UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM INDÍCIOS SINCRÔNICOS DE GRAMATICALIZAÇÃO: O USO DO VERBO CHEGAR EM ORAÇÕES COORDENADAS E NA PERÍFRASE VERBAL [CHEGAR (E) + V2]: CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DE GRAMÁTICA AURICÉLIA DE MACEDO NATAL 2008 2 INDÍCIOS SINCRÔNICOS DE GRAMATICALIZAÇÃO: O USO DO VERBO CHEGAR EM ORAÇÕES COORDENADAS E NA PERÍFRASE VERBAL [CHEGAR (E) + V2]: CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DE GRAMÁTICA Por AURICÉLIA DE MACEDO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Lingüística Aplicada. Orientadora: Tavares. NATAL 2008 Profª Drª Maria Alice 3 AURICÉLIA DE MACEDO INDÍCIOS SINCRÔNICOS DE GRAMATICALIZAÇÃO: O USO DO VERBO CHEGAR EM ORAÇÕES COORDENADAS E NA PERÍFRASE VERBAL [CHEGAR (E) + V2]: CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DE GRAMÁTICA Dissertação de Mestrado, defendida por Auricélia de Macedo, aluna do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, na área de Lingüística Aplicada, aprovada pela banca examinadora. Apresentada em: ___/___/___ BANCA EXAMINADORA ___________________________________ Profa. Dra. Maria Alice Tavares Universidade Federal do Rio Grande do Norte Orientadora ___________________________________ Profa. Dra. Maria Medianeira de Souza Universidade Estadual do Rio Grande do Norte Examinador externo ____________________________________ Profa. Dra. Maria Angélica Furtado da Cunha Universidade Federal do Rio Grande do Norte Examinador interno 4 Dedico este trabalho a Vinicius, porque, apesar das dificuldades, não imagino a vida sem você. 5 AGRADECIMENTOS À professora Maria Alice Tavares, em primeiro lugar, pela orientação, ao mesmo tempo tranqüila e segura, pelo estímulo e a dedicação. À Maria do Céo, pela amizade leal e sincera e por acreditar no meu potencial. À Aurizete, pelo apoio sincero que só uma grande irmã pode oferecer. À minha mãe, Maria, pela compreensão, porque sem seu apoio este trabalho não seria possível. Agradeço. 6 RESUMO Com base no referencial teórico do Funcionalismo Lingüístico norte-americano, nossa proposta é descrever e analisar o uso do verbo CHEGAR em perífrases verbais do tipo [CHEGAR (E) + V2], em que CHEGAR não manifesta significado ligado a movimento físico. Na literatura lingüística, a tais perífrases têm sido atribuídas funções variadas, relacionadas à aspectualização, à ênfase de trechos narrativos e à construção de espaços mentais, entre outras. Neste estudo, consideramos que a função do verbo CHEGAR nas perífrases em questão é indicar aspecto global, ressaltando um leque de nuanças semântico-pragmáticas como o caráter repentino, instantâneo ou até brusco do evento referido pelo verbo principal da construção (V2), e/ou a tomada de iniciativa (súbita) do agente (no papel sintático de sujeito da perífrase), e/ou avaliações subjetivas que vão da surpresa à frustração. Nossos objetivos são: (i) descrever e analisar as relações semânticopragmáticas, morfossintáticas e sociais que caracterizam o uso de CHEGAR em perífrases verbais do tipo [CHEGAR (E) + V2] e em orações coordenadas/justapostas em que CHEGAR é o verbo principal da primeira oração e um verbo de elocução é o verbo principal da segunda oração; (i) identificar, com base nessa descrição e análise, indícios sincrônicos da gramaticalização de CHEGAR como verbo auxiliar nas referidas perífrases. Observamos haver forte similaridade entre as construções coordenadas/justapostas e perifrásticas. Tais similaridades fortalecem a hipótese de que o uso de CHEGAR como verbo lexical na estrutura coordenada/justaposta é a fonte dos usos de CHEGAR na estrutura perifrástica, uma vez que várias das propriedades que encontramos com grande freqüência no uso lexical estão também presentes com grande freqüência no uso auxiliar. Todavia, entre as duas construções sob enfoque observam-se diferenças suficientes para se considerar que CHEGAR, na perífrase [CHEGAR (E) V2], comporta-se como verbo auxiliar, pois manifesta propriedades típicas desse tipo de verbos: (i) não seleciona complemento em 100% das ocorrências; (ii) possui sujeito correferencial ao de V2 em 100% das ocorrências; (iii) não aparece com material interveniente entre si e V2. Com inspiração nos resultados obtidos, propusemos estratégias para a abordagem da perífrase [CHEGAR (E) V2] nas escolas de nível fundamental e médio. Palavras-chave: perífrase [CHEGAR gramaticalização, ensino de gramática. (E) V2], oração coordenada/justaposta, 7 ABSTRACT Based on North American Functional Linguistic Theory, our proposal is to describe and analyze the use of verb CHEGAR in verbal periphrasis such as [CHEGAR (E) + V2], where CHEGAR does not demonstrate a significance linked to physical movement. In linguistic literature, such periphrasis has been attributed several functions, related to aspectualization, emphasis of negative segments, and construction of mental spaces, among others. This study considers that the function of verb CHEGAR in the periphrasis in question is to indicate a global aspect, emphasizing a range of semantic-pragmatic nuances such as the sudden, instantaneous, or even abrupt character of the events refered to by the principal verb of the construction (V2), and/or the taking of initiative (sudden) by the agent (in the syntactic role of periphrastic subject), and/or subjective evaluations which go from surprise to frustration. Our objectives are the following: i) to describe and analyze the semanticpragmatic, morphosyntactic and social relationships which characterize the use of CHEGAR in verbal periphrases like [CHEGAR (E) + V2] and in coordinated/juxtaposed speech in which CHEGAR is the principal verb of the first utterance and is an elocution verb and the principal verb of the second; ii) identify, based on this description and analysis, synchrony proof in the grammaticalization of CHEGAR as an auxiliary verb in the periphrasis refered to. There was observed to be a strong similarity between coordinate/juxtaposed and periphrastic constructions. Such similarities strengthen the hypothesis that the use of CHEGAR as a lexical verb in coordinate/juxtaposed structures is the origin of the use of CHEGAR in the periphrastic structure, since the many properties encountered with higher frequency in lexical use are also just as frequently used as auxiliaries. Nevertheless, between the two constructions being studied, sufficient difference can be observed to see that CHEGAR, in the periphrasis [CHEGAR (E) V2], is behaving like an auxiliary verb, and shows typical properties of these types of verbs: i) in 100% of occurrences, it does not have a complement; ii) it has a co-referential subject in 100% of cases; iii) it does not appear with intervening material between it and V2. Besides this, CHEGAR, in periphrases, is predominant in nonneutral evaluation contexts, denoted by V2. Inspired by the results obtained, we propose strategies for the discussion of the [CHEGAR (E) V2] periphrases in both elementary and high schools. Key words: periphrasis [CHEGAR grammaticalization, teaching of grammar. (E) V2], coordinated/juxtaposed speech, 8 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Relação referencial entre os sujeitos de V1 e de V2 Tabela 2: Forma de expressão do sujeito de V1 e de V2 Tabela 3: Pessoa do sujeito de V1 e de V2 Tabela 4: Tempo/modo de V1 e V2 Tabela 5: Presença da conjunção E entre V1 e V2 Tabela 6: Presença de pausa entre V1 e V2 Tabela 7: Presença de material interveniente entre V1 e V2 Tabela 8: Extensão do material interveniente Tabela 9: Natureza da avaliação do falante Tabela 10: Tipo de discurso Tabela 11: Modalidade da língua Tabela 12: Plano do discurso Tabela 13: Sexo dos informantes Tabela 14: Idade/escolaridade dos informantes 9 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 10 2. REFERENCIAL TEÓRICO ................................................................................ 19 2.1 A GRAMATICALIZAÇÃO .................................................................................. 20 3. GRAMATICALIZAÇÃO DO VERBO ............................................................... 24 3.1 VERBOS LEXICAIS E VERBOS GRAMATICAIS ........................................... 24 3.2 TRAJETÓRIAS DE MUDANÇA: O CASO DO VERBO ................................... 28 3.3 PROPOSTAS REFERENTES AO VERBO CHEGAR ........................................ 30 3.3.1 ASPECTO .......................................................................................................... 31 3.3.2 ASPECTO INCEPTIVO E ASPECTO GLOBAL ............................................. 33 3.3.3 ÊNFASE/REALCE DE TRECHOS NARRATIVOS ....................................... 35 3.3.4 CONSTRUÇÃO DE ESPAÇO MENTAIS ....................................................... 37 3.3.5 NUANÇAS SEMÂNTICO-PRAGMÁTICAS DO ASPECTO GLOBAL ....... 38 4. METODOLOGIA ................................................................................................. 42 5. CONSTRUÇÕES COORDENADAS/JUSTAPOSTAS VERSUS CONSTRUÇÕES PERIFRÁSTICAS ........................................................ 49 5.1 ANÁLISE DOS DADOS ..................................................................................... 49 5.2 CONCLUSÕES RELATIVAS À ANÁLISE DOS DADOS .............................. 75 6. CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DE GRAMÁTICA ............................ 78 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 82 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 84 10 1. INTRODUÇÃO [...] os vestígios da mudança lingüística estão dispersos, como relíquias de outrora, ao longo da paisagem sincrônica. (GIVÓN, 1979, p. 83) [...] a polissemia sincrônica e a mudança histórica de significado realmente fornecem os mesmos dados. (SWEETSER, 1990, p. 9) Neste capítulo, apresentamos nosso objeto de estudo, nossas justificativas para a realização desta pesquisa, o objetivo geral, os objetivos específicos e as hipóteses. Além disso, também apresentamos as razões pelas quais optamos pela realização de uma pesquisa de natureza sincrônica. Com base no referencial teórico do Funcionalismo Lingüístico norte-americano, nossa proposta é descrever e analisar aspectos semântico-pragmáticos e morfossintáticos que caracterizam o uso do verbo CHEGAR em perífrases verbais do tipo chegou e disse, em que CHEGAR não manifesta significado ligado a movimento físico. Na literatura lingüística, a tais perífrases têm sido atribuídas funções variadas, relacionadas à aspectualização, à ênfase de trechos narrativos e à construção de espaços mentais, entre outras. Discutimos e exemplificamos essas funções no terceiro capítulo, porém antecipamos aqui que optamos por adotar uma delas, a que diz respeito ao plano da aspectualização. Além de descrever e analisar ocorrências dessas perífrases, que tanta polêmica têm gerado na literatura da área, pretendemos, com base nessa descrição e análise, mapear indícios reveladores de como CHEGAR passou a ser utilizado nas perífrases sob enfoque, isto é, pretendemos mapear indícios das etapas de seu percurso de gramaticalização de verbo pleno a verbo auxiliar. A gramaticalização é o processo de rotinização pelo qual uma palavra ou construção lexical freqüentemente utilizada em contextos específicos pode passar a integrar a gramática de uma língua e, uma vez tendo se tornado parte dessa gramática, pode adquirir funções ainda mais gramaticais. Entre outros, a gramaticalização envolve processos de transferência da referência de um universo mais concreto para um mais abstrato no plano do significado, e processos de transformação de colocação sintática relativamente livre a construções altamente fixas em termos morfossintáticos, inclusive através da fusão de termos (cf. HOPPER; TRAUGOTT, 2003; BRINTON; TRAUGOTT, 2005). A gramaticalização é abordada mais detidamente no segundo capítulo, em que apresentamos nosso referencial teórico. 11 Observem-se os seguintes dados, extraídos de textos escritos: (1) Hoje em dia as pessoas não pensam mais em namorar, só querem chegar beijar, sem compromisso. (Vestibular UFRN, 2004) (2) Podemos dizer que o significado de “seis” nesse contexto é convencionado para um certo grupo de pessoas que compartilham um conhecimento específico. Por exemplo, se alguém diz: “seis é o resultado da adição de três mais três” (3+3=6), ou “seis é um elemento do conjunto dos números naturais”, acredita-se que tais significados serão bem aceitos pela maioria da população. Certamente, o mesmo não ocorrerá se alguém chega e diz: “seis significa dedicação e proteção”. Tal enunciado causará no mínimo um estranhamento (exceto para aquelas pessoas que, como já foi dito, detêm um mesmo conhecimento específico). (N., 2° semestre de 2004, aluno do quarto período do Curso de Letras, UFRN)1 O que os trechos destacados acima possuem em comum? Neles, temos a perífrase alvo deste estudo, que é composta pela adjunção de dois verbos, sendo um deles, o primeiro, CHEGAR. Nessa perífrase, CHEGAR atua como verbo auxiliar, caracterizando o evento referido pelo segundo verbo, o verbo principal, como de ocorrência súbita e/ou inesperada, entre outras nuanças passíveis de serem adicionadas por CHEGAR ao verbo principal ao qual serve como auxiliar (cf. terceiro capítulo). Doravante, passaremos a nos referir a essa perífrase como [CHEGAR (E) V2]. Há outros verbos que desempenham a mesma função de CHEGAR, como IR, VIRAR e PEGAR. Vejamos alguns exemplos, também provenientes da modalidade escrita da língua: (3) Quando cheguei em casa, tentei não fazer barulho, mas minha mãe estava me esperando, pois minha roupa estava toda manchada. Depois de levar uma bronca de manhã bem cedo, eu e minha mãe fomos comprar uma roupa igual aquela, mas quando cheguei na loja era a última roupa e a moça foi e comprou. Essa é a minha estória muito azarada. (Rio de Janeiro, informante F., de 9 a 12 anos, 4ª série do ensino fundamental) (4) Querida, o sujeito não pediu seu telefone por um motivo muito simples: ele não está interessado e não vê diferença entre você e a samambaia da sala da mãe dele. E se ele não pediu você não vai virar e dar o número, certo? 1 Os dados de CHEGAR, IR, VIRAR e PEGAR de textos escritos foram extraídos de Tavares (2007). 12 Aliás, esse já seria um bom motivo para parar de falar dele para todas as suas amigas. (UMA, ano 8, n° 77, fevereiro 2007, p. 71, “9 dicas de etiqueta para o sexo casual”) Consoante Tavares (2007), Nessa função, os verbos em tela (V1) não selecionam argumentos, sendo a estrutura argumental da perífrase atribuída a V2, um verbo pleno que ocupa a posição de núcleo do sintagma verbal, isto é, trata-se do verbo principal. V1 geralmente exibe marcas de tempo, aspecto, modo, pessoa e número idênticas às de V2, e comporta-se como uma espécie de auxiliar, cujo papel gramatical é ainda pouco claro, razão pela qual vem recebendo denominações variadas, de aspectualizador a enfatizador de eventos.2 Neste estudo, focalizamos as perífrases em que o primeiro verbo é CHEGAR e em que o segundo verbo é um verbo de elocução,3 pois, na amostra de dados por nós selecionada, o Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade do Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998),4 apenas mapeamos ocorrências da perífrase [CHEGAR (E) V2] em que V2, o verbo principal, é de elocução. Vejamos alguns exemplos provenientes da amostra de dados utilizada nesta pesquisa: (5) o que a gente vê demais e que tá sendo apregoado por aí é que a pessoa é ruim... ruim... ruim... ruim... aí resolve ficar bom e passa pra outra religião... né... no caso... tão procurando a Assembléia de Deus... porque é a única que diz que na hora que você se arrepende de seus pecados... você passa a ser bom... automaticamente... eu acho que não é assim... sabe Sheila? Não é você chegar e dizer assim... vou ficar bom agora... e de repente ficar bom... primeiro você tem que se descobrir... esse lado bom que você tem (Informante D., Terceiro grau) 2 Conferir a distinção entre verbo pleno e verbo auxiliar no terceiro capítulo. 3 Verbos de elocução, enunciação ou dicendi são introdutores de discurso direto ou discurso indireto, isto é, são usados em orações que descrevem uma transferência de informação iniciada por um sujeito agente. O complemento direto representa a informação transferida, o conteúdo do que se diz. Alguns exemplos: dizer, falar, perguntar, responder, sussurrar, exclamar, declarar, afirmar, etc. 4 Descrevemos o Corpus Discurso & Gramática detalhadamente no quarto capítulo, referente aos procedimentos metodológicos que adotamos. 13 (6) “vocês esse ano vão ter uma premiação diferente... não como todos os outros anos... mas... tem esse ano... eu quero o congressista modelo... não é... o congressista que mais participa... que tava presente em tudo... que tá sempre ali ajudando a algum jovem... a organizar as coisas... as outras ( ) e tudo mais... então eu observei isso em uma pessoa... aí a gente queria entregar o prêmio a uma pessoa... a gente vai chamar o pastor Martins que é pastor da igreja pra entregar o prêmio a essa pessoa”... aí Regina chegou e disse bem assim... “é Gerson... pastor Antônio Martins não sabe quem é não?” aí eu pensei que era Júnior... (Informante G., Segundo Grau) (7) aí eu sei que passaram uns dias... tudo bem... aí quando ela tava tomando banho de espuma... já tava bem habituada né? bem íntima dele... aí já tava na banheira de espuma... e tudo tomando um belo de um banho... aí ele chegou e disse... aí propôs de novo pra ela ficar... mesmo os três dias e disse... aí ela repetiu... “eu fico por tanto”... aí ele disse... “eu dou tanto”... ela... muito mais do que ela pediu... ela chega caiu assim na espuma sabe? Aí ficou super contente... aí ele começou a tomar amizade né? (Informante R., Segundo Grau) Além de considerar os dados referentes à perífrase [CHEGAR (E) V2] que mapeamos no Corpus Discurso & Gramática/Natal, levamos em conta também ocorrências em que CHEGAR é o primeiro verbo de um par de orações coordenadas ou justapostas, nas quais o segundo verbo é de elocução. Observem-se os exemplos: (8) aí nesse dia... havia comemoração cívica... era dia sete de setembro e a minha amiga Tâmara... ela tinha um irmão que era taifeiro da marinha... e cozinhava muito bem...... então ela chegou lá e disse... “aí... hoje... meu irmão fez um bolo de batata muito gostoso e a gente vai lanchar lá... lá em casa”... porque ela morava perto... então todo mundo se animou pra comer o bolo de batata que o irmão de Tâmara tinha feito... (Informante D., Terceiro Grau) (9) quando a gente faz pesquisas por aí a fora... a gente pergunta às pessoas... se você acredita em Deus eles dizem... né... então se a gente chega numa penitenciária e a genta pergunta...se eles crêem em Deus... eles vão dizer que crêem... né... eu creio em Deus...né... só que eles dizem que até antes mesmo de praticar o que praticaram... eles também criam em Deus...não é? Só que aí não fazem exatamente aquilo... não... não... a prova 14 que eles não... não crêem realmente em Deus... é que eles não obedeceram o mandamento quando fala que nós devemos amar o nosso próximo... né... (Informante S., Segundo Grau) (10) mas ô rapaz tímido... tímido demais... mais tímido do que eu... mulher ó eu... porque eu sou tímida... que eu num vou... num sou de chegar assim pro rapaz e falar as coisa... menina...quando eu cheguei perto desse menino... porque eu pensava que ele sabia dançar num sabe? Aí... eu num sabia de nada... aí eu cheguei... menina... eu cheguei...TRUUU((imitação de tremedeira))... porque dá logo uma tremedeira sabe? Quando eu chego perto de homem minha filha... eu começo logo a gelar... ficar fria... me tremendo toda... aí eu cheguei perto dele e disse... “ei... ei vamos dançar?” ele disse... “eu num sei dançar”... aí eu disse... “ai meu Deus do céu”... eu digo... “a então lá vai”... e ficamo conversando lá... (Informante L., Oitava Série) Nesses casos, CHEGAR denota ação; trata-se de um verbo que denota a ação de ‘aproximar-se de um ponto no espaço’, ‘atingir um ponto no espaço’, ‘atingir o termo de ida ou vinda’, ou seja, denota movimento físico. Em contraste, nos exemplos (5), (6) e (7), CHEGAR não expressa movimento físico e não possui a autonomia de um verbo principal, ao integrar-se à conjunção E, e, juntos, somarem-se a um verbo principal. Ocorrências desse tipo inserem-se dentro do que Givón (2001) chama de predicação complexa, fenômeno em que dois verbos são usados simultaneamente e partilham, de vários modos, a carga funcional do complexo verbal. É o que ocorre em (5), (6) e (7), em que há um predicado complexo formado por um verbo aspectualizador (CHEGAR) + a conjunção E + um verbo principal (DIZER). Este último traz o significado referencial do complexo verbal mencionado. Dessa forma, tem-se que, em (8), (9) e (10), há, para codificar cada um dos dois eventos mencionados, duas orações. Essas orações compõem um par coordenado que possui dois verbos: chegar em algum lugar (indicação de movimento físico) e dizer algo, ação que se sucede, em termos temporais, à primeira. Em (5), (6) e (7), por outro lado, há apenas um evento representado por uma única oração. CHEGAR, nesse caso, não expressa um evento diferente do de DIZER, mas sim perde sua autonomia para, via reanálise estrutural, adjungindo-se à conjunção E, originar a perífrase [CHEGAR (E) + V], como ilustrado em (11) e (12) a seguir: (11) [chegar (lá)] e [dizer] (12) [chegar e dizer] 15 As relações sintáticas manifestadas no conjunto formado pelos exemplos (8), (9) e (10) e no conjunto formado pelos exemplos (5), (6) e (7) estão representadas em (11) e (12), respectivamente. Em (11), temos duas orações unidas pela conjunção coordenativa E, sendo o núcleo da primeira oração o verbo CHEGAR (cujo significado é ‘aproximar-se de um ponto no espaço’, ‘atingir um ponto no espaço’, ‘atingir o termo de ida ou vinda’), e sendo o núcleo da segunda o verbo DIZER (significando ‘exprimir por palavras’, ‘proferir’). Em (12), temos orações transitivas que têm como núcleo o verbo DIZER, a que se junta CHEGAR para fornecer um traço de caráter súbito e/ou inesperado ao evento a que DIZER se refere. Nesse caso, quanto ao seu papel, CHEGAR atua não como núcleo de sintagma verbal e sim como auxiliar de um verbo pleno. Não é difícil perceber que há similaridades entre as construções em (5), (6) e (7) e as construções em (8), (9) e (10): em ambos os grupos de construções, há dois verbos flexionados, o primeiro dos quais é CHEGAR; esses verbos geralmente codificam o mesmo tempo, aspecto e modo; e pode haver ou não a conjunção E interligando as duas metades de cada estrutura; ademais, o segundo verbo de cada grupo de construções é um verbo de elocução. Dadas tais semelhanças morfossintáticas entre as construções sob enfoque, podemos tecer a hipótese de que as perífrases do tipo [CHEGAR (E) V2], representadas em (5), (6) e (7), derivam historicamente, via gramaticalização, de construções coordenadas ou justapostas, como as representadas em (8), (9) e (10). Essa hipótese nos guia em nossa análise, em que averiguamos indícios sincrônicos da gramaticalização de construções como (5), (6) e (7), através da comparação de suas propriedades morfossintáticas e semântico-pragmáticas com propriedades morfossintáticas e semântico-pragmáticas de construções como (8), (9) e (10). O que nos faculta abordar a gramaticalização das perífrases [CHEGAR (E) V2] de um ponto de vista unicamente sincrônico? Itens ou construções gramaticais passaram por uma evolução lingüística ao longo de sua história, cujos sinais revelam-se, em algum ponto sincrônico, na forma e no significado que assumiram. Daí, conseqüentemente, espera-se que as formas gramaticais sejam polissêmicas, preservando em seus usos atuais traços de significados anteriores. Tais traços permitirão estabelecer os possíveis percursos de gramaticalização percorridos por esses itens, muito embora não haja evidência direta acerca de sua fonte e desses percursos. Segundo afirmam Bybee et al. (1994), muitas vezes observam-se evidências esparsas nos múltiplos usos sincrônicos, os quais podem ser tomados como etapas distintas de possíveis trajetórias de gramaticalização. Ou seja, é o que, por hipótese, ocorre com o verbo CHEGAR, atualmente, na fala e na escrita natalense. 16 Assim, pela viabilidade da realização de um estudo sincrônico, como defendido por Bybee et al., e também por questão de tempo, pois um estudo diacrônico demanda muito tempo para ser realizado, e, ademais, pela provável dificuldade de se encontrar dados da perífrase [CHEGAR (E) V2] em textos escritos em períodos de tempo anteriores ao atual (essa perífrase é freqüente na fala contemporânea, mas bastante rara em textos escritos mesmo nos dias de hoje), decidimos levar a cabo um estudo unicamente sincrônico. Também nos motiva a tratar a relação entre as construções sob análise como uma trajetória de gramaticalização em que CHEGAR tem usos como verbo pleno no ponto de partida (caso, por exemplo, de (8), (9) e (10)) e, no ponto de chegada, usos como verbo auxiliar (caso, por exemplo, de (5), (6) e (7)), o fato de que há relações de significado do tipo +concreto versus +abstrato entre o segundo e o primeiro conjunto de construções. O sentido mais concreto, que tende a ser primário em casos de gramaticalização, é apresentado em (8), (9) e (10), em que CHEGAR expressa movimento físico; já em (5), (6) e (7), o verbo em questão é empregado com um sentido mais abstrato, como aspectualizador de outro verbo, pertencendo, assim, a outra categoria: não se trata de um verbo lexical e sim de um verbo auxiliar. Essa relação entre os significados expressos por CHEGAR reforça nossa hipótese de que ele segue um percurso de mudança via gramaticalização em que ocorre uma transferência de um uso como verbo pleno (em orações coordenadas e justapostas) a um uso como verbo auxiliar na perífrase [CHEGAR (E) V2]. Justificamos a necessidade de nossa pesquisa, em primeiro lugar, por seu ineditismo: não há estudos que abordam a perífrase [CHEGAR (E) V2] no Rio Grande do Norte. Todavia, temos observado a ocorrência freqüente dessa perífrase no português falado na cidade do Natal. Dada a sua freqüência, consideramos que esse uso de CHEGAR já esteja rotinizado na língua portuguesa, o que nos incentiva a desenvolver um estudo que descreva e analise suas propriedades morfossintáticas e semântico-pragmáticas e que evidencie similaridades e diferenças entre as construções coordenadas/justapostas e as construções perifrásticas em que o verbo CHEGAR é o primeiro verbo e há um verbo de elocução como segundo verbo. Ademais, trazemos uma contribuição para o ensino de Língua Portuguesa voltado à reflexão sobre a gramática da língua, uma vez que apresentamos, no sexto capítulo, propostas de aplicação em sala de aula, a partir dos resultados obtidos após a análise do fenômeno em estudo. Nesse capítulo, discorremos acerca da importância de uma abordagem a tópicos gramaticais da língua portuguesa com base em textos de gêneros orais e escritos variados, e fornecemos sugestões de atividades práticas, exemplificando com o caso do verbo CHEGAR na perífrase [CHEGAR (E) V2]. 17 É importante salientar ainda que, além das propriedades morfossintáticas e semânticopragmáticas, consideramos, em nossa análise, também semelhanças e distinções entre as construções coordenadas/justapostas e perifrásticas no que se tange ao contexto social, considerando dois fatores dessa natureza, o sexo dos informantes componentes de nossa amostra, bem como seu nível de escolaridade/idade. Foi possível que realizássemos a averiguação desses fatores de ordem social porque o Corpus Discurso & Gramática/Natal os controla. Em termos de gramaticalização, é válida a investigação de aspectos sociais, pois esse fenômeno de mudança pode ser condicionado por “tipos semânticos, contextos sociolingüísticos, gêneros do discurso, e outro fatores.” (HOPPER; TRAUGOTT, 2003, p. 115). Nosso objetivo geral é descrever e analisar as relações semântico-pragmáticas e morfossintáticas que caracterizam o uso de CHEGAR em perífrases verbais do tipo [CHEGAR (E) + V2] e em orações coordenadas/justapostas em que CHEGAR é o verbo principal da primeira oração e um verbo de elocução é o verbo principal da segunda oração, e identificar, com base nessa descrição e análise, indícios sincrônicos da gramaticalização de CHEGAR como verbo auxiliar nas referidas perífrases. Como objetivos específicos, temos: (a) verificar em quais contextos de ordem lingüística e social predominam o uso das perífrases [CHEGAR (E) + V2] e o uso das orações coordenadas/justapostas sob enfoque; (b) identificar, nos contextos lingüísticos e sociais em que predominam o uso das perífrases [CHEGAR (E) + V2] e o uso das orações coordenadas/justapostas sob enfoque, indícios de ocorrência de um processo de gramaticalização; (c) subsidiar propostas de aplicação pedagógica com base nas reflexões que serão feitas e nos resultados quantitativos e qualitativos que serão obtidos após a análise da construção [CHEGAR (E) + V2]. Temos por hipótese que haverá diversas semelhanças entre as perífrases verbais do tipo [CHEGAR (E) + V2] e as orações coordenadas/justapostas em que CHEGAR é o verbo principal da primeira oração e um verbo de elocução é o verbo principal da segunda oração, o que poderá ser atribuído à relação fonte-alvo que, por hipótese, existe entre tais construções. Todavia, acreditamos que encontraremos também diferenças entre essas construções tanto no plano morfossintático quando no semântico-pragmático e no plano social, as quais poderão ser atribuídas ao resultado da ação da gramaticalização. Se as propriedades de ambas as 18 construções sob enfoque fossem as mesmas, teríamos apenas uma construção em jogo e não poderíamos levantar a hipótese de ocorrência de gramaticalização. Alem disso, cremos que a análise da distribuição social das construções em estudo (quanto ao sexo e ao grau de escolaridade/idade dos informantes) permitirá que obtenhamos evidências acerca do grau de disseminação dessas construções na comunidade de fala e escrita natalense. Lembremos que a disseminação social das inovações também é um aspecto significativo do processo de gramaticalização, e, apesar disso, pouco considerado pelos estudos voltados ao tema. Por fim, acreditamos que os resultados que obtivermos e as conclusões a que chegarmos em nossa pesquisa possibilitarão uma discussão rica a respeito do ensino de gramática nas escolas de nível fundamental e médio, e proporemos, com base nesses resultados e conclusões, sugestões práticas para o tratamento de tópicos gramaticais na escola, exemplificando com o caso do fenômeno aqui focalizado. A seguir, temos o referencial teórico (segundo capítulo); uma síntese de estudos que abordam o verbo, especialmente daqueles que o fazem do ponto de vista da categoria aspecto, bem como uma síntese de estudos que tomam como objeto perífrases do tipo [CHEGAR (E) V2] (terceiro capítulo); os procedimentos metodológicos adotados (quarto capítulo); a análise dos dados (quinto capítulo); reflexões e sugestões voltados ao ensino de gramática nos níveis fundamental e médio (sexto capítulo); as considerações finais e as referências bibliográficas. 19 2. REFERENCIAL TEÓRICO Nossa pesquisa tem como referencial teórico os pressupostos do Funcionalismo Lingüístico de vertente norte-americana. Tomando a linguagem como uma atividade sóciocultural e a estrutura lingüística como não-arbitrária, a serviço de funções cognitivas e/ou comunicativas, esse funcionalismo, de orientação especialmente no trabalho dos pesquisadores Talmy Givón, Paul Hopper, Elizabeth Traugott, Sandra Thompson, Bernd Heine e seus correligionários, ao conceber a gramática, parte do princípio de que esta não é autônoma mas dependente do discurso. Em outras palavras, a gramática é, para os funcionalistas, o resultado do processo de regularização que decorre das pressões de uso, portanto, é emergente e jamais estável. Givón (2001) considera como funções principais da linguagem humana a representação e a comunicação do conhecimento. Esta última se concretiza por meio de dois subsistemas: o sistema de representação cognitivo e o sistema de codificação comunicativo, cada um dos quais envolvendo níveis, conforme o quadro abaixo: Sistema de representação cognitivo Léxico conceptual Informação proposicional Discurso multiproposicional Sistema de codificação comunicativo Código sensório-motor periférico Código gramatical Código gramatical Segundo Givón, o léxico consiste numa espécie de mapa cognitivo de nosso universo de experiências, as quais envolvem as físicas/externas, as sócio-culturais e as mentais/internas. Tais experiências são, quanto ao tempo, estáveis, partilhadas socialmente e bem-codificadas (o que significa dizer que há uma correlação, apesar de gradual, mais ou menos estável entre forma e significado). Tem-se daí os conceitos lexicais revelando-se como uma rede de nós interconectados e representados tipicamente por: nomes (entidade relativamente estável no tempo – objeto físico, planta, pessoa, instituição, ou conceitos abstratos); verbos (ação, evento, processo ou relação mais temporária); e adjetivos (qualidade estável ou estado temporário) - memória semântica permanente. Quando conceitos (palavras) são combinados formando a oração, que codifica estados ou eventos dos quais as entidades participam, temos a informação proposicional ou memória episódica. Surge daí o que se pode chamar de discurso multiproposicional, que é a combinação de orações num discurso coerente. Segundo Givón (op. cit., p. 24), 20 Pode-se entender o significado de palavras independentemente da proposição à qual pertencem, mas não se pode entender uma proposição sem entender o significado das palavras que a compõem. [...] Pode-se entender o significado de orações independentemente do discurso ao qual pertencem, mas não se pode entender o discurso sem entender as proposições que o compõem. Qual seria, então, o papel da gramática? Sua função seria a de codificar, simultaneamente, a semântica proposicional e a coerência discursiva (a pragmática). Teríamos, assim, subsistemas gramaticais orientados para o discurso, dos quais eis alguns considerados como os maiores: a) papéis gramaticais (sujeito, objeto direto); b) definitude e referência; c) anáfora, pronome e concordância; d) tempo, aspecto, modalidade e negação; e) transitividade; f) topicalização; g) foco e contraste; h) relativização; i) atos de fala; j) junção oracional e subordinação. Esses subsistemas desempenham funções, simultaneamente, nos níveis oracional e discursivo. Um de nossos objetos de estudo, a perífrase [CHEGAR (E) V2], relaciona-se ao subsistema referente a tempo, aspecto, modalidade e negação, e, mais especificamente, ao aspecto. Já as orações coordenadas em que CHEGAR é o verbo principal da primeira oração relacionam-se ao sub-sistema referente à junção oracional. 2.1 A GRAMATICALIZAÇÃO Como a gramática resulta da regularização, em papel funcional, motivada por pressões de uso, de palavras e construções outrora lexicais, ela está em um processo permanente de mudança, sofrendo, constantemente, segundo Givón (1979), perdas e ganhos. A gramaticalização constitui um desses processos de mudança lingüística e é definida como o processo através do qual itens lexicais e construções sintáticas são levados a servir, em contextos lingüísticos específicos, a funções gramaticais, e, uma vez gramaticalizados, podem voltar a desenvolver novas funções gramaticais. (HOPPER; TRAUGOTT, 2003). A trajetória da evolução lingüística que acontece via gramaticalização possui um caráter unidirecional, que é representado através do seguinte esquema processual (GIVÓN, 1979): discurso > sintaxe > morfologia > zero. Explicando esse esquema, temos que um item lexical passa, em determinado contexto, a servir a certa função gramatical ainda não totalmente fixada, mas cujo uso vai, aos poucos, tornando-se mais previsível e regular, donde resulta uma nova construção sintática, que vai 21 evoluindo para uma forma ainda mais dependente; com o passar do tempo e o aumento da freqüência de uso, essa construção vem a sofrer desgaste formal e funcional, ocasionando, com o seu desaparecimento, o início de um novo ciclo. O caráter unidirecional desse movimento cíclico apresenta-se quando se postula que, no percurso da gramaticalização, a manipulação conceitual atua sempre se movendo do significado lexical, ou menos gramatical, para outro mais gramatical, e nunca o contrário. Admite-se, entretanto, que uma forma não passa necessariamente por todas essas etapas, podendo, por exemplo, tornar-se um verbo auxiliar sem, mais tarde, virar um morfema. Segundo Givón (2001), a visão de que a gramaticalização é responsável pela migração de itens lingüísticos de categorias lexicais a categorias gramaticais é incompleta por duas razões: (i) formas gramaticais podem originar formas ainda mais gramaticais; (ii) uma vez que as formas lingüísticas demandam contextos e construções específicos para sofrer gramaticalização, a teoria da gramaticalização também se preocupa com o ambiente pragmático e morfossintático em que esse processo ocorre. Sobre gramaticalização, na realidade, existem várias orientações teóricas que foram se desenvolvendo ao longo dos anos, e as quais Heine (2003.) divide em: primeira fase – que corresponde aos estudos dos filósofos franceses e ingleses do século XVIII (Condillac, Tooke); segunda fase – que se deu com os lingüistas alemães do século XIX (Bopp, Schlegel, Humboldt, Wüllner, Whitney, Gabelentz), quando Meillet introduziu o termo gramaticalização e, juntamente com Kurylowicz (1965 apud Heine et al., 1991), valeu-se de descobertas acerca da gramaticalização em estudos de lingüística histórica; terceira fase – com Givón, que abriu uma nova perspectiva para o entendimento da gramática, com seu slogan A morfologia de hoje é a sintaxe de ontem; quarta fase – com os estudos voltados principalmente para a mudança morfossintática nos anos 80 e 90. Tais estudos fundamentamse nas seguintes concepções: (i) a língua é um produto histórico e deve ser analisada primeiramente em relação às forças históricas que são responsáveis por sua estrutura atual; (ii) descobertas em termos de gramaticalização devem substituir descobertas confinadas à análise sincrônica; (iii) o desenvolvimento de categorias gramaticais é unidirecional, indo de significados concretos/lexicais a significados abstratos/gramaticais. 22 De acordo com Heine (2003), há várias orientações teóricas afiliadas a essas concepções: (i) para alguns, a principal contribuição do campo é oferecer novos modos de reconstruir a mudança semântica (Traugott); (ii) a teoria de gramaticalização é um meio de descrever e explicar a estrutura de categorias gramaticais translingüisticamente (Bybee); (iii) a gramaticalização é (quase) sinônimo de gramática: é gramática emergente (Hopper); (iv) a gramática é o resultado de uma interação entre conceitualização e comunicação, e a teoria da gramaticalização fornece um instrumento para a reconstrução de algumas das bases extralingüísticas da gramática (Heine). Para aprofundar as características do processo de mudança denominado gramaticalização, vejamos outra definição, proposta por Brinton e Traugott (2005, p. 99): Gramaticalização é a mudança através da qual, em certos contextos lingüísticos, os falantes usam partes de uma construção com uma função gramatical. Ao longo do tempo, o item gramatical resultante pode se tornar mais gramatical ao adquirir mais funções gramaticais e expandir suas classes de hospedeiros. As principais características da gramaticalização implicadas na definição acima, segundo Brinton e Traugott (2005, p. 99-100), são as seguintes: (1) A gramaticalização é concebida como uma mudança histórica que resulta na produção de novas formas funcionais. Ela não é simplesmente um processo de adoção ou incorporação de elementos não alterados no inventário. (2) O input (ponto de partida) da gramaticalização pode ser qualquer item armazenado no inventário, de cadeias (be going to) a construções (let us ‘deixe-nos’ > let’s hortativo) e itens lexicais (magan ‘ter força para’ no inglês antigo > may verbo auxiliar no inglês contemporâneo). No entanto, os itens no input devem ser semanticamente gerais. (3) Uma vez que os itens gramaticalizados estejam formados, freqüentemente sofrem mudança posterior em direção ao pólo gramatical do contínuo léxico-gramatical (por exemplo, podem sofrer processos de fusão, etc). Essa é uma mudança de menos para mais gramatical em uma escala de gramaticalidade (G1>G2>G3). (4) O output (resultado) da gramaticalização é uma forma “gramatical”, isto é, uma forma funcional. Em casos mais avançados, a forma pode se tornar semanticamente esvaziada, isto 23 é, “desbotada”, e até mesmo não-referencial (por exemplo, do em Did she leave?), ou pode se tornar fonologicamente esvaziada, mas ainda com significado (por exemplo, o morfema zero). (5) O output da gramaticalização pode ser uma forma com qualquer grau de complexidade. Formalmente, esses itens variam de construções gramaticais ou perífrases (G1) a palavras funcionais e clíticos (G2) e a flexões (G3). (6) A gramaticalização é gradual no sentido de que não é instantânea e se desenvolve através de passos bem pequenos e tipicamente sobrepostos, intermediários e, às vezes, indeterminados. (7) A gramaticalização tipicamente envolve fusão com um hospedeiro (em geral, um nome ou um verbo), às vezes seguida de coalescência/redução de seqüências fonológicas (por exemplo, a fusão da perífrase latina (cant)-are habeo ‘infinitivo + haver + 1ª pessoa do singular’ e a subseqüente redução fonológica a um afixo de tempo, como no francês (chant)-erai ‘futuro de primeira pessoa do singular’). Freqüentemente as formas reduzidas e fundidas passam a ser parte de um padrão mais geral de marcação gramatical, como o paradigma de caso ou o de tempo, um fenômeno que Lehmann (1995[1982], p. 135) denomina “paradigmatização”. (8) A gramaticalização também comumente envolve a perda de significados concretos e literais (idiomatização, desbotamento), contrabalançada pelo fortalecimento e eventual semanticização de significados mais abstratos e gerais contextualmente derivados em contextos “ponte” (por exemplo, tornaram-se salientes implicaturas de futuridade contextualmente derivadas de certos usos da expressão be going to com significado de movimento literal). (9) Como a gramaticalização sempre envolve “expansão de hospedeiros”, também envolve aumento na produtividade padrão e de token (produtividade de ocorrências). A gramaticalização ocorre em duas etapas indissociáveis: (i) a emergência de estratégias gramaticais inovadoras quando da negociação e da adaptação de formas e funções lingüísticas pelos interlocutores em situação de interação; (ii) o processo de disseminação dessas inovações em diferentes âmbitos lingüísticos e sociais. (cf. TAVARES, 2003) 24 3. GRAMATICALIZAÇÃO DO VERBO Nas próximas seções, abordamos os seguintes tópicos: diferenças entre verbos lexicais e verbos gramaticais, trajetórias de mudança por gramaticalização envolvendo verbos, e diferentes propostas quanto à classificação do verbo CHEGAR encontradas na literatura referente à língua portuguesa. 3.1 VERBOS LEXICAIS E VERBOS GRAMATICAIS Como abordamos, nesta pesquisa, o processo de gramaticalização do verbo CHEGAR, que parte de um uso lexical e chega a um uso gramatical, urge definir esses conceitos. O vocabulário das línguas é composto por palavras de dois tipos: lexicais (de conteúdo) e gramaticais (funcionais). Palavras lexicais referem-se a coisas do universo humano – entidades, ações, qualidades –, em seus aspectos biofísicos e sócio-culturais. Os nomes e os verbos costumam ser considerados palavras típicas do âmbito lexical. Em contraste, as palavras gramaticais atuam na organização dos itens lexicais no discurso, participando da estrutura gramatical das orações. Como tal, desempenham papéis variados, entre os quais se destacam: relacionar nomes (preposições), interligar partes do discurso (conjunções), indicar se as entidades e participantes de um discurso já foram identificados ou não (pronomes e artigos), mostrar se eles estão próximos do falante ou do ouvinte (demonstrativos), indicar tempo, aspecto e/ou modalidade (verbos auxiliares, clíticos, afixos, entre outros), sinalizar papel semântico, gênero e número (clíticos, afixos), etc. Tomemos o exemplo da classe dos verbos. São lexicais os verbos correr em Eu posso correr, falar em Eu comecei a falar, refletir em Eu vou refletir, ao passo que são gramaticais os verbos poder (indicando modalidade epistêmica), começar (indicando aspecto inceptivo) e ir (indicando tempo futuro) nos mesmos exemplos. 25 O quadro a seguir destaca diferenças comumente encontradas entre palavras lexicais e gramaticais: Critério Palavras Lexicais Palavras Gramaticais a. status mórfico livre presa b. extensão fonológica longa pequena presente ausente complexa; específica simples; geral e. tamanho da classe grande pequena f. entrada de novos membros aberta restrita visão de mundo gramática c. acento d. dimensão semântica g. função Diferenças entre palavras lexicais e gramaticais Adaptado de Givón (2001, p. 45) Cumpre mencionar ainda que, relativamente ao critério de dimensão semântica, Givón (2001, p. 45-46) informa que as palavras lexicais são semanticamente complexas por agruparem muitos traços semânticos altamente específicos, do que resulta serem membros de muitos campos semânticos.5 Por outro lado, as palavras gramaticais tendem a ser semanticamente mais simples e mais gerais, codificando, comumente, um único traço semântico ou um conjunto pequeno de traços. Quanto ao critério de entrada de novos membros, a incorporação de elementos em uma categoria lexical é relativamente comum, pois palavras surgem periodicamente, bem como desaparecem ou têm seu significado alterado (o que pode implicar mudança de categoria). Segundo Givón, a principal causa da adição de novos membros em uma categoria lexical são modificações no plano sócio-cultural. Em contraste, a entrada de um novo membro em uma categoria gramatical é relativamente restrita e não reflete modificações no plano sócio-cultural e sim no instrumento comunicativo em si. Geralmente, as pressões adaptativas que levam ao surgimento de uma nova palavra gramatical resultam de: (i) elaboração criativa do código; (ii) 5 Givón exemplifica com o caso da palavra “elefante”: seus traços semânticos (isto é, mamífero, herbívoro, grande, com presas, marfim, tronco, cascos, caça, circo, África/Índia, etc) levam-na a ser membro de vários campos semânticos (por exemplo, classificação biológica, alimentação, tamanho, dentes, material de constituição dos dentes, nariz, casco, caça, entretenimento, geografia, etc). 26 truncamento de elementos do código como resultado de processamento rápido; (iii) simplificação das relações entre código e mensagem. Consoante Schlesinger (1995), os significados denotados por verbos lexicais podem ser organizados hierarquicamente em uma escala que parte de verbos que se referem a eventos com maior grau de ação e chega a verbos que denotam eventos com grau baixo de ação. O autor fundamenta-se na proposta de Quirk et al. (1985), com sete tipos verbais, atividade, momentâneo, evento transitório, processo, cognição e percepção inerte, relacional, sensação corporal. Schlesinger faz acréscimos a essa proposta, subdividindo três das categorias, além de acrescentar mais uma, do que resultaram atividade específica e atividade difusa, evento transitório intencional e evento transitório não intencional, estímulo mental e experimentação mental, instância. Tavares (2003) modifica a escala organizada por Schlesinger. A autora estabelece mais duas subdivisões: (i) distingue dos verbos de atividade específica os verbos dicendi, que introduzem discurso direto ou discurso indireto, isto é, são usados em orações que descrevem uma transferência de informação iniciada por um sujeito agente; (ii) diferencia dos verbos de experimentação mental os verbos de atenuação, como achar e pensar, que revelam um distanciamento por parte do falante em relação àquilo que diz ou uma suavização de sua opinião a respeito de certo tema (eu acho que isso é verdade, ao invés de isso é verdade, por exemplo); (iii) adiciona, no final da hierarquia, os verbos de existência e os verbos de estado, desprovidos de traços de ação. A configuração final dessa escala pode ser conferida a seguir: 1. Momentâneo refere-se à atividade repentina, de curta duração: saltar, chutar, bater, derrubar, golpear, quebrar (intencional) 2. Atividade específica evoca uma imagem específica escrever, jogar, beber, desenhar, nadar, andar, sorrir 3. Dicendi precede a citação ou discurso direto dizer, falar, responder, ordenar, perguntar 4. Atividade difusa não evoca uma imagem específica aposentar-se, trabalhar, aprender, mendigar, estudar 5. Instância posição corporal estática deitar(-se), recostar(-se), sentar(-se) , pousar (-se), reclinar(-se) 6. Estímulo mental o sujeito da oração é o estímulo da experiência mental de outrem impressionar, agradar, surpreender, assustar, espantar, aborrecer 27 7. Evento transitório intencional indica se o sujeito permanece em certo lugar permanecer, residir, situar, estar (em um lugar) 8. Evento transitório não intencional refere-se a ações não intencionais morrer, cair, desmaiar, adormecer, acordar, quebrar (não intencional) 9. Processo mudança não intencional sofrida por um corpo (mais ou menos animado) deteriorar, crescer, amadurecer, transformar, ferver, congelar 10. Experimentação mental o sujeito da oração é o experienciador adorar, odiar, desejar, pensar, lembrar, entender 11. Atenuação distanciamento ou suavização da opinião achar, pensar 12. Relacional representa relações assinaladas pelos homens em seu processo de percepção da realidade: identidade, analogia, comparação, posse, causa, finalidade, conseqüência, etc depender de, merecer, precisar; servir como, assemelhar-se, causar, igualar 13. Sensação corporal sensação física machucar-se, doer, ferir, sofrer 14. Existência ter, haver, existir 15. Estado ser, estar, parecer, ter (olhos azuis) Escala de traços semântico-pragmáticos verbais Fonte: Tavares (2003, p. 234-235) A noção de papéis semânticos é fundamental para o entendimento da estrutura básica do sintagma verbal. Sobre os papéis semânticos que mais dizem respeito ao uso lexical do verbo CHEGAR, quais sejam AGENTE e LOCATIVO, Givón (2001) explicita que AGENTE é o papel atribuído ao participante, tipicamente animado, que age deliberadamente para iniciar o evento e, assim, assume a responsabilidade por esse evento. O nome que codifica esse papel semântico desempenha prototipicamente a função de sujeito de uma oração que denota um evento simples, como em Maria chutou João. Por sua vez, LOCATIVO é o papel atribuído ao “lugar, tipicamente concreto e inanimado, em que o evento ocorre” (GIVÓN, op. cit., p. 107). O nome que codifica esse papel semântico desempenha a função de adjunto adverbial, como em Maria mora em São Paulo. Bybee et al. (1994) apontam que, formalmente, as palavras gramaticais podem ser afixos, reduplicações, auxiliares, partículas, ou construções complexas como be going to do inglês. Os verbos que desempenham papel gramatical são ditos auxiliares e os domínios semânticos mais recorrentemente codificados por eles são tempo, aspecto e modo. Os autores 28 apontam a necessidade de distinção entre a perda geral de autonomia decorrente da gramaticalização e a fusão de um item com o verbo. A perda de autonomia ou cliticização gera a dependência e a afixação de um elemento a outro, ao passo que, no processo de fusão, alguns elementos, por sua posição no sintagma e/ou por sua baixa relevância para o verbo, tornam-se dele dependentes, mas não necessariamente se afixam a ele. A fusão é uma etapa avançada de gramaticalização, e não ocorre necessariamente com todos os verbos que se tornam auxiliares. 3.2 TRAJETÓRIAS DE MUDANÇA: O CASO DO VERBO Exemplos de certos percursos de gramaticalização são encontrados em diferentes grupos de línguas, o que pode ser atribuído à existência de padrões cognitivos e comunicativos comuns subjacentes ao uso da língua. Tipicamente, verbos lexicais dão origem a verbos auxiliares, via gramaticalização, ao longo da seguinte trajetória de mudança: VERBO PLENO > VERBO AUXILIAR > AFIXO Givón (2001), comentando essa trajetória de gramaticalização, defende que verbos auxiliares podem ser entendidos como representando um estágio morfossintático transitório diacronicamente, um estágio que preenche a lacuna entre os verbos principais que possuem argumentos e os afixos de tempo, aspecto e modo. Esses afixos surgem quase universalmente de verbos principais que se gramaticalizam inicialmente como auxiliares e eventualmente se cliticizam antes de atingir o estágio afixal. O autor menciona ainda que os verbos auxiliares exibem muitas características morfossintáticas de seus verbos fontes. Bastante freqüentemente, porém, é preciso considerá-los clíticos verbais, uma vez que não são acentuados e aparecem adjacentes ao verbo. Payne (1997) também cita o fato de que verbos auxiliares normalmente derivam de verbos plenos/lexicais e indica como as fontes mais prováveis para a auxiliarização os verbos que se referem a situações estáticas como ser e sentar, os verbos de movimento como ir e vir e os verbos que tomam complementos, como dizer, acabar, começar, permitir, fazer, querer. Abordando os aspectos semântico-pragmáticos implicados nessas trajetórias de mudança de categoria, Heine et al. (1991) afirmam que a evolução de formas lingüísticas verbais rumo à gramática invariavelmente parte de significados concretos/lexicais (os do verbo pleno/lexical) rumo a significados gradualmente mais abstratos/gramaticais (típicos de 29 categorias como verbos auxiliares, clíticos e afixos). Segundo os autores, as fontes translingüisticamente mais recorrentes nos processos de emergência das construções gramaticais em geral são itens lexicais que designam partes do corpo; verbos dinâmicos, de postura e de processos mentais; quantificadores e demonstrativos básicos. Por sua vez, Bybee et al. (1994) apontam a existência de um pequeno conjunto de fontes mais recorrentes, nas línguas do mundo, para a emergência de novos verbos auxiliares, conjunto esse que engloba, em especial, verbos de movimentação, localização física, existência, volição e posse. Heine e Kuteva (2007) apresentam as seguintes trajetórias de gramaticalização envolvendo verbos: verbo > adposição, verbo > advérbio, verbo > aspecto, verbo > marcador de caso, verbo > complementizador, verbo > negação, verbo > marcador de voz passiva, verbo > subordinador, verbo > tempo. Segundo os autores, essas trajetórias são as mais comuns translingüisticamente. No que diz respeito à trajetória verbo > aspecto, de grande interesse para este estudo, Heine e Kuteva informam que A maioria das línguas do mundo têm sofrido esse processo, pelo qual verbos lexicais assumem a função de auxiliar de outros verbos e se transformam em marcadores de funções aspectuais como progressivo, durativo, habitual, completivo, perfectivo, iterativo, entre outras. (2007, p. 13) Bybee et al. (1994) tecem alguns comentários sobre o significado de morfemas comumente envolvidos em processos de gramaticalização. Segundo os autores, morfemas lexicais geralmente possuem significados muito ricos e específicos que restringem seus contextos de uso. Tal é o caso dos verbos walk (caminhar) e swim (nadar), que codificam vários detalhes sobre a natureza de um movimento, tornando-se, assim, apropriados apenas para certos tipos de sujeito. Todavia, há morfemas lexicais que possuem significado mais generalizado, como os verbos go (ir) e come (vir), que codificam um menor número de especificidades e são, portanto, apropriados em um conjunto de contextos muito maior. Como decorrência, esses verbos são os mais freqüentes entre os verbos de movimento no inglês. Itens lexicais que manifestam tão alto grau de generalidade em termos de significado são os que mais comumente são empregados em construções que sofrem gramaticalização. Por sua vez, os itens gramaticais, descendentes dos itens lexicais, perdem a maioria se não todas as especificidades do significado lexical que codificavam anteriormente; o significado que resta é bastante geral e freqüentemente abstrato ou relacional. 30 Os autores descrevem o caso do verbo go no sintagma gramaticalizado be going to ou gonna, que possuía, originalmente, valor semântico pleno de movimento no espaço, e a construção significava ‘o sujeito está em um percurso se movendo em direção a um ponto no espaço’. No uso corrente, porém, não é mais válida a restrição de que o sujeito esteja se movendo no espaço em direção a um ponto, ou seja, essa restrição sofreu erosão ou foi perdida, e o significado da construção é mais geral, qual seja o de que o sujeito está, em qualquer sentido (espacial ou outro), em um curso em direção a um certo ponto final no futuro. Com sujeitos humanos ou animais (agentes capazes de comportamento intencional), o curso pode ter sido estabelecido pelo fato de o sujeito ter decidido fazer algo ou por ser ele um participante em um processo que já tinha começado, como em (1) e (2): (1) I’m gonna be a pilot when I grow up. (2) She’s gonna have a baby. O significado mais generalizado também permite sujeitos que não são capazes de movimento físico e eventos que não envolvem movimento no espaço, como em (3) e (4) (3) The tree is gonna lose its leaves. (4) That milk is gonna spoil if you leave it out. Na verdade, uma forma em estágio mais avançado de gramaticalização não possui restrições selecionais por si só (por exemplo, para selecionar o sujeito); quaisquer que sejam as restrições selecionais que estão em vigor, elas são aquelas do item lexical do qual a forma gramaticalizada é dependente. A seguir, constam algumas propostas de classificação do verbo CHEGAR na perífrase [V1 (E) + V2] encontradas na literatura referente à língua portuguesa. 3.3 PROPOSTAS REFERENTES AO VERBO CHEGAR Na literatura lingüística, o uso de verbos como CHEGAR na construção [V1 (E) + V2] tem sido vinculado à indicação aspectual, mas não há concordância quanto à natureza do tipo de aspecto em jogo. Na seção 3.3.1, tecemos algumas considerações sobre a categoria aspecto. A seguir, nas seções 3.3.2, 3.3.3, 3.3.4 e 3.3.5, apresentamos as classificação de 31 CHEGAR e de verbos similares que têm sido propostas na literatura referente à língua portuguesa. 3.3.1 ASPECTO O aspecto é uma categoria gramatical não dêitica responsável por descrever a configuração temporal interna dos eventos quanto a graus de desenvolvimento (início, duração, conclusão), em oposição a sua localização temporal (presente, passado, futuro), tarefa esta que é levada a cabo pela categoria dêitica tempo. O aspecto pode ser codificado, dependendo da língua, através de verbos auxiliares, de clíticos e/ou de afixos. Em algumas línguas, o aspecto pode ser combinado com alguma outra categoria, em geral tempo. Conforme Comrie (1981, p. 16), há duas classes aspectuais principais: perfectiva e imperfectiva. Para o autor, “perfectividade indica a visão de uma situação como um todo único, sem distinção das fases que a constituem”; ao passo que o aspecto “imperfectivo presta especial atenção à estrutura temporal interna da situação”. Uma vez que não expressa a estrutura interna de uma situação, o aspecto perfectivo, independentemente da complexidade objetiva dessa situação (isto é, se ela dura por um período considerável de tempo ou não, se ela inclui um número distinto de fases internas ou não), tem o efeito de reduzi-la a um único ponto: todas as suas partes são apresentadas como um todo único. Givón (2001) diferencia aspecto perfectivo de imperfectivo da seguinte forma: o perfectivo focaliza a terminação e a delimitação do evento, e manifesta forte associação com o passado, ao passo que o imperfectivo centra o foco fora da terminação e da delimitação. O autor menciona ainda os aspectos progressivo, durativo e contínuo, ligados à codificação de processo em curso, os aspectos habitual e repetitivo, ligados à codificação de eventos que se repetem; e certos aspectos costumeiramente codificados por verbos auxiliares: iniciação (começar, principiar, etc), duração (continuar, persistir, etc), terminação (acabar, parar, etc), êxito (lembrar, ser capaz de, etc), falha (evitar, recusar, esquecer, etc). Travaglia (1981, p. 150-153) apresenta uma proposta de classificação dos verbos da língua portuguesa quanto ao aspecto, vinculando essa noção à de tempo. Para o autor, o presente do indicativo e o pretérito imperfeito do indicativo geralmente expressam aspecto imperfectivo e o pretérito perfeito do indicativo normalmente marca o aspecto perfectivo. O futuro do presente e o futuro do pretérito não marcam qualquer aspecto, pois esses verbos “[...] marcam o tempo futuro que atribui à situação uma realização virtual, até certo ponto abstrata”, o que anula ou dificulta a percepção das noções aspectuais. Segundo o autor, nos 32 tempos do subjuntivo é rara a marcação de aspecto, pois as situações são apresentadas como irreais, incertas. A relação do aspecto com o tempo é, porém, apenas uma das faces da manifestação desse fenômeno na língua portuguesa. O aspecto não possui morfologia própria na língua portuguesa, e, segundo Castilho (2002) e Longo e Campos (2002), ele é, então, codificado através de diversos recursos formais: (i) itens lexicais (classes semântico-aspectuais dos verbos ou Aktionsarten – a semântica do radical verbal); (ii) flexões; (iii) derivações; (iv) combinações entre argumentos do verbo e adjuntos adverbiais; (iv) perífrases verbais (verbo auxiliar + verbo principal). A semântica dos elementos enumerados de (ii) a (iv) combina-se, para a codificação do aspecto, com o elemento (i), a semântica do radical, podendo alterá-la de variados modos. Na literatura referente ao aspecto em língua portuguesa, encontram-se diversas classificações. Por exemplo, Castilho (2002) propõe as seguintes distinções: (1) imperfectivo (inceptivo, cursivo, terminativo); (2) perfectivo (pontual, resultativo); (3) semelfactivo, iterativo. Já Longo e Campos (2002) distinguem dez subtipos: (1) inceptivo; (2) ingressivo; (3) cursivo; (4) progressivo; (5) permansivo; (6) habitual; (7) iterativo; (8) cessativo; (9) resultativo; (10) perfectivo. Neves (2000) caracteriza como operadores gramaticais os verbos que modalizam, os que indicam aspecto e os que auxiliam a indicação de tempo e de voz; todos possuindo em comum o fato de não constituírem predicado. Relativamente aos verbos que indicam aspecto, a autora esclarece que eles formam perífrases ou locuções que indicam: a) Início do evento (aspecto inceptivo): passar a, pôr-se a, desandar a, começar a/por + verbo no infinitivo b) Desenvolvimento do evento (aspecto cursivo): estar, vir, continuar, ficar + verbo no gerúndio O curso do evento pode configurar: • hábito (aspecto habitual): viver a + verbo no infinitivo; viver, andar + verbo no gerúndio • progressão (aspecto progressivo): estar, ir, vir + verbo no gerúndio c) Término ou cessação de evento (aspecto terminativo ou cessativo): parar de, acabar de, deixar de, cessar de, bastar de, terminar por + verbo no infinitivo d) Resultado de evento (aspecto resultativo): estar, ficar + verbo no particípio e) Repetição de evento 33 • com idéia de freqüência (aspecto iterativo ou freqüentativo): ter, costumar, dar de + verbo no infinitivo • sem idéia de freqüência: voltar a, tornar a + verbo no infinitivo f) Consecução: chegar a + verbo no infinitivo g) Intensificação: cansar de + verbo no infinitivo h) Aquisição de estado: vir a + verbo no infinitivo 3.3.2 ASPECTO INCEPTIVO E ASPECTO GLOBAL Há uma série de estudos que vêm se dedicando a analisar o comportamento de construções do tipo [V1 (E) V2] na língua portuguesa, e cada um deles propõe classificações distintas acerca da função desempenhada por tais construções. A maior parte desses estudos se debruça sobre o caso do verbo PEGAR, mas suas considerações e propostas podem ser aplicadas também ao caso do verbo CHEGAR. Comentaremos brevemente alguns estudos. Merlan (1999), avaliando dados do português europeu, considera construções do tipo Pegar E V e Agarrar E V perífrases paratáticas, e as define como constituídas por dois verbos flexionados no mesmo tempo, aspecto, modo, pessoa e número, sendo que apenas o segundo deles possui significado lexical, e o primeiro, originariamente verbo indicativo de movimento (ir, vir), apropriação (pegar, agarrar) ou posicionamento (pôr-se), é um aspectual que exprime o início súbito, inesperado do evento referido pelo segundo verbo; trata-se de uma construção de valor inceptivo, portanto. Segundo a autora, dependendo do contexto, essa construção pode indicar também espanto, irritação ou lamento por parte do falante. Construções como tal são encontradas nas línguas românicas, com exceção do francês, e são típicas do registro coloquial. Alguns exemplos fornecidos por Merlan: pegou e meteu o dedo na bengala; pegou em si e foi ao palácio; agarrei e contei-lhe tudo; o pai, muito desesperado, agarrou-se em si e foi-se embora. Já Bechara (2004) apresenta a proposta de Coseriu para a interpretação do verbo românico no que diz respeito ao tempo e aspecto; para tratar do aspecto, essa proposta traz as seguintes subcategorias: (1) nível de tempo; (2) perspectiva primária; (3) perspectiva secundária; (4) duração; (5) repetição; (6) conclusão; (7) resultado; (8) visão; (9) fase. Bechara, com base em Coseriu, descreve a categoria aspectual denominada visão, “segundo a qual o falante pode considerar a ação verbal em seu todo ou parcialmente, em fragmentos, entre dois pontos de seu curso”. Dentro dessa categoria, há um subtipo denominado visão global, que retrata a totalidade da ação, tornando-se irrelevantes as fases de seu 34 desenvolvimento. O autor afirma que há, na língua portuguesa, expressões para acentuar a visão global, quais sejam as perífrases aditivas com tomar, pegar, agarrar: pego e escrevo, agarro e escrevo, tomo e escrevo. O autor menciona ainda que a visão global “acompanha-se de todas as significações “enfáticas” do modo de falar, como “de fato”, “com efeito”, “rápido”, “inesperado”, “surpreendente”, “decidido”, “terminantemente”. Para ilustrar a categoria visão, Bechara apresenta o seguinte esquema: pego e escrevo (não-cursiva) não-parcializante = global escrevo neutral estou escrevendo (cursiva) parcializante Nessa perspectiva, a construção [PEGAR (E) V2] indicaria aspecto global (o evento como um todo seria apresentado como ‘rápido’, ‘inesperado’), e não inceptivo (o início do evento é apresentado como ‘rápido’, ‘inesperado’). No entanto, ainda de acordo com Bechara (baseado em Coseriu), dentro da categoria aspectual denominada fase (que traduz a “relação entre o momento da observação e o grau de desenvolvimento da ação verbal observada”), temos a fase inceptiva, responsável por marcar o ponto inicial da ação. Essa fase é denotada, segundo o autor, pela combinação léxica pura começar a, e por várias perífrases verbais que põem ênfase ora na velocidade ora no repentino da ação: pôr-se a, meter-se a, pegar a (de), e também por perífrases aditivas: ele agarrou e foi-se embora. Portanto, por ser similar à perífrase agarrar e, incluída por Bechara tanto na lista de exemplos de marcadores de visão global quanto de fase inceptiva, pegar e poderia também ser enquadrada tanto na primeira quanto na segunda categoria. Ou seja, das propostas de classificação do verbo PEGAR apresentadas por Merlan e por Bechara, é possível configurar as seguintes trajetórias de gramaticalização para o verbo em questão e, devido à semelhança de comportamento morfossintático e semânticopragmático, também para o verbo CHEGAR: VERBO LEXICAL > VERBO AUXILIAR INDICADOR DE ASPECTO INCEPTIVO VERBO LEXICAL > VERBO AUXILIAR INDICADOR DE ASPECTO GLOBAL 35 3.3.3 ÊNFASE/REALCE DE TRECHOS NARRATIVOS Dutra (2003) propõe uma classificação segundo a qual PEGAR, na construção [PEGAR (E) V2], é uma forma realçadora de eventos dentro de uma seqüência narrativa, conforme ela própria ilustra: “E sopra sopra a a brasa na xícara / aí a xícara queimou. / Quase que começou a derreter/ e furar a xícara / Aí ele pega joga a brasa fora.”. Segundo a autora, nessa função, i) PEGAR antecede o verbo propriamente dito e concorda com ele em tempo, modo, número e pessoa, sendo dele dependente; (ii) entre esses dois verbos o conectivo e pode ocorrer; (iii) PEGAR não traduz o movimento de um agente num espaço físico e sim o movimento de um fato para outro, salientando o evento a seguir como decorrente de outro(s) no desenrolar da narrativa. Nas palavras da autora: a forma “pega” em “Aí ele pega joga a brasa fora” indica algo como “em conseqüência do ocorrido anteriormente (isto é, de a brasa estar queimando a xícara) ele então/a seguir faz isso: joga a brasa fora”. Nesse sentido, formas como pegar funcionam como uma ponte que liga simultaneamente certos eventos anteriores a um determinado evento subseqüente na narrativa. (p. 98) Segundo Rodrigues (2005), os verbos CHEGAR, PEGAR e IR se juntam a outros verbos com os quais formam construções que a autora agrupa sob o rótulo “construções foi fez”, ou CFFs. Em tais construções, de acordo com ela, esses verbos atuam de modo a dar destaque ao trecho discursivo em que estão inseridos, desempenhando a função discursivopragmática de dramatizar ou enfatizar os eventos codificados pelo segundo verbo. Essa construção, que é constituída por uma seqüência mínima de V1 e V2, em que V1 e V2 compartilham sujeito e flexões modo-temporais e número-pessoais, e podem estar conectados pela conjunção e ou justapostos, aparece, segundo Rodrigues, na modalidade falada do português brasileiro. A autora oferece vários exemplos, dos quais eis alguns: (a) Chega lá, [você não]- você não entende, não fala castelhano, fica o rádio faiando castelhano, como é?-" "Ih, mas é mesmo! Aí, não quero não." (rindo) chegou e devolveu o rádio. (risos) Essa é uma, essa é uma das. (risos) e aí, por aí a fora, não é? 36 (b) Ele se mantém também tem um (inint), ele está com trinta e poucos ano, mas mantém a forma. Porque, senão, a pessoa chega começa a ficar barriguda. A análise levada a cabo por Rodrigues trouxe os seguintes resultados: • CHEGAR passa por alterações sintáticas significativas, pois, como verbo pleno, possui como complemento um circunstanciador locativo, mas, nas CFFs, não possui nenhum tipo de complemento. • Apesar de ter sido constatada uma alteração semântica clara na maioria dos casos de CFFs, foram registrados vários exemplos ambíguos. • Não há presença de material interveniente além da conjunção e e do advérbio de negação. • O sujeito precede V1 e é correferencial com o sujeito de V2 em todas as ocorrências. A ordem de freqüência dos tipos de sujeito é, da maior para a menor: anáfora pronominal, anáfora zero, sintagma nominal pleno, sujeito oracional e oração sem sujeito, os dois últimos tipos de recorrência muito baixa. • Predomínio do tempo verbal pretérito perfeito, seguido do presente do indicativo. Rodrigues atribui a alta freqüência de CFFs no pretérito perfeito ao contexto de narrativa em que essas construções comumente emergem. • Embora haja casos de CFFs no modo subjuntivo, o indicativo é predominante. • Na grande maioria das ocorrências, V2 é um verbo que expressa ação, caracterizado pelos traços [+ dinâmico] e [+ controle]. Os verbos dicendi destacam-se entre os verbos que mais aparecem na posição de V2. • V1 nunca recebe negação; a partícula negativa é sempre adjacente a V2 e só se aplica a ele. Rodrigues compara qualitativamente as CFFs e as construções com verbo auxiliar típicas do português (CVAs), e aponta as seguintes similaridades entre ambas: (i) possuem apenas um argumento sujeito; (ii) é impossível o desdobramento da oração em construções com conjunto integrante que ou se; (iii) o escopo do circunstante temporal toma a totalidade da construção; (iv) não aceitam forma passiva; (v) o número de verbos que podem ocupar a posição V1 é restrito; (vi) não admitem pronominalização; (vii) o primeiro verbo sofre alterações de significado. A autora aponta também as seguintes diferenças entre as CFFs e as CVAs: (i) nestas, V1 é responsável por toda informação gramatical relacionada com o 37 predicado, como marcadores flexionais de pessoa, número, tempo/aspecto/modalidade e negação; naquelas, V1 e V2 apresentam marcadores flexionais de pessoa, número, tempo/aspecto/modalidade e apenas V2 pode receber negação; (ii) nas CVAs, o verbo principal é normalmente uma forma nominal, ao passo que, nas CFFs, V1 e V2 compartilham flexão. Por conta dessas diferenças, Rodrigues propõe que construções as CFFs sejam tratadas como uma classe distinta das CVAs. Enfim, das propostas de classificação de verbos como CHEGAR apresentadas por Dutra e por Rodrigues, é possível configurar a seguinte trajetória de gramaticalização: VERBO LEXICAL > MARCADOR DE ÊNFASE 3.3.4 CONSTRUÇÃO DE ESPAÇO MENTAIS Sigiliano (2007, p. 736), no âmbito de uma abordagem sócio-funcional-cognitivista, defende que o verbo PEGAR, em estruturas do tipo “PEGAR (E) (X) (E)” atua como space builder, isto é, como “uma expressão gramatical que fornece um substrato para a abertura de um novo espaço-mental ou mudança de foco para um espaço mental existente.” Os significados mais e menos concretos do verbo em questão, para Sigiliano, são polissêmicos, e essa polissemia é baseada nas relações metafóricas existentes entre eles, e, estas, por sua vez, são fundamentadas “na necessidade humana de reduzir eventos abstratos para uma escala física tangível.” Ou seja, todas as estruturas das quais PEGAR faz parte possuem em comum, segundo essa proposta, um espaço básico concreto, do qual as estruturas de significado abstrato são derivadas. De acordo com Sigiliano, há dois tipos em especial de estruturas em que PEGAR é empregado na construção de espaços de natureza abstrata: uma em que o verbo, atuando como construtor de espaço-mental, introduz uma cena de agentividade prototípica, em que um agente humano age sobre um paciente (cf. (a)); e outra em que PEGAR atua como construtor de espaço no âmbito do discurso reportado (cf. (b)). A autora conclui ressaltando que, seja no uso como construtor de cenas de agentividade, seja no uso como seqüenciador de narrativa, deve-se considerar 38 O caráter polissêmico de sua rede de significados, alguns dos quais tornaram-se cristalizados pelo uso, sem deixar, porém, de manter relações semânticas com os significados mais básicos do verbo em seu uso pleno. (op. cit., 2007, p. 737) (a) Naquele dia eu nem fui de carro porque eu digo: “bom, vou fazer economia de gasolina”. Peguei e fui de carro até o lado de lá da serra e parei. Deixei o carro lá. (PEUL/UFRJ – Informante 03) (b) Mas ele não viu que era uma menina, né, eu ri, mas ri sem graça. Aí ele pegou ele me perguntou, aí eu expliquei pra ele que queria um menino homem. (PEUL/UFRJ – Informante 06) De acordo com essa proposta, podemos inferir a ocorrência da seguinte trajetória de gramaticalização para o verbo PEGAR, partindo de seu uso lexical e chegando a seu uso gramatical: CONSTRUTOR DE ESPAÇO FÍSICO > CONSTRUTOR DE ESPAÇO MENTAL 3.3.5 NUANÇAS SEMÂNTICO-PRAGMÁTICAS DO ASPECTO GLOBAL Tavares (2005, 2008) apresenta uma proposta para a categorização funcional de verbos como PEGAR, CHEGAR, IR e VIRAR na perífrase [V1 (E) V2] que combina algumas das classificações correntes na literatura. A autora descarta, porém, a possibilidade de considerar tais verbos, nessa perífrase, como marcadores de aspecto inceptivo. O aspecto inceptivo traz indicações acerca do início de algum evento (ação, processo, estado) e, especificamente no caso do verbo PEGAR, segundo Merlan (1999), teríamos um aspectual que exprime o início imediato da ação concretizada pelo segundo verbo, isto é, um verbo que codifica não apenas a fase inicial de uma ação, mas também o fato de esse início ter-se dado de modo instantâneo. Ou seja, em contraste com alguns verbos marcadores de aspecto inceptivo que se referem ao momento inicial de uma ação de um modo mais neutro, como em João começou a falar e João passou a falar, PEGAR seria empregado para referir o início repentino de uma ação. 39 Outros aspectuais, dependendo do contexto de uso, podem fazer semelhante referência, como em João principiou a falar e João desandou a falar. O aspecto inceptivo está relacionado ao aspecto imperfectivo, como um de seus subtipos (cf. CASTILHO, 2002). O imperfectivo codifica o evento não como um todo único, e sim como não delimitado temporalmente, fazendo referência à sua estrutura interna, o que envolve a referência a uma fase específica desse evento – início, duração, conclusão. O inceptivo, por exemplo, dá destaque à fase inicial do evento (João começou/passou/principiou/desandou a falar), em oposição à fase de duração do evento (aspecto cursivo, como em João continuou/ficou/veio/esteve falando) e à fase de conclusão do evento (aspecto terminativo ou cessativo, como em João parou/acabou/deixou/terminou de falar). A razão do descarte da possibilidade de que IR, CHEGAR, VIRAR e PEGAR, na perífrase [V1 (E) V2], indiquem aspecto inceptivo é que, em nenhuma das ocorrências analisadas por Tavares (2005), há focalização apenas nos momentos iniciais de um evento. Em todos os casos, o evento é codificado como um todo indivisível, pontual, isto é, sem um destaque especial para uma de suas etapas – propriedades típicas do aspecto perfectivo. Esse todo é que é apresentado, pelo falante, como tendo ocorrido de modo súbito, inesperado. Observemos alguns exemplos com o verbo PEGAR fornecidos por Tavares: (a) Não queria esperar. E eu sei que quando ela correu, correu, correuQuando ela chegou lá, lá perto do ônibus, o motorista pegou e foi embora, deixou ela sozinha. E ela com a maior vergonha e todo mundo rindo da cara dela lá no meio da rua e ela sem graça, aí foi isso, sabe? (F., Rio de Janeiro, Corpus D&G) (b) Estávamos eu e ele no gol. E eu estava na corrida e ele no gol. Eu peguei e dei-lhe uma porrada. Ele botou o pé na bola assim e torci o pé dele. (R, Florianópolis, Banco VARSUL) (c) De tanto que o cara decora aquilo ele já se começa sabendo. Só que eu não. Eu pego e estudo pra prova. Depois da prova eu já não sei mais nada. (R, Florianópolis, Banco VARSUL) A classificação de PEGAR como verbo indicador de aspecto global, proposta por Bechara (2004) com base em Coseriu, parece servir, portanto, para o uso sob enfoque, pois esse aspecto indica a totalidade de um evento, tornando irrelevantes suas fases de desenvolvimento. Verbos como tomar, pegar, agarrar em perífrases como pego e escrevo, 40 agarro e escrevo, tomo e escrevo, segundo Bechara, acentuam a visão global, e disparam, em seus contextos de uso, significações como “rápido”, “inesperado”, “surpreendente”, “decidido”, ou seja, matizes semântico-pragmáticos típicos da codificação de eventos vistos pelo falante/escritor como globais. IR, CHEGAR, VIRAR e PEGAR, na perífrase [V1 (E) V2], codificam lingüisticamente [...] matizes de significado ligados a contextos de interação em que tipicamente ocorre a manifestação do aspecto global, disparando indicações semântico-pragmáticas relacionadas ao plano do repentino e/ou do surpreendente. (TAVARES, 2008, p. 3) Segundo Tavares, o aspecto global, por apresentar o evento denotado por um segundo verbo como súbito, inesperado, pontual, relaciona-se, talvez como um subtipo, ao aspecto perfectivo, caracterizado como temporalmente delimitado, compacto, de fronteiras nítidas, com forte associação com o passado. Um aspectualizador global como CHEGAR, ao codificar nuanças semântico-pragmáticas ligadas ao caráter repentino de um evento, acrescenta traços de perfectividade ao verbo principal da perífrase [V1 (E) V2] ou então os intensifica, no caso de este já os manifestar através de seu significado lexical – Aktionsart – e/ou de marcas morfológicas de aspecto perfectivo que porta (no caso do português brasileiro, as marcas indicadoras de pretérito perfeito do indicativo, por exemplo). Em geral, o emprego de IR, CHEGAR, VIRAR e PEGAR como aspectualizadores, além de fornecer indicações acerca do caráter repentino, súbito, veloz, do evento denotado por V2, permite a inferência de que o falante/escritor vê a ocorrência desse evento com surpresa/espanto, frustração/lamento ou mesmo irritação/crítica. Ou seja, Tavares, embora discorde de Merlan (1999) quanto à natureza do aspecto codificado por PEGAR, concorda que esse verbo, dependendo do contexto, pode indicar espanto (o que também é apontado por Bechara), irritação ou lamento por parte do falante/escritor. Tavares (2005, 2008) observa ainda que, em certos contextos, é possível perceber que o falante/escritor sinaliza, através do uso da construção perifrástica sob estudo, que há uma tomada de iniciativa por parte do participante agente (no papel sintático de sujeito da perífrase) para concretizar o evento em causa. Esse agente toma a iniciativa (em geral súbita) de fazer algo e imediatamente o faz, sendo essa informação codificada, através da perífrase [V1 (E) V2], em um bloco único, o que ressalta o caráter global do evento. Em seu dicionário, 41 Borba (2002) apresenta ‘tomar iniciativa’ entre os significados do verbo PEGAR, e fornece dois exemplos: “mãe pegou e deu uma surra no garoto”, “Vê uma placa assim: “não cuspa no chão”, brasileiro pega e cospe na placa”. Contudo, nem sempre é possível atribuir tomada de iniciativa ao referente do nome que desempenha o papel de sujeito na perífrase [V1 (E) V2]. Tomemos alguns exemplos, provenientes de Tavares (2008): “Todo mundo votou no Tancredo. O Tancredo vai e morre, aí fica o Sarney para bagunçar toda a economia.”, “Aí o guri pegou ficou com medo” e “A primavera pega e começa no dia 20 de setembro.” A autora conclui afirmando que, uma vez que verbos como IR, CHEGAR, VIRAR e PEGAR se tornem codificadores de aspecto global, matizes pragmáticos ligados à indicação desse aspecto (como surpresa ou frustração frente ao evento repentino) são incorporados ao conjunto de relações passíveis de serem sinalizadas através da construção [V1 (E) V2]. No português brasileiro contemporâneo, esses verbos ressaltam um leque de nuanças semânticopragmáticas como o caráter repentino, instantâneo ou até brusco do evento referido pelo verbo principal da construção, e/ou a tomada de iniciativa (súbita) do agente (no papel sintático de sujeito da perífrase), e/ou avaliações subjetivas que vão da surpresa à frustração. Revelam, portanto, como o falante/escritor percebe e apresenta ao ouvinte/leitor circunstâncias ligadas à realização do evento referido por um verbo principal. Essas nuanças se sobrepõem em graus variados a cada ocorrência, e podem, a princípio, ser enquadradas sob o rótulo de aspecto global. É esta última perspectiva que adotamos em nossa pesquisa. Descrevemos e analisamos propriedades semântico-pragmáticas e morfossintáticas das construções coordenadas e perifrásticas em que CHEGAR é o primeiro verbo (V1), e inferimos dessas propriedades indícios de um possível percurso de gramaticalização que tem como ponto de partida a construção coordenada e como ponto de chegada a construção perifrástica em que CHEGAR indica aspecto global. 42 4. METODOLOGIA Utilizamos como fonte de dados o Corpus Discurso e Gramática: a língua falada e escrita na cidade do Natal (Corpus D&G), organizado pelo Grupo de Estudos Discurso & Gramática, sob orientação da professora Maria Angélica Furtado da Cunha, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Esse corpus foi publicado pela Editora da UFRN em 1998 e compõe-se de duzentos depoimentos coletados de vinte informantes naturais do município de Natal, capital do Rio Grande do Norte. Cada um desses informantes produziu cinco tipos distintos de textos orais e, a partir destes, cinco textos escritos, sendo os tipos de textos os seguintes: a) narrativa de experiência pessoal: o informante tece uma narrativa sobre uma importante experiência pela qual ele próprio tenha passado em algum momento de sua vida; b) narrativa recontada: o informante tece uma narrativa que lhe tenha sido recentemente relatada por alguém, envolvendo uma importante experiência pela qual outro indivíduo tenha passado; c) descrição de local: o informante descreve um local (casa, cidade, escola, etc); d) relato de procedimento: o informante discorre sobre as etapas e os procedimentos necessários para a realização de alguma atividade; e) relato de opinião: o informante fornece sua opinião acerca de algum tema polêmico (aborto, corrupção, religião, etc). Entre os objetivos que levaram à constituição do Corpus D&G, podemos mencionar: (1) criar um banco de dados com correspondência de conteúdo entre fala e escrita, de modo a viabilizar a comparação mais rigorosa entre essas duas modalidades da língua; (2) analisar, em diferentes tipos textuais (narrativas, descrição e relatos), o modo de codificação da informação; (3) comparar o comportamento dos canais da fala e da escrita em relação ao modo de codificação (cf. FURTADO DA CUNHA, 1998). Com o intuito de incentivar estudos que abordassem possíveis influências do nível de escolaridade dos natalenses sobre o modo como usam a língua, na constituição do Corpus D&G foram selecionados quatro informantes para cada segmento da Educação: classe de alfabetização da Educação Infantil; 4ª série do 1º Grau; 8ª série do 1º Grau; 3ª série do 2º Grau; último ano do 3º Grau. A variável sexo também foi controlada. Para tanto, os 43 informantes foram distribuídos em femininos e masculinos de modo homogêneo. É importante salientar a existência de correlação estreita entre idade e escolaridade. O quadro a seguir detalha a distribuição dos informantes do Corpus D&G quanto a suas características sociais: NÍVEL DE ESCOLARIDADE / IDADE Alfabetização infantil / 5 a 8 anos Quarta série ensino fundamental / 9 a 11 anos Oitava série ensino fundamental / 13 a 16 anos Terceira série ensino médio / 18 a 20 anos Final do ensino superior / mais de 23 anos GÊNERO FEMININO MASCULINO 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 Quadro 1: Estratificação dos informantes do Corpus D&G de acordo com características sociais Lemos todos os duzentos registros que constituem o Corpus D&G e deles extraímos treze dados referentes às perífrases [CHEGAR (E) + V2], em que V2 é um verbo de elocução, e onze dados referentes às orações coordenadas/justapostas em que CHEGAR é o verbo principal da primeira oração e um verbo de elocução é o verbo principal da segunda oração. Com a seleção desses dados, pretendemos buscar indícios sincrônicos da gramaticalização do verbo CHEGAR como auxiliar na perífrase [CHEGAR (E) + V2]. As mudanças envolvidas na gramaticalização são induzidas pelos contextos de uso das formas relevantes. De acordo com Traugott (2003), a mudança acontece em certas construções morfossintáticas altamente especificáveis. Por conseguinte, o surgimento de funções gramaticais é modelado pelas construções morfossintáticas em que um dado item lingüístico é empregado. Nessa perspectiva, apenas as construções coordenadas/justapostas em que CHEGAR é o verbo principal da primeira oração e um verbo de elocução é o verbo principal da segunda oração cumprem os requisitos necessários para serem tomadas como representantes sincrônicas das prováveis construções fontes da mudança funcional sofrida por CHEGAR, mudança essa que desembocou em seu uso na perífrase [CHEGAR (E) + V2]. Os requisitos são os seguintes: (1) Significado: Heine et al. (1991) afirmam que a evolução de formas lingüísticas rumo à gramática acontece em trajetórias que invariavelmente partem de significados concretos/lexicais rumo a significados gradualmente mais abstratos/gramaticais. Sendo assim, as prováveis construções fontes dos usos de CHEGAR como aspectualizador na perífrase 44 [CHEGAR (E) + V2] são aquelas em que ocorrem seus usos como verbo lexical de significado concreto, referindo-se à movimentação física de um agente no espaço: esse agente se aproxima ou atinge um ponto no espaço. É com esse significado que CHEGAR se enquadra entre as fontes translingüisticamente mais recorrentes nos processos de emergência de construções gramaticais. Essas fontes, segundo Heine et al. (1991), são itens lexicais que designam partes do corpo; verbos dinâmicos, de postura e de processos mentais; quantificadores e demonstrativos básicos. O verbo CHEGAR lexical apresenta, em seu sentido mais básico, ‘aproximar-se ou atingir um ponto no espaço’, o traço de dinamicidade, pois indica movimentação física. Além disso, CHEGAR, com esse sentido, também se enquadra no pequeno conjunto das fontes mais recorrentes, nas línguas em geral, para a emergência de novos verbos auxiliares. Krug (2001) lista verbos das seguintes classes semânticas como as fontes lexicais mais comuns para o surgimento de marcadores de tempo, aspecto e modalidade: (i) verbos pertencentes ao mundo do raciocínio e/ou percepção, como saber, ver, achar; (ii) verbos dicendi, como dizer, contar; (iii) verbos de movimentação altamente generalizados, como ir, vir; (iv) verbos dinâmicos generalizados que expressam papéis temáticos como benefactivo, paciente ou agente, como dar, fazer, pegar; (v) verbos de volição, como querer, gostar. O uso de CHEGAR com sentido de ‘aproximar-se ou atingir um ponto no espaço’ é pertinente à categoria de verbos de movimentação altamente generalizados. (2) Similaridade estrutural com a construção perifrástica alvo [CHEGAR (E) + V2]: Não são quaisquer construções em que CHEGAR possui o significado de ‘aproximar-se ou atingir um ponto no espaço’ que podem ser tomadas como fontes de seu emprego como indicador aspectual, e sim as construções coordenadas/justapostas em que CHEGAR é o verbo principal da primeira oração e um verbo de elocução é o verbo principal da segunda oração. O uso de CHEGAR como verbo principal no primeiro membro de um par desse tipo de orações coordenadas/justapostas manifesta características em comum com seu uso como indicador aspectual, na perífrase [CHEGAR (E) + V2]: em ambas as construções, há dois verbos flexionados, o primeiro dos quais é CHEGAR; esses verbos codificam o mesmo tempo, aspecto e modo; e pode haver ou não a conjunção E interligando as duas metades de cada estrutura. Essa similaridade estrutural pode ser tomada como indício de que há relações do tipo FONTE > ALVO em um processo de gramaticalização. 45 Portanto, as construções que nos interessam para a análise do processo de gramaticalização de CHEGAR na perífrase aspectual [CHEGAR (E) + V2] são as dos seguintes tipos: (1) construções coordenadas/justapostas em que o verbo CHEGAR, desempenhando o papel de verbo principal da primeira oração, indica ação física; (2) construções perifrásticas [CHEGAR (E) + V2]. Em ambos os casos, V2 é um verbo de elocução. Esses dois tipos de construção foram submetidos à análise quantitativa com fins de comparação. Para tanto, utilizamos o pacote estatístico VARBRUL, que nos forneceu freqüências e percentuais. Essa análise levou em conta o controle dos grupos de fatores listados a seguir, cada um deles congregando elementos importantes para a descrição do comportamento semântico-pragmático e morfossintático das construções sob enfoque. Cada fator controlado é seguido do código a ele atribuído na análise estatística. 1- Sujeito: • sujeito correferente – f • sujeito não-correferente – j • não se aplica (só há V1) – X 2- Formas de expressão do sujeito: • dois sintagmas nominais plenos – l • duas anáforas pronominais – s • duas anáforas zero – $ • sintagma nominal pleno em V1 e anáfora pronominal em V2 – g • sintagma nominal pleno em V1 e anáfora zero em V2 – k • anáfora pronominal em V1 e anáfora zero em V2 – m • anáfora zero em V1 e anáfora pronominal em V2 – 7 • anáfora zero em V1 e sintagma nominal pleno em V2 – 8 • anáfora pronominal em V1 e sintagma nominal pleno em V2 – 9 • não se aplica (só há V1) – 0 3- Pessoa do sujeito: • 1ª pessoa do singular – 1 • 2ª pessoa do singular – 2 46 • 3ª pessoa do singular – 3 • 1ª pessoa do plural – 4 • 2ª pessoa do plural – 5 • 3ª pessoa do plural – 6 • 1ª pessoa do singular em V1 e 3ª pessoa do singular em V2 – T • não se aplica (só há V1) – ? 4- Tipos de TAM (tempo, aspecto e modo): • Presente do Indicativo – k • Pretérito Perfeito do Indicativo – w • Pretérito Imperfeito do Indicativo – x • Presente do subjuntivo - s • Infinitivo – y 5- Conjunção: • conjunção presente – 1 • conjunção ausente – 2 6- Pausa: • pausa presente – 3 • pausa ausente – 4 7- Material interveniente • material interveniente presente – m • material interveniente ausente – v 8- Extensão do material interveniente: • uma sílaba – B • duas sílabas – G • três sílabas – H • quatro sílabas – Q • cinco a dez sílabas – > • de onze a mais sílabas – Z 47 • sem material – % 9- Natureza da avaliação do falante/escritor: • surpresa, alegria (positivo) – S • frustração, decepção, contrariedade, lamento (negativo) – U • irritação, raiva, crítica, tom acusatório, indignação (negativo mais intenso) – Y • neutralidade – W 10- Tipo de discurso: • narrativa de experiência pessoal – N • narrativa recontada – J • descrição de local – C • relato de procedimento – P • relato de opinião – O 11- Modalidade da língua: • oralidade – o • escrita – e 12- Plano do discurso: • figura - m • fundo - v 13- Gênero do informante: • masculino – u • feminino – n 14- Idade/escolaridade do informante: • Alfabetização infantil / 5 a 8 anos – b • Quarta série ensino fundamental / 9 a 11 anos – q • Oitava série ensino fundamental / 13 a 16 anos – t • Terceira série ensino médio / 18 a 20 anos – h • Final do ensino superior / mais de 23 anos – z 48 Após codificados de acordo com os fatores listados acima, os dados sofreram quantificação, pelo que obtivemos freqüências e percentagens que serviram de fundamentação para a caracterização do comportamento das construções sob enfoque e para a sua comparação. 49 5. CONSTRUÇÕES COORDENADAS/JUSTAPOSTAS VERSUS CONSTRUÇÕES PERIFRÁSTICAS 5.1 ANÁLISE DOS DADOS Em nossa análise, consideramos quatorze grupos de fatores distintos, cada um deles abarcando um conjunto de fatores importantes para a descrição do comportamento semânticopragmático e morfossintático das construções coordenadas/justapostas e perifrásticas em que CHEGAR é o V1 e V2 é um verbo de elocução. Os resultados quantitativos que obtivemos podem ser conferidos nas quatorze tabelas a seguir. 5.1.1 RELAÇÃO REFERENCIAL ENTRE OS SUJEITOS Quanto à relação referencial entre os sujeitos de V1 (CHEGAR) e de V2 (um verbo de elocução), levamos em conta os seguintes fatores: • Sujeito correferente: os sujeitos de V1 e V2 possuem o mesmo referente (1) aí um dia eu não tava muito afim de assistir aula dele ... né ... aí ... aí eu cheguei na turma e disse ... “olha ... Luiz Andrade mandou dizer que não ia dar aula hoje” ... todo mundo iria pra casa depois e ia repor essa aula ... quando o professor chegou à sala ... não tinha um aluno (Corpus D&G, dado 1) (2) cê pode pintar uma praia rapidamente ... pá ... pá ... pá ... pintar de cima a baixo ... taí ... tá completo o trabalho e ...em um dia você pinta ... mas se você quiser um elaborado de re/ é que ... que uma pessoa amiga chegue e te diga ... “não ... realmente isso aqui é uma praia ... olha só a gaivota ... olha só o matinho aqui ... (Corpus D&G, dado 7) • Sujeito não-correferente: os sujeitos de V1 e V2 não possuem o mesmo referente (1) aí já saio de seis lá ... às vezes eu chego de sete e meia ... oito horas e minha mãe já fica perguntando ... “onde é que tu tava?” me dá uma raiva ... né? (Corpus D&G, dado 18) • Não se aplica: casos de construções em que só o V1 é codificado lingüisticamente (V2 é inferível do contexto) 50 (1) às vezes eu ... eu tô lá na casa dele e ... nós ouvimos ele ... “ô meu Deus ... né possível” ... aí eu chego lá perto ... “o que foi Ório?” “eu num consegui matar esse homem ... eu num consegui matar” (Corpus D&G, dado 8) (2) você só vai entrar no reino de Deus se você realmente tiver arrependido ... e esse arrependimento é intrínseco de cada um e não é público ... você chega e “ah ... eu me arrependi ... e pronto ... tô no reino de Deus” ... não é assim ... eu acho que existe um caminho a ser batalhado (Corpus D&G, dado 4) Or. Coord./Just. Relação referencial Perífrase Freq. % Freq. % Total Sujeitos correferentes 8 42 11 58 19 Sujeitos não-correferentes 1 100 0 0 1 Não se aplica (só há V1) 2 50 2 50 4 11 46 13 54 24 Total Tabela 1: Relação referencial entre os sujeitos de V1 e de V2 Conforme a tabela 1, V1 e V2 possuem sujeitos correferenciais em 92% dos casos da construção coordenada/justaposta e 100% dos casos da construção perifrástica. Todavia, a única ocorrência com sujeitos não correferenciais na construção coordenada/justaposta já é suficiente para mostrar que, a princípio, diferentemente da construção perifrástica, a construção coordenada/justaposta admite sujeitos distintos. 5.1.2 FORMA DE EXPRESSÃO DO SUJEITO Quanto à forma de expressão do sujeito de V1 e de V2, consideramos os fatores seguintes: • SN pleno em V1 e anáfora 0 em V2 (1) Quando alguém é:: essa pessoa me falou dessa história me comoveu muito ... porque imagine você ... uma criança pobre ... mal nutrida ... ali no chão precisando de alguém que lhe levantasse ... que lhe desse uma força ... e ao invés disso não ... o pai dele chegou pra ele e disse ... “levanta menino” ... come se:: fosse ruindade daquela criança ... isso me tocou muito e eu fiquei imaginando que era uma crueldade ... e depois de um bom tempo ... o pai dele 51 ficou né ... tirou a bainha ... a bainha ... foi me contaram assim que parece que ele tinha usado a bainha pra bater na criança (Corpus D&G, dado 5) (2) que a gente num sabe onde é que vai ... onde é que essa situação vai chegar porque se hoje existe homens que não:: que governam e não sabem governar ... amanhã talvez num exista mais homem que governe ... porque nem ninguém confia mais em ninguém ... num dá mais pra se admitir ... se esperar ... não:: não temos mais esperança ... hoje o presi/ ontem o presidente Itamar esperando que o ... o ... o ministro da justiça chegasse pra dizer alguma coisa ... o ministro da fazenda também pra ver se ele dizia alguma coisa como é que ia fazer a economia ... um plano melhor pra economia ... quer dizer ... um sempre esperando e a solução num vem ... num tem mais ... é tipo assim ... um espera:: um senta e espera que fulano traga resposta ... fulano chega e diz ... “ah ... eu num sei ... vamos procurar outro fulano” ... chega também disso ... vamos buscar uma solução (Corpus D&G, dado 6) • Anáfora pronominal em V1 e anáfora 0 em V2 (1) aí um dia eu não tava muito afim de assistir aula dele ... né ... aí ... aí eu cheguei na turma e disse ... “olha ... Luiz Andrade mandou dizer que não ia dar aula hoje” ... todo mundo iria pra casa depois e ia repor essa aula ... quando o professor chegou à sala ... não tinha um aluno (Corpus D&G, dado 1) (2) e o doutor Brown tava no:: voando na nave ... eles se comunicavam com walk-talk ... aí quando ele queimou ... aí começou a chover ... né ... aí começou a soltar raios e tudo ...aí Martin chegou e disse: “desça se não um raio vai pegar o senhor e tudo ... vai lhe derrubar” ... né ... aí ele chegou e disse :: “espera aí que eu vou descer” ... quando ia descer ... a nave ia pousar ... aí um raio atingiu a nave ... aí desapareceu ... né ... aí nisso ... aí ele ficou desesperado ... chorando ... porque pensou que ele tinha morrido Corpus D&G, dado 14) • Anáfora pronominal em V1 e SN pleno em V2 (1) meu pai tem um gênio muito ... ele não gosta de ser mandado ... sabe? eu acho que eu tenho algumas coisas dele também ... porque ... minha mãe às vezes fica ... “onde é que tu tava” ... num sei quê ... porque eu vou pro colégio ... às vezes ... pro colégio não ... pro trabalho ... aí já saio de seis lá ... às vezes eu chego de sete e meia ... oito horas e minha mãe já fica perguntando ... “onde é que tu tava?” me dá uma raiva ... né? porque ... olha ... eu detesto essas coisa ... eu num admito também ... que mãe ... namorado ... fica ... sabe? 52 pressionando ... é ... controlando ... “o que que você fez? por que você fez isso? pra onde você vai?” eu num gosto disso não ... me sinto mal ... Corpus D&G, dado 18) • Anáfora pronominal em V1 e em V2 (1) quando a gente faz pesquisas por aí a fora ... a gente pergunta às pessoas ... se você acredita em Deus eles dizem ... né ... então se a gente chega numa penitenciária e a gente pergunta ... se eles crêem em Deus ... eles vão dizer que crêem ... né ... eu creio em Deus ... né ... só que eles dizem que até antes mesmo de praticar o que praticaram ... eles também criam em Deus ... não é? só que aí não fazem exatamente aquilo ... não ... não ... a prova que eles não ... não crêem realmente em Deus ... é que eles não obedeceram o mandamento quando fala que nós devemos amar o nosso próximo ... né ... (Corpus D&G, dado 22) • Anáfora 0 em V1 e em V2 é ... exatamente ... setenta anos mais ou menos ... então tinha voltado:: aí então ele ficou contente e tudo ... ah ... ele tá vivo e tudo mais ... é:: // E: quando a nave desapareceu ... ele tinha voltado pro:: // I: é ... mas ninguém sabia ... né ... aí ele ficou contente e tudo mais ... aí chegou e disse ... “tem uma pessoa que pode me ajudar e tudo mais” porque no um ... ele só volta através de uma tempestade ... (Corpus D&G, dado 15) • Não se aplica (casos de construções em que só o V1 é codificado lingüisticamente - V2 é inferível do contexto) (1) E: é:: você bateu com a cabeça ... seu pai também ... num teve nenhum problema não? // I: não ... ele bateu com a cabeça ... aí foi uma pancada interna ... por isso que ele ficou internado ... mas saiu antes do dia ... foi um sufoco ... ele passou muitos dias assim ... sabe? aéreo ... pessoa chegava lá em casa ... tudo bem Bigode ? aí ele ia dar dinheiro pra pessoa ... você acredita? era desse jeito ... e quando ele:: ele saía assim de pé descalço ... sabe? pra todo canto ... e num dizia pra onde ia ... saía sem camisa ... ia pro supermercado fazer feira ... ia assim por instinto ... (Corpus D&G, dado 17) (2) você só vai entrar no reino de Deus se você realmente tiver arrependido ... e esse arrependimento é intrínseco de cada um e não é público ... você chega e “ah ... eu me arrependi ... e pronto ... tô no reino de Deus” ... não é assim ... eu acho que existe um caminho a ser batalhado ... porque esse caminho é que vai ... suas provações ... de você mesma que 53 também não deve ser imposta por ninguém ... essas provações que você passa não devem ser impostas por ninguém ... (Corpus D&G, dado 4) Or. Coord./Just. Perífrase Forma de expressão Freq. % Freq. % Total SN pleno em V1 e anáfora 3 33 6 67 9 4 59 4 50 8 1 100 0 0 1 1 100 0 0 1 Anáfora 0 em V1 e em V2 0 0 1 100 1 Não se aplica (só há V1) 2 50 2 50 4 11 46 13 54 24 0 em V2 Anáfora pronominal em V1 e anáfora 0 em V2 Anáfora pronominal em V1 e SN pleno em V2 Anáfora pronominal em V1 e em V2 Total Tabela 2: Forma de expressão do sujeito de V1 e de V2 Conforme a tabela 2, quando o sujeito de V1 apresenta-se como SN pleno e o de V2 como anáfora 0, 67% das ocorrências são da perífrase e 33% são das coordenadas/justapostas. Quando há anáfora pronominal em V1 e anáfora 0 em V2, temos 50% de casos de perífrase e 50% de casos de coordenadas/justapostas. No caso da anáfora pronominal em V1 e SN pleno em V2 ou da anáfora pronominal em V1 e em V2, apenas há dados de coordenadas/justapostas, portanto o percentual é de 100%. Ocorre o contrário quando se trata de anáfora 0 em V1 e em V2: apenas existem dados de perífrase, 100% das ocorrências, portanto. Nos casos em que só há V1, a percentagem é de 50% para cada tipo de construção. Desses resultados, ressaltamos em especial que todos os casos da construção perifrástica envolvem, aparentemente, anáfora zero em V2. Todavia, nessa construção, o sujeito que aparece antes de V1, o verbo auxiliar, é o sujeito de toda a construção, não podendo haver, em V2, um sujeito distinto ou mesmo uma retomada anafórica (seja pronominal ou zero) do referente do sujeito situado antes de V1. Em nossa interpretação, por conseguinte, o sujeito situado antes de V1 na construção perifrástica é selecionado por V2, o verbo principal, como acontece nos demais casos de perífrases verbais no português. 54 Portanto, embora a tabela 2 apresente os casos de perífrases como pertinentes a três possibilidades envolvendo anáfora zero (SN pleno em V1 e anáfora zero em V2, anáfora pronominal em V1 e anáfora pronominal em V2, anáfora zero em V1 e V2), na verdade a anáfora zero só pode ocorrer com construções coordenadas/justapostas, pois, nas ocorrências de perífrase, há um único sujeito, posicionado antes de V1, e selecionado por V2. Em contraste, a construção coordenada/justaposta pode apresentar, em V1 e V2, sujeitos com referentes distintos (como em às vezes eu chego de sete e meia ... oito horas e minha mãe já fica perguntando ... “onde é que tu tava?”) ou sujeitos de mesmo referente, ambos no formato de anáforas pronominais (como em “então se a gente chega numa penitenciária e a gente pergunta”), uma vez que cada um dos verbos componentes dessa construção seleciona seus próprios argumentos. Se os argumentos sujeitos selecionados por V1 e por V2 tiverem o mesmo referente, ambos podem ser codificados lingüisticamente (como em “então se a gente chega numa penitenciária e a gente pergunta”), ou pode ocorrer anáfora zero em V2 (como em “aí eu cheguei na turma e disse ... “olha ... Luiz Andrade mandou dizer que não ia dar aula hoje”). 5.1.3 PESSOA DO SUJEITO No que diz respeito à pessoa do sujeito de V1 e de V2, consideramos os fatores: • 1ª pessoa do singular em V1 e em V2 (1) então nós tínhamos um professor que nós não gostávamos dele ... era um professor de mecanografia e ele era louco ... o professor era simplesmente louco ... louco ... daquele de jogar pedra na lua ... aí um dia eu não tava muito afim de assistir aula dele ... né ... aí ... aí eu cheguei na turma e disse ... “olha ... Luiz Andrade mandou dizer que não ia dar aula hoje” ... todo mundo iria pra casa depois e ia repor essa aula ... quando o professor chegou à sala ... não tinha um aluno e eu estava do lado de fora ... eu simplesmente tranquei o professor na sala com a chave e deixei ele lá preso ... e fui brincar ... né ... nos corredores ... (Corpus D&G, dado 1) • 2ª pessoa do singular em V1 e em V2 (1) o que a gente vê demais e que tá sendo apregoado por aí é que a pessoa é ruim ... ruim ... ruim ... ruim ... aí resolve ficar bom e passa para outra religião ... né ... no caso ... tão procurando a Assembléia de Deus ... porque é a única que diz que na hora que você se 55 arrepende de seus pecados ... você passa a ser bom ... automaticamente ... eu acho que não é assim ... sabe Sheila? não é você chegar e dizer assim ... vou ficar bom agora ... e de repente ficar bom ... primeiro você tem que se descobrir ... esse lado bom que você tem Corpus D&G, dado 3) • 3ª pessoa do singular em V1 e em V2 (1) aí nesse dia ... havia uma comemoração cívica ... era dia sete de setembro e a minha amiga Tâmara ... ela tinha um irmão que era taifeiro da marinha ... e cozinhava muito bem ... então ela chegou lá e disse ... “aí ... hoje ... meu irmão fez um bolo de batata muito gostoso e a gente vai lanchar lá ... lá em casa” ... porque ela morava perto ... então todo mundo se animou pra comer o bolo de batata que o irmão de Tâmara tinha feito ... Corpus D&G, dado 2) (2) que a gente num sabe onde é que vai ... onde é que essa situação vai chegar porque se hoje existe homens que não:: que governam e não sabem governar ... amanhã talvez num exista mais homem que governe ... porque nem ninguém confia mais em ninguém ... num dá mais pra se admitir ... se esperar ... não:: não temos mais esperança ... hoje o presi/ ontem o presidente Itamar esperando que o ... o ... o ministro da justiça chegasse pra dizer alguma coisa ... o ministro da fazenda também pra ver se ele dizia alguma coisa como é que ia fazer a economia ... um plano melhor pra economia ... quer dizer ... um sempre esperando e a solução num vem ... num tem mais ... é tipo assim ... um espera:: um senta e espera que fulano traga resposta ... fulano chega e diz ... “ah ... eu num sei ... vamos procurar outro fulano” ... chega também disso ... vamos buscar uma solução ... (Corpus D&G, dado 6) • 1ª pessoa do singular em V1 e 3ª pessoa do singular em V2 (1) meu pai tem um gênio muito ... ele não gosta de ser mandado ... sabe? eu acho que eu tenho algumas coisas dele também ... porque ... minha mãe às vezes fica ... “onde é que tu tava” ... num sei quê ... porque eu vou pro colégio ... às vezes ... pro colégio não ... pro trabalho ... aí já saio de seis lá ... às vezes eu chego de sete e meia ... oito horas e minha mãe já fica perguntando ... “onde é que tu tava?” me dá uma raiva ... né? porque ... olha ... eu detesto essas coisa ... eu num admito também ... que mãe ... namorado ... fica ... sabe? pressionando ... é ... controlando ... “o que que você fez? por que você fez isso? pra onde você vai?” eu num gosto disso não ... me sinto mal ... (Corpus D&G, dado 18) Não houve ocorrências com as 1ª, 2ª e 3ª pessoas do plural. 56 Or. Coord./Just. Pessoa do sujeito 1ª pessoa do singular em Perífrase Freq. % Freq. % Total 2 100 0 0 2 0 0 1 100 2 6 38 10 62 16 1 100 0 0 1 2 50 2 50 4 11 46 13 54 24 V1 e em V2 2ª pessoa do singular em V1 e em V2 3ª pessoa do singular em V1 e em V2 1ª pess. sing. em V1 e 3ª pess. sing. em V2 Não se aplica (só há V1) Total Tabela 3: Pessoa do sujeito de V1 e de V2 De acordo com a tabela 3, o sujeito apresenta-se como primeira pessoa do singular para V1 e para V2 apenas na construção coordenada/justaposta; como segunda pessoa do singular o sujeito apenas aparece na construção perifrástica; quando o sujeito apresenta-se em terceira pessoa do singular, o percentual é de 38% nas coordenadas/justapostas, e de 62% na perífrase; há apenas uma ocorrência de coordenadas/justapostas para sujeito de V1 em primeira pessoa e o de V2 em terceira pessoa do singular. Ou seja, ambas as construções apresentam, com mais freqüência, sujeito em 3ª pessoa do singular. Podemos interpretar esse resultado como indício de gramaticalização no sentido de que o maior uso da construção perifrástica com sujeito de 3ª pessoa do singular é um resquício das tendências da construção fonte, a coordenada/justaposta. Contudo, como estamos lidando com poucos dados, não podemos fazer considerações mais aprofundadas a respeito dessa questão. 5.1.4 TEMPO/MODO No que se refere a tempo/modo de V1 e de V2, controlamos os fatores seguintes: 57 • Presente do indicativo (1) meu pai tem um gênio muito ... ele não gosta de ser mandado ... sabe? eu acho que eu tenho algumas coisas dele também ... porque ... minha mãe às vezes fica ... “onde é que tu tava” ... num sei quê ... porque eu vou pro colégio ... às vezes ... pro colégio não ... pro trabalho ... aí já saio de seis lá ... às vezes eu chego de sete e meia ... oito horas e minha mãe já fica perguntando ... “onde é que tu tava?” me dá uma raiva ... né? porque ... olha ... eu detesto essas coisa ... eu num admito também ... que mãe ... namorado ... fica ... sabe? pressionando ... é ... controlando ... “o que que você fez? por que você fez isso? pra onde você vai?” eu num gosto disso não ... me sinto mal ... (Corpus D&G, dado 18) (2) o finalzinho do filme... do um ... é:: o doutor Brown deixa ele lá ... deixa ele no:: no ... em mil novecentos e oitenta e cinco e vai para o futuro ... quando volta do futuro ... mas ... no filme mesmo ele volta e diz que tem algum problema com os filhos dele ... deles dois ... dele e da namorada dele ... aí acaba aí ... no dois ... aí já começa daí ... né ... o doutor Brown chega e diz a mesma coisa ... né ... e eles vão para o futuro ... né ... aí chegam lá e resolvem o problema lá do filho dele ... (Corpus D&G, dado 12) • Pretérito perfeito do indicativo (1) mas ô rapaz tímido ... tímido demais ... mais tímido do que eu ... mulher ó eu ... porque eu sou tímida ... que eu num vou ... num sou de chegar assim pro rapaz e falar as coisa ... menina ... quando eu cheguei perto desse menino ... porque eu pensava que ele sabia dançar num sabe? aí ... eu num sabia de nada ... aí eu cheguei ... menina ... eu cheguei TRUUU ((imitação de tremedeira)) ... porque dá logo uma tremedeira sabe? quando eu chego perto de homem minha filha ... eu começo logo a gelar ... ficar fria ... me tremendo toda ... aí eu cheguei perto dele e disse ... “ei ... ei ... vamos dançar?” ele disse ... “eu num sei dançar” ... aí eu disse ... “ai meu Deus do céu” ... eu digo ... “a então lá vai” ... e ficamo conversando lá ... (Corpus D&G, dado 23) (2) eu tinha vontade de participar e tudo ... fiquei arrependido de ter dito ... né ... porque também num gosto de ser muito convencido não ... sabe ... eu pensei em dizer ... “não ... pode botar que eu quero e sou capaz de fazer isso” ... num gosto de ser assim não ... mas ... aí fiquei na minha ... né ... aí daqui a pouco um cara que num ... que não ... me perguntou se eu queria ou não ... chegou e indicou ... “eu indico o nome de Gerson e tudo ... da igreja do Satélite” ... 58 tudo mais ... e ... eu fiquei calado também num recusei né ... num recusei em público e tudo fi/ aceitei a ... o cargo ... o cargo ... (Corpus D&G, dado 10) • Pretérito imperfeito do indicativo (1) E: é:: você bateu com a cabeça ... seu pai também ... num teve nenhum problema não? // I: não ... ele bateu com a cabeça ... aí foi uma pancada interna ... por isso que ele ficou internado ... mas saiu antes do dia ... foi um sufoco ... ele passou muitos dias assim ... sabe? aéreo ... pessoa chegava lá em casa ... tudo bem Bigode? aí ele ia dar dinheiro pra pessoa ... você acredita? era desse jeito ... e quando ele:: ele saía assim de pé descalço ... sabe? pra todo canto ... e num dizia pra onde ia ... saía sem camisa ... ia pro supermercado fazer feira ... ia assim por instinto ... (Corpus D&G, dado 17) • Presente do subjuntivo (1) cê pode pintar uma praia rapidamente ... pá ... pá ... pá ... pintar de cima a baixo ... taí ... tá completo o trabalho e ...em um dia você pinta ... mas se você quiser um elaborado de re/ é que ... que uma pessoa amiga chegue e te diga ... “não ... realmente isso aqui é uma praia ... olha só a gaivota ... olha só o matinho aqui ... olha só essa cor refletida sobre a água ... realmente aqui teve ... todo um estudo de cores ... de ... de ... de dimensões ... de perspectiva” (Corpus D&G, dado 7) • Infinitivo (1) o que a gente vê demais e que tá sendo apregoado por aí é que a pessoa é ruim ... ruim ... ruim ... ruim ... aí resolve ficar bom e passa para outra religião ... né ... no caso ... tão procurando a Assembléia de Deus ... porque é a única que diz que na hora que você se arrepende de seus pecados ... você passa a ser bom ... automaticamente ... eu acho que não é assim ... sabe Sheila? não é você chegar e dizer assim ... vou ficar bom agora ... e de repente ficar bom ... primeiro você tem que se descobrir ... esse lado bom que você tem (Corpus D&G, dado 3) 59 Or. Coord./Just. Tempo/modo Perífrase Freq. % Freq. % Total Presente do Indicativo 4 44 5 56 9 Pretérito Perf. do Indic. 6 50 6 50 12 Pretérito Imperf. do Indic. 1 100 0 0 1 Presente do Subjuntivo 0 0 1 100 1 Infinitivo 0 0 1 100 1 11 46 13 54 24 Total Tabela 4: Tempo/modo de V1 e V2 Conforme a tabela 4, V1 e V2 são utilizados no tempo Presente do modo Indicativo em 44% dos casos de coordenadas/justapostas e em 56% dos casos de perífrase; no Pretérito Perfeito, em 50% de cada tipo de construção; e no Pretérito Imperfeito, em 100% da coordenada/justaposta, pois aí não há casos de perífrase; já no presente do modo subjuntivo e no infinitivo apenas há dados de perífrase. Portanto, ambas as construções predominam no presente e no pretérito perfeito do indicativo, o que pode ser atribuído ao fato de a construção coordenada/justaposta ser a fonte da construção perifrástica. Em processos de gramaticalização, é previsto que as novas construções possuam propriedades em comum com suas construções fonte, o que pode ser o caso do fenômeno em estudo. 5.1.5 PRESENÇA DA CONJUNÇÃO E Considerando-se a presença da conjunção E entre V1 e V2, controlamos o seguinte: • Conjunção E presente (1) meu pai tem um gênio muito ... ele não gosta de ser mandado ... sabe? eu acho que eu tenho algumas coisas dele também ... porque ... minha mãe às vezes fica ... “onde é que tu tava” ... num sei quê ... porque eu vou pro colégio ... às vezes ... pro colégio não ... pro trabalho ... aí já saio de seis lá ... às vezes eu chego de sete e meia ... oito horas e minha mãe já fica perguntando ... “onde é que tu tava?” me dá uma raiva ... né? porque ... olha ... eu detesto essas coisa ... eu num admito também ... que mãe ... namorado ... fica ... sabe? 60 pressionando ... é ... controlando ... “o que que você fez? por que você fez isso? pra onde você vai?” eu num gosto disso não ... me sinto mal ... (Corpus D&G, dado 18) (2) o que a gente vê demais e que tá sendo apregoado por aí é que a pessoa é ruim ... ruim ... ruim ... ruim ... aí resolve ficar bom e passa para outra religião ... né ... no caso ... tão procurando a Assembléia de Deus ... porque é a única que diz que na hora que você se arrepende de seus pecados ... você passa a ser bom ... automaticamente ... eu acho que não é assim ... sabe Sheila? não é você chegar e dizer assim ... vou ficar bom agora ... e de repente ficar bom ... primeiro você tem que se descobrir ... esse lado bom que você tem (Corpus D&G, dado 3) • Conjunção E ausente (1) Como na Festa de São Francisco que eu fui minha amiga me chamou para dar uma volta com ele fui quando foi ela me mostrou um casal no maior sarro ele pegando nos seios dela e a safada deixava. Olha essas moças era para se valorizar não se desvalorizar deixa pega em todos os lugares ou quase todos. Como no caso dos dois transar e um dia ela chega prá ele dizer estou grávida ele já falava que não ia assumir a gravidez. Ai ficou pior porque os pais vão descobri que ela está gravida e vai querer que ela se case ai os dois vão se casar a força sem ele gostar dela casou porque a engravidou. (Corpus D&G, dado 24) Or. Coord./Just. Presença da conjunção Perífrase Freq. % Freq. % Total Conjunção E presente 8 42 11 58 19 Conjunção E ausente 1 100 0 0 1 Não se aplica (só há V1) 2 50 2 50 4 11 46 13 54 24 Total Tabela 5: Presença da conjunção E entre V1 e V2 A tabela 5 evidencia que, em todos os casos de perífrase, a conjunção E está presente, e que ela está ausente em apenas um caso de coordenada/justaposta, o único que ocorre na modalidade escrita da língua. Trata-se de mais uma similaridade em termos de padrões de uso que pode, a princípio, ser atribuída à gramaticalização da construção coordenada/justaposta na construção perifrástica. A tabela 5 mostra também que, nas ocorrências em que só há V1 codificado lingüisticamente (e V2 é inferível do contexto), a conjunção E está presente nas duas 61 construções perifrásticas e está ausente nas duas construções coordenadas/justapostas. Parece haver, portanto, comportamento oposto por parte das construções em questão quando apenas V1 aparece. 5.1.6 PRESENÇA DE PAUSA Quanto à presença de pausa entre V1 e V2, controlamos os fatores pausa presente e pausa ausente, mas só encontramos ocorrências com pausa ausente. Vejamos algumas ocorrências: (1) aí nesse dia... havia uma comemoração cívica ... era dia sete de setembro e a minha amiga Tâmara ... ela tinha um irmão que era taifeiro da marinha ... e cozinhava muito bem ... então ela chegou lá e disse ... “aí ... hoje ... meu irmão fez um bolo de batata muito gostoso e a gente vai lanchar lá ... lá em casa” ... porque ela morava perto ... então todo mundo se animou pra comer o bolo de batata que o irmão de Tâmara tinha feito ... (Corpus D&G, dado 2) (2) eu tinha vontade de participar e tudo ... fiquei arrependido de ter dito ... né ... porque também num gosto de ser muito convencido não ... sabe ... eu pensei em dizer ... “não ... pode botar que eu quero e sou capaz de fazer isso” ... num gosto de ser assim não ... mas ... aí fiquei na minha ... né ... aí daqui a pouco um cara que num ... que não ... me perguntou se eu queria ou não ... chegou e indicou ... “eu indico o nome de Gerson e tudo ... da igreja do Satélite” ... tudo mais ... e ... eu fiquei calado também num recusei né ... num recusei em público e tudo fi/ aceitei a ... o cargo ... o cargo ... (Corpus D&G, dado 10) Or. Coord./Just. Presença de pausa Perífrase Freq. % Freq. % Total Pausa presente 0 0 0 0 0 Pausa ausente 9 45 11 55 20 Não se aplica (só há V1) 2 50 2 50 4 11 46 13 54 24 Total Tabela 6: Presença de pausa entre V1 e V2 62 O fato de não termos encontrado casos de pausa entre V1 e V2 tanto nas construções perifrásticas quanto nas coordenadas/justapostas revela, mais uma vez, a similaridade em termos de padrões de uso entre as construções sob estudo Nos casos em que só há V1, temos pausa entre V1 e o discurso direto que o segue nos dois casos de orações coordenadas/justapostas e em um dos dois casos de perífrase. 5.1.7 PRESENÇA DE MATERIAL INTERVENIENTE No que diz respeito à presença de material interveniente entre V1 e V2, controlamos os seguintes fatores: • (1) Material interveniente presente: eu chego perto de homem minha filha ... eu começo logo a gelar ... ficar fria ... me tremendo toda ... aí eu cheguei perto dele e disse ... “ei ... ei ... vamos dançar?” ele disse ... “eu num sei dançar” ... aí eu disse ... “ai meu Deus do céu” ... (Corpus D&G, dado 23) • Material interveniente ausente: (1) e o doutor Brown tava no:: voando na nave ... eles se comunicavam com walk-talk ... aí quando ele queimou ... aí começou a chover ... né ... aí começou a soltar raios e tudo ...aí Martin chegou e disse: “desça se não um raio vai pegar o senhor e tudo ... vai lhe derrubar” ... né ... aí ele chegou e disse: “espera aí que eu vou descer” ... quando ia descer ... a nave ia pousar ... aí um raio atingiu a nave ... (Corpus D&G, dados 13 e 14) Or. Coord./Just. Material interveniente Material interveniente Perífrase Freq. % Freq. % Total 11 100 0 0 11 0 0 13 100 13 11 46 13 54 24 presente Material interveniente ausente Total Tabela 7: Presença de material interveniente entre V1 e V2 63 De acordo com a tabela 7, há material interveniente entre V1 (CHEGAR) e V2 em 100% dos casos da construção coordenada/justaposta e em 0% (zero) dos casos da construção perifrástica. Na construção coordenada/justaposta, encontramos 50% de material interveniente entre V1 e V2 no formato de complemento locativo ou temporal (padrão já esperado, pois o verbo CHEGAR significa ‘aproximar-se de um ponto no espaço’, ‘atingir um ponto no espaço’, ou seja, envolve um lugar a ser atingido e pode envolver um tempo em que se atinge o lugar em questão). Há ainda ocorrências (42%) em que o complemento é a pessoa a quem o sujeito da oração se dirige (chegou pra ele e disse). Em tais casos, podemos considerar que o verbo CHEGAR não signifique deslocamento físico (‘aproximar-se de um ponto no espaço’, ‘atingir um ponto no espaço’), e sim seja sinônimo de “dirigir-se verbalmente a alguém”. 5.1.8 EXTENSÃO DO MATERIAL INTERVENIENTE No que diz respeito à extensão do material interveniente, consideramos os seguintes fatores: • Uma sílaba (1) aí nesse dia... havia uma comemoração cívica ... era dia sete de setembro e a minha amiga Tâmara ... ela tinha um irmão que era taifeiro da marinha ... e cozinhava muito bem ... então ela chegou lá e disse ... “aí ... hoje ... meu irmão fez um bolo de batata muito gostoso e a gente vai lanchar lá ... lá em casa” ... porque ela morava perto ... então todo mundo se animou pra comer o bolo de batata que o irmão de Tâmara tinha feito ... (Corpus D&G, dado 2) • Três sílabas (1) quando alguém é:: essa pessoa me falou dessa história me comoveu muito ... porque imagine você ... uma criança pobre ... mal nutrida ... ali no chão precisando de alguém que lhe levantasse ... que lhe desse uma força ... e ao invés disso não ... o pai dele chegou pra ele e disse ... “levanta menino” ... come se:: fosse ruindade daquela criança ... isso me tocou muito e eu fiquei imaginando que era uma crueldade ... e depois de um bom tempo ... o pai dele ficou né ... tirou a bainha ... a bainha ... foi me contaram assim que parece que ele tinha usado a bainha pra bater na criança (Corpus D&G, dado 5) 64 • Quatro sílabas (1) E: é:: você bateu com a cabeça ... seu pai também ... num teve nenhum problema não? // I: não ... ele bateu com a cabeça ... aí foi uma pancada interna ... por isso que ele ficou internado ... mas saiu antes do dia ... foi um sufoco ... ele passou muitos dias assim ... sabe? aéreo ... pessoa chegava lá em casa ... tudo bem Bigode ? aí ele ia dar dinheiro pra pessoa ... você acredita? era desse jeito ... e quando ele:: ele saía assim de pé descalço ... sabe? pra todo canto ... e num dizia pra onde ia ... saía sem camisa ... ia pro supermercado fazer feira ... ia assim por instinto ... (Corpus D&G, dado 17) • De cinco a dez sílabas (1) quando a gente faz pesquisas por aí a fora ... a gente pergunta às pessoas ... se você acredita em Deus eles dizem ... né ... então se a gente chega numa penitenciária e a gente pergunta ... se eles crêem em Deus ... eles vão dizer que crêem ... né ... eu creio em Deus ... né ... só que eles dizem que até antes mesmo de praticar o que praticaram ... eles também criam em Deus ... não é? só que aí não fazem exatamente aquilo ... não ... não ... a prova que eles não ... não crêem realmente em Deus ... é que eles não obedeceram o mandamento quando fala que nós devemos amar o nosso próximo ... né ... ... (Corpus D&G, dado 22) • Sem material interveniente (1) “vocês esse ano vão ter uma premiação diferente ... não como todos os outros anos ... mas ... tem esse ano ... eu quero o congressista modelo... não é ... o congressista que mais participa ... que tava presente em tudo ... que tá sempre ali ajudando a algum jovem ... a organizar as coisas ... as outras ( ) e tudo mais ... então eu observei isso em uma pessoa ... aí a gente queria entregar o prêmio a uma pessoa ... a gente vai chamar o pastor Martins que é pastor da igreja pra entregar o prêmio a essa pessoa” ... aí Regina chegou e disse bem assim ... “é Gerson ... pastor Antonio Martins não sabe quem é não?” aí eu pensei que era Júnior ... (Corpus D&G, dado 11) Não foram encontradas ocorrências de material interveniente com duas sílabas e com onze ou mais sílabas. 65 Or. Coord./Just. Extensão do material Perífrase Freq. % Freq. % Total 1 sílaba 1 100 0 0 1 3 sílabas 6 100 0 0 6 4 sílabas 2 100 0 0 2 De 5 a 10 sílabas 2 100 0 0 2 Sem material interveniente 0 0 13 100 13 Total 11 46 13 54 24 Tabela 8: Extensão do material interveniente A tabela 8 mostra que não existe material interveniente em nenhum dos casos de perífrase, mas apenas nos de coordenadas/justapostas, havendo, aí, material com uma, três, quatro e cinco a dez sílabas. A tabela mostra ainda que sempre há material interveniente na construção do tipo coordenada/justaposta. Quanto ao tipo, esse material ou é um adjunto adverbial de lugar que complementa o verbo CHEGAR (por exemplo, em “Ele chegou lá e disse...”) ou é um complemento a CHEGAR que indica a pessoa a quem o referente do sujeito de CHEGAR se dirigiu verbalmente (por exemplo, “Ele chegou pra ela e disse...”). Podemos considerar, assim, que, dependendo do complemento, CHEGAR lexical, em nossa amostra de dados, significa ‘aproximar-se de um ponto no espaço’, ‘atingir um ponto no espaço’ (quando seu complemento é um adjunto adverbial de lugar) ou significa dirigir-se (verbalmente) a alguém (quando seu complemento representa a pessoa a quem o referente do sujeito de CHEGAR diz algo). No que diz respeito à perífrase, a ausência de material interveniente em todas as ocorrências indica alto grau de integração entre V1 e V2. Segundo Payne (1997), uma forte integração entre verbos auxiliares e verbos principais em uma perífrase são evidências de gramaticalização avançada do verbo auxiliar e, por tabela, da própria construção que o contém. 66 5.1.9 AVALIAÇÃO DO FALANTE Controlamos também a natureza da avaliação do falante,6 como apresentado a seguir: • Neutralidade (1) então nós tínhamos um professor que nós não gostávamos dele ... era um professor de mecanografia e ele era louco ... o professor era simplesmente louco ... louco ... daquele de jogar pedra na lua ... aí um dia eu não tava muito afim de assistir aula dele ... né ... aí ... aí eu cheguei na turma e disse ... “olha ... Luiz Andrade mandou dizer que não ia dar aula hoje” ... todo mundo iria pra casa depois e ia repor essa aula ... quando o professor chegou à sala ... não tinha um aluno e eu estava do lado de fora ... eu simplesmente tranquei o professor na sala com a chave e deixei ele lá preso ... e fui brincar ... né ... nos corredores ... (Corpus D&G, dado 1) (2) I: é ... exatamente ... setenta anos mais ou menos ... então tinha voltado:: aí então ele ficou contente e tudo ... ah ... ele tá vivo e tudo mais ... é:: // E: quando a nave desapareceu ... ele tinha voltado pro:: // I: é ... mas ninguém sabia ... né ... aí ele ficou contente e tudo mais ... aí chegou e disse... “tem uma pessoa que pode me ajudar e tudo mais” porque no um ... ele só volta através de uma tempestade ... (Corpus D&G, dado 15) • Surpresa (positiva) (1) sempre todo congresso tem uma nova eleição ... né ... e nesse ... sim ... tava tendo lá ... né ... a gente tinha uma chapa que de última hora desistiu um cara lá ... Ribamar ... aí desistiu e começou a eleger ... quer dizer ... teve uma discussão lá pra ver se colocava um cara no lugar de Ribamar ou se não ... se o plenário na sessão indicava a pessoa e tudo mais ... e teve uma pessoa que chegou para mim e perguntou ... “Gerson ... você aceita ficar no cargo e tudo” num sei que ... eu disse ... “não ... num aceito não porque ... eu num tô achando que ... acho que num tô preparado para esse cargo não” ... no entanto ... eu tinha vontade de participar e tudo ... fiquei arrependido de ter dito ... né ... porque também num gosto de ser muito convencido não ... sabe ... eu pensei em dizer ... “não ... pode botar que eu quero e sou capaz 6 Apontamos que o grupo de fatores avaliação do falante representa nossa interpretação (isto é, a interpretação do analista), feita a partir de dados contextuais, a respeito de qual seria a avaliação feita pelo informante sobre o que está falando. É o único dos grupos de fatores testados em que a subjetividade do analista pode interferir na análise dos dados. No entanto, consideramos fundamental o controle desse grupo de fatores, pois a literatura da área vem apontando que as perífrases do tipo [CHEGAR (E) V2] podem indicar surpresa, frustração e mesmo irritação por parte de falante (cf., por exemplo, Merlan (1999)). 67 de fazer isso” ... num gosto de ser assim não ... mas ... aí fiquei na minha ... né (Corpus D&G, dado 9) (2) mas ... aí fiquei na minha ... né ... aí daqui a pouco um cara que num ... que não ... me perguntou se eu queria ou não ... chegou e indicou ... “eu indico o nome de Gerson e tudo ... da igreja do Satélite” ... tudo mais ... e ... eu fiquei calado também num recusei né ... num recusei em público e tudo fi/ aceitei a ... o cargo ... o cargo ... (Corpus D&G, dado 10) • Irritação (1) Como na Festa de São Francisco que eu fui minha amiga me chamou para dar uma volta com ele fui quando foi ela me mostrou um casal no maior sarro ele pegando nos seios dela e a safada deixava. Olha essas moças era para se valorizar não se desvalorizar deixa pega em todos os lugares ou quase todos. Como no caso dos dois transar e um dia ela chega prá ele dizer estou grávida ele já falava que não ia assumir a gravidez. Ai ficou pior porque os país vão descobri que ela está gravida e vai querer que ela se case ai os dois vão se casar a força sem ele gostar dela casou porque a engravidou. (Corpus D&G, dado 24) (2) o que a gente vê demais e que tá sendo apregoado por aí é que a pessoa é ruim ... ruim ... ruim ... ruim ... aí resolve ficar bom e passa para outra religião ... né ... no caso ... tão procurando a Assembléia de Deus ... porque é a única que diz que na hora que você se arrepende de seus pecados ... você passa a ser bom ... automaticamente ... eu acho que não é assim ... sabe Sheila? não é você chegar e dizer assim ... vou ficar bom agora ... e de repente ficar bom ... primeiro você tem que se descobrir ... esse lado bom que você tem (Corpus D&G, dado 3) • Frustração (1) quando alguém é:: essa pessoa me falou dessa história me comoveu muito ... porque imagine você ... uma criança pobre ... mal nutrida ... ali no chão precisando de alguém que lhe levantasse ... que lhe desse uma força ... e ao invés disso não ... o pai dele chegou pra ele e disse ... “levanta menino” ... come se:: fosse ruindade daquela criança ... isso me tocou muito e eu fiquei imaginando que era uma crueldade ... e depois de um bom tempo ... o pai dele ficou né ... tirou a bainha ... a bainha ... foi me contaram assim que parece que ele tinha usado a bainha pra bater na criança (Corpus D&G, dado 5) (2) que a gente num sabe onde é que vai ... onde é que essa situação vai chegar porque se hoje existe homens que não:: que governam e não sabem governar ... amanhã talvez num exista mais homem que governe ... porque nem ninguém confia mais em ninguém ... num dá mais 68 pra se admitir ... se esperar ... não:: não temos mais esperança ... hoje o presi/ ontem o presidente Itamar esperando que o ... o ... o ministro da justiça chegasse pra dizer alguma coisa ... o ministro da fazenda também pra ver se ele dizia alguma coisa como é que ia fazer a economia ... um plano melhor pra economia ... quer dizer ... um sempre esperando e a solução num vem ... num tem mais ... é tipo assim ... um espera:: um senta e espera que fulano traga resposta ... fulano chega e diz ... “ah ... eu num sei ... vamos procurar outro fulano” ... chega também disso ... vamos buscar uma solução (Corpus D&G, dado 6) Or. Coord./Just. Avaliação do falante Perífrase Freq. % Freq. % Total Neutralidade 6 75 2 25 8 Surpresa (positiva) 2 25 6 75 8 Irritação 2 40 3 60 5 Frustração 1 33 2 67 3 11 46 13 54 24 Total Tabela 9: Natureza da avaliação do falante Na tabela 9, verificam-se os resultados da possível avaliação do falante (cf. nota 6) em relação aos eventos narrados no momento em que usa uma das construções em enfoque. Em contextos de avaliação aparentemente neutra, temos seis dados (75%) de orações coordenadas/justapostas e dois dados de perífrase (25%). Em contraste, em contextos de surpresa (positiva), temos dois dados (25%) de orações coordenadas/justapostas e seis dados de perífrase. Quanto aos demais tipos de avaliação, irritação e frustração, há poucos dados, e, entre eles, a perífrase predomina ligeiramente. Por conseguinte, encontramos as duas construções sob enfoque em todos os contextos de avaliação considerados, o que revela mais uma similaridade entre elas. Todavia, a construção perifrástica é mais freqüente quando a avaliação não é neutra: há 11 ocorrências (85% dos dados de perífrase) em contextos em que o falante parece demonstrar, em relação ao que diz, surpresa, irritação ou frustração, face a cinco ocorrências (45% dos dados de orações coordenadas/justapostas) nesse tipo de contexto. Conforme Merlan (1999) e Tavares (2005), o emprego dos IR, CHEGAR, VIRAR e PEGAR como aspectualizadores globais pode disparar a inferência de que o falante/escritor vê a ocorrência do evento denotado por V2 com surpresa/espanto, frustração/lamento ou 69 mesmo irritação/crítica. Nossos resultados vão ao encontro dessa possibilidade, pois apenas duas das ocorrências de perífrases em nossa amostra parecem disparar inferências quanto a uma avaliação neutra do evento. 5.1.10 TIPO DE DISCURSO O tipo de discurso também foi considerado por nós, conforme o que segue: • Narrativa de experiência pessoal (1) aí nesse dia ... havia uma comemoração cívica ... era dia sete de setembro e a minha amiga Tâmara ... ela tinha um irmão que era taifeiro da marinha ... e cozinhava muito bem ... então ela chegou lá e disse ... “aí ... hoje ... meu irmão fez um bolo de batata muito gostoso e a gente vai lanchar lá ... lá em casa” ... porque ela morava perto ... então todo mundo se animou pra comer o bolo de batata que o irmão de Tâmara tinha feito ... (Corpus D&G, dado 2) (2) “vocês esse ano vão ter uma premiação diferente ... não como todos os outros anos ... mas ... tem esse ano ... eu quero o congressista modelo... não é ... o congressista que mais participa ... que tava presente em tudo ... que tá sempre ali ajudando a algum jovem ... a organizar as coisas ... as outras ( ) e tudo mais ... então eu observei isso em uma pessoa ... aí a gente queria entregar o prêmio a uma pessoa ... a gente vai chamar o pastor Martins que é pastor da igreja pra entregar o prêmio a essa pessoa” ... aí Regina chegou e disse bem assim ... “é Gerson ... pastor Antonio Martins não sabe quem é não?” aí eu pensei que era Júnior ... (Corpus D&G, dado 11) • Narrativa recontada (1) quando alguém é:: essa pessoa me falou dessa história me comoveu muito ... porque imagine você ... uma criança pobre ... mal nutrida ... ali no chão precisando de alguém que lhe levantasse ... que lhe desse uma força ... e ao invés disso não ... o pai dele chegou pra ele e disse ... “levanta menino” ... come se:: fosse ruindade daquela criança ... isso me tocou muito e eu fiquei imaginando que era uma crueldade ... e depois de um bom tempo ... o pai dele ficou né ... tirou a bainha ... a bainha ... foi me contaram assim que parece que ele tinha usado a bainha pra bater na criança (Corpus D&G, dado 5) (2) o finalzinho do filme ... do um ... é:: o doutor Brown deixa ele lá ... deixa ele no:: no ... em mil novecentos e oitenta e cinco e vai para o futuro ... quando volta do futuro ... mas ... no 70 filme mesmo ele volta e diz que tem algum problema com os filhos dele ... deles dois ... dele e da namorada dele ... aí acaba aí ... no dois ... aí já começa daí ... né ... o doutor Brown chega e diz a mesma coisa ... né ... e eles vão para o futuro ... né ... aí chegam lá e resolvem o problema lá do filho dele ... (Corpus D&G, dado 12) • Relato de procedimentos (1) cê pode pintar uma praia rapidamente ... pá ... pá ... pá ... pintar de cima a baixo ... taí ... tá completo o trabalho e ...em um dia você pinta ... mas se você quiser um elaborado de re/ é que ... que uma pessoa amiga chegue e te diga ... “não ... realmente isso aqui é uma praia ... olha só a gaivota ... olha só o matinho aqui ... olha só essa cor refletida sobre a água ... realmente aqui teve ... todo um estudo de cores ... de ... de ... de dimensões ... de perspectiva” (Corpus D&G, dado 7) • Relato de opinião (1) o que a gente vê demais e que tá sendo apregoado por aí é que a pessoa é ruim ... ruim ... ruim ... ruim ... aí resolve ficar bom e passa para outra religião ... né ... no caso ... tão procurando a Assembléia de Deus ... porque é a única que diz que na hora que você se arrepende de seus pecados ... você passa a ser bom ... automaticamente ... eu acho que não é assim ... sabe Sheila? não é você chegar e dizer assim ... vou ficar bom agora ... e de repente ficar bom ... primeiro você tem que se descobrir ... esse lado bom que você tem (Corpus D&G, dado 3) (2) I: Ório passa quatro horas no video game ... assim ... a manhã inteira no video game ... quando ele tá de férias ou final de semana que ele tá em casa ... ele vê video game direto e num quer nem que ninguém fale na sala pra num atrapalhar ou então ... às vezes eu ... eu tô lá na casa dele e ... nós ouvimos ele ... “ô meu Deus ... né possível” ... aí eu chego lá perto ... “o que foi Ório?” “eu num consegui matar esse homem ... eu num consegui matar” ... E: é ... os jogos do video game também são muito violentos ... (Corpus D&G, dado 8) Convém destacar que, no discurso do tipo descrição de local, não foram encontradas ocorrências. 71 Or. Coord./Just. Tipo de discurso Perífrase Freq. % Freq. % Total Narrativa de exp. pessoal 6 67 3 33 9 Narrativa recontada 2 25 6 75 8 Relato de procedimentos 0 0 1 100 1 Relato de opinião 3 50 3 50 6 11 46 13 54 24 Total Tabela 10: Tipo de discurso Conforme a tabela 10, no discurso do tipo narrativa de experiência pessoal, predominam ocorrências da construção coordenada/justaposta (67%); na narrativa recontada, no entanto, há mais casos de perífrase (75%); no relato de procedimentos somente existe um caso de perífrase; já no relato de opinião os dados estão equilibrados, com 50% para cada forma. Portanto, as construções sob estudo predominam em tipos diferentes de narrativa. A construção perifrástica possui um bom grau de disseminação em termos de tipo de discurso, aparecendo inclusive em um tipo em que a construção coordenada/perifrástica não apareceu. Porém, carecemos de um maior número de dados para podermos aprofundar essa questão. 5.1.11 MODALIDADE DA LINGUA Quanto à modalidade da língua, controlamos fala e escrita: • Fala (1) E: é:: você bateu com a cabeça ... seu pai também ... num teve nenhum problema não? // I: não ... ele bateu com a cabeça ... aí foi uma pancada interna ... por isso que ele ficou internado ... mas saiu antes do dia ... foi um sufoco ... ele passou muitos dias assim ... sabe? aéreo ... pessoa chegava lá em casa ... tudo bem Bigode ? aí ele ia dar dinheiro pra pessoa ... você acredita? era desse jeito ... e quando ele:: ele saía assim de pé descalço ... sabe? pra todo canto ... e num dizia pra onde ia ... saía sem camisa ... ia pro supermercado fazer feira ... ia assim por instinto ... (Corpus D&G, dado 17) 72 (2) cê pode pintar uma praia rapidamente ... pá ... pá ... pá ... pintar de cima a baixo ... taí ... tá completo o trabalho e ...em um dia você pinta ... mas se você quiser um elaborado de re/ é que ... que uma pessoa amiga chegue e te diga ... “não ... realmente isso aqui é uma praia ... olha só a gaivota ... olha só o matinho aqui ... olha só essa cor refletida sobre a água ... realmente aqui teve ... todo um estudo de cores ... de ... de ... de dimensões ... de perspectiva” (Corpus D&G, dado 7) • Escrita (1) Como na Festa de São Francisco que eu fui minha amiga me chamou para dar uma volta com ele fui quando foi ela me mostrou um casal no maior sarro ele pegando nos seios dela e a safada deixava. Olha essas moças era para se valorizar não se desvalorizar deixa pega em todos os lugares ou quase todos. Como no caso dos dois transar e um dia ela chega prá ele dizer estou grávida ele já falava que não ia assumir a gravidez. Ai ficou pior porque os país vão descobri que ela está gravida e vai querer que ela se case ai os dois vão se casar a força sem ele gostar dela casou porque a engravidou. (Corpus D&G, dado 24) Or. Coord./Just. Modalidade da língua Perífrase Freq. % Freq. % Total Fala 10 43 13 57 23 Escrita 1 100 0 0 1 11 46 13 54 24 Total Tabela 11: Modalidade da língua Como revela a tabela 11, mapeamos um dado da construção coordenada/justaposta na escrita, mas a maior parte de suas ocorrências deu-se na fala. Quanto à perífrase [CHEGAR (E) V2], não encontramos ocorrências suas na modalidade escrita da língua, o que indica que seu processo de gramaticalização começou na fala e, entre os informantes de nossa amostra, ainda não avançou para a escrita. Pintzuk (2003) aponta que a fala, em especial a conversação informal cotidiana, é o locus principal para a emergência de inovações na língua. Construções inovadoras podem chegar à escrita, mas, em geral, com uma defasagem de tempo difícil de ser precisada. Sendo assim, a escrita tende a refletir a fala de um tempo mais antigo. 73 5.1.12 PLANO DO DISCURSO Quanto ao plano do discurso, dividido em figura (as orações que codificam os eventos que expressam a seqüência de ações) e fundo (as orações que dão suporte às orações em figura), vejamos: • Figura (1) aí nesse dia ... havia uma comemoração cívica ... era dia sete de setembro e a minha amiga Tâmara ... ela tinha um irmão que era taifeiro da marinha ... e cozinhava muito bem ... então ela chegou lá e disse ... “aí ... hoje ... meu irmão fez um bolo de batata muito gostoso e a gente vai lanchar lá ... lá em casa” ... porque ela morava perto ... então todo mundo se animou pra comer o bolo de batata que o irmão de Tâmara tinha feito ... (Corpus D&G, dado 2) (2) eu tinha vontade de participar e tudo ... fiquei arrependido de ter dito ... né ... porque também num gosto de ser muito convencido não ... sabe ... eu pensei em dizer ... “não ... pode botar que eu quero e sou capaz de fazer isso” ... num gosto de ser assim não ... mas ... aí fiquei na minha ... né ... aí daqui a pouco um cara que num ... que não ... me perguntou se eu queria ou não ... chegou e indicou ... “eu indico o nome de Gerson e tudo ... da igreja do Satélite” ... tudo mais ... e ... eu fiquei calado também num recusei né ... num recusei em público e tudo fi/ aceitei a ... o cargo ... o cargo ... (Corpus D&G, dado 10) • Fundo Não houve dados em fundo discursivo. Or. Coord./Just. Plano do discurso Perífrase Freq. % Freq. % Total Figura 11 46 13 54 24 Fundo 0 0 0 0 0 11 46 13 54 24 Total Tabela 12: Plano do discurso Todas as ocorrências, segundo a tabela 12, estão, quanto ao plano do discurso, em figura, sendo divididas em 54% para perífrase e 46% para coordenada/justaposta, não 74 havendo, portanto, dados em fundo discursivo. Novamente, encontramos uma grande similaridade no uso das construções perifrástica e coordenada/justaposta. Desse resultado, podemos inferir que a construção coordenada/justaposta, que tende a aparecer em contextos de figura (o que era esperado, devido ao significado ligado à ação do verbo PEGAR, que acarreta deslocamento físico de algo ou alguém), deu origem à construção perifrástica, que, por sua função de indicação de aspecto global, aparece sempre em figura: o aspecto global relaciona-se ao ápice daquilo que está sendo dito ou escrito. 5.1.13 GÊNERO DOS INFORMANTES Or. Coord./Just. Perífrase Freq. % Freq. % Total Feminino 9 64 5 36 14 Masculino 2 20 8 80 10 11 46 13 54 24 Total Tabela 13: Sexo dos informantes Quanto ao gênero dos informantes, a tabela 13 revela que ambos os sexos, feminino e masculino, utilizam tanto a forma coordenada/justaposta quanto a forma perifrástica, havendo, no entanto, mais dados femininos para a coordenada/justaposta (64%), e mais dados masculinos (80%) para a perifrástica. Assim, o uso da construção perifrástica em Natal parece ser liderado pelo sexo masculino. No entanto, como temos poucos dados, não podemos fazer afirmativas mais precisas a esse respeito. 5.1.14 IDADE/ESCLARIDADE DOS INFORMANTES Or. Coord./Just. Idade/escolaridade Perífrase Freq. % Freq. % Total 8ª série EF (13 a 16 anos) 2 100 0 0 2 3° ano EM (18 a 20 anos) 5 36 9 64 14 Final do ES (+ de 23 anos) 4 50 4 50 8 Total 11 46 13 54 24 Tabela 14: Idade/escolaridade dos informantes 75 Através da tabela 14, verificamos que, entre os informantes da oitava série do Ensino Fundamental, 100% das ocorrências são de coordenadas/justapostas, não havendo casos de perífrase; já entre os informantes do terceiro ano do Ensino Médio há mais casos de perífrase, 64%, ficando a coordenada/justaposta com 36% das ocorrências; quando se trata dos informantes do Ensino Superior, as ocorrências dividem-se em 50% para cada tipo de construção. Ao controlarmos esse fator, observamos que os menos escolarizados não usam a forma perifrástica, e que, além disso, os mais escolarizados são os que a usam mais, especialmente os do Ensino Médio. Donde inferimos que o grupo que vem liderando a disseminação da construção perifrástica [CHEGAR (E) V2] em Natal é o dos indivíduos que já têm certo grau de instrução, porém, não os que têm grau maior. Contudo, como temos poucos dados, não podemos fazer afirmativas mais precisas a esse respeito. Não foram encontradas ocorrências entre informantes de alfabetização infantil (5 a 8 anos) e quarta série do ensino fundamental (9 a 11 anos). 5.2 CONCLUSÕES RELATIVAS À ANÁLISE DOS DADOS Como já havíamos mencionado, consoante Traugott (2003), a mudança acontece em certas construções morfossintáticas altamente especificáveis. Através dos resultados apresentados acima, constatamos a existência de fortes similaridades (mensuradas em termos de freqüências semelhantes) entre as construções coordenada/justaposta e perifrástica quanto a propriedades morfossintáticas e semântico-pragmáticas. Tais similaridades fortalecem a hipótese de que o uso de CHEGAR como verbo lexical na estrutura coordenada/justaposta é a fonte dos usos de CHEGAR na estrutura perifrástica, uma vez que várias das propriedades que encontramos com grande freqüência no uso lexical estão também presentes com grande freqüência no uso auxiliar. Todavia, entre as duas construções sob enfoque observam-se diferenças suficientes para se considerar que CHEGAR na perífrase [CHEGAR (E) V2] pertence à categoria dos verbos de predicado complexo. Nessa construção, CHEGAR manifesta propriedades típicas de verbos auxiliares: (i) não seleciona complemento em 100% das ocorrências; (ii) possui sujeito correferencial ao de V2 em 100% das ocorrências; (iii) não aparece com material 76 interveniente entre si e V2. Além disso, CHEGAR, na perífrase, predomina em contextos de avaliação não neutra do evento denotado por V2. Provavelmente, algumas propriedades da construção coordenada/justaposta que são compatíveis com verbos auxiliares foram preservadas na construção perifrástica, durante o processo de gramaticalização de CHEGAR como indicador aspectual, embora as propriedades típicas de verbos lexicais tenham sido perdidas nesse processo de mudança. Não obstante, convém lembrar que, no português brasileiro, entre verbos auxiliares e principais pode haver uma preposição (de, a, para, etc.), mas nunca a conjunção E, conforme ocorre nos casos da perífrase [CHEGAR (E) V2]. Aliás, a conjunção aparece em 100% dos casos da perífrase em estudo na fala de Natal. Ademais, diferente do que ocorre com as perífrases verbais no português, em [CHEGAR (E) V2], o segundo verbo não é nominal. Por tais características CHEGAR não pode ser definido como um verbo auxiliar prototípico, apesar de preencher o quesito fundamental de perda de traços lexicais, comportando-se, então, como uma perífrase típica, já que CHEGAR sofreu esvaziamento semântico, deixando de denotar significado lexical (envolvendo deslocamento físico) para assumir uma função gramatical de indicação aspectual. Nesse processo, CHEGAR tornou-se dependente do verbo principal (V2), ocorrendo contíguo a ele e concordando com ele em tempo, aspecto e modo. Para Payne (1997), quando uma língua possui um sintagma verbal do qual um elemento exibe ao menos alguma das informações flexionais típicas de verbos, mas que é distinta do verbo que expressa o conteúdo lexical principal da oração, então esse elemento pode ser considerado um auxiliar. É o que ocorre com CHEGAR, cuja gramaticalização como verbo indicador de aspecto global, em nossa amostra de dados, parece ter atingido apenas as construções perifrásticas em que o verbo principal é um verbo de elocução e, em especial, as construções perifrásticas em que o verbo principal é DIZER (só há uma ocorrência dessa perífrase em que o verbo de elocução é INDICAR). Em outras comunidades de fala brasileira, porém, CHEGAR é empregado na expressão do aspecto global com verbos principais de outros tipos (por exemplo, em um dado proveniente do Corpus Discurso & Gramática/Rio de Janeiro: “como uma pessoa que ela tinha falado numa boa lá atrás chegou e assaltou ela na mesma hora?” – cf. VOTRE, OLIVEIRA, 1995), e já são encontradiças ocorrências até mesmo na escrita (por exemplo, em “Hoje em dia as pessoas não pensam mais em namorar, só querem chegar beijar, sem compromisso.” – Vestibular UFRN, 2004). O que podemos inferir desses fatos é que a trajetória de gramaticalização de CHEGAR como aspectualizador global em Natal está em um estágio menos avançado de mudança que no Rio de Janeiro, por exemplo, 77 pois, nesta última comunidade de fala, houve extensão da construção perifrástica [CHEGAR (E) V2] para V2 diferentes de verbos de elocução (embora, mesmo no Rio de Janeiro, CHEGAR aspectualizador seja mais freqüente com verbos de elocução – cf. RODRIGUES, 2005). A existência de diferenças em termos do grau de avanço da gramaticalização em dialetos distintos de uma mesma língua é esperada, pois esse processo de mudança tende a avançar gradualmente, e pode, inicialmente, atingir patamares mais avançados na fala (e na escrita) de certos grupos sociais, e não de outros. Quanto à distribuição social da perífrase [CHEGAR (E) V2], observamos que ela predomina entre indivíduos do sexo masculino e entre indivíduos do Ensino Médio. Talvez esses indivíduos sejam os principais responsáveis pela disseminação da perífrase em questão na comunidade de fala natalense. Todavia, precisamos obter um maior número de dados para podermos fazer considerações mais refinadas a esse respeito. Enfim, conseguimos atingir os objetivos a que nos propomos, descrevendo detalhadamente propriedades semântico-pragmáticas e morfossintáticas que caracterizam o uso do verbo CHEGAR como V1 nas construções coordenada/justaposta e perifrástica, e, com base nessa descrição, obtendo indícios sincrônicos de que as construções em questão podem ser tomadas como diferentes etapas de uma trajetória de mudança via gramaticalização. 78 6. CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DE GRAMÁTICA É comum ouvirmos de estudantes ou de um falante qualquer da língua portuguesa a seguinte afirmação: “não há nada mais chato e difícil que o estudo da língua”. E não é apenas através de palavras que as pessoas expressam o seu sentimento de aversão às aulas de português, mais especificamente, às aulas de gramática. Podemos percebê-lo também pelas expressões faciais das pessoas que se vêem submetidas à realização de tal tarefa. Além disso, o péssimo desempenho da grande maioria dos estudantes em atividades envolvendo tópicos gramaticais apenas vem a confirmar essa difícil relação estudante/aula de gramática. Para os professores, então, se torna um desafio ministrar aulas de forma que atinjam, pelo menos, o objetivo de desfazer esse sentimento de aversão e repugnância dos alunos para com o estudo da gramática. É o que vêm constatando desde há muito os lingüistas, estudiosos do assunto e preocupados com a questão da formação dos professores, como Furtado da Cunha e Tavares (2007, p. 15): É mais do que notório o descaso crescente por parte dos jovens pelo estudo da sua própria língua, a ponto de se ter aversão às “aulas de português”. Já são muitas (e antigas) as vozes que se somam na reivindicação de uma nova roupagem para esse ensino, de modo a torná-lo mais prazeroso tanto para o professor quanto para o aluno. Este capítulo propõe-se levar a cabo uma reflexão voltada ao ensino de gramática a fim de contribuir com os professores dos níveis fundamental e médio em sua formação, sugerindo atividades com as quais possam obter um ensino mais produtivo. A proposta defendida neste trabalho é a de que não existe uma gramática única, mas sim uma gramática múltipla. Sendo nosso referencial teórico o do funcionalismo, faz-se preciso deixar explícito que ensino de língua e ensino de gramática não são uma e a mesma coisa, idéia essa que, a nosso ver, paira na mente dos profissionais da área. Tal idéia equivocada ocorre porque os professores concebem a gramática como a própria língua. Daí, ministram aulas ritualísticas, nas quais ensinam normas gramaticais a serem seguidas, o que leva a um total desconforto tanto por parte de quem ensina - o professor - quanto por parte de quem aprende - o aluno. Para desfazer esse equívoco, cumpre que todos nós despertemos para a verdadeira natureza da língua e do ensino gramatical, estabelecendo-se as funções e os limites de cada 79 um. Quanto à língua, buscamos em Antunes (2002, p. 130) algumas concepções – as mais amplas – a respeito de sua natureza: (A língua) é produção e expressão de sentidos, de representações sociais; é atividade textual – discursiva de interação e intervenção. Considerando-se essas amplas concepções de língua, nossa idéia de que o domínio efetivo de uma língua depende do domínio de regras gramaticais já se desmonta. Ora, se a linguagem não é usada em função de si mesma, mas cumpre uma função comunicativo-social, pensar que o estudo da terminologia e da classificação das unidades lingüísticas levará ao cumprimento dessa função constitui um engano. Para Givón a linguagem é uma atividade sócio-cultural, a estrutura lingüística é não arbitrária, cumprindo funções cognitivas e/ou comunicativas, o que significa dizer: a gramática resulta do processo de regularização, e este, por sua vez, depende das pressões de uso. Assim, a gramática é algo vivo, e nunca estável. Para a lingüística funcional, portanto, o professor deve trabalhar sob a perspectiva da mudança lingüística, e a gramaticalização constitui um desses processos de mudança, que é o que abordamos nesta pesquisa. Pensando no nosso objeto em estudo, o uso de CHEGAR, nas perífrases verbais, ficou evidente que se trata de um caso em processo de gramaticalização, pois seu uso já está regularizado como uma forma codificadora de aspecto global, e, assim sendo, não se pode tomá-lo, nas aulas de gramática, como um caso de vício de linguagem, ou, até mesmo, vê-lo com preconceito, por se tratar de um uso típico de situações de interação mais informais, já que foge ao padrão escrito, variedade lingüística tida como a melhor, a única representante da nossa realidade lingüística. O que se pode e deve fazer é tomar esse caso como de emprego natural na nossa língua e levá-lo à sala de aula para ser analisado em suas propriedades semântico-pragmáticas e morfossintáticas pelos próprios alunos. Como proposta, então, sugerimos as seguintes estratégias a serem adotadas pelos professores: em primeiro lugar, os alunos devem ser levados a observar o comportamento de CHEGAR em textos nos quais esse verbo seja empregado como lexical e como auxiliar, incluindo-se aí o caso do aspectualizador global, conforme os exemplos seguintes: 80 (1) aí um dia eu não tava muito afim de assistir aula dele ... né ... aí ... aí eu cheguei na turma e disse ... “olha ... Luiz Andrade mandou dizer que não ia dar aula hoje” ... todo mundo iria pra casa depois e ia repor essa aula ... quando o professor chegou à sala ... não tinha um aluno (Corpus D&G, dado 1) (2) que a gente num sabe onde é que vai ... onde é que essa situação vai chegar porque se hoje existe homens que não:: que governam e não sabem governar ... amanhã talvez num exista mais homem que governe ... porque nem ninguém confia mais em ninguém ... num dá mais pra se admitir ... se esperar ... não:: não temos mais esperança ... hoje o presi/ ontem o presidente Itamar esperando que o ... o ... o ministro da justiça chegasse pra dizer alguma coisa ... o ministro da fazenda também pra ver se ele dizia alguma coisa como é que ia fazer a economia ... um plano melhor pra economia ... quer dizer ... um sempre esperando e a solução num vem ... num tem mais ... é tipo assim ... um espera:: um senta e espera que fulano traga resposta ... fulano chega e diz ... “ah ... eu num sei ... vamos procurar outro fulano” ... chega também disso ... vamos buscar uma solução (Corpus D&G, dado 6) A partir de então, passa-se a perceber que uma dada forma pode desempenhar várias funções, no caso, CHEGAR é empregado com significado lexical, no exemplo (1), indicando deslocamento físico; já no exemplo (2), perdeu sua autonomia, unindo-se a um verbo principal, que, especificamente é um verbo de elocução, e não mais denota ação, deslocamento físico. É necessário frisar aqui que o ponto de partida para a abordagem desse conteúdo pode ser o texto do próprio aluno, pois esse tipo de abordagem é que faz sentido para ele, considerando-se que o que se quer é um ensino mais eficaz e produtivo. O segundo passo é fazer uma análise comparativa, diferenciando cada função desempenhada por CHEGAR; daí, buscar nos manuais de gramática uma possível classificação para o verbo; nesse momento o professor deve instigar uma reflexão sobre o caso específico de CHEGAR como aspectualizador, levando à discussão sobre o porquê de os compêndios gramaticais não trazerem explicações para tal. É cabível aqui fazer os alunos observarem que há semelhanças entre as perífrases do tipo [CHEGAR (E) V2] e as construções coordenadas/justapostas e, até mesmo, que as primeiras derivam historicamente dessas últimas. O próximo passo será relacionar a forma perifrástica com as modalidades oral e escrita, buscando, em textos os mais variados, tanto em gênero como em grau de formalidade, 81 analisar suas propriedades. A partir dessa análise os próprios alunos serão capazes de tirarem conclusões, como, por exemplo: que CHEGAR, na construção perifrástica, pode indicar o caráter súbito e/ou repentino de algum evento; ou que houve por parte de alguém a tomada de iniciativa para levar uma ação a cabo; e até mesmo exprimir surpresa ou lamento por parte do falante/escritor em relação ao evento por ele mencionado. Prosseguindo a análise, o aluno pode, por si só, perceber que a perífrase em estudo aparece predominantemente na modalidade oral da língua, e em contextos marcados por maior grau de informalidade. A abordagem aqui sugerida apenas tem a pretensão de auxiliar os professores de ensino fundamental e médio, conforme já ressaltamos, de forma que possam desenvolver um ensino mais prazeroso e produtivo, uma vez que leva em consideração a língua em uso, e, assim, contribui para a formação crítica do aluno em relação aos conteúdos gramaticais. 82 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste estudo, descrevemos e analisamos o uso do verbo CHEGAR em perífrases verbais do tipo [CHEGAR (E) + V2], em que CHEGAR não manifesta significado ligado a movimento físico. Consideramos que a função do verbo CHEGAR nas perífrases em questão é indicar aspecto global, ressaltando um leque de nuanças semântico-pragmáticas como o caráter repentino, instantâneo ou até brusco do evento referido pelo verbo principal da construção (V2), e/ou a tomada de iniciativa (súbita) do agente (no papel sintático de sujeito da perífrase), e/ou avaliações subjetivas que vão da surpresa à frustração. Através da comparação de traços do contexto de uso lingüístico e social da perífrase [CHEGAR (E) + V2] e de traços do contexto de uso de orações coordenadas/justapostas em que CHEGAR é o primeiro verbo de um par de orações coordenadas ou justapostas, nas quais o segundo verbo é de elocução, constatamos haver forte similaridade entre as construções coordenadas/justapostas e perifrásticas. Tais similaridades fortalecem a hipótese de que o uso de CHEGAR como verbo lexical na estrutura coordenada/justaposta é a fonte dos usos de CHEGAR na estrutura perifrástica, uma vez que várias das propriedades que encontramos com grande freqüência no uso lexical estão também presentes com grande freqüência no uso auxiliar. Todavia, entre as duas construções sob enfoque observam-se diferenças suficientes para se considerar que CHEGAR, na perífrase [CHEGAR (E) V2], comporta-se como verbo auxiliar, pois manifesta propriedades típicas desse tipo de verbos: (i) não seleciona complemento em 100% das ocorrências; (ii) possui sujeito correferencial ao de V2 em 100% das ocorrências; (iii) não aparece com material interveniente entre si e V2. Acreditamos que o controle dos dados em consonância com os fatores de natureza lingüística e social considerados neste estudo permitiu não apenas a obtenção de importantes indícios acerca das etapas do processo de gramaticalização de CHEGAR como verbo auxiliar, em seus meandros morfossintáticos e semântico-pragmáticos, como também possibilitou, em um plano mais geral, uma análise detalhada das propriedades das construções focalizadas, o que resulta em uma contribuição para a descrição da gramática do português falado e escrito na região Nordeste. Além disso, com esta pesquisa, fornecemos subsídios para o ensino de gramática da língua portuguesa, pois discutimos, à luz dos resultados por nós obtidos, como lidar, nas salas de aula de ensino fundamental e médio, com a língua real, dinâmica e em constante mudança. Dessas características da língua decorre o fato de que vários itens lingüísticos, a exemplo de 83 CHEGAR, podem desempenhar uma multiplicidade de funções, relacionadas entre si por terem as funções de significado mais abstrato/gramatical derivado daquelas de significado mais concreto/lexical. Assim, a língua pode e deve ser abordada, em sala de aula, em toda a sua multiplicidade. Como sugestões para estudos futuros, apontamos a necessidade de aprofundamento da discussão acerca do caráter auxiliar do verbo CHEGAR na perífrase [CHEGAR (E) + V2], e a possibilidade de serem realizadas pesquisas comparando o uso do verbo CHEGAR na referida perífrase com outros verbos que também são passíveis de ocupar o mesmo papel, como PEGAR e IR. 84 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, I. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola, 2002. BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. BORBA, F. S. Dicionário de usos do português do Brasil. São Paulo: Ática, 2002. BRINTON, L.; TRAUGOTT, E. C. Lexicalization and language change. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. BYBEE, J.; PERKINS, R.; PAGLIUCA, W. The evolution of grammar. Chicago: University of Chicago Press, 1994. CASTILHO, A. T. Aspecto verbal no português falado. In: ABAURRE, M. B.; RODRIGUES, A. C. S. (Orgs). Gramática do português falado. v. VIII. 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