Desconcentração Produtiva Regional no Brasil: algumas contribuições para o debate. Beatriz Tamaso Mioto1 1. Introdução Este artigo tem como objetivo discutir as mudanças na estrutura produtiva regional do Brasil sob a ótica da desconcentração produtiva nacional pós-1970, com base na periodização adotada por Wilson Cano (2008). Como é sabido, o processo de industrialização nos países subdesenvolvidos do continente americano foi assentado em grandes disparidades regionais, internas e externas. No caso do Brasil, essa grande disparidade traduziu-se em forte concentração espacial da indústria no Sudeste até a o final dos anos de 1960, principalmente no estado de São Paulo. A partir da década de 1970, no entanto, observa-se no país um movimento descrito por diversos autores como um processo de desconcentração produtiva nacional que se caracterizou por uma expansão das atividades produtivas nas regiões periféricas do Brasil em um contexto de expressivo crescimento econômico nacional – inclusive da economia paulista. A conjuntura macroeconômica das décadas de 1980-90, contudo, acarretou forte desarticulação das condições internas e externas para o crescimento nacional, em especial no que diz respeito à abertura econômica e à atuação do Estado no desenvolvimento capitalista do Brasil. Nesse contexto, apontou-se ainda para uma desconcentração produtiva industrial, mas pautada em um exíguo crescimento do centro dinâmico, ou seja, mais como efeito estatístico do que como aprofundamento dos nexos regionais e integração do mercado nacional. Os efeitos espúrios desse novo padrão de desenvolvimento neoliberal – como a “guerra fiscal” entre os estados – complexificaram o debate sobre a questão regional e a estrutura produtiva do país, colocando perguntas importantes relativas à “especialização regressiva”, “desindustrialização” e “fragmentação da nação”. 1 Economista pela UFSC e mestranda em Desenvolvimento Econômico no Instituto de Economia da Unicamp. Email: [email protected] O artigo se divide em quatro seções, sendo a primeira essa introdução. Na segunda parte discute-se, em linhas gerais, o processo de concentração espacial da economia brasileira entre 1930 e 1970 e na terceira o processo de desconcentração – virtuosa e espúria – pela qual o país passa entre a década de 1970 até o início do século XXI. Por fim, elaboram-se algumas considerações finais sobre o tema. 2. O processo de concentração industrial no Brasil até a década de 1970 A origem do processo de concentração espacial da economia nacional remonta à formação das economias regionais e ao estabelecimento das relações capitalistas no território brasileiro. Cano (1998), no livro Raízes da Concentração Industrial em São Paulo, articula essas esferas e mostra como aspectos específicos da economia paulista possibilitaram uma acumulação propícia à consolidação da região como centro industrial nacional. Para ele, a capacidade de geração de excedente, o estabelecimento de relações capitalistas de trabalho e de propriedade e o perfil da acumulação alçaram São Paulo à região mais dinâmica do país. Essa argumentação é baseada não apenas na apreciação das condições internas da região, mas também em uma análise das demais regiões do país, cujas características não propiciaram uma acumulação duradoura e capaz de montar as bases de expansão da indústria. O autor destaca, por exemplo, a diferença na dimensão da propriedade agrária e das relações de trabalho do Nordeste, do Sul e de São Paulo como pontos centrais da discussão. Ele mostra como a propriedade da terra assentada no latifúndio e a preponderância de relações pré-capitalistas de trabalho no Nordeste permitiram apenas surtos de crescimento e que, a partir disso, a débil indústria formada antes de 1930 enfrentou forte concorrência de São Paulo (principalmente no caso do algodão). Já o caso oposto é observado no Sul do Brasil, onde há desconcentração da produção e do excedente assentados em uma estrutura fundiária de pequenas propriedades. Diante dessa pulverização e apesar da região apresentar atividades diversificadas, não foi possível uma concentração suficiente de capital capaz de produzir em maior escala e extrapolar os limites da economia local e regional. O Rio de Janeiro também não logrou o posto de centro industrial do país a partir do momento em que a economia cafeeira da região – assentada no trabalho escravo – tornou-se decadente2. Ademais dos condicionantes dessas regiões apontarem para caminhos diversos na formação do mercado nacional e no processo de divisão territorial do trabalho, cabe ressaltar também as características da economia paulista que permitiram o surgimento de uma maior acumulação e uma indústria mais dinâmica, figurando o que Cano chamou de complexo cafeeiro que articulava desde os produtores de café, comerciantes, bancos, produtores de alimentos, trabalhadores até o governo. Nesse sentido, ainda que a economia regional estivesse assentada no café – como no caso da economia fluminense – é relevante o fato de que grande parte de sua força de trabalho era livre. Mesmo que, em princípio, a relação de trabalho não fosse baseada exclusivamente no assalariamento, a conformação da economia paulista sob essas bases permitiu a expansão do seu mercado interno e a diversificação de suas atividades. Isso acarretou não só o fortalecimento da atividade cafeeira como também permitiu que parte do excedente galgasse as fronteiras da produção de café em direção ao setor urbano e industrial. Essas características propiciaram, portanto, um crescimento das indústrias da região anterior à década de 1930, que edificou a posição da economia paulista no cenário da integração nacional. Isso se traduziu em uma concentração espacial da produção, principalmente daqueles bens mais elaborados e industrializados. Esse processo, como alerta Cano (1998), apresentou diversas conseqüências para as demais regiões do país, que, segundo o autor, podem ser entendidas com base nos efeitos de inibição/bloqueio, estímulo e destruição3 que a articulação e a concorrência com São Paulo acarretaram. O que cabe ressaltar é o fato de que, para o autor, essa concentração industrial em território paulista difundiu muito mais os efeitos de estímulo para a periferia nacional do que efeitos de destruição, principalmente em um contexto de integração nacional e crescimento do mercado interno. Isso pode ser visto também a partir do aprofundamento da divisão territorial do trabalho em nível nacional e pela própria 2 A economia fluminense apresenta como fatores principais de sua decadência o aumento do preço de escravos, a expansão da fronteira de cultivo e o aumento dos custos de transporte. Esses elementos não permitiram uma acumulação capaz de manter o ritmo de crescimento de sua indústria alcançado até o momento na região. 3 Para detalhes sobre esses efeitos ver Cano (1998). dinâmica espacial do capitalismo e da industrialização que, historicamente, é concentradora de valor e força de trabalho. A tabela abaixo mostra a participação das regiões e estados no Valor de Transformação Industrial (VTI) nacional. Pode-se notar o forte ritmo de concentração relativa do VTI no estado de São Paulo, principalmente a partir da década de 1930 em que o processo de industrialização nacional é efetivado. Indústria de Transformação: participação das regiões no Valor de Transformação Industrial (VTI) 1919-1970 Ano Região/estado 1919 1939 1949 1959 1970 1,47 1,11 0,74 0,94 0,82 16,05 10,91 9,12 6,89 5,74 0,84 0,35 0,3 0,33 0,24 PE 6,6 5,51 4,48 2,6 2,15 BA 3,59 1,41 1,29 1,17 1,54 CE,RN,PB,AL,SE 5,02 3,65 3,05 2,25 1,81 MG 5,44 7,58 6,57 5,78 6,46 ES 0,46 0,31 0,49 0,26 0,47 RJ 7,48 5,56 6,39 7,2 5,79 GB 20,07 19,95 14,18 10,38 9,71 SP 32,23 40,74 48,85 55,55 58,23 PR 3,38 2,33 2,86 3,2 3,08 SC 1,92 2,08 2,39 2,19 2,57 RS 10,68 9,08 7,89 6,97 6,34 CO 0,37 3,35 0,52 0,64 0,79 67,77 59,26 51,15 44,45 41,77 Norte Nordeste MA,PI BR-SP Fonte: IBGE - Censo Industrial (vários anos) apud Cano (1998a) Outro período que deve ser marcado por apresentar uma onda de concentração é também o da industrialização característica da década de 1950, cujo perfil setorial – bens de capital e bens de consumo durável de maior densidade tecnológica e maior escala de produção – só poderia apoiar-se na estrutura industrial que fora forjada em São Paulo até esta década. Não é trivial ressaltar também a importância das ações do Estado Nacional, que além de coordenar grande parte dos investimentos e ser relevante no financiamento dos mesmos, também atuou nos setores estratégicos de grande escala através de suas empresas. Como destaca Cano (2008), Nossa industrialização, que atingiria seu apogeu entre 1967 e 1974, embora se desse de forma concentrada, alterou as estruturas produtivas e mercantis da periferia nacional, desencadeando importantes efeitos de complementariedade entre ela e São Paulo. A indústria paulista entre 1930 e 1970, efetivamente obteve a mais alta taxa de crescimento no país, mas aquela complementariedade fez que as taxas da periferia também fossem altas, apenas um pouco menores do que as de São Paulo. Dessa forma, o mútuo crescimento de São Paulo e do restante do país, além de acelerar a integração do mercado interno, reforçava os elos regionais do processo nacional de desenvolvimento (p.36) A economia paulista, por conseguinte, comandou a expansão industrial e o processo de acumulação de capital nacional, impondo diversos efeitos para a articulação e integração das unidades federadas. Isso se expressou na expansão das fronteiras – agrícola, mineradora, urbana e até industrial – e no crescimento econômico das regiões periféricas (mesmo com os efeitos de inibição e destruição, como colocado anteriormente). Esse perfil espacialmente concentrado da economia brasileira gerou forte debate, tanto no âmbito das políticas de desenvolvimento regional para as regiões mais pobres, como também da discussão sobre os determinantes de uma desconcentração produtiva nacional que começou a dar sinais no final dos anos 1960. Ela se aprofunda a partir dos anos 1970 – em um contexto de crescimento generalizado – e assume papel importante no debate dos anos 1980 e 1990 – nos momentos de profunda crise e adoção do neoliberalismo enquanto doutrina da política econômica nacional. 3. O Debate acerca da Desconcentração Espacial da Produção O tema da desconcentração produtiva no país ganhou corpo a partir do debate de seus determinantes tomados sobre diversas perspectivas teóricas. De um lado os economistas que consideravam a desconcentração predominantemente como fruto de um trade off das vantagens aglomerativas versus custos locacionais. E, de outro lado, aqueles que, de uma perspectiva histórica, interpretaram a desconcentração a partir dos movimentos da economia nacional, contendo em sua análise fatores como o perfil setorial do investimento nos períodos, a forma de inserção externa do país e da atuação do Estado nesse processo4. Sob o primeiro marco está a idéia de que as firmas se aglomeram pela possibilidade de obter vantagens em termos de: economias de escala, internas à firma; economias de localização, que estão relacionadas à possibilidade de ganhos, difusão e diminuição de custos e são internas ao setor; e as economias de urbanização, na qual as empresas desfrutam das externalidades positivas geradas pela aglomeração de pessoas, idéias, serviços, etc. Essas vantagens, no entanto, exercem uma pressão crescentes nos custos das empresas, já que o aumento das cidades e das aglomerações urbanas está positivamente relacionado ao aumento dos custos de transporte, serviços, mão-de-obra, terrenos, meio-ambiente, etc. Pacheco examina a interpretação de Azzoni dessa forma, Segundo o autor, as decisões locacionais são determinadas tanto por fatores aglomerativos, que definem o grau de concentração regional da atividade econômica; quanto por custos associados a essas decisões, que são crescentes segundo o tamanho das cidades (p.240) É a partir dessa interpretação que Azzoni analisa a interiorização da indústria em São Paulo a partir da década de 1970, onde, para ele, o aumento dos custos na metrópole acarretou um deslocamento da indústria em direção ao interior, sem que esse movimento afastasse as empresas do centro de produção e controle da região metropolitana. Isso significa que o campo aglomerativo de São Paulo transcende esse espaço, permitindo a diminuição dos custos e apropriação das vantagens locacionais. Daí a idéia de “desconcentração concentrada” da economia brasileira sem reversão da polarização da metrópole de São Paulo. Também é nesses elementos que Diniz e Lemos5 buscam explicação para o fenômeno. Para eles, é justamente por essa “relação de custos” que se torna possível pensar teoricamente o problema, Ou seja, embora complexa e dependente de várias variáveis, a desconcentração tende a ser teoricamente possível, ficando na dependência da combinação ‘economias de aglomeração’ mais 4 Pacheco (1996) em sua tese doutoral faz um balanço das principais interpretações do problema e coloca essas duas interpretações. 5 DINIZ, C,C. e LEMOS, M, B. Dinâmica Regional e suas Perspectivas no Brasil. In: Para a Década de 90: prioridades e perspectivas de políticas públicas. IPEA-IPLAN, Brasília, 1989, vol.3, p.161-199. ‘economias de desaglomeração’ em cada região do espaço econômico (DINIZ, C. LEMOS, M. 1989, Apud PACHECO, 1996) Ao contrário de Azzoni, esses autores identificam uma desconcentração espacial produtiva efetiva no país com reversão de polarização da metrópole de São Paulo. Essa tese de reversão da polarização é bastante polêmica, já que, tanto para Azzoni como para Pacheco e Cano, a interiorização da indústria em São Paulo não conseguiu diminuir o papel centralizador da metrópole. De forma sintética, o que se deve ressaltar dessas interpretações é o seu viés reducionista, uma vez que o simples cálculo econômico realizado entre custos locacionais é insuficiente para entender a dinâmica da desconcentração produtiva regional no Brasil. Muito mais fértil é a interpretação que articula esses determinantes sob a ótica da empresa à dinâmica econômica nacional em um sentido mais amplo. Aqui adotamos a análise de Pacheco6 (1996) para sintetizar os determinantes dessas abordagens. Ponto importante para a discussão é a sua colocação de que, Na verdade, a construção do espaço econômico nacional só pode ser totalmente entendida no âmbito do processo de integração do mercado interno e da política econômica, latu sensu. As empresas, neste sentido, não se movem num vazio. Foi o Estado, especialmente no caso brasileiro, através do câmbio, do crédito, dos inúmeros incentivos e diferenciais tribuitários, além da infra-estrutura, que auxiliou a moldar as condições de desenvolvimento regional recente. Todas sobredeterminadas pela historia prévia das regiões, notadamente de seu ‘núcleo’ industrial, quer do ponto de vista do potencial de acumulação, quer em termos das trajetórias de desenvolvimento e urbanização de cada região (p.260). Portanto, pode-se dizer que a produção capitalista do espaço no Brasil contou com forte presença do Estado, principalmente no âmbito da produção de formas espaciais para intensificar a circulação de mercadorias e pessoas e diminuir seus custos. Como coloca Harvey (2006) “... a redução nos custos de realização e circulação ajuda a criar espaço novo para a acumulação de capital” (p.50). Nisso se inscreve a desconcentração espacial da produção, principalmente a partir da ascensão do modo de produção flexível. 6 O autor usa como base analítica as perspectivas de Wilson Cano, Barjas Negri, Clélio Campolina Diniz e Leonardo Guimarães. Nesse sentido, Pacheco (1996) sintetiza os determinantes da desconcentração de forma bastante abrangente, onde se destaca, sobremaneira, o papel do Estado na economia nacional. Para ele7, Os determinantes dessa desconcentração relativa foram muitos: o deslocamento da fronteira agrícola e mineral; o processo de integração produtiva do mercado nacional; o perfil relativamente desconcentrado do sistema urbano brasileiro; o surgimento das ‘deseconomias de aglomeração’ e pressões ambientais nas áreas mais intensamente industrializadas; as próprias políticas de governo – a política econômica, as diversas diretrizes setoriais e as políticas de desenvolvimento regional – e o investimento do setor produtivo estatal; e, por fim, já na última década, os impactos diferenciados que a crise econômica e a orientação exportadora, bem como o ajuste microeconômico das novas formas de organização da grande empresa, assumiram em cada região. (p.236) Como se pode perceber, a desconcentração é mais complexa do que o simples cálculo econômico das empresas na decisão de onde localizar sua produção. Ela envolve a atuação das classes e suas frações no território, tendo como principal expressão disso a atuação do Estado na política econômica e regional do país8. As duas subseções seguintes tratam de pontos específicos da estrutura produtiva regional do Brasil a partir da periodização de Cano (2008), que contempla dois grandes períodos: o da desconcentração virtuosa (1970-1980) e o da desconcentração espúria (1980-1989/1990-2005). 3.1. A Desconcentração Virtuosa Para Cano (2008), a desconcentração produtiva nacional pode ser divida em três grandes períodos. O primeiro se inicia nos anos 1970 e está ligado a uma diversificação e um salto quantitativo e qualitativo da base industrial do país. Nesse momento, em um contexto de fortes investimentos públicos e privados, a periferia obteve um crescimento superior ao pólo do sistema, aprofundando a complementariedade entre as regiões brasileiras. 7 Ver quadro ilustrativo em Pacheco (1996) p.254, onde o autor faz uma síntese dos determinantes da desconcentração produtiva conforme tratado para cada autor. Adotou-se como base àqueles elaborados por esse autor por considerá-los uma síntese dos demais. 8 Aqui, conforme Harvey (2006), consideramos o Estado como uma expressão da estrutura da sociedade e da dominação de classe, que tem a função básica de desempenhar certas tarefas de apoio ao modo capitalista de produção. O efeito disso foi também uma expansão da indústria na periferia e um crescimento dos setores primário e de serviços, os quais serviam também à aceleração da urbanização em todo território. É importante lembrar que um dos vetores da desconcentração foi o crescimento do interior paulista, pautado na dispersão das atividades na Região Metropolitana de São Paulo. Essa desconcentração foi denominada pelo autor como virtuosa, pois além de aprofundar os laços industriais entre as regiões, ocorreu em um período de intenso crescimento da economia nacional. Também contribuiu para isso os investimentos do II PND, que – nos setores de mineração, transporte, comunicações, etc. – distribuíram algumas atividades no território. A tabela abaixo mostra a variação do PIB setorial do Brasil e de São Paulo, assim como a participação do estado no PIB nacional. Fica claro que, mesmo com a perda relativa da participação de São Paulo na produção nacional e menor taxa de crescimento do estado em relação ao resto do Brasil, São Paulo ainda sustentou taxas de crescimento relevantes. Isso confirma a hipótese de Wilson Cano, onde, na década de 1970, a desconcentração ocorre por um maior crescimento da periferia nacional em relação à economia paulista. Essa desconcentração, como aponta os dados, foi predominantemente industrial, já que as maiores diferenças entre as taxas nacional e paulista foram nos setores secundário e indústria de transformação (agroindústria, mineração, metalurgia básica e infra-estrutura). Variação anual média do PIB do Brasil e de São Paulo 1970-1980 (%) Setores Brasil São Paulo Participação SP/BR 1970 1980 Primário 3,8 3,6 18,0 14,2 Secundário 9,3 7,4 56,4 47,3 Ind. De transformação 9,0 8,1 58,1 53,4 Terciário 8,0 7,9 35,0 34,8 Fonte: Dados Brutos do IBGE. Apud Cano (2008) Cabe ressaltar que, em contra partida, houve um forte processo de concentração espacial da população, onde as migrações internas até os anos 1980 foram no sentido de concentrar população nas regiões onde os processos de industrialização e urbanização tinham maior fôlego – os movimentos mais importantes nesse sentido foram o Nordeste-Sudeste e aqueles em direção às metrópoles regionais (BAENINGER, R. A.; CUNHA, J.M.P, 2007). Paul Singer (1998) mostra que as bases estruturais da sociedade capitalista industrial – pautada em grande medida na divisão social do trabalho entre campo e cidade, na urbanização, na necessidade de especialização e concentração de atividades, na demanda por uma infra-estrutura urbana e na formação e crescimento do mercado – impelem grupos sociais a se colocarem em movimento. Nesse sentido, o “motor” principal das migrações é a criação das desigualdades regionais, principalmente quando observadas num contexto de forte êxodo rural em contrapartida a uma urbanização caótica. Esse, portanto, foi o momento em que a periferia é articulada ao centro através da demanda crescente deste por matérias-primas, alimentos e minérios. Somam-se a isto os diversos projetos regionais que foram conduzidos no período, culminando num crescimento desconcentrador em que não há perdedores em valores absolutos. Cabe destacar que as questões de cunho social não foram resolvidas, mas puderam ser amortecidas no contexto de altas taxas de crescimento, em um momento que ainda era possível à população rural e empobrecida acessar alguns dos “benefícios” do crescimento urbano industrial. 3.2. A desconcentração espúria O segundo e o terceiro período destacados por Cano (2008) se referem aos anos 1980 e 1990, em um cenário econômico completamente distinto, de crise profunda da economia brasileira – expressa em grande medida pela crise da dívida e pelo aprofundamento do neoliberalismo. Nossa economia passa por uma forte desarticulação, enfrentada com golpes restritivos na política econômica. Há que considerar também que neste período o Estado é fortemente “atacado”, sendo afetada sua capacidade de investimento e financiamento inclusive via empresas estatais. Isso se aprofunda ainda mais nos anos 1990 com o triunfo do projeto neoliberal no país. Isso mudou consideravelmente o quadro da desconcentração produtiva regional que, apesar de ter se mantido, o fez baseado em outros termos, tanto por sua desaceleração como pelo seu caráter. Deve-se ressaltar que a primeira metade dos anos 1980 ainda sofria os efeitos da desconcentração promovida pelos investimentos do II PND. No entanto, com o aprofundamento da crise o movimento de desconcentração passa a ser distinto. A tabela abaixo mostra, em primeiro lugar, um forte arrefecimento da economia nacional, onde as taxas de crescimento dos setores são bastante inferiores às taxas de crescimento dos anos 1970. No entanto, o que salta à vista, é que, nesse contexto, São Paulo apresentou queda ainda maior, afetando inclusive fatores de complementaridade que impulsionavam a desconcentração do período anterior. Variação anual média do PIB do Brasil e de São Paulo 1980-2004 (%) Participação Brasil Setores São Paulo SP/BR 1980/1989 1989/2004 1980/1989 1989/2004 1980 1989 2004 Primário 3,2 4 3,5 3,1 14,2 14,4 21,3 Secundário 1,2 1,9 0,5 0,9 47,3 44,7 Ind. de transformação 0,9 1,7 0,2 1 53,4 49,9 39,9 Terciário 3,1 2,5 2,2 1,8 34,8 36,1 31,5 Total 2,2 2,4 1,5 1,8 37,7 37,8 30,9 34 Fonte: Dados Brutos do IBGE. Contas Nacionais para Brasil 1980 e 1989 e Contas Regionais para Brasil e SP para 1989 e 2004 Apud Cano (2008) Ressalta-se também o perfil dessa crise, que comprometeu em grande medida os setores secundário e indústria de transformação, carros-chefes na expansão dos anos anteriores. Se de um lado o crescimento desses setores foi pífio, de outro os setores ligados ao esforço exportador pelo qual passava o país no embate da crise da dívida, dos desequilíbrios externos e da inflação, foram os que apresentaram um crescimento menos medíocre (produtos agroindustriais, minerais, insumos básicos, petróleo e álcool, etc.). Esses dois movimentos podem ser vistos na diminuição da participação de São Paulo em todos os setores, exceto o no setor primário. Cano (2008) sustenta, portanto, que a desconcentração industrial nos anos 1980 apresentou um forte caráter estatístico, uma vez que ela deve ser reconhecida como resultado da crise e seus impactos de maneira mais contundente no centro do que na periferia nacional. Há, por conseguinte, não apenas uma desaceleração do processo de desconcentração (principalmente entre 1985-89) como também uma piora em termos qualitativos nesse processo, caracterizando a desconcentração desse período como espúria. Os anos 1990 e o início do século XXI foram de implantação e aprofundamento do receituário neoliberal na economia brasileira. Além das políticas restritivas que vinham desde a década anterior, somou-se à nossa dinâmica a brusca abertura econômica promovida pelo governo Collor. Nesse momento, o Brasil reitera consideravelmente seu papel na divisão internacional do trabalho, se configurando como fornecedor de bens primários e intermediários e obedecendo, com maior contundência, às variações da economia mundial. Isso aprofundou os laços de dependência do país, principalmente em relação ao crescente setor financeiro mundial. Além disso, como é sabido, o Estado burguês passa a cumprir outro papel na dinâmica econômica nacional, onde perde espaço de intervenção e ganha fôlego o gerenciamento do movimento do capital ainda mais internacionalizado no espaço brasileiro. A tabela acima mostra não apenas a queda do crescimento como também a trajetória regressiva de que se ocupa nossa economia desde a metade dos anos 1980 e durante os anos 1990. Outro debate que permeia essa questão é o da relativa desindustrialização da economia brasileira que, diferentemente do que ocorreu nos países desenvolvidos, se deu em um contexto de baixo crescimento econômico, baixo nível de emprego e de renda per capta, com aumento de um terciário que contém em si as características de uma economia heterogênea (IEDI, 2005). Cabe ressaltar também o chamado efeito China dessa estrutura, já que o crescimento desse gigante puxou fortemente as exportações brasileiras do setor primário (agroindústria e matérias-primas) e, em certa medida, a indústria de transformação (metais não ferrosos, celulose e auto-peças) no início do novo milênio. Como indica Cano (2008), a trajetória da economia brasileira a partir dos anos 1990 reafirma vários componentes da chamada desconcentração espúria, já que o crescimento relativo de alguns setores continuou tendo como base o fraco desempenho da economia paulista. A suposta convergência da renda nacional média por habitante é mais uma expressão disso, uma vez que somado ao baixo crescimento da renda média nacional a estagnação desse indicador em São Paulo fez com que, relativamente, as rendas médias por habitantes nas outras regiões crescessem. A renda média por habitante, como apontaram os dados trabalhados por Cano (2008), sofreu uma queda absoluta, mostrando que, assim como os indicadores da desconcentração, a convergência da renda média a partir dos anos 1980 também deve ser relativizada. Diferenças regionais da renda média por habitante 19702004 (Brasil = 100) Regiões e Ufs 1970 1980 1990 2000 2004 NO(1) 58 65 73 60 97 NE 40 42 44 47 51 MG 68 84 86 92 90 ES 71 87 94 107 106 RJ 166 143 124 148 150 SP 207 179 172 154 141 PR 75 92 109 106 110 SC 88 109 121 122 125 RS 122 123 130 129 137 CO(1) 55 67 81 75 87 DF 184 156 149 221 196 Fonte: FGV/FIBGE – Censo Demográfico e Contas Nacionais Apud Cano (2008) * Exclui DF; inclui TO em 1939-1970. ** Inclui TO a partir de 1990. Por último, de forma bastante breve, cabe destacar a dinâmica das regiões e estados nesse processo, mostrando quais deles “ganharam” ou “perderam” no movimento de desconcentração industrial no país9. A tabela abaixo apresenta dados da participação regional das UFs e regiões no total do PIB brasileiro em todo o período analisado: 9 Apreciações setoriais bastante detalhadas se encontram em Cano (2008) e, para estados específicos como Paraná e Espírito Santo, em Funari (2008) e Gomes (2008) respectivamente. Participação Regional no PIB Total (Brasil = 100%) 1939-2004 Anos Grandes Regiões 1939 1949 1959 1970 1980 1985 1989 1995 2000 2004 2,6 1,7 2,0 2,2 3,2 3,8 4,9 4,6 4,6 5,3 NO* 16,7 13,9 14,4 12,0 12,2 14,1 12,3 12,8 13,1 14,0 NE 10,0 10,4 7,9 8,3 9,4 9,6 9,6 9,7 9,6 9,4 MG 1,2 1,3 0,8 1,2 1,5 1,7 1,7 2,0 2,0 1,9 ES 20,9 19,5 18,5 16,1 13,6 12,7 10,3 11,5 12,5 12,6 RJ 13,2 36,4 37,9 39,5 37,7 36,1 37,8 35,5 33,7 30,9 SP 2,9 4,0 5,4 5,5 5,9 5,9 6,3 5,9 6,0 6,1 PR 2,2 2,5 2,4 2,8 3,3 3,3 4,2 3,6 3,8 4,0 SC 10,2 8,6 8,4 8,7 8,1 7,9 8,2 8,3 7,8 8,1 RS 2,1 1,7 2,3 2,7 3,6 3,4 3,3 4,0 4,3 5,0 CO** 1,0 1,5 1,4 1,5 2,0 2,7 2,5 DF Fonte: FGV apud Cano (2008). *NO inclui TO a partir de 1980 **CO exclui DF e inclui TO entre 1939-80. Como já foi analisado, até o final dos anos 1960 houve uma forte concentração da produção no estado de São Paulo e, a partir de então, o estado começa a perder participação no PIB total do Brasil. Nos anos 1970, num contexto já descrito de forte crescimento, a periferia cresce mais acentuadamente e amplia os nexos inter-regionais com São Paulo e, principalmente as regiões Nordeste, Norte e Contro-Oeste (com forte expansão da fronteira agrícola) aumentam sua participação. Nesse sentido também estão os estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná e Santa Catarina. Essa expansão, como já vimos, esteve bastante relacionada com o aumento da participação da indústria nessas regiões. Ela continua até 1985, período em que a maturação dos investimentos realizados na década de 1970 se efetivava. Mesmo que sejam os mesmos estados e regiões que continuem ganhando participação a partir de 1985 há uma mudança qualitativa nesse processo. Os estados que mais crescem foram Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina e a região Centro-oeste. Todos eles apresentaram destaque nas atividades relacionadas ao esforço exportador (agroindústria, matérias-primas, insumos, recursos naturais, etc.). É importante notar também que a descentralização de decisões em favor de estados e municípios ocorrida no período abriu caminho para uma das mais perniciosas manifestações da falta de coordenação de uma lógica nacional integrada: a guerra fiscal. Além disso, houve uma crescente orientação da produção para o exterior, como resposta à falta de dinamismo da economia doméstica, quebrando alguns nexos regionais. Esta apatia econômica ainda é responsável pelos crescentes índices de desemprego, expansão do mercado informal e quebra de cadeias produtivas. A guerra fiscal contribuiu para dispersar as atividades nos estados, mas de forma bastante limitada e vinculada ao enfraquecimento ainda maior da capacidade do Estado nacional coordenar o processo de desenvolvimento e pensar a questão regional. 4. Considerações Finais Este artigo teve como objetivo colocar alguns elementos para o debate da desconcentração produtiva regional no Brasil nos dois grandes períodos destacados por Wilson Cano, o da desconcentração virtuosa e da desconcentração espúria. Para tanto, destacaram-se diversos fatores determinantes do processo, ligados principalmente à dinâmica da economia nacional e sua forma de inserção internacional durante esses períodos. Dentre tais fatores está a forma de intervenção do Estado na economia do país. De agente ativo do desenvolvimento capitalista, passa a gestor das condições macroeconômicas para a atuação cada vez mais liberalizada do capital privado nacional e internacional em nosso espaço. Nesse sentido, Tânia Bacelar de Araújo (1995) também destaca que, de um lado tem-se uma primazia da chamada integração competitiva da economia nacional com o exterior, onde se priorizam os focos exportadores distribuídos pelo país e, de outro, aumenta-se a concentração dos investimentos nas áreas mais dinâmicas onde estão localizados os elementos necessários à acumulação flexível (mão-de-obra especializada, proximidade aos centros geradores de conhecimento e tecnologia, proximidade de mercados consumidores de mais alta renda, etc.). Isso se acentua ainda mais com a atomização das decisões de investimento e da apologia sistemática às saídas “localistas” para os problemas regionais do país. Pacheco também destaca outro fator importante para entender a dinâmica regional desse período, isto é, o aumento das desigualdades intra-regionais. O autor sustenta que com a desconcentração espúria houve um aumento da heterogeneidade dentro das regiões do país, aumentando a diferença interna da renda, mesmo quando convergente em termos nacionais. Isso mostra a natureza ainda mais desigual do padrão de desenvolvimento adotado a partir da década de 1980, em especial se somado aos resultados perversos da guerra fiscal entre os estados. Nas suas palavras, ... a inserção do país neste novo contexto será amplamente diferenciada, alimentando ainda mais as desigualdades. Não, talvez, da forma tradicional como estas desigualdades se materializaram no decorrer das últimas décadas, mas provavelmente com o aumento maior dos diferenciais intra-regionais, salientando a profunda assimetria deste novo estilo de crescimento da economia mundial e alimentando, igualmente, bolsões novos de pobreza em áreas anteriormente prósperas. É a isto que me refiro como tendência à fragmentação da economia nacional, pela quebra dos laços de solidariedade econômica que existiam entre as regiões brasileiras e que manifestavam um enorme potencial de crescimento nas fases de aceleração cíclica. (PACHECO, 1996, p.310) Apesar de ser considerada uma tese por vezes extremada, ela contém elementos importantes e necessários para reflexão do problema das desigualdades. Um exemplo disso é o crescimento das cidades médias em detrimento do arrefecimento do crescimento das metrópoles. Esse fenômeno, ao invés de ter apontado para uma diminuição das desigualdades tem gerado, em graus distintos nas diferentes localidades, uma periferização de sua população e problemas sociais tão graves quanto àqueles presentes tradicionalmente nas grandes metrópoles. Outro exemplo são os “enclaves exportadores”, que geralmente estão atrelados à produção de insumos e matérias-primas direcionados ao mercado exterior e não geram grandes articulações setoriais ou crescimento para seu entorno. No sentido propositivo da análise do problema, há forte convergência nas interpretações de Araújo, Cano e Pacheco, já que para solucionar e mitigar os problemas advindos da crise e desse padrão de desenvolvimento, a volta da atuação do Estado nacional no desenvolvimento capitalista do Brasil em termos NACIONAIS – em contraposição às iniciativas restritivamente e exclusivamente locais – é mais que necessária. Cabe aqui a pergunta se isso seria suficiente, já que historicamente a atuação do Estado permitiu um crescimento concentrador, que apenas respingou em grande parte da população brasileira. Além disso, não há como pensar o desenvolvimento nacional fora dos marcos da inserção internacional do Brasil, que, mais do que nunca mostra suas características de país subdesenvolvido e dependente. Se houvesse uma saída em âmbito regional para o problema, seria necessário pensar em alternativas de desenvolvimento e diminuição da heterogeneidade de todo o continente. A intenção de ampliação dos laços de solidariedade entre as regiões, nesse sentido, deveria extrapolar as fronteiras nacionais. Referências ARAÚJO, T. B. Dinâmica Regional Brasileira: rumo à desintegração competitiva? In Anais do Encontro Nacional da ANPUR, Recife: Anpur, 1995. BAENINGER, R. A.; CUNHA, J.M.P. Las migraciones internas en el Brasil contemporáneo. Notas de Población, Santiago do Chile v. 82, p. 33-67, 2007. CANO, W. Desconcentração Produtiva Regional do Brasil 1970-2005. Campinas, UNESP, 2008. _________. Raízes da Concentração Industrial em São Paulo. 4ª ed.. 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