MICROSCÓPIO CLÍNICO ODONTOLÓGICO NA ENDODONTIA CONTEMPORÂNEA: POR QUE CONTINUAR “ENXERGANDO COM OS DEDOS”? Francisco José de Souza-Filho Adriana de Jesus Soares Endodontia FOP-UNICAMP INTRODUÇÃO Os avanços e inovações tecnológicas da última década influenciaram dramaticamente os procedimentos clínicos endodônticos. Resultados antes considerados intangíveis passaram a ser passíveis de obtenção. Limas fabricadas com ligas de Níquel-Titânio, instrumentos rotatórios e ultrassônicos, sistemas de obturação termoplástica, localizadores foraminais, além das descobertas relacionadas aos aspectos biológicos do sistema de canais radiculares e da conseqüente diversificação de propostas de preparo químico-mecânico exemplificam essa evolução. Entretanto, a introdução do microscópio clínico odontológico na terapêutica endodôntica foi, sem sobra de dúvidas, o evento que mais drasticamente afetou os protocolos até então adotados e, por conseguinte, os resultados e prognósticos. Foram inúmeros os benefícios advindos do início do uso do microscópio operatório na Endodontia. A magia dos resultados alcançados com o uso do microscópio consiste tão somente na possibilidade de do operador enxergar o que antes dependia de sua sensibilidade tátil, experiência, imaginação e perseverança. Esta alternativa proporcionou alterações, por vezes radicais, de procedimentos técnicos convencionais e cirúrgicos preconizados até recentemente, regidas, fundamentalmente pelo binômio ampliação/iluminação, cuja intensidade e qualidade não podem ser comparadas aos métodos usuais. O benefício alcançado é simples de analisar: o microscópio permite ao clinico, ver melhor, sentir melhor e pensar melhor, definindo um nível de precisão e potencial excelência nos procedimentos clínicos (West, 2006). Por que então continuar “enxergando com os dedos”? O MICROSCÓPIO OPERATÓRIO Totalmente adaptável ao consultório, o microscópio operatório consiste num instrumento simples, de fácil manuseio, e cuja utilização rotineira permite, em pouco tempo, grande melhora na qualidade dos trabalhos clínicos e na posição ergonômica de trabalho do operador (Figura 1). Para utilizar o microscópio operatório, o clínico deve contar com um ou dois auxiliares, dependendo do procedimento a ser executado. Durante toda a intervenção o clínico deve sempre manter seus olhos na binocular, e suas mãos no campo operatório, onde os instrumentos necessários são entregues pelo auxiliar. As mãos do clínico responsável pelo procedimento devem ser mantidas em contato com a boca do paciente, sendo que os instrumentos necessitam ser posicionados entre seus dedos de forma exata pelo auxiliar, que se posiciona sentado, a frente do clínico, quando de procedimentos não-cirúrgicos (Figura 1A). Todo procedimento é realizado com auxílio de um espelho bucal que direciona a luz, e, portanto, deve ser seguro pelo clínico, que controla a distância entre o dente e o espelho dependendo da dimensão do instrumento que será utilizado. Condutas cirúrgicas demandam um segundo auxiliar, que se posiciona em pé, ao lado direito do clínico, e acompanha o procedimento por meio de um monitor. Nestes procedimentos, o primeiro auxiliar se incumbe de manter o campo operatório sempre livre de sangramento para que não haja interferência na visibilidade. A ampliação da imagem proporcionada pelo microscópio operatório supera em muito a das lupas de magnificação. Além disso, quanto maior a capacidade de magnificação das lupas, mais pesadas e desconfortáveis ao uso elas se tornam. Aliada ao poder de ampliação, a iluminação constitui uma das mais importantes características do microscópio operatório. A fonte geradora da luz do microscópio gera uma iluminação definida como coaxial. Essa característica elimina a formação de sombras e possibilita a iluminação das porções mais profundas do canal radicular. A fonte de luz pode ser do tipo halógena ou xenon. Uma iluminação amarelada não proporciona documentações de qualidade, sendo a luz branca a mais recomendada. Cabos de fibra óptica conectam as fontes de luz ao microscópio, e um reostato controla a intensidade da iluminação. Como todo instrumento de trabalho, o aprendizado de seu manuseio demanda tempo e treinamento. Evidentemente, até que o clínico se habitue a essa forma diferente de trabalhar, a execução dos procedimentos poderá vir a ser mais lenta. Entretanto, no intervalo de três a seis meses, a capacidade e qualidade de trabalho com o microscópio se efetiva, e o cansaço e o estresse são minimizados em função da nova postura de trabalho exigida pelo microscópio. É bem verdade que o início da utilização do microscópio operatório requer certa dose de persistência e treinamento. Assim, para que esse começo não venha a ser frustrante, certas orientações são recomendáveis, de forma que, gradativamente, seja aumentada a comodidade e proficiência em seu uso. São elas: (1) No laboratório se faz o treinamento de manuseio dos braços articulados, o ajuste da binocular na distância interpupilar, o ajuste do foco pelo manuseio do ajuste da lente objetiva, o acerto da distância focal e melhor adaptação à intensa iluminação coaxial. Este treinamento poderá ser realizado com dentes extraídos; (2) No atendimento de pacientes, devem-se aplicar os ajustes treinados no laboratório restringindo-se no início, à execução de procedimentos mais simples, como observações clínicas, visualização e procedimentos de acesso mais favoráveis; (3) Casos mais complexos, especialmente os cirúrgicos, devem ser realizados quando o operador tiver maior desenvoltura no uso do microscópio; (4) Deve-se empenhar para que, com o passar do tempo, se estabeleça o hábito de utilizar o microscópio durante a execução de quaisquer procedimentos clínicos. APLICAÇÕES DO CONVENCIONAL MICROSCÓPIO OPERATÓRIO NO TRATAMENTO ENDODÔNTICO Nos procedimentos endodônticos não cirúrgicos, tratamento e re-tratamento de canais radiculares, o microscópio operatório permite uma melhor adequação dos procedimentos clínicos, em função do aumento da capacidade visual conferida e da iluminação coaxial. Desde a abertura de acesso, facilita a localização do orifício de entrada dos canais radiculares, mesmo nos casos mais difíceis de serem observados, quando calcificações na câmara pulpar obstruem a entrada desses canais. Estas situações anatômicas alteradas por calcificações induzem erros e acidentes, como perfurações no assoalho da câmara pulpar pela dificuldade de identificação da dentina normal e da calcificação reparadora. Com auxílio do microscópio estas calcificações que obstruem os orifícios de entrada dos canais radiculares podem ser facilmente identificadas, observando-se principalmente a diferença da coloração mais escura da dentina natural do assoalho da câmara pulpar, em contraste com a da dentina terciária, mais clara (Figura 2). Dessa forma, as calcificações podem ser removidas sem danos à estrutura dentária, já que os procedimentos podem ser completamente controlados visualmente pelo profissional. Outras dificuldades adicionais também podem ser minimizadas na seqüência da abertura de acesso coronário, como a identificação de canais extras localizados no assoalho da câmara pulpar de molares ou em canais achatados que tendem a duplicação (Figura 3). O microscópio facilita a leitura visual de istmos e reentrâncias, localizados principalmente nos terços cervical e médio dos canais radiculares tornando possível a remoção mecânica do substrato orgânico remanescente contido nestas variações anatômicas dos canais radiculares (Figura 4). Outras dificuldades freqüentemente associadas ao insucesso do tratamento endodôntico podem ser facilmente contornadas com auxílio do microscópio operatório. Dentre elas podem-se destacar o selamento de perfurações acidentais localizadas no assoalho da câmara pulpar ou nas paredes dentinárias radiculares (Figura 5), bem como de perfurações patológicas provocadas por reabsorções radiculares internas. Nesses casos, a ampliação e iluminação proporcionadas conferem acesso visual ao local da perfuração, permitindo ao operador maior domínio dos procedimentos clínicos de inserção do material de vedamento, o que garante resultados muito mais favoráveis. Também devem ser considerados os tratamentos endodônticos de dentes com rizogênese incompleta (Figura 6) e os tratamentos endodônticos em dentes com anatomia incomum, como dens-in-dente, canais em forma de C, que podem ser acessados e preparados com maior previsibilidade com auxílio do microscópio. A visualização de instrumentos fraturados (Figura 7) e da presença de trincas (Figura 8), da mesma forma, passa a ser viável a partir do auxílio do microscópio operatório, o que favorece a precisão do diagnóstico. A qualificação da dentina que antecede as restaurações coronárias pós-tratamento endodôntico ou o desgaste de pinos de resina no interior dos canais radiculares de dentes tratados endodonticamente e com pouca estrutura dental remanescente, tornam estes procedimentos possíveis, melhor controlados e com uma taxa de sucesso muito mais previsível (Figura 9). Dentre as condições adversas, a que obteve maior impacto nos resultados clínicos foi nos retratamentos endodônticos. A dificuldade na remoção completa de restos de cimento e material obturador que permanecem aderidos nas reentrâncias dos canais radiculares induz ao insucesso do retratamento endodôntico. Uma maior precisão na visualização e identificação deste material remanescente, ainda não removido pelo solvente ou pelos instrumentos endodônticos, torna-se possível pelo acesso visual proporcionado pelo microscópio operatório (Figura 4). DOCUMENTAÇÃO, COMUNICAÇÃO E MARKETING O microscópio clínico odontológico também proporciona outra aplicação extremamente valiosa: a documentação dos casos clínicos. Pode-se obter um completo armazenamento e arquivamento de dados e de procedimentos clínicos por intermédio de periféricos acoplados ao microscópio como câmeras de vídeo e fotográfica. As gravações dos procedimentos executados podem servir como material educativo, além de constituírem amparo legal. A comunicação visual é a mais fácil e amplamente compreendida pelos pacientes, de modo que, pelo monitor de vídeo, pode-se mostrar a presença de cáries, falhas em restaurações, fraturas, presença de placa e de cálculo nas superfícies dentárias (Figura 10). No momento em que se ensina, educa e orienta os pacientes, por intermédio dos recursos do microscópio clínico odontológico, outro aspecto, não menos importante, se faz presente: o marketing. Os pacientes assistem a uma demonstração clara da aplicação de uma tecnologia atual e que propicia resultados. CONSIDERAÇÕES FINAIS Enquanto a utilização do microscópio operatório em especialidades como Periodontia, Dentística, Prótese e Cirurgia Oral Menor, pode ser importante, na Endodontia é fundamental para que os resultados do tratamento se tornem previsíveis, com sucesso e longevidade. Esta conscientização está cada vez mais presente no meio odontológico brasileiro. De acordo com J West (2006), “nos Estados Unidos e Canadá, desde 1997, os cursos de pósgraduação em Endodontia vem capacitando seus alunos ao uso proficiente do microscópio operatório. Segundo estimativa da indústria do setor, 76% dos endodontistas americanos possuem microscópios em suas clínicas particulares. Por outro lado, o percentual de clínicos gerais que utilizam o microscópio é estimado em apenas 1%. A Faculdade de Odontologia da Universidade de Washington, em Seatle, foi a primeira dos Estados Unidos e no mundo a proporcionar o ensino da microscopia clínica aos alunos do curso de graduação, com a previsão de que esses dentistas façam parte da 1ª geração de graduandos capacitados para exercer a clínica odontológica com microscopia operatória”. No Brasil, a disciplina de Endodontia da Faculdade de Odontologia de Piracicaba, da Universidade de Campinas (UNICAMP) foi pioneira no ensino da microscopia oral, com a criação do Centro de Estudos em Microscopia Oral (CEMO), no final do ano de 1995. Desde então, incluiu o ensino da microscopia odontológica nos currículos de seus cursos de pós-graduação (especialização, mestrado e doutorado) na Área de Endodontia, tanto para procedimentos convencionais quanto cirúrgicos. Outras importantes escolas no Brasil aderiram ao ensino de microscopia operatória em seus cursos de especialização. Em breve, a microscopia clínica será parte obrigatória das grades curriculares dos cursos de Odontologia pois o microscópio clínico representa uma alavanca extraordinária ao avanço da Endodontia. Nesse sentido, os dizeres de West (2006) se fazem apropriados: ...”o uso do microscópio não transformará um bom dentista em um dentista brilhante, mas fará com que ambos se tornem melhores, pois poderão enxergar melhor”. B A Figura 1. Procedimentos clínicos sendo realizados com auxílio de microscópio, podendo-se observar a posição ergonômica dos operadores determinada pela forma de trabalho ditada pelo microscópio operatório. B A Figura 2. Desobstruções de calcificações (A) e visualização de desgastes de acesso aos canais radiculares (B). A B C Figura 3. Localização de canais extras em primeiros molares superiores (Cortesia: Dr. Patrick Baltieri [B,C]). B A Figura 4. A C B D Figura 5. Radiografia evidenciando molar inferior com área radiolúcida na região da furca (A), e imagem clínica do assoalho da câmara pulpar mostrando perfuração na parede radicular da raiz distal (B). Preenchimento do local da perfuração com MTA (C), e aspecto radiográfico 8 meses após o procedimento (D) (Cortesia: Dr. Batista). A C B Figura 6. Aspecto radiográfico de incisivos centrais superiores com rizogênese incompleta evidenciando lesão periapical decorrente de traumatismo (A); radiografia evidenciando o fechamento dos ápices radiculares após utilização de medicação intracanal (B), fotografia clínica obtida com o auxílio do microscópio operatório revelando a barreira apical formada (Cortesia: Dr. Alexandre Augusto Zaia). A B Figura 7. Instrumento endodôntico fraturado no interior do canal radicular, visualizado em diferentes magnificações (A, B). A B Figura 8 . Fotografias clínicas em magnificações distintas (A,B), em que foi possível identificar a presença de trinca dirigindose da região proximal distal de molar superior ao assoalho da câmara pulpar (Cortesia: Dr. Patrick Baltieri). Figura 9.: Visualização do interior do canal radicular durante o processo de desgaste de pino de fibra de vidro (Cortesia: Dr. Patrick Baltieri). A B Figura 10. Procedimento endodôntico não-cirúrgico visualizado em monitor (A); aparelho de video cassete acoplado ao monitor (B) para registro e arquivamento dos procedimentos executados, que, posteriormente podem ser utilizados com finalidades diversas dentre as quais destacam-se o ensino, a orientação de pacientes e o marketing.