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A última coroa: Boccaccio e a gênese da narrativa moderna
Doris Nátia Cavallari
Universidade de São Paulo
Resumo
Nascido há 700 anos, na Toscana, o autor é considerado como parte das “três coroas” que fundam a
literatura italiana, isto é, Dante Alighieri, Francesco Petrarca e o mais jovem deles, justamente,
Giovanni Boccaccio. Autor de um grande número de textos de diferentes gêneros literários,
Boccaccio, com sua obra maior o Decameron, inaugura a grande narrativa em língua “vulgar” e
contribui para a formação do gênero romanesco moderno. Pretendo comentar aqui alguns aspectos
do Decameron e destacar sua importância no cenário mundial das Letras modernas.
Palavras-chave
Giovanni Boccaccio, narrativa, entoação, distância
Doris Nátia Cavallari é, atualmente, docente de Literatura Italiana da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP, é graduada (nas áreas de português-italiano, em 1981) e
mestre em Letras pela mesma Faculdade (FFLCH – USP). Suas pesquisas de mestrado (1992), e
Doutorado (2000 – FCL – UNESP – Assis) versam sobre as obras de Silone. Realizou pós
doutorado junto à Università degli Studi ‘G. D’Annunzio’- Chieti Pescara sobre a Revista Tempopresente: informazione e discussione, periódico de cultura dirigido por I. Silone e N. Chiaromonte.
Além de publicar e pesquisar literatura contemporânea, a professora trabalha sobre as origens da
literatura italiana, tendo publicado textos sobre G. Boccaccio e L. Pulci.
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
The last crown: Boccaccio and the genesis of modern narrative
Doris Nátia Cavallari
University of São Paulo
Abstract
Born 700 years ago, in Tuscany, the author is considered one of the “three crowns” who the
founders of Italian literature, i.e., Dante Alighieri, Francesco Petrarca and the youngest of them,
Giovanni Boccaccio. Author of a great number of texts written in different literary genres,
Boccaccio, with his major work, Decameron, introduces the grand narrative in vernacular and
contributes to the foundation of the modern novel. I intend to comment here on some aspects
of Decameron and highlight its importance in the worldwide stage of modern literature.
Palavras-chave
Giovanni Boccaccio, narrative, intonation, distance
Doris Nátia Cavallari teaches Italian Literature at Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas – USP. She is graduated (Portuguese and Italian, 1981) and Master in Letters from the
same Faculty (FFLCH – USP). Her master’s (1992) and doctoral researches (2000 – FCL – UNESP
– Assis) are related to the works of Silone. She carried out a post-doctoral research at Università
degli Studi ‘G. D’Annunzio’- Chieti Pescara, about the journal Tempo-presente:informazione e
discussione, a cultural periodical directed by I. Silone e N. Chiaromonte. Besides her publications
and researches on contemporary literature, professor Cavallari works on the origins of Italian
literature, and has published texts about G. Boccaccio and L. Pulci.
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A última coroa: Boccaccio e a gênese da narrativa moderna
grande literatura na Itália, para dizê-lo com Alberto Asor Rosa, tem na
fase genética três grandes gênios criadores Dante Alighieri, Francesco
Petrarca e Giovanni Boccaccio, conhecidos como as três coroas; estes
autores estavam destinados não só a representar a nova aristocracia do
espírito, como fruto da reorganização social na transição da baixa Idade Média ao
Humanismo, mas também a fornecer os instrumentos para a nova língua, literatura e
cultura italianas e também europeia.
Dante e Petrarca propõem técnicas de representação literária ligadas à memória e
ao amor e inserem a “experiência pessoal” como matéria poética e dedicada a uma musa
específica, cujos nomes, Beatrice e Laura, se tornam objeto da própria poesia e
expressão da personalidade dessas mulheres.
A motivação literária é a inspiração amorosa que dita significados ao poeta,
sempre ligado à matéria que expressa: a ausência da mulher amada que vive em sua
memória e em seu coração. O poeta apresenta-se totalmente ensimesmado em seu
trabalho literário, que expõe seu mundo, suas aspirações e seu caminho de criação
artística.
A ausência, a distância da mulher amada e a morte prematura de sua musa
constituem para Dante e Petrarca não só a essência da matéria poética, mas também,
como observa Eduardo Sterzi, “a necessidade da própria poesia enquanto fundação do
sujeito na linguagem” (2006, p.39).
A dor da perda e do amor são pontos de partida em comum para as obras, em
língua “vulgar”, de Dante, Petrarca e Boccaccio que, em termos temporais pertencem a
duas gerações de escritores florentinos, mas que, por suas personalidades e formas de
representação literárias tão singulares, podem ser separados em três momentos únicos
de criação artística que determinariam os caminhos do fazer literário não só em
Florença e na Itália, mas também na Europa do século XIV.
O mais jovem dos três gênios, Boccaccio, estabelece no Decameron, sua maior
obra ficcional, um diálogo irônico e também paródico com a matriz literária de seus
antecessores e revoluciona, embora o negue frequentemente, a narrativa ocidental.
Se pensarmos nas categorias utilizadas por Dante e Petrarca para a realização de
suas obras em vulgar, ou seja, a ausência da amada, a memória, a inserção da
experiência pessoal e o protagonismo dos autores nas obras, veremos que Boccaccio, no
Decameron, propõe inversões fundamentais para o resultado estilístico de seu texto.
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No livro dos dez dias, o autor narra a história de dez jovens que, fugindo da peste que
assola Florença, vão a uma casa de campo e se reúnem nas horas mais quentes do dia
para contar histórias.
Amor, morte, distância, memória são características que unem o Decameron à
produção dos autores precedentes, entretanto, nesta obra, o amor que é terreno e
efêmero faz parte do passado do autor e dele restam a memória e a gratidão pelo apoio
dos amigos que o fizeram superar a impossibilidade de vivê-lo plenamente. A morte,
nesse caso, não se restringe à pessoa amada, mas alcança uma inteira comunidade e
provoca o caos na estrutura social vigente, exigindo uma nova organização (ou a
recriação do mundo que será feita pela narrativa). A distância, fundamental para a
estrutura do Decameron não é mais entre o poeta e sua musa, mas entre a vida e a arte
de narrar.
Nessa obra, de fato, Boccaccio abdica do protagonismo, tão caro a Dante e a
Petrarca, e se faz, antes de tudo, um narratário que, para retribuir o auxílio recebido
quando sofria por amor, pretende contar
cem de novelas, ou fábulas, ou parábolas ou histórias ou o que
quer que sejam... contadas durante dez dias, como se verá, por
um honrado grupo [onesta brigata] de sete mulheres e três
rapazes, no período da grande mortandade causada pela peste, e
algumas cantigas entoadas pelas referidas mulheres, para seu
deleite. (Boccaccio, 1992, p. 9)1
O autor afirma “reproduzir” o que lhe foi contado, repetindo as palavras de seus
narradores e defende-se quanto ao conteúdo e a forma da narração, quando afirma na
conclusão da obra,
[...] haverá pessoas que digam que existem, aqui, certas novelas
que, se não existissem, fariam a obra melhor. Concorde-se com
isso. Contudo, eu não podia nem devia descrever senão as
novelas narradas; se aqueles que a deviam narrar as tivessem
feito belas, também eu haveria de escrevê-las belas. Contudo,
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Traduzi todos os textos dos originais, para facilitar a leitura.
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ainda que se queira pressupor que eu seja o inventor e o escritor
delas – coisa que não fui – declaro que não sentiria vergonha do
fato de nem todas serem lindas; isto pela razão de que não se
acha mestre algum - senão Deus – que faça as coisas bem feitas
e definitivas. (Boccaccio, 1992, p. 1258)
O autor do Decameron não se envergonha de “referir” narrativas com a entoação
estilística de seus narradores, sejam elas consideradas belas ou não, sejam longas ou
curtas, contadas por homens ou mulheres, com finais felizes ou infelizes, porque sua
obra destina-se ao deleite de suas leitoras que, ociosas, podem fruir da variedade da
matéria narrativa. A liberdade da matéria coincide no Decameron, aliás, com a
liberdade do estilo apto a representar o mundo urbano do mercador e os valores da
burguesia em ascensão.
Boccaccio autor (entendido sempre como instância ficcional), narrador ou
“hipernarrador”, como afirma Andrea Lombardi (1998, p.71), mostra-se, de fato, no
comando do universo ficcional, não apenas como o narratário-narrador que conta o que
ouviu, mas como autor de um romance sobre dez jovens que fogem de Florença, por
causa da peste negra, e contam histórias para se divertir.
Os personagens-narradores, pela ação do hipernarrador tornam-se, então,
protagonistas de um texto maior, pois é na cornice (“moldura”) – isto é na
contextualização das novelas que se dá no proêmio, nas conclusões do autor e em suas
interferências durante o texto, especialmente no início da IV jornada – que o narrador
extradiegético demonstra a total liberdade para criar as personalidades e fornecer a esses
narradores sua própria entoação, além de comentar suas ações e seu comportamento
durante a obra.
Franco Cardini, na introdução a uma edição do Decameron, observa que
contrariamente ao que se diz [...] o Decameron não é “uma
coletânea de novelas”, envolvidas por uma entediante e bastante
útil “moldura narrativa” escrita para satisfazer ao gosto pedante
daqueles tempos. É, de fato, um verdadeiro romance, aliás, um
Bildungsroman , “romance de formação” ou até um “romance
iniciático” pensado para renovar ou regenerar o espírito do
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leitor. E não é certamente uma leitura sem engajamento e para
pura distração. (2012, p.8/9).
Cardini acrescenta que, já que se trata de um romance, o texto precisa de
protagonistas que, de fato, não são os famosos personagens das novelas, mas os dez
jovens narradores. Assim, Boccaccio autor-narratário-narrador é aquele que rege o
universo ficcional e cria seus heróis com entoação própria, de modo a descentralizar as
vozes e as diferentes nuanças expressivas que constituem a riqueza estilística do texto.
A pluridiscursividade é um dos pontos centrais da arte boccacciana, pois, para
dizê-lo com Bakhtin, “para o gênero romanesco, não é a imagem do homem em si que é
característica, mas justamente a imagem de sua linguagem” (grifo do autor) e o herói do
romance é aquele que “adquire uma iniciativa ideológica e linguística que modifica a
sua figura” (1990, p. 426).
Nesse “romance iniciático”, Boccaccio, como dizíamos, propõe a dissociação
entre vida e arte que se faz sentir não apenas na ação, mas também na forma de narrar
de seus personagens-narradores. Tomemos como exemplo Panfilo, o primeiro narrador
do Decameron, o amante bem-sucedido, homem cortês, realizado e sábio, que, ao final
das dez jornadas, sugere o retorno da “onesta brigata” à cidade para que da experiência
se leve a “contínua honestidade, contínua paz, contínua amizade fraterna” (Boccaccio,
1992, p. 250) que marcaram o refúgio dos jovens. Essa personagem, verdadeira imagem
do bom senso, ao contar suas novelas, opta por uma entoação fabular, exagerada, irreal,
mesclando figuras e situações absurdas com fatos cotidianos.
Desse modo, inaugura as narrativas do Decameron com a novela de “ser
Ciappelletto”, o pior homem que viera a luz (1992, p. 54), um notário desonesto que
adora prestar falsos testemunhos e envergonha-se dos trabalhos honestos que, por
ventura, se veja obrigado a realizar. É um homem tão fiel à própria personalidade de
antagonista da sociedade a que pertence que, para ajudar dois companheiros usurários,
fará uma boa ação, sem abdicar de sua opção pela mentira e o engano. De fato, estando
em uma terra estranha e à beira da morte, ser Ciappelletto convence um religioso
ingênuo de que é um homem de moral ilibada e um fervoroso crente, o qual vive
segundo as regras da Igreja, desse modo, vai se tornar paradoxalmente um santo para os
habitantes do local onde é sepultado.
A segunda novela contada por Panfilo trata das aventuras de Alatiel, uma
sarracena, a mais bela jovem que existia no mundo naqueles tempos (Boccaccio, 1992,
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p. 1227) que se torna vítima da própria beleza e, antes de chegar ao marido que lhe fora
designado, passa por sequestros e por nove amantes, para depois voltar ao seu destino.
A história de Alatiel remete aos romances da antiguidade clássica, marcados, como
ressalta Bakhtin, pelo hiato extratemporal, em que as ações dos heróis desenvolvem-se
entre dois pontos, o do início e o do final feliz, sem que haja nenhuma alteração na
forma de ser e pensar dos personagens, na paisagem, em sua aparência física ou em suas
vidas.
A protagonista de Panfilo, embora seja submetida a nove amantes que a seduzem
por não resistir a sua beleza, jamais aprende a língua dos cristãos com quem convive,
nem sofre qualquer dano à sua beleza, fato que será suficiente para que o esposo
prometido acredite que ela é a mesma virgem que lhe fora destinada anos antes.
Os protagonistas escolhidos por Panfilo têm sempre características exacerbadas,
o pior homem, a jovem mais bela, o mais sábio e mais feio, até os mais corteses de
todos, isto é Messer Torello e o Saladino, protagonistas da última novela contada por
esse personagem. Eles são a antítese de ser Ciappelletto e seus companheiros usurários,
mas como os primeiros estão ligados pela lealdade e amizade. No caso da novela de
Ciappelletto é a astúcia que vence o jogo, já naquela de messer Torello a palavra do
homem de bem, a magia, além da cortesia, terão papel fundamental para o desenlace
feliz da novela; assim o real e o fantasioso encontram lugar nas narrativas de Panfilo
que se destinam ao puro deleite do grupo.
Da primeira à última novela, Panfilo escolhe a entoação fabular para suas
narrativas e a fábula, como observa M. Piccone em seu livro Boccaccio e la
codificazione della novelle: letture del Decameron (2008), tem
[...] como programa de referir eventos inverossímeis e de
entreter o público. Evidente a conexão com a narratio brevis, a
qual se opõe seja a narratio aperta, porque não quer ser
verdadeira e não quer docere, seja na narratio probabilis,
porque não quer ser verossímil e não quer movere. A verdade
que a fabula e a narratio brevis recriam não é, portanto, aquela
do factum, do evento real, mas aquela da fictum, do evento
inventado. Elas não querem ressaltar elementos verdadeiros do
evento fictício, mas querem enfatizar precisamente o caráter
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ilusório da fictum. Sua finalidade não é o ensino ou a persuasão,
mas o puro prazer de contar, o divertissement artístico... (p. 12).
As escolhas do narrador Panfilo estão ligadas a essa concepção de fábula como
fictio e divertissement, pois, como homem de bom senso que é, ele se atém à proposta
inicial feita por Pampinea de contar histórias para o deleite de todos. Os personagens do
Decameron narram para não morrer e para esquecer o perigo da morte que assalta suas
vidas. Pode-se pensar, então, que essa seja a motivação de todas as novelas contadas por
Panfilo, que trazem a marca da hipérbole e a ênfase fabular, pois o narrador insiste em
distanciar a narrativa da realidade circunstante, exagerando vícios e virtudes que
forneçam colorido e vida nova a suas histórias e, assim, entretenham seus ouvintes.
O distanciamento entre o narrador e a matéria narrada não é, portanto, exclusivo
do autor do Decameron, mas é característica marcante de seus protagonistas-narradores,
os dez jovens de boa família que, como observa Luigi Surdich, formam uma elite social,
moral e literária (2001, p. 109). Cada um deles vai optar por uma entoação própria para
contar suas “novelas, fábulas, parábolas ou histórias” para o deleite de seus
companheiros.
Eles compõem a chamada “onesta brigata” apresentada pelo autor no prólogo da
obra na qual, como explica Dioneo, “abstendo-se os homens e as mulheres de proceder
de modo desonesto, toda conversação é livre” (Boccaccio, 1992, p.776).
Além disso, este nosso grupo, desde o primeiro dia, até o
presente instante tem tido um proceder honestíssimo. Por
palavra que se tenha dito não acho que tal proceder se tenha
manchado, nem virá a manchar-se, com o auxílio de Deus. Além
do mais, quem é que não está ciente da honestidade de vocês?
Acredito que tal honestidade não poderia correr risco por causa
de algumas palavras divertidas, e nem mesmo pelo terror da
morte. (Boccaccio, 1992, p. 776-7)
A argumentação de Dioneo é fruto dos protestos de suas companheiras pela
proposta do rei da sétima jornada, que deseja que se conte sobre “os enganos que, por
amor ou necessidade, as mulheres já cometeram contra seus maridos, tenham eles
percebido ou não”. Deve-se salientar a importância dada no texto aos termos “onesto” e
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“onestà”. O autor demonstra que seus narradores comportam-se como jovens de boas
famílias que são, sem abusar da liberdade que a situação proporciona, uma vez que, ao
fugir do caos estabelecido pela peste, anseiam por restaurar a convivência saudável
ditada pelos ideais corteses.
Sua única, verdadeira e absoluta liberdade, aliás, é a da narrativa. Ao contar
histórias, os alegres protagonistas de Boccaccio celebram a vida como puro deleite. Seu
espaço é o do jardim, lugar ideal e distanciado da dor de um mundo destruído do qual
fugiram. Desse novo cronotopo, nossos heróis da palavra podem observar, relatar e
inventar histórias irônicas e divertidas sobre o universo social ao qual pertencem.
Paolo Cherchi, em seu livro L’onestade e l’onesto raccontare (2004), conclui
que o Decameron é o livro do “onesto raccontare”, porque celebra a literatura enquanto
“bela por si mesma” (p.107), isto é celebra a arte pela arte. O autor enumera uma série
de requisitos para o “onesto raccontare” e os coloca na seguinte ordem: 1) a matéria
deve ser agradável; 2) deve ser apresentada em “vestes decorosas” e 3) deve ter uma
utilidade particular, mas não fins imediatos e extrínsecos.
Cherchi observa ainda que no Decameron, diferentemente das obras precedentes
do autor, Boccaccio “assume como tema da narrativa o próprio narrar, para mostrar a
dimensão artística e a complexa relação entre autor/leitor a que dá início” (p. 95). Desse
modo, o narrador-narratário (mas nunca protagonista) “deleita-se com a própria arte que
possui aquela magia de tudo tornar prazeroso. A narrativa bela que se pode fruir por si
mesma dá-se só no Decameron: e isso é o honesto” (p. 95), afirma ainda Cherchi.
Boccaccio inaugura com o “onesto raccontare” uma nova ética da narrativa que
possibilita a experiência estética dissociada da rigidez moral da Idade Média, pela
liberdade de dizer e experimentar formas, estilos, posturas narrativas que ainda hoje não
chegaram a um ponto final. A matéria literária, guiada pelo “onesto raccontare”, abre a
possibilidade de realizar um diálogo com os ouvintes-leitores em diferentes lugares e
momentos, supera as convenções sociais e inicia uma nova forma de tessitura narrativa
em que a palavra do herói conta e determina os rumos do narrar.
Assim, o “romance iniciático” de Boccaccio estabelece um diálogo mais
abrangente com o porvir, no qual o produto textual encontra sempre novas
possibilidades de leitura ou de acabamento estético, de vez que o romance é “um gênero
inacabado”, incompleto, imperfeito e destinado a “achar-se em eterna busca”
(Clark/Holquist,199, p. 291) e, portanto, aberto a leituras que possam acrescentar novos
significados ao seu significado original.
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Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo:
Editora da UNESP/HUCITEC, 1990.
BOCCACCIO, G. Decameron. A cura di Vittore Branca. 2.vol. Turim: Einaudi, 1992.
BOCCACCIO, G. Decameron. Introduzione di Franco Cardini. Roma: Newton, 2006.
CLARK, K. e HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998.
CHERCHI, P. L’onestade e l’onesto raccontare del «Decameron». Fiesole: Cadmo,
2004.
LOMBARDI, A., “Boccaccio e la creazione di un lettore ingegnoso: una lettura della
VI, I del Decameron”. In: a. c. di CAPRARA, L. e ZINI ANTUNES, L. (org). O
italiano falado e escrito. São Paulo: Humanitas, 1998.
PICONE, M. Boccaccio e la codificazione della novella. Letture del Decameron.
Ravenna: Longo, 2008.
STERZI DE CAVALHO JUNIOR, E. Incipt: A “Vita Nova” e a irrupção da lírica
moderna. Campinas, 2006, 517p. (tese de doutoramento em Teoria e História
Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de
Campinas).
SURDICH, L. Boccaccio. Roma-Bari: Laterza, 2001.
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