: Vozes, 1982.
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
mesmo entre os profissionais vinculados a esse campo de
atividade. O que existe mesmo é uma miscelânea de concepções
Antropologia Cultural
17
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
que mais expressam um “ninho de casaca de couro”, na acepção
individual, pelo simples fato de pertencer ao seu povo ou a um
viva de Jackson do Pandeiro1. Apesar desse elemento complicador,
círculo social determinado” (Paidéia, 1995: 354). Tudo isto,
tido por outros como elemento alimentador de perspectivas
entretanto,
culturais, faz-se necessário a apresentação de uma visão que
diferenciados setores dominantes da sociedade, em suas épocas.
retoma o movimento como uma categoria teórica norteadora da
tentativa de um conceito de cultura.
expressa
visões
idealizadas
sobre
cultura
de
Mas, o que se pretende é a retomada da perspectiva conceitual
de cultura, embalada pela categoria teórica movimento e fruto
Pode-se observar, ainda, que a multiplicidade conceitual de
inerente a cada modo de produção. Isto é, a perspectiva do
cultura também traduz e revela, do ponto de vista político, a visão
conceito de cultura nos marcos da produção, expressa na visão de
alicerçada nas bases explicativas e dominantes da sociedade, em
Álvaro Vieira Pinto3. A produção que se manifesta como expressivo
seus variados modos de produção. Entre os gregos, pode-se
parâmetro de universalidade, considerando a sua presença em
destacar que cultura e religião estiveram interligadas, expressando
todos os tipos de grupos sociais, presentes nos mais diferenciados
explicações da natureza, porém, cheias de atributos religiosos.
rincões e em qualquer tempo da história humana. E aí, como
Essa visão de cultura é idealizada já em Homero, tornando
produto do processo produtivo, cultura é criação do próprio homem.
a beleza o ideal educativo e dominante daquela cultura, presente
É resultante, portanto, das diferenciadas formas de tentativas do
até os dias de hoje. Contudo, é Hesíodo, outro poeta grego, que,
humano no trato com a natureza material, na medida em que está
sem negar o ideal homérico, apresenta uma outra perspectiva de
sempre em luta pela própria sobrevivência. As capacidades
educação. Elege o trabalho como referência para a educação grega
intelectiva e manual humanas possibilitaram um maior crescimento
2
do homem e da mulher. Entretanto, verifica-se entre os sofistas ,
e intensidade desses fazeres para a sobrevivência. Os produtos daí
pensadores gregos, a separação entre a religião e a cultura. Apesar
gerados constituem-se como produtos culturais. Dessa capacidade,
dessa separação, todavia, só tem significado de totalidade ao
foram criados os instrumentos de sobrevivência e todos os tipos de
assumir como cultura e como conteúdo da cultura, também, o
expressão espiritual e, posteriormente, as religiões. Tudo isso foi
mundo da cultura espiritual: “o mundo em que nasce o homem
sendo transmitido e conservado de geração para geração.
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Antropologia Cultural
18
Faculdade Pio Décimo
O início da cultura não é datado, mas coincide com o
processo de hominização. “A criação da cultura e a criação do
homem são na verdade duas faces de um só e mesmo
processo, que passa de principalmente orgânico na primeira
fase para principalmente social na segunda, sem contudo, em
qualquer momento, deixarem de estar presentes os dois
aspectos e de se condicionarem reciprocamente” (Pinto,
1979: 122). Como se vê, as dimensões culturais presentes
nos gregos estão mais ampliadas com esta perspectiva. Os
produtos culturais são aqueles gerados dos mecanismos nos
mais variados processos produtivos e aqueles, também
culturais, gerados da dimensão social presente nas relações
humanas. Nesse sentido, torna-se ente cultural o museu, o
quadro de famoso e do não famoso pintor, as esculturas de
famosos e não famosos escultores... São expressões
culturais os óculos que se usam no cotidiano, a caneta, a
ferramenta de trabalho, o computador, uma peça teatral, um
trator, um ‘software’, as técnicas educativas de organização
social, o processo de produção de conhecimento e a
tecnologia. Todos estes entes são frutos do processo
produtivo e resultantes da dimensão manual e da dimensão
intelectiva da espécie humana.
A cultura, na perspectiva apresentada, isto é, como produto do
processo produtivo, adquire a sua dupla natureza. Cultura,
Curso de Pedagogia
gerais do mecanismo produtivo. Cultura se converte, ainda, em
bem de produção, subjugando a realidade e submetendo-a às suas
reflexões, gerando novos produtos e novas técnicas de exploração
do mundo, dando-lhes, pelas idéias, significados e finalidades para
as suas ações.
Dessa
perspectiva
conceitual
de
cultura,
resultam
dois
fenômenos, sendo mais explicitados no atual modo de produção –
o capitalismo. O primeiro diz respeito ao acervo cultural que é cheio
de máquinas e entes tecnologizados, além das tantas idéias
geradoras dos processos produtivos. Não se produz sem idéias. Os
setores dominantes, por sua vez, valorizam mais a segunda
dimensão,
considerando
que
já
controlam
os
aspectos
materializados. Há, então, a exaltação às posses das idéias e
desvalorização do trabalho próprio da produção daqueles entes
materiais. O segundo resultado é o apoderamento dos bens
materiais produzidos, frutos das idéias geradoras dos bens
culturais. Assim, é que o trabalhador ou o produtor cultural, além de
ter perdido os bens materiais produzidos por ele mesmo, também,
está excluído dos bens ideais geradores dos produtos culturais.
traduzida pelo bem produzido, torna-se bem de consumo, enquanto
resultado expresso em coisas e artefatos e subjetivado em idéias
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Antropologia Cultural
19
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
A partir dessa visão, pautada no marco da produção, torna-se
possível
dessacralizar
as
marcas
ideológicas
de
outras
perspectivas de cultura, quaisquer que sejam, imputando aos mais
aquinhoados o ter cultura e convencendo os “excluídos” de que
JAEGER, Werner. PAIDÉIA – a formação do homem grego.
Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência – problemas filosóficos
da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
têm cultura aqueles que estiveram na escola, pura e simplesmente.
Numa sociedade de pouco acesso aos tantos meios de
socialização do conhecimento, certas visões só aprofundam a
“apartação social”, alimentando os mecanismos de exclusão e
fortalecendo a dominação dessas elites.
1
Assim, cabe aos que produzem os entes culturais - bens
materiais e bens ideais - o resgate da posse de seu próprio
Casaca de Couro – pássaro que faz o seu ninho de espinhos. Esta expressão foi
utilizada pelo cantor e compositor paraibano, tido como um dos nomes da trilogia
da música nordestina, juntamente com Luiz Gonzaga e Luiz Vieira.
processo de se tornarem humanas(os), edificando os vetores das
lutas por trabalho, igualdade, liberdade e de sua felicidade mesma.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CULTURA POPULAR E EDUCAÇÃO
VOCÊ SABE DE QUEM ESTA FALANDO?
PATRIMÔNIO IMATERIAL: NOVAS LEIS PARA
PRESERVAR... O QUÊ?
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
2
Pensadores gregos que desenvolveram, com destaques, a retórica, a eloqüência
e a linguagem.
3
Filósofo brasileiro. Ver: Ciência e Existência – problemas filosóficos da pesquisa científica.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
LETÍCIA VIANNA, Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular/FUNARTE
Quando falamos em patrimônio, estamos nos referindo
a uma porção de coisas consagradas e que têm grande valor
para pessoas, comunidades ou nações. E também de coisas
que podem ter valor para todo o conjunto da humanidade. A
Antropologia Cultural
20
Faculdade Pio Décimo
idéia remete à riqueza construída e transmitida, herança ou
legado que influencia o modo de ser e a identidade dos
indivíduos e grupos sociais.
Curso de Pedagogia
de mundo que orientam e dão sentido às existências
individuais em coletividades humanas.
I
Mas a noção exata do que seja patrimônio é relativa,
pois depende de quem fala e de que ponto de vista fala. As
definições podem partir de diferentes perspectivas, que
podem ou não se sobrepor, como a perspectiva afetiva, a
econômica, a ambiental, a cultural.
Patrimônio cultural diz respeito aos conjuntos de
conhecimentos e realizações de uma sociedade, que são
acumulados ao longo de sua história e lhe conferem os traços
de sua singularidade em relação às outras sociedades.
Uma das características mais marcantes da espécie
humana é a grande diversidade de configurações
socioculturais possíveis no tempo e no espaço. Diferente das
sociedades de abelhas e formigas, sempre idênticas, as
sociedades humanas são sempre únicas em função das
especificidades culturais nelas desenvolvidas. Cada
sociedade possui um sistema cultural, no qual, entretanto,
vários
sistemas
simbólicos
são
incorporados
e
compartilhados.
Entende-se aqui por cultura os sistemas de
significados, os valores, crenças, práticas e costumes; ética,
estética, conhecimentos e técnicas, modos de viver e visões
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Desde pelo menos o século XIX e ao longo de todo o
século XX, existem dois grandes pressupostos teóricos que
orientaram o entendimento científico e políticas relativas à
diversidade cultural humana: a perspectiva do etnocentrismo
e a do relativismo cultural.
O etnocentrismo é uma tendência que considera a
cultura (valores, princípios, conhecimentos, modo de vida) de
um grupo específico, seja ele qual for (uma nação, um país,
um grupo religioso, uma tribo urbana de adolescentes, um
time de futebol...), como medida para todos os outros. Sob
essa perspectiva, o grupo a partir do qual se fala é
comparado e valorado positivamente em detrimento dos
outros grupos humanos.
No contexto das sociedades integradas ao mercado
industrial globalizado contemporâneo, por exemplo, o ponto
de vista etnocêntrico tende a privilegiar o grau de
desenvolvimento tecnológico e especialização da sociedade
como modelo de “vida de qualidade superior, mais evoluída”
em relação à vida nas sociedades menos integradas àquele
modelo. A história oficial tende a reafirmar a idéia de que as
sociedades industriais são mais desenvolvidas, com
qualidade de vida superior à das sociedades pouco ou
diferencialmente integradas ao modelo de referência. E, sob a
Antropologia Cultural
21
Faculdade Pio Décimo
luz desses argumentos, legitimaram-se muitas guerras,
genocídios e massacres imperialistas a culturas genuínas.
Na contra-tendência do etnocentrismo desenvolveu-se
o relativismo cultural, pressuposto teórico construído não sob
o ponto de vista de um grupo ou coletividade específica, mas,
pretensamente, sob o ponto de vista amplo, de toda a
humanidade. Entende-se, assim, que todas as sociedades e
culturas, por mais diversas, são análogas, pois têm suas
próprias racionalidades e irracionalidades intrínsecas, formas,
funções e expressões específicas, e que essa diversidade é
característica de toda a espécie humana.
Tudo depende do ponto de vista de quem olha.
Podemos ver que as sociedades com alto grau de
desenvolvimento tecnológico e industrialização podem não ter
encontrado as melhores soluções para sua existência no
tocante à ecologia, questão relativamente bem resolvida em
outras sociedades distantes do modelo produtivo tecnoindustrial, como as sociedades seminômades, caçadoras e
coletoras que fazem manejo rotativo de pequenas roças em
meio à Floresta Amazônica, por exemplo.
Enquanto a tendência da perspectiva etnocêntrica é
subordinar o diferente sob a lógica da desigualdade
econômica – na maioria das vezes de maneira violenta e
extrema –, a perspectiva relativista é ideologicamente
pontuada pelo pacifismo, justiça, eqüidade social e
pluralidade cultural e pelo esforço constante de conhecer para
poder preservar essa pluralidade como possibilidade concreta
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Curso de Pedagogia
da experiência humana. Pois o potencial criativo é um dos
maiores patrimônios da humanidade; um dos traços mais
marcantes que nos distingue e define enquanto espécie.
II
Desde o final da Segunda Guerra Mundial as questões
internacionais gerais sobre o tema do patrimônio cultural da
humanidade são conduzidas para os fóruns da Unesco,
seminários e conferências internacionais de diferentes
ordens. E, de maneira geral, as bases de entendimento para
as ações cooperativas entre as nações estão no documento
da Unesco “Recomendações sobre a salvaguarda do folclore
e da cultura popular”, de 1989.
Esse documento enfatiza a necessidade de
cooperação internacional para o desenvolvimento de
instrumentos de salvaguarda, tanto dos processos de
produção e transmissão de conhecimentos genuínos e
tradicionais, quanto dos direitos das coletividades sobre seus
conhecimentos, cosmologias e técnicas aplicadas.
A atual legislação que trata da proteção do patrimônio
cultural brasileiro tem seguido as recomendações da Unesco;
é fundamentada em bases relativistas que já vinham sendo
construídas e amadurecidas ao longo da história.
Nos artigos 215 e 216 da Constituição promulgada em
1988, o conceito de Patrimônio Cultural abarca tanto obras
arquitetônicas, urbanísticas e artísticas de grande valor o
Antropologia Cultural
22
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patrimônio material quanto manifestações de natureza
“imaterial”, relacionadas à cultura no sentido antropológico:
visões de mundo, memórias, relações sociais e simbólicas,
saberes e práticas; experiências diferenciadas nos grupos
humanos, chaves das identidades sociais. Incluem-se aí as
celebrações e saberes da cultura popular as festas, a
religiosidade, a musicalidade e as danças, as comidas e
bebidas, as artes e artesanatos, os mistérios e mitos, a
literatura oral e tantas, tantas expressões diferentes que
fazem nosso país culturalmente tão diverso e rico.
O principal instrumento de preservação do patrimônio
material é o instituto do tombamento, cuja legislação está
sendo amadurecida desde pelo menos a primeira metade do
século XX.
A legislação para o patrimônio imaterial, entretanto, é
recente. No Decreto n. 3.551 de 04 de agosto de 2000, os
principais instrumentos de salvaguarda desse patrimônio, até
hoje instituídos, são o inventário permanente, o registro em
livros análogos aos livros de tombo e as políticas de
preservação e fomento que devem ser estabelecidas.
Esses instrumentos não são fechados, normativos e
restritivos, mas abertos aos pontos de vista e expectativas
dos portadores de tradições culturais específicas.
Pressupõem a dinâmica própria dessas tradições, sem
pretender, portanto, “engessar” suas formas e conteúdos no
tempo e no espaço, o que é fundamental, pois a questão não
é nada, nada simples.
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Curso de Pedagogia
Apenas a legislação não basta para garantir a
salvaguarda desses bens. De fato, muitas expressões
culturais da maior importância se perderam por falta de
legislação eficiente, mas também existem muitos bens
culturais que se conservaram por séculos e séculos sob
nenhuma ou apenas incipiente legislação de proteção. As leis,
sem dúvida, podem favorecer as condições para a
preservação do patrimônio cultural; mas ele só é efetivamente
preservado por meio da vivência voluntária das pessoas.
Os documentos engavetados, os inventários, a
descrição dos bens contidas nos livros do Iphan são apenas
referências dos bens, mas não dão conta dos bens em si, que
têm natureza dinâmica e intangível. O patrimônio imaterial
como as festas e celebrações, as músicas, danças, comidas,
saberes e técnicas próprias da cultura popular só se
conservarão, efetivamente, se vividos por pessoas em
condições, com garantias, liberdade e interesses em vivenciálos de modo dinâmico e criativo.
Assim, a nova legislação de preservação do patrimônio
cultural só será eficaz na medida em que seja amplamente
conhecida pelos diferentes segmentos da sociedade e que as
comunidades locais e a sociedade abrangente tenham
condições de estar mobilizadas para a prática permanente,
para a transmissão e aprendizado de saberes, a pesquisa,
documentação, apoio e reconhecimento da riqueza cultural
brasileira, de maneira crítica e participativa.
Antropologia Cultural
23
Faculdade Pio Décimo
Destaca-se, então, o fundamental papel da escola, e dos
educadores em geral, na atualização constante dos princípios
do relativismo cultural para as novas gerações; na valorização
da diversidade cultural com respeito e tolerância; no estímulo
permanente à curiosidade pelas culturas e identidades
tradicionais das comunidades locais, divulgando-as para que
sejam conhecidas e reconhecidas na própria comunidade e
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Curso de Pedagogia
na sociedade abrangente. De modo que seja preservada a
vontade de apreender, compreender, vivenciar, repassar e
reinventar as tradições com liberdade, criatividade e senso de
justiça social. Posto que a preservação da diversidade cultural
e a superação das desigualdades socioeconômicas são um
dos maiores desafios que a sociedade brasileira enfrenta
neste
século
XXI.
Antropologia Cultural
24
Antropologia Cultural
O Povo Brasileiro: a Formação e o Sentido do
Brasil
O Brasil e os brasileiros, sua gestação como povo, é o que
trataremos de reconstituir e compreender nos capítulos
seguintes. Surgimos da confluência, do entrechoque e do
caldeamento do invasor português com índios silvícolas e
campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados
como escravos. Nessa confluência, que se dá sob a
regência dos portugueses, matrizes raciais díspares,
tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se
enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo
(Ribeiro 1970), num novo modelo de estruturação societária.
Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada
culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente
mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e
singularizada pela redefinição de traços culturais delas
oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto
como uma gente nova, um novo gênero humano diferente
de quantos existam. Povo novo, ainda, porque é um novo
modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma
singular de organização sócio-econômica, fundada num tipo
renovado de escravismo e numa servidão continuada ao
mercado mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e
espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado,
que alenta e comove a todos os brasileiros. Velho, porém,
porque se viabiliza como um proletariado externo. Quer
dizer, como um implante ultramarino da expansão européia
que não existe para si mesmo, maspara gerar lucros
exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de
bens para o mercado mundial, através do desgaste da
população que recruta no país ou importa.
Profª Ana Paula Fernandes Yajima
Faculdade Pio Décimo
A sociedade e a cultura brasileiras são conformadas como
variantes da versão lusitana da tradição civilizatória européia
ocidental, diferenciadas por coloridos herdados dos índios
americanos e dos negros africanos. O Brasil emerge, assim,
como um renovo mutante, remarcado de características
próprias, mas atado genesicamente à matriz portuguesa,
cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer só
aqui se realizariam plenamente.
A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras
poderia ter resultado numa sociedade multiétnica, dilacerada
pela oposição de componentes diferenciados e imiscíveis.
Ocorreu justamente o contrário, uma vez que, apesar de
sobreviverem na fisionomia somática e no espírito dos
brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não se
diferenciaram em antagônicas minorias raciais, culturais ou
regionais, vinculadas a lealdades étnicas próprias e
disputantes de autonomia frente à nação. As únicas
exceções são algumas microetnias tribais que sobreviveram
como ilhas, cercadas pela população brasileira. Ou que,
vivendo' para além das fronteiras da civilização, conservam
sua identidade étnica. São tão pequenas, porém, que
qualquer que seja seu destino, já não podem afetar à
macroetnia em que estão contidas. O que tenham os
brasileiros de singular em relação aos portugueses decorre
das qualidades diferenciadoras oriundas de suas matrizes
indígenas e africanas; da proporção particular em que elas
se congregaram no Brasil; das condições ambientais que
enfrentaram aqui e, ainda, da natureza dos objetivos de
produção que as engajou e reuniu.
Pedagogia Licenciatura Plena
25
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Essa unidade étnica básica não significa, porém, nenhuma
uniformidade, mesmo porque atuaram sobre ela três forças
diversificadoras. A ecológica, fazendo surgir paisagens
humanas distintas onde as condições de meio ambiente
obrigaram a adaptações regionais. A econômica, criando
formas diferenciadas de produção, que conduziram a
especializações funcionais e aos seus correspondentes
gêneros de vida. E, por último, a imigração, que introduziu,
nesse magma, novos contingentes humanos, principalmente
europeus, árabes e japoneses. Mas já o encontrando
formado e capaz de absorvê-los e abrasileirá-los, apenas
estrangeirou alguns brasileiros ao gerar diferenciações nas
áreas ou nos estratos sociais onde os imigrantes mais se
concentraram. Por essas vias se plasmaram historicamente
diversos modos rústicos de ser dos brasileiros, que
permitem distingui-los, hoje, como sertanejos do Nordeste,
caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do
Sudeste e Centro do país, gaúchos das campanhas sulinas,
além de ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros
etc. Todos eles muito mais marcados pelo que têm de
comum como brasileiros, do que pelas diferenças devidas a
adaptações regionais ou funcionais, ou de miscigenação e
aculturação que emprestam fisionomia própria a uma ou
outra parcela da população. A urbanização, apesar de criar
muitos modos citadinos de ser, contribuiu para ainda mais
uniformizar os brasileiros no plano cultural, sem, contudo,
borrar suas diferenças. A industrialização, enquanto gênero
de vida que cria suas próprias paisagens humanas, plasmou
ilhas fabris em suas regiões. As novas formas de
comunicação de massa estão funcionando ativamente como
difusoras e uniformizadoras de novas formas e estilos
culturais. Conquanto diferenciados em suas matrizes raciais
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Curso de Pedagogia
e culturais e em suas funções ecológico-regionais, bem
como nos perfis de descendentes de velhos povoadores ou
de imigrantes recentes, os brasileiros se sabem, se sentem
e se comportam como uma só gente, pertencente a uma
mesma etnia. Vale dizer, uma entidade nacional distinta de
quantas haja, que fala uma mesma língua, só diferenciada
por sotaques regionais, menos remarcados que os dialetos
de Portugal. Participando de um corpo de tradições comuns
mais significativo para todos que cada uma das variantes
subculturais que diferenciaram os habitantes de uma região,
os membros de uma classe ou descendentes de uma das
matrizes formativas. Mais que uma simples etnia, porém, o
Brasil é uma etnia nacional, um povo-nação, assentado num
território próprio e enquadrado dentro de um mesmo Estado
para nele viver seu destino. Ao contrário da Espanha, na
Europa, ou da Guatemala, na América, por exemplo, que
são sociedades multiétnicas regidas por Estados unitários e,
por isso mesmo, dilaceradas por conflitos interétnicos, os
brasileiros se integram em uma única etnia nacional,
constituindo assim um só povo incorporado em uma nação
unificada, num Estado uni-étnico. A única exceção são as
múltiplas microetnias tribais, tão imponderáveis que sua
existência não afeta o destino nacional. Aquela uniformidade
cultural e esta unidade nacional - que são, sem dúvida, a
grande resultante do processo de formação do povo
brasileiro - não devem cegar-nos, entretanto, para
disparidades, contradições e antagonismos que subsistem
debaixo delas como fatores dinâmicos da maior importância.
A unidade nacional, viabilizada pela integração econômica
sucessiva dos diversos implantes coloniais, foi consolidada,
de fato, depois da independência, como um objetivo
expresso, alcançado através de lutas cruentas e da
Antropologia Cultural
26
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sabedoria política de muitas gerações. Esse é, sem dúvida,
o único mérito indiscutível das velhas classes dirigentes
brasileiras. Comparando o bloco unitário resultante da
América portuguesa com o mosaico de quadros nacionais
diversos a que deu lugar a América hispânica, pode se
avaliar a extraordinária importância desse feito.
Essa unidade resultou de um processo continuado e violento
de unificação política, logrado mediante um esforço
deliberado de supressão de toda identidade étnica
discrepante e de repressão e opressão de toda tendência
virtualmente separatista. Inclusive de movimentos sociais
que aspiravam fundamentalmente edificar uma sociedade
mais aberta e solidária. A luta pela unificação potencializa e
reforça, nessas condições, a repressão social e classista,
castigando como separatistas movimentos que eram
meramente republicanos ou antioligárquicos.
Subjacente à uniformidade cultural brasileira, esconde-se
uma profunda distância social, gerada pelo tipo de
estratificação que o próprio processo de formação nacional
produziu. O antagonismo classista que corresponde a toda
estratificação social aqui se exacerba, para opor uma
estreitíssima camada privilegiada ao grosso da população,
fazendo as distâncias sociais mais intransponíveis que as
diferenças raciais.
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Curso de Pedagogia
O povo-nação não surge no Brasil da evolução de formas
anteriores de sociabilidade, em que grupos humanos se
estruturam em classes opostas, mas se conjugam para
atender às suas necessidades de sobrevivência e
progresso. Surge, isto sim, da concentração de uma força de
trabalho escrava, recrutada para servir a propósitos
mercantis alheios a ela, através de processos tão violentos
de ordenação e repressão que constituíram, de fato, um
continuado genocídio e um etnocídio implacável.
Nessas condições, exacerba-se o distanciamento social
entre as classes dominantes e as subordinadas, e entre
estas e as oprimidas, agravando as oposições para
acumular, debaixo da uniformidade étnico-cultural e da
unidade nacional, tensões dissociativas de caráter
traumático. Em conseqüência, as elites dirigentes, primeiro
lusitanas, depois luso-brasileiras e, afinal, brasileiras,
viveram sempre e vivem ainda sob o pavor pânico do
alçamento das classes oprimidas. Boa expressão desse
pavor pânico é a brutalidade repressiva contra qualquer
insurgência e a predisposição autoritária do poder central,
que não admite qualquer alteração da ordem vigente. A
estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros
ricos e remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis,
mais do que corresponde habitualmente a esses
antagonismos. Nesse plano, as relações de classes chegam
a ser tão infranqueáveis que obliteram toda comunicação
propriamente humana entre a massa do povo e a minoria
privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e a maltrata, a
explora e a deplora, como se esta fosse uma conduta
natural.
Antropologia Cultural
27
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Curso de Pedagogia
A façanha que representou o processo de fusão racial e
cultural é negada, desse modo, no nível aparentemente
mais fluido das relações sociais, opondo à unidade de um
denominador cultural comum, com que se identifica um povo
de 160 milhões de habitantes, a dilaceração desse mesmo
povo por uma estratificação classista de nítido colorido racial
e do tipo mais cruamente desigualitário que se possa
conceber. O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de
sua tão proclamada, como falsa, "democracia racial",
raramente percebem os profundos abismos que aqui
separam os estratos sociais.
Nessas condições de distanciamento social, a amargura
provocada pela exacerbação do preconceito classista e pela
consciência emergente da injustiça bem pode eclodir,
amanhã, em convulsões anárquicas que conflagrem toda a
sociedade. Esse risco sempre presente é que explica a
preocupação obsessiva que tiveram as classes dominantes
pela manutenção da ordem. Sintoma peremptório de que
elas sabem muito bem que isso pode suceder, caso se
abram as válvulas de contenção. Daí suas "revoluções
preventivas", conducentes a ditaduras vistas como um mal
menor que qualquer remendo na ordem vigente.
O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos
tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus
vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem
castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam
numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres,
cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa
espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. O
povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um
sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por
Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom
de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e
perversos
e,
invariavelmente,
imprevisíveis.
Essa
alternidade só se potencializou dinamicamente nas lutas
seculares dos índios e dos negros contra a escravidão.
É de assinalar que essa preocupação se assentava,
primeiro, no medo da rebeldia dos escravos. Dada a
coloração escura das camadas mais pobres, esse medo
racial persiste, quando são os antagonismos sociais que
ameaçam eclodir com violência assustadora. Efetivamente,
poderá assumir a forma de convulsão social terrível, porque,
com uma explosão emocional, acabaria provavelmente
vencida e esmagada por forças repressoras, que
restaurariam, sobre os escombros, a velha ordem
desigualitária.
Depois, somente nas raras instâncias em que o povo-massa
de uma região se organiza na luta por um projeto próprio e
alternativo de estruturação social, como ocorreu com os
Cabanos, em Canudos, no Contestado e entre os Mucker.
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Antropologia Cultural
28
Faculdade Pio Décimo
O grande desafio que o Brasil enfrenta é alcançar a
necessária lucidez para concatenar essas energias e
orientá-las politicamente, com clara consciência dos riscos
de retrocessos e das possibilidades de liberação que elas
ensejam. O povo brasileiro pagou, historicamente, um preço
terrivelmente alto em lutas das mais cruentas de que se tem
registro na história, sem conseguir sair, através delas, da
situação de dependência e opressão em que vive e peleja.
Nessas lutas, índios foram dizimados e negros foram
chacinados aos milhões, sempre vencidos e integrados nos
plantéis de escravos. O povo inteiro, de vastas regiões, às
centenas de milhares, foi também sangrado em contrarevoluções sem conseguir jamais, senão episodicamente,
conquistar o comando de seu destino para reorientar o curso
da história. Ao contrário do que alega a historiografia oficial,
nunca faltou aqui, até excedeu, o apelo à violência pela
classe dominante como arma fundamental da construção da
história. O que faltou, sempre, foi espaço para movimentos
sociais capazes de promover sua reversão. Faltou sempre, e
falta ainda, clamorosamente, uma clara compreensão da
história vivida, como necessária nas circunstâncias em que
ocorreu, e um claro projeto alternativo de ordenação social,
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Curso de Pedagogia
lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como
seu pelas grandes maiorias. Não é impensável que a
reordenação social se faça sem convulsão social, por via de
um reformismo democrático. Mas ela é muitíssimo
improvável neste país em que uns poucos milhares de
grandes proprietários podem açambarcar a maior parte de
seu território, compelindo milhões de trabalhadores a se
urbanizarem para viver a vida famélica das favelas, por força
da manutenção de umas velhas leis. Cada vez que um
político nacionalista ou populista se encaminha para a
revisão da institucionalidade, as classes dominantes apelam
para a repressão e a força.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido
do Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.(texto introdutório).
Antropologia Cultural
29
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
contrapartida,
quando
a
seleção,
agora
chamada
de
“Canarinha”, venceu o torneio mundial em 1970, surgiu um
O Verdeamarelismo
Marilena Chauí
verdadeiro hino celebratório, cujo início dizia: “Noventa
milhões em ação/ Pra frente, Brasil, do meu coração”. A
mudança do ritmo - do samba para a marcha -, a mudança do
O monumento
É de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás
Da verde mata
O luar do sertão
CAETANO VELOSO
sujeito - do brasileiro bom no couro aos 90 milhões em ação e a mudança do significado da vitória - de “a copa do mundo é
nossa” ao “pra frente, Brasil” não foram alterações pequenas.
Em 1958, sob o governo de Juscelino Kubitschek, viviase sob a ideologia do desenvolvimentismo, isto é, de um país
que se industrializava voltado para o mercado interno, para “o
brasileiro”, e que incentivava a vinda do capital internacional
como
condição
desenvolvimento,
Em 1958, quando a seleção brasileira de Futebol ganhou
a Copa do Mundo, músicas populares a afirmavam que “a
copa o mundo e nossa porque com brasileiro não há quem
possa”, e o brasileiro era descrito como “bom no couro” e
“bom no samba”. A celebração consagrava o tripé da imagem
da excelência brasileira: café, carnaval e futebol. Em
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
preparatória
competir com
para,
ele
em
conseguido
o
igualdade
de
condições. Em 1970, vivia-se sob a ditadura militar pós-Ato
Institucional nº 5, sob a repressão ou o terror de Estado e sob
a ideologia do “Brasil Grande”, isto é, da chamada “integração
nacional”, com rodovias nacionais e cidades monumentais,
uma vez mais destinadas a atrair o grande capital
internacional. Nas comemorações de 1958 e de 1970, a
Antropologia Cultural
30
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Curso de Pedagogia
população saiu às ruas vestidas de verde-amarelo ou
pela extensão do território e pela densidade demográfica. De
carregando objetos verdes e amarelos. Ainda que, desde
fato, essa imagem visava legitimar o que restara do sistema
1958, soubéssemos que “verde, amarelo, cor de anil! são as
colonial e a hegemonia dos proprietários de terra durante o
cores do Brasil”, os que participaram da primeira festa
Império e o início da República (1889). Como explica Caio
levavam as cores nacionais, mas não levavam a bandeira
Prado Jr.:
nacional. A festa era popular. A bandeira brasileira fez sua
aparição hegemônica nas festividades de 1970, quando a
vitória foi identificada com a ação do Estado e se transformou
em festa cívica.
Essas diferenças não são pequenas, porém não são
“Se vamos à essência de nossa formação,
veremos que na realidade nos constituímos para
fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros;
mais tarde, ouro e diamantes; depois, algodão e,
em seguida, café, para o comércio europeu.
Nada mais que isto. É com tal objetivo [...] que
se organizarão a sociedade e a economia
brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a
estrutura bem como as atividades do país”.8
suficientes para impedir que, sob duas formas aparentemente
diversas, permaneça o mesmo fundo, o verdeamarelismo.
O QUE É O VERDEAMARELISMO?7
O verdeamarelismo foi elaborado no curso dos anos pela
classe dominante brasileira como imagem celebrativa do “país
essencialmente agrário” e sua construção coincidem com o
Ou como nos diz Fernando Novais:
“A colonização guardou em sua essência o
sentido de empreendimento comercial donde
proveio,
a
não-existência
de
produtos
comercializáveis levou à sua produção, e disto
resultou a ação colonizadora [...]. A colonização
moderna, portanto, [...] tem uma natureza'
essencialmente comercial: produzir para o
mercado externo, fornecer produtos tropicais e
metais nobres à economia européia [...]
apresenta-se como peça de um sistema,
instrumento da acumulação primitiva da época
do capitalismo mercantil”.9
período em que o “princípio da nacionalidade” era definido
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Antropologia Cultural
31
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Curso de Pedagogia
O “país essencialmente agrário”, portanto, era, na
verdade, o país historicamente articulado ao sistema colonial
do capitalismo mercantil e determinado pelo modo de
produção capitalista a ser uma colônia de exploração e não
uma colônia de povoamento. A primeira “tem urna economia
voltada para o mercado externo metropolitano e a produção
se organiza na grande propriedade escravista”, enquanto na
segunda “a produção se processa mais em função do próprio
consumo interno da colônia, onde predomina a pequena
propriedade”. Em outras palavras, a colônia de povoamento é
aquela que não desperta o interesse econômico da metrópole
e permanece à margem do sistema colonial, enquanto a
colônia
de
exploração
está
ajustada
às
exigências
econômicas do sistema.
Em suma, o verdeamarelismo parece ser a ideologia
daquilo que Paul Singer chama de “dependência consentida”:
“Depois que a América Latina se tornou
independente, os donos das terras, das minas,
do gado etc. tornaram-se, em cada país, a
classe dominante, tendo ao seu lado uma elite
de comerciantes e financistas que superintendia
os canais que ligavam atividades agrícolas e/ou
extrativas. A nova classe dominante via na
dependência de seus países dos países
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
capitalistas adiantados [...] o elo que os ligava à
civilização, da qual se acreditavam os únicos e
autênticos representantes [...]. Assim, é justo
apelidar esta situação que se criou com a
independência e que durou, em geral, até a
Primeira Guerra Mundial de dependência
consentida. Ela se caracterizava pela ausência
de qualquer dinâmica interna capaz de
impulsionar o desenvolvimento. [...] Sob a forma
do capital público ou privado, o desenvolvimento
da infra-estrutura de serviços dependia
diretamente do que cada região conseguia
colocar no mercado mundial. Essa realidade era
compreendida e aceita pelo conjunto da
sociedade”.10
Nessa época, quando a classe dominante falava em
“progresso” ou em “melhoramento”, pensava no avanço das
atividades agrárias e extrativas, sem competir com os países
metropolitanos ou centrais, acreditando que o país melhoraria
ou progrediria com a expansão dos ramos determinados pela
geografia e pela geologia, que levavam a urna especialização
racional em que todas as atividades econômicas eram
geradoras de lucro, utilidade e bem-estar. Donde a expressão
ideológica dessa classe aparecer no otimismo da exaltação
da Natureza e do “tipo nacional” pacífico e ordeiro. Além
disso, corno lembra Celso Furtado, no momento em que a
Antropologia Cultural
32
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Curso de Pedagogia
divisão internacional do trabalho especializa alguns países na
das mercadorias e colocando urna burguesia urbana
atividade agrário-exportadora, há urna expansão econômica
industrial, comercial e financeira na hegemonia do processo
cujo excedente não é investido em atividades produtivas e
histórico. Não foi o caso.
sim dirigido ao consumo das classes abastadas, que faziam
Não que não tenha havido tentativas para abandonar o
do consumo de luxo um instrumento para marcar a diferença
verdeamarelismo. Houve, podemos, brevemente, lembrar, no
social e o fosso que as separava do restante da população. A
entre - guerras, o esforço demolidor feito pelo Modernismo,
essa expansão e a esse consumo, a classe dominante deu o
quando, entre 1920 e 1930, se processa o primeiro momento
nome e “progresso”.
da industrialização, em São Paulo, e se prepara o rearranjo
O que parece surpreendente, portanto, é o fato de que o
da composição de forças das classes dominantes, com a
verdeamarelismo se tenha conservado quando parecia já não
entrada em cena da burguesia industrial. No entanto, não se
haver base material para sustentá-lo. Ou seja, se ele foi a
pode também deixar de lembrar que, significativamente, um
ideologia dos senhores de terra do sistema colonial, do
grupo modernista criará o verdeamarelismo corno movimento
Império e da República Velha, deveríamos presumir que
cultural e político e dele sairá tanto o apoio ao nacionalismo
desaparecesse por ocasião do processo de industrialização e
da ditadura Vargas (é o caso da obra do poeta prosador
de urbanização. Seria perfeitamente plausível imaginar que
Cassiano Ricardo) corno a versão brasileira do fascismo, a
desaparecesse quando as duas guerras mundiais desfizeram
Ação Integralista Brasileira, cujo expoente é o romancista
as bases da divisão internacional do trabalho e do mercado
Plínio Salgado.
mundial de capitais, cada nação fazendo um mínimo de
Podemos também mencionar a tentativa de afastar o
importações, voltando-se para o mercado interno, com
nacionalismo do “país essencialmente agrário” com a
estímulo à substituição das importações pela produção local
elaboração
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
de
uma
nova
ideologia,
Antropologia Cultural
o
nacionalismo
33
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
desenvolvimentista, feita pelo Instituto Superior de Estudos
Brasileiros
(ISEB)11,
nos
anos
1950,
no
período
perante o centro”. Nessas circunstâncias, era compreensível
da
o esforço para desmontar o verdeamarelismo, pois ele
industrialização promovida pelo governo Kubitschek. Se
significava, justamente, o atraso que se pretendia superar. No
mantivermos a periodização de Hobsbawm, os trabalhos do
entanto, como veremos mais adiante, de maneira difusa e
ISEB correspondem ao período em que a idéia de nação é
ambígua, o verdeamarelismo permaneceu.
construí da como “questão nacional” vinculada à “consciência
nacional”
das
nossa
1950 e início dos anos 1960 (durante o governo de Jango
periodização, estaremos no momento de passagem da
Goulart), a tentativa de desmontar o imaginário verde-amarelo
ideologia do “caráter nacional” para a da “identidade
com a ação cultural das esquerdas, que, na perspectiva da
nacional”. Conservando a terminologia proposta por Paul
“identidade nacional”, focalizavam a luta de classes (ainda
Singer10,
que na expectativa de uma “revolução burguesa” que uniria
a
classes
sociais.
fabricação
da
E
se
usarmos
Enfim, não é demais lembrar ainda, no final dos anos
ideologia
nacional-
desenvolvimentista se dá no momento da passagem da
burguesia
“dependência consentida” para a “dependência tolerada”,
enfatizavam o nacional-popular nos Centros Populares de
quando a classe dominante, dependendo dos países centrais
Cultura (CPCs), no novo teatro, de inspiração brechtiana, e no
industrializados para obter equipamentos, tecnologia e
cinema Novo. E não menos significativas na recusa do
financiamentos,
“essencialmente
verdeamarelismo foram a ironia corrosiva do Tropicalismo, no
provisória, a ser superada tão logo a industrialização fizesse a
final dos anos 1960 e início dos anos 1970 (durante o período
economia
“o
do “milagre brasi1eiro”, promovido pela ditadura), e.a poesia e
desenvolvimento almejado pela periferia destinava-se a
música de protesto, a nova MPB, no correr dos anos 70 e
revogar a divisão colonial do trabalho que a inferiorizava
início dos 80.
julga
emparelhar
essa
com
situação
a
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
mais
adiantada”
e
nacional
e
vanguarda
Antropologia Cultural
do
proletariado)
e
34
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
No entanto, nem os modernistas, nem o ISEB, nem os
De fato, apesar do Modernismo cultural dos anos 20-30,
CPCs, nem o Cinema Novo, nem o Tropicalismo, nem a MPB
durante o Estado Novo (1937-45), a luta contra a dispersão e
de protesto conseguiram aniquilar a imagem verde-amarela,
a fragmentação do poder enfeixado pelas oligarquias
que se consolidou e brilha incólume naquela outra imagem,
estaduais (ou a chamada “política dos governadores”) e a
doravante apropriada pela contemporânea indústria do
afirmação da unidade entre Estado e nação, corporificados no
turismo: café, futebol e carnaval, made in Brazil.
chefe do governo, levaram, simbolicamente, à queima das
Essa permanência não é casual nem espontânea, visto
bandeiras estaduais e à obrigatoriedade do culto à bandeira e
que a industrialização jamais se tornou o carro-chefe da
ao hino nacionais nas escolas de todos os graus. É dessa
economia brasileira como economia capitalista desenvolvida e
época a exigência legal de que as escolas de samba
independente. Na divisão internacional do trabalho, a
utilizassem temas nacionais em seus enredos12. Num
industrialização se deu por transferência de setores industriais
governo de estilo fascista e populista, o Estado passou a usar
internacionais para o Brasil, em decorrência do baixo custo da
diretamente os meios de comunicação, com a compra de
mão-de-obra, e o setor agrário-exportador jamais perdeu
jornais e de rádios (como a Rádio Nacional do Rio de Janeiro)
força
antes o verdeamarelismo
e com a transmissão da “Hora do Brasil”. Esta possuía três
correspondia à auto-imagem celebrativa dos dominantes,
finalidades: “informativa, cultural e cívica. Divulgava discursos
agora ele opera como compensação imaginária para a
oficiais e atos do governo, procurava estimular o gosto pelas
condição periférica e subordinada do país. Além disso,
artes populares e exaltava o patriotismo, rememorando os
justamente porque aquele era o período da “questão
feitos gloriosos do passado”. Mas não só isso. Os programas
nacional”, houve a ação deliberada do Estado na promoção
deviam também “decantar as belezas naturais do país,
da imagem verde-amarela.
descrever as características pitorescas das regiões e cidades,
social e
política.
Se
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Antropologia Cultural
35
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Curso de Pedagogia
irradiar cultura, enaltecer as conquistas do homem em todas
e, agora, algo mais apareceu. De fato, não se tratava apenas
as atividades, incentivar relações comerciais” e, voltando-se
de manter a celebração da Natureza e sim de introduzir na
para
seu
cena política uma nova personagem: o povo brasileiro. Dada
desenvolvimento e sua integração na coletividade nacional”. É
a inspiração fascista da ditadura Vargas, afirmava-se que o
dessa época a “Aquarela do Brasil” (de Ary Barroso), que
verdadeiro Brasil não estava em modelos europeus ou norte-
canta as belezas naturais, mas também o “Brasil brasileiro”,
americanos, mas no nacionalismo erguido sobre as tradições
isto é, o “mulato inzoneiro”, os olhos verdes da mulata, o
nacionais e sobre o nosso povo. Dessas tradições, duas eram
samba, o “Brasil lindo e trigueiro”. Não é casual que a mesma
sublinhadas: a unidade nacional, conquistada no período
época que ouvia a “Aquarela do Brasil” também lia a Marcha
imperial - o que levou o Estado Novo a transformar Caxias,
para o Oeste, de Cassiano Ricardo, para quem o Brasil era
sol dado do Império, em herói nacional da República -, e a
“um escândalo de cores”, escrevendo: “Parece que Deus
ação civilizatória dos portugueses, que introduziram a unidade
derramou tinta por tudo”, céu de anil, flores e pássaros em
religiosa e de língua, a tolerância racial e a mestiçagem,
que gritam o amarelo avermelhado do sol e do ouro, riquezas
segundo a interpretação paternalista oferecida pela obra de
fabulosas e “todas as cores raciais, na paisagem humana”.
Gilberto Freyre, Casa-Brande e senzala. Em outras palavras,
o
homem
do
interior,
contribuir
“para
Esses elementos são indicadores seguros da presença
sublinham-se
os
elementos
vimos
do
anteriormente.
“princípio
nacionalidade”,
efeito, se compararmos o verdeamarelismo desse período
estamos também na época da “questão nacional” e por isso
com outras expressões anteriores (como o nativismo
uma novidade comparece na definição do povo. Embora seja
romântico, do século XIX, e o ufanismo do início do século
mantidas a tese da democracia racial e a imagem do povo
XX), notaremos que, antes, a ênfase recaía sobre a Natureza,
mestiço, mescla de três raças, agora, porém, “povo” é,
Antropologia Cultural
No
da
do verdeamarelismo. Sua função, porém, deslocou-se. Com
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
que
dois
entanto,
36
Faculdade Pio Décimo
sobretudo, de
Curso de Pedagogia
um lado,
o bandeirante ou
sertanista
e transformou Carmem Miranda em embaixadora da boa-
desbravador do território e, de outro, os pobres, isto é, “os
vontade, obrigando-a, com contratos de trabalho abusivos
trabalhadores do Brasil”.
que estipulavam seu vestuário e suas falas, a difundir a
Em outras palavras, o verdeamarelismo, sob a ideologia
imagem telúrica e alegre do Brasil, cuja capital era Buenos
da “questão nacional”, precisa incorporar a luta de classes em
Aires e c música era mescla de samba, rumba, tango, conga
seu ideário, mas de modo tal que, ao admitir a existência da
e salsa. Para acompanhá-la, estúdios de Walt Disney criaram
classe trabalhadora, possa imediatamente neutralizar os
o papagaio malandro, Zé Carioca.
riscos da ação política dessa classe, o que é feito não só pela
Sem dúvida, terminada a guerra e entrado o país na
legislação trabalhista (inspirada no corporativismo da Itália
época da “dependência tolerada”, os anos 50 do século XX
fascista) e pela figura do governante como “pai dos pobres”,
viram surgir como imagem emblemática do país a cidade de
mas também por sua participação no “caráter nacional”, isto
São Paulo, em cujo IV Centenário (em janeiro de 1954)
é, como membro da família brasileira, generosa, fraterna,
comemorava-se “a cidade que mais cresce no mundo”, pois
honesta, ordeira e pacífica. O verdeamarelismo assegura que
“São Paulo não pode parar”, de tal maneira que a força do
aqui não há lugar para luta de classes e sim para a
capital industrial deveria levar a uma transformação ideológica
cooperação e a colaboração entre o capital e o trabalho, sob
na qual o desenvolvimento econômico apareceria como obra
direção e vigilância do Estado.
dos homens e deixaria para trás o país como dádiva de Deus
Convém
também
não
esquecermos
pan-
e da Natureza. E o suicídio de Vargas, em agosto de 1954,
americanismo, instituído pelo Departamento de Estado norte-
faria supor que o verdeamarelismo estava enterrado para
americano durante os anos da Segunda Guerra Mundial
sempre. Durante os anos 50, o desenvolvimentismo teve
(1939-45), promoveu a “amizade entre os povos americanos”
como mote “a mudança da ordem dentro da ordem”, para
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
que
o
Antropologia Cultural
37
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Curso de Pedagogia
significar que o país, diminuindo o poder e o atraso do
visto pelos promotores do nacional-desenvolvimentismo como
latifúndio e da burguesia mercantil (parasita alienados) e
signo da alienação social dos “setores atrasados” das classes
neutralizando os perigos trazidos pela classe operária (massa
dominantes e das massas populares, obstáculo contra o
popular atrasada e alienada), se tornaria um igual no
desenvolvimento econômico e social, que seria obra da
“concerto das nações”. Entramos, assim, no período da
burguesia nacional industrial moderna e das classes médias
“identidade
conscientes, encarregadas de conscientizar as massas.
nacional”
e
da
“consciência
nacional”,
se
acompanharmos a periodização de Hobsbawm.
Desse modo, o verdeamarelismo comparecia sob duas
No entanto, a imagem verdeamarela13 permaneceu e
roupagens antagônicas: numa delas, ele exprimia a maneira
isso por dois motivos principais: em primeiro lugar, ela
ingênua e alienada com que se manifesta o nacionalismo
permitia enfatizar que o país possuía recursos próprios para o
natural e espontâneo das massas, as quais, dessa maneira,
desenvolvimento e que a abundância da matéria-prima e de
reconhecem as potencialidades do país para passar da
energia baratas vinha justamente de sermos um país de
pobreza e do atraso ao desenvolvimento e à modernidade. Na
riquezas naturais inesgotáveis; em segundo lugar, ela
outra, ele era o signo da própria alienação social, produzida
assegurava
se
pela classe dominante do período colonial e imperial e
encontrava na destinação do capital e do trabalho para o
difundida por uma classe média parasitária, caudatário da
mercado interno e, portanto, para o crescimento e o
imagem que os imperialistas ou as metrópoles inventaram e
progresso da nação contra o imperialismo ou a antinação.
que os nacionais, alienados, imitaram e prosseguiram. Para
Todavia, o verdeamarelismo tradicional - o da rica e bela
muitos, tratava-se de substituir o nacionalismo espontâneo,
natureza tropical e o do povo ordeiro e pacífico, ou o do
alienado e inautêntico por um nacionalismo crítico, consciente
“caráter nacional” - sofreu um forte abalo, pois passou a ser
e autêntico, o nacional-popular, graças ao qual o setor
que
o
mérito
do
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
desenvolvimentismo
Antropologia Cultural
38
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avançado da burguesia nacional e o setor consciente do
Curso de Pedagogia
Se, como no IV Centenário de São Paulo, a exibição das
proletariado, unidos, combateriam o colonialismo e o
grandes
cidades,
coalhadas
de
arranha-céus
e
vias
imperialismo, realizando o desenvolvimento nacional e dando
expressas (mas, agora, em preito de gratidão pelo apoio
realidade ao “ser do brasileiro”, à “identidade nacional”.
financeiro e logístico que as grandes empreiteiras deram à
Se, em meados dos anos 50 e início dos anos 60, o
obra da repressão militar), interligadas por auto-estradas
verdeamarelismo foi um pano de fundo difuso e ambíguo,
nacionais, devia oferecer a imagem do Brasil Grande, apto a
significando nacionalismo espontâneo e alienação, em
receber os investimentos internacionais e a acolher as
contrapartida foi revitalizado e reforçado nos anos da ditadura
empresas
(1964-1985) ou do “Brasil Grande”. Essa reposição verde
encontrava seu fundamento na ideologia geopolítica do Brasil
amarela não é surpreendente.
Potência 2000, que tem na vastidão do território, nas riquezas
Antes de mais nada, lembremos que a derrubada do
governo de Jango Goulart é preparada nas ruas com o
multinacionais,
agora,
porém,
essa
imagem
naturais e nas qualidades pacíficas, empreendedoras e
ordeiras do povo os elementos para cumprir sua destinação.
movimento “Tradição, família e propriedade” para significar
Essa ideologia assenta-se em cinco pilares: 1) a relação
que as esquerdas são responsáveis pela desagregação da
mecânica de conveniência entre as “forças do território” e as
nacionalidade cujos valores - a tradição, a família e a
“disposições nacionais”; 2) a consubstanciação entre o povo e
propriedade privada - devem ser defendidos a ferro e fogo.
o território, que começa pela demarcação das fronteiras nas
Todavia, não é essa a mais forte razão para a manutenção do
quais se desenvolverá a “personalidade nacional”; 3) a
verdeamarelismo e sim a ideologia geopolítica do Brasil
refração do povo sobre o território, isto é, a transformação dos
Potência 2000, cujo expositor mais importante foi o general
valores objetivos do território em valores subjetivos da alma
Golbery do Couto e Silva.
ou personalidade nacional, graças ao que o Estado se torna
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39
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orgânico e nacional; 4) a “fronteira ideal”, isto é, o território
trabalho e, de outro, de destruir o Método Paulo Freire de
completo, prometido ao povo pela ação militar e econômica;
alfabetização.
5) a geopolítica como “consciência política do Estado”, que se
Assim, da Copa do Mundo de 1958 à de 1970, o
alia ao centro dinâmico da sua região (no caso, aos Estados
verdeamarelismo, se não permaneceu intacto em todos os
Unidos) e da qual emana o sistema de alianças e de conflitos
seus aspectos, manteve-se como representação interiorizada
leste-oeste, norte-sul. É esse o território dos “90 milhões em
da população brasileira que, sem distinção de classe, credo e
ação”.
etnia, o conserva mesmo quando as condições reais o
A ditadura, desde o golpe de Estado de 1964, deu a si
desmentem.
mesma três tarefas: a integração nacional (a consolidação da
É interessante observar que o verdeamarelismo opera
nação contra sua fragmentação e dispersão em interesses
com uma dualidade ambígua. De fato, o Brasil de que se fala
regionais), a segurança nacional (contra o inimigo interno e
é, simultaneamente, um dado (é um dom de Deus e da
externo, isto é, a ação repressiva do Estado na luta de
Natureza) e algo por fazer (o Brasil desenvolvido, dos anos
classes) e o desenvolvimento nacional (nos moldes das
50; o Brasil grande, dos anos 70; o Brasil moderno, dos anos
nações democráticas ocidentais cristãs, isto é, capitalistas). A
80 e 90). Assim, na perspectiva verde-amarela, o sujeito da
difusão dessas idéias foi feita nas escolas com a disciplina de
ação é triplo: Deus e a Natureza são os dois primeiros, e o
educação moral e cívica, na televisão com programas como”
agente do desenvolvimento, da grandeza ou da modernização
Amaral Neto, o repórter” e os da Televisão Educativa, e pelo
é o Estado. Isto significa que o Brasil resulta da ação de três
rádio por meio da “Hora do Brasil” e do Mobral (Movimento
agentes exteriores à sociedade brasileira: os dois primeiros
Brasileiro de Alfabetização), encarregado, de um lado, de
são não só exteriores, mas também anteriores a ela; o
assegurar mão-de-obra qualificada para o novo mercado de
terceiro, o Estado, tenderá por isso a ser percebido com a
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40
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Curso de Pedagogia
mesma exterioridade e anterioridade que os outros dois,
nação se tornasse evidente, pois teria sido a nação o sujeito
percepção que, aliás, não é descabida quando se leva em
que proclamou a República e instituiu o Estado brasileiro.
conta que essa imagem do Estado foi construída no período
Paradoxalmente, porém, a imagem do lugar do Estado não se
colonial e que a colônia teve sua existência legal determinada
alterou.
por ordenações do Estado metropolitano, exterior e anterior a
De fato, embora a Proclamação da República seja
ela. É surpreendente, porém, que essa imagem do Estado se
antecedida e sucedida por afirmações dos vários partidos
tenha conservado mesmo depois de proclamada a República.
políticos como um acontecimento que responderia aos
De fato, é curiosa a permanência dessa figura do Estado
anseios da sociedade e da nação, ou, ao contrário, que se
(como sujeito que antecede a nação e a constitui) no
oporia a tais anseios, e ainda que “por anseios da nação” ora
momento em que se encerra o período colonial e a época
se entendessem as reivindicações liberais de não-intervenção
imperial luso-brasileira. Com efeito, no período colonial, como
estatal na economia, ora a afirmação de conservadores e de
lembra Raymundo Faoro, a realidade é criada pela lei e pelo
positivistas sobre a necessidade dessa intervenção, em
regulamento, isto é, “desde o primeiro século da história
qualquer dos casos a República foi vista por seus agentes e
brasileira, a realidade se faz e se constrói com decretos,
por seus inimigos como uma reforma do Estado. Assim,
alvarás e ordens régias. A terra inculta e selvagem [...] recebe
histórica ou materialmente, a República exprime a realidade
a forma do alto e de longe, com a ordem administrativa da
concreta de lutas socioeconômicas e os rearranjos de poder
metrópole”14. Se, para uma colônia, o Estado é anterior e
no interior da classe dominante, às voltas com o fim da
exterior à sociedade, não pode ser esta a situação de uma
escravidão, com o esgotamento dos engenhos com os
República independente. Em outras palavras, seria de
pedidos de subvenção estatal para a imigração promovida por
esperar que, com a República, a interioridade do Estado à
uma parte dos cafeicultores, com a expansão da urbanização
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Curso de Pedagogia
e a percepção de que o pai precisava ajustar-se à conjuntura
submetido a, mesmo código legal, com unidade de língua,
internacional da revolução industrial; portanto se, de fato, a
raça, religião e costumes. Exterior à sociedade, no caso dos
República é o resultado de uma ação social e política, todavia
liberais, e anterior à nação e seu institui dor, no caso de
não é assim que ideologicamente ela aparece.
conservadores e positivistas, o Estado republicano, cuja
No plano ideológico, ela aparece não como instituição do
realidade concreta ou social permanece oculta, é, portanto,
Estado pela sociedade e sim como reforma de um Estado já
percebido como, antes, era percebida a Coroa portuguesa
existente. E ela aparece assim porque essa aparição é aquela
(veja box).
que corresponde ao que seus agentes e adversários esperam
da República. Os liberais esperam que a separação entre
Estado e sociedade seja finalmente, conseguida e não lhes
LIBERALISMO E POSITIVISMO NO BRASIL
interessa considerar a República uma expressão da própria
sociedade porque isso poderia estimular a perspectiva
Para entendermos o que representavam o liberalismo e
intervencionista do Estado. Como vimos, o liberalismo não
o positivismo no Brasil do final do século XIX e início do
podia furtar-se a admitir as conveniências de um Estado
século XX, vejamos algumas observações de Alfredo Bosi em
nacional, mas teoricamente preferia reduzi-lo à expressão de
sua obra Dialética da colonização. De acordo com este autor,
uma evolução natural da família ao Estado e à sua utilidade
liberal significava “conservador das liberdades” (liberdades,
para o progresso, isto é, para a competição econômica. Em
por seu turno, significavam: liberdade de produzir, vender e
contrapartida, conservadores e positivistas esperavam que
comprar, conquistada com o fim do monopólio econômico da
justamente intervindo na sociedade, o Estado, pudesse,
Coroa portuguesa; liberdade para fazer-se representar
enfim, fazer surgir a nação como território unificado e
politicamente, por meio de eleições censitárias, isto é,
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42
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Curso de Pedagogia
reservadas aos que preenchiam as condições para ser
Republicano Popular), defendiam: 1) o imposto territorial; o
cidadão, ou seja, a propriedade ou independência econômica;
Estado, portanto, tributando a terra; 2) a concessão de
liberdade para submeter o trabalhador escravo mediante
isenções fiscais para as manufaturas locais incipientes; 3) a
coação jurídica) e “capaz de adquirir novas terras em regime
estatização dos serviços públicos; 4) a incorporação da
de livre concorrência”. Como se nota, não havia nenhuma
massa trabalhadora (ou os proletários) à sociedade por meio
incompatibilidade entre ser liberal e senhor de escravos ou
de órgãos corporativos e com a mediação do Estado nos
em ser liberal e monarquista constitucional, não havendo uma
conflitos entre capital e trabalho, protegendo os pobres do
conexão necessária entre liberalismo e abolicionismo e
interesse egoísta dos ricos, como propusera Comte.
liberalismo e republicanismo. Quanto ao positivismo, que se
desenvolve, sobretudo no Rio de Janeiro e no Rio Grande do
Do ponto de vista do que nos interessa aqui, ou seja,
Sul, conservavam de Auguste Comte duas idéias principais
não o da produção histórica ou material concreta da nação e
sobre o Estado: a de que cabe ao organismo estatal realizar a
sim o da construção ideológica do semióforo “nação”, a
economia política, isto é, controlar a anarquia econômica; e a
dualidade dos agentes (Deus e Natureza, de um lado, e
de realizar a integração e a harmonia das classes sociais,
Estado de outro), constitutiva do verdeamarelismo, não é
particularmente o proletariado. O Estado é o cérebro da
apenas explicável, mas necessária. De fato, vimos que com o
nação que, regulando e controlando os movimentos e funções
“princípio da nacionalidade”, a “idéia nacional” e a “questão
de cada órgão, não permite que um se sobreponha a outros.
nacional”, o poder político constrói o semióforo “nação” na
Ordem e progresso (palavras inscritas na bandeira nacional)
disputa com outros poderes: os partidos políticos (sobretudo
são o lema próprio do positivismo comteano. Os positivistas
os de esquerda), religião (ou as igrejas) e o mercado (ou o
brasileiros, sobretudo os que se agruparam no PRP (Partido
poder econômico privado). Assim, não é gratuito nem
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Curso de Pedagogia
misterioso que as falas e as ações do Estado brasileiro pouco
a pouco se orientassem no sentido de dar consistência ao
semióforo que lhe próprio, a “nação brasileira”. Em segundo
lugar, como também observamos, o campo de construção de
um semióforo é mítico e, neste caso, também não nos deve
espantar que os agentes fundadores da “nação brasileira”
sejam Deus e a Natureza, pois são considerados os criadores
da terra e do povo brasileiros. Ideologicamente, portanto, o
Estado institui a nação sobre a base da ação criadora de
Deus e da Natureza. Essa ideologia, como veremos, nada
mais faz do que mantém vivo o mito fundador do Brasil.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade
autoritária. Coleção História do Povo Brasileiro. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2000.
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Curso de Pedagogia
Antropologia e educação: Origens
Considera-se assim, a possibilidade de superação
dos preconceitos e, neste sentido, apontar para um
de um diálogo
avanço do conhecimento.
Neusa Maria Mendes de Gusmão. Antropóloga e
professora do Departamento de Ciências Sociais
Aplicadas à Educação -Decisae - Faculdade de
Palavras-chave: Antropologia, educação, etnografia,
culturalismo, etnocentrismo, cultura, relativismo.
Educação da Unicamp.
A alteridade, terra prometida da antropologia,
Resumo: Antropologia e educação constituem
é um tema difícil, principalmente quando consiste
hoje, um campo de confrontação em que a
numa ambição de disciplinas diferentes, que põem
compartimentação do saber atribui à antropologia a
por terra a divisão clássica, diz Darnton (1996, p. 9),
condição de ciência e a educação, a condição de
referindo-se
prática.
primordial,
história. No diálogo entre antropologia e educação, a
profissionais de ambos os lados se acusam e se
questão parece ser a mesma: a aventura de se
defendem com base em
pré-noções, práticas
colocar no lugar do outro, de ver como o outro vê, de
reducionistas e muito desconhecimento. Muitas
compreender um conhecimento que não é o nosso.
coisas separam antropólogos e educadores, mas
Nessa "encruzilhada, os não-antropólogos buscam
muitas outras os une. Neste texto, busca-se
"um olhar antropológico" pelo qual se guiarão nos
ressaltar o que há de comum e de diferente em
mistérios da pesquisa de campo. Por sua vez, a
ambas as áreas com base na existência de um
antropologia e os antropólogos se vêem em grandes
diálogo do passado que possibilite um diálogo futuro.
dificuldades, quando são chamados a tratar dessa
Dentro
dessa
divergência
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
às
relações
entre
Antropologia Cultural
antropologia
e
45
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
realidade cujo nome é educação, seja por não
defendem com base em pré-noções, práticas
conhecerem, ou ainda, por desligitimarem um certo
reducionistas e muito desconhecimento. Se há
percurso do passado da antropologia. No entanto, é
muitas coisas que nos separam - antropólogos e
sabido que uma ciência não se faz a partir do nada;
educadores -, há muitas outras que nos unem. Neste
além de ser fruto de necessidades fundamentais
texto, pretende-se ressaltar o que há em comum, já
postas pelo movimento das sociedades humanas,
que o que nos separa só pode ser compreendido
nasce comprometida com seu tempo, sem ser
com base nesse mesmo patamar . O que nos une é,
jamais
como
portanto, anterior ao que nos separa, e nele se
conhecimento é movimento que se constrói, define-
inscreve o diálogo do passado, tanto quanto a
se e redefine-se vinculada ao contexto histórico que
possibilidade do diálogo do futuro.
verdade
absoluta.
A
ciência
a origina. Nada mais legítimo, portanto, do que
buscar
conhecer
os
caminhos
trilhados
O diálogo entre antropologia e educação,
pela
antropologia para dimensionar os caminhos em
constituição em face de diferentes campos.
percebido por muitos como uma "novidade" que se
instaura com as transformações da década de 1970,
neste século, é mais antigo que isso e reporta-se a
Antropologia e educação parecem constituir,
um
momento
crucial
da
história
da
ciência
hoje, um campo de confrontação, em que a
antropológica. No âmbito deste artigo, não se poderá
compartimentação do saber atribui à antropologia a
dar conta da totalidade dessa história; pretende-se,
condição de ciência e à educação, a condição de
no entanto, chamar a atenção para alguns pontos
prática. Dentro dessa divergência primordial, os
fundamentais. Antes de mais nada, é necessário que
profissionais de ambos os lados se acusam e se
se adentre no pensamento antropológico, em suas
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Antropologia Cultural
46
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Curso de Pedagogia
bases epistemológicas como ciência e como ciência
impedem que se atinjam metas, engendrando
aplicada, com seus alinhamentos teóricos, avanços
processos mais universalizantes e democráticos. No
e limites. Aqui parece residir a importância do
tempo presente, com tantas mudanças numa
passado para nosso presente, pois somente nesse
sociedade que se globaliza, estas questões não só
percurso parece ser possível vencer uma certa
não se encontram resolvidas, como renascem com
instrumentalização da antropologia pela educação,
intensidade perante os contextos em transformação.
propiciadora
de
muitos
equívocos,
e
onde,
O interesse central é trazer o aluno da
certamente, se terá, como ganho, a superação de
estigmas e preconceitos que grassam de ambos os
lados dessa fronteira ou desse divisor de águas - a
antropologia como ciência, a pedagogia como
pedagogia para uma aproximação no campo teórico
da
antropologia,
que
lhe
é
inteiramente
desconhecido. Por outro lado, o aluno de ciências
sociais, campo onde o antropólogo é formado, no
prática.
caso brasileiro, também desconhece o itinerário da
Avaliar a questão das diferenças, tão cara à
antropologia
campo
simples: a educação não tem sido um dos campos
característica
privilegiados pela antropologia, da mesma forma que
institucional homogeneizadora, não é uma tarefa
certas abordagens teóricas, que estão na origem
simples.
a
deste diálogo, também não se constituem em objeto
educação têm se defrontado com universos raciais,
de conhecimento e análise, em particular, lembro
étnicos, econômicos, sociais e de genêro, entre
aqui, o culturalismo americano, representado por
tantos outros, como desafios que limitam ou
Franz Boas e as gerações formadas por ele.
pedagógico
e
tão
desafiadora
justamente
Desde
sempre,
por
a
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
sua
no
antropologia no campo da educação. A razão é
antropologia
e
Antropologia Cultural
47
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
Poderíamos elencar um número significativo
como referência para as pesquisas educacionais de
de razões para que isto ocorra, mas importa chamar
tipo etnográfico e também para as pesquisas no
atenção para uma certa distorção de visão de que
campo das ciências humanas, ditas pós-modernas,
somos todos acometidos e que nos leva a
que,
considerar
reificadoras de muitos limites.
aprioris
e
ou
críticas
insuficientes,
negando
todo
o
passado,
tornam-se
deixando de entender a constituição da ciência de
que somos herdeiros. Ser herdeiros não nos torna
culturalistas, acríticos ou conservadores, mas exige
que reconheçamos que o conhecimento, como
ciência, não nasce e morre dentro de um tempo
determinado, senão que se alimenta do que existe
antes dele e fornece alimento ao que lhe sucede,
sem nunca deixar de existir como referência.
Defendo, ainda, a importância desse resgate, se
quisermos cobrar alguma coerência no fazer de
outros campos, quando se utilizam do referencial da
antropologia na abordagem de temas singulares,
particularmente na educação. Essa é a razão pela
qual esta reflexão, ainda iniciante, parte da negação
imediata de um tempo mágico - a década de 1970-,1
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
O pioneirismo do diálogo entre antropologia e
educação, relatado por Galli (1993),2 mostra que, já
ao final do século XIX, a antropologia tentava
compreender uma possível cultura da infância e da
adolescência. Eram temas de suas pesquisas e de
seus debates os processos interculturais infantis e
os sistemas educativos informais, dentro de uma
concepção alargada de educação. Antropólogos
participavam em processos de revisão curricular e
continuaram a participar no transcorrer do presente
século, nesse e em outros movimentos ligados à
escola e à educação.
Entre os anos 20 e 50 deste século, muitos
antropólogos envolvidos nesses debates travaram
Antropologia Cultural
48
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Curso de Pedagogia
celeumas com os pensamentos de Freud e Piaget.
Morgan - outra referência axial na antropologia -,
O que se sabe ou se conhece desses debates no
que, rompendo com o mestre, abre as portas para a
Brasil? Pouco ou nada. No entanto, entre os anos 30
fecundidade e as multiplicidades de pensamentos
e
que orientarão novas abordagens teóricas que
40,
os antropólogos
tiveram
uma
atuação
importantíssima no vasto programa de reforma
alimentam
curricular promovida nos EUA. Deles não se fala
discípulos de Boas, neste início de século, dão
nem
entanto,
continuidade ao próprio Boas, quando este nos
importantes aspectos para a compreensão de nossa
alertava para o fato de que tínhamos um modelo
visão da escola estão aí contemplados, pelo fato de
pedagógico ocidental que iria nos conduzir a uma
que muitos antropólogos que atuaram no processo
pedagogia da violência.
se
ouve
falar
entre
nós.
No
a
antropologia
do
século
XX.
Os
vinham de uma linha tradicional, e mesmo axial, na
antropologia, posto que eram discípulos de Boas,
tais como Margareth Mead (que dedicou toda sua
vida ao estudo da educação) e Ruth Benedict.
Nomes que certamente não soam estranhos aos
ouvidos do estudante de antropologia, mas que
certamente nunca são pronunciados nos corredores
de uma Faculdade de Educação.
Hoje, quando vemos as dificuldades das
escolas, em particular, das escolas públicas de
periferia, o fato de a escola como valor não fazer eco
entre os estudantes, a indisciplina violenta, a evasão
escolar e sua face mais cruel, a exclusão social, só
para citar alguns problemas de nosso tempo, cabe
perguntar qual a natureza dos riscos de que falava
Boas. Qual a natureza dos riscos de hoje? Para ele,
Por que ser discípulo de Franz Boas importa?
a realidade de seu tempo apontava um risco para os
Antes de mais nada, por ser ele mesmo um aluno de
povos do futuro e para o futuro da própria civilização.
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
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Curso de Pedagogia
A razão era que, historicamente, a nossa sociedade
racial, étnica e de genêro, até os sucessos e
e a escola que lhe é própria não desenvolviam - e
insucessos do sistema escolar em face de uma
não desenvolvem - mecanismos democráticos,
ordem social em mudança. Nesse sentido, como
perante as diversidades social e cultural.
ciência e, em particular, como ciência aplicada,
antropologia e antropólogos estiveram, no passado e
A propriedade e a atualidade da inquietação
de Boas revelam que o diálogo foi iniciado, mas não
foi concluído. A breve síntese de um processo vasto
e intenso que se desenvolveu na primeira metade do
século, e que não termina aí, está exigindo olhares
mais profundos na história da intersecção entre
antropologia e educação. A pergunta que muitos
podem fazer é: Por que seria importante conhecer
tais processos? Não estariam eles superados pela
dinâmica de um mundo moderno que se transforma
continuamente e de modo acelerado?
um
espaço
para
debate,
reflexão
e
intervenção, que acolhe desde o contexto cultural da
aprendizagem, os efeitos sobre a diferença cultural,
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
diferenças e das práticas educativas. Se, como diz
Galli, tais questões fazem convergir os estudos da
cultura, no caso da antropologia, e dos mecanismos
educativos, no caso da pedagogia, possibilitando a
existência de uma antropologia da educação - tema
e produto de uma grande conversa do passado -,
isto também ocorre no presente, posto que a
antropologia e a educação estabelecem um diálogo,
do qual faz parte, também, o debate teórico e
metodológico das chamadas pesquisas educativas,
Na relação entre antropologia e educação
abre-se
no presente, preocupados com o universo das
relacionadas às diversas e diferentes formas de vida
que, neste final de século, estão ainda a desafiar o
conhecimento. Em jogo, as singularidades, as
particularidades das sociedades humanas, de seus
Antropologia Cultural
50
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Curso de Pedagogia
diferentes grupos em face da universalidade do
Que pavorosos deuses vingadores eram aquela
social humano e sua complexidade através dos
gente barbada, toda revestida de metal e montada
tempos e, em particular, num mundo que se
em veados gigantes, clamavam os indígenas?
globaliza. Resta, pois, conhecer um pouco dessa
(Nicolau Scevcenko. Folha de S. Paulo/Ilustrada,
história.
domingo 2/2/1985, p. 53)
Caminhos
cruzados:
Educação,
cultura
e
relativismo
O que tem a ver com antropologia e educação
o texto acima? O texto conta a história do contato
entre espanhóis e indígenas (astecas, maias, incas)
O fato mais curioso nesse encontro de
culturas de que resultou a conquista da América foi
provavelmente a surpresa de ambos, espanhóis e
indígenas,
ao
se
depararem.
Uns
jamais
suspeitaram da existência dos outros. Para se
livrarem do incômodo desse assombro, ambas as
partes mergulharam nas suas tradições míticas, a
fim
de
encontrarem
indícios
reveladores
ou
presságios que os ajudassem a identificar e
esconjurar os espectros com que haviam topado.
Que estranha tribo desgarrada dos filhos de Israel
seriam esses gentios, perguntavam os espanhóis?
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
na conquista da América. É um fato real, histórico e
concreto, em que dois povos e duas culturas
distintas mostram o espanto do olhar - do europeu e
do indígena, ambos envolvendo de imediato a
percepção de um sobre o outro. Trata-se de um
olhar etnocêntrico, fruto, como diz Azcona (1989), da
experiência do agir humano, segundo um modelo
explicativo
do
conhecimento e
também como
realidade da cultura, entendida como o sentir, o
pensar, o agir do homem em coletividade. Qualquer
experiência vivida, referida a objetos, situações,
fatos, são, diz o autor, intersubjetivos, porque
Antropologia Cultural
51
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
vivemos no mundo da cultura "como homens entre
Como diz Scevcenko, "os europeus representando
outros homens, ligados a eles por influências e
uma civilização mais pragmática e que lançava
trabalhos comuns, compreendendo os outros e
nesse momento as bases da ciência positiva
sendo objeto de compreensão para outros" (p. 49).
moderna, logo passaram a utilizar-se dos mitos
indígenas a seu favor (...) os espanhóis não tiveram
A antropologia como ciência desenvolve-se
preocupada em superar o mundo intersubjetivo, de
modo a superar o etnocentrismo que, resultando do
encontro entre a civilização ocidental e outros povos,
implicou em violência, distorções sobre estes povos
e suas culturas. O texto "Todos Nós Somos Loucos
por
Ti,
América",
de
Scevcenko,
fala
escrúpulos em se aproveitar das crenças indígenas
(...) para depois da conquista destruir os seus
deuses e impor-lhes o cristianismo a ferro e fogo"
(op. cit., p. 53). A partir daí, segundo o autor, o que
se tem é um trágico processo de invasão, conquista
e extinção da cultura indígena.
desse
encontro/desencontro e situa para nós o papel de
Compreende-se, então, que o mundo da
uma ciência preocupada com as diferenças e seu
cultura e seu movimento, como parte da história de
movimento. A antropologia preocupada, antes de
um povo, de uma tradição e herança, ao ser
tudo, em superar a cultura própria do mundo que lhe
confrontado
dá origem - o mundo europeu em expansão - para
interesses
poder conhecer a realidade do outro, faz disso seu
alteridade (o eu e o outro em relação) mais que de
grande desafio. O desafio de ver-se e ver aos outros
diversidade (o eu e o outro). Resultam, daí,
homens, para, então, estabelecer as bases do
processos de manipulação da realidade, segundo
conhecimento.
diferentes formas de percepção e conhecimento. A
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
com
diversos
outros
universos,
postos
numa
Antropologia Cultural
pressupõe
relação
de
52
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Curso de Pedagogia
experiência de contato entre povos diferentes e
da cultura, que gera um fazer reflexivo e crítico, por
culturas diversas coloca em questão um espaço de
vezes chamado educação.
encontro, de confronto e de conflito, marcado pelo
diverso, pelo diferente. Esta tensão é essencial à
constituição e ao desenvolvimento da antropologia
O objetivo é assimilar o indivíduo à ordem
social propiciadora do nós coletivo e que, ao mesmo
tempo em que integra buscando homogeneizar,
como ciência e como prática.
diferencia
cada
um
por
suas
características
Assim, a antropologia nasce de relações
pessoais, por gênero, por idade, garantindo o
historicamente constituídas entre os homens e, por
equilíbrio da vida em sociedade. A educação realiza-
sua natureza, busca compreender o outro diferente
se, então, no interior da sociedade, composta por
de si - de seu mundo de origem, a Europa do século
diferentes grupos e culturas, visando um certo
XIX
de
controle sobre a existência social, de modo a
conhecimento, tendo por base e pressuposto central
assegurar sua reprodução por formas sociais
o mundo da cultura, as relações entre os homens e
coletivamente transmitidas.
-
dialogando
com
outras
formas
a construção do saber.
A educação, nessa forma primeira, é uma
O que é o saber? Segundo Galli, é uma
modalidade de ajustamento psicossocial que resulta
dimensão social holística3 que vai do caos à ordem,
numa forma de controle social, com base na
para outra ordem; que se desconstrói com bases em
organização social e no horizonte cultural partilhado
pressupostos construtivos, postos em movimento
por um grupo. Um aspecto a considerar é que a
pela experiência e pela vivência. Trata-se da fruição
cultura é, aí, entendida como técnica social de
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Antropologia Cultural
53
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Curso de Pedagogia
manipulação da consciência, da vontade e da ação
deixe de ter preguiça e torne-se aplicada no
dos indivíduos, com a finalidade de modelar as
trabalho. Da mesma forma, quando maiores, tomam
personalidades humanas dos membros do grupo
a "injeção de sapo", uma espécie de queimadura em
social, tal como afirma Florestan Fernandes, ao
pele viva, que espanta a preguiça e o panema (azar)
tratar da educação entre os Tupinambás (1966).
(op. cit., pp. 291-301).
Para exemplificar que todas as sociedades
Este e outros exemplos entre grupos tribais
possuem técnicas para estimular e corrigir seus
como os Arapesh, estudados por Mead, ou os
membros da infância à idade adulta, via transmissão
japoneses, estudados por Ruth Benedict, revelam a
de conhecimento, valores e normas, Melatti (1979)
existência de um sistema de interpretação de um
relata o processo educativo de uma criança marubo.
modo de vida, mas também uma pedagogia, como
Diz ele: "Durante o tempo em que o indivíduo é uma
diz Galli, que se formaliza como técnica e ritual
criança de colo, sem dúvida já se inicia sua
educativo, criando sistemas especializados nessas
formação como marubo". Ela pressupõe desde o
técnicas e ritos. Nesse sentido, cultura e educação
contato com os alimentos até outros hábitos como
são termos que se invocam e se concitam
amarrar os pulsos, os braços, os tornozelos e as
mutuamente, como afirmam Cazanga M. e Meza
pernas para que engrossem, fazendo dele um bom
(1993). Segundo esses autores, "permanentemente
trabalhador no futuro. À medida que cresce, está
envolvido no processo educativo e pelo simples fato
sujeito a tapas, empurrões ou ainda a punições
de estar vivendo, o homem está aprendendo na
quando faz algo de errado. Uma punição comum é a
sociedade pela cultura; a sociedade é o meio
urtiga que é passada no corpo para que a criança
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Curso de Pedagogia
educativo próprio do homem, ainda que a todo
momento não tenha consciência disso" (p. 82).4
É comum entre antropologia e educação,
portanto, tal como afirma Galli, a existência real e
concreta de diferentes grupos humanos. Uma
Isto não quer dizer que os indivíduos sejam
produtos mecânicos de uma linha de montagem. O
homem
como
ser
variável,
mutável
no
temperamento e no comportamento, não fica à
mercê de sua natureza e de sua cultura, mas sim
está sujeito a condições históricas determinadas e
determinantes do universo em que está inserido.
No pano de fundo da história, os processos
culturais revelam-se arbitrários, posto que objetivam
não apenas a produção e a reprodução da
sociedade em que se está e se vive, mas objetivam,
também, interesses e metas que, indo além da
própria sociedade, envolvem outras sociedades,
outros grupos sociais, outras culturas. Tal como
aconteceu com a expansão colonial na América e,
portanto, com as relações entre europeus e
indígenas.
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existência que, segundo Lara (1990), mostra o
mundo cultural marcado por uma luta de interesses,
com tudo o que ela implica: a dominação, a
espoliação, entre outras coisas. Para esse autor, os
caminhos da produção cultural de um povo foram,
muitas
vezes,
obstruídos,
"enquanto
memória
negada ou recalcada, enquanto memória distorcida
ou mesmo completamente deturpada por aqueles
que têm a força para se impor. A história cultural de
um povo, na maioria dos casos, fica sendo a história
das dimensões hegemônicas dessa cultura" (p. 104).
Retomando pois, o caso dos espanhóis e dos
indígenas, fica clara a imposição das crenças dos
valores dos conquistadores em nome de um domínio
que nega ao outro a própria existência de seu
mundo. Diziam alguns sábios astecas: "Somos gente
simples/ somos perecíveis, somos mortais,/ deixaiAntropologia Cultural
55
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
nos, pois, morrer,/ deixai-nos perecer,/ pois nossos
relações entre povos e culturas distintas, renasce a
deuses já estão mortos" (Scevcenko op. cit., p. 53).
diferença, celebra-se a alteridade. A realidade vivida
O processo político que impõe a cultura do outro à
implica um fazer e refazer constantes, via processos
revelia dos sujeitos sociais conduz à violência que
culturais que, no dizer de Lara, produzem e veiculam
mata o corpo (genocídio), como também mata a
projetos de vida humana, com propostas tidas como
alma, preservando o corpo físico (etnocídio). Os
válidas e como tais transmitidas. Daí que o processo
indígenas não são, assim, indiferentes às condições
de ver-se e ver a outros homens, só pode ocorrer
vividas, aprendem com elas, e se os espanhóis
em contextos históricos concretos, seja em termos
foram: "adorados inicialmente como deuses, temidos
do senso comum, seja em termos do conhecimento
depois como demônios e desprezados por fim
científico.
apenas como bárbaros", é porque os indígenas
perceberam a "cupidez dos europeus e na sua
obsessão proselitista, a raiz de todo o sofrimento em
que
submergiram
(...)
esse
sentimento
(...)
transformou-se numa pulsação de resistência e é até
os nossos dias revivido cerimonialmente como na
periódica dramatização da morte de Atahualpa"
A compreensão das diversas sociedades
humanas, em seus próprios termos, através de
questionamentos dos valores e das convicções de
nossa sociedade, como diz Novaes (1992), permite
o conhecimento através da crítica "ao etnocentrismo,
à intolerância e à não aceitação da diferença" (p.
128). A superação do etnocentrismo, a apreensão
(idem; ibidem).
do diverso para compreendê-lo em relação, significa
da
relativizar o próprio pensamento para construir um
homogeneização proposta pelo campo político das
conhecimento que é outro. Alargado, como diria
Assim,
num
processo
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inverso
ao
Antropologia Cultural
56
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
Merleau Ponty. Um conhecimento como ciência, ou
de habilidades e aspirações sociais; no segundo,
seja,
e
trata-se das formas de transmissão de herança
outras
cultural, através de gerações implicando processos
a
realidade
experimentada
pela
como
realidade
compreensão
vivida
de
sociedades e da própria cultura.
de
apropriação
de
conhecimentos,
técnicas,
tradições e valores. Tudo em acordo com a criação
Nesse movimento de tensão e compreensão
reside a natureza do diálogo entre antropologia e
educação, já que ambas são devedoras científicas
do processo de imposição de si ao outro, posto pelo
desenvolvimento
do
mundo
colonial
e
do
colonialismo ocidental, cuja meta visava suprimir
toda e qualquer alteridade, em nome de um modelo
dos homens em situações sociais, concretas e
historicamente
segundo
Galli
determinadas.
e
outros
Situações
autores,
essas,
tipicamente
pedagógicas e diversas. Aqui seria possível citar
inumeráveis exemplos de diversidade social e de
múltiplas situações pedagógicas que precisariam ser
relativizadas para ser melhor compreendidas.
de vida cultural e pedagógico de tipo etnocêntrico,
autocentrado e homogeneizador. O diálogo revela
No
entanto,
a
dominação
política
e
como ponto comum a cultura, entendida como
historicamente determinada nas relações entre
instrumento necessário para o homem viver a vida,
diferentes grupos e, principalmente, na história do
distinguir os mundos da natureza e da cultura e,
mundo
ainda, como lugar a partir do qual o homem constrói
negador da diversidade humana. Centrado num
um saber que envolve processos de socialização e
modelo cultural único e na necessidade de colocar
aprendizagem.
de
sob controle o diferente, a sociedade ocidental
diferentes formas de transmissão de conhecimento,
constrói uma prática pedagógica também única e
No
primeiro
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caso
trata-se
ocidental,
revela
o
colonialismo
Antropologia Cultural
como
57
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
centralizadora. O movimento deste mundo, de que
perguntas, cujas respostas permitiram a constituição
fazemos parte, caminha da diversidade para a
de um saber legítimo e reconhecido como ciência.
homogeneidade, eixo em que também se inscreve a
Entre o século XIX e o atual século XX, as perguntas
história
da
e suas respectivas respostas organizaram-se em
pedagogia ocidental, como prática. Vinculadas e
diferentes formas de interpretação da realidade.
determinadas pela lógica impositiva dessa história
Assim, afirma-se que o "olhar antropológico" não é
comum, defrontam-se ambas com o desafio de
um único olhar, mas qualquer que seja ele, é
resgatar e redimensionar o universo das diferenças,
dependente de pressupostos que orientam as
da diversidade que, como diz Carvalho (1989),
perguntas que são feitas e indicam caminhos de
referindo-se aos antropólogos, exige renovar a visão
busca das possíveis respostas. Isto quer dizer que,
de mundo e das coisas (p. 20).
dependendo de onde se parte, têm-se configurados
da
antropologia,
como
ciência, e
modos diversos de fazer uma mesma ciência, no
Antropologia e educação: O diálogo do passado
As origens da antropologia e do fazer
caso,
mundo colonial que conduz o mundo europeu a
defrontar-se com outros povos e outras culturas nas Américas e na África. O defrontar-se com o
diverso,
com
o
desconhecido,
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implicou
fazer
ciência
antropológica
com
base
em
diferentes teorias que a sustentam.
antropológico como ciência, ou melhor dizendo, de
um modo de fazê-la, tem a ver com a expansão do
a
A primeira dessas teorias, que nasce junto
com
a
própria
ciência
antropológica,
foi
o
evolucionismo. As idéias de evolução e progresso,
inspirados em princípios da biologia e, portanto, das
ciências naturais do século XIX, conduzem a que se
pensem as diferenças entre grupos e sociedades
Antropologia Cultural
58
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Curso de Pedagogia
numa escala evolutiva que toma o mundo europeu
singular, própria, que depende do que é a vida do
como modelo único de humanidade. A concepção
grupo, no aqui e agora de sua existência. Não se
etnocêntrica de mundo vê o "outro" a partir de si
trata, portanto, de olhar as diferenças próprias do
mesma e estabelece um fazer científico de base
modo de ser do "outro" como sobrevivência de um
discriminatória e racista, já que entende que branco,
momento já superado pela evolução da humanidade
europeu e cristão constituem a superioridade da
e, como tal, exemplo vivo de atraso social e cultural.
condição humana, enquanto os demais povos e
A possibilidade de que a história da humanidade não
culturas representam um atraso, uma sobrevivência
tenha seguido um único caminho e direção faz do
do passado do homem e, como tal, uma condição
pensamento de Boas uma condição revolucionária
inferior da própria humanidade. Um evolucionista
na compreensão das realidades humanas. Como
importante, no século XIX, foi L. Morgan, inspirador
história múltipla e variada, elimina o viés do
de muitos pensadores, entre eles seu aluno Franz
pensamento evolucionista etnocêntrico. Com este
Boas.
princípio, Boas mostra a imensa riqueza do social
humano e a natureza da cultura como não
Franz Boas vivencia todas as descobertas de
seu tempo e chega ao presente século trazendo
para debate, agora, através de seus próprios alunos,
importantes antropólogos da primeira metade do
século XX, uma crítica contundente ao pensamento
de seu mestre L. Morgan. Boas considera a idéia de
determinada biologicamente. A cultura, e não a
biologia,
diferenças
torna-se
e
referência
compreendê-las
para
em
pensar
suas
as
bases
constitutivas. O pensamento de Boas, ao investir
contra o evolucionismo de Morgan, possibilita
também a crítica aos valores liberais e de igualdade
que cada grupo, cada cultura têm uma história
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Antropologia Cultural
59
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
postos pelo campo político do século XIX, como
Boas revela como a diversidade do social é
modelo autocentrado para as sociedades humanas e
desrespeitada
no
suas instituições, entre elas, a escola e seu modelo
desenvolvimento
americano,
pedagógico ocidental.
sociais ou culturais, de gênero, raça ou etnia, são
modelo
político
já
que
de
diferenças
ainda pensadas a partir das idéias evolucionistas.
Boas será um crítico atuante diante do
sistema educativo americano, denunciando, entre
outras coisas, a ideologia que lhe serve de base,
centrada na idéia de liberdade, e sua prática
educativa de cunho conformista e coercitivo, visando
criar
sujeitos
sociais
adequados
ao
sistema
produtivo, segundo um modelo ideologizado de
cidadão. Demonstra, através de estudos diretos
obtidos no campo educacional, que a escola inexiste
como instituição independente e, como tal, não
possibilita independência e autonomia dos sujeitos
que aí estão. A meta da escola centra-se num alunomodelo
que
desconsidera
a
diversidade
da
comunidade escolar e, para contê-la, atua de forma
autoritária.
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Com isso, Boas influencia muitos outros a pensarem
a questão da diferença como parte de mecanismos
culturais, referidos a pequenos grupos ou regiões,
que exigem um intenso trabalho de campo junto a
esses grupos, para que seja possível compreendêlos. O fazer científico que se instaura nessa
concepção
chamada
particularista
também
de
da
história
história
humana,
cultural
ou
culturalismo, tem por significativo o fundamental
dessa ciência chamada antropologia, o trabalho de
campo, e elege como central, para pensar as
sociedades humanas, o conceito de cultura. Por
outro lado, cabe dizer que esta é a vertente
americana de desenvolvimento da antropologia, a
antropologia cultural. Mais centrada nos conceitos
Antropologia Cultural
60
Faculdade Pio Décimo
de
sociedade
e
Curso de Pedagogia
de
estrutura,
elaborada
por
diversidade
das
culturas,
vista
por
diferentes
Radcliffe-Brown e outros, constitui-se a vertente da
ângulos: as formas operativas da cultura dentro dos
antropologia social, na Inglaterra, da qual emergirá
processos educativos nos primeiros anos de vida; os
uma segunda e fundamental corrente teórica da
ciclos de desenvolvimento da infância à idade adulta
antropologia, o funcionalismo, cujo representante
e o papel da educação formal e informal; a questão
maior será B. Malinowski. Boas e Malinowski,
do controle social e o campo das emoções e do
segundo Laplantine (1987), são os pais fundadores
sexo;
da etnografia, na medida em que percebem e
relacionamentos entre grupos dentro dos estados
sistematizam
"o
nacionais e deles com os outros, como por exemplo,
pesquisador deve ele mesmo efetuar no campo a
a América e a África, o mundo ocidental e o oriental;
própria pesquisa" (p. 75). Com eles, o trabalho de
a adolescência e a formação da personalidade, entre
campo se torna a própria fonte de pesquisa e a
tantos outros temas que se podem elencar na
condição modular da antropologia como ciência da
produção culturalista do início do século até os anos
alteridade que, segundo Laplantine, se dedica ao
50.
os
caminhos
pelos
quais
as
dificuldades
educativas
e
os
estudo das lógicas particulares de cada cultura.
Outros antropólogos que também discutem a
A
corrente
americana
maiores
escola e a educação nesse período são M.
preocupações com a questão educacional, cuja
Herskovits, R. Redfield e C. Kluckholn, que apontam
continuidade se fará com os alunos de Boas. Ruth
para a questão da escolha cultural, do papel da
Benedict e Margaret Mead dedicam-se aos estudos
cultura e das experiências vividas que marcam e
do campo educativo e trazem à tona a questão da
constituem um universo centrado no relativismo. São
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
terá
Antropologia Cultural
61
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
parte da discussão: a negação dos chamados
sua satisfação e conduzem às respostas originais,
"testes de inteligência", tão em voga nos anos 30/40;
singulares e coletivas, que demarcam e estruturam
as dificuldades de integração cultural do diferente,
formas próprias de ser e de pensar o mundo,
em face da visão etnocêntrica da organização
diferentes para cada povo ou grupo, já que são
escolar; a questão da tarefa do educador perante as
dependentes da dinâmica de diversos sistemas
experiências pessoais e a herança cultural e, ainda,
sociais
a questão dos valores de cada grupo em face dos
conseqüência, a melhor forma de compreender os
conflitos entre grupos e perante as diferenças. A
diferentes povos é estar com eles, viver em
relativização dos saberes e as conexões entre
profundidade
saberes diversos só se fizeram possíveis em razão
entendendo-as como práticas "encarnadas", como
das experiências vividas e da integração no mundo e
diria Malinowski, ou seja, como práticas que
na cultura de cada um. A exigência, portanto, de se
possuem um sentido e um significado. A perspectiva
pensar um saber e uma aprendizagem diversa,
de que o homem não apenas vive, mas que, ao
porém de igual valor, coloca em vigência uma ética
viver, questiona, cria sentidos, valores, mitos, artes e
no fazer antropológico e lhe dá uma dimensão
ideologias que ordenam sua compreensão de
política afinada com seu tempo.
mundo, revoluciona o fazer etnográfico, pois impõe o
e
de
o
seu
funcionamento.
universo
de
suas
Como
práticas,
trabalho empírico, de campo, como fundamental na
Por sua vez, o funcionalismo dos anos 20/30
compreensão de outros povos e de nós mesmos.
baseava-se no fato de que as necessidades de um
povo, grupo ou indivíduo, dadas pela vida em
sociedade, encontram na cultura os caminhos de
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
O
trabalho
de
campo
redimensiona
o
conhecimento científico, na medida em que exige
Antropologia Cultural
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Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
uma rigorosa e sistemática apreensão de uma dada
compreendê-la no seu todo. A isso, se propuseram
sociedade ou grupo em seus múltiplos aspectos,
os chamados estudos de comunidade.
formais, institucionais, concretos, tal como se
encontram relacionados entre si e de acordo com a
representação que deles é feita. A cultura se torna,
assim, central para a compreensão das práticas
humanas, vistas como práticas significantes que
distinguem o homem da natureza, o homem do
animal e que fundam diferentes sistemas de
interpretação
da
vida.
Nesse
processo,
o
antropólogo é aquele que faz a "teoria nativa" da
sociedade que estuda, ou seja, que busca explicá-la
em seus próprios termos. Isso exige desde a
compreensão da especificidade de cada cultura, já
posta
pelo
culturalismo,
como
também
a
compreensão das partes que compõem uma dada
cultura em termos de um todo integrado, de que fala
o funcionalismo. Na conjunção de ambas as teorias,
torna-se possível o estudo de pequena parte da
sociedade - um microcosmo de seu universo - para
Os estudos de comunidade constituem a
outra ponta da perspectiva antropológica que hoje
parece retornar, sem uma efetiva consciência do
fato, nas pesquisas educacionais deste fim de
século. A proposta desses estudos conduz os
pesquisadores a verem no âmbito de pequenos
grupos a reprodução da sociedade, elegendo no
campo da pesquisa o particular, como objeto de
conhecimento, e não a generalização. A cultura vista
nela mesma, no interior do grupo e a ele referida, o
contexto em si mesmo tornam-se expressão maior
dessa perspectiva de análise, desse fazer científico. 5
Não dão conta, porém, do fato de que "as relações
culturais estão submersas em relações de poder "
(Carvalho op. cit., p. 21) e, como tais, dizem respeito
a realidades mais amplas, estruturadas em torno de
relações de classe e baseadas em mecanismos de
desigualdade e dominação.
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Antropologia Cultural
63
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
Ainda assim, as vertentes do culturalismo e
Segundo P. Sanchis (1996), nos anos 50 e 60
do funcionalismo, que ao final dos anos 40 começam
deste século, a descolonização e a emergência de
a ser criticadas nos EUA, terão forte influência no
antigas
Brasil, primeiro via Gilberto Freyre, que estuda com
eliminaram a distância estrutural entre sociedades,
Boas nos anos 30 e escreve seu célebre e polêmico
estabelecida de modo teórico e diverso pelo
Casa grande e senzala; depois será a vez de
evolucionismo e pelo funcionalismo (p. 29). Nesta
pesquisadores americanos que, entre os anos 40 e
segunda metade do século, não se trata mais de
50, chegam ao Brasil através da Universidade da
estudar o "outro", diferente, distante, e sua cultura. A
Bahia, e aqui desenvolvem estudos de comunidade,
questão agora é que a "etnografia deixou de ser
que serão inspiradores, mais tarde, das propostas
privilégio de antropólogos desde que estes mudaram
do
Pesquisas
seu campo para as cidades", diz Zaluar (1995, p.
Educacionais) dirigido por Anísio Teixeira, em
85). Ao mesmo tempo, a necessidade de aplicar
termos de pesquisas e de programas educacionais
seus métodos, seus conceitos e paradigmas às ditas
no Rio de Janeiro, entre os anos 50 e 60. No
sociedades complexas instaura o desafio e a
entanto, a crítica feita a tais estudos, já a partir da
aventura que é "conhecer outros mundos simbólicos"
década de 1940, parece não fazer parte da reflexão
no interior de nosso próprio mundo. Tal desafio,
daquele momento, como não o faz na atual
segundo Zaluar, constitui-se numa via de mão dupla,
retomada da aplicabilidade das técnicas de pesquisa
em que estão em jogo a objetividade e a teoria
antropológica aos estudos das culturas complexas,
científica e também a sensibilidade interpretativa de
CBPE
(Centro
Brasileiro
de
colônias
como
nações
independentes
na antropologia e na educação.
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Antropologia Cultural
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Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
quem se propõe a singrar mares à la Malinowski.6 O
científicas e das práticas educativas no tocante ao
desafio não é fácil, nem simples.
trabalho de campo e ao fazer etnográfico que,
desenvolvidos na trajetória da antropologia como
Segundo Ruth Cardoso (1986), no campo das
ciências humanas o desafio atual é o de conciliar a
conquista do trabalho de campo, sistematizada pelo
ciência, são hoje, década de 1990, campos comuns
e
conflitivos no diálogo
entre
antropologia
e
educação.
positivismo e, ao mesmo tempo, dar conta de
esquemas explicativos de outra natureza, centrados
na
questão
das
sociedades
complexas,
as
Fazendo minhas as palavras de Santos
(1996) e, certamente, alterando-lhes os sentidos,
sociedades de classe, revelada pelas teorias mais
estamos
críticas
o
simultaneamente de conflito e de repetição. Cabe,
estruturalismo e o marxismo. Diante do trabalho de
então, perguntar: Estamos perante uma situação
campo e do desafio da interpretação, a antropologia
nova? No presente, o relativismo e a alteridade
e a educação se debatem com o fato de que sempre
apresentam-se de forma ambígua e até antagônica
existiu "um modelo positivista de sociedade (...) e
(Garcia 1994, p. 135), de modo que se torna
uma tendência interpretativa ou compreensiva" das
obrigatório rever a idéia de que o passado seja
mesmas (Lovisolo 1984, p. 66). Para este autor, a
reacionário, para se buscar, como diz Santos,
antropologia interpretativa é aquela que hoje é
energias mais progressistas, menos conformadas no
aceita, tanto no campo das ciências humanas como
interior de um universo matricial, da antropologia
na educação, e nisso consiste o desafio de agora.
como ciência e da educação como prática.
Em
e
debate,
menos
o
positivistas,
questionamento
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
tais
das
como
vivendo
um
tempo
paradoxal,
práticas
Antropologia Cultural
65
Faculdade Pio Décimo
Notas
1. Não se trata de negar a importância dessa década na
definição temática e conceitual no campo das ciências
humanas, mas de demarcar tal período como o da cristalização
de processos que desde muito estavam em constituição e cujo
movimento é parte integrante das conquistas desse momento.
2. Deste ponto em diante, intercruzo, com outros autores, o
trabalho de Matilde C.Galli, "Antropologia Culturale e Processi
Educativi", editado pela La Nuova Italia, Scandice, Firenze,
1993, e tomo por roteiro parcial o curso de antropologia e
educação que ministrei em 1996, na Faculdade de Educação
da Unicamp. Agradeço à professora doutora Ana Lúcia G. de
Faria por ter me apresentado à obra de Galli e ter, assim,
desencadeado um processo de reflexão de que participaram
também meus alunos, aos quais agradeço pelo incentivo e pela
discussão.
3. O holismo tem sido abordado em diferentes estudos e, em
geral, diz respeito às propriedades do todo ou da totalidade da
vida social, ainda que nem todos concordem com isso.
Curso de Pedagogia
6. Ver, a respeito, Ana Lúcia F. Valente. "Usos e abusos da
antropologia na Pesquisa Educacional. Proposições." Revista
da Faculdade de Educação da Unicamp. Campinas, 1997 (no
prelo).
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4. No original: "Permanentemente involucrado en el proceso
educativo y por el simple hecho de estar viviendo, el hombre
está aprendiendo en la sociedad por la cultura, la sociedad es
el medio educativo propio del hobre, aunque no en todo
momento hay conciencia de esto."
CARVALHO, Edgar de Assis. "As relações entre
5. Ver, a respeito, Josildeth da S. Gomes. "A educação nos
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