UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA A CONSTRUÇÃO ASPECTUAL INCEPTIVA DO PORTUGUÊS COM VERBOS NÃO CANÔNICOS Natália Sathler Sigiliano 2013 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA A CONSTRUÇÃO ASPECTUAL INCEPTIVA DO PORTUGUÊS COM VERBOS NÃO CANÔNICOS Natália Sathler Sigiliano Tese submetida ao programa de PósGraduação em Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Linguística. Orientadora: Profa. Dra. Maria Luiza Braga Rio de Janeiro Janeiro de 2013 ii A CONSTRUÇÃO ASPECTUAL INCEPTIVA DO PORTUGUÊS COM VERBOS NÃO CANÔNICOS Natália Sathler Sigiliano Orientadora: Professora Doutora Maria Luiza Braga Tese de Doutorado submetida ao programa de Pós-Graduação em Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Linguística. Aprovada por: _________________________________________________ Presidente, Profa. Doutora Maria Luiza Braga _________________________________________________ Prof. Doutora Mariângela Rios de Oliveira – UFF _________________________________________________ Profa. Doutora Maria Margarida Martins Salomão – UFJF _________________________________________________ Profa. Doutora Maria Maura da Conceição Cezário – UFRJ _________________________________________________ Profa. Doutora Nilza Barrozo Dias – UFF Rio de Janeiro Janeiro de 2013 iii Sigiliano, Natália Sathler. A Construção Aspectual Inceptiva do Português com verbos não canônicos / Natália Sathler Sigiliano. – Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2013. xiv, 180f.: il.; 31cm Orientadora: Maria Luiza Braga Tese (doutorado) – UFRJ/ Departamento de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Linguística, 2013. Referências Bibliográficas: f. 170-174 1. Aspecto Inceptivo 2. Movimento 3. Gramaticalização 4. Motivações Semânticas I. Braga, Maria Luiza. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, Programa de Pós graduação em Linguística. III. A Construção Aspectual Inceptiva do Português com verbos não canônicos iv RESUMO A CONSTRUÇÃO ASPECTUAL INCEPTIVA DO PORTUGUÊS COM VERBOS NÃO CANÔNICOS Natália Sathler Sigiliano Orientadora: Maria Luiza Braga Resumo da Tese de Doutorado submetida ao programa de Pós-Graduação em Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Linguística. Adotando uma perspectiva baseada no uso, esta tese investiga a Construção Aspectual Inceptiva do Português (CI), que segue o padrão [(SN) V1fin (Prep) V2inf]. Foram analisados sincronicamente e diacronicamente os preenchimentos de V1 por cair, danar, deitar, desandar, desatar, disparar, entrar, pegar e romper. Realizaram-se buscas no Córpus do Português, no Córpus Conceição de Ibitipoca, no Córpus Juiz de Fora e Arredores e no Córpus Procon JF, com o intuito de examinar as relações sintático-semânticas que perpassam a CI e as relações subjacentes ao seu emprego. Com o intuito de verificar as relações sintático-semânticas entre os elementos que compõem a CI, foi realizado um estudo de caso que partiu do verbo pegar, o qual pôde ser observado tanto nas suas relações lexicais quanto gramaticais. Por meio dele, foi possível propor uma rede de motivações sintáticas e observar as restrições semânticas do uso de V1 e de Prep associadas à categoria de movimento. Uma análise diacrônica com vias a analisar a gramaticalização da CI corroborou essas restrições inclusive no que tange à escolha do V2. A aplicação do parâmetro da extensão e do princípio da persistência mostrou ser a CI uma construção em processo de gramaticalização, em que a posição de V1, com o passar do tempo, é preenchida por diversos verbos não canônicos, persistindo a categoria de movimento associada a eles, e, a extensão a novos contextos em que se restringem as ligações entre determinados V1 e tipos específicos de V2. Foram buscadas também evidências translinguísticas da metáfora de movimento na CI, visto que a linguagem é corporificada. Para tanto, analisaram-se dados em diversas línguas, as quais revelaram haver forte associação ao tipo semântico de V1 na CI não canônica do português com a do estoniano, espanhol, francês e japonês, por exemplo. Foi desenhado um experimento com vias a observar a relação corpo x linguagem e suas manifestações nos usos aspectuais. Essa pesquisa psicolinguística não mostrou dados estatisticamente relevantes no que tange à ativação neuronal de movimento e o uso de V1 que denote essa noção; ela colaborou com pesquisas já realizadas que demonstraram a inexistência de relações direção e velocidade de resposta no que diz respeito ao uso de expressões metafóricas. Palavras-chave: Semânticas Aspecto Inceptivo, Movimento, Gramaticalização, Motivações Rio de Janeiro Janeiro de 2013 v ABSTRACT THE INCEPTIVE ASPECTUAL CONSTRUCTION IN PORTUGUESE WITH NON CANONICAL VERBS Natália Sathler Sigiliano Orientadora: Maria Luiza Braga Abstract da Tese de Doutorado submetida ao programa de Pós-Graduação em Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Linguística. From a usage-based perspective, this dissertation investigates the Inceptive Aspect Construction [(NP) V1fin (Prep) V2inf] (CI) in Portuguese. Instances of such constructions in which the V1 slot is filled by cair, danar, deitar, desandar, desatar, disparar, entrar, pegar and romper were analized both synchronically and diachronically. Four different corpora – Corpus do Português, Corpus Conceição de Ibitipoca, Corpus Juiz de Fora e Arredores and Corpus Procon JF – were surveyed for the CI syntactic pattern. Data collected were analized so as to examine the syntactic and semantic relations involved in the CI. Aiming at describing the relations extant between the elements in the construction, a case study with the verb pegar was carried out. It was possible to propose a network of syntactic motivations as well as to observe the semantic restrictions to the usage of V1 and Prep associated to the cognitive category of Motion. A diachronic analysis performed in order to verify the grammaticalization of the CI reinforced such semantic restrictions and extended them to the usage of different semantic types of V2. Taking the extension parameter and the persistence principle as analitical categories, it is claimed that the CI is a construction in process of grammaticalization, in which several non-canonical aspectual auxiliaries have been entering the V1 slot through time. The cognitive category of Motion is persistent in all of those verbs, while the extension of such construction to new contexts of usage is restricted to certain collocations of V1 and specific semantic types of V2. Crosslinguistic evidence for the presence of motion metaphors in the CI was also provided. Data from several languages – such as Estonian, Spanish, French and Japanese – showed the resence of motion verbs in aspectual constructions very similar to the one studied in this dissertation. Finally, a behavioral experiment was design so as to observe whether it was possible to find Action-sentence Compatibility Effects in the CI. Data were not statistically relevant in which regards the simulation of hand motion during the understanding of the CI. Such fact may be due to the fact that, in the CI, aspectual auxiliaries are used metaphorically. Keywords: Inceptive Aspect, Motion, Grammaticalization, Semantic Motivation Rio de Janeiro Janeiro de 2013 vi AGRADECIMENTO À querida e especial professora Maria Luiza Braga, por receber-me como sua orientanda! Obrigada por ter me dedicado seu tempo, compartilhado vastos conhecimentos e se aplicado à leitura atenta dos meus textos. Agradeço também por ter se tornado uma grande amiga. À Profa. Nilza Barrozo Dias, por investir junto comigo no projeto de trabalho com o verbo pegar, que acabou dando origem a esta tese, e por me incentivar na pesquisa linguística. Obrigada pelo carinho e pela dedicação em ensinar. À Profa. Maria Margarida Martins Salomão, minha ex-reitora do período de graduação, por ser um exemplo de professora, política e pesquisadora. Agradeço por ter despertado em mim o interesse pela interface da linguística com outras áreas de conhecimento e por ter proporcionado aulas incríveis no curso de Cognição da UFJF. À Profa. Maria Maura Cezário, pelas valiosas contribuições na ocasião do exame de qualificação e por ter aceitado o convite para ser membro da minha defesa. À Profa. Mariangela Rios de Oliveira, por aceitar imediantamente o convite para participar da banca de defesa como membro titular externo e pelo comprometimento com a pesquisa. Às Professoras Thaís Fernandes Sampaio e Christina Abreu, por terem aceitado o convite de membros suplentes da banca. Aos professores da UFJF, por todos os ensinamentos. Em especial, ao querido Prof. Mario Roberto Lobuglio Zággari, in memoriam, que me conduziu ao caminho da Linguística. Ademais, foi um grande exemplo de professor vocacionado e de homem de ética e caráter. Agradeço ainda à sua família que sempre me recebeu de braços abertos em sua casa. Agradeço também aos professores da UFRJ, pelo modo como me receberam e pelo convívio harmonioso e encorajador. Agradeço em especial ao Prof. Mário Martelotta, in memoriam, e ao Prof. Marcus Maia que, à frente da coordenação, sempre estiveram aptos a ajudar no que fosse preciso. Aos funcionários da Pós-Graduação em Linguística, principalmente ao Lúcio, pela presteza. Aos meus amigos de sempre, com quem compartilhei as angústias e as alegrias de meu percurso acadêmico e da minha vida: Carol, Ulisses, Ana Paula, Luis Felipe, Larissa, Gabriela, Alice, Cláudia, Marina, amigos dos Contadores de Histórias e da Primeira Igreja Presbiteriana de Juiz de Fora. À CAPES, pela concessão da bolsa no desenvolvimento da pesquisa. Ao Wagner Arbex e à Carolina pela ajuda essencial na estatística e no desenvolvimento do experimento. A todos os meus familiares, dos dois lados, pela paciência nos momentos de choro, pelo incentivo e pela compreensão nos momentos em que não pude partilhar de suas companhias. Em especial à minha querida avó Bailinha, aos meus tão amados e incentivadores primos, aos meus tios, aos meus sogros e aos meus cunhados. Ao Tiago, por ter me apoiado e me apoiar sempre em tudo; por estar ao meu lado em todos os momentos; pelas conversas, risadas, carinhos, brincadeiras, livros e por ter mudado a minha vida; obrigada pelas opiniões e leituras do meu trabalho; obrigada pelo companheirismo e pelo amor dedicado a mim. vii Aos meus pais, Carlos Alberto e Mariza, por serem exemplo de amor, trabalho e dedicação; por terem me ensinado de modo muito eficiente a não desistir e a sempre buscar fazer o melhor, seja em que área for, por serem tão generosos comigo, pela paciência com os meus erros, enfim, por serem esses grandes pais! Aos meus amados irmãos, Larissa, Vítor e Renata, por torcerem pela minha felicidade e me ajudarem a caminhar mais confiante, agradeço por todas as palavras de apoio. Por fim e principalmente agradeço a Deus por todas as oportunidades diárias de respirar, aprender e ensinar. viii LISTA DE FIGURAS Figura 1: Classificação das oposições aspectuais segundo Comrie (1978) ................... 32 Figura 2: Processos perfectivo e imperfectivo, segundo Taylor (2002, p.398) ............... 35 Figura 3: Taxonomia dos tipos de processo (TAYLOR, 2002, p.401) ............................ 36 Figura 4:Esquema de representação do modelo da Quebra de Barreiras ................... 143 Figura 5: Esquema de representação do Movimento sem Barreira ............................. 148 ix LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Ocorrências de CI preenchidas por cair a, na posição de V1fin, através dos séculos. ........................................................................................................................ 129 Gráfico 2: CI preenchida por danar a, na posição de V1fin, através dos séculos.......... 129 Gráfico 3: CI preenchida por danar de, na posição de V1fin, através dos séculos. ....... 129 Gráfico 4: CI preenchida por desandar a, na posição de V1fin, através dos séculos. ... 130 Gráfico 5: CI preenchida por disparar a, na posição de V1fin, através dos séculos. ..... 130 Gráfico 6: CI preenchida por romper a, na posição de V1fin, através dos séculos. ...... 131 Gráfico 7: CI preenchida por desatar a, na posição de V1fin, através dos séculos. ...... 132 Gráfico 8: CI preenchida por pegar a, na posição de V1fin, através dos séculos.......... 132 Gráfico 9: CI preenchida por pegar de, na posição de V1fin, através dos séculos. ....... 133 Gráfico 10: CI preenchida por deitar a, na posição de V1fin, através dos séculos. ....... 133 Gráfico 11: CI preenchida por entrar de, na posição de V1fin, através dos séculos .... 134 Gráfico 12: CI preenchida por entrar a, na posição de V1fin, através dos séculos. ...... 135 Gráfico 13: Tempos médios de resposta dos falantes submetidos ao Experimento 1. As barras indicam o Erro Padrão. ...................................................................................... 167 Gráfico 14: Tempos médios de resposta dos falantes submetidos ao Experimento 2. As barras indicam o Erro Padrão. ...................................................................................... 169 x LISTA DE QUADROS Quadro 1: Distribuição do número de palavras do CP por século, origem e gênero. ..... 23 Quadro 2: Corpora do Português do Brasil dos séculos XX e XXI, acompanhados do número aproximado de palavras que os compõem........................................................ 24 Quadro 3: Noções aspectuais segundo Travaglia (1985 [1981]).................................... 38 Quadro 4: Quadro aspectual do Português, Travaglia, 1985, p. 96. .............................. 42 Quadro 5: Quadro resumo das noções aspectuais de Travaglia (1985) ........................ 44 Quadro 6: Aspectos verbais do português (CASTILHO, 1968, p. 51) ............................ 46 Quadro 7: Tipologia do Aspecto (CASTILHO, 2010, p.420) ........................................... 50 Quadro 8: Perífrases inceptivas, segundo Travaglia (1985) .......................................... 70 Quadro 9: Parâmetros de auxiliação segundo Vieira e Brandão (2004) ........................ 75 Quadro 10: Afastamento do polo de auxiliaridade.......................................................... 76 Quadro 11: Critérios de auxiliaridade, Lobato (1975) ..................................................... 79 Quadro 12: Parâmetros da transitividade segundo Hopper e Thompson (1980) ........... 81 Quadro 13: Formação de going to como marcador de tempo futuro, através de um continuum constituído pelos polos source (origem) e target (alvo). ............................. 122 Quadro 14: Sentidos dos verbos investigados em usos como verbo pleno e suas etimologias. Fontes: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009; Dicionário Escolar Latino-Português, 1956 ................................................................................................ 155 xi LISTA DE TABELAS Tabela 1: Tipos semânticos de V2inf ............................................................................. 126 Tabela 2: Distribuição das ocorrências da CI com base na combinação de tipos semânticos de V2 com cada possibilidade de preenchimento de V1fin. ....................... 127 Tabela 3: Ocorrências da CI preenchidas em V1fin por entrar e romper ao longo dos séculos. A mancha em cinza aponta para a extensão da construção no que tange aos tipos semânticos de V2. ............................................................................................... 137 Tabela 4: Ocorrências da CI preenchidas em V1fin por entrar e romper ao longo dos séculos. A mancha em cinza aponta para a extensão da construção no que tange aos tipos semânticos de V2. ............................................................................................... 138 Tabela 5: Aplicação do esquema da Quebra de Barreiras a usos metafóricos de romper e desatar ...................................................................................................................... 145 Tabela 6: Resultados do Experimento 1 ...................................................................... 166 Tabela 7: Resultados do Experimento 2 ...................................................................... 168 xii SUMÁRIO LISTA DE FIGURAS ....................................................................................................... ix LISTA DE GRÁFICOS ...................................................................................................... x LISTA DE QUADROS ..................................................................................................... xi LISTA DE TABELAS ...................................................................................................... xii INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 15 1 METODOLOGIA .......................................................................................................... 21 1.1 Corpora Utilizados .................................................................................................... 21 1.1.1 Corpora Escritos ............................................................................................. 22 1.1.2 Corpora Falados ............................................................................................. 23 1.2 Levantamento dos Dados......................................................................................... 24 1.3 Desenho Experimental ............................................................................................. 26 1.3.1 Experimento 1 ....................................................................................................... 27 1.3.2 Experimento 2 ....................................................................................................... 28 2 TEORIAS DO ASPECTO ............................................................................................ 29 2.1 Visão Geral ............................................................................................................... 29 2.2 Aspecto Segundo Comrie (1978 [1976]) .................................................................. 29 2.3 Aspecto Segundo Taylor (2002) ............................................................................... 34 2.4 Aspecto Segundo Travaglia (1985 [1981]) ............................................................... 37 2.5 Aspecto verbal de acordo com Castilho (1968; 2010) .............................................. 45 2.5.1 Castilho (1968)................................................................................................ 45 2.5.2 Castilho (2010)................................................................................................ 49 2.6 Aspecto segundo Bybee, Perkins e Pagliuca (1994) ................................................ 53 2.7 Conclusão ................................................................................................................ 56 3 A ABORDAGEM COGNITIVISTA PARA A LINGUAGEM ........................................... 58 3.1 Semântica Cognitiva ................................................................................................ 59 3.2 Gramática das Construções ..................................................................................... 66 4 MOTIVAÇÕES SINTÁTICO-SEMÂNTICAS DA CONSTRUÇão DE ASPECTO INCEPTIVO DO PORTUGUÊS ...................................................................................... 69 4.1 A Construção de Aspecto Inceptivo ......................................................................... 69 xiii 4.2 Propriedades Sintáticas da Construção de Aspecto Inceptivo ................................. 79 4.2.1 Estudo de caso: o verbo pegar e seus esquemas de transitividade...................... 83 4.2.2 Adjunção ou Complementação em relação a pegar pleno: um desafio ao tratamento construcionista da estrutura argumental ...................................................... 86 4.3 As Categorias de Movimento e Contêiner na Construção de Aspecto Inceptivo...... 95 4.4 O Preenchimento Variável da Posição de Prep ....................................................... 98 4.6 A Construção de Aspecto Inceptivo e A Rede de Construções com Pegar ........... 108 4.7 Conclusão do Capítulo ........................................................................................... 117 5. A GRAMATICALIZAÇÃO DA CONSTRUÇÃO DE ASPECTO INCEPTIVO NO PORTUGUÊS............................................................................................................... 119 5.1 Gramaticalização .................................................................................................... 121 5.2 Possibilidades de Combinação entre V1fin e V2inf na CI ......................................... 126 5.3 Gramaticalização na CI .......................................................................................... 139 5.3.1 O Parâmetro da Extensão na CI ......................................................................... 140 5.3.2 O Princípio da Persistência na CI ........................................................................ 142 5.3.2.1. Quebra de Barreiras ........................................................................................ 143 5.3.2.2. Movimento sem Barreira ................................................................................. 148 5.4 Conclusão do Capítulo ........................................................................................... 151 6 Evidências translinguísticas da metáfora de movimento na Construção de Aspecto Inceptivo ....................................................................................................................... 152 6.1 Evidências translinguísticas para a presença da metáfora de movimento na CI.... 153 6.2 Simulação Mental na Construção de Aspecto Inceptivo ........................................ 160 6.3.1 Aplicação do Experimento ................................................................................... 163 6.3.2 Resultados e Discussão ...................................................................................... 165 6.4 Conclusão do Capítulo ........................................................................................... 170 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 176 ANEXO I ....................................................................................................................... 181 ANEXO II ...................................................................................................................... 186 xiv INTRODUÇÃO A construção marcadora de aspecto inceptivo (CI) segue o padrão sintático [(SN) V1fin (Prep) V2inf]. Essa construção é constituída por um verbo auxiliar1 (V1) flexionado2 em tempo, modo e pessoa e um verbo infinitivo (V2). Entre eles, as preposições a e de podem aparecer. Essa posição, entretanto, na proposta sintática da construção, está entre parênteses, demarcando, justamente, sua possibilidade de não ocorrer, fato que pode ser notado em dados de fala. Diversos verbos auxiliares podem ocupar a posição de V1fin, desde os mais prototipicamente aspectuais, como começar, iniciar e principiar, até aqueles que, com o tempo, ganharam contornos para fazê-lo, como cair, danar, deitar, desandar, desatar, disparar, entrar, pegar e romper3, verbos motivados figurativamente. Este trabalho tem como intuito analisar os V1fin a que nos referimos por último, ou seja, os não prototipicamente aspectuais. Vejamos os exemplos abaixo, encontrados no Córpus do Português4 (CP) (DAVIES & FERREIRA, 2006): 5 (1) Feitos os quinze anos, ela começou pouco e pouco a descobrir em si estranhas mudanças; percebeu, sentiu que uma transformação importante se operava no seu espírito e no seu corpo: sobressatavam-na terrores acometiam-na tristezas sem sem motificável. Um dia, afinal, acordou mais preocupada; assentou-se na rede, a cismar. E, com surpresa, reparou que seus membros ultimamente se tinham arredondado; notou que em todo seu corpo a linha curva suplantara a reta e que as suas formas eram já completamente de mulher. Veio-lhe então um sobressalto de 1 A designação do V1fin na CI como verbo auxiliar será apresentada na seção 3.2.1 2 Uma vez que a CI pode ocorrer com V2inf indicador de fenômenos da natureza, bem como verbos existenciais, cabe a ressalva de que a noção de flexão proposta para o V1fin não está necessariamente atrelada à concordância deste com um sujeito. Também devido a esse fato, o SN sujeito de V1fin é representado entre parênteses. 3 É importante ressaltar que não se ignora a existência de outros verbos não canônicos que venham a preencher a posição de V1, como é o caso, por exemplo, de agarrar, desgraçar ou despejar. Porém, acreditamos que, a partir da análise do recorte deste grupo específico de V1, selecionado com base na leitura dos Corpora de fala, será possível perceber as características associadas à Construção Aspectual Inceptiva, suas relações e/ou mesmo as generalizações realizadas pelo falante, que envolvem a escolha do V1. 4 Disponível em: http://www.corpusdoportugues.org 5 O leitor pode notar a presença de um advérbio entre V1 e V2 no exemplo tipicamente aspectual e poderia questionar a relevância de o advérbio constar no esquema da construção. Entretanto, a Gramática das Construções, perspectiva adotada neste trabalho, não anota, nas construções de estrutura argumental, os adjuntos que possam modificar os elementos da sentença, dado o fato de que sua grande mobilidade e seu escopo variável apontam para uma não vinculação destes à forma da construção. 15 (2) (3) (4) (5) (6) (7) (8) contentamento mas logo depois caiu a entristecer: sentia-se muito só, não lhe bastava o amor do pai e da velha Barbara; queria uma afeição mais exclusiva, mais dela. Lembrou-se dos seus namoros. Riu-se "coisas de criança”. (CP, O Mulato, Aluísio de Azevedo, XIX) eu tive num: um tempo - nos Estados Unidos - então - éh:: era um programa desses de estudante - e aí eu fui pra uma escolinha dessa - fazer uma - conferência como eles diziam falar sobre o Brasil - e eu já tava irritada com aquele monte de gringo já tava de saco cheio - e eu fui na escola falar sobre - fui numa numa aula que é de economia doméstica e eu me danei a dar uma receita - eu digo " bom - já falei sobre o Brasil agora vou dar uma receita típica " - aí disse " óh pegue a galinha viva - arranque as penas do pescoço dela - bata ((ri)) com dois dedos e passe a faca e corte - e junte o san::gue " a essa altura o povo já tava morto de nojo ((rindo)) ninguém tava mais querendo copiar - eu digo " junte o sangue e vá batendo com vinagre - batendo até ficar espumoso " (CP, Linguagem falada Recife, XX) Sacudi-a com fúria, pu-la de pé num safanão que a devia ter desarticulado. Uma vontade de cuspir, de lançar apertava-me a glote, e vinha-me o imperioso desejo de esmurrar aquele nariz, de quebrar aqueles dentes, de matar aquele atroz reverso da luxúria. Mas um apito trilou. O guarda estava na esquina e olhava-nos, reparando naquela cena da semi-treva. Que fazer? Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo a mundo que a beijara? Não resisti. Afastei-me, apressei o passo e ao chegar ao largo inconscientemente deitei a correr como um louco para a casa, os queixos batendo, ardendo em febre. Quando parei á porta de casa para tirar a chave, é que reparei que a minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. (CP, Dentro da noite, João do Rio, XX) As ondas cresciam como feras, quebrando-se em cachões de espuma. Corremos às igaras, temerosos do perigo que Mana corria. Foi então que um de nós ouviu um grito e outro, o de melhor vista, disse que vira a igarazinha entornada pelas águas. - Mana, Mana, gritamos, e nossa voz morreu na tempestade. E as igaras lutavam contra as ondas. Onde estava Mana? A névoa cobria o lago. Mana, pobre Mana. Chorávamos aflitos. Onde as igaras? Onde os audaciosos que haviam mergulhado nas águas? E todos desandamos a chorar, implorando a Tupã que poupasse a inocente. E, então, eis que o Cacique Caramatex vinha de regresso e, vendo o perigo por que passava a filha de seu coração, quis arrostar a tempestade. (CP, Os rios inumeráveis, Álvaro Cardoso Gomes, XX) Deixava-o falar; às vezes até usava argumentos de inimigos, para fazer que o " velho " pusesse para fora muitas das coisas que recalcava, que guardava em seus pensamentos. Por outro lado, ela achava esquisito prazer em azucrinar um pouco aquele pai que mais parecia um irmão. - O que tu estás é velho, com essa mania de poltronas fofas, descanso e paz.. - Velho? Tônio fez meia-volta, formou uma corrida e saltou por cima do sofá que se achava na frente da lareira. Nora desatou a rir. O pai voltou a cabeça para ela num desafio. - É justamente o que fazem as pessoas que estão envelhecendo retrucou a rapariga. (CP, O resto é silêncio, Érico Veríssimo, XX) Se amolaram as palanganas, e lá se vão zunindo! - Aonde? - Para o mosteiro em busca de asilo. Agora é assobiar-lhes às botas, ou aos calcanhares. - Pega! exclamou um mais ardente e disparou a correr. Outros o seguiram maquinalmente. ao mesmo tempo o meirinho com seus acólitos, capturando os dois improvisados minorenses, se afastaram com eles, levando após a maior porção do povo. Assim conseguiram os camaristas salvar a casa do prelado da devastação que a ameaçava. (CP, O Garatuja, José de Alencar, XIX) O negro coçou a cabeça, lastimou-se e saiu resmungando. Bateu capões de mato; esgravatou grotas e já estava desesperado, pensando no que lhe aconteceria, por voltar com as mãos abanando, quando se lembrou de prometer dois vinténs a Santo Antônio. Mal tinha feito a promessa, olhou para uma banda e o que havia de ver? A vaca pastando muito de seu, no lugar onde escondera o bezerro. Pedro pulou de contente, laçou a vaca, e partiu. Em caminho, entrou a pensar que o santo nada havia feito; ele é que estava banzando sem prestar atenção. Por que, então, lhe havia de dar o dinheiro.(CP, Luzia- Homem, Domingos Olímpio, XIX) DEPOIS, vendo que não podia trabalhar, acabou se despedindo do botequim. Mas ficou rondando por ali, ainda muito pálido e magro, sem fazer despesas, conversando com os conhecidos. Aos poucos, a bem dizer sem se sentir, pegou a trabalhar para o bicheiro que fazia ponto na charutaria. De começo passava as listas, tomava jogo de um ou outro, quando o velho 16 Jamil - que assim chamavam o bicheiro - se afastava um momento. Recebia uma comissão que a princípio não era lá essas coisas. Mas, o velho foi descobrindo que Mariano tinha nascido para aquela profissão: se antes, na vida, só fizera bater cabeça com bobagem, agora tomava rumo. A freguesia lhe vinha às mãos sem que ele quase fizesse esforço (CP, Dôra, Doralina, Rachel de Queiroz, XX) (9) Basílio correu a ela, prendeu-a por um braço. - Luísa, Luísa, o que queres tu fazer? Não podemos romper assim! Escuta - Fujamos então, salva-me de todo! - gritou ela, abraçando-o ansiosamente - Caramba! Se te estou a dizer que não é possível! Ela atirou com a porta, desceu as escadas correndo. O coupé esperava-a - Para o Rossio - disse. E, deitando-se para o canto da carruagem, rompeu a chorar, convulsivamente. Basílio saiu do « Paraíso » muito agitado. As pretensões de Luísa, os seus terrores burgueses, a trivialidade reles do caso, irritavam-no tanto que tinha quase vontade de não voltar ao « Paraíso», calar-se, e deixar correr o marfim. Mas tinha pena dela,coitada! (CP, O primo Basílio, de Eça de Queirós, XIX)6 Conforme se pode perceber nos exemplos de (1) a (9), o padrão sintático se mantém. É interessante observar nos dados que o sujeito da construção, em todos os casos em que se manifesta, é [+humano] e, na maioria deles, [+agentivo]. Outra característica se refere ao fato de V2 subcategorizar ou não complemento. Como a posição de V2 é preenchida por diferentes verbos, estes trazem consigo a sua estrutura argumental. Nos exemplos, correr, entristecer, chorar e rir foram usados como verbos intransitivos, enquanto dar, pensar e trabalhar exigiram complemento. Inicialmente, pode-se imaginar que a escolha de V2 seja aleatória, porém, como será exposto, há uma motivação em V1 que restringe os usos de V2. Outra característica relevante da construção diz respeito à escolha e à colocação de preposição entre V1 e V2. Nos exemplos de (1) a (9), a preposição selecionada foi a. Tal qual veremos, há ainda a possibilidade de essa mesma posição ser ocupada por de ou mesmo por zero. Da mesma forma como ocorre nesses dados, na pesquisa em geral notamos que o tempo e modo verbal predominante de V1 na construção aspectual inceptiva é o pretérito perfeito do indicativo. Houve ainda ocorrências de V1 no presente do indicativo e também no pretérito imperfeito do indicativo e do subjuntivo. É importante observar que, nos casos da construção de aspecto inceptivo, o V1fin indica a fase inicial de um evento. Nessa construção, reconhecem-se como verbos aspectuais inceptivos canônicos aqueles que originalmente marcam essa fase, como é o caso de iniciar, começar e principiar. São, portanto, considerados aspectuais inceptivos não canônicos do português aqueles que, em seu sentido pleno, não 66 Nesses exemplos, os dados não foram separados em modalidades e/ou gêneros pelo fato de serem apenas ilustrativos da construção aspectual inceptiva. 17 funcionam como auxiliares, mas que passaram por um processo de gramaticalização, como é o caso de cair, danar, deitar, desandar, desatar, disparar, entrar, pegar e romper, ou seja, verbos que, em seu sentido lexical, não marcam noções aspectuais, mas os quais, usados em uma configuração sintático-semântica específica, passam a fazê-lo. Além disso, como é possível verificar nos dados de (1) a (9), todos os V1fin deixaram de selecionar complementos nominais para se unirem a V2inf, formando um novo significado. Inicialmente, este trabalho, dando continuidade a trabalhos anteriores (SIGILIANO, 2008), ficaria restrito ao estudo da Construção Aspectual Inceptiva cujo V1 era preenchido por pegar. No entanto, considerando-se a noção de construção, conforme postula Goldberg (1995), viu-se a necessidade de ajustar o foco da análise, tirando-o do verbo e levando-o para a construção aspectual, o que conduziu à exploração de outros preenchimentos de V1. Adota-se uma perspectiva baseada no uso, com a incorporação de pressupostos teórico-analíticos da Gramática Cognitivista das Construções (GOLDBERG, 1995; 2006) e da Gramaticalização (BYBEE, 2003; HEINE, 2003; HOPPER, 1991; HOPPER &TRAUGOTT, 2003 [1993]; LEHMANN, 2002 [1982]; SWEETSER, 1988; 1990; TRAUGOTT & DASHER, 2002). Dão suporte à análise a Teoria da Metáfora Conceptual (LAKOFF & JOHNSON, 1980; LAKOFF, 1987), o Modelo da Dinâmica de Forças (TALMY, 2001) e alguns estudos recentes sobre simulação mental (GIBBS & MATLOCK, 2008; BERGEN & WHEELER, 2010) . Assim, apresentado o fenômeno linguístico sobre o qual esta tese se debruça, bem como a perspectiva teórica adotada, cabe apontar quais são seus objetivos. Como já foi dito acima, objetiva-se, principalmente, estudar as Construções Inceptivas do português cujos V1fin sejam verbos não prototipicamente aspectuais. Tal objetivo principal se desmembra nos seguintes objetivos específicos: • Descrever, com base em dados reais, os aspectos sintáticos e semânticos da CI; • Discutir o papel dos verbos na sua interação com construções de estrutura argumental; 18 • Verificar a existência de um esquema cognitivo subjacente aos verbos que, ao longo do tempo, se gramaticalizaram como marcadores aspectuais no português; • Investigar as propriedades combinatórias de V1 e V2, buscando a identificação de restrições de coocorrência; • Buscar evidências translinguísticas e psicolinguísticas para a presença da metáfora de movimento na CI. Dados os objetivos, propõem-se as seguintes hipóteses: 1. Ao contrário do que comumente se propõe na Gramática Cognitivista das Construções no que tange às construções de estrutura argumental (GOLDBERG, 1995; 2006; 2010), trabalha-se com a hipótese de que os verbos, além de perspectivizarem o significado da construção, podem também contribuir para sua estrutura sintática, em especial no que tange à escolha de preposições; 2. Os verbos não prototipicamente aspectuais devem compartilhar algum esquema de significado subjacente, sendo tal esquema relacionado à categoria cognitiva de movimento; 3. As restrições de coocorrência observáveis entre V1 e V2 relacionam-se à existência e à manutenção, quando do processo de gramaticalização, de estruturas conceptuais comuns aos verbos que preenchem a posição de V1 na Construção Aspectual Inceptiva; 4. A metáfora de movimento, tratada como universal cognitivo fundado na experiência humana corporificada, deve estar presente em construções de aspecto inceptivo de outras línguas, bem como envolvida no processamento cognitivo das ocorrências da CI. Com objetivo de verificar a validade dessas hipóteses, foi realizada pesquisa diacrônica e sincrônica, em diversos corpora, das construções inceptivas preenchidas em V1 por verbos não prototipicamente aspectuais. Os métodos empregados nessa pesquisa, bem como nas demais fases do trabalho são apresentados no capítulo 1. 19 Discutem-se também, já no capítulo 2, as principais teorias do aspecto para que, no capítulo 3, apresentem-se as propriedades sintático-semânticas da CI e discuta-se o o papel dos verbos na sua configuração sintática. Passando-se à análise diacrônica, elucidada no capítulo 4, revela-se que os dados apontaram para a extensão dos contextos de uso da construção inceptiva como um todo, ao mesmo tempo em que a persistência de sentidos subjacentes a V1 define tendências de combinação entre cada V1 e tipos semânticos específicos de V2. Por fim, dado o papel fundamental da categoria cognitiva de movimento na CI, ilustra-se, no capítulo 5, a presença de tal categoria em outras línguas não necessariamente relacionadas ao português, bem como é realizado um experimento psicolinguístico com vias a analisar a possibilidade de simulação mental do esquema cognitivo do movimento quando do processamento de sentenças em que a CI com preenchimentos não prototípicos se manifesta. 20 1 METODOLOGIA Este capítulo detalha a metodologia empregada nesta tese, no que diz respeito às análises sincrônica e diacrônica de dados reais de fala e escrita, bem como no que concerne ao desenho experimental utilizado no teste psicolinguístico aplicado com o objetivo de examinar a ocorrência ou não de simulação mental de movimento manual quando do processamento da CI. 1.1 Corpora Utilizados Os dados falados e escritos foram utilizados no intuito de se identificarem pistas que expliquem a seleção dos verbos que se instanciam como V1fin ou V2inf, das preposições e de sua relação nas construções de aspecto inceptivo ao longo da história da língua portuguesa. As frequências de ocorrência de cada uma das construções encontradas no Córpus do Português foram estimadas por século e serão apresentadas no capítulo 4, sendo que, para cada século, por serem construções nem sempre muito frequentes, todas as ocorrências foram analisadas. Já os dados de fala decorrentes de outros corpora – todos coletados na primeira década do século XXI – cumprem o papel de delinear a situação atual de uso dessas construções e não foram quantificados. As análises desta tese mesclam estudos quantitativos e qualitativos. Aplicam-se à análise desenvolvida neste trabalho as palavras de Schiffrin (1987, p. 66), acerca da artificialidade da divisão entre análises quantitativas e análises qualitativas. Segundo a autora, ao mesmo tempo em que toda análise quantitativa abarca algum tipo de análise qualitativa – seja antes ou depois da contagem, uma vez que é necessário primeiramente descrever as categorias nas quais serão enquadrados os dados e, em sequência, elaborar generalizações analíticas a partir das tendências que os números revelam –, toda análise qualitativa – assim como as quantitativas – recorre à noção de que “mais é melhor”. Isso porque as análises qualitativas acreditam que um número elevado de ocorrências de dado padrão leva a crer que a análise de sua estrutura está 21 correta; enquanto, por sua vez, as análises quantitativas dependem de frequências elevadas para os testes de significância estatística. Assim, Schiffrin argumenta que os dois tipos de análise são complementares, mesmo sendo associados a abordagens distintas da pesquisa linguística. Com outras palavras, a autora afirma que se faz relevante o estudioso levar em conta tanto as generalidades observáveis muito frequentemente, tomando essa frequência como indicativo de uma preferência geral dos falantes, quanto as particularidades de cada ocorrência, mesmo que única, uma vez que uma boa descrição de suas particularidades pode servir como pista para novas ocorrências que ainda podem ser encontradas em outros dados. É nessa perspectiva que se baseiam as análises a serem desenvolvidas nesta tese. 1.1.1 Corpora Escritos Para a análise, foram empregados dados coletados de textos escritos em prosa pertencentes a diversos gêneros textuais (códigos jurídicos, textos notariais, crônicas, biografias, romances, cartas oficiais e pessoais, bem como textos jornalísticos). Tais textos cobrem um intervalo de tempo que vai do século XIII ao XX, para o Português Europeu (PE), e do XVIII ao XX para o Português do Brasil (PB). Foram levantadas ocorrências da Construção Aspectual Inceptiva no Projeto Córpus do Português (CP) (DAVIES & FERREIRA, 2006), o qual permite o acesso a uma coletânea de textos de tipos e gêneros diversos, que abarca o período dos séculos XIII a XX. Segundo o que se encontra disponível no site do CP, “este corpus é constituído de mais de 45 milhões de palavras que vêm de pouco menos de 57,000 textos. Tem 20 milhões de palavras do século XX, 10 milhões do século XIX, e 15 milhões de palavras 22 dos séculos XIII-XVIII”. A distribuição do número de palavras por país de origem e por gênero, quando existente, encontra-se reproduzida no Quadro 17. # DE PALAVRAS 550,968 1.316,268 2.875,653 4.435,031 3.407,741 2.234,951 10.008,622 3.087,052 3.271,328 3.048,020 2.816,802 3.346,988 3.028,646 43.428,07 SÉCULO XIII XIV XV XVI XVII XVIII XIX XX XX XX XX XX XX PAÍS Portugal Portugal Portugal Portugal / Brasil Portugal / Brasil Portugal / Brasil Portugal / Brasil Portugal Portugal Portugal Brasil Brasil Brasil Total GÊNERO Acadêmico Notícias Ficção Acadêmico Notícias Ficção Quadro 1: Distribuição do número de palavras do CP por século, origem e gênero. Fonte: http://www.corpusdoportugues.org/ 1.1.2 Corpora Falados Uma parte dos dados de fala do século XXI é oriunda do projeto O português falado na região de Juiz de Fora e arredores – constituição de um banco de dados “anotado” (PFJF), coordenado pela professora Dra. Nilza Barrozo Dias (UFF/FAPEMIG) e composto por um conjunto de seis gravações de reuniões familiares informais. O gênero textual predominante é o relato pessoal, os famosos “causos”, tão típicos da região da Zona da Mata Mineira. Os dados pertencentes a esse projeto são identificados pela sigla PFJF. Outra parte integra o córpus de audiências do PROCON de Juiz de Fora – MG (PROCON-JF), cujos dados foram levantados, transcritos, refinados e organizados sob a coordenação dos professores doutores Nilza Barroso Dias, Paulo Cortes Gago e Sônia Bittencourt Silveira, da Universidade Federal de Juiz de Fora, os quais 7 Nem todos os textos disponíveis no CP são classificados quanto ao gênero, entretanto, como as análises a serem empreendidas neste trabalho são de viés muito mais qualitativo do que quantitativo, não se acredita que esse fato possa prejudicá-las. 23 gentilmente cederam os dados a esta pesquisa. Os dados encontrados nos corpora desse projeto recebem a etiqueta PROCON-JF. O projeto Córpus do Português, supracitado, também disponibiliza, como fonte de pesquisa, um córpus oral, coletado no século XX no Brasil e em Portugal, o qual também foi fonte de pesquisa para este trabalho. Também foi coletado um conjunto de dados em oito entrevistas do córpus Conceição de Ibitipoca, levantado, transcrito e organizado sob a coordenação da Dra. Terezinha Cristina Campos de Resende para sua tese de doutoramento junto à Universidade Federal do Rio de Janeiro. As entrevistas versam sobre temas que contemplam as tradições da Vila de Conceição de Ibitipoca, bem como o turismo e as histórias pessoais. Os dados extraídos desse córpus são identificados pela etiqueta IBI, seguida de uma sigla de duas letras que remete ao sujeito entrevistado. Os corpora de fala supracitados foram os motivadores para a escolha dos preenchimentos de V1 a serem trabalhados e focados na presente tese. A partir da leitura cuidadosa das entrevistas, foi possível listar um conjunto de verbos marcadores de aspecto não canônicos presentes na Construção Inceptiva do Português, quais sejam: cair, danar, deitar, desandar, desatar, disparar, entrar, pegar e romper. Ao todo, as transcrições dos corpora de língua falada totalizam 185.298 palavras, distribuídas conforme o que consta no Quadro 2. Século XXI Projeto O Português Falado na Região de Juiz de Fora PFJF e Arredores Projeto PROCON – Juiz de Fora PROCONJF Projeto Conceição de Ibitipoca IBI Córpus do Português CP TOTAL GERAL 83,173 33,034 69,091 2.178,889 2.364,187 Quadro 2: Corpora do Português do Brasil dos séculos XX e XXI, acompanhados do número aproximado de palavras que os compõem. 1.2 Levantamento dos Dados Para que as instanciações da Construção Inceptiva fossem levantadas, adotaram-se duas estratégias distintas, a depender da base de dados pesquisada. 24 Primeiramente, foram definidos quais dentre os verbos que ocupam a posição de V1 no esquema [(SN) V1fin (Prep) V2inf] seriam estudados com base na leitura dos corpora de fala selecionados para a pesquisa. Como já apresentado, os V1 analisados foram aqueles que não seriam marcadores inceptivos canônicos. Em seguida, as transcrições das audiências do PROCON de Juiz de Fora – MG e as reuniões familiares gravadas pelos pesquisadores do projeto O português falado na região de Juiz de Fora e arredores, foram submetidas ao processo de busca padrão do programa Microsoft Office Word, versão 2007: utilizando-se a ferramenta Localizar, buscaram-se os radicais dos verbos estudados e foram coletados apenas aqueles trechos em que tais verbos ocorriam no contexto como descrito acima. Após esse levantamento, os dados eram analisados a fim de verificar se, de fato, cada um sinalizava aspecto inceptivo. Já o Córpus do Português, por ser anotado quanto à morfossintaxe, dispõe de uma ferramenta de busca muito mais eficiente. Tal ferramenta permite que se defina um padrão sintático a ser buscado em um determinado intervalo de tempo. Permite ainda que se configure a busca de modo que ela cubra todas as variações ortográficas de um dado item – algo impossível em mecanismos baseados em text-matching, como a ferramenta Localizar, do Word. Também, por meio dela, é possível se definir apenas a busca de um V1fin específico, seguido de V2inf. Este pode ser buscado em até quatro palavras após o V1fin, o que permite constatar a presença ou não de preposições entre V1 e V2, além de observar a existência ou não de advérbios intercalados entre esses verbos. Os V1 são inseridos no ícone de busca do córpus em sua forma ortográfica atual e buscados através dos séculos em todas as suas variações. Ao inserir esses parâmetros, o mecanismo de busca do CP retornou as ocorrências que se encaixam no padrão sintático V1 finito cair, danar, deitar, desandar, desatar, disparar, entrar, pegar e romper, seguido de V2 infinitivo. Elas, então, foram refinadas, analisadas e quantificadas. Nesse tipo de busca, foram considerados todos e quaisquer textos disponíveis para cada século, incluindo-se, nesse caso, os textos literários. 25 1.3 Desenho Experimental A fim de corroborar o argumento em favor da presença da metáfora de movimento na CI, adaptou-se, nesta tese, um protocolo de experimento comportamental desenvolvido para o inglês por Bergen e Wheeler (2010). Seu objetivo é o de fornecer evidências para o ancoramento neuronal da metáfora de movimento através da medição do Efeito de Compatibilidade Ação-Sentença (ECA). Para tanto, propôs-se um desenho experimental no qual falantes nativos do português deveriam avaliar sentenças de seu idioma no que tange ao fato de poderem ser consideradas, ou não, como bem formadas. Cinquenta e dois alunos de graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora participaram do experimento em troca de um lanche ao final. Todos eram destros, deveriam marcar as respostas apenas com o indicador da mão direita e eram falantes nativos do português. No total, foram criadas 180 sentenças: 20 sentenças aspectuais com começar; 20 sentenças aspectuais com pegar, 20 sentenças aspectuais com disparar; 40 sentenças aleatórias boas; 80 sentenças aleatórias agramaticais. Essas sentenças encontram-se disponíveis no Anexo 1. Para a realização dessa tarefa, os falantes utilizaram um teclado QWERTY girado em 90º em relação a sua posição convencional e ligado ao software PsyScope, capaz de medir com precisão o tempo de resposta para cada sentença. Para visualizar a sentença a ser julgada, o falante deveria pressionar um botão azul – a tela N – localizado exatamente ao lado do centro do eixo vertical do teclado. Após ler a sentença, o participante deveria pressionar um botão laranja – a tecla H –, o qual disparava a contagem do tempo. Em sequência, o participante poderia optar por movimentar sua mão para frente ou para trás de modo a pressionar uma tecla verde (letra A do teclado) – que indica que a sentença é bem formada – ou uma tecla rosa (aspas do teclado) – que indica sua má formação, respectivamente. Foram aplicados dois experimentos com o mesmo intuito, com 26 participantes em cada. Um deles objetivou comparar aspectuais canônicos com não canônicos. Por isso, foram comparadas sentenças aspectuais com começar e pegar, misturadas a 26 frases aleatórias. Começar é um verbo que, em seu sentido pleno, não denota movimento, mas sim início; pegar, diferentemente, indica movimento do braço. O outro experimento, aplicado a participantes diferentes do primeiro, teve o intuito de observar o efeito temporal aplicado às sentenças com pegar quando comparadas às também aspectuais com disparar. Cada um dos experimentos foi composto por quatro partes: uma seção de treinamento, uma de julgamento, outra de treinamento com o teclado em posição verticalmente invertida em relação à primeira e outra de julgamento com o teclado também em posição verticalmente invertida em relação à primeira. A hipótese a ser testada, a do ECA, prevê que o tempo de resposta dos falantes tenderá a ser mais rápido quando determinado constituinte da sentença, neste caso, o marcador aspectual pegar, for compatível com o movimento do braço e da mão envolvidos na ação de julgamento realizada sobre o teclado. Os dados foram analisados utilizando-se Análise de Variância – ANOVA –, tendo sido tratados no software ezANOVA. 1.3.1 Experimento 1 Inicialmente, os 26 participantes passaram por uma fase de treinamento, composta por 10 frases genéricas ruins e boas. Nesta fase, além de ler as instruções dadas na tela inicial – Anexo 2 – acerca do teste, os graduandos voluntários recebiam as mesmas instruções oralmente. Eventuais dúvidas eram sanadas ainda nessa fase, antes que se passasse à primeira seção de julgamento. Na primeira parte do experimento, os voluntários julgaram 80 sentenças, sendo que, no total, 10 eram aspectuais com começar, outras 10 com pegar, 20 eram sentenças distratoras boas e 40 distratoras ruins. O teclado ficou posicionado de forma que o botão verde, indicando aceitabilidade do fragmento, ficasse posicionado distante do corpo do julgador e que o botão rosa, indicando inaceitabilidade, estivesse mais próximo ao corpo do participante. Passada a análise de 80 frases, havia 30 segundos de descanso. Nesse momento, o teclado era invertido e, portanto, passava a se posicionar de forma que o botão rosa, indicando inaceitabilidade do fragmento, ficasse posicionado distante do 27 corpo do julgador e que o botão verde, indicando aceitabilidade, estivesse mais próximo ao corpo do participante. Antes de julgar as sentenças nessa segunda metade, o participante foi submetido a um novo treinamento, em que avaliou mais 10 frases genéricas. 1.3.2 Experimento 2 Neste segundo experimento, outros 26 universitários julgaram 160 sentenças. No total, 20 eram aspectuais com disparar, as mesmas 20 com pegar do experimento anterior, as mesmas 40 aleatórias boas e 80 aleatórias ruins. Adotou-se o mesmo procedimento quanto ao treinamento dos participantes, em que se dispuseram 10 frases genéricas ruins e boas. Na primeira metade desta fase, ou seja, nas primeiras 80 frases, o botão rosa, indicando inaceitabilidade do fragmento, ficou posicionado distante do corpo do julgador e o botão verde, indicando aceitabilidade, mais próximo ao corpo do participante, ou seja, esta fase se iniciou invertida com relação ao posicionamento do teclado na primeira metade do Experimento 1. Nessa primeira parte, foram comparadas: 10 sentenças aspectuais com disparar, 10 sentenças aspectuais com pegar, 20 sentenças aleatórias boas e 40 sentenças aleatórias agramaticais. Passada a análise de 80 frases, havia 30 segundos de descanso. Nesse momento, o teclado foi invertido e, portanto, passou a se posicionar de forma que o botão verde, indicando aceitabilidade do fragmento, ficasse posicionado distante do corpo do julgador e que o botão rosa, indicando inaceitabilidade, estivesse mais próximo ao corpo do participante. Antes de julgar as sentenças nessa segunda metade, o participante foi submetido a um novo treinamento, avaliando novas 10 frases genéricas. Em seguida, ele julgou 10 sentenças aspectuais com disparar, 10 sentenças aspectuais com pegar, 20 sentenças aleatórias boas e 40 sentenças aleatórias agramaticais. 28 2 TEORIAS DO ASPECTO Neste capítulo, serão discutidas as principais visões dos estudiosos de aspecto tais como formuladas por Comrie (1978); Taylor (2002); Travaglia (1985); Mira Mateus et al (1989); Castilho (1968; 2010) e Bybee, Perkins e Pagliuca (1994). Esses definem e/ou descrevem a categoria de aspecto e, para tanto, distinguem-na da de tempo, o que auxiliará na percepção das características atreladas à marcação de incepção. 2.1 Visão Geral O aspecto é uma categoria gramatical a qual marca as várias organizações temporais de um evento. Elas podem ser divididas em aspecto perfectivo e imperfectivo, a depender da demarcação ou não de início e/ou fim, completamento ou não do processo. Tais “macro-aspectos” apresentam uma série de subclassificações com relação ao ponto de vista de suas fases de realização, as quais diferem em alguns pontos dentre os autores. Neste capítulo, será exposta uma breve análise da literatura a respeito do aspecto para que se tenha uma visão geral sobre a temática, a fim de se exporem as motivações da classificação adotada para o exame da construção estudada. Nomenclaturas distintas são aplicadas a noções processuais semelhantes no que tange à aspectualidade. O objetivo, entretanto, não é confrontar as nomenclaturas utilizadas, mas apresentá-las de forma a facilitar a abordagem daquilo que aqui será designado como Construção Aspectual Inceptiva. Passaremos a considerá-las a seguir. 2.2 Aspecto Segundo Comrie (1978 [1976]) Segundo Comrie (1978 [1976]), aspecto é distinto de tempo. A categoria de tempo enquadra a situação em referência a outro tempo, geralmente, o momento da enunciação. Assim, este é encarado como um dêitico, uma vez que localiza o tempo da situação no tempo do enunciado. Já o aspecto tem a ver com a constituição temporal interna de uma situação, como pode ser notado nos exemplos abaixo: 29 (i) Por sinal o mesmo que soprava quando Glauber Rocha desandou a proclamar a superioridade de José de Alencar. (19BrFolha) (ii) Os periquitos e tuins desandam a vaiá-los. (19BrTeixeiraRua) Nos dados apresentados em (i) e (ii), é possível peceber que, apesar da distinção de tempo do verbo desandar – passado e presente – o aspecto continua sendo o mesmo. Em ambos os casos, desandar é usado como um auxiliar que marca aspecto inceptivo, apontando para o início de um processo. É importante ressaltar que, assim como o autor apresenta, a noção de aspecto não está desconectada da de tempo, já que este se refere à situação temporal externa e aquele, à situação temporal interna. Nos exemplos (i) e (ii), temos tanto a marcação do aspecto inceptivo quanto a marcação dos tempos passado e presente respectivamente. Uma análise pouco cuidadosa da língua portuguesa poderia levar à conclusão equivocada de que, enquanto tempo é marcado morfologicamente no verbo, o aspecto é marcado por auxiliares. A própria nomenclatura de Desinência ModoTemporal empregada pelos estudos mais tradicionais poderia reforçar essa visão. Considerem-se, entretanto, os exemplos (iii) e (iv) abaixo: (iii) Por sinal o mesmo que soprava quando Glauber Rocha desandou a proclamar a superioridade de José de Alencar. (19BrFolha) (iv) Ele ia até certo ponto e desandava a chorar. (19BrBarretoCemiterio) Em ambos os exemplos, tem-se a marcação do aspecto inceptivo realizada pelo auxiliar desandar. É interessante notar, entretanto, que, em (iv), a desinência marcadora de pretérito imperfeito acrescenta à construção um aspecto distinto, de iteratividade. Assim é que a noção aspectual de habitualidade, no português, pode ser marcada também pela morfologia do verbo, e não apenas por auxiliares. Nos exemplos acima, ambas as situações narradas se situam em um tempo anterior ao da enunciação, logo, ambas estão no passado, o que reitera o fato de que a distinção flexional entre desandou e desandava aponta para uma distinção aspectual. De acordo com Comrie, a distinção entre perfectivo e imperfectivo é crucial. A perfectividade indica a visão da situação em seu todo, completa, sem distinção das fases que perfazem a situação. Assim, quando se trata de aspecto perfectivo, a situação é observada “de fora”, sem necessariamente distinguir algo da estrutura interna da situação. O contrário ocorre com o imperfectivo, no qual a situação é observada “por dentro” e há distinção no que tange à estrutura interna dela. 30 Apresentadas as distinções iniciais, Comrie (1978, p.16-21) propõe que o aspecto perfectivo: I. Não deve ser confundido como um marcador de duração curta, sendo que tanto este quanto o imperfectivo podem ser usados em referência a situações cuja duração seja caracterizada como longa ou curta. A título de ilustração, considere-se que a distinção entre as sentenças “Ao longo da década de 70, ele frequentou a universidade” e “Ao longo da década de 70, ele frequentava a universidade” não se refere à duração do ato de frequentar a universidade, mas, sim, à forma de se conceptualizar tal ato que, quando codificado por uma forma do pretérito perfeito, é encarado como um todo único, ao contrário de quando codificado por uma forma do imperfeito, situação em que “frequentar a universidade” passa a se referir a um conjunto de iterações impossíveis de serem precisadas. II. Não pode ser descrito como apresentando uma duração limitada, oposta à duração ilimitada do imperfectivo. As duas sentenças apresentadas em I acima ilustram essa impossibilidade, visto que, em ambas, o SP “ao longo da década de 70” indica uma duração limitada, o que não significa que ambas indiquem aspecto perfectivo. III. Não marca apenas situações pontuais, ou momentâneas. Novamente, os exemplos em I demontram esse fato. Frequentar uma universidade ao longo de uma década não pode ser encarado como uma situação momentânea, ainda assim, na primeira das sentenças do par de exemplos, tem-se aspecto perfectivo. IV. Não indica uma ação completa: indicar o final de uma situação é apenas um dos sentidos possíveis para uma forma perfectiva. V. Não indica necessariamente um resultado, sendo esta possibilidade mais relacionada à semântica do próprio verbo do que ao aspecto. VI. Representa a ação pura e simples, sem a presença de demais implicações. Ainda segundo Comrie, o imperfectivo apresenta subdivisões e aquelas que são mais comuns entre as línguas estão apresentadas na Figura 1. Para este autor, a 31 habitualidade é distinta da iteratividade, ao contrário do que se costuma afirmar8. Assim, todos os habituais descrevem uma situação que se prolonga por um período estendido no tempo, sendo estendido o bastante para que a situação à qual se refere seja vista não como uma propriedade incidental do momento mas, precisamente, como uma característica de todo um período. Ao contrário, a iteratividade é percebida quando da repetição da situação. Assim, é possível haver sentenças em que se percebe habitualidade, tais como The Temple of Diana used to stand at Ephesus, em que não há como inferir iteratividade, já que não se pode pensar que o templo ocupou essa localização em algumas ocasiões, mas não em outras. Comrie sustenta também que a progressividade é similar à continuidade (ou duratividade), que é definida como imperfectiva, a qual não é ocasionada pela habitualidade. De acordo com esse autor, como a habitualidade não determina progressão, igualmente a progressividade não determina habitualidade (cf. COMRIE, 1978, p.34). Aspecto Perfectivo Habitual Imperfectivo Contínuo Não-progressivo Progressivo Figura 1: Classificação das oposições aspectuais segundo Comrie (1978) Apesar de não o listar entre as principais subdivisões do imperfectivo, Comrie menciona o aspecto inceptivo (referido pelo autor como sentido ingressivo) ao se opor à ideia de que o perfectivo marca ações acabadas (1978, p.19-20). O autor mostra que verbos conjugados em tempos verbais tipicamente perfectivos (tais como o pretérito 8 Travaglia (1985[1981], p.60) afirma, entretanto, ser, no português, todo habitual também iterativo. 32 perfeito do português) podem indicar o início de uma ação ou evento. Tome-se, por exemplo, verbos como conhecer (“Eu conheci a Maria nas férias de 98.”) e ficar (“Eu fiquei amigo do Jorge no colégio.”). Em ambos os casos, não se pode dizer que a ação de conhecer a Maria e a situação de ser amigo do Jorge tenham se acabado, apesar de os verbos terem se flexionado no pretérito perfeito. Pelo contrário, a inferência que parece mais acessível é aquela de que o enunciador de sentenças como as acima ainda conheça a Maria e ainda seja amigo do Jorge. As Construções de Aspecto Inceptivo estudadas neste trabalho, com frequência, têm seu V1 conjugado no pretérito perfeito, conforme será possível notar nesta tese. Isso não significa, contudo, assim como ocorre com os verbos estativos analisados por Comrie, que o aspecto inceptivo seja um subtipo de perfectivo. Ao compararmos a proposta de Comrie ilustrada pela Figura 1 com a forma como o imperfectivo ocorre no português, temos que há classificações distintas em relação àquilo apresentado como mais comum entre as línguas. Castilho (1967) propõe, após uma vasta análise de frases da nossa língua, que, entre os aspectos básicos que se inserem no imperfectivo, têm-se o Inceptivo, o Cursivo e o Terminativo. Travaglia (1985 [1981]) divide as noções aspectuais em Duração e Não duração e Fases de realização, desenvolvimento e completamento, como poderá ser visto adiante. Comrie defende que a imperfectividade tem a ver com a percepção de uma situação a partir de sua estrutura interna. Nela, há foco na duração e nas sequências fasais, por exemplo. Já a duratividade (ou continuidade) apenas se refere ao fato de que algumas situações duram um certo período de tempo, noção essa que se contrapõe à de pontualidade (cf. COMRIE 1978, p.41-42). Situações pontuais são vistas como aquelas que não têm duração. Por isso, não apresentam estrutura interna. Semelhantemente são classificadas as situações que apresentam aspecto semelfactivo, que são caracterizadas como aquelas que têm lugar apenas de vez em vez. Outra distinção relevante e comum aos verbos aspectuais envolve a noção de télico e atélico. Diferentemente da situação atélica, aquela encarada como télica envolve um processo que lida com um ponto terminal bem definido, após o qual o 33 processo não pode continuar. Segundo o autor, esse processo é exemplificado nas situações que envolvem sujeitos e objetos que podem influenciá-las. Conforme anuncia o autor, quando associada à oposição perfectivo/imperfectivo, a carga semântica dos verbos télicos é consideravelmente restringida. Assim, algumas deduções lógicas podem ser feitas do aspecto de uma sentença que se refere à situação télica, as quais não podem ser inferidas de uma situação atélica. Dessa forma, o autor assevera que, nas expressões que se referem a situações télicas, é importante ressaltar que deva tanto existir um processo que leva ao ponto terminal, quanto o próprio ponto terminal (COMRIE, 1978, p.47). 2.3 Aspecto Segundo Taylor (2002) Taylor distingue dois tipos de aspecto: perfectivo e imperfectivo. De acordo com o autor, o aspecto perfectivo se caracteriza como um processo temporalmente delineado, ou seja, sua caracterização faz referência ao ponto de início e fim. Já quanto ao aspecto imperfectivo, a caracterização não faz referência à completa delimitação do evento (cf. TAYLOR, 2002, p.397). Constata-se que a proposta dele para a divisão entre aspecto perfectivo e imperfectivo baseia-se em critérios um pouco distintos daqueles propostos por Comrie. Isso ocorre na medida em que o foco de Taylor nessa definição recai sobre a noção de fronteira do evento ao qual o aspecto se aplica. Já Comrie enfatiza a duração do processo no imperfectivo, delineando suas fases, e, no caso do perfectivo, tal processo é considerado como um todo compacto, no qual não é possível identificar fases iniciais, intermediárias e finais. Para ilustrar essa distinção, uma esquematização é proposta: 34 t Processo perfectivo t Processo imperfectivo Figura 2: Processos perfectivo e imperfectivo Figura 2: Processos perfectivo e imperfectivo, segundo Taylor (2002, p.398) Ele destaca que é raro o caso de o verbo ser, por ele mesmo, perfectivo ou imperfectivo: os diferentes tipos de complementos e modificadores podem frequentemente criar/permitir uma leitura perfectiva e imperfectiva. Percebe-se, nessa proposição de Taylor, uma visão mais gestáltica da marcação de aspecto, condizente com a adotada neste trabalho. Como se viu na flexão verbal em (ii) Os periquitos e tuins desandam a vaiá-los e na presença de um advérbio em (1) ela começou pouco e pouco a descobrir em si as estranhas mudanças, não é apenas a semântica verbal ou mesmo o verbo especificamente que define o aspecto da situação, apesar de ele contribuir. O autor (2002, p.401), por meio de um esquema (Figura 3), apresenta a taxonomia dos tipos de processos aspectuais. Nesse esquema, os processos são divididos em dois grandes grupos, o dos processos Limitados (Perfectivos) e o dos Ilimitados (Imperfectivos). Dentro do grupo dos Limitados, encontram-se os de aspecto Pontual e os de aspecto Estendido; enquanto no grupo dos Ilimitados encontram-se os aspectos Estativo e Dinâmico. O Pontual é concebido como ocorrendo em um ponto do tempo sem, portanto, extensão temporal. Como exemplos, o autor cita espirrar, tossir, morrer, chegar, dentre outros. Já os eventos Estendidos são aqueles que se desenvolvem através do tempo. Para ilustrá-los, ele cita viajar de A a B, escrever uma novela, construir uma casa, dentre outros. O autor observa, ainda, que a subcategorização dos eventos estendidos envolve um número específico de eventos, os quais podem ser pontuais ou estendidos. Ele cita, por exemplo, as frases walk to the store three times, em que há perfectividade e walk to the sore every Saturday, que é imperfectiva. 35 Taylor (2002, p.402) classifica o processo Estativo como sendo aquele que envolve pouca ou nenhuma mudança, em que a situação simplesmente prossegue. Ele cita como casos ilustrativos desse processo ser alto, saber a resposta e gostar de queijo. Já as atividades Dinâmicas são aquelas em que as coisas acontecem, ficam prontas, ou seja, em que há mudança, sem, entretanto, haver um desdobramento de um ponto final, como ocorre em aprender francês e trabalhar numa dissertação. O autor também define o Iterativo como a ocorrência de um número não específico de instanciações de um simples evento pontual. Como exemplo, ele cita he coughed, como he coughed repeatedly. Já os Habituais são vistos como aqueles em que o processo ocorre em intervalos mais ou menos regulares através de um período de tempo não especificado. Exemplos dele incluem read a newspaper every morning e have the breakfast at 8. Processo Limitado Pontual Estendido Ilimitado Estativo Dinâmico Habitual Iterativo Figura 3: Taxonomia dos tipos de processo (TAYLOR, 2002, p.401) Na figura 3, os tipos de processo apresentados por Taylor partem do princípio semelhante aos de Comrie que, ao apresentar as oposições aspectuais, analisa como ponto importante a distinção entre Perfectivo (limitado) e Imperfectivo (Ilimitado). É interessante notar que, ao diferenciar os tipos de processos Ilimitados, Taylor foca na noção de mudança que pode ou não estar envolvida na ação (fazendo com que o 36 processo seja Estativo ou Dinâmico), enquanto Comrie enfatiza a duração e as sequências fasais (características definidoras do aspecto habitual ou contínuo). Taylor (2002), ao fazer breve referência à categoria do aspecto, não cita o Inceptivo como sendo uma possibilidade de tipo de aspecto. Assim, a noção de inceptividade, em que há marcação clara de ponto inicial de processo e de determinada duração após esse ponto, não é proposta por esse autor. No entanto, ele apresenta uma visão bastante relevante a respeito da consideração do todo do processo aspectual, em que não se observa apenas o verbo, por exemplo, mas a sua relação com os complementos e adjuntos, apontando para uma noção construcional. Do tratamento do aspecto como uma categoria conceptual fundada na existência ou não de fronteiras que delimitam a ação verbal, emerge outra confluência entre a proposta desse autor e esta tese: trata-se, nesta última, das Construções de Aspecto Inceptivo do Português sob a ótica da Semântica Cognitiva, segundo a qual, a existência de verbos que recrutam as categorias conceptuais de MOVIMENTO e, por vezes, de CONTÊINER na posição de V1fin dessa construção se sustenta pelo mapeamento metafórico entre o domínio do ESPAÇO e aquele da ESTRUTURA DE EVENTOS (cf. LAKOFF, 1987). Toda a proposta de Taylor (2002) parece se fiar à mesma perspectiva teórica, segundo a qual as categorias linguísticas, assim como as demais categorias cognitivas, se organizam a partir de mapeamentos metafóricos ontológicos como os citados acima. 2.4 Aspecto Segundo Travaglia (1985 [1981]) Travaglia (1985 [1981], p.53) considera o aspecto como uma "categoria verbal de tempo, não dêitica, através da qual se marca a duração da situação e/ou suas fases, sendo que estas podem ser consideradas sob diferentes pontos de vista, a saber: o do desenvolvimento, o do completamento e o da realização da situação". Segundo o autor, as noções aspectuais podem ser ligadas à duração, a qual é oposta à pontualidade, ou seja, à situação em que o início e o término ocorrem no mesmo instante ou separados por um tempo curto. Já a duração pode ser entendida como limitada, ilimitada, contínua ou descontínua. A primeira se caracteriza por indicar 37 o início, fim ou valor da duração de uma situação. A segunda é ligada ao fato de os limites de início e fim não serem conhecidos. Já a situação contínua é aquela apresentada sem interrupção no tempo de existência, enquanto a descontínua sofre interrupções em sua duração. As noções aspectuais podem ser ligadas também às fases da situação, do ponto de vista de sua realização, que podem ser: (a) a fase em que a situação ainda não começou; (b) a fase em que a situação já é começada. Esta é caracterizada como em movimento, podendo ser dividida em novas fases de início, meio e fim. A noção aspectual que se liga ao início do desenvolvimento é chamada Inceptividade ou Incepção. Aquela relacionada ao meio, de Cursividade e aquela relacionada ao fim, de Terminatividade. Todas essas noções são apresentadas com o intuito de se discutir um parâmetro para caracterização do aspecto. Para sumarizar os conceitos estudados, a obra de Travaglia dispõe de um quadro (Quadro 3) que aponta, em linhas gerais, para as noções aspectuais citadas como válidas para análise linguística. A. Contínua I. Duração 1. Duração B. Descontínua a. Limitada b. Ilimitada a. Limitada b. Ilimitada 2. Não duração ou Pontualidade a. Por começar 1. Fases de Realização b. Não Acabado ou Começado c. Acabado a. Início (no ponto de início ou nos II. Fases primeiros momentos) 2. Fases do Desenvolvimento b. Meio c. Fim (no ponto de término ou nos últimos momentos) 3. Completamento a. Completo b. Incompleto Quadro 3: Noções aspectuais segundo Travaglia (1985 [1981]) 38 Após apresentadas as noções aspectuais admitidas por ele, Travaglia (1985 [1981]) busca demonstrar que outras, comumente relacionadas ao aspecto em trabalhos diversos, não devem ser entendidas como tal, uma vez que seu surgimento é condicionado à ligação delas a algum dos tipos de aspecto demarcados por esse autor. A fim de mostrar quais noções não podem ser consideradas aspectuais, Travaglia (1985 [1981], p.66-69) lista os seguintes conceitos: (a) Habitualidade: existe quando temos iteração, se liga à noção de duração e advém dela. (b) Incoação: é uma indicação de mudança de estado e, por isso, liga-se à inceptividade. Essas nomenclaturas são apresentadas como sinônimas por Câmara Jr. e como coocorrentes por Castilho (cf. TRAVAGLIA, 1985 [1981], p.67-68). (c) Progressividade: indica que a situação apresenta um desenvolvimento gradual, o que está ligado ao que é denominado como durativo. (d) Resultatividade ou permansividade: associadas às noções de um estado resultante de uma situação dinâmica que se concluiu, de permanência em um estado em consequência do término, ou ainda de situação concluída ao se atingir um ponto terminal. Esta noção faz referência ao que se chama de aspecto perfectivo. (e) Cessamento: surge quando se percebe na situação expressa pelo verbo uma noção de negação que se reporta ao presente. Conforme o autor, o “cessamento” é uma combinação do aspecto acabado e de uma noção temporal. (f) Experenciamento: indica que alguém já vivenciou uma determinada situação ao menos uma vez. Ela se liga ao aspecto chamado perfectivo, já que aparece apenas quando ele está presente. Apresentadas as noções – ou valores – aspectuais, Travaglia passa a propor o conceito de “aspectos compostos” para designar aqueles valores aspectuais que se constroem pela combinação de outros. Sob essa perspectiva e dialogando com as propostas de Castilho (1967), Travaglia propõe que o Perfectivo seria um aspecto 39 composto caracterizado pelas noções de completamento (acabamento) e pontualidade, enquanto o Imperfectivo seria um aspecto composto que poderia ocorrer em três subtipos, quais sejam: Inceptivo (noções de duração + início), Cursivo (noções de duração + meio) e Terminativo (duração + fim). Ele lista exemplos de Castilho (1967) e, em sequência, destaca os seguintes dados: “Na sua voz irradiante começou logo a contar uma complicada história familiar”; “Principiou a falar pausadamente”; e “Desatou a chorar convulsivamente”. Em seguida, considera que, nesses exemplos: temos realmente uma duração “pressentida pelo falante”, como diz Castilho. Acontece, porém, que essa duração não é das situações de “começar a contar”, “principiar a falar” e desatar a chorar” que são ações pontuais inceptivas e que nos exemplos aparecem como situações referenciais; a duração é das situações narradas “contar”, “falar” e “chorar”. Vemos assim que as formas sublinhadas nestes exemplos não podem ter aspecto Imperfectivo porque aí não há duração, mas pontualidade e, além disso, as situações referenciais são apresentadas como acabadas. Portanto nos exemplos [...] teríamos, na verdade, aspecto Perfectivo. É preciso considerar, entretanto, que as situações são apresentadas em seu ponto de início e, portanto, há incepção. Para analisar o aspecto destas fases teríamos, pois, de acrescentar ao quadro de aspectos compostos um Perfectivo Inceptivo, que estaria presente em frases onde tivéssemos eventos cujo completamento (=acabamento) implica o início de uma situação durativa. Com estes três exemplos pudemos ver além de uma impropriedade de análise, a necessidade de proposição de mais um aspecto composto. (Travaglia, 1985, p. 88-89) Nesse ponto, a proposta de Travaglia se opõe também à de Comrie (1978) e à adotada nesta tese. Opõe-se à proposta daquele por considerar perfectivas as formas “começou”, “principiou” e “desatou”, contrariando o proposto por Comrie (1978) acerca da possibilidade de haver sentido ingressivo em verbos conjugados em um tempo verbal como o pretérito perfeito (vide seção 2.2). Já no que tange à proposta levada a cabo neste trabalho, o grande ponto de diferenciação (além do anterior) reside no fato de Travaglia centrar sua análise em uma visão muito composicional do significado. Ao tentar atribuir a cada elemento da perífrase um valor aspectual próprio, de cuja soma emerge o valor aspectual composto chamado Perfectivo Inceptivo, esse autor parece considerar cada elemento da chamada perífrase como uma entidade linguística autônoma que, apesar de poder emprestar seu valor aspectual imanente na constituição de um aspecto composto, não interage verdadeiramente com os demais elementos da cadeia linguística de modo a constituir um todo de sentido mais coeso. A perspectiva construcionista adotada nesta tese rechaça a Hipótese da Composicionalidade Forte (cf. GOLDBERG, 1995), segundo a qual o significado de um todo é produto da soma do significado das partes que o compõem. Na visão 40 construcionista, um padrão de organização sintática de uma perífrase verbal, por exemplo, pode estar pareado a um sentido específico (aspecto inceptivo, por exemplo). Nesses termos, não se trata de dizer que o verbo X é perfectivo, enquanto o verbo Y é durativo. Trata-se, sim, de reconhecer que o esquema formal [(SN) V1fin (Prep) V2inf] encontra-se pareado à noção de aspecto inceptivo e que, além disso, apresenta propriedades definidas no que tange às possibilidades de preenchimento das posições de V1, Prep e V2. Trata-se, ainda, de verificar em que medida a semântica dos V1 e dos V2 interage nesse contexto construcional, sempre tendo como norte o sentido do todo, ou, em outras palavras, o sentido da construção. Se a referida “duração ‘pressentida pelo falante’” residisse, de fato, apenas nas “situações narradas” como de “contar”, “falar” e “chorar”, não seria possível que essa mesma noção de duração aparecesse nos exemplos (v) e (vi): (v) Esta é a última geração a poder respirar livremente sem desatar a tossir. (CPPtFerroTudo) (vi) À primeira tentativa, o pobre moço desatou a espirrar e passou assim a espirrar toda a tarde. (CPPtFerreraAparicao) Em ambos os casos, infere-se um sentido inceptivo e também uma duração, chamada por Travaglia (1985 [1981], p.102-104) de descontínua. Os verbos infinitivos em (v) e (vi) não podem ser considerados como iminentemente iterativos, assim como “saltitar” e “repicar”, sendo, pelo contrário, codificadores de eventos pontuais: a tosse e o espirro. Assim é que as noções de inceptividade e de duração (mesmo que descontínua e, portanto, relativa à iteratividade) não estão separadas, não sendo cada uma de responsabilidade de um dos verbos da perífrase. Elas emergem da interação entre os verbos que preenchem as posições de V1 e V2 da Construção de Aspecto Inceptivo, esta sim, responsável, em primeira instância, pelo sentido ingressivo presente em (v) e (vi). Travaglia (1985 [1981], p. 88-95), entretanto, por não considerar, na obra em questão, a noção de construção, propõe que: em primeiro lugar observamos que a cada nova noção aspectual que consideramos, novas combinações de noções se tornam possíveis, caracterizando diferentes aspectos compostos; em segundo lugar vemos que, embora as noções aspectuais apareçam combinadas nas frases, também aparecem isoladas; o que nos impede de propor um quadro aspectual apenas de aspectos compostos, levando-nos a propor um quadro aspectual misto; em terceiro lugar notamos que os aspectos compostos nada mais são do que diferentes combinações de aspectos simples tais como Perfectivo, Imperfectivo, 41 Durativo, Pontual, Iterativo, Inceptivo, Terminativo, etc. Tendo em vista: a) que não se pode propor um quadro aspectual apenas de aspectos compostos; b) que os aspectos compostos são na verdade combinações de aspectos simples; c) e que se adotarrnos um quadro misto de aspectos simples e aspectos compostos teremos de trabalhar com nada menos de quarenta aspectos, enquanto que um quadro de aspectos simples nos dará apenas treze aspectos; podemos concluir que a proposição de um quadro de aspectos simples é melhor para a análise aspectual por ser extremamente mais simples e eliminar terminologia cuja existência é desnecessária. (Travaglia, 1985, p. 88-89) Em linhas gerais, Travaglia propõe que o aspecto em Português poderia ser organizado conforme o Quadro 4. Noções aspectuais A. Contínua 1. Duração I. Duração B. Descontínua ASPECTOS a. Limitada DURATIVO b. Ilimitada INDETERMINADO a. Limitada ITERATIVO b. Ilimitada HABITUAL 2. Não duração ou Pontualidade 1. Fases de PONTUAL a. Por começar NÃO COMEÇADO b. Não Acabado ou Começado NÃO Realização ACABADO OU COMEÇADO c. Acabado ACABADO a. Início (no ponto de início ou INCEPTIVO II. Fases 2. Fases do Desenvolvimento nos primeiros momentos) b. Meio CURSIVO c. Fim (no ponto de término ou TERMINATIVO nos últimos momentos) 3. Completamento a. Completo PERFECTIVO b. Incompleto IMPERFECTIVO Ausência de Noções aspectuais Aspecto não atualizado Quadro 4: Quadro aspectual do Português, Travaglia, 1985, p. 96. De maneira semelhante aos outros linguistas apresentados até aqui, Travaglia mostra a necessidade de se distinguir Perfectivo e Imperfectivo, visto serem os que estão marcados em quase todos os usos. O Perfectivo é caracterizado por apresentar a 42 situação como completa, em sua totalidade, em que o todo da situação tem começo e fim englobados. Já o Imperfectivo se caracteriza por apresentar a situação incompleta, isto é, sem ter o todo da situação e, por isso, normalmente ser apresentada em uma de suas fases de desenvolvimento. Vejamos, no Quadro 5, em linhas gerais, como são apresentados os tipos de aspecto por Travaglia (1985 [1981], p. 99-116): Aspecto Durativo Caracterização Exemplo Apresenta a situação como tendo duração Ele estava nadando desde as 6 horas da contínua limitada. manhã. Indeterminado9 Apresenta a situação como tendo duração O ano tem 365 dias. contínua ilimitada, sem limites conhecidos ou perceptíveis. Iterativo Apresenta a situação como tendo duração Ela me acenou várias descontínua ilimitada, em que ocorre um vezes. “modo de repetição” Habitual Apresenta a situação como tendo duração Sempre que chegavam contínua ilimitada. É destacado que a visitas, mamãe fazia habitualidade não é uma noção aspectual, biscoitos fritos. em que se poderia propor a reunião dos aspectos iterativo e habitual num só aspecto já que ambos se caracterizam basicamente pela repetição originada da duração descontínua. Isso implicaria desconsiderar a distinção entre duração limitada e representando ilimitada duas que noções é real, aspectuais 9 Travaglia (1985, p.101) destaca ser o aspecto indeterminado caracterizado por ele como distinto de diversos outros autores. Segundo ele, o aspecto indeterminado não seria uma ausência de aspecto, tal qual é para Castilho (1967), embora haja enfraquecimento da noção aspectual. 43 distintas. Pontual Apresenta a situação como não tendo Raulzinho pega a bola e atira para Roberto. duração. Não começado Apresenta a situação na fase anterior ao Pedro está para início de sua realização, como algo por emoldurar o quadro. começar. Não acabado Apresenta a situação já em realização, ou Minha cabeça tem doído ou começado seja, após o seu momento de início e antes muito. de seu momento de término. Acabado Apresenta a situação após seu momento de Maria leu o livro. término, concluída, acabada, terminada. Inceptivo Apresenta a situação em seu ponto de José começou a falar na início ou em seus primeiros momentos. Cursivo Apresenta a situação em segunda aula. pleno O presidente estava desenvolvimento, ou seja, concebida como falando desde as cinco tendo passado seus primeiros momentos e horas. ainda não atingido os últimos momentos. Terminativo Apresenta a situação nos seus últimos Raquel momentos ou em seu momento de término. terminava escrever quando a o de carta, telefone tocou. Não aspecto Ocorre caso não haja nenhuma noção As crianças precisam se aspectual na frase, em que não há início à alimentar bem. duração ou às fases da situação. Quadro 5: Quadro resumo das noções aspectuais de Travaglia (1985) Na proposta de Travaglia, vemos algumas distinções com relação a outros linguistas até aqui apresentados e discussões interessantes no que tange à conceituação do aspecto aplicado ao Português. Esse autor dedica seus estudos aos verbos aspectuais e esse trabalho de 1985 [1981] é considerado um clássico do estudo de aspecto do português, visto que se aplica a descrever e a discutir a relação dos conceitos com outros já anteriormente apresentados, além de fazê-lo por meio de 44 exemplificações, visando a estabelecer diversas questões relacionadas às noções aspectuais. Entretanto, sua proposta não pode ser aplicada integralmente a esta tese, tendo em vista as distinções de base entre a perspectiva fortemente composicional deste autor e a perspectiva construcionista deste trabalho. 2.5 Aspecto verbal de acordo com Castilho (1968; 2010) 2.5.1 Castilho (1968) Castilho (1968) afirma que “o aspecto é a visão objetiva da relação entre o processo e o estado expressos pelo verbo e a ideia de duração ou desenvolvimento” (1968, p. 14). Segundo ele, o aspecto é caracterizado não só pelo sentido do verbo, mas também pela interação de elementos sintáticos, como adjuntos adverbiais, complementos e tipo oracional. Ademais, defende ser ele o responsável por expressar ideia mais concreta e objetiva que o tempo, além de ser mais ligado à noção de processo. Castilho propõe valores e, ligados a eles, aspectos típicos do português. Assim, são apresentados os seguintes critérios: a) duração; b) completamento; c) repetição; d) neutralidade. Na duração, podem-se reconhecer os primeiros momentos, pressentindo-se o prosseguimento do processo, chamado de aspecto imperfectivo inceptivo, aspecto tema desta tese. Pode ocorrer ainda de não se reconhecer o princípio nem o fim, apresentando-se o processo em pleno desenvolvimento, que é conhecido por aspecto imperfectivo cursivo. Além dele, é possível se reconhecer o término da duração, chamado de aspecto imperfectivo terminativo. Quanto à noção de completamento, peculiar ao aspecto perfectivo, tem-se uma implicação precisa do começo e do fim do processo. O perfectivo por excelência é designado de perfectivo pontual, aquele que indica o resultado consequente ao acabamento da ação é chamado de perfectivo resultativo e aquele em que se 45 depreende da ação expressa pelo verbo uma noção de negação, chama-se perfectivo cessativo. Segundo o autor, a noção de ação repetida levou ao aspecto iterativo, que é um verdadeiro coletivo de ações durativas (aspecto iterativo imperfectivo) ou pontuais (aspecto iterativo perfectivo). Castilho (1968) postula a existência, ainda, de um tipo de aspecto que se caracteriza por não ser nem imperfectivo nem perfectivo, chamado de aspecto indeterminado. Conforme o autor, no seu levantamento de dados, observaram-se certos casos em que “as formas verbais se mantinham avessas à indicação do aspecto, conservando aquele tom virtual próprio ao infinitivo” (CASTILHO, 1968, p.102). Um exemplo apresentado foi do enunciado a terra gira em torno do sol, em que girar representa, de acordo com o autor, o aspecto indeterminado. Em resumo, os valores e os aspectos a eles relacionados são: Valores Aspectos 1. Duração Imperfectivo: inceptivo, cursivo, terminativo 2. Completamento Perfectivo: pontual, resultativo, cessativo 3. Repetição Iterativo: iterativo imperfectivo, iterativo perfectivo 4. Negação da duração e do Indeterminado completamento Quadro 6: Aspectos verbais do português (CASTILHO, 1968, p. 51) Castilho, após longa descrição, conclui que “o aspecto na língua portuguesa é maiormente representado pelo sentido próprio do verbo, pela flexão temporal, pelos adjuntos adverbais e pelos tipos oracionais (...) o aspecto é uma categoria de natureza léxico-sintática” (CASTILHO, 1968, p.55). 46 Ele assinala, ainda, a distinção entre dois tipos de semantemas10: os télicos, que exprimem ação tendente a um fim, sem o qual a ação não se dá (caso de matar, morrer, cair, engolir, atirar etc), e os atélicos, os quais figuram o processo em sua duração, da qual não se exige completamento para admitir-lhe a existência (caso de dormir, atuar, andar, aumentar, contemplar etc). Essas definições são importantes, na medida em que apontam para a ideia de que uma mesma forma pode denotar diferentes noções aspectuais. A razão para isso parece estar, segundo Castilho (1968, p. 57), na natureza do semantema do verbo. Destaca-se, ainda, o fato de a flexão temporal ser “decisiva na indicação do aspecto, quando ela consegue contornar a tendência aspectual do semantema, imprimindo-lhe um valor diferente” (CASTILHO, 1968, p.58). Portanto, as categorias de tempo e aspecto não são vistas como exclusivas, coexistindo na mesma forma. Ao tratar da expressão da duração, Castilho analisa o aspecto estudado no presente trabalho: o imperfectivo inceptivo. Segundo ele, essa marcação aspectual ocorre quando se indicam claramente os momentos iniciais de uma ação, escapandonos a duração sequente que é, todavia, pressentida pelo falante” (CASTILHO, 1968, p. 62). Ele apresenta duas modalidades de inceptivo: o inceptivo, que se refere ao começo puro e simples, e o incoativo, que denota início com mudança de estado, o que é exemplicado com ocorrências de sufixos –ejar e –ecer (como em fraquejar, e amanhecer). Ao tratar dos casos do inceptivo propriamente dito, o autor cita perífrases que indicam começo, as quais podem decorrer do semantema do verbo auxiliar ou do todo formado pelo verbo auxiliar + verbo principal. No segundo caso, são encaixadas as construções análogas àquelas que estudamos no presente trabalho. O autor cita as seguintes perífrases para ilustrar a segunda possibilidade: passar a, pôr-se a, (a)garrar a, dar(-se) a/para/em, feitar a, cair a , romper a, desatar a, entrar a, filhar (arcaico), pegar a, despejar a, desandar a + infinitivo ou gerúndio. 10 De acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss (2009), semantema é a “parte de um vocábulo que expressa um conceito, uma ideia de caráter unicamente lexical (substância, qualidade, processo, modalidade da ação ou da qualidade); está presente em diferentes elementos lexicais: radicais, palavras simples, palavras compostas; não está presente nos morfemas com funções exclusivamente gramaticais”. 47 Castilho (1968, p.66) já sinaliza para algo que poderá ser observado na análise dos dados deste trabalho: a presença da preposição de regida por começar na fase arcaica e clássica da língua, que se encontra hoje em processo de substituição. Ele observa ainda que o auxiliar no pretérito marca com maior objetividade o começo da ação em relação ao auxiliar no presente ou no imperfeito, o que fica claro ao compararmos “começou a estudar” a “começava a estudar”. Apesar disso, notamos ser importante destacar que ambos focalizam o início do processo, embora o caráter da duração pareça ser mais proeminente nos casos de uso do pretérito imperfeito. Vejamos como isso ocorre em alguns dados que coletamos do Córpus do Português: (10) (11) DEPOIS, vendo que não podia trabalhar, acabou se despedindo do botequim. Mas ficou rondando por ali, ainda muito pálido e magro, sem fazer despesas, conversando com os conhecidos. Aos poucos, a bem dizer sem se sentir, pegou a trabalhar para o bicheiro que fazia ponto na charutaria. De começo passava as listas, tomava jogo de um ou outro, quando o velho Jamil - que assim chamavam o bicheiro - se afastava um momento. (Dôra Doralina, Rachel de Queiroz, 1975) Convidava um bando de colegas para o domingo no subúrbio. A patroa preparava uma feijoada e ele, que tinha as suas tinturas de pedreiro, enquanto os outros estavam ao redor, pegava a trabalhar. Aos poucos vinha um ajudar, outro, mais outro. Trabalho de construção é coisa engraçada, todos foram se interessando. (Dôra Doralina, Rachel de Queiroz, 1975) Em ambos os exemplos, encontramos a CI preenchida com pegar na posição de V1, seguida de preposição e do mesmo preenchimento de V2 no infinitivo. Entretanto, nesses dados, há distinção com relação ao tempo verbal usado. Em (10), emprega-se o pretérito perfeito e, em (11), o imperfeito. Notamos que o dado (10) parece marcar um ponto mais específico no tempo, enquanto em (11), apesar de o ponto de início também estar destacado na relação aspectual, há uma extensão maior com relação à continuidade do trabalho, dando ideia de habitualidade. Nesse caso, há uma sobreposição dos valores aspectuais indicados pela CI e pela flexão modo-temporal de V1. Castilho (1968) afirma que a existência de um verbo principal (V2) atélico demarca noção de começo da ação. Quando télico, há noções paralelas de começo e repetição11. Sobre os mecanismos das perífrases, ele conclui que eles podem ocorrer isoladamente ou em conjunto, como se propõe: 11 Esta colocação de Castilho (1968) vai ao encontro da crítica proposta nesta tese ao tratamento composicional proposto por Travaglia para as perífrases inceptivas, conforme seção 2.4. 48 a) o valor aspectual decorre da natureza semântica do verbo auxiliar; b) o valor aspectual decorre da natureza semântica do verbo principal; c) o valor aspectual decorre do conjunto “verbo auxiliar + verbo principal”, em que há duas possibilidades: I) em que os dois semantemas pertencem à mesma classe e, por isso, conduziriam ao aspecto correspondente (caso de fico a imaginar); II) os dois elementos da perífrase são semanticamente diversos do aspecto resultante (caso de pôsse a falar). (cf. Castilho, 1968, 112-113). Como se pode verificar, de acordo com essa proposta, nosso estudo se encaixaria na opção proposta em C, visto que estudaremos a Construção de Aspecto Inceptivo, mostrando que a relação entre V1fin, V2inf promove seu sentido ingressivo e que, ainda, essa relação entre os verbos e a presença da preposição entre eles não é aleatória, mas motivada sintática ou semanticamente. 2.5.2 Castilho (2010) Em obra mais recente, Castilho (2010) define o aspecto verbal como sendo “uma propriedade da predicação que consiste em representar os graus do desenvolvimento do estado de coisas aí codificado, ou seja, as fases que ele pode compreender”. O autor defende que o estudo do aspecto pode ser dividido em três fases históricas: (1) Uma fase léxico-semântica, durante a qual foram identificadas as classes acionais semântico-aspectuais do verbo, ou classes acionais. Esta perspectiva atribui à semântica do radical verbal as noções aspectuais apuradas. Observações de Diez (1876), Bello (1883), Jespersen (1924), Bull (1960), e ainda os comentários de Sten (1953) e Garey (1957) situam-se nesta perspectiva. (2) Uma fase semântico-sintática, ou composicional, durante a qual se examina o aspecto como a resultante da combinação das classes acionais do verbo (i) com a flexão e os verbos auxiliares, (ii) com os argumentos do verbo e os adjuntos adverbiais, aqui incluídas as sentenças condicionais-temporais. Nesta perspectiva, o aspecto passa a ser encarado mais claramente como uma propriedade da predicação. Os trabalhos de Castilho (1968), Verkuyl (1972), Dietrich (1973), Comrie (1976), Almeida (1980), Travaglia (1981) e Soares (1987), entre outros, situam-se nesta fase. (3) Uma fase discursiva, em que se investigam as condições discursivas que favorecem a emergência dos aspectos assim constituídos: Hopper (1979 a, b), Hopper/Thompson (1980). (CASTILHO, 2010, p.418) Castilho distingue a noção de tempo e aspecto por meio de uma afirmativa de Jackobson (1957) segundo a qual o aspecto quantifica o evento narrado, sem haver envolvimento dos participantes dessa narração e também sem haver referência ao 49 evento de fala. No que tange ao tempo, está ligado ao evento narrado com referência ao evento de fala. Não se referindo aos predicados estativos, Castilho propõe a tipologia de aspecto de acordo com o Quadro 7: FACE QUALITATIVA DO ASPECTO IMPERFECTIVO PERFECTIVO Inceptivo Pontual Cursivo Resultativo Terminativo FACE QUANTITATIVA DO ASPECTO SEMELFACTIVO ITERATIVO Imperfectivo/ Perfectivo Quadro 7: Tipologia do Aspecto (CASTILHO, 2010, p.420) Segundo Castilho, o aspecto imperfectivo (a) apresenta as propriedades de conter uma predicação dinâmica de sujeito específico; (b) compreende as fases inicial, em pleno curso e em fase final e (c) é recursivo nas estruturas de fundo das narrativas (CASTILHO, 2010, p.420-421). Inserido no aspecto Imperfectivo, o autor mostra estar o Imperfectivo Inceptivo, “o qual expressa uma duração de que se destacam os momentos iniciais”. Como exemplo, ele cita começar e iniciar, em que a significação inceptiva decorre do auxiliar. Castilho destaca que, nesses casos, o uso pleno desses verbos e seu uso como auxiliares têm o mesmo sentido (e.g. tanto em “Jorge começou o curso em janeiro” quanto em “Começou a chover”, começar indica sentido inceptivo). Ao aplicar testes de escopo da negação e focalização, mostrou haver uma escassa gramaticalização do verbo auxiliar. Ele aponta para casos distintos, em que há maior grau de gramaticalização, apresentando exemplos das perífrases com pegar e agarrar seguidas de preposição e de infinitivo. Uma decorrência natural dessa observação de Castilho que, por uma questão de enfoque, não foi formulada pelo autor diz respeito à parcela de sentido inceptivo trazida pelo esquema construcional como um todo e não só pelo verbo. A diferença entre o emprego de um verbo prototipicamente inceptivo (como começar) e de um verbo que não tem essa característica (como pegar) numa perífrase aspectual pode, sim, ser explicada diacronicamente em termos de um processo de gramaticalização. Entretanto, 50 para o falante de uma sincronia qualquer em que essas duas possibilidades de emprego existem de forma já estável (e, portanto, têm sua história na língua desconhecida por esses mesmos falantes), o que diferencia esses usos é a parcela de sentido trazida pela construção e a parcela trazida pelo verbo. Se, por um lado, casos como “começou a chorar” têm o sentido ingressivo inferível pelo V1 (e também pela construção), o que permite que esse V1 seja usado em sentido ingressivo em outros padrões construcionais (e.g. “comecei o curso ontem”); por outro, o preenchimento de V1 por outros verbos não prototipicamente inceptivos (pegar, desatar, romper) perspectiviza de maneiras diversas o sentido inceptivo do esquema construcional [V1fin (Prep) V2inf], conferindo-lhe, por exemplo, o sentido de início abrupto (e.g. “rompeu a chorar”), como se verá nas análises desenvolvidas no capítulo 4. Em sequência, o linguista trata do Imperfectivo Cursivo que apresenta “o estado de coisas em pleno curso, sem referências à fase inicial ou final”. Aponta, ainda, para a proeminência das perífrases gerundiais as quais expressam o aspecto Imperfectivo Cursivo. Destaca, também, a existência do Imperfectivo Terminativo, em que são assinalados os momentos finais de uma duração, como ocorre em perífrases com acabar de/por, cessar de, deixar de, terminar de + infinitivo. O aspecto Perfectivo é caracterizado primeiramente por, assim como o Imperfectivo, ocorrer em predicações dinâmicas, com sujeito específico. Entretanto, é relacionado à apresentação da predicação como um todo, sem menção a fases. Ocorre, ainda, nos fragmentos em que se narra o evento central, ou seja, na estrutura de figura das narrativas. O autor identifica dois subtipos de perfectivo: pontual e resultativo (CASTILHO, 2010, p.424-425). O primeiro é caracterizado por ter verbos no presente, pretérito perfeito simples e pretérito-mais-que-perfeito do indicativo flexionados com verbos télicos. Já o Perfectivo resultativo é caracterizado por ter as seguintes propriedades: (1) ocorrer nas predicações estático-dinâmicas, associando uma ação a um estado; (2) a ação, necessariamente tomada no passado, é pressuposta; (3) o estado presente decorre dessa ação; (4) há relações entre o resultativo e a voz passiva (CASTILHO, 2010, p. 425) A fim de justificar a descrição que realiza sobre o aspecto no português, ele mostra que: 51 A hipótese que anima esta descrição do Aspecto no português falado se fundamenta no caráter composicional dessa propriedade da predicação. Aplicada essa hipótese, aprende-se o seguinte: (1) Papel do Léxico e da Semântica (i) Verbos atélicos favorecem o imperfectivo, e verbos télicos favorecem o perfectivo, predominante numericamente aqueles sobre estes. (ii) A classe acional do verbo, decisiva na emergência do imperfectivo e do perfectivo, não é fator importante para o Iterativo, salvo se o verbo vier sufixado por –itar, -ejar. (2) Papel da Gramática: a flexão e as perífrases (i) O imperfeito do indicativo e o gerúndio encerram traços de /duração/ mais fortes que as outras formas verbais, transformando-se em codificadores altamente frequentes do Imperfectivo. (ii) O presente e o pretérito perfeito simples são mais dependentes de adjuntos para codificar o aspecto; será necessário desenvolver uma reflexão mais detalhada sobre as combinações classe acional-flexão, para o que o livro-resenha de Koefoed (1979: 125139) apresenta interessantes indicações. (iii) As perífrases de gerúndio, além de mais numerosas, são as mais inclinadas a expressar o Imperfectivo, com grande predominância do papel lexical do verbo pleno, ou verbo auxiliado, nesse processo; as perífrases de valor iterativo são mais dependentes dos arranjos sintáticos e do contexto que excede a sentença. Por outro lado, pode-se propor que o presente, o imperfeito e o pretérito perfeito composto são ‘flexões aspectualmente não específicas’, pois predominam nas expressões iterativas, o que não parece ser o caso das ‘flexões aspectualmente específicas’, como o pretérito perfeito simples e o pretérito mais-que-perfeito. (3) Papel da Gramática: os argumentos e os adjuntos quantificados (i) Argumentos no singular favorecem o semelfactivo, enquanto que argumentos pluralizados favorecem o Iterativo. (ii) Argumentos verbais /não específicos/ favorecem o Iterativo, ao passo que os /específicos/ favorecem mais o Imperfectivo e o Perfectivo. (iii) Adjuntos adverbiais qualificadores durativos favorecem a emergência do Imperfectivo, e os pontuais, do Perfectivo, ao passo que os adjuntos adverbiais quantificadores favorecem o Iterativo. (4) Papel do Discurso (1) Narrativas favorecem o Imperfectivo e o Perfectivo. (2) Textos argumentativos com generalizações favorecem o Iterativo. (CASTILHO, 2010, p. 430-431) Nota-se, por meio desse fragmento, que Castilho propõe que o tratamento do aspecto deve observar a convergência de diversos fatores. Entretanto, diferentemente da proposta de Travaglia (1985 [1981]), a composicionalidade aqui não é absoluta. Ao reconhecer a noção de convergência e, ainda, ao modalizar o papel de cada nível linguístico na constituição de um valor aspectual (dizendo, por exemplo, que determinado fator favorece um valor aspectual), Castilho parece adotar a Hipótese da Composicionalidade Fraca, segundo a qual não se desprezam as contribuições de cada forma linguística para o sentido do todo, porém, ao mesmo tempo, não se tenta reduzir 52 o sentido do todo à soma dos sentidos das partes. Essa hipótese casa com o empreendimento de se estudar o aspecto em uma perspectiva construcionista. 2.6 Aspecto segundo Bybee, Perkins e Pagliuca (1994) Bybee et al (1994) se baseiam em Comrie (1976, 1985b apud BYBEE ET AL, 1994) e Dahl (1985 apud BYBEE ET AL, 1994) para examinar a marcação de aspecto em diversas línguas. Asseveram que o Imperfectivo é tratado nos trabalhos base em contraste com o Perfectivo e, assim, a situação é vista não como delimitada, mas com referência explícita à sua estrutura interna. Segundo os autores, as formas Imperfectivas são tipicamente usadas no discurso para configurar as situações de pano de fundo Os autores referem-se aos sentidos específicos que foram úteis para análise linguística que se propuseram fazer na obra, definindo-os, como se pode observar a seguir: a) Progressivo: vê a ação como em andamento no tempo de referência. No inglês, aplica-se a predicados dinâmicos e não estativos. b) Contínuo: mais geral que o progressivo porque pode ser usado em situações progressivas, mas ligado a predicados estativos. c) Habitual: refere-se a situações que se repetem comumente em diferentes ocasiões. d) Iterativo: descreve um evento que se repete em uma situação particular. A noção de iteração é relevante para os predicados télicos. e) Frequentativo: inclui os sentidos habituais, mas especifica que a situação seja frequente durante um período de tempo. f) Continuativo: inclui o sentido do progressivo - que uma situação dinâmica está em curso - e especifica que o agente da ação mantém a ação em curso. Os continuativos apresentam o sentido de 'continuar fazendo'. Afirmam, ainda, que os auxiliares verbais devem derivar-se de um verbo postural específico, como 'sentar', 'levantar' ou 'deitar' ou devem expressar a noção de estar em um lugar sem referência a uma postura específica, significando apenas 'estar em', 'ficar' ou, mais especificamente, 'residir' e 'morar' (1994, p.129-130). As fontes de movimento 53 e locativas contêm algo em comum: ambas permitem a localização do sujeito e da atividade, seja porque o sujeito está localizado em algum lugar fazendo algo ou porque o sujeito está se movendo, fazendo algo. Nesse ponto, referendam a análise diacrônica de Comrie para tempo e aspecto. A metáfora espacial de Comrie para o entendimento do imperfectivo - de que a situação é vista por dentro - foi confirmada pelo número de ocorrências (significando estar em uma atividade) dos progressivos, os quais se desenvolvem nos imperfectivos. Propõem que o sentido original da construção progressiva é 'o sujeito está localizado em meio à feitura de algo' ('subject is located in the midst of doing something'). A função dessa locução é dar a localização do sujeito. Ela é usada primeiramente para atividades que implicam uma localização específica para o sujeito e para a atividade. Assim, a construção contém tanto implicitamente quanto explicitamente os elementos de sentidos que seguem: a. Um agente b. está localizado espacialmente c. entre uma d. atividade e. em um tempo de referência. (BYBEE et al, 1994, p.136) Os autores sustentam que, em algumas línguas, a construção progressiva está restrita a atividades que estão em curso no momento de fala. Ressaltam que, no inglês, o aspecto progressivo é ligado àquelas atividades que são características de um determinado período de tempo, não precisando estar de fato em progresso no momento do discurso. Ao retomarem a definição de Comrie para o imperfectivo, o contínuo e o progressivo, Bybee et al se mostram de acordo com o que é chamado de imperfectivo e habitual. Entretanto, criticam a definição do progressivo e do contínuo. Os autores apresentam a figura da classificação das oposições aspectuais de Comrie (vide Figura 1 deste trabalho), explicitando que um gram-type para cada nódulo não existe. Declaram ter muitas evidências em seus corpora sobre o progressivo, o habitual, o imperfectivo passado, o imperfectivo e o presente como tipos gramaticais que fazem parte de diversas línguas. Porém, não há distinção clara entre o progressivo que está restrito a verbos dinâmicos e o contínuo que não apareceu nos dados. Assim, rejeitam 54 a hipótese de que o progressivo deveria ser definido em termos de continuidade, a qual é definida como imperfectividade sem habitualidade. Os autores definem o iterativo como uma ocorrência comum nos dados ligada especialmente a sentidos específicos. Isso sinaliza que uma ação é repetida em uma única ocasião e difere do habitual e do frequentativo, os quais sinalizam que a repetição ocorre em situações diferentes. Bybee et al notaram que a noção de repetição se aplica principalmente em situações que compreendem um único ciclo - ou seja, uma situação que apresente, inerentemente, início, meio e fim. Contudo, uma construção iterativa pode também se aplicar a um predicado que descreve uma situação com ciclos múltiplos em que parece haver também um sentido continuativo. Bybee et al também defendem que, enquanto parece claro que tanto sentidos continuativos e frequentativos podem se desenvolver diretamente dos sentidos lexicais do tipo expresso pelos auxiliares como 'manter-se' ou advérbios como 'sempre', também pode existir uma relação diacrônica entre iterativos e cada um desses sentidos. Propõem que a distinção entre iterativos e continuativos é um problema decorrente de tipo de verbo ligado a eles. Sugerem, assim, que o iterativo deve se generalizar para um continuativo. O frequentativo implica que a situação ocorreu nas diferentes ocasiões e, assim, também pode ser uma extensão de um sentido especificamente iterativo. O habitual e o progressivo são mais gerais ainda e os habituais parecem se desenvolver a partir dos sentidos do frequentativo, enquanto o progressivo vem do sentido continuativo. Segundo eles, algumas dessas hipóteses se baseiam em estudos sobre as construções reduplicadas. Os autores destacam, ainda, que uma propriedade importante da gramaticalização de tempo e aspecto é relacionada ao fato de que, muitas vezes, essas duas categorias acabam por se gramaticalizar juntas em uma mesma forma (tome-se, por exemplo, o pretérito imperfeito do indicativo, flexão verbal na qual se manifestam tanto a categoria de tempo passado quanto a de aspecto habitual). Ressaltam, assim, a necessidade de estudos específicos das várias línguas no sentido de buscar padrões gramaticais em que determinadas categorias de tempo e aspecto coocorram. O estudo realizado nesta tese sobre o português aponta, entretanto, para o fato de que este não 55 é o caso do aspecto inceptivo, uma vez que o V1 da CI pode ser flexionado, potencialmente, em qualquer tempo. 2.7 Conclusão Tal qual fora afirmado por Castilho (1968, p. 39), notamos que os conceitos de aspecto são muito díspares na bibliografia e um estudo analítico específico deste ponto nos levaria a todo um variado corpo de doutrinas linguísticas. Buscou-se, portanto, destacar os estudos mais relevantes sobre aspecto, tendo em vista o tema em geral e também o estudo dele na língua portuguesa. As concepções apresentadas por Comrie (1978 [1976]) são relevantes para os estudos de aspecto. Nessa obra, o autor se utiliza de uma grande quantidade de dados, oriundos de diversas línguas, para propor sua teoria aspectológica. Além de quantidade, os dados têm também qualidade, o que ajuda na formulação teórica da obra, tornando-a referência de estudos posteriores. Diversos dos trabalhos lidos tomam-no como base, o que o faz ser uma referência inicial sobre aspecto. Travaglia (1985) identifica e descreve muitas das possibilidades de preenchimento das Construções Inceptivas de que trataremos neste trabalho. Porém, esse autor trata cada possibilidade de preenchimento de V1 e V2 individualmente, apesar de se constituírem numa mesma construção. Além disso, não se tentam estabelecer critérios semânticos que motivariam as relações preferenciais entre V1 e V2. Foi possível detectar, na revisão realizada, que Travaglia, portanto, não reconhece que o esquema formal [V1fin (Prep) V2inf] encontra-se pareado à noção de aspecto inceptivo e que, além disso, apresenta propriedades definidas no que tange às possibilidades de preenchimento das posições de V1, Prep e V2. No entanto, ocorrências da CI mostraram que as noções de inceptividade e de duração emergem da interação entre os verbos que preenchem as posições de V1 e V2 da CI. Castilho (1968, 2010) realiza um estudo aprofundado do aspecto em português. É interessante notar que esse linguista, assim como Taylor (2002), declara a necessidade de se investigarem as contribuições do enunciado, mostrando que a marcação dessa categoria não se restringe a um elemento, como um verbo, por 56 exemplo. Ao contrário, deve-se analisar a conjuntura dos itens linguísticos e suas relações na marcação do aspecto. Há que se considerar ainda a relevância dos trabalhos de Castilho (2010) e de Bybee et al.(1994), os quais lançam luzes importantes para este trabalho, na medida em que apontam para a gramaticalização dos marcadores aspectuais. Ademais, estes propuseram a relação direta que poderia existir entre a marcação modo-temporal e a noção de aspecto. Nossos dados mostram, entretanto, não haver uma relação direta entre eles na CI, visto que o V1 dessa construção inceptiva pode ocorrer em diversos tempos e modo verbais. 57 3 A ABORDAGEM COGNITIVISTA PARA A LINGUAGEM Conforme já foi sinalizado anteriormente, a análise da categoria gramatical de aspecto, mais especificamente do aspecto inceptivo, levada a cabo nesta tese adota uma perspectiva construcionista. Tal perspectiva analítica é corroborada por uma análise semântica de cunho cognitivista, a qual considera fortemente o papel dos esquemas imagéticos e das metáforas conceptuais no processo de significação. Esse contexto teórico enquadra a análise da Construção de Aspecto Inceptivo aqui desenvolvida no escopo da Linguística Cognitiva (LC), abordagem nascida na virada da década de 70 para 80 a partir de uma ruptura havida no seio do Gerativisto devida ao tratamento que esta corrente de análise dispensava à semântica. De acordo com Salomão (2007): A linguística cognitiva, uma evolução da semântica gerativa que desistiu da semântica formal (...), emerge pela proposição de que as categorias linguísticas exibem efeitos de prototipia, à imagem das categorias cognitivas e culturais estudadas por Eleanor Rosch (1977) (...). Emerge também pela proposição da semântica de frames por Charles Fillmore (FILLMORE, 1977a, 1977b, 1982, 1985), na esteira de seus esforços anteriores para postulação de uma “gramática de casos”, e a partir da contribuição de Minsky (1975) sobre frames na Inteligência Artificial, e de formulaçoes de Bateson (1972) e de Rumelhart (1975) sobre a natureza das estruturas do conhecimento. Emerge, ainda, com a forte influência que a psicologia da gestalt desempenha sobre as teorizações de Talmy (1978,1983) e Langacker (1987, 1991). Em outras palavras, a linguística cognitiva, que propõe a continuidade entre competência linguística, as outras capacidades cognitivas e as práticas sociais que lhes correspondem, é fortemente tributária, já no seu nascedouro, da psicologia, da antropologia, da filosofia e das ciências cognitivas. (SALOMÃO, 2007, p.33) Desse emaranhado de influências transdiciplinares nasce uma ciência preocupada com a relação entre linguagem, cognição, experiência sensório-motora e cultura, melhor caracterizável como um arquipélago de abordagens assentadas sobre princípios comuns do que como uma teoria única. De acordo com Geeraerts e Cuyckens (2007, p.4), a própria Linguística Cognitiva pode ser vista como uma categoria radial, constituindo-se em um agrupamento de abordagens parcialmente sobrepostas. Dessas abordagens, duas serão discutidas nesta seção, dada sua relevância para as análises que se farão mais adiante nesta tese: a Semântica Cognitiva e a Gramática das Construções. 58 3.1 Semântica Cognitiva Semântica Cognitiva e Linguística Cognitiva foram, durante a gênese e grande parte do desenvolvimento desta última, termos sinônimos. Ainda hoje, a LC debruça-se, em larga medida, sobre o estudo da significação (cf. SALOMÃO, 2007). Essa preocupação com o tratamento do sentido foi, conforme já se sinalizou acima, o principal fator motivador para o desenvolvimento da área. Newmeyer (1986), em obra focada na historiografia da Linguística na América do Norte sob a ótica gerativista, dedica um capítulo à análise do conjunto de fatores que levaram à eclosão das Guerras Linguísticas, um período de intenso debate acerca da natureza do significado linguístico que opôs lexicalistas e semanticistas gerativos. Dentre estes últimos, estavam George Lakoff, cuja tese de doutoramento (1970 [1965]) havia fundado a Semântica Gerativa e desafiava a até então inquestionável autonomia entre processos sintáticos e processos semânticos. A grande questão em discussão na época relacionava-se à natureza das representações constantes da Estrutura Profunda (EP). Chomsky havia proposto, em Aspects of The Theory of Syntax (1965), ainda que de maneira hesitante, a ideia de que as restrições de seleção observáveis entre constituintes fossem tratadas, na EP, como regras de subcategorização dos itens lexicais. Isso permitia a conclusão de que cada identidade semântica precisava ser representada como uma identidade de EP. Paradoxalmente, quanto mais abstratas ficavam as EPs, mais difícil era aplicar uma outra proposta do Aspects, qual seja a de que a EP é o nível em que os itens lexicais entram na derivação. Tal paradoxo tornouse mais sério quando da conclusão de Lakoff (1970a [1965]) de que, se a teoria tinha que dar conta das restrições entre itens lexicais, ela deveria também dar conta das restrições dentro dos itens lexicais. Assim, como conseqüência, tornava-se necessário abandonar a ideia de EP (cf. NEWMEYER, 1986, p.81-138). Ao abandonar a ideia de EP, os Semanticistas Gerativos derrubavam um postulado até então intocado na Linguística Gerativa: o de que os processos sintáticos e semânticos eram independentes. Numa tentativa de preencher os vazios relativos à interpretação semântica existentes na Teoria Padrão (TP), Lakoff (1970 [1965]) 59 propunha que sua abordagem para fenômenos tratados como exceções na TP poderia não só resolver tais exceções, como também eliminar muitas distinções categoriais na EP e propor análises em que predicados complexos da Estrutura de Superfície (ES) pudessem ser decompostos em predicados mais simples na EP. Desse modo, sentenças como “Maria quebrou o copo” poderiam ser decompostas na EP como “Maria CAUSAR ((o copo QUEBRADO) TORNAR-SE)”. A ruptura inicial de Lakoff com os gerativistas levou-o a inaugurar um novo paradigma dos estudos semânticos, no qual a “periferia” linguística passava a ocupar o “centro”dos debates acerca da natureza da linguagem. Dos estudos iniciais sobre irregularidades sintáticas que eram semanticamente motivadas, Lakoff (2006 [1979]) passa a dedicar-se ao tratamento da metáfora conceptual, da polissemia e da categorização linguística. O primeiro ponto discutido por este linguista se refere ao fato de que, desde Aristóteles, a Teoria Clássica da Metáfora adotou como objeto aqueles usos inovadores da linguagem poética. Assim sendo, a metáfora vinha sendo, historicamente, tratada como um fato da linguagem. Entretanto, a metáfora habita o domínio conceptual, devendo ser estudada a partir dos princípios que regulam os processos de projeção entre domínios cognitivos. Segundo Lakoff (2006 [1979], p. 204-205), a vertente clássica foi responsável pela criação de um conjunto de pressupostos falsos acerca do significado metafórico e de sua instanciação na linguagem, dentre eles, destacam-se os seguintes: • a linguagem cotidiana é totalmente literal e nada metafórica; • qualquer matéria ou assunto pode ser compreendido literalmente, sem metáforas; • apenas a linguagem literal pode ser julgada como falsa ou verdadeira; • todas as definições dadas no léxico de uma língua são literais, não metafóricas; • os conceitos usados na gramática de uma língua são todos literais, nenhum deles é metafórico. Ao propor sua teoria contemporânea da metáfora – a Teoria da Metáfora Conceptual –, Lakoff afirma que a construção do significado se dá de maneira 60 largamente metafórica, sendo a noção de sentido literal posta em perspectiva. O linguista afirma que é necessário, primeiramente, que se observe que a distinção literal / metafórico não é absoluta e nem possui fronteiras claras e que conceitos literais costumam se referir a experiências que estejam totalmente circunscritas às experiências físicas do falante. Sua teoria encontra respaldo em um conjunto de evidências dentre as quais o autor destaca as generalizações que governam as polissemias, os padrões de inferência, a emergência de novos usos metafóricos e os padrões de mudança semântica, bem como os experimentos psicolinguísticos (LAKOFF, 2006 [1979]). Como exemplo da pervasividade da metáfora na linguagem cotidiana, Lakoff (2006 [1979], p. 206-208) discute a sentença “Nosso relacionamento chegou a um beco sem saída”, na qual se manifesta a metáfora O AMOR É UMA VIAGEM. Conforme o autor, para que se possa compreender adequadamente essa sentença, a qual não se manifesta exclusivamente em discursos poéticos, o falante precisa conceptualizar que os amantes são viajantes que estão juntos em uma viagem, sendo seus objetivos de vida em comum vistos como destinos a serem atingidos. O relacionamento é seu veículo, que lhes permite perseguir tais objetivos conjuntamente. O relacionamento alcança seu objetivo na medida em que lhes permite avançar em direção a seus objetivos comuns. A viagem não é fácil. Há impedimentos e há lugares (encruzilhadas) nos quais é necessário decidir que rumo tomar ou mesmo se vale a pena continuar a viagem conjuntamente. Lakoff argumenta, ainda, que é muito importante separar o nome do mapeamento entre domínios do mapeamento em si. O nome do mapeamento é proposicional, mas o mapeamento é um conjunto de correspondências cognitivas, não proposicionais: metáforas não são apenas palavras, são mapeamentos conceptuais que caracterizam generalizações sobre a polissemia e os padrões inferenciais. Assim, a interpretação polissêmica de beco sem saída na sentença discutida acima, bem como possíveis inferências sobre o sentido que “mas eu conheço uma passagem secreta” teria, caso fosse dito após essa mesma sentença, dependem do mapeamento metafórico entre os domínios cognitivos do amor e da viagem. 61 Cabe ressaltar também que, nem todas as correspondências entre domínios são aplicadas a estruturas de conhecimento ou palavras do domínio fonte, o que não impede, entretanto, que elas sejam recrutadas em construções inovadoras (governadas pela mesma metáfora) que passem a caracterizar algum aspecto do domínio alvo em termos do domínio fonte. Nesse sentido, metáforas motivam expressões idiomáticas, outrora analisadas como detentoras de sentido arbitrário. Lakoff avança em sua proposta ao afirma que os mapeamentos metafóricos são regidos pelo Princípio da Invariância, segundo o qual tais mapeamentos preservam a topologia cognitiva (isto é, a estrutura do esquema imagético) do domínio fonte de maneira consistente com a estrutura inerente do domínio alvo. Em decorrência desse princípio, Lakoff conclui que muitos, se não todos, os conceitos abstratos mais básicos são construídos metaforicamente a partir de esquemas imagéticos espaciais. A título de exemplo, considerem-se os mapeamentos metafóricos envolvendo a noção de tempo: TEMPO É ESPAÇO TEMPOS SÃO COISAS A PASSAGEM DO TEMPO É MOVIMENTO TEMPOS FUTUROS ESTÃO NA FRENTE DO OBSERVADOR; TEMPOS PASSADOS ATRÁS DELE Em decorrência do Princípio da Invariância, uma vez que o movimento é contínuo e unidimensional, o tempo é contínuo e unidimensional. Lakoff propõe, por fim, que a forma como conceptualizamos a estrutura dos eventos nos quais nos engajamos é fortemente metafórica, no sentido de que está ancorada em nossa percepção do espaço que nos cerca e nas forças que atuam sobre ele. São listadas diversas metáforas que estruturam nossa concepção de mundo e que se encontram na base, inclusive, da categoria gramatical do aspecto, conforme se verá mais adiante. Dentre elas, destacam-se: ESTADOS SÃO LOCALIDADES (REGIÕES LIMITADAS NO ESPAÇO); MUDANÇAS SÃO MOVIMENTOS; CAUSAS SÃO FORÇAS; AÇÕES SÃO MOVIMENTOS AUTOPROPULSIONADOS; FINALIDADES 62 SÃO DESTINOS; MEIOS SÃO CAMINHOS e DIFICULDADES SÃO BARREIRAS (LAKOFF, 2006 [1979]). Ao final do seu artigo fundador da Teoria da Metáfora Conceptual, Lakoff, buscando reponder a pergunta sobre por que as metáforas conceptuais de que dispomos são essas e não outras, propõe que isso se deva ao fato de que elas são ancoradas na experiência humana. Nesse estágio da teoria, Lakoff propõe que as generalidades encontradas translinguisticamente como evidência para a base experiencial e/ou corporificada da metáfora se situam mais no domínio das constatações do que da sustentação científica, entretanto, essa proposta avançará bastante, conforme se verá em trabalhos posteriores. Seguindo esse viés, Lakoff & Johnson (2002 [1980]), ao analisarem distintas expressões linguísticas, dispõem sobre a existência de um sistema conceptual metafórico subjacente à linguagem, o qual exerce influência sobre o pensamento e as ações humanas. Partindo de usos cotidianos da linguagem, mostram que compreendemos o mundo por meio de metáforas, as quais são construídas com base em nossa experiência corporal. Assim, propõem que a linguagem tem base corporificada, o que fica evidente, por exemplo, em metáforas orientacionais, as quais possuem base física e cultural (2002 [1980], p. 59, 60). Eles propõem que as metáforas orientacionais não são arbitrárias. Para ilustrá-las, um dos casos bastante difundidos é: FELIZ É PARA CIMA; TRISTE É PARA BAIXO, em que a postura caída corresponde à tristeza e à depressão e a postura ereta se liga a um estado emocional positivo. Frases como Ele é muito para cima! ou Aquele problema me deixou para baixo apontam para a existência dessas metáforas de base física. Johnson (1987) e Lakoff (1987) reafirmam a relação do corpo com a mente por meio da observação e do levantamento de hipóteses sobre como a linguagem é associada às experiências corporais. Johnson (1987, p.34) aponta para o fato de que conceitos básicos – como força e posicionamento – emergem de nossa experiência física. Ele propõe, por exemplo, que “nosso esquema DENTRO-FORA emerge primeiramente da nossa experiência corporal, da nossa percepção e movimento”. Lakoff (1987) sugere que a categorização humana envolve, essencialmente, dois lados: (a) o da experiência humana, da simulação de atividade motora e da cultura e (b) o da 63 metáfora, da metonímia e das imagens mentais. Segundo ele, entender como categorizamos é central para o entendimento de como pensamos e de como funcionamos. Além disso, é essencial também para o entendimento do que nos faz seres humanos. Apesar de contar com argumentos convincentes relativos à presença de metáforas na linguagem do cotidiano e apesar mesmo da existência de tais metáforas em outras línguas, a Teoria da Metáfora Conceptual não consegue, até o final do século XX, fornecer evidências empíricas do ancoramento cerebral das projeções entre os domínios abstratos (dentre os quais os da linguagem) e os domínios corporais. No século XXI, entretanto, um conjunto de trabalhos revolucionaria novamente os estudos da metáfora. Trata-se dos diversos experimentos comportamentais e de imagem cerebral realizados no sentido de comprovar a existência de uma relação neurobiológica entre domínios concretos e abstratos, em outros termos, no sentido de mostrar, no nível cerebral, a base corporificada da linguagem. Em um desses estudos, Gallese e Lakoff (2005), partindo da noção de que os conceitos básicos à experiência humana empregam capacidades sensório-motoras do sistema corpo-cérebro, abordam as bases neurobiológicas da cognição linguística, mostrando que a compreensão é alcançada pela simulação da ação sendo compreendida. Assim, para compreender um conceito como o de pegar, além de mobilizar as áreas funcionais do cérebro responsáveis pela linguagem, um falante mobiliza também o conjunto de neurônios responsáveis pela realização do ato de pegar, simulando, no nível neuronal, o movimento corporal indicado pelo conceito sendo compreendido. Ainda no que diz respeito à corporificação da cognição, Gibbs e Matlock (2008) apresentam os resultados de uma série de pesquisas que visam a observar, por meio da investigação psicolinguística, o fato de que as pessoas entendem as metáforas criando uma simulação imaginativa de seus corpos em ação. Com isso, os autores defendem a proposta de que o recrutamento de metáforas corporificadas em alguns aspectos do entendimento de metáforas verbais é feito imaginariamente, com a recriação pelas pessoas de como seria a cena caso se engajassem em ações similares. 64 Segundo os autores, as pessoas simulam todos os tipos de coisas de todas as maneiras. Algumas simulações são físicas e servem a uma função comunicativa – como é o caso de ações como a de realizar um sinal para que um garçom feche a conta. Entretanto, há ainda outras simulações que são apenas mentais. Gibbs e Matlock (2008) mostram que as simulações corporificadas incluem uma sensação corporal, de forma que uma pessoa pode experimentar sensações de movimento até em situações como a de um voo em um simulador. Dessa forma, simulações corporificadas são atos imaginativos que estão intimamente envolvidos com processos os quais, na maior parte dos casos, são realizados automaticamente, sem uma reflexão consciente. A grande questão discutida por Gibbs e Matlock (2008) se pauta na possibilidade de as pessoas simularem movimento em situações em que são fisicamente impossibilitadas de se movimentarem, como aquelas representadas pelas frases metafóricas. Assim, os falantes, ao utilizarem frases de conteúdo metafórico que remetem a movimento, simulam, por meio da ativação neuronal, o movimento físico, concreto. Para discutir essa questão, alguns experimentos são propostos e o resultado desse exame será apresentado brevemente a seguir. Entender que as metáforas são compreendidas pelas simulações corporificadas poderia fazer com que a movimentação dos corpos em formas relevantes para as ações fizesse com que os conceitos abstratos e concretos fossem mais facilmente entendidos. A fim de comprovar isso, experimentos que mesclavam a enunciação de estruturas concretas e abstratas (metafóricas) e seus movimentos físicos correspondentes (mesmo quando as estruturas abstratas fossem impossíveis de ser plausíveis e significáveis por movimentos físicos), comprovaram que ações relevantes reproduzidas fisicamente permitiram mais facilmente a construção de simulações pelas pessoas. Assim, uma proposta explicativa para a compreensão da metáfora sugere que o movimento do corpo ou a imaginação do movimento do corpo facilita o entendimento do conceito abstrato. Por meio dos estudos de caso, notou-se que um movimento de maneira apropriada não ativa um item lexical, mas indica como as pessoas criam uma simulação corporificada relevante para o entendimento de uma frase metafórica. 65 Mesmo quando o experimento exigia que as pessoas imaginassem ações corporais antes de especificar o sentido de uma sequência de palavras, percebeu-se que os participantes foram rápidos no processamento das metáforas quando a ação imaginada era consistente com o sentido da frase. Isso comprova o que as pessoas fazem para a compreensão da metáfora: simular mentalmente a ação. A partir de uma vasta gama de experimentos comprobatórios, Gibbs e Matlock (2008) demonstraram que as ações corporais reais e imaginadas facilitam às pessoas a interpretação das metáforas verbais. Essas ações reais e imaginativas têm consequências específicas para a forma como as pessoas acessam o sentido das metáforas. Com isso, fica evidenciado que a metáfora é aliada da imaginação humana e que está relacionada à ação corporal. Todas essas pesquisas sinalizam que a linguagem é corporificada e processada pela mente, bem como as outras atividades humanas. Isso leva à indicação de que, por mais que possam ser culturalmente influenciados, há padrões linguísticos básicos compartilhados pelos falantes das várias línguas. 3.2 Gramática das Construções Assim como a Semântica Cognitiva, a Gramática das Construções também nasce de uma ruptura havida, no final da década de 1970, no seio do Gerativismo. Trata-se do trabalho de Fillmore (1968) que propunha uma Gramática de Casos cujo traço distintivo em relação ao modelo chomskyano de então era afirmar que, no nível sintático mais profundo, a sentença se constituía de um predicador e de uma série de papéis temáticos caracterizáveis semanticamente chamados casos. Sua motivação nasceu da incapacidade do modelo do Aspects (CHOMSKY, 1965) de representar simultaneamente informações categorial e temática. Expressões como na sala, em direção à lua, no dia seguinte, de maneira descuidada, com uma faca afiada e pelo meu irmão são, simultaneamente, SPs e indicadores de lugar, direção, tempo, maneira, instrumento e agente, respectivamente. A solução proposta por Fillmore (1968) era reanalizar os SPs, em uma estrutura sintática subjacente, como uma sequência composta por um SN e uma preposição atribuidora de caso. Nesse 66 sentido, a metodologia de Fillmore era semelhante à dos Semanticistas Gerativos, uma vez que buscava a motivação para a estrutura sintática no sentido. Segundo Fillmore, a EP “é um nível intermediário artificial entre a ‘estrutura semântica profunda’, passível de ser descoberta empiricamente, e a estrutura de superfície, acessível pela observação; um nível cujas propriedades tem mais a ver com compromissos metodológicos dos gramáticos do que com a natureza das línguas humanas” (FILLMORE, 1968). A partir dessa postulação, Fillmore não apenas rompe com o modelo gerativista proposto pela Teoria Padrão, como, ainda, inaugura as bases de todas as vertentes da Gramática das Construções, ao propor uma relação direta entre forma de superfície e sentido. Nesse caminho, afasta-se das abordagens derivacionais para a morfossintaxe, segundo as quais variações na formas formas de superfície de sentenças podem se explicar por regras transformacionais – ou, mais recentemente, de movimento – que se aplicam a uma mesma estrutura profunda. A Gramática das Construções, portanto, por ter suas raízes nos trabalhos de Fillmore (1968) e também nos de Lakoff (1987) sobre a existência de categorias radiais na gramática, refere-se a um conjunto de teorias que, afastando-se das abordagens derivacionais para a morfossintaxe, partem do pressuposto de que a gramática de uma língua é composta por um conjunto de construções – pareamentos de uma forma de superfície a um significado – relacionadas entre si em uma rede de motivações sintático-semânticas. Segundo Goldberg (2006, p. 214), entre as abordagens construcionistas para a gramática, destacam-se a Gramática Cognitivista das Construções (GOLDBERG, 1995; 2006), a Gramática Cognitiva (LANGACKER, 1991), a Gramática das Construções Radical (CROFT, 2001) e a Gramática das Construções de Unificação (FILLMORE & KAY, 1999). Apesar de se distinguirem quanto ao foco das análises – em especial na última abordagem, muito mais focada na formalização das construções do que as outras três, propostas, por sua vez, para ressaltar a plausibilidade psicológica das construções –, todas as abordagens compartilham um conceito de construção que pode ser postulado como se segue: Qualquer padrão linguístico é reconhecido como uma construção desde que algum aspecto de sua forma ou função não seja estritamente previsível a partir de suas partes componentes ou de outras construções cuja existência seja reconhecida. Ademais, padrões são armazenados como construções, mesmo que sejam 67 estritamente previsíveis, desde que ocorram com frequência suficiente. (GOLDBERG, 2006, p.5) Dessa forma, construções são definidas como pareamentos de forma e sentido que, tendo sido aprendidas pelo falante, compõem um repertório dos padrões de licenciamento dos usos linguísticos. Em outras palavras, a Gramática das Construções se afasta da tradição gerativista para o tratamento da morfologia e da sintaxe, na medida em que, logo de início, renuncia a distinção entre esses dois níveis de análise linguística, passando a adotar uma visão de continuidade entre ambos: em uma abordagem construcionista, morfemas, itens lexicais, expressões idiomáticas, padrões de estrutura argumental e, em última análise, até mesmo gêneros textuais são tratados como construções. De maneira relacionada, a Gramática das Construções também nega a distinção de papéis atribuídos ao léxico e à sintaxe. Nessa abordagem, não há lugar para a ideia, cara ao Gerativismo, de que, enquanto os itens do léxico definem a grade de papéis argumentais com base em regras semânticas, é da sintaxe, módulo gerativo, a responsabilidade de organizar a maneira como tais argumentos se estruturam na sentença. Em decorrência desse fato, outra propriedade marcante das abordagens construcionistas se manifesta na negação da existência de estruturas formais subjacentes à linguagem. Em outras palavras, na Gramática das Construções, as análises devem levar em consideração a relação entre a forma de superfície e o sentido ou a função desempenhada por essa forma. Por fim, as abordagens construcionistas têm um compromisso com a descrição e explicação de todas as construções de uma língua, e não apenas com aqueles padrões sintáticos absolutamente regulares. Nesse sentido, Salomão (2009, p.36) afirma que a Gramática das Construções, por considerar o uso linguístico, tem perfil inequivocadamente maximalista em dois sentidos: “primeiro, com relação à natureza do que seja conhecimento da linguagem; (...) segundo, porque, regressando às raízes semioticistas da linguística (...), a gramática se apresenta como uma rede de signos.” 68 4 MOTIVAÇÕES SINTÁTICO-SEMÂNTICAS DA CONSTRUÇÃO DE ASPECTO INCEPTIVO DO PORTUGUÊS Tomando como base a perspectiva de que se estuda uma construção inceptiva, este capítulo tem como intuito analisar as relações sintáticas e semânticas12 dela e suas confluências com outras construções que permitiram que verbos não canônicos passassem a figurar na CI. 4.1 A Construção de Aspecto Inceptivo Travaglia (1985), ao apresentar outras perífrases inceptivas13, que não as formadas pelos verbos começar, passar e principiar, (cf. TRAVAGLIA, 1985, p.270), lista as seguintes: 12 Mais correlações semânticas entre V1fin e V2inf serão abordadas no capítulo 5. Travaglia (1985, p.270-274) afirma que a noção inceptiva dessas perífrases, como ele as nomeia, parece ser produto de uma combinação de fatores, tais como a flexão modo-temporal do verbo auxiliar e a presença de adjuntos adverbiais. Afirma, ainda, que, em muitos casos, tais perífrases apontam também para o aspecto iterativo. Na seção dedicada ao estudo do aspecto, essa discussão foi despertada e, neste momento, considerar-se-ão todas as instanciações listadas por Travaglia como inceptivas. 13 69 Pôr-se Garrar ou agarrar Deitar Desatar Pegar Despejar Cair +a + infinitivo +Para +Infinitivo Romper Desandar Entrar Disparar Danar Destampar Dar Quadro 8: Perífrases inceptivas, segundo Travaglia (1985) Nesse quadro, é possível observar que aquilo que Travaglia agrupa sob o rótulo “Outras perífrases inceptivas” são, na verdade, casos em que o verbo que ocupa a posição de V1fin não abarca, em seu sentido pleno, a noção de início, começo da ação ou processo. Tais aglomerados sintaticamente organizados, rotulados por Travaglia como perífrases verbais, podem ser encarados, em uma perspectiva construcionista, como instanciações de uma construção cujo esquema sintático caracteriza-se pela presença de um verbo finito, seguido, opcionalmente, por uma preposição e, obrigatoriamente, por um verbo no infinitivo. Essa análise encontra respaldo na proposta de Goldberg (1995; 2006), segundo a qual, as unidades da língua são pareamentos de forma e sentido, os quais não são estritamente previsíveis a partir do conhecimento do restante da gramática, ou são frequentes o bastante para serem armazenados como tais. Como as perífrases apontadas acima por Travaglia são pareamentos de forma e sentido, 70 passaremos a estudá-las14 como uma construção marcadora de aspecto inceptivo. Pegar é um dos verbos que pode ocorrer nessa construção. Veja-se um dado de ocorrência recorrente da construção com V1pegar no português atual do Brasil retirado do Córpus de Fala Mineira Conceição de Ibitipoca: (12) INQ.: Fica, acho ‘ruim, né? que aqui? igual... ; chegou um visitante e a entrevista foi interrompida; igual tem muitos aqui em Ibitipoca que não tem.. um ganho cum turista... então aquês que num tem fala muito mal dos que tem, né? aqui é tipo de povo de inveja, né? Ibitipoca tamém, tem muita inveja, porque ponto de turista ocê já viu, né? nóis tá incompreensivel ingraçado, né? que ninguém vê o lado do oto, né? assim... aqui se pessoa lavai cresceno, né? tem muitos que dá aquele tipo de inveja, pega a falá que o cara tá usano vendê maconha, sai muita conversa fiada aqui nessa parte... INQ.: Então o pessoal que não mexe reclama mais... INF.: Recrama, xinga... que Ibitipoca... lugá que não é de vivê mais (IBI-JO) Como se pode notar a partir da leitura do fragmento acima, o entrevistado, ao apresentar exemplos de comportamentos motivados pela inveja, afirma que muitas pessoas, que se deixam contaminar por ela, começam a fazer considerações ofensivas à honra daquele de quem têm inveja. A noção de incepção é marcada pelo uso do verbo pegar, acompanhado de preposição a e do verbo infinitivo. Tendo em vista esse dado, podemos dizer que a Construção Aspectual Inceptiva do português atual pode ter seu esquema sintático definido da seguinte forma: [(SN) V1fin (Prep) V2inf ] Inicialmente, podemos dizer que a contraparte formal dessa construção se caracteriza pela presença de dois verbos intercalados por uma preposição, sendo que o verbo auxiliar é predeterminado por suas características semânticas para compor a construção, as quais serão caracterizadas mais adiante. A semântica do segundo é 14 Não foram pesquisados os usos com dar por eles não terem figurado nos dados que motivaram a pesquisa. Para um estudo aprofundado sobre esse preenchimento, leia Salomão (1990), que trata da construção aspectual com dar como incoativa habitual. Nesse mesmo sentido, Castilho (1968), ao fazer a descrição das Construções Aspectuais do Português, destaca que em “dar para” incidem dois aspectos: inceptivo e iterativo. 71 diversificada, havendo, entretanto, motivação para a ligação entre V1fin e V2inf, o que poderá ser observado no capítulo 415. Antes de nos atermos aos aspectos morfossintáticos que perpassam essa construção, cabe apresentar aqui uma breve discussão sobre auxiliaridade. Isso porque, neste trabalho, abordamos o V1fin como um verbo auxiliar, tendo em vista as características que lhe são atribuídas dentro da construção. Diversos linguistas buscaram discutir a concepção do que seria um verbo auxiliar e, ao levantarmos estudos sobre o tema, notamos que havia vastas e divergentes concepções do termo. Segundo Heine (1993), o termo auxiliar é associado a um conjunto limitado de domínios nocionais, em especial aqueles referentes a tempo, aspecto e modalidade. Esse autor formulou hipóteses relativas ao estatuto dos auxiliares, quais sejam: (i) Hipótese da autonomia, segundo a qual os auxiliares seriam uma categoria diferente da de verbo ou de outras, visto que não têm propriedades sintáticas semelhantes àquelas exibidas por verbos principais (PALMER, 1979, apud HEINE, 1993). (ii) Hipótese do verbo principal, de acordo com a qual os auxiliares são verbos subjacentes ou com comportamento desviante. Auxiliares e verbos fariam parte de uma mesma categoria lexical (ROSS, 1969, apud HEINE 1993) ou se constituiriam em um subconjunto especial da categoria de verbo (PULLUM & WILSON, 1977, apud HEINE, 1993). (iii) Hipótese da gradiência, que prevê a inexistência de limites exatos entre verbos auxiliares e principais, já que ambos integram um continuum. Os defensores dessa hipótese ligam-se não apenas a uma perspectiva sincrônica, mas também se utilizam da análise diacrônica para explicar a natureza dos auxiliares. 15 Inicialmente, imaginou-se que V2inf não poderia ser preenchido por V2inf estativos e aspectuais. Para averiguar esse fato, foi realizada uma extensa análise de dados diacrônicos, o que nos levou à formulação de novas hipóteses sobre as escolhas verbais na construção, como poderá ser conferido no capítulo 4. 72 Esta visão, apresentada na hipótese da gradiência, é defendida por Heine (1993), que define o comportamento dos auxiliares como associados a uma cadeia de verbo para tempo-aspecto-modo (verb-to-TAM). Heine (1993) também defende que os auxiliares advêm de expressões concretas que passam a apontar para conteúdos gramaticais normalmente relacionados a tempo, aspecto e modo. A fim de identificar os verbos auxiliares, Heine (1993) define critérios que contribuiriam nesse sentido. Os auxiliares: (i) tendem a ser compostos por expressões que exprimem domínios nocionais, especialmente de tempo, aspecto e modalidade; (ii) constituem um conjunto limitado de unidades linguísticas; (iii) não são claramente lexicais nem claramente gramaticais; (iv) podem ser usados como verbos principais em alguns contextos; (v) expressam funções gramaticais, mas exibem, por vezes, morfossintaxe verbal; (vi) integram paradigmas altamente defectivos; não podem ser apassivados; não têm forma imperativa; não podem ser independentemente negados; (vii) não podem ser o predicado principal (semântico) da oração; (viii) têm duas variantes livres (clítico e afixo); (ix) tendem a não ser acentuados ou são incapazes de receber contraste enfático; (x) tendem a ser cliticizados ou são necessariamente clíticos; (xi) demarcam informação morfológica do predicador principal (pessoa, número, tempo/aspecto/modalidade, negação, sujeito, concordância, evidencialidade etc); tendem a marcar concordância com o sujeito; (xii) não constituem orações não finitas ou imperativas; (xiii) não podem ser regidos por outros auxiliares; (xiv) não têm um sentido seu ou não contribuem para o significado da sentença; são “sinsemânticos” e “sincategoramáticos”; (xv) tendem a ocorrer separados do verbo principal; (xvi) não podem ser nominalizados nem ocorrer em compostos; (xvii) tendem a ocorrer numa ordem fixa ou posição fixa dentro da oração, a depender da ordem SVO ou VSO; 73 (xviii) tendem a se apresentar associados a um verbo principal numa forma não finita, podendo este estar ligado a uma morfologia locativa. É possível perceber que as propriedades apresentadas por Heine são generalizadas e nem todas aplicáveis ao português. Talvez porque não possam ser tomadas como conceitos universais, tendo como base uma lista tão extensa. Caso nos atenhamos ao primeiro critério apresentado, da marcação nocional de tempo, modo e aspecto, o qual é defendido como parâmetro de auxiliaridade por outros autores, poderíamos, de imediato, definir os V1fin da CI como auxiliares. No entanto, não podemos ignorar a extensa bibliografia atrelada a esse conceito para o português. De acordo com Vieira & Brandão (2004), o verbo auxiliar opera sobre um predicador verbal no infinitivo, formando uma unidade complexa. Ademais, as autoras afirmam que auxiliares são unidades linguísticas consideradas não-nocionais, lexicais que se combinam com um verbo formando uma locução em torno da qual se organiza a predicação. Assim como Heine, elas admitem que a auxiliarização é associada a um processo de gramaticalização que atua sobre formas verbais e implica a transferência de extensões de sentido e do uso dessas formas da categoria lexical para uma categoria gramatical. Isso é o que ocorre com os preenchimentos de V1 na CI, afinal todos eles perdem neste contexto seu estatuto lexical e passam a figurar como verbos gramaticais, marcadores de aspecto inceptivo. Campos & Longo (2002), ao analisarem as perífrases de tempo e aspecto do português falado, ressaltam que A auxiliaridade pode ser definida como uma relação de complementação entre duas formas verbais; o auxiliar, como forma relacional que toma por complemento um verbo base (cf. RADFORD, 1997, p.65-66); e a perífrase ou locução verbal, como um complexo unitário que reúne um verbo e uma forma de infinitivo, gerúndio ou particípio numa só predicação. (LONGO & CAMPOS, 2002, p. 447) Como os conceitos de auxiliaridade são bastante difusos, tanto Vieira & Brandão (2004) quanto Campos & Longo (2002) propõem parâmetros básicos para a identificação de sequências em auxiliação, os quais serão apresentados a seguir. 74 Parâmetros de auxiliação segundo Vieira e Brandão (2004) 1. Operação/atuação sobre outro verbo num domínio predicativo; 2. Alteração/perda semântica em relação à acepção do verbo lexical; 3. Desligamento semântico entre verbo auxiliar e sujeito gramatical: é o V2 que seleciona o sujeito; 4. Unidade significativa/fusão semântica com verbo predicador numa única predicação (o primeiro elemento desempenha função gramatical); 5. Impossibilidade de co-ocorrência da parte da sequência introduzida por V predicador com oração completiva finita, ou seja, a segunda parte da oração não pode ser substituída por oração completiva; 6. Uma só posição sintática de sujeito com um só referente-sujeito para as formas verbais da unidade complexa; 7. Impossibilidade de substituição da estrutura sintagmática introduzida por verbo predicador por uma forma nominal demonstrativa; 8. Ocorrência de complementos clíticos em adjacência ao auxiliar; 9. Impossibilidade de incidência de operador de negação sobre o domínio do Vpredicador; 10. Impossibilidade de circunstante temporal que afete apenas o domínio do Vpredicador: não admite dois modificadores de tempo totalmente distintos; 11. Comportamento do Vauxiliar e do Vauxiliado diante das transformações passiva e interrogativa: não afetam os verbos individualmente, mas os dois como se de um só se tratasse. Quadro 9: Parâmetros de auxiliação segundo Vieira e Brandão (2004) Segundo Vieira e Brandão (2004) – vide Quadro 9 –, há elementos que não revelam ter todas as características apresentadas para os auxiliares. Esses seriam designados de semi-auxiliares. Para tratar dessa classe, as autoras traçam uma escala de auxiliaridade, conforme o grau de afastamento da categoria de Vpredicador e a aproximação da categoria de Vauxiliar. 75 Dos cinco graus de afastamento, as autoras citam preenchimentos da CI como presentes no 3º grau. Segundo Vieira & Brandão (2004, p.82-83): 3º grau de afastamento do polo de auxiliaridade PODER, DEVER modais em construções com Vpredicador no infinitivo. ESTAR, FICAR, ANDAR, VOLTAR, TORNAR, COSTUMAR, CONTINUAR, PERMANECER, COMEÇAR, CHEGAR, PEGAR, TERMINAR aspectuais (acurativos) seguidos da preposição a em construções com Vpredicador no infinitivo. (...) Propriedades que os fazem diferentes dos membros típicos da categoria de auxiliar: - O critério de desgaste semântico não se verifica da mesma maneira nessa subclasse de verbos. Apesar do papel instrumental que assumem e do valor de intencionalidade/modalidade que marcam, mantêm muitos dos traços de seu valor lexical, de seu significado objetivo. - Isso pode ser percebido até pelo fato de algumas extensões de uso partilharem da função de impor restrições de seleção quanto à natureza aspectual do Vpredicador sobre o qual operam. Não é qualquer Vpredicador que pode ocorrer com esses Vauxiliares. - Outro aspecto que corrobora isso é o fato de que, a depender do efeito de sentido pretendido pelo usuário, verbos como DEVER e PODER, por exemplo, podem assumir, e até condensar num mesmo contexto enunciativo, mais de um significado distinto. (...) - O operador de negação pode atuar sobre o Vpredicador no infinitivo. - São permitidos complementos clíticos em adjacência ao Vpredicador no infinitivo. Quadro 10: Afastamento do polo de auxiliaridade A princípio, segundo essa classificação, os V1 da CI seriam semi-auxiliares. Relativamente ao critério do desgaste semântico, associado à escolha do verbo principal, a presente pesquisa corrobora essa ideia ao verificar que preenchimentos verbais como romper se associam, em grande parte dos dados, a verbos emotivos, sendo que essa associação não é aleatória, mas resultado de resquícios semânticos de V1 romper que o fazem associar-se ao V2 emotivo. No entanto, vemos algumas incongruências no que tange a essa classificação, tendo em vista as justificativas de distanciamento de auxiliaridade apresentadas por Vieira e Brandão (2004). Primeiramente, no que diz respeito ao fato de os verbos poderem condensar ou assumir sentidos diferentes, sabe-se que isso ocorre com mais frequência ao se observarem diacronicamente as construções, visto que se nota que o V1 ainda passava por um processo de mudança semântica, como será explicitado em 4.3. A possiblidade de um contexto ambíguo, em que o V1 da CI possa assumir sentido inceptivo ou ser 76 confundido com um verbo pleno em estrutura coordenada, torna-se rara na análise sincrônica. Além disso, o fato de o operador de negação poder atuar sobre o Vpredicador não foi observado nos dados levantados da CI. Dados como Ele não pegou a falar soam como aceitáveis, apesar de não frequentes. Porém, sentenças como Ele pegou a não falar soam agramaticais. Isso colabora com a ideia de que os V1 da CI não estão num polo tão afastado relativo ao processo de auxiliaridade. Campos & Longo (2002), com o mesmo intuito de tentar delinear as características definidoras do auxiliar verbal, propõem alguns critérios de identificação, quais sejam: (i) A impossibilidade de desdobramento da oração, visto que os verbos auxiliares se associam com o verbo principal formando um composto indissociável; (ii) A existência de sujeito único, já que a perífrase forma um complexo unitário com apenas um argumento externo, cujos traços semânticos e papel temático devem ser compatíveis com a base; ou seja, há um sujeito para os dois verbos; (iii) A detematização: perda, sofrida pelo auxiliar, da propriedade de atribuir papéis semânticos ou temáticos aos elementos nominais com que se combinam. Esses critérios, pensados tendo em vista as perífrases aspectuais do português, encaixam-se no estatuto da CI. O V1 da CI cumpre todos os parâmetros indicadores de auxiliaridade propostos por Campos & Longo (2002) e, portanto, são tomados como base para a caracterização dele como auxiliar. Ressalte-se o fato de que a CI constituise em uma estrutura de alçamento de sujeito, na qual o papel de participante do argumento externo do verbo é atribuído por V2, sendo este argumento alçado à posição de sujeito de V1, com o qual concorda16. Tome-se como exemplo desse fato a impossibilidade de o sujeito de V2 ser diferente do de V1, em sentenças como *Ele 16 Papel de participante é o termo utlizado por Goldberg (1995) para designar os papéis semânticos atribuídos pelos verbos predicadores a seus argumentos. A autora reserva o termo papel temático aos papéis atribuídos por uma construção de estrutura argumental. Mais especificamente, para o caso da CI, como já se pontuou anteriormente, o V2inf traz para a construção sua especificação de estrutura argumental, a qual também pode ser tratada construcionalmente. Assim, o argumento alçado à posição de sujeito da CI recebe o papel de participante definido pelo V2 e o papel temático da construção de estrutura argumental na qual o V2 figura. 77 rompeu a você chorar. Ademais, conforme aponta Fernandes (2012), o fato de os auxiliares serem detematizados acarreta, necessariamente, os critérios (i) e (ii) acima. Por fim, é relevante citar também que Lobato (1975), ao reconhecer a multiplicidade de rótulos atrelados ao conceito de verbo auxiliar, propõe uma hierarquização de critérios, sendo que, caso haja aplicação de todos eles, seria adequado o uso do termo. Caso contrário, visto que ele seria tomado em seu sentido amplo, seria conveniente designá-lo auxiliante. No Quadro 11, será possível analisar quais critérios seriam, portanto, adotados para tal classificação. Ao examinar os critérios de Lobato (1975), vemos que, assim como nos demais, a lista de parâmetros para a identificação de um verbo auxiliar é muito extensa, o que acaba por restringir a classe. Sendo assim, há imprecisão de critérios específicos para a delimitação dos auxiliares, visto que eles são vastos, abrangentes e, por vezes, contraditórios. Todavia, a listagem de critérios que retoma e sintetiza mais adequadamente as noções presentes nos auxiliares do português é a de Campos & Longo (2002). Por isso, essa foi a perspectiva adotada neste trabalho, justificando-se a caracterização de V1fin na CI como auxiliares do português. Critérios de auxiliaridade, segundo Lobato (1975) (i) semântico: há perda sêmica do auxiliar, a depender do grau de gramaticalização. (ii) unidade significativa: o auxiliar intervém como elemento gramatical e o auxiliado como lexical. (iii) acepção egocêntrica: não há ligação semântica com o sujeito gramatical, mas com o locutor. (iv) forma: o sintagma verbal é composto de uma forma flexionada seguida de uma forma infinitiva, gerundiva ou participial. (v) morfológico: todo auxiliar é defectivo, não admite particípio passado ou imperativo. (vi) ordem: em geral o auxiliar segue imediatamente o verbo principal. No entanto, isso não pode ser visto nas formas arcaizantes por exemplo. (vii) separabilidade: grupo verbal semanticamente uno, formando um todo funcional. Porém, isso não acontece em casos como Ele continua, contudo, a trabalhar. 78 (viii) impossibilidade de substituição de V2 por completiva. (ix) prosódico: o conjunto auxiliar + auxiliado forma um só grupo acentual. (x) frequência de ocorrência: só pode ser considerada auxiliar a unidade verbal muito frequentemente seguida de infinitivo, gerúndio ou particípio. (xi) constituição: o grupo verbal (auxiliar + auxiliante) formam um único constituinte. (xii) apassivação: pertencem ao grupo de verbos suscetíveis de coocorrer com verbo apassivável, havendo relação entre formas ativa e passiva de paráfrase. (xiii) graus de integração: a integração entre auxiliante e auxiliado é uma questão de grau sobre eixo contínuo, indo da menor à maior lexicalização. Quanto maior a escolha, mais lexicalizada seria a unidade. (xiv) extensão do campo de aplicação do morfema: os auxiliares não restringem o sujeito ou o auxiliado. (xv) negativização: uma sequência verbal em auxiliação não pode ser separada por uma negação. (xvi) pronominalização: se o auxiliado puder ser substituído por um pronome, trata-se da ocorrência de dois verbos principais. (xvii) oposição: um grupo verbal composto por auxiliar contém uma contraparte na forma simples. Quadro 11: Critérios de auxiliaridade, Lobato (1975) 4.2 Propriedades Sintáticas da Construção de Aspecto Inceptivo Discutida a atribuição do conceito de auxiliaridade ao V1 da CI, passemos agora a refletir acerca do conceito de transitividade. A eleição desse tema se justifica pela busca, nesta tese, de uma explicação para a variabilidade no preenchimento do slot Prep no esquema sintático da construção. De acordo com Cunha & Souza (2007, p. 26), na gramática tradicional, a classificação de um verbo como transitivo e intransitivo se apoia na presença ou na ausência de um SN objeto exigido pelo significado do verbo. A gramática admite que verbos transitivos podem ser empregados intransitivamente, o que é possível de ser observado no enunciado em que o verbo se insere (cf. CUNHA & SOUZA, 2007, p. 27). 79 Com isso, presume-se que a transitividade não se deve estritamente ao verbo, mas a fatores que ultrapassam o âmbito do sintagma verbal. Said Ali (1964 apud CUNHA & SOUZA, 2007, p. 27) classifica os verbos transitivos como os que costumam envolver um ser agente e um ser paciente. Porém, segundo esse mesmo autor, nem todos os verbos transitivos podem ser assim definidos, já que alguns “não denotam os recipientes dos atos”17. Com isso, considerase uma transitiva prototípica aquela em que o verbo é acompanhado de dois SN, um sujeito agente que provoca a ação e um objeto paciente, que é afetado por essa ação. Portanto, a transitividade pode ser observada de uma perspectiva sintática, considerando a forma da oração (verbo acompanhado de um SN ou de dois), e de uma perspectiva semântica (em que se analisa o elemento afetado pela ação verbal). Nas análises funcionalistas, o conceito de transitividade tem sido caracterizado como uma noção escalar. Segundo Hopper e Thompson (1980 apud CUNHA & SOUZA, 2007, THOMPSON E HOPPER, 2001, p.28), a transitividade deve ser encarada como uma propriedade contínua, escalar, não categórica. Essa relação do verbo e de seus argumentos pode ser observada na oração e a escalaridade é medida por meio de dez parâmetros propostos por Hopper e Thompson (1980). São eles: Parâmetros Transitividade Alta (1) Participantes (2) Cinese (3) Aspecto do verbo (4) Pontualidade Baixa Dois ou mais Um Ação Não ação Perfectivo Não perfectivo Pontual Não pontual Intencional Não intencional do verbo (5) Intencionalidade 17 Transitividade do Como exemplos, são apresentados: ouvir um ruído, pedir dinheiro, escrever uma carta. 80 sujeito (6) Polaridade da oração (7) Modalidade (8) Agentividade Modo realis Modo irrealis Agentivo Não agentivo Afetado Não afetado Individuado Não individuado do sujeito do objeto (10) Individuação objeto Negativa da oração (9) Afetamento Afirmativa do Quadro 12: Parâmetros da transitividade segundo Hopper e Thompson (1980) Hopper & Thompson (1980, 2001), argumentando que a transitividade é composicional e que é uma questão relativa à gramática de toda a oração, e não apenas uma relação entre o verbo e seu objeto, introduziram dez parâmetros de transitividade composicionais. A fim de atestarem que o inglês, na fala, tem baixa transitividade e de mostrarem questões que surgem na tentativa de quantificar a transitividade das cláusulas e suas implicações com o entendimento de suas gramáticas, tomaram corpora de fala como base para a análise da transitividade na fala. Ao abordarem a história da estrutura argumental (HOPPER & THOMPSON, 2001, p.40), esses autores observam que, no inglês, assim como em outras línguas, o estudo da estrutura argumental inclui uma listagem de valências das quais determinados verbos podem participar. Nesse mesmo artigo, os autores demonstram que o mesmo verbo assume transitividade distinta em contextos distintos e que os falantes adquirem o conhecimento do que usar e como usar na língua à medida que aprendem a empregá-la. 81 Eles destacam ainda que a baixa transitividade da língua falada tem sérias implicações para o estudo do que tem sido chamado de estrutura argumental. O que eles notaram é a necessidade de, na observação da fala, moverem-se em direção a uma teoria baseada no que os falantes de fato fazem e no que os dados revelam sobre as formas de os falantes categorizarem e extraírem generalizações a partir do que ouvem e dizem todos os dias (HOPPER & TRAUGOTT, 2001, p.51, 52). Nas seções a seguir, tais generalizações serão buscadas, visando a observar especificamente a CI preenchida em V1 por pegar, como ilustrativa de um processo que envolve a construção18. Para tanto, serão analisados dados do Córpus Conceição de Ibitipoca e do Córpus do Português. O primeiro visa a observar os dados sincrônicos e o segundo será utilizado para observação diacrônica da construção. A escolha de foco em um preenchimento específico da Construção Inceptiva se deve ao fato de que apenas alguns poucos V1 admitem preposições distintas de a, quais sejam: pegar, entrar e danar19. Inicialmente, desconfiamos de que, em virtude da origem dos verbos marcadores canônicos de início, já em seu sentido lexical, a construção teria herdado a preposição de. Ao analisarmos os verbos prototipicamente aspectuais, como começar, iniciar e principiar, vimos que o primeiro, quando seguido de verbo no infinitivo na Construção Inceptiva, apresentava a preposição de. Como esse verbo, em seu sentido pleno, é marcador de aspecto e as primeiras ocorrências da preposição na CI surgiram no século XIV, notou-se que a colocação do de na CI com V1 não prototípico poderia ter sido motivada etimologicamente. Ao analisarmos os dados em que a preposição de figura na CI com V1 não prototípico, notamos que ela surge no século XIX com pegar e entrar e no XX com danar. O primeiro se revela o mais frequente regendo a preposição de na CI durante o século XIX. Por meio dos dados do Córpus do Português, foi possível encontrar 7 dados de pegar de e 4 dados com entrar de na CI nesse século. Isso mostra que a força motivadora pode ser advinda do pegar de para o entrar de. Porém, não é apenas essa pequena diferença no número de ocorrências que leva a crer ser o pegar de 18 O objetivo deste trabalho é focar na Construção Inceptiva. Foi eleito o preenchimento com pegar em V1fin para a observação de ocorrências sintático-semânticas da construção por ele guardar peculiaridades em relação aos outros que ocupam a mesma posição. 19 Como será possível observar, pegar, entrar e danar podem ocorrer seguidos de preposições a e de. 82 motivador do entrar seguido de de na CI. O preenchimento com pegar se destaca também porque esse verbo, dentre os que figuram como V1fin na CI, é o único que, em sua atribuição plena, como verbo transitivo, pode reger a preposição de. Assim, a pesquisa diacrônica mostrou haver não só uma motivação da origem da construção (começar), como também da semântica da preposição para ela e da sintaxe herdada do pegar lexical, o que poderia influenciar, inclusive, os demais preenchimentos da CI (como com entrar e danar). 4.2.1 Estudo de caso: o verbo pegar e seus esquemas de transitividade Conforme foi exposto anteriormente, este trabalho se atém à CI com preenchimento de V1fin por verbos não canônicos. Dentre eles, destaca-se pegar que, em alguns contextos, rege a preposição de na CI. Ao serem estudados os seus usos como verbo pleno, foi possível constatar que a co-ocorrência da preposição de na CI pode ter uma origem anterior, pautada na transitividade do pegar pleno. Esta pode, inclusive, ter motivado a presença dessa preposição em outros preenchimentos da CI. Por isso, fez-se relevante considerar as relações de transitividade, relacionadas anteriormente, que envolvem o pegar, a fim de observar a rede de motivações na CI. A transitividade, como um fator variável que compreende características sintáticas e semânticas dos participantes da ação, está correlacionada à mudança semântica do verbo. Isso pode ser verificado, primeiramente, em dicionários de nossa língua. Vejamos o que nos revela o dicionário Houaiss da língua portuguesa sobre as valências e sentidos do verbo pegar: Pegar: v. (sXIV) 1 t.d. e t.i. segurar; prender segurando <p. a (ou na) xícara> <pegou o ladrão> <p. pelo pé> 2 t.d.bit.int. e pron. fixar(-se), aderir, colar <p. o papel (à parede)> <o feijão pegou (no fundo da panela)> <este papel não pega> <a roupa pegava-se ao corpo> 3 int. criar raízes <a roseira finalmente pegou> 4 int. firmar-se, estabilizar-se, ter continuidade <essa moda pegou> 5 int. começar a funcionar, dar a partida <o carro custou a p.> 6 t.d. alcançar, encontrar, atingir <ele não pegou o espetáculo no início> <o carro deles, mais rápido, nos pegou logo> 7 t.d. ir buscar, apanhar (algo ou alguém) <vou p. a chave> 8 t.d. adquirir, assumir, passar a ter <p. um mau hábito> 9 int. transmitir-se por contato <o fogo pega facilmente no mato seco> 10 t.d.bit.int. e pron. adquirir ou transmitir(-se) [doença] por contágio <pegou uma gripe> <p. parotidite da (ou na) namorada> <um vírus que (se) pega facilmente> 11 t.d. e t.i. aceitar ou começar a fazer (algo) <p. o (ou no) serviço> <pegou uma tradução para entregar em março> 12 pron. apegar-se, valer-se de, agarrar-se (a algo ou alguém) <ele se pega por horas com qualquer pessoa> <pegou-se ao parecer do especialista> 13 t.d. conseguir, obter, alcançar <pegou um lugar na frente> 14 t.d. captar (som e/ou imagem) <o rádio não pega a FM fora da cidade> 15 t.d. ganhar, receber <pegou uma fortuna na loteca> 16 t.d. surpreender, encontrar 83 <pegou a mulher em flagrante> <a notícia me pegou desprevenido> 17 t.d. embarcar em (veículo) <pegou a moto e saiu> 18 t.d. seguir por (caminho ou direção) <vou pegar a rua da esquerda> 19 t.d. B infrm. ir a (determinado lugar) por lazer ou diversão <p. uma praia> 20 t.d. compreender, perceber <esse menino pega tudo o que ouve> 21 t.d. abranger, incluir, compreender <o programa do curso não pega o Modernismo> 22 t.i. ser contíguo, entestar, comunicar-se <as plantações de café pegavam com as de soja> 23 pron. brigar, desentenderse <pegaram-se de (ou aos) socos> 24 t.d. ser condenado a <pegou dez anos de cadeia> 25 int. apresentar dificuldade <os preços pegam neste negócio> 26 int. ser aceitável, razoável ou plausível <essa desculpa não pega> pega pra capar grande tumulto ger. com agressões físicas • p. bem B infrm. ser (gesto, comportamento, dito) bem recebido <pega bem levar flores para a anfitriã do jantar> • p. de empunhar, segurar <pegou da faca e atacou o desafeto> • p. mal B infrm. ser (gesto, comportamento, dito) mal recebido <pega mal falar alto em recintos elegantes> • é p. ou largar fraseol. expressa urgência na decisão, ger. sobre uma compra ou venda <o preço é este; é p. ou largar> gram a) no Brasil, este verbo tb. é empr. como auxiliar, com a prep. a mais o inf. de outro verbo, indicando 'início ou insistência de ação' (aspecto incoativo) [ver aspecto ling]: pegou a chover que não acabava mais; b) apresenta duplo part.: pegado, pego \ê ou é\ etim lat. pico,as,ávi,átum,áre 'impregnar(-se) de breu ou piche; ter em si, trazer para si' sin/var ver sinonímia de colar, prender, segurar e tomar ant despegar; ver tb. antonímia de tomar e sinonímia de soltar hom pega(3ªp.s.) / pega(s.f., s.m., s.2g., interj. e adj.2g.); pega \ê ou é\ (f.part.irreg.) / pega \ê\ (s.f., s.m. e adj.2g.); pegas(2ªp.s) e pegas \ê ou é\ (f.pl.part.irreg.) / pegas \ê\ (s.m.2n. e pl.pega \ê\ [s.f.s.m. e adj.2g.] e Pegas \ê\ (antr.); pego(1ªp.s.) e pego \ê ou é\ (part.irreg.) / pego \é\ (s.m.) e pego \ê\ (s.m.) Fonte: HOUAISS Eletrônico, Editora Objetiva, 2009. Como é possível notar na descrição de usos e significados do pegar pleno, há casos em que a valência distinta implica a semântica também diferente, e há outros em que há distinção da valência sem alteração da semântica. O verbo pegar, na maior parte de suas ocorrências, revela-se como transitivo direto20. Esse é o caso de: (13) Nessa hora, o homem pegou o copo de uísque e o quebrou na mesa. (CP16.19Or:Br:Intrv:ISP) Se levarmos em conta a proposta de Hopper e Thompson (1980) para a transitividade, apresentada resumidamente no Quadro 11, é possível notar que, em (13), as características da oração atribuem a essa construção com pegar (SN V SN) um alto grau de transitividade, atendendo a todos os parâmetros propostos. Como se nota, há dois participantes (o homem e o copo de uísque) e pegar instaura-se como ação. O aspecto é perfectivo e a ação expressa é pontual. O sujeito é intencional e agentivo, uma vez que realiza uma ação sobre um objeto paciente e inanimado (o copo de uísque), o qual é individuado. A polaridade neste dado é afirmativa e a ação realizada apresenta modo realis. 20 Será feita uma análise de outros dados, não pertencentes à CI, para atestar a relação existente entre a transitividade de pegar no sentido pleno e desse mesmo verbo ocupando a posição de V1fin na CI. Para tanto, foram levantados alguns dados no Córpus do Português e suas relações numa rede de motivações. 84 A análise do conjunto dos parâmetros permite a proposição de que o grau de transitividade é diretamente proporcional ao grau de ancoramento na realidade percebida pelo falante daquela cena evocada pelo verbo. Apesar de, na grande maioria dos dados em que o complemento de pegar é direto, esse objeto se realizar como paciente e inanimado, há casos em que o complemento é também animado, o que ocorre em: (14) O pequeno ria-se de quando em quando, e a cada risada o rosto da mãe tomava uma expressão forte, escultural de felicidade plena e remansosa. A certo momento, pegou a criança pelo tronco, pô-la em pé sobre os joelhos, e começou a sacudi-la como a pregar-lhes sustos. (CP, Memorial de um passageiro do bonde) Ambas as acepções de pegar nos contextos se mostram como análogas ao sentido de segurar. Apesar de o objeto pegado ser [-humano] e [-animado] no primeiro caso e [+humano] e [+animado] no segundo, fica claro na mente do falante o movimento semelhante que se faz por parte do sujeito com relação ao objeto pegado. Nesses casos, temos uma mesma construção sintática [SN V SN] com algumas características semânticas distintas ([+ ou – humano] ou [+ ou - animado]) correlacionada ao mesmo sentido na construção: movimento para um contêiner21. Como sabemos, a construção se caracteriza como sendo um pareamento de forma e sentido (GOLDBERG, 1995; 2006). Poder-se-ia pensar, então, que o sentido das construções preenchidas por pegar pleno fosse alterado caso houvesse mudanças na forma da construção. No entanto, é relevante observar que sintaxes distintas no que tange à preposição selecionada pelo pegar pleno transitivo relacionam-se a uma mesma semântica. Na pesquisa diacrônica realizada no Córpus do Português, notou-se 21 Uma proposta mais aprofundada das categorias de movimento e contêiner pode ser checada em Johnson (1987), Lakoff (2006 [1979]), Lakoff & Johnson (2002) e em Sigiliano (2008). De acordo com Lakoff (1987), o esquema do contêiner é aquele criado para postular distinções de DENTRO-FORA e seria baseado em nossa experiência concreta. Nossos corpos funcionam como contêineres que têm a capacidade de inserir ou expelir algo de ou para dentro do mesmo. A noção de contêiner não é, então, uma conceptualização apenas muito concreta, mas tal recipiente surge com uma noção mais abstratizada, ao se analisarem os dados . Lakoff & Johnson (2002) aceitam tal ideia e afirmam que: “Nós conceptualizamos nosso campo visual como um recipiente e conceptualizamos o que vemos como se estivesse dentro desse recipiente. Até mesmo o termo ‘campo visual’ sugere isso. A metáfora é natural, pois se origina do fato de que, quando olhamos para algum território (terra, chão etc.) o nosso campo de visão define uma demarcação do território, no caso, a parte que podemos ver. (...) Eventos e ações são metaforicamente conceptualizados como objetos, atividades como substâncias, estados como recipientes. (...) Atividades de um modo geral são vistas metaforicamente como substâncias e, consequentemente, como recipientes.(...) Muitos tipos de estados também podem ser conceptualizados como recipientes.” (Lakoff & Johnson, 2002, p.81-85) 85 uma ocorrência numerosa de pegar seguido da preposição em e de, como nos exemplos: (15) D. Luís pegou na carta meio trêmulo e abriu-a. (CP 18:Diniz:Fidalgos). (16) Pegou de uma pedra para espantá-lo. (CP19:Fiv:Br:Rego:Fogo). À primeira vista, a dúvida que surge se refere à relação estabelecida por na carta e de uma pedra. Tradicionalmente, seria na carta um adjunto adverbial de lugar ou um objeto indireto selecionado pelo verbo pegar? De uma pedra é exigido por pegar ou assume a função de adjunto? Além disso, se as construções são pareamentos de forma e sentido, como explicaríamos o fato de que há seleção argumental distinta atribuindo um mesmo conteúdo semântico à construção?22 Como sabemos, no português, tanto os adjuntos quanto os complementos podem ser instanciados por SPreps. A distinção entre essas duas categorias se fez necessária no presente trabalho uma vez que, em algumas ocorrências, como nos dados observados acima, de e em subcategorizavam núcleos de sintagmas nominais, os quais se assemelhavam a complementos do verbo pegar. Neste ponto da análise, tornou-se relevante examinar a natureza do constituinte que se correlaciona a pegar pleno – se complemento ou adjunto – fato que poderia dar pistas sobre a organização e escolha por determinadas preposições específicas entre V1fin e V2inf, na Construção Inceptiva. 4.2.2 Adjunção ou Complementação em relação a pegar pleno: um desafio ao tratamento construcionista da estrutura argumental Mioto et al. (2005, p. 63) comentam que a projeção máxima de VP é completa quando contém todos os argumentos internos e externos do verbo. Assim, para identificar a projeção máxima do VP, é preciso saber quantos argumentos um verbo seleciona. Aqueles constituintes que são licenciados em uma sentença sem serem complemento ou especificador de um núcleo são os chamados adjuntos (MIOTO et al., 22 Seria possível pensar que a distinção na seleção argumental poderia ser motivada por fatores pragmáticos. Entretanto, há dados com pegar em V1fin na CI selecionando diferentes preposições em uma mesma obra literária e em narrações, como poderá ser conferido adiante por meio de exemplos da obra Esaú e Jacó, de Machado de Assis. 86 2005, p.65). Os autores, ainda tratando dos adjuntos, ressaltam que as categorias que normalmente funcionam como adjuntos são preposicionadas. Já com relação ao conceito de complementação, apresentado pelos autores, a identificação pressupõe o conhecimento, por parte do falante, dos argumentos internos e externos do verbo. Ou seja, se o sintagma for selecionado pelo verbo, temos uma relação de complementação. O verbo pegar, da forma como é comumente usado no Brasil hoje, em seu sentido concreto, parece selecionar um sujeito agente e um objeto paciente. Ao pensarmos, entretanto, na sua configuração sintagmática, vemos que ele pode ser constituído por um SN ou por um SPrep. Em se tratando dos últimos, como diferenciar, então, se, de fato, temos um objeto preposicionado ou um adjunto em (15) e (16)? Yasunari, ao investigar a distinção entre adjunção e complementação no japonês, toma como base os estudos de Larson no inglês. Larson (1988 apud YASUNARI, 1991) diferencia inicialmente os argumentos, apresentando-os como selecionados por um predicado. Os adjuntos não são selecionados e funcionam como modificadores. Segundo esse pesquisador, os adjuntos e os argumentos podem ser identificados empiricamente de acordo com diversos critérios, sendo os mais importantes a opcionalidade e a iterabilidade. Para exemplificar o critério da opcionalidade, o autor emprega o seguinte caso: (17) a. John loves Mary. b. *John loves. (18) a. John runs enthusiastically. b. John runs.23 Por meio do exemplo, fica claro o fato de que o verbo to love seleciona um complemento (Mary) e de que o verbo to run é intransitivo, mostrando-se como opcional 23 Nestes exemplos dados pelo autor, há frases descontextualizadas para mostrar que o verbo love exige complemento para ter sua projeção sintática plena. No entanto, no português, pode-se pensar em ocorrências de objetos diretos nulos, como em – Ele ama a mãe? – Sim, ele ama. É relevante notar a existência de um objeto implícito nesse caso. É importante observar também que a escolha lexical do autor foi simplista nesse exemplo, uma vez que “love” é um verbo que sempre exigirá complemento, o que não ocorre com “runs”, que é tipicamente intransitivo. Assim, pela natureza dos verbos, torna-se lógica a observação da exigência ou não de complemento e adjunto. Entretanto, esse não é o cenário que se encontra ao lidar com pegar, por exemplo. Ao se observarem os exemplos como ele pegou o copo ou ele pegou do copo ou ele pegou do copo no armário ou ele pegou no copo no armário, parece haver grande possibilidade de os primeiros sintagmas que se seguem ao verbo serem complementos dele, mas a distinção entre essa função e adjunção não pode ser observada apenas a partir desses exemplos, dada a sua relação bastante lógica. 87 a ocorrência do adjunto enthusiastically. O autor, nos exemplos, opta por inserir palavras de classes morfológicas distintas na posição pós-verbal. A título de exemplificação, fica clara a não exigência de enthusiastically pelo verbo runs. Entretanto, ainda não fica tão clara a aplicação desses critérios aos dados com pegar, visto que sua complementação se dá, em ambos os casos citados, com substantivos, e não com advérbios como ocorreu no exemplo inventado por Yasunari a propósito do inglês. Observem-se os exemplos: (a) Ele pegou na carta. Ele pegou. (b) Ele pegou na carta ontem. Ele pegou na carta. Nos exemplos acima, vemos que o complemento na carta é exigido pelo pegar. Ele só não o seria, caso, contextualmente, houvesse um objeto nulo, em que seria possível a retomada de um sintagma anteriormente mencionado. Enquanto há exigência pelo complemento por parte do pegar, o contrário ocorre com o uso do adjunto ontem, que pode ser eliminado do contexto sem que haja perda de preenchimento dos elementos sintáticos básicos exigidos pelo verbo. Esses exemplos retratariam, com nossos dados e no português, casos semelhantes àqueles apresentados por Yasunari em (17) e (18). Porém, ao aplicarmos a eliminação aos nossos dados reais coletados, não conseguimos ver a independência de pegar com relação àquilo que vem após o verbo. Observem-se novamente alguns exemplos extraídos do Córpus do Português, os quais foram modificados para que sejam realizados os testes propostos: (19) a. D. Luís pegou na carta meio trêmulo e abriu-a. b. *D. Luís pegou meio trêmulo. (20) a. Maurícia pegou de uma das mãos de Sinhazinha. (18TavoraSacrificio) b. *Maurícia pegou. Pensando no critério da opcionalidade e nos exemplos, temos que o elemento pós-verbal é exigido por pegar, portanto, seria complemento desse verbo. 88 Segundo o mesmo autor, o outro critério que ajudaria na distinção entre complementação e adjunção é a iterabilidade. Para isso, ele se vale da iteração de um elemento com um mesmo papel sintático, mais do que a iteração de uma sequência de palavras. Larson usa os seguintes exemplos para comprovar esse critério: I. a. John loves Mary. b. *John loves Mary that boy. II. a. John runs in the morning. b. John runs in the morning during the summer. Nos exemplos (b), houve repetição de elementos com função sintática semelhante, uma vez que Mary e that boy são complementos diretos de Love e in the morning e the summer, adjuntos adverbiais de tempo. Como se nota, (I b) é considerada uma sentença agramatical e (II b) é gramatical, o que ilustra a possibilidade de coocorrência de adjuntos temporais, mas não de objetos diretos. Na tentativa de aplicarmos os conceitos e os exemplos ao português, buscamos, na ferramenta Google e nos corpora coletados, a co-ocorrência de elementos pósverbais como está apresentado nos exemplos de (21) a (23). Contudo, não foi possível encontrar dados concretos. Os que seguem são dados hipotéticos criados com o propósito de fomentar a discussão que é travada: (21) * D. Luis pegou na taça no copo. (22) Ele pegou a taça na prateleira. (23) Ele pegou na taça na prateleira. 24 Em (21), temos a co-ocorrência de possíveis adjuntos adverbiais de lugar ou mesmo de objetos indiretos de pegar. Independente de considerá-los adjuntos ou complementos, vemos que (21) é agramatical. Teríamos a co-ocorrência de na taça e no copo como aceitáveis, caso houvesse uma enumeração, que seria formalmente demonstrada pela presença de uma vírgula entre eles. Porém, esse não é o caso e, portanto, há estranheza ao se ler o enunciado. Em (22), vemos um uso comum de pegar. Nessa construção, a posição de complemento é preenchida por um SN a taça e um SPrep na prateleira. Para refletir sobre o dado apresentado em (23), é preciso 24 Dados (21) a (23) inventados a partir de (15) para observação da presença ou não da complementação distinta com V1 pegar. 89 retomar (15), em que concluímos que na carta representa um possível complemento de pegar. Sendo assim, é possível notar também a possibilidade de aceitação dessa construção por meio da qual se torna válida a argumentação de coocorrência, no enunciado, de funções de complemento na taça e adjunto na prateleira. Assim, (23) teria, diacronicamente, o mesmo grau de aceitação do enunciado em (22) sincronicamente, considerando que, em sua história, um dos usos de pegar subcategorizava preposição em. Mas o falante de hoje poderia questionar: se tanto em (22) quanto em (23) temos complementos preposicionados, por que (21) soa como agramatical e (23) não? O que parece marcar a distinção e a aceitabilidade ou não de (23) é o critério semântico dos termos taça, copo e prateleira, já que a prateleira pode abrigar uma taça, assumindo a função sintática de adjunto, fato que torna (23) aceitável na língua e que não ocorre em (21). No português, vemos com frequência também a ocorrência de verbos seguidos por complementos verbais e adjuntos, como é o caso de Ele pegou o copo ontem e ele pegou na bola com as mãos (CP19AcPtEnc) e, também, a co-ocorrência de adjuntos, como em Ele chegava à academia à noite25. Contudo, como foi observado, a iteratividade de complementos verbais não forma sentenças gramaticais. Vejamos novamente o exemplo (23): (23) Ele pegou na taça na prateleira Levando os critérios de Yasunari em conta e voltando ao exemplo (23), poderíamos admitir duas possibilidades: na taça seria adjunto ou complemento indireto no contexto, visto que, segundo o autor, os adjuntos podem co-ocorrer. Dessa forma, vemos, a partir dos dados, que a conceituação ou a tentativa de diferenciação entre adjuntos e complementos não dá conta de identificar como relação de adjunção ou de complementação alguns dados com pegar pleno. No entanto, a necessidade do preenchimento de na taça no exemplo (23) aponta para o fato de esse sintagma ser complemento de pegar. Sag et al. (2003, p. 98), ao diferenciar os complementos dos adjuntos, defende que, apesar das confusões que podem ser geradas pelo fato de ambos os elementos 25 Exemplo inventado para verificação da proposta. 90 sintáticos poderem ser preposicionados, há uma distinção clara entre eles: um sintagma preposicionado funciona como complemento quando a escolha da preposição é idiossincraticamente restringida por outra palavra, como um verbo, por exemplo. Assim, SPreps que são obrigatoriamente selecionados por um núcleo podem ser chamados de complementos, enquanto os adjuntos são opcionais. Sag et al. defendem a existência de SPreps que podem ocorrer com os mais diversos verbos e que são iterativos. Esse perfil se adéqua ao que é chamado modificador. Dessa maneira, os autores intuem que os complementos referem-se aos elementos essenciais na situação descrita pela sentença, enquanto os modificadores redefinem a descrição da situação. Sag et al. destacam ainda a dificuldade em se traçar as diferenças entre os complementos e os adjuntos, dizendo que há casos a respeito dos quais os sintaticistas não entram em acordo, sendo esta diferenciação entre adjuntos e complementos um deles. Essas tentativas de delimitação entre o que seria complemento e adjunto apontam para o fato de que, guardadas as diferenças entre a língua portuguesa e a inglesa, o verbo pegar assume também complementos preposicionados. No português, temos que os adjuntos funcionam como termos acessórios, ou seja, apesar de se juntarem a um verbo ou a um nome para precisar-lhe o significado, não são indispensáveis para o entendimento do enunciado (CUNHA & CINTRA, 2001, p. 149). Vejamos: (24) Nicolau então pegou na Dorotéia Cabral com muito nojo e levou para a cozinha. (CP 19:fic:BR:Castilho:avulsos) Os sintagmas preposicionados na Dorotéia Cabral e com muito nojo parecem desempenhar funções sintáticas distintas na sentença, já que o primeiro parece ser requerido pelo verbo pegar, enquanto o segundo é dispensável ao contexto, funcionando como um termo acessório. Levando em consideração todos esses fatos, temos que o verbo pegar seleciona complementos que podem ou não ser iniciados por preposição, os quais, independentemente disso, assumem, por vezes, o mesmo significado: “segurar algo”. Observe: (25) Arandir pegou a roupa enrolada no chão. (CP 19:fic:BR:Abreu:onde) (26) A moça pegou na imagem do Espírito Santo. (CP 19:fic:BR:olinto:trono) 91 (27) Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa. (CP 18:machado:vara). Nos dados de (25) a (27), é possível verificar que a construção preenchida com pegar pleno tem seu complemento verbal introduzido ou não por preposição. Independentemente dessa questão formal, os verbos assumem semânticas semelhantes. O verbo, nas três ocorrências, poderia ser substituído sem perda substancial de sentido, por segurar. Além disso, nos três, os sujeitos são [+animado] e [+ agente] e os complementos [-animado] e [-agente]. Após considerar esses exemplos, faz-se relevante analisá-los à luz da teoria goldbergiana. Goldberg (1995) aponta para o fato de que uma gramática é governada por quatro princípios cognitivos, quais sejam: (i) O princípio da motivação maximizada, de acordo com o qual se uma construção A é sintaticamente relacionada a uma construção B, então o sistema da construção A é motivado de tal modo que se relaciona semanticamente com a construção B. (ii) O princípio da não sinonímia, segundo o qual se duas construções são sintaticamente distintas, elas devem ser semântica ou pragmaticamente distintas. Esse princípio compreende dois corolários: Corolário A: Se duas construções são sintaticamente distintas e semanticamente sinônimas, então elas não devem ser pragmaticamente sinônimas. Corolário B: Se duas construções são sintaticamente distintas e pragmaticamente sinônimas, então elas não devem ser semanticamente sinônimas. (iii) O princípio da força expressiva maximizada, o qual postula que o inventário de construções é maximizado, tendo-se em vista os propósitos comunicativos. (iv) O princípio da economia, que reza que o número de construções diferentes em uma língua é minimizado, considerando-se o princípio iii. Isso posto, faz-se necessário questionar se uma alteração da preposição que rege um complemento em uma estrutura argumental poderia ser considerada como uma diferença sintática capaz de diferenciar duas construções semântica ou sintaticamente. Há casos em que a mudança de preposição após o verbo provoca a alteração também semântica no verbo. Esse é o caso dos exemplos abaixo com relação aos apresentados anteriormente: (28) Toda essa parte do muro, que pegava com o lavadouro, fora derrubada depois da morte da mamã. (CP 18:queirós:ramires) (29) adoeci...coitadim...levô com boa vontade...depois foi passado uns dia, eu num sei que batida que ele arrumô aí pra lá aí, quebrô a perna, o moço...até ele é irmão do meu genro...meu genro mora na cidade (inint)...ah mia fia, aquilo pra mim foi a maior tristeza, né? coitadim...então ta::...o pai dele pegô com Nossa Senhora da Aparecida, fez a promessa pra ele...então eu pa ajudá a pagá a promessa dele, que fez um benefício pra mim, né? (IBI Apa) 92 Dados como (28) e (29) nos levam a refletir sobre o estatuto sintático-semântico da construção, uma vez que a possível mudança da preposição acarreta a alteração no sentido da construção. Nesse caso, poderíamos dizer que a mudança sintática se correlaciona à mudança semântica. Se pensarmos apenas nos dois dados (28) e (29), vemos que ambos apresentam sintaxe semelhante (no sentido de subcategorizarem preposições) e semânticas verbais distintas, já que em (28) ele parece adquirir o sentido de encontrar e em (29) o sentido de apegar-se a. Em toda essa parte do muro que pegava com o lavadouro, temos sujeito [- humano] e [-animado] e complemento locativo. Já em o pai dele pegou com Nossa Senhora da Aparecida, o sujeito é [+ humano] e [+ animado] e o complemento se refere a uma entidade religiosa, fazendo referência a um sujeito experenciador26. Como já colocado, segundo Goldberg, construções sintaticamente distintas e semanticamente sinônimas precisam ser pragmaticamente não sinônimas. Contudo, nos dados que foram analisados, encontramos variação sintática dentro de uma mesma obra literária com relação ao uso do pegar. Nas obras Esaú e Jacó e Helena, de Machado de Assis, temos: (a) Natividade ficou atônita quando leu isto; pegou da pena e escreveu uma carta longa e maternal. (Esaú, Machado) (b) Nóbrega meteu a mão no bolso do colete e pegou um níquel, entre dous que lá havia. (Esaú, Machado) (c) Aires sorriu e pegou na mão da mocinha, que estava de pé. (Esaú, Machado) 27 Analisando esses dados, somos levados a pensar que o preenchimento pelas preposições em ou de ou mesmo a ausência delas (como em (b)) são irrelevantes no que tange à semântica de pegar. Se levarmos em consideração a semântica das preposições na construção, o em parece mais fortemente marcar uma noção de lugar, enquanto o de, associado ao verbo pegar, assemelha-se a um uso mais arcaico da construção, visto que não é observado atualmente28. Com isso, ficam algumas 26 Foi designado experenciador aquele que manteve relação psicológica com uma entidade religiosa por falta de designação mais adequada. 27 Além de estarem inseridos em mesma obra literária, todos esses dados foram coletados em sequências narrativas. 28 Buscamos no Google diversas instanciações de pegar seguido de de e encontramos apenas exemplos que faziam referências a textos clássicos, o que comprova a ideia de que o uso da preposição de no 93 reflexões sobre os dados: são os usos ou não das preposições intercambiáveis? A preposição contribui semanticamente para a construção? Dados como esses, em que há variação de uso das preposições dentro de uma mesma obra literária, por exemplo, não são raros de se encontrar. Cabe, assim, refletir sobre alguns aspectos com relação à hipótese da não sinonímia de Goldberg, na qual a mudança de preposição parece ser um fato considerado irrelevante, apesar da interferência sintático-semântica que pode causar. Ainda com relação ao estatuto sintático e semântico da construção, outra possibilidade é que tenha ocorrido mudança no uso da preposição nesses casos de complementação. Essa flutuação de preposições poderia ser um indício de mudança. Ou, ainda, há que se considerar a possibilidade de a proposta da gramática das construções parecer não dar conta da proposta da variação, uma vez que temos construções semanticamente, pragmaticamente e sintaticamente semelhantes. É o caso das construções (a), (b) e (c) vistas anteriormente29. Em (28) e (29), notamos uma variação sintático-semântica em que há exigência da preposição com. No contexto de (29), ligado aos traços semânticos do complemento, com vocabulário referente a lugares, o verbo assume o sentido de ser contíguo. O mesmo uso da preposição depois de pegar, no português informal, pode ser associado a entidades religiosas, como é o caso em (29), (30) e em (31)30: (30) Ela pegou com Deus e o menino foi curado. (CAn) O verbo pegar, com a mesma semântica, no português formal aparece como pronominal: (31) Agora pega-te com Deus e repousa. (CP 18:Távora:Lourenço) Esse tipo de construção, assim como outros, em que o pegar assume distintos significados, seja guiado pela mudança de preposição, pronominalidade ou complemento é característica de uma forma que está em desuso no português, podendo, talvez, ser ainda empregada, mas de maneira escassa e por falantes mais velhos. 29 Mostra-se válida, portanto, uma revisão do princípio da não-sinonímia. Nele, seria necessário se apresentarem, por exemplo, os tipos de alterações sintáticas que seriam possíveis numa mesma construção, fazendo alusão à subcategorização ou não de preposições por parte do verbo (cf nota 35). 30 É possível pensar em uma forma cristalizada de “pegar + com”. Esse, porém, não foi o foco da análise deste trabalho. 94 características do objeto que o segue, mostra-se produtivo na língua, mas não constitui o foco do presente estudo. Como já se sabe, pretende-se focar, nesta seção, a construção aspectual com o verbo pegar, mas, para se criarem hipóteses quanto à sua origem, cabe observar as demais construções com preenchimento com verbo pegar, sobretudo aquela que apresenta o significado pleno, lexical de pegar, neste caso, representadas pelos exemplos de (25) a (27). Essa análise se mostrou necessária para o encaminhamento de hipóteses que justificariam a presença de distintas preposições na posição de Prep na CI. A fim de entender melhor o preenchimento dessa posição, faz-se válido debruçar-se sobre as características das preposições, o que será feito em 3.5 e suas relações com as categorias que perpassam a CI (seção 3.4). 4.3 As Categorias de Movimento e Contêiner na Construção de Aspecto Inceptivo Com o intuito de se verificar a proposta de que o preenchimento de Prep não ocorre aleatoriamente, desenvolver-se-á neste trabalho a hipótese de que os V1fin da CI compartilham um esquema conceptual subjacente centrado nas noções metaforizadas de MOVIMENTO e, na maioria dos casos, de CONTÊINER. Lakoff (2006 [1979], p.196), ao tratar da metáfora conceptual, diz que "as categorias clássicas são entendidas metaforicamente em termos de regiões delimitadas ou contêineres. Assim, algo pode estar dentro ou fora da categoria". O autor, nesse mesmo artigo, comenta que, em inglês, o tempo é conceptualizado em termos de espaço (LAKOFF, 2006 [1979], p. 200). Essa informação é relevante para o presente trabalho, uma vez que, no PB, e em várias outras línguas, tempo também é conceptualizado como espaço. Como demonstrado em Sigiliano (2008), o verbo pegar, em seus sentidos lexicais, caracteriza uma polissemia, a qual tem como base as categorias conceptuais de movimento e de contêiner. Pesquisando mais a fundo as outras possibilidades de preenchimento da posição de V1fin na Construção Aspectual Inceptiva, é possível notar que a presença da categoria de movimento e, em grande parte dos casos, da categoria de contêiner são comuns também a essas outras possibilidades de V1. Tal realização é 95 possível de ser analisada por meio da presença das metáforas conceptuais (cf. LAKOFF, 2006 [1979]). Na perspectiva de Lakoff, as metáforas são concebidas como mapeamentos entre domínios conceptuais, constituindo-se em um dos principais processos da cognição humana e, com isso, parte da vida cotidiana. Tomando como base essas propostas, podemos listar algumas metáforas que se mostram presentes nas construções aspectuais: TEMPO É ESPAÇO. MUDANÇA É MOVIMENTO. ESTADOS SÃO LUGARES. (LAKOFF, 2006 [1979], p.211) É interessante notar que os verbos listados por Travaglia como partes de perífrases inceptivas evocam sentidos relacionados às categorias conceptuais de contêiner e movimento, conforme abordado anteriormente. Nota-se que verbos que normalmente instanciam a Construção Aspectual Inceptiva – pôr, deitar, despejar, entrar, dar, entre outros – são verbos que implicam movimento, os quais evocam uma estrutura argumental relacionada a uma cena de transferência entre contêineres, afinal, quem entra, entra em algum lugar e quem dá, dá algo a alguém (quem passa a ser o contêiner abstrato). Além do mais, a Construção Aspectual Inceptiva se caracteriza pela presença da preposição a. Isso também corrobora a análise da base metafórica dessa construção, já que, como veremos, a escolha da preposição a não parece ter se dado de maneira arbitrária. Ao pensarmos nos usos comuns da preposição a acompanhando verbos no PB, vemos que eles ocorrem, no registro formal, ligados, por exemplo, a verbos que indicam noção de movimento direcionado ou mesmo iniciando adjuntos locativos ou antecedendo beneficiário. Esse fato indica, a princípio, que a preposição eleita para compor a construção em análise reforça a noção de movimento, a qual, aliada às metáforas descritas acima, parece despertar na cognição humana a noção da marcação de fase inicial de ocorrência de uma ação, ancorada na noção metafórica de que AÇÕES SÃO MOVIMENTO PARA UM DESTINO. 96 Isso fica mais uma vez evidente ao observarmos a etimologia da preposição a no português. Segundo o dicionário Eletrônico Houaiss (2009), ela se origina da "prep. lat.tar. a, da prep.lat. ad 'aproximação, início de uma ação etc.'". No verbete de ad, do Dicionário Escolar Latino-português, de Ernesto Faria (1956), encontramos, em sua primeira acepção, a preposição ad denotando “aproximação, direção para (geralmente com ideia de movimento)”. Essas informações etimológicas reiteram a hipótese de que a preposição a não é usada de maneira arbitrária na construção. Ela se une à noção de marcação de movimento para reforçar a noção do aspecto inceptivo. Ilari et al (2008), ao analisarem as preposições do PB, mostram que, no que tange aos esquemas cognitivos de tempo, podemos pensar em três modelos diferentes em que intervém a preposição a: 1) Tempo estático, ou seja, localização de um ponto na linha do tempo. Observemos primeiro o tempo pontual: a (4-115) e::uma coisa e outra...e::...agora à tarde vão dois para a escola mas...tem ativi/ os que ficam em casa têm atividades extras... [D2 SP 360] (4-116) ...almoçar depressa para dar tempo de digestão para poder entrar às duas horas... [D2 SP 360] 2) Tempo distributivo: se esta localização for periódica, estaremos tratando de um tempo distributivo. (4-117) Inflação é brabo: de quinze por cento. Foi um susto pro bolso da gente. [Quinze por cento] esse primeiro trimestre, que estava previsto sete por cento ao trimestre. [D2 POA 283] (4-118) O crescimento populacional é de dois vírgula nove por cento ao ano. [D2 SP 255] 97 3) Tempo dinâmico: ocorre quando um período em que a ação se desenrola é recortado pelas preposições de e a: de | |a (4-119) Nós tivemos muita orientação, recreação dirigida do meio-dia a uma e meia. [D2 POA 283] (4-120) Imaginar cada um de nós daqui a vinte anos? [D2 SP 343] Ilari et al, por meio de representações esquemáticas, mostram como a preposição a é associada à categoria de tempo e, por meio de setas, como a noção de movimento parece estar ligada à metáfora TEMPO É ESPAÇO. Esses fatores sugerem que pode haver também uma restrição semântica para o preenchimento da preposição na CI, tendo em vista o fato de que ela ocorre na grande maioria dos dados sincrônicos observados e coletados31. 4.4 O Preenchimento Variável da Posição de Prep No artigo The inherent semantics of argument structure: the case of the English ditransitive construction, Goldberg (2006) argumenta que as restrições semânticas envolvidas numa construção são associadas mais diretamente à construção como um todo do que com a estrutura lexicossemântica dos verbos. Para demonstrar isso, Goldberg critica a proposta de Gropen et al. (1989 apud GOLDBERG, 2006) para os verbos bitransitivos do inglês, que dividiram os verbos em classes semanticamente definidas. A autora analisa essa divisão, mostrando que, de acordo com o que foi proposto, há subclasses que não foram observadas por esses autores e há aquelas que deveriam ter sido classificadas como metafóricas. Goldberg também discorre sobre o paradoxo que Gropen et al. começaram a resolver: a sintaxe bitransitiva pode ser estendida a novos verbos, mas, ao mesmo tempo, não está disponível a todos os verbos de qualquer classe definida (GOLDBERG, 2006, p.405). A autora cita Gropen et al., deixando claro que, em 1989, esses estudiosos mostraram 31 Ocorreram apenas três dados de fala em que não foi preenchida a posição Prep. 98 que as pessoas costumam ser conservadoras no uso dos itens lexicais. Eles demonstraram experimentalmente que as pessoas tendem a empregar os itens lexicais nas mesmas construções em que escutaram aqueles itens sendo falados, mas que eles podem, devido ao efeito de priming32, estender os usos a novos padrões, o que também é sustentado por Bybee (1985 apud GOLDBERG, 2006). Esse fato sugere que as pessoas memorizam padrões sintáticos específicos em que as palavras são usadas. Dessa forma, a idiossincrasia lexical também é esperada. Entretanto, segundo Goldberg, a existência de algum grau de idiossincrasia não deveria ser tomada como fator impeditivo da existência de subclasses de verbos definidas apenas semanticamente, as quais ocorrem nas construções bitransitivas (2006, p. 406). Na verdade, de acordo com Goldberg (2006), a existência dessas classes começaria a explicar o fenômeno da produtividade parcial. Aplicado ao presente estudo, seria possível considerar, portanto, que, ao ouvir pegar sendo usado como um aspectual, o falante é levado a empregá-lo no mesmo contexto construcional. Além disso, em uma segunda fase, o falante, ao escutar a CI com V1fin preenchido com verbos de movimento, tende a estender esse uso a outros verbos de semântica semelhante. Por meio da análise de dados e da apresentação teórica, Goldberg demonstra que, conforme afirmado por Talmy (1977 apud GOLDBERG), Fillmore (mimeo apud GOLDBERG) e Carter (1988 apud GOLDBERG), os sentidos dos itens lexicais podem se adaptar ao sentido da construção. Assim, no caso das construções bitransitivas, não era preciso se centrar apenas no sentido do verbo, mas seria necessário analisar a construção. Como já apresentado, a Gramática das Construções toma as unidades da linguagem como correspondência de forma e sentido, as quais não são estritamente previsíveis do conhecimento do restante da gramática. Tendo em vista isso, é possível dizer que a estrutura argumental bitransitiva pode ser vista como uma construção, pareando forma e sentido. Goldberg (2006, p.411) propõe que a construção existe 32 O efeito de priming ocorre quando o falante, ao tomar contato com um determinado padrão construcional, passa a poder estender a esse padrão a itens lexicais os quais ele presenciou apenas em padrões distintos. Isso justificaria o crescimento de ocorrência de verbos distintos na posição de V1fin, os quais, pela semelhança semântica, são aplicados à CI. 99 independentemente dos verbos individuais que podem nela ocorrer. Como se vê neste trabalho, há diversas instanciações da construção aspectual [(SN) V1fin (Prep) V2inf], uma vez que o V1fin varia (cf. TRAVAGLIA 1985), fato que confirmaria a afirmação de Goldberg com relação aos aspectuais inceptivos do português. Valendo-se de diversos exemplos, a autora afirma que os diferentes sentidos produzidos na construção não estão arbitrariamente relacionados às diferenças nos sentidos dos verbos que entram na construção, ou seja, os itens lexicais que ocorrem em expressões particulares desempenham um papel na decisão de qual sentido da construção será indicado. Assim, as diferenças resultam da integração entre o sentido central da construção e as classes verbais particulares que nela entram. De acordo com Goldberg, ao mesmo tempo em que isso ocorre, os vários sentidos não são previsíveis e devem ser associados à construção33. Além disso, a autora aponta para as restrições semânticas contidas na construção. Isso pode ser exemplificado pelo fato de que o primeiro objeto da construção bitransitiva deveria ser um ser animado e, ainda, um beneficiário ou recipiente volitivo. A proposta de Goldberg para a inserção de novos verbos em uma dada construção é desenhada para dar conta de fenômenos relacionados à aquisição da linguagem, foco dos seus trabalhos. Entretanto, o mesmo raciocínio encontra paralelo também no que tange ao percurso histórico das construções. Nesse sentido, apresentase como muito relevante o trabalho de Bybee (2010) acerca da mudança linguística. Segundo Bybee (2010), há processos cognitivos gerais que contribuem com a mudança linguística. São eles a categorização, o chunking34, o armazenamento enriquecido de memória, a analogia e a associação entre modalidades. Assim como outros teóricos da Linguística Cognitiva (entre eles LAKOFF, 1987), Bybee reconhece o papel central da categorização para a linguagem, visto que o conhecimento linguístico se estrutura de maneira radial a partir da experiência do falante no mundo. 33 A título de exemplo, considere-se a ocorrência: Afundando a cabeça no travesseiro, rompeu a chorar desesperadamente (CP, séc XX). Nessa ocorrência, a construção aspectual encontra-se relacionada a um sentido de início abrupto do choro. Não se pode dizer que o esquema [V1fin (Prep) V2inf] codifique o sentido referido, uma vez que, se a posição de V1 fosse preenchida por começar, manter-se-ia o aspecto inceptivo, mas não o sentido de algo repentino. Por outro lado, também não seria correto atribuir à classe dos verbos que indicam quebra de barreira a propriedade de marcar aspecto. É na interação entre o significado do verbo e do esquema construcional que emerge o significado do exemplo em questão. 34 Optou-se por não traduzir chunking, devido ao uso corrente deste termo, bem como do termo primitivo chunk, nas publicações brasileiras 100 Já chunking se refere ao processo através do qual as sequências de unidades que são usadas juntas se aglomeram a fim de formar unidades mais complexas. Assim, sequências de palavras são armazenadas conjuntamente de modo que possam ser acessadas como uma única unidade. Da interação entre chuncking e categorização, são criadas as sequências convencionais, que podem variar em níveis de analisibilidade e composicionalidade. No que tange ao armazenamento enriquecido de memória, a autora refere-se ao armazenamento de detalhes da experiência linguística, como questões fonéticas, contextos de uso e inferências associadas às proposições. A analogia é o processo pelo qual enunciados inéditos são criados com base em outras expressões previamente conhecidas. A lista de processos de domínio geral também inclui a habilidade de se fazerem associações de distintas modalidades que fornecem a ligação entre forma e significado. Nesse sentido, um estudo diacrônico da CI mostra que um determinado padrão verbal começa a ser preenchido por um V1fin não canônico (por exemplo, romper ou pegar) e passa a ser interpretado pelo falante como um chunk. Como há slots abertos nesse padrão, por analogia, começam-se a preencher as posições de Sujeito e V2inf, por exemplo, com outros elementos. Com isso, criam-se categorias em que associam de forma não aleatória V1fin a V2inf, como poderá ser observado por meio da análise, por exemplo, do V1 romper com V2 emotivo no capítulo 4. De forma semelhante ocorre com os V1fin, uma vez que todos eles contêm, arraigados na sua semântica, a noção de movimento advinda do uso pleno. Tudo isso encontra paralelo também no fato de que a construção V1fin + (Prep) + V2inf pode denotar noções aspectuais diversas, dependendo do verbo que preenche V1. Travaglia (1985, p.328) apresenta perífrases de andar + a + infinitivo e de ficar + a + infinitivo como representantes do aspecto iterativo, por exemplo. Esse fato indica que os sentidos produzidos na construção também decorrem dos significados dos itens lexicais que nela ocorrem. Como foi possível notar em itens já apresentados neste trabalho, há restrição semântica perpassando as Construções de Aspecto Inceptivo, qual seja a necessidade de o verbo que ocupa a posição de Vaux conter, em seu 101 esquema de significado, ao menos a noção metaforizada de movimento; ou, então, de indicar, em seu sentido pleno, a noção de início (como é o caso de começar). A fim de aprofundar essa análise, demonstrando-a, passaremos a apresentar instanciações da Construção Aspectual Inceptiva, nas quais a posição de V1fin é preenchida por pegar, um verbo que, em seu sentido pleno, não apresenta como função a marcação aspectual. Como vimos em Travaglia (1985), há diversos outros verbos que, em seu sentido lexical, não marcam aspectualidade, porém, em um novo uso, como auxiliares, são empregados para marcar essa categoria. Entretanto, o que a análise a ser apresentada a seguir parece indicar é uma outra restrição de preenchimento do esquema [V1fin (Prep) V2inf], a qual se relaciona à preposição. Vimos que, originalmente, a preposição a relaciona-se à categoria do movimento, demarcando, inclusive, destino de um movimento em muitos de seus usos no português. Sabemos, contudo, da existência de outras preposições, as quais são comumente empregadas em construções aspectuais, que também são relacionadas à noção de movimento. Salomão (1990), ao tratar das Construções Aspectuais com Dar, oferece exemplos como: deu pra escrever poesia. Atualmente, é possível verificar também sentenças do tipo: ela deu de falar mal de mim. Ambas sinalizam a marcação aspectual e são construções quase idênticas sintaticamente, embora apresentem preposições distintas. Salomão (1990) aponta para o fato de que o preenchimento preposicional é motivado pelo frame de transferência de posse que a semântica do verbo evoca (dar algo que era da posse de alguém para outro indivíduo). Assim, em dar de ou em dar para, a seleção preposicional não é aleatória. Essas foram usadas justamente pelo fato de estarem associadas ao frame de transferência. De acordo com Faria (1956), a preposição de, no latim, denotava ponto de partida, especificamente: 1) a partir de; 2) saído de; 3) ideia de afastamento; 4) movimento para cima e para baixo. No que tange à construção aspectual preenchida em V1fin pelo verbo pegar, já se sabe que ela é composta principalmente pela preposição a. Entretanto, foram coletados dados de fala que prescindem da preposição: (32) INF.- Saiu (variado)...deu a...assim(varieudade) e febre, né ô?..aí. INQ.- Num sabia que que tava falando? INF.- Não...sabe pri...primero ele tava sabeno mais depois dipois ele pegô variá...aí eles medicô ele direitim lá, ele melhorô. (IBI-AU) 102 Nesse caso, à primeira vista, é perceptível uma semântica comum à Construção Aspectual Inceptiva. Entretanto, a sintaxe é distinta, uma vez que não há presença da preposição nela35. Não é difícil perceber que a preposição a tem sido bastante substituída tanto na fala quanto na escrita do brasileiro por preposições como para, em ou de. Segundo Bagno (2001, p. 145), essa substituição pode ser explicada por não existir distinção fonética entre a preposição a e a preposição combinada com o artigo (à). De acordo com o autor, esse fato pode gerar ambiguidade, como em: recomendei a professora à escola. Nesse enunciado, são permitidas ao leitor/ouvinte duas possibilidades de interpretação "A professora foi recomendada à escola", que seria o verdadeiro sentido a julgar pela leitura da representação escrita da sentença, ou "A escola foi recomendada à professora". Assim, para haver eliminação dessa duplicidade de sentidos, o falante, involuntariamente, substituiria a preposição a por para: A professora foi recomendada para a escola, o que funciona, também, como um recurso para evitar o uso do acento indicativo de crase. Também conforme Bagno, outra hipótese para a substituição da preposição a seria o fato de haver em nossa língua mais dois itens gramaticais com mesma pronúncia: o artigo feminino a e a forma verbal há. Essas são possíveis razões para justificar o fato de o falante do português, em uma mesma construção (a Construção Aspectual Inceptiva) alterar ou mesmo suprimir o uso da preposição entre V1fin e V2inf. No exemplo (32), notou-se a supressão da preposição a e, em diversos outros dados de CI apresentados, observou-se a presença dessa preposição. Apesar de o número de instanciações com a preposição a ser maior, o que é esperado quando se leva em consideração a contribuição semântica que a preposição tem na construção, o fato de haver casos em que a posição de preposição não é preenchida é indício de que algo de diferente ocorre com a Construção Aspectual Inceptiva. Se considerarmos uma construção como um pareamento de forma e sentido 35 Tanto na obra de 1995 quanto na de 2006, Goldberg não deixa claro se diferenças como a presença ou ausência de preposições seriam abarcadas pelo princípio da não sinonímia, ou seja, se a essa diferença sintática deveria corresponder, necessariamente, alguma diferença semântica ou pragmática. Como a autora (GOLDBERG, 1995) prevê entre as distinções pragmáticas a variação de registro, poderse-ia argumentar, inicialmente, que o princípio em questão é respeitado na medida em que a ausência da preposição na construção tende a ser mais característica da fala informal. Entretanto, em uma mesma obra, foi possível observar ocorrência de preposições distintas na CI, como se viu em seções anteriores. 103 e se a olharmos pela ótica do Princípio da Não Sinonímia (cf GOLDBERG, 1995) – segundo o qual construções com sintaxe diferente apresentarão diferenças semânticas ou pragmáticas –, veremos que, nesse caso, o sentido da construção se mantém na marcação semântica de aspecto inceptivo, embora a sintaxe seja diferente. As razões apresentadas por Bagno para se evitar o uso do a poderiam até ser elencadas como possíveis causas para esse fato, porém, uma pesquisa mais acurada, envolvendo a análise de dados diacrônicos, revela que outros fatores podem ser arrolados para explicar diferenças sintáticas motivadas por alteração preposicional, conforme se verá na próxima seção. 4.5 A Construção Aspectual Inceptiva com pegar e os preenchimentos da posição de Prep Ao empreender uma análise diacrônica das construções, buscamos no CP todos os dados com o verbo pegar através dos séculos. Foram identificadas 4.149 ocorrências de pegar. A expectativa era a de encontrar dados de construções aspectuais com pegar apenas seguidas ou não da preposição a. Entretanto, como apresentado anteriormente, já em uma primeira análise dos dados nesse córpus, encontramos dados como estes: (33) Afinal, destacaram-se árvores, plantas, uma paisagem inteira e o Cristozinho, deixou de espreguiçar-se e pegou de andar por entre a mata, com a tranquilidade de quem passeia nos seus quintais. Só então foi que Magdá percebeu que estava observando tudo isto de uma janela e apressou-se a olhar em torno de si. Ah! exclamou, reconhecendo a sua adorada habitação da ilha. (CP, Aluísio de Azevedo, O Homem, século XIX) Nesse caso, a Construção Aspectual Inceptiva guarda suas peculiaridades semânticas e formais. A curiosidade é despertada, porém, pelo fato de a posição da preposição ter sido preenchida por de. Isso porque, em pesquisa sincrônica, encontramos dados em que havia preposição a entre V1fin e V2inf ou em que ela simplesmente era suprimida. Contudo, o aspecto motivador da presença da preposição de ainda não havia sido considerado. Um fator foi relevante para ajudar na explicação do fator motivador: as ocorrências, no mesmo século XIX, do verbo pegar em seu sentido lexical. Observe: (34) Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que e ainda meu sobrinho) pegou de outra taça e 104 (35) pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar brindando ao primeiro dos cariocas Ouvi cabisbaixo: fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. (CP, Bons dias, Machado de Assis, século XIX) Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los. (CP, Dom Casmurro, Machado de Assis, século 36 XIX) Por meio da análise dos dados, é possível perceber que o verbo pegar era empregado no Português também como uma construção transitiva indireta, exigindo a preposição de. Isso é ainda mais interessante na medida em que é possível notar, no primeiro exemplo, que a seleção argumental do complemento se dá, inicialmente, com objetos mais concretos. No dado apresentado em (35), é possível notar a presença de uma nominalização (namoro < namorar). No dado (33), foi possível perceber a presença do pegar na construção aspectual, em que há um V2inf. Ao analisar os dados disponíveis no CP, foram encontrados 69 dados com V1fin pegar na CI. As primeiras ocorrências de pegar em construções aspectuais são verificadas no século XIX. É interessante notar que, nesse século, o preenchimento da preposição se dá, nos dados, por a ou por de. Já no século XX, encontra-se apenas uma ocorrência da Construção Aspectual inceptiva em que a preposição que preenche a construção é de, como é possível verificar abaixo: (36) Valeu-lhe acudir Seitosa em peso, ao toque dos sinos, que os tratantes pegaram de pôr a salvo jericos e atafais e despediram deixando, por susto ou maldade, o incêndio a lavrar. Ficou-lhe para emenda, que mais ciganos não aboletou, sob pena de impedernir o coração devocioneiro à sua grande lamúria: -Somos do Egipto, patroinha, terra do menino Jesus! (Manuel Ribeiro, A Planície heróica, século XX) Já as construções aspectuais com pegar encontradas no século XX e preenchidas com a preposição a totalizam 41 ocorrências. Esses números apontam para o decréscimo de ocorrências de construções aspectuais com pegar preenchidas pela preposição de e o consequente aumento dessas com preposição a. Como já observado, a carga semântica das preposições a e de casa bem com o sentido da construção, a qual é aliada às noções de marcação de movimento ligado a tempo (vide metáforas apresentadas). Contudo, a presença da preposição de nas instanciações mais antigas da Construção Aspectual Inceptiva com pegar, sendo coincidente com o período em que esse verbo, em seu sentido pleno, regia essa 36 Em (35), pegar parece funcionar como um verbo leve, ou, ainda, introduzir uma noção aspectual, veja nesta reescrita: se eles namoram ou se eles começam a namorar. 105 mesma preposição, parece apontar para uma contribuição ainda maior do verbo para a construção. Assim, diferentemente do proposto por Goldberg (1995; 2006), os verbos não só contribuiriam para o sentido da construção, mas parecem fazê-lo também para a sintaxe, na medida em que suas propriedades de subcategorização em seus usos como verbo pleno poderiam, de alguma forma, guiar o falante na escolha da preposição a ser empregada com esses verbos em outros contextos construcionais. Logo, o que se argumenta aqui é que a presença da preposição de no exemplo em (36) não se justifica apenas pelo fato de ela se encaixar na semântica da construção, mas sim pelo fato de ser o de a preposição que costumava acompanhar o verbo pegar quando este era empregado como verbo pleno, em construções transitivas indiretas. O caso das construções em que a posição de V1fin é preenchida por dar também parece confirmar esse raciocínio. Diferentemente do que se pode notar nos outros verbos que podem estar presentes na Construção Inceptiva, as instanciações com o verbo dar são descritas por Travaglia como seguidas da preposição para e de um verbo no infinitivo. Mais uma vez, fica claro observar que a seleção dessa preposição é semanticamente motivada, já que para também se associa ao destino de um movimento. Porém, seria também possível argumentar que a constante substituição de a por para em contextos informais em que se usa o verbo dar em seu sentido pleno poderia, de alguma forma, fornecer ao falante pistas para o preenchimento da posição de Prep na Construção Aspectual. Esses fatos indicam que o verbo pode apresentar uma função mais relevante na construção que somente a interferência semântica, o que traz uma nova perspectiva para a proposta de Goldberg. O verbo também pode ajudar o falante a decidir a preposição que será inserida. Assim, a princípio, o falante pode se basear tanto no esquema prototípico de preenchimento da posição de Prep, já definido pelo esquema da construção – que é a ocupação da posição de Prep pela preposição a –, quanto nas pistas fornecidas pelo verbo auxiliar – o que pode ser notado pela diacronia dos verbos auxiliares estudados. Assim, quando os verbos a ocuparem a posição de V1fin são usados, em seu sentido pleno, sem reger nenhuma preposição, o falante irá utilizá-los no contexto aspectual acompanhados pela preposição a, seguindo a semântica da construção, que indica movimento metafórico para um destino. Porém, quando os 106 verbos vierem, em seu uso como verbos plenos, acompanhados por outras preposições – tais como de, para o verbo pegar, e para, para o verbo dar – o falante pode confiar nessa pista sintática para o preenchimento da posição da preposição na construção marcadora de aspecto. Assim, o padrão aspectual inicialmente parece advir de construções transitivas seguidas de complementos concretos, as quais passariam a funcionar com complementos deverbais e, em seguida, como Construção Aspectual Inceptiva, seguindo uma espécie de cadeia, conforme esquematizado abaixo: pegou de outra taça > pegou de namoro > pegou de andar No mesmo sentido, a CI preenchida com danar toma como base instanciações daquelas preenchidas por pegar e/ou entrar37. Na análise dos dados, foi possível notar que as ocorrências com danar na CI são as mais recentes da língua, nascidas no século XX. Ademais, não foram encontradas ocorrências de danar nem de entrar subcategorizando preposição de no sentido pleno. Isso ocorre apenas na CI. Veja: (36) (37) (38) A mulher de Guilherme espantava-se da ausência de Inês: não sabia que o filho do médico lhe roubara o coração da amiga; todavia, amarguras de outra espécie a distraíam dessa suponável falta. O artista, desde que o pai falecera e simultaneamente as inquietações do ciúme o preocuparam, entrou de adoecer de febre lenta. Desde criança revelara sintomas de vida cuna; os pais tiravam esse horóscopo da melancolia desnatural do menino; os médicos pressagiaram-lhe a brevidade da vida pela configuração do tronco e pobreza de sangue. (CP, A viúva do enforcado, Camilo Castelo Branco, séc XIX) Tecla chegou ao altar: - Mas, ora, cadê o noivo? - A chuva o atrasou. - Na certa caiu no rio. - Quem sabe espera na sede? Nos palpites misturados, o tempo não esperou, danou de passar depressa. Um irmão olhou lá fora, as sugestões redobraram e nada de o noivo chegar. (CP, Onde Andará Dulce Veiga?, Caio Fernando Abreu, séc. XX) O seu cavalo Sulipa, desenvolvedorzinho, tão manso que sequer liga pra taca, nem leva jeito para se espevitar em árdego passarinheiro, tanto esquipava distraído do mundo, de beiçola balançando, e entregue ao próprio sacolejo que, sem atentar nas 37 Propõe-se, ainda, que uma rede de motivações seria responsável pelos usos de danar de, entrar de e pegar de. Isso porque foram encontrados dados no CP que revelam a existência de preposição DE entre V1 e V2 na CI preenchida por começar no século XIV. Veja um exemplo: Et muytas uezes demãdou que o matasem et que nõ fose mays sua uida, ca muyto mays lle prazía de sua morte. Et cõmeçou de mesar os cabelos et desfazer o rrostro. Et caeu en terra amorteçido, pero acordou logo toste, et cõmeçou de dizer a grandes uozes: -!Ay, meu padre et meu señor et meu amigo bõo, cõmo sõo desauenturado et que mao día naçí!;Catiuo, en que graue ponto seý de mïa terra et chegey a este lugar!!Meu señor, en que graue ponto uos vim buscar et en que forte ora uos achey! (CP, CronicaTroyana, sec XIV). Isso indica que pode, ainda, ter havido dupla força motivadora para a subcategorização da preposição de, por parte dos preenchimentos com danar e entrar na CI. 107 ladradas e rosnados, nos dentes arreganhados de um vira-lata, levou uma mordida no rejeito. Só aí o desatento pulou de dentro da pachorra e espantou-se. Então, pelo sangue da dentada azoretado, danou-se a revidar a pares de coices, fastando de costas, e raspando os cascos nas fuças do agressor, até acertar-lhe o pé do ouvido de cheio, fazê-lo ganir de dor. (CP, Cartilha do silêncio, de Francisco Dantas, séc. XX) A expectativa era, portanto, de encontrar com referência ao danar pleno e ao entrar pleno a presença da preposição de. Porém, isso não se confirmou o que corrobora a ideia de que essa dupla possibilidade de ocupação da posição de Prep na CI preenchida por danar e entrar se deveria ao efeito de priming construcional motivado pela duplicidade de preenchimento na CI preenchida por pegar em V1fin. Esta seria, então, a força motivadora para a ocupação da posição de Prep também com de na CI preenchida com danar. 4.6 A Construção de Aspecto Inceptivo e A Rede de Construções com Pegar Como explicitado em 3.3, este capítulo foca como ponto de partida a Construção Inceptiva preenchida em V1fin pelo verbo pegar. Isso se deve ao fato de haver possibilidade múltipla do preenchimento de Prep na CI. Ou seja, a grande motivação para tal se baseou no fato de que pegar, na posição de V1 da CI, guia a seleção da preposição nessa construção, a saber, a, de ou zero. Apesar de o preenchimento com de ser ainda raro na CI em geral, hipotetiza-se haver dupla motivação para sua presença. A primeira delas, não associada especificamente ao V1fin pegar, remete a ocorrências do século XIV de começar, verbo aspectual inceptivo canônico, coocorrendo com a preposição de na CI. A segunda, pautada em análise de dados dos mais diversos séculos, está ligada ao fato de que o verbo pegar, em seu sentido pleno, rege a preposição de, o que colabora para a hipótese de que a escolha de Prep não é aleatória. Como se vê a partir do que foi analisado até então, as construções com o verbo pegar podem ser diversas, tanto no aspecto formal, quanto em sua contraparte semântica. Como o objetivo do presente trabalho é analisar as construções aspectuais, daremos ênfase primeiramente àquelas que se mostram mais lexicais para observar a possível origem das mais gramaticais. 108 Tendo em vista as diversas construções preenchidas por pegar, é possível notar, apenas nos usos do cotidiano, que o verbo pegar pleno ocorre, sobretudo, nas construções transitivas básicas, ou seja, naquelas em que o sujeito é [+ agentivo] e [+ animado] e o complemento [+ paciente] e [- animado]. Nos dados coletados, vemos que grande parte das ocorrências se encaixa nesse perfil. É relevante observar, ainda, que Cunha & Souza (2007, p. 27) classificam a oração transitiva prototípica como aquela em que o verbo é acompanhado de dois SN, um sujeito agente, que desencadeia a ação, e um objeto paciente, afetado por essa ação. Esse perfil é o mesmo que o dos exemplos (39), (40) e (41) que, como proposto na rede38 que segue, representam a construção transitiva prototípica preenchida por pegar, constituindo construção base da qual se origina a construção aspectual inceptiva39. Observe: (39) Então pegou as mãos dela, passou-as pelo seu rosto, no roçar de sua barba. A mulher compreendeu. (CPBrAbreuXX) (40) Minha mulher esperava-me para jantar. Eu, ao entrar no quarto, peguei-lhe das mãos, e perguntei-lhe: - O que é eterno, Iaiá Lindinha? (CPBrMachadoXIX) (41) Madalena pegou nas mãos de Antonio, passou os dedos no lugar do ferimento, deu a impressão de que ia dizer qualquer coisa, mas desistiu. (CPBrAntOlinXX) Dessas construções, outras parecem surgir, como poderemos notar adiante. Uma delas corresponde às CFF’s40 estudadas por Rodrigues (2006) e por Tavares (2008). É interessante observar que a construção mais transitiva dá lugar a outra menos transitiva. Vejamos: (42) Uma ambulança, aqui teve uma ambulança, o...não sei se foi o Tuco, foi um deputado lá de fora que deu, eles pegou vendeu ela ó, emborsô ela ó... (IBI MN) (43) aí ele ainda me mostrou, no quarto aonde ela tá falando ali, no projeto que ela fez com a (gessoteto) teria forro igual cê tá vendo aqui. nós sugerimos (tipo isso aqui) só que fechando no teto, tá . não é forro liso igual a gesso teto ia fazer ((barulho do aparelho 38 A noção de uma rede de construções aparece em trabalhos como Salomão (1990) e Goldberg (2006). Em ambos, e também neste trabalho, o conceito de redes construcionais é tratado como uma extensão das redes polissêmicas apresentadas na obra de Lakoff (1987). 39 Neste trabalho, consideram-se (39), (40), (41) como uma mesma construção. É importante notar que, apesar de Goldberg (1995) caracterizar a construção como sendo um pareamento de forma e sentido, não fica claro se a mudança da valência verbal também acarretaria a mudança construcional, já que a semântica do verbo permanece a mesma. Como foi possível ver, os três usos de pegar correspondem àquilo que pode ser denominado de transitiva básica. A distinção que ocorre dentro da construção, com preenchimento ou não da preposição, parece se dever à diferença de registro entre os dados. 40 Segundo Rodrigues (2006), as CFFs formam-se a partir de uma sequência mínima de dois verbos, V1 e V2, em que V1 e V2 partilham sujeito e flexões modo-temporais e número-pessoais. Ela sustenta que a posição de V1 é quase sempre preenchida por um dos verbos ir, chegar e pegar, sendo que V2 é relativamente livre. Além disso, V1 e V2 podem estar conectados pela conjunção e, tipo 1 [+ CONJ], ou podem estar justapostos, tipo 2 [- CONJ]. 109 de som)). era ( ) morrendo no teto lá em cima. Eu peguei e falei com ele, "ó eu quebrei aqui que vou ter que passar a fiação" (PROCON-JF) Em (42), temos um uso da construção preenchida com pegar que se assemelha àquela presente no centro da rede, mais prototípico. Entretanto, é possível notar que o objeto (ela) é inferido contextualmente, não estando explícito, após o verbo pegar41, e sim apresentado após o verbo vender. Ao mesmo tempo, (42) se assemelha à estrutura de (43), visto que pode ser interpretada como o mesmo caso de (43), ou seja, como a CFF. Isso porque, em (42), temos duas interpretações possíveis: eles pegou a ambulância e vendeu a ambulância ou eles pegou vendeu a ambulância. Ou seja, a ambulância pode ser um objeto compartilhado por V1 e V2 ou selecionado apenas por V2. Já em (43), vemos que esse contexto de ambiguidade quanto à seleção ou não de objeto direto por V1 e V2 não mais ocorre. Nesse caso, claramente é o verbo de elocução a subcategorizar o discurso direto. Cabe ressaltar que V1 e V2 são unidos por e. Assim, a construção assume uma nova semântica e um novo padrão sintático, visto que se perde a possibilidade de o SN objeto ser subcategorizado por V1 ou V2. A construção, dessa forma, ainda se mostra em fase de mudança em (42), devido ao fato de ela poder ser selecionado por pegou ou por vendeu, o que não ocorre, por exemplo, em (43) cujo discurso direto é exigido pela grade de transitividade do falar, não sendo um argumento do pegar. Parece haver, portanto, graus de mudança construcional que podem ser ilustrados como segue: • (44) • (45) Construção Transitiva [SN Vpegar SN]: INQ.- Ahan...sei...e o::...espera aí, acho...que tem gente chegano aqui...vamo vê quem é que é vamo continuá...tem otra coisa também que o pessoal conta lá da vila. INF.- Ahn::...dexa eu pegá meu poquim de açúca aqui (IBI Aur) Construção Ambígua [SN V1pegar (SNi) V2 SNi]: CFF ou V1 lexical (mesmo tempo e modo verbais, SN objetos correferenciais ou SN objeto de V2 compartilhado por V1pegar): INF:Uma ambulança, aqui teve uma ambulança, o...não sei se foi o TON, foi um deputado lá de fora que deu, eles pegou vendeu ela ó, emborsô ela ó... . (IBI-MA) 41 Há casos em que o objeto de V1 pegar é o mesmo da oração coordenada, com em Pegou a bola e botou mais pra dentro do quadro. Exemplos como esse ajudam a identificar um momento que parece ter sido um “primeiro passo” para o surgimento das CFF’s. 110 • (46) Construção Foi e Fez – CFF – (cf. RODRIGUES, 2006) [SN V1pegar V2 (SN)] (mesmo tempo e modo verbais, V2 com ou sem complemento): a sala dela deu um problema técnico, de execução , não tinha no projeto da menina os tubos passando, depois passaram a ter, entendeu. então foi sugerido em função do que ocorreu um detalhe, por vários detalhes a gente sugeriu e deixou eles decidirem, um dia o esposo dela pegou e falou as- eu quero parar o serviço. (Procon – AG) O verbo pegar também se liga a outras construções. Esse é o caso da construção marcadora de aspecto inceptivo no português. Vejamos os dados abaixo: (47) Tanaka pegou o barco, deixando-o descer a correnteza com suaves. (CP 19CabralBr50) (48) Aos dezessete anos pegou um namoro com um moço da rua. (CP19DinaBr) (49) Aos poucos, a bem dizer sem se sentir, pegou a trabalhar para o bicheiro que fazia ponto na charutaria.(CP19RQBr) Em (47), é possível observar a construção transitiva básica com pegar lexical, em que o barco é objeto do verbo. No exemplo (48), o complemento atrelado ao verbo pegar é um nome deverbal. Esse tipo de complemento pode indicar a tendência de essa construção passar a selecionar um verbo infinitivo, o que ocorre no exemplo (49). Outras preposições podem ocorrer na Construção Aspectual Inceptiva com pegar. Elas também podem ser explicadas tendo em vista a transitiva básica com pegar42. Observe: (50) Eu pego uma das menina pa ir lá te acudi as veiz que tivé precisano. (CCIDa) (51) (...) foi assim as primera música que eu peguei pra trabalhá (CCIFab) (52) Doc: agora é bonzinho? Inf.: agora é... tem dia que é meio chato sabe? Quando ele 43 pega pa estudá(r) pa lê(r) NOssa! que moleque chato! (CIbop AC 58) A sentença em (50) exemplifica a construção transitiva básica, a qual é seguida de uma oração hipotática iniciada por para, cujo sujeito é retomado da oração anterior. Já em (51), é possível notar a presença de uma relativa em que o pronome representa e substitui o objeto direto44. Porém, em (52), não existe um referente explícito na 42 Neste trabalho, não foram consideradas as expressões cristalizadas como “pega para capar”, dentre outras. É possível que dados como ele pega pra estudar (Córpus Iboruna) faça parte da família das expressões cristalizadas ou mesmo é possível que ele tenha advindo de uma hipotática de finalidade. 43 Foi observado apenas este dado no Córpus Iboruna, visto que ele se mostrou distinto de todos os outros observados até então no que tange à seleção da preposição. Assim, apenas nesse Corpus foi possível encontrar dado com pegar para, o que precisa ser destacado. Agradeço aos organizadores do Córpus por terem-no cedido a mim para a pesquisa. 44 Talvez essa mudança seja facultada também pelo fato de, no português, poder existir objeto nulo, conforme já citado anteriormente. 111 cláusula anterior que funcione como um possível complemento acessível contextualmente a pegar. Nesse caso, no lugar de um SN, um sintagma verbal infinitivo é selecionado após a preposição para. A construção [SN Vpegar para Vinfinitivo] também se apresenta como uma Construção de Aspecto Inceptivo no Português45. Ainda uma outra construção aspectual com pegar pode ser encontrada no português, sendo que ela parece advir também da transitiva básica com pegar, aquela em que o verbo exige a preposição de – como pôde ser visto em (36) e em (33), por exemplo. Percebeu-se, nos dados, a ocorrência de nomes deverbais também preenchendo o SP dessas construções. Veja: (53) Nessa festa o jovem pernambucano pegou de namoro rijo com a menina Eulália. (CP19ManPaiBr) A nominalização parece indicar, novamente, que há uma tendência a serem selecionados verbos infinitivos para a posição ocupada pelo complemento. Observe o dado (54): (54) Deixou de espreguiçar-se e pegou de andar por entre a mata (CPXXAluAzBr) Como vimos, pegar em V1fin na CI pode ser seguido sobretudo – na maior parte das ocorrências – por duas preposições distintas: a e de. Contudo, no português falado atual, essa construção é usada de uma maneira um pouco distinta: (55) Ah...custô pra melhorá...o calombo dele, aí eu peguei passá é...óleo de Nossa Senhora da Aparecida em cima do cacuruto dele... usava todo dia que dava banho nele e foi ini fo ino desapareceu. (IBIAP) Diferentemente dos outros usos das construções aspectuais com pegar, nesse caso, V1fin e V2inf não são intercalados por preposição. O que se observa, portanto, é uma tendência ao apagamento da preposição no português falado, fato que, juntamente a outros princípios, revela que a construção aspectual apresenta maior grau de gramaticalidade. Na Gramática das Construções, considera-se que as construções mais básicas dariam origem às mais complexas e seria possível descrever a relação entre elas por meio de um estudo sintático, semântico ou pragmático. Com isso, postula-se que as 45 O objetivo aqui é de traçar possíveis relações sintáticas de mudança construcional com pegar. Faz-se relevante destacar, porém, a confluência semântica em (52), tendo em vista a relação de movimento atrelada à preposição para. Assim, como já observado em seções anteriores, a troca de a por para ou de pode ter se dado também por fatores semânticos. 112 construções não se originam aleatoriamente, mas se organizam segundo determinados princípios (cf. Goldberg, 1995, p.67). Com base nisso e na análise dos exemplos, podese constituir uma rede de construções. Sendo assim, seria possível afirmar que a Construção Aspectual Inceptiva com pegar integra uma rede construcional nucleada pela construção plena do verbo, a qual é caracterizada por suas propriedades semânticas – movimento para contêineres determinados (cf. SIGILIANO, 2008) – e sintáticas – SN[+animado] Vpegar SN[-animado] – o que foi examinado, neste trabalho, por meio da análise dos dados e será brevemente esquematizado a seguir. 113 Aspectual [SN pegar infinitivo] Não...sabe pri...primero ele tava sabeno mais depois dipois ele pegô variá...aí eles medicô ele direitim lá, ele melhorô. Aspectual [SN pegar de infinitivo] Deixou de espreguiçar-se e pegou de andar por entre a mata [SN pegar de nominalização] nessa festa o jovem pernambucano pegou de namoro rijo com a menina Eulália Aspectual [SN pegar a infinitivo] Aos poucos, a bem dizer sem se sentir, pegou a trabalhar para o bicheiro que fazia ponto na charutaria. Aspectual [SN pegar para infinitivo] Quando ele pega pa estudá(r) pa lê(r) NOssa! que moleque chato [ SN pegar nominalização] Aos dezessete anos pegou um namoro com um moço da rua. Pegar lexical [SN pegar SN para v inf] Eu pego uma das menina pa ir lá te acudi as veiz que tivé precisano. Pegar lexical [SN pegar de SN] Pegar lexical [SN pegar SN] Pegar lexical [SN pegar em SN] Minha mulher esperava-me para jantar. Eu, ao entrar no quarto, peguei-lhe das mãos, e perguntei-lhe: - O que é eterno, Iaiá Lindinha? Então pegou as mãos dela, passou-as pelo seu rosto, no roçar de sua barba. A mulher compreendeu. Madalena pegou nas mãos de Antonio, passou os dedos no lugar do ferimento, deu a impressão de que ia dizer qualquer coisa, mas desistiu. Pegar lexical [ SN pegar SN des.] ou discursivo Eles pegou vendeu ela. Pegar discursivo [SN pegar (e) Vtm] Eu peguei e falei com ele, "ó eu quebrei aqui que vou ter que passar a fiação" 114 Essa rede é resultado da análise que foi apresentada anteriormente. Note-se que o centro da rede corresponde ao uso em que o pegar se apresenta no seu sentido pleno (ao de pegar as mãos). Este pode variar quanto à preposição selecionada, como se vê em peguei-lhe das mãos e em pegou nas mãos. É desse centro de pegar prototípico que advêm todos os outros. Observando a parte inferior da rede, observamos que o complemento de pegar passa a ser cancelado e compartilhado com o segundo verbo da sequência, que se flexiona no mesmo tempo e modo. Esse, ainda, pode passar a figurar em uma função discursiva46, em que não se é exigido um complemento para tal verbo. Além disso, ao examinar a parte superior da rede, notamos que, por selecionar nomes deverbais para a posição de objeto, gradativamente, o verbo pegar parece passar a selecionar verbos no infinitivo, resultando no pegar aspectual: Pegou as mãos > pegou um namoro > pegou a trabalhar Ainda, há também, na fala, ocorrências de pegar aspectual sem preposição (caso de pegô variá), o que aponta para um maior grau de gramaticalidade dessa construção. Da mesma maneira como essa rede foi formada, enfatizando o papel do verbo que preenche a posição de V1 na motivação da CI, ela poderia ser estendida a outros preenchimentos dessa mesma posição. Sendo assim, pegar foi usado apenas como exemplo daquilo que ocorre com todos os preenchimentos, visto que todos estão ligados a uma mesma construção e cada um deles poderia ser estudado em todas as suas instanciações em outros padrões construcionais. Para que se observem as relações deste preenchimento de V1pegar com os demais, é possível também traçarmos um diagrama que deixa clara a ligação entre eles. Veja: 46 Rodrigues (2006) designa essas mesmas construções como Construções do tipo Foi e Fez e, segundo ela, “apresentam uma função discursiva na medida em que conduzem a atenção do interlocutor/ouvinte para o fato que será descrito pelo segundo verbo da construção” (Rodrigues, 2006, p. 136). 115 Construção Inceptiva [(SN) V1fin (Prep) V2 inf] [(SN) V1fin a V2 inf] [(SN) V1fin de V2 inf] [(SN) começar a V2 inf] [(SN) principiar a V2 inf] [(SN) começar de V2 inf] [(SN) entrar a V2 inf] [(SN) pegar a V2 inf] [(SN) danar a V2 inf] [(SN) romper a V2 inf] [(SN)desandar a V2 inf] [(SN) disparar a V2 inf] [(SN) romper a V2 inf] [(SN) desatar a V2 inf] [(SN) deitar a V2 inf] [(SN) V1fin para V2 inf] [(SN) entrar de V2inf] [(SN) pegar de V2inf] [(SN) danar de V2inf] [(SN) pegar para V2 inf] [(SN) V1fin V2 inf] [(SN) pegar V2 inf] Por meio deste diagrama, é possível, com mais clareza, notar que, independentemente do preenchimento de V1fin, todas as ocorrências especificadas são exemplos de subtipos de uma mesma construção: a marcadora de aspecto inceptivo. Esta foi apresentada na parte superior do diagrama. Em seguida, vê-se que ela foi especificada em quatro, a depender da preposição que figura (ou não) na construção – a, de, para ou zero. Ademais, tendo em vista as mais prototípicas com a mesma configuração sintática, dispôs-se a posição de V1 ocupada por começar e/ou principiar primeiramente, para, a partir delas, listarem-se os preenchimentos não canônicos. Essa, portanto, é uma maneira de didatizar o que já vem sendo apresentado até aqui: trata-se de uma mesma construção, porém preenchida por itens diferentes. Ela poderia se fragmentar ainda mais se estendida sua análise aos itens linguísticos específicos (V1 ou V2, por exemplo). Assim, a CI apresentada na rede com pegar se relaciona diretamente ao diagrama anteriormente disposto. 116 4.7 Conclusão do Capítulo Com base em Lakoff (1979; 1987), neste capítulo foi possível verificar que os verbos que compõem a Construção Inceptiva do Português compartilham algumas propriedades semânticas: em seu sentido lexical, expressam a noção de movimento e, em parte dos V1fin, de movimento para um contêiner. Essa foi considerada no trabalho uma restrição semântica aos verbos que preenchem a construção. É relevante destacar que, por meio de evidências diacrônicas e tomando como base o preenchimento com pegar, defendeu-se que a presença do verbo não contribui apenas para a semântica da construção – conforme afirmado por Goldberg (2006) – mas também para a escolha e motivação da preposição que nela se faz presente. Foi possível notar que a Construção Aspectual Inceptiva preenchida com verbos auxiliares como pegar, desandar, dar, etc. poderia, em princípio, ocorrer com qualquer preposição locativa para introduzir o infinitivo (para, de, a, em...). No entanto, ao realizar pesquisa diacrônica, constatou-se que a presença da preposição de na CI preenchida por pegar, foi motivada pelo uso pleno deste verbo. Assim, há uma recorrência, nos séculos, entre a preposição da estrutura recrutada para o uso do verbo como pleno e aquela do uso aspectual, o que reitera a existência de uma pista diacrônica e sintática para a escolha da preposição a ser empregada na CI. Como observamos, a mudança do verbo em sentido pleno, lexical, do padrão transitivo direto ou intransitivo parece motivar prototipicamente a escolha pela preposição a nessas construções. Isso ocorre porque se finda a pista sintática para que o falante escolha uma preposição, já que as construções prototípicas correspondentes ao V1fin da CI tendem a não subcategorizar mais preposições, como vimos na análise dos dados diacrônicos e sincrônicos. Por não haver mais pistas sintáticas que motivem a escolha da preposição, resta ao falante, apenas, a pista semântica, do valor semântico associado a movimento que a preposição a assume em nossa língua. Da mesma maneira, quando a preposição de se faz presente em construções aspectuais com pegar, isso é claramente justificável se observarmos o padrão transitivo indireto do seu uso como verbo lexical, como notado nos dados diacrônicos. 117 Percebemos, também, o efeito do priming construcional ou da analogia em se tratando dos preenchimentos com danar, os quais seriam motivados por aqueles com pegar. Vimos, ainda, que, hoje, nos dados sincrônicos, foram encontrados casos em que há mudança no padrão construcional, sem que haja, à primeira vista, perda semântica da noção de inceptividade. Isso porque, na fala, a preposição tem desaparecido entre o V1fin e o V2inf. Essa perda parece se relacionar a um processo de gramaticalização pelo qual a construção passa. Para observar como isso parece ocorrer, foi proposta uma rede construcional, levando-se em consideração as diferenças formais representadas pela presença ou ausência de preposição. Para constituir a rede, foi verificado se as construções prototípicas com o verbo pegar apresentam alguma distinção na forma, a qual, não necessariamente, acarreta mudança semântica. Essa distinção se baseia na presença ou não de preposição (de, em) no complemento. Essas construções prototípicas, conforme defendemos e mostramos na configuração da rede, dão origem à Construção Aspectual Inceptiva, a partir daquela preenchida por pegar em V1fin. Além disso, dipôs-se um diagrama que postula sobre a Construção de Aspecto Inceptivo e os diversos verbos e preposições que podem nela figurar, a fim de tornar claro que o preenchimento em V1fin com pegar é apenas um dos diversos possíveis da CI. Sendo assim, nota-se que várias redes de V1lexical > V1aspectual poderiam ser constituídas como forma de se visualizar as possíveis mudanças motivadoras da nova construção. Assim, pode-se verificar a existência de relações contínuas entre construções distintas com pegar que o conduzem a figurar na CI e as relações dele com os demais preenchimentos na marcação de aspecto. 118 5. A GRAMATICALIZAÇÃO DA CONSTRUÇÃO DE ASPECTO INCEPTIVO NO PORTUGUÊS Segundo Heine (2006 [2003], p.579-580), a gramaticalização das expressões linguísticas envolve o mecanismo da extensão. A extensão, também chamada de generalização contextual, ocorre quando um “item linguístico pode ser usado em novos contextos nos quais não era previamente empregado”. Tal mecanismo pode ser exemplificado através do processo de gramaticalização das construções de futuro em [be going to + Vinf] do Inglês. Nessas construções, o verbo go, que antes indicava um deslocamento e que, portanto, subcategorizava sujeitos [+animados], passa a marcar futuridade, podendo se combinar com uma série de verbos que nem mesmo pressupõem qualquer ideia de movimento ou agentividade, os quais, por sua vez, podem subcategorizar sujeitos [-animados], tais como fall, por exemplo, em sentenças como “The building is going to fall” (cf. HOPPER & TRAUGOTT, 2003 [1993]). A Construção Inceptiva (CI) do Português, estudada neste trabalho, compartilha com a construção mencionada acima o fato de sinalizar uma categoria linguística tipicamente expressa por verbos em nossa língua – o aspecto – e de constituir também uma estrutura sintática composta por [V1fin (Prep) V2inf]. Entretanto, ao contrário do que ocorre com a construção de futuro do Inglês (e também com a do Português), a posição de V1fin da CI pode ser preenchida por uma variedade de verbos não tipicamente aspectuais: nessa posição, cair, danar, deitar, desandar, desatar, disparar, entrar, pegar e romper também podem ocorrer. Observe como isso se dá: (56) (57) (58) (59) Queria chegar depressa à aldeia mas o caminho era difícil. A brancura dos montes só lhe indicava a imensidão de tudo. Nem uma vereda, nem um rasto por onde soubesse o sítio onde estava. Chegou tarde à Casa Grande e quando disse que o pastor velho tinha morrido caiu a soluçar. Desde esse dia maldito, Albino, que conhece a vida como os homens da aldeia, perdeu a alegria de menino. (CP, XX, NasTemp) Lurdinha, a meninada pequena, os irmãos e os cunhados se mesclaram aos convidados. Tecla chegou ao altar: - Mas, ora, cadê o noivo? - A chuva o atrasou. - Na certa caiu no rio. - Quem sabe espera na sede? Nos palpites misturados, o tempo não esperou, danou de passar depressa. Um irmão olhou lá fora, as sugestões redobraram e nada de o noivo chegar. (CP, XX, BrAbrSan) Também ela ia pressurosa ao encontro da amiga e camarada de infância, cuidando já encontrá-la no lugar emprazado, à sombra da figueira. Ouvindo o apito de Afonso, deitou a correr; e Miguel despeitado com a sofreguidão que ela mostrara, deixou de responder ao camarada como costumava. (CP, XIX, BrAlenTil) Mas era algo promissor. Percebia-se Raí solto, atento ao jogo, esperto em os movimentos. Enfim, era um Raí redivivo. Eis que, em o segundo tempo, desandou a 119 (60) (61) (62) (63) (64) fazer besteiras, uma atrás de a outra, exatamente quando se esperava que, Brasil em a frente, ele iria aproveitar a chance para dar a grande volta por cima. (CP, XX, BrFolha) É até um lindo rapaz, corpo de esgrimista, olhos devoradores. Nasceu em S. Paulo, chama-se Vitorino Maesa e partiu há dois meses para a Itália. Como me visse pálido, aturdido, sem saber o motivo daquela emoção, sem saber que como um imbecil eu tivera a carta na mão: - Estás apaixonado? Contrariei-te? Todas as mulheres são excepcionais quando se lhes quer prestar atenção. Mas no mundo não há uma que não tenha um segredo simples, que lhe mostra um reverso inteiramente diverso da aparência.. E desatou a rir enquanto eu esforçava-me por fazer o mesmo. A mais estranha moléstia A Afrânio Peixoto. (CP, XX, BrRio) Se amolaram as palanganas, e lá se vão zunindo! - Aonde? - Para o mosteiro em busca de asilo. Agora é assobiar-lhes às botas, ou aos calcanhares. - Pega! exclamou um mais ardente e disparou a correr. Outros o seguiram maquinalmente. ao mesmo tempo o meirinho com seus acólitos, capturando os dois improvisados minorenses, se afastaram com eles, levando após a maior porção do povo. (CP, XIX, BrAlen) Sales ama a esposa; está abatido e desvairado com a idéia de a perder. Hoje de manhã, muito cedo, não tendo dormido mais de duas horas entrou a cogitar no desastre próximo. Desesperando da terra, voltou-se para Deus; pensou em nós, e especialmente em mim que sou o santo do seu nome. (CP, XIX, BrMacSantos) A paisaninha só teve alma e vida e coração para o moço.. ele também estava entregue, de rédea no chão. Aquela visita trazia água no bico.. era o trato de casamento. Depois que o furriel se foi as velhas pegaram a fazer rendas de bilro e outros preparos do aprontamento da noiva. A roseira estava em todo o viço: recendia que era um gosto e bordava de vermelho o caniçado da horta, que se via desde longe. (CP, XX, BrLopes) Pôs-se à escuta e os olhos foram-se-lhe enchendo d' água, uma opressão pesou-lhe no peito como se lho fosse esmagando e, de repente, afundando a cabeça no travesseiro, rompeu a chorar desesperadamente. (CP, XX, BrNeto) Dessa forma, a análise da ocorrência ou não de extensão na ou da CI obriga que se considerem as possibilidades – e restrições – de co-ocorrência de determinado marcador aspectual (V1fin) com determinado verbo pleno (V2inf). Isso porque, ao mesmo tempo em que a construção estende as suas possibilidades combinatórias, tornando-se mais produtiva, alguns dos lexemas que ocupam a posição de V1fin podem apresentar restrições de co-ocorrência com determinados tipos semânticos de verbos infinitivos. Neste capítulo, buscaremos observar se a manutenção de estruturas semânticas vestigiais nos verbos que ocupam a posição de V1fin faz com que suas possibilidades de combinação com V2inf sejam restringidas pelo tipo semântico deste último. Com objetivo de verificar a validade dessa hipótese, foram levantadas ocorrências reais da CI em corpora e analisados os tipos semânticos dos verbos infinitivos que nela aparecem. A fim de verificar a hipótese a respeito dessas possibilidades combinatórias e suas restrições, analisaram-se os preenchimentos não canônicos de V1fin na CI, como os que foram citados de (56) a (64). 120 5.1 Gramaticalização Hopper & Traugott (2003 [1993]) mostram como o termo gramaticalização se define com relação aos programas de pesquisa em linguística. Segundo eles, nessa perspectiva, o termo se liga à parte do estudo da língua que se compromete com questões relativas à maneira como os itens lexicais e as construções passam a ser usados com funções gramaticais em certas línguas ou à forma como os itens gramaticais se desenvolvem assumindo novas funções gramaticais. Ao apresentarem o exemplo de gramaticalização do auxiliar do inglês be going to, os autores reafirmam o princípio da unidirecionalidade do fenômeno, uma vez que, como ocorre com os verbos de movimento, que passam a funcionar como auxiliares marcadores de futuro, as estruturas menos gramaticais passam a figurar, com o tempo, como mais gramaticais (HOPPER & TRAUGOTT, 2003 [1993], p. 16). Ao tratar dos esquemas cognitivos formadores de auxiliares nas línguas em geral, Heine (1993) considera o esquema de movimento como básico. Segundo o autor, a proposição “X moves to/from Y” gera a categorização de auxiliar e expressa comumente a noção de futuro. Segundo ele, os principais esquemas de eventos relevantes para a compreensão do comportamento das construções com auxiliares são os mostrados no Quadro 12. Forma conceptual a. X está em Y b. X move para/de Y c. X faz Y d. X quer Y e. X torna-se Y f. X é (como) Y g. X está com Y h. X tem Y i. X está como Y está Classificação da proposição Localização Movimento Ação Volição Mudança de estado Equação Companhia Posse Modo Quadro 12: Esquemas de eventos fontes para as categorias gramaticais de tempo e aspecto - Heine (1993, p. 31). Heine (1993) propõe que os esquemas de eventos (elementos lexicais) são tratados como itens de origem e os conceitos gramaticais, constituídos com base 121 nesses itens, são elementos alvos. Segundo ele, a transição de um conceito de origem para o alvo não é um processo discreto, e, sim, contínuo. Na passagem de um conceito de origem lexical para um conceito alvo gramatical, é gerada a ambiguidade, já que uma mesma expressão pode se referir simultaneamente a dois conceitos diferentes. Ao exemplificar com a formação da construção is going to, mostra que o verbo passa por distintos estágios, inclusive um ambíguo, em que é possível advir dela o sentido de movimento ou de tempo futuro. De acordo com ele, esse é um estágio necessário na reanálise dos verbos como auxiliares, como pode ser notado no Quadro 13. Estágio Conceito I II III John is going to town John is going to work John is going to get soon soon sick soon Fonte Fonte / Alvo Alvo Quadro 13: Formação de going to como marcador de tempo futuro, através de um continuum constituído pelos polos source (origem) e target (alvo). A unidirecionalidade também é defendida por Heine et al. (1991), os quais defendem que o processo de gramaticalização é metaforicamente estruturado e, do ponto de vista cognitivo, costuma corresponder a um cline como o que segue: pessoa > objeto > processo > espaço > tempo > qualidade. Cada uma dessas categorias representaria um domínio conceptual que é importante para a estruturação da experiência. Assim como apresentada pelos linguistas, a disposição linear das categorias é unidirecional: à direita estão as mais abstratas e à esquerda, as menos abstratas. Segundo Heine e Kuteva (2005), a teoria da gramaticalização tem como meta descrever como as formas e as construções gramaticais surgem e se desenvolvem no tempo e, ainda, explicar porque elas são estruturadas da forma como são. A fim de entender e descrever essas evoluções de padrões de uso e categorias gramaticais, os autores apresentam os parâmetros de gramaticalização (HEINE & KUTEVA, 2005, p. 15 e 80; 2006, p. 58), como se vê a seguir: 122 (a) Extensão (ou generalização contextual): o uso em novos contextos leva a novos significados. (b) Dessemantização (ou desbotamento semântico): perda de traços do conteúdo. (c) Decategorização: perda das propriedades morfossintáticas características de formas lexicais ou menos gramaticalizadas. (d) Erosão (ou redução fonética): perda de substância fonética. Lehman (2002 [1982], p.112-146) propõe processos cujos resultados são caracterizadores de um estágio mais ou menos avançado de gramaticalização. O primeiro deles, ligado ao parâmetro da Integridade, é a Atrição. A definição desse processo aponta para a diminuição da proeminência de um signo em relação ao restante do sintagma através de redução de massa fonológica e de substituição de um significado mais lexical por um mais gramatical47. O segundo, conhecido como Paradigmatização, caracteriza-se pelo fato de que as formas mais gramaticalizadas tendem a integrar paradigmas mais bem definidos. Esse processo se relaciona ao parâmetro da Paradigmaticidade. Relacionado ao parâmetro da Variabilidade Paradigmática, o processo da Obrigatoriedade refere-se ao fato de que o uso de uma dada forma, que antes era opcional na língua, torna-se obrigatório. Os três processos acima, bem como os parâmetros a eles correspondentes, operam no eixo paradigmático. Para o eixo sintagmático, o autor propõe mais três processos, também relacionados a um parâmetro cada. A Condensação – ligada ao parâmetro do Escopo – representa o encurtamento das formas gramaticalizadas, enquanto o da Coalescência – ligada à Conexidade – diz respeito à aglutinação de formas adjacentes em um todo mais coeso. Por último, pelo processo de Fixação, a ordem dos constituintes que antes era livre tende a se tornar fixa. Esse processo diz respeito ao parâmetro da Variabilidade Sintagmática. Hopper (1991) também apresenta princípios caracterizadores da gramaticalização, que permitem a identificação dos primeiros estágios do processo. O primeiro princípio é conhecido como Estratificação e caracteriza-se pela emergência de novas estruturas, de funções semelhantes ou idênticas às antigas. As novas podem 47 A Atrição está relacionada aos processos de Erosão e Dessemantização, conforme proposto por Heine (2003). 123 coexistir com as estruturas antigas da língua e funcionar como “alternativas estilísticas” e levar ou não séculos para substituirem as antigas. O segundo princípio é o da Divergência, de acordo com o qual um item em processo de gramaticalização, ao se tornar clítico ou afixo, pode manter sua forma-fonte, que permanece como um elemento autônomo, igualmente sujeito a mudanças que atingem os membros de sua classe. De acordo com a Especialização, o número de formas empregadas para exprimir um significado pode sofrer uma redução e um número menor de formas passa a expressar significados gramaticais mais gerais. Este princípio – da especialização - aproxima-se da Obrigatoriedade, de Lehman, sendo que um foca no estágio final em que a estrutura se torna obrigatória e outro, no processo. Podemos citar, também, o princípio da Persistência, segundo o qual alguns traços semânticos originais permanecem na estrutura em processo de gramaticalização, e a Decategorização, que representa a perda de traços categoriais primários, associados a uma determinada classe. Os princípios aqui apresentados revelam o caráter dinâmico da gramática, representando as constantes mudanças da língua que são consequências de buscas incessantes pelos falantes da estruturação de novas expressões adequadas às diferentes situações comunicativas. Logo, o processo de gramaticalização não pode ser encarado como algo repentino, mas, sim, gradual. A Construção do Aspecto Inceptivo no Português é produto de gramaticalização, uma vez que verbos que antes apresentavam sentidos lexicais, passam a assumir funções de auxiliares, visto que se realizam como marcadores de aspecto (dessemantização e decategorização). Ao mesmo tempo, combinações entre V1fin e V2inf, que eram improváveis quando V1fin era utilizado com sentido lexical, tornam-se possíveis à medida em que este se torna um auxiliar (extensão). Tanto os parâmetros propostos por Lehman (2002 [1982]), Heine e Kuteva (2005; 2006), quanto os princípios propostos por Hopper (1991) podem ser aplicados na análise da CI. Apesar da aparente clareza do processo de gramaticalização da CI, algumas questões emergem justamente pelo fato de se estar tratando da gramaticalização de uma construção e não de um item, quais sejam: 124 i. Em que medida o parâmetro da Extensão (HEINE & KUTEVA, 2005; 2006) deve ser analisado em uma construção cujas posições tanto de V1fin quanto de V2inf podem sofrer restrições de preenchimento? ii. Em que medida o princípio da Persistência (HOPPER, 1991) restringe a aplicação do parâmetro da Extensão? Com objetivo de responder essas questões, foram levantadas ocorrências da CI no CP. Dada a intenção deste capítulo de averiguar a influência da semântica vestigial (também chamada de Esquema Imagético Subjacente, cf. SWEETSER, 1989; 1990) dos verbos que podem ocupar a posição de V1fin na CI sobre a possibilidade de extensão de tal construção, foram investigados os verbos que não marcadamente são aspectuais canônicos48 – como cair, danar, deitar, desatar, desandar, disparar, entrar, pegar e romper. Através do mecanismo de busca do Córpus do Português (CP), foram investigadas, em todos os séculos e em todos os textos disponíveis, as ocorrências dos verbos listados acima seguidos de um verbo no infinitivo. Após refinamento, foram encontrados, ao todo, 945 dados. Levantadas as instanciações da CI do Córpus do Português, elas foram agrupadas tomando como base o verbo que ocupa a posição de V1fin e, posteriormente, investigadas segundo o tipo semântico dos verbos que ocupam a posição V2inf. Com o intuito de verificar os padrões de combinação V1fin e V2inf na CI, buscamos elaborar uma lista de tipos semânticos de V2inf para que pudéssemos notar suas semelhanças e regularidade de ocorrência. Com base em Noonan (2007, p. 99), propusemos alguns tipos verbais, os quais estão numerados abaixo de 1 a 6. Os demais foram criados com base na observação dos dados e tendo em vista aqueles apresentados por Halliday (1994). Seguem na Tabela 1 abaixo os tipos verbais que foram analisados e, ainda, exemplos de cada um deles. 48 Como definido na introdução, são considerados aspectuais não canônicos aqueles verbos que, em seu sentido pleno, não denotam fase. Entretanto, em uma configuração sintático-semântica específica, eles passam a figurar como marcadores de aspecto inceptivo. 125 Número 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 Tipo verbal Manipulativo Desiderativo Perceptivo Processo mental Atitude proposicional De elocução De deslocamento De ação Estativo atributivo Fenômeno da natureza Mudança de estado De sentimento Emotivo Exemplos Ordenar, persuadir, fazer com que Querer, desejar, ter vontade de que Ver, ouvir, escutar, sentir Saber, entender, compreender Achar, acreditar, crer Dizer, falar, contar Ir, vir, andar, entrar Fazer, pegar Ficar, ser, permanecer, estar Chover, nevar Secar, passar [o tempo] Amar, gostar, odiar Chorar, entristecer, soluçar [de tristeza]. Tabela 1: Tipos semânticos de V2inf O levantamento do tipo semântico de V2inf foi associado ao século em que primeiro ocorreu cada tipo, a fim de analisarmos o parâmetro da extensão ou não na construção. 5.2 Possibilidades de Combinação entre V1fin e V2inf na CI Como já foi proposto por Goldberg (1995, 2010), os verbos não se inserem aleatoriamente nas construções. Tendo como base esse fato, analisamos a CI levando em conta não apenas o primeiro verbo da construção, o qual é o indicador do aspecto inceptivo, mas, ainda, o V2inf. Estes foram agrupados em tipos semânticos, os quais foram explicitados na seção anterior. A Tabela 2 mostra, em porcentagem aproximada, a ocorrência de cada tipo verbal associado aos distintos verbos que podem preencher a posição de V1fin estudados nesta tese. Nela, será possível observar a quais tipos de V2inf cada V1fin se liga. Estão tonalizados em cinza aqueles dados mais representativos de cada agrupamento, sendo que eles podem estar em tom mais ou menos escuro, a depender do número maior ou menor de ocorrências em cada caso. 126 V1 fin V2 inf Danar a Danar de Rom per a Desand ar a Dispa rar a Desa tar a Cair a Pegar a Pegar de Entrar a Total de dados 3 2 68 33 22 237 8 61 8 339 Manipulativo 3 Desiderativo 2 Perceptivo 16 Processo mental Atitude proposicional De elocução 0.42% 25 50% 0.42% 12.5% 12 162 7.8% De ação 332 66.6% 18% De sentimento TOTAL 0.6% 1.85% 5.6% 2.46% 2.07% 0.62% 1.6% 15.15 % 12.12 % 33.3% 17.66 11.1% % 4.21% 11,5% 36.36 % 9.7% 8.19% 13% 7.37% 11.1% 55.5% 9.9% 9.7% 37.5% 70.5% 75% 53.4% 22.2% 29.01 % 2.07% 4.32% 14 de 162 12.5% 3.25% 6.06% De deslocamento Emotivo 11.1% 3.03% 6.2% da 9 Deitar a 0.6% 87 Estativo / atributivo Fenômeno natureza Mudança estado Entrar de 6 50% 11 3.03% 1.3% 3.03% 0.8% 0.31% 12.5% 1.63% 33.3% 1.23% 3 0.9% 278 33.3% 100% 100% 68% 24.24 73.41 52.5% 37.5% 6.55% % % 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 6.78% 11.1% 3.7% 100% 100% 100% Tabela 2: Distribuição das ocorrências da CI com base na combinação de tipos semânticos de V2 com 49 cada possibilidade de preenchimento de V1fin . Verifica-se que, dentre as ocorrências da CI, na posição de V2inf, predominam os verbos de ação. O segundo tipo mais recorrente de V2 inf seriam os verbos emotivos e, o terceiro seriam os de deslocamento. É importante notar a presença de preposições distintas nos V1fin danar, entrar e pegar, os quais podem ser seguidos de a ou de. Para danar, verifica-se quase distribuição complementar. Para os outros, uma certa superposição. Como é possível notar pela leitura da Tabela 2, as instanciações da Construção Inceptiva preenchida por pegar a, pegar de, entrar a e deitar a se ligam, sobretudo, a 49 As porcentagens foram calculadas verticalmente. Foram eliminados da contagem de dados desta tabela duas ocorrências que se mostraram únicas, quais sejam, do V1fin (romper) associado ao V2inf (concluir) e do V1fin (entrar) ligado ao V2 inf (possuir). O primeiro V2inf se encaixava na classe dos aspectuais e o segundo, na classe dos possessivos, as quais foram eliminadas deste estudo por apresentarem apenas 1 ocorrência. Não houve ocorrências em V2inf de existenciais. 127 verbos de deslocamento e/ou de ação. A força motivadora das possíveis regularidades será discutida neste capítulo. Além de observar a que tipos semânticos de V2inf os V1fin da CI se combinam, é interessante perceber a quantos tipos verbais distintos cada possibilidade de preenchimento da Construção Inceptiva se liga. Vê-se que o preenchimento em V1fin com danar a e de é aquele que, de acordo com os dados, mostrou-se menos produtivo na CI, ou seja, associou-se a menos tipos verbais (apenas a dois tipos verbais distintos em V2inf). Isso é o contrário do que ocorre com entrar a. Na posição de V1fin com entrar a, houve associação de doze tipos semânticos distintos de V2inf. Nota-se, em geral, que os verbos mais frequentes nas construções inceptivas são também aqueles que se associam a mais tipos verbais em V2inf, ou seja, os verbos que apresentam maior frequência token são também aqueles com maior frequência type50. Porém, essa relação direta entre números de ocorrências e associação a tipos verbais mais variados não ocorre no caso de desandar. Esse, apesar de não figurar entre os mais frequentes, relaciona-se a, ao menos, oito tipos verbais em V2inf. No entanto, verbos cuja aparição na CI é mais recente, caso de danar, que só aparece a partir do século XX, tendem a se combinar com menos tipos verbais. Outra análise realizada com intuito de atestar parte de nossa hipótese será apresentada por meio dos gráficos que seguem. Os gráficos foram nomeados e organizados tendo em vista o V1fin e a preposição a que se associa na CI. Na linha horizontal, observam-se os séculos de ocorrência de cada preenchimento da construção e as cores e formas apontam para o tipo de V2inf que preenche a CI, de acordo com pesquisa de dados realizada no Córpus do Português. Na linha vertical, pode-se ver o número real de ocorrências de cada V1fin associado ao V2inf em determinado século: 50 A distinção de frequência token e type foi tomada com base em Bybee (2003). Token ou freqüência textual é o número de ocorrências de uma unidade, por vezes uma palavra ou morfema, independentemente do significado advindo dela. A frequência type refere-se à frequência de um padrão particular de dicionário. 128 Gráfico 1: Ocorrências de CI preenchidas por cair a, na posição de V1fin, através dos séculos. No Gráfico 1, em que a posição de V1fin é preenchida por cair seguido da preposição a, nota-se que a primeira ocorrência com ele, datada do século XVIII, acontece com V2inf de ação. Percebe-se, ainda, que o V1fin cair a se associa a V2inf de processo mental, de mudança de estado e emotivo. Há maior número de ocorrências de V2inf do tipo emotivo no século XIX. Vejamos agora as ocorrências de preenchimento da mesma construção com danar, subcategorizando as preposições a – Gráfico 2 – e de – Gráfico 3 – respectivamente: Gráfico 2: CI preenchida por danar a, na posição de V1fin, através dos séculos. Gráfico 3: CI preenchida por danar de, na posição de V1fin, através dos séculos. 129 O verbo danar ocorre na posição V1fin apenas no século XX, o que mostra ser recente com relação aos demais. Danar a co-ocorre com V2inf de ação e emotivo. Já danar de, associa-se a apenas um verbo de processo mental e de mudança de estado. O número de ocorrências com V1inf danar é pequeno. Já com desandar a, esse número se mostra bastante saliente. Veja-se o Gráfico 4: Gráfico 4: CI preenchida por desandar a, na posição de V1fin, através dos séculos. Desandar a começa a ser empregado na posição de V1 no século XIX, época em que co-ocorre com verbos de atitude proposicional, percepção, ação, mudança de estado, emoção e deslocamento. No século XX, observa-se uma expansão contextual e desandar a passa a anteceder também verbos de elocução e fenômeno da natureza. Também presente a partir do século XIX, porém associado a menos tipos de V2inf, encontramos a CI preenchida por disparar a – Gráfico 5: Gráfico 5: CI preenchida por disparar a, na posição de V1fin, através dos séculos. 130 Dentre os dados com o V1fin (disparar) na CI, é relevante destacar a sua forte associação a verbos que marcam deslocamento, ação e a verbos emotivos, nos séculos XIX e XX. Foram encontradas 8 ocorrências de V1fin ligado a verbos de movimento e 12, de emoção. Em V1fin preenchido por romper a51, na CI, o número de dados mostrou-se ainda maior: Gráfico 6: CI preenchida por romper a, na posição de V1fin, através dos séculos. Como é possível notar por meio do Gráfico 6, esse V1fin associou-se a verbos de elocução, de deslocamento, de ação e de emoção, destacando-se esses últimos. Vejase que foram encontrados 28 dados de V2inf emotivos no século XIX e 17 no século XX. Essa alta associação a emotivos também ocorreu com desatar a. No Gráfico 7, destacam-se as ocorrências de V2inf emotivos nos séculos XIX e XX. Embora a construção preenchida com desandar tenha surgido no século XVIII e suas primeiras aparições tenham ocorrido com V2inf de mudança de estado, há apenas dois dados de V2inf que denotam essa ideia nesse século. 51 Como explicitado em nota anterior, foi encontrada apenas uma ocorrência em que a posição de V2inf foi preenchida por um verbo cuja semântica expressa o término de um estado de coisas e isso aconteceu com o V1fin preenchido por romper. Observe: Como tinha vindo a representar, como dissemos, ao Augustíssimo Rei, e a implorar o remédio para a Gentilidade dos miseráveis, e desamparados Índios, foi tal o fogo, com que declamou, que (atónito, e assombrado o auditório) rompeu a concluir o Sermão neste vivo apóstrofe, voltando-se já para Deus, já para ElRei alternadamente.( A Vida do Padre António Vieira, 1727) 131 Gráfico 7: CI preenchida por desatar a, na posição de V1fin, através dos séculos. O preenchimento com pegar surge na CI no século XIX e pode se dar com as preposições a e de, como será possível notar nos Gráficos 8 e 9 a seguir: Gráfico 8: CI preenchida por pegar a, na posição de V1fin, através dos séculos. 132 Gráfico 9: CI preenchida por pegar de, na posição de V1fin, através dos séculos. Tanto pegar a quanto pegar de se ligam, sobretudo, a V2inf de ação. É importante notar que, no século XX, há aumento de ocorrências com pegar seguido de a, fato que aponta para a tendência ao desaparecimento de Construção Aspectual Inceptiva preenchida com pegar de. Dentre os preenchimentos mais antigos da Construção Aspectual Inceptiva na língua, temos aqueles em que a posição de V1fin é ocupada por deitar e por entrar, ambos V1fin seguidos da preposição a. Observem-se os Gráficos 10, 11 e 12. Gráfico 10: CI preenchida por deitar a, na posição de V1fin, através dos séculos. 133 Em V1fin preenchido por deitar, vemos a alta associação com V2inf indicando deslocamento a partir do século XV. Ainda, há de se destacar, principalmente, o número de ocorrências associadas a verbos desse tipo no século XIX. Provavelmente, por ser um preenchimento de V1fin mais antigo na língua, ele se liga a tipos diversos de V2inf. O verbo entrar pode ser seguido das preposições a e de na CI. No que tange a entrar seguido por de, foram encontradas apenas 9 ocorrências. Esse preenchimento da construção nasce no século XIX, como se pode notar abaixo: Gráfico 11: CI preenchida por entrar de, na posição de V1fin, através dos séculos O V1fin preenchido por entrar a teve maior número de ocorrências, associando-se a muitos tipos de V2inf: 134 Gráfico 12: CI preenchida por entrar a, na posição de V1fin, através dos séculos. O V1fin entrar se liga, segundo os dados, sobretudo a verbos de ação e de elocução a partir do século XV. Esse foi o preenchimento não canônico da CI que representou o maior número de dados na busca realizada no CP, fato que também justifica sua alta associação a V2 inf distintos. A Tabela 3 apresenta a relação entre V1fin e V2inf por século e a mancha em cinza e o aumento de linhas ajudam na percepção da extensão. Ocorrências de [V1fin cair (Prep) V2inf] XV XVI XVII XVIII XIX XX 1 1 1 1 1 2 1 XV Ocorrências de [V1fin danar (Prep) V2inf] XVI XVII XVIII XIX XX 2 1 1 1 Tipo Semântico de V2inf Ação Mudança de Estado Processo mental Emoção Tipo Semântico de V2inf Ação Mudança de Estado Processo mental Emoção 135 XV 4 2 Ocorrências de [V1fin deitar (Prep) V2inf] XVI XVII XVIII XIX 10 5 15 1 4 65 2 5 2 2 1 XX 13 1 20 4 4 2 1 Ocorrências de [V1fin desandar (Prep) V2inf] XV XVI XVII XVIII XIX XX 1 10 2 6 2 2 1 1 5 1 XV Ocorrências de [V1fin desatar (Prep) V2inf] XVI XVII XVIII XIX XX 2 138 36 3 20 7 16 2 8 1 2 1 1 Ocorrências de [V1fin disparar (Prep) V2inf] XV XVI XVII XVIII XIX XX 6 6 8 2 Tipo Semântico de V2inf Ação Percepção Deslocamento Estado Emoção Manipulativo Fenômeno da natureza Processo mental Sentimento Atitude proposicional Tipo Semântico de V2inf Ação Emoção Deslocamento Percepção Mudança de Estado Elocução Fenômeno da natureza Tipo Semântico de V2inf Mudança de Estado Emoção Ação Deslocamento Elocução Fenômeno da natureza Atitude proposicional Manipulação Tipo Semântico de V2inf Ação Deslocamento Emoção 136 XV 3 Ocorrências de [V1fin entrar (Prep) V2inf] XVI XVII XVIII XIX 7 11 56 70 3 2 9 36 1 8 1 8 10 9 2 1 1 20 19 6 1 1 1 Ocorrências de [V1fin pegar (Prep) V2inf] XV XVI XVII XVIII XIX 19 3 3 1 1 XX 36 11 2 1 3 7 1 1 - XX 30 4 3 3 1 Ocorrências de [V1fin romper (Prep) V2inf] XV XVI XVII XVIII XIX XX 28 17 7 5 3 1 2 3 Tipo Semântico de V2inf Ação Elocução Percepção Estado Processo mental Sentimento Emoção Deslocamento Atitude proposicional Desejo Fenômeno da natureza Manipulativo Tipo Semântico de V2inf Ação Elocução Deslocamento Emoção Percepção Atitude proposicional Tipo Semântico de V2inf Emoção Ação Elocução Deslocamento Tabela 3: Ocorrências da CI preenchidas em V1fin por entrar e romper ao longo dos séculos. A mancha em cinza aponta para a extensão da construção no que tange aos tipos semânticos de V2. A título de esclarecimento de observação e análise dos dados tendo em vista a aplicação dos parâmetros da gramaticalização, que será feia em 4.3, foquemos em dois preenchimentos que serão importantes elementos de análise: romper e entrar. 137 Ocorrências de [V1fin entrar a V2inf] XV XVI XVII XVIII 3 7 11 3 XX 56 70 34 Ação 2 9 35 11 Elocução 1 - 8 2 Percepção 1 - 6 - Estado 10 9 - Processo mental 2 1 - Sentimento 1 20 2 Emoção 18 7 Deslocamento 6 1 Atitude proposicional 1 1 Desejo 1 - Fenômeno da natureza Ocorrências de [V1fin romper a V2inf] XV XVI Tipo Semântico de V2inf XIX XVII XVIII Tipo Semântico de V2inf XIX XX 28 17 Emoção 7 5 Ação 3 1 Elocução 2 3 Deslocamento Tabela 4: Ocorrências da CI preenchidas em V1fin por entrar e romper ao longo dos séculos. A mancha em cinza aponta para a extensão da construção no que tange aos tipos semânticos de V2. Na Tabela 4, nota-se que os primeiros dados de entrar a na CI ocorrem no século XV com os verbos de ação, aumentando gradativamente a frequência de uso no século XVII. Nos séculos XVIII e XIX, há crescimento abrupto no número de dados em que V2inf é preenchido por verbos de ação e aumento de ocorrências com V2inf de elocução e emoção. No século XX, há uma queda vertiginosa no número de ocorrências da CI com entrar a, sendo que os V2inf de ação e de elocução continuam preponderantes com relação aos demais. A instanciação com entrar a na CI representa, dentre os preenchimentos da Construção Inceptiva menos canônicos, a mais antiga, surgindo no século XV. Uma das 138 possibilidades de preenchimento em V1fin mais recente, segundo os dados, é a de romper. Um cotejo entre as duas instanciações da CI mostra: • as ocorrências em V1fin com entrar mostram-se mais produtivas, contrastando com aquelas preenchidas por romper, que são menos produtivas; • V1fin entrar se associa a 11 tipos semânticos distintos de V2inf, enquanto romper se associa a 4; • as primeiras construções com entrar ocorrem no século XV e com romper, no século XIX; • enquanto V1fin entrar se associa com maior frequência a verbos de ação, romper o faz com verbos de emoção. É importante ressaltar que essa alta associação de V1fin a tipos semânticos distintos de V2inf parece estar ligada ao fato de o preenchimento da CI com romper ser mais recente, enquanto o com entrar ser o mais antigo nos dados. Nota-se também, em geral, que os verbos mais frequentes na Construção Inceptiva são também aqueles que se ligam a mais tipos verbais em V2inf. Como se pôde notar, em alguns casos, as ocorrências apontam para uma forte associação de um preenchimento específico de V1fin na construção aspectual a um tipo de V2inf também determinado. Isso nos leva a notar uma ligação não aleatória entre os verbos da construção, o que será analisado nas seções que se seguem. 5.3 Gramaticalização na CI A pesquisa de dados mostrou que, ao longo dos séculos, a CI experimenta um crescimento contínuo no número de tipos semânticos de V2inf que podem a ela se vincular, o que caracteriza o parâmetro da Extensão (cf. HEINE & KUTEVA, 2005; 2006). Por outro lado, é possível perceber que determinados tipos semânticos de V2inf associam-se preferencialmente a instanciações da CI preenchidas por verbos específicos, o que, segundo a hipótese desenvolvida neste trabalho, deve-se à manutenção – ou Persistência – de estruturas semânticas subjacentes nos verbos que ocupam a posição de V1fin. É a esses pontos da análise que voltaremos nossa atenção. 139 5.3.1 O Parâmetro da Extensão na CI Segundo Heine e Kuteva (2005; 2006), o mecanismo da extensão se traduz no conceito de que o uso em novos contextos motiva novos significados. Tal expansão de possibilidades de emprego de uma dada forma – a Construção Inceptiva, no caso deste trabalho – torna-se possível, uma vez que há a perda de ancoramento de seu significado na realidade percebida pelo falante. Em outras palavras, como a Construção Inceptiva, ao longo do processo de gramaticalização, tem o significado de V1fin esvaziado de seu conteúdo mais lexical e preenchido por um sentido gramatical de aspecto – fundado na semântica vestigial dos verbos que podem ocupar essa posição, conforme se verá na seção posterior –, a posição de V2inf passa a poder ser preenchida por verbos cuja combinação com os respectivos V1fin seria improvável, caso um verbo como entrar, por exemplo, mantivesse seu sentido lexical de ‘movimento para dentro’. Vejam-se os exemplos de (65) a (68) abaixo: (65) (66) (67) (68) A iija. he se algûû homë ouuesse conpradas as uhuas dalgûã vinha ou fructo dalgûãs aruores dortas. ou doutra herdade & ouuesse pagado o preço. entotõ poderya entrar a colher o fructo que conprou & o ssenhor da erdade nõ lhi pode defender a entrada. pero o quisesse fazer. (CP, XIV, Afonso:Partida3) O que suposto, respondendo agora à primeira pergun ta, há de se dizer, que os primeiros progenitores dos índios da América (segundo esta opiniao) entraram a povoá-la sucessivamente com os que entraram a povoar a ilha de Atlante; pois tudo era a mesma terra, mais, ou menos distante das Colunas de Hércules. E foi muito antes, que na dita ilha reinasse o Príncipe Atlante, que sucedeu nos anos da criaçao do mundo 2334 segundo o cômputo dos Autores que descrevem este seu reinado, e o de outro seu irmao, nesta ilha. (CP, XVII, Vasconcelos:Jesus) Chamei então o meu criado - que é velho e minhoto - disse-lhe que daqui em diante, quando lhe pedisse o rocló, devia trazer-me o chambre. O criado pôs as mãos às ilhargas, e entrou a rir como um perdido. Perguntei-lhe por que se ria, e repeti-lhe a minha ordem. - Mas o patrão há de me perdoar se lhe digo que não entendo. Então o chambre agora é rocló? -Sim, que tem? - É que lá na terra rocló é outra cousa, e um capote curto estreito e de mangas. Parece-me tanto com chambre, como eu me pareço com o patrão, e mais não sou feio. (CP, XIX, Machado:Bons) Novos archotes, gente às janelas, luzes, magotes de povo ao longo da rua irregular por onde o entêrro passa.. Depois, tornam-se a ouvir os marulhos do Tejo, pela direita, a dois tiros d' espingarda, e alvejam como montanhas d' ossos, a um lado e outro do caminho, os depósitos de pedra dos canteiros de Lisboa. Entra a chover, grandes franjas de nuvens que zebram o céu, parece que se alongam cada vez mais, como enormes crepes. Por momentos di-las-hieis miragens d' árvores gigantes, criptomérias, cupressos, wellingtónias, todos os monstros da flora antediluvial dos' 140 velhos continentes, com a sua sensação de pesadelo subterrâneo e mina de hulha, a sua luz hiperbórea, e a frialdade medular que infundem as grandes obras da natureza em via de regressão ao eterno nada. (CP, XIX, Almeida: Gatos 1) Nota-se que, em (65), o verbo entrar ainda mantém seu sentido de ‘movimentarse para dentro’, uma vez que, ao sujeito que pagou pelas uvas ou frutos, é assegurado o direito de entrar na propriedade daquele que os vendeu para colhê-los. Assim, a expressão em destaque “entrar a colher” não é uma instanciação da CI, mas, sim, a junção de uma clásula núcleo – “entõto poderya entrar” – a uma cláusula hipotática de finalidade – “a colher”. Reforça essa análise o fato de que, no mesmo trecho, a lei em questão prevê que o dono da terra cujas uvas foram compradas “nõ lhi pode defender a entrada”, mesmo que o queira fazer. Já em (66), a leitura “cláusula núcleo + hipotática de finalidade” coexiste com a leitura aspectual, na medida em que é possível tanto interpretar que os primeiros progenitores dos índios americanos entraram na América para povoá-la (ou povoandoa) ao mesmo tempo em que o faziam os atlantes, quanto que tais progenitores começaram a povoar a América ao mesmo tempo em que se começava a povoar a Ilha de Atlante. A ambiguidade é sustentada pelo fato de o continente americano poder ser entendido como o lugar em que se entra, o que levaria à manutenção da semântica lexical do verbo entrar. Já em (67), tal possibilidade de leitura de entrar como verbo pleno não mais existe. O patrão e o criado encontram-se travando um diálogo no mesmo cômodo, o que inviabiliza a leitura de entrar como ‘deslocar-se para dentro’. Apenas a leitura aspectual é possível. O mesmo ocorre em (68), porém, nesse exemplo, é possível ver o processo de extensão de forma nítida. Observe-se que em “Entra a chover” não há sequer a subcategorização de um sujeito, o que caracteriza um contexto de uso totalmente novo para as instanciações da CI. Com o emprego em novos contextos, o V1fin entrar deixou de subcategorizar sujeitos [+ animados] e, como se pode ver em (68), deixou mesmo de subcategorizar qualquer sujeito. Com base em exemplos como esses e também com base nos dados da Tabela 1, na qual é possível observar o aumento do número de tipos semânticos de V2inf presentes na CI, pode-se argumentar em favor da ocorrência de Extensão ao longo da gramaticalização dessa construção. Entretanto, como se verá a seguir, esse 141 não é um processo que ocorre aleatoriamente ou indiscriminadamente, independentemente dos verbos em V1fin. 5.3.2 O Princípio da Persistência na CI Hopper (1991), ao tratar dos princípios da gramaticalização, com o intuito de checar o processo no início, preocupa-se mais em ressaltar seu caráter gradual do que em propor critérios capazes de distinguir a gramaticalização de outros processos de mudança. Nesse sentido, propõe cinco parâmetros que visam a observar o início do processo de gramaticalização. Dentre eles, encontra-se o da Persistência, segundo o qual há traços semânticos originais que permanecem na estrutura linguística que passou por mudança. Há autores que, adotando um viés semântico-cognitivo do estudo da língua, referem-se à mesma noção salientando a manutenção de esquemas imagéticos subjacentes aos itens gramaticalizados, como produto da dessemantização (SWEETSER, 1990). Na CI, vemos que as associações de V1fin e V2inf não são aleatórias, o que é comprovado por meio da análise de dados que mostram a presença mais saliente de determinados tipos de V2inf, fato que nos leva a pensar sobre os fatores motivadores na ligação de V1fin e V2inf. É importante perceber que todos os V1fin são associados, em algum nível, à noção de movimento, de deslocamento, o que, inclusive, parece ser um fator definidor para sua gramaticalização como marcador aspectual. Uma das formas de estudar a categoria cognitiva do movimento é através da Dinâmica de Forças. Talmy (2001, p. 409-468) mostra que a Dinâmica de Forças pertence ao campo das relações entre a estrutura conceptual da linguagem e os domínios cognitivos, figurando na estruturação da linguagem em todos os seus níveis. Assim, os itens lexicais que se ligam à dinâmica de forças se referem não apenas a interações de força, mas, por extensão metafórica, também a interações sociais e 142 psicológicas. É o que ocorre nas construções causativas e modais, por exemplo52 (Cf. TALMY 2001; SWEETSER, 1990). Essas relações se fazem relevantes neste trabalho, uma vez que os dados corroboram a hipótese de persistência de estruturas vestigiais em V1fin, as quais irão interferir em suas possibilidades combinatórias em relação a V2inf. 5.3.2.1. Quebra de Barreiras Na Tabela 2, notamos que as instanciações da CI preenchidas em V1fin por romper e desatar se destacaram, especialmente, por co-ocorrerem com verbos emotivos na posição de V2inf. Romper associou-se em 68% das ocorrências a V2 emotivos, enquanto desatar o fez com 75,2%. Essas são percentagens altas e, portanto, relevantes para a nossa pesquisa. Elas nos levaram a refletir sobre a motivação dessa associação entre os V1fin e V2inf citados. Dentre os padrões básicos da dinâmica de forças propostos por Talmy (2001, p. 415), o da quebra de barreiras contribui sobremaneira para a explicação de tal associação. Observe-se o esquema representado na Figura 4. + > Figura 4:Esquema de representação do modelo da Quebra de Barreiras O círculo indica o agonista e a forma à sua direita, o antagonista. O símbolo + indica, na dinâmica de forças, a força do agonista que, nesse caso, é maior do que a do antagonista. O sinal > indica a tendência de movimento em direção ao agonista, 52 Sweetser (1990, p.50) cita o caso do verbo magan, do inglês antigo, o qual originalmente significava ‘ser forte’, tendo passado a desempenhar função modal. 143 desencadeado por um agente externo, enquanto a seta indica que o agonista tende ao movimento. Se pensarmos sobre a semântica dos usos mais lexicais dos verbos romper e desatar, conforme apresentados nos exemplos (69) e (70), notamos que ambos trazem em si a noção de quebra de barreira, representada pela quebra de contêiner. Leia: (69) (70) Quem tomar peemdença as portas da ygreia e torna mays aquel pecado.x. anos faça peëdemça. Quem se bem quyser cõfessar demande clerigo sesudo que lhe sayba dar peemdença uerdadeira. E o homë que fezer sacrilegio se rompe ygreia ou dela tira algûa cousa sagrada e metea aqueles husos que nõ deue, sete anos faça peëdemça. E em nos primeyros dous anos nõ deue de emtrar na igreia ataa quatro anos nõ deue d'ofrecer..(CP, XV, Tratado de Confissón) Dos furtos & roubos. Lei. I. Dos que cortão bolsas. Determinou elRei dom Manuel em relação a.22. de Feuereiro de. 1499. que qualquer pessoa, que fosse tomada cortando e desatando bolsa, hora na bolsa se achasse dinheiro, hora não, se fosse pião, fosse açoutado & desorelhado. Fol. 115. do liuro primeiro. (CP, XV, Leis Extravagantes) No exemplo (69), prescrevem-se penitências para vários pecados, dentre eles, o de arrombar e furtar igrejas. O verbo romper, nesse caso, indica a abertura forçada da porta da igreja. Já em (70), o verbo desatar indica a abertura de uma bolsa que continha dinheiro. Em ambos os casos, os limites da igreja e a bolsa podem ser conceptualizados como contêineres, barreiras, que são quebrados, por iniciativa de um agente. Aplicando-se a esses exemplos o esquema da Figura 4, temos que o agonista é o invasor da igreja ou o ladrão, e o antagonista corresponde à porta da igreja ou à bolsa. O esquema da quebra de barreiras se mantém mesmo nos usos metafóricos dos verbos em questão, conforme atestam os exemplos de (71) a (76), esquematizados na Tabela 5. Exemplos (71) (72) (73) e de lhe pedir por mercé que o encaminhasse à salvaçaõ, e que o Infante voltou o rosto para outra parte, e lhe disse: Torna-te ao santo caminho, que deyxaste. E em isto adormeceo alli, até o outro dia em rompendo a alva. (CP, XV, D. Fernando) Senhor Deus, rogote que sooes e queiras toar cõ a tua voz grande e forte dentro ë na orelha do meu coraçõ! Rompe a minha sordidade e ësiname e salvame! (CP, XV, Agostinho) E avendo algum, que por especie de ingratidão trate com pouco favor meus trabalhos, a infamia Esquema da Quebra de Barreiras Agonista Antagonista Força a alva (a manhã) a escuridão (a noite) a passagem do tempo Deus a sordidez do suplicante a Obra as dificuldades a voz grande e forte de Deus no coração a esperança de ver a 144 de ser tal tomo por justa satisfação de meu Pátria agravo. Que de minha tenção sey merecer a agradecida todos os Portuguezes, acceitarem esta Obra, pela obra como de pessoa, que pela chegar ao fim tem rompido por mil difficuldades, bastantes a vencer qualquer animo: sustentandome no meo de tudo a esperança de ver as cousas de minha Patria engrandecidas por meu trabalho, & os naturaes della agradecidos pera comigo. (CP, XVII, Monarquia) (74) Assy alumee vossa luz diante dos homeës pa que vejã vossas obras & gloriffiquem a vosso padre que esta nos çeeos Nom cuydees que vijm a desatar h ley ou os prophetas: ca nã vijm a defazella mas a comprilla em verdade vos digo Em quanto correr o çeeo & este o cursu Da terra a lei e os aquilo que o locutor huû. j. ou huum tyl. nom passara da ley atee que profetas diz todas as cousas se façã. Pois o que quebrantar huû destes mãdamëtos pequenos: & ensynar assy aos homeës seera chamado pequeno no regno dos çeeos. (CP, XV, Santa Maria: Evangelhos) (75) E estando el-rey em Almada no mes d' Agosto deste anno de mil e quatrocentos e oytenta e oito teve conselho com todos os do seu conselho que presentes eram sobre o casamento do principe seu filho. Porque como atras se disse ao tempo que as terçarias se desfizeram em Moura, foy desatado o casamento do principe com a infanta aqueles que a anulação os “laços” do Dona Isabel, e ficou concertado com a infanta anularam o das terçarias casamento Dona Joana mais moça, ficando logo declarado casamento em Moura que se ao tem po que o principe ouvese ydade perfeita pera contratar matrimonio per palavras de presente, a infanta Dona Isabel que era mayor estevesse por casar, que o principe casasse todavia com ella, assi como de primeiro fora concordado. (CP, XVI, Resende: Vida) (76) Era tempo de acabar com aquilo; que se casassem depressa e lhe fugissem dos olhos. Ernestina falava agora, falava sempre, já sem calma, feliz, desatando frases de queixa, de a convenção a paixão censura, de desespero e de amor, deslumbrando Ernestina social que a ardente e Luciano com a sua voz quente, a sua formosura faria calar-se concentrada miraculosamente rejuvenescida nessa hora de enlevo e de paixão ardente e concentrada. (CP, XIX, Almeida:Viúva) Tabela 5: Aplicação do esquema da Quebra de Barreiras a usos metafóricos de romper e desatar Além de se manter nos usos metafóricos, o esquema da quebra de barreiras ocorre também quando esses verbos ocupam a posição de V1fin nos usos aspectuais, como se pode notar nos exemplos (77) e (78): (77) Uma sombria tarde de dezembro, de grande chuva, Afonso da Maia estava no seu escritório lendo, quando a porta se abriu violentamente, e, alçando os olhos do livro, 145 (78) viu Pedro diante de si. Vinha todo enlameado, desalinhado, e na sua face lívida, sob os cabelos revoltos, luzia um olhar de loucura. O velho ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra atirou-se aos braços do pai, rompeu a chorar perdidamente. Pedro! que sucedeu, filho? Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, à ideia do filho livre para sempre dos Monfortes, voltando-lhe, trazendo à sua solidão os dois netos, toda uma descendência para amar! (CP,18:PtQueirós, Maias) A cena da fuga: a irmã, de preto, com o embrulho das jóias, a caminhar cautelosa, surdamente e desaparecer diluindo-se como uma névoa. Deitou-se, cobriu-se, não tinha sono. E pensava: Onde iria? Como encontrá-la? Chegou-se mais à parede e, d' olhos fechados, meditava quando ouviu os arrancados soluços de Dona Júlia no quarto próximo. Pôs-se à escuta e os olhos foram-se-lhe enchendo d' água, uma opressão pesou-lhe no peito como se lho fosse esmagando e, de repente. afundando a cabeça no travesseiro, rompeu a chorar desesperadamente. 3 Eram seis horas da manhã quando acordou em sobressalto, como se houvesse sido violentamente despertado. Sentou-se na cama esfregando os olhos, moído de fadiga e os fatos da véspera afluíram-lhe à memória, nítidos e rápidos. A cena em casa, a caminhada através da noite tormentosa, a subida à polícia, o delegado sonolento. Mas, pensando na mãe, pôs-se de pé, descalço e saiu para a sala, já aberta e em ordem. (CP, 19Br:Neto, Turbilhão) Em (77), a força metafórica seria a possível morte de Maria. O agonista se constituiria no choro e o antagonista, no controle emocional. Já em (78), a força seria a dúvida com relação ao desaparecimento da irmã do personagem. Novamente o agonista é representado pelo choro e o antagonista, pelo controle emocional. Como vemos em (77) e (78), marcadores de aspecto associados à quebra repentina de barreira ligam-se sobretudo aos verbos emotivos. É interessante perceber, ainda, a presença dos advérbios de modo perdidamente e desesperadamente, os quais colaboram para a produção de noção de intensidade. Essa noção já está imbuída também no verbo romper. Se compararmos, por exemplo ela rompeu a chorar e ela começou a chorar, fica fácil notar que o primeiro exemplo apresenta uma ‘intensidade’, uma ‘quebra’ maior. Essa associação dos verbos como romper e desatar aos verbos emotivos é ligada às seguintes metáforas propostas por Lakoff & Johnson (2002 [1980]): EMOÇÃO É CONTÊINER: Estou num grande estado de nervos! EMOÇÃO É LÍQUIDO NUM CONTÊINER: Ele transbordava de alegria. As duas metáforas ilustram bem a associação que se dá entre V1fin(romper e desatar) e V2inf(emotivos), já que ambos têm associada a si a noção de contêiner. Afinal, ao romper algo, há uma barreira quebrada, e ao desatar algo, também. Quando um contêiner é 146 rompido ou desatado, as emoções “líquidas” dentro dele tendem a se espalhar, deixando de ser contidas. Uma vez que o esquema cognitivo dos verbos emotivos casa tão bem com o dos marcadores aspectuais romper e desatar, duas implicações deveriam se verificar quando da análise dos dados: (i) tais marcadores aspectuais devem combinar-se frequentemente com verbos emotivos e (ii) quando da extensão da CI para o uso com verbos emotivos, os aspectuais romper e desatar devem figurar prioritariamente nesses novos usos. A comprovação para a implicação (i) encontra-se nos dados apresentados na Tabela 3: 68% das ocorrências de CI com verbo romper e 73.4% das com verbo desatar marcam aspecto inceptivo com verbos codificadores de emoções. No que tange à implicação (ii), das 199 instanciações da CI com V2inf(emotivo) encontradas no século XIX, 28 têm V1 preenchido por romper, e 138 por desatar, o que totaliza 83,4% das ocorrências. Para o século XX, a realidade é bem semelhante, com 70,2% de todas as instanciações da CI com V2inf(emotivo) distribuídas entre romper (23,5%) e desatar (46,7%). O aspectual cair também se liga com frequência a verbos que codificam a noção de ‘experimentar emoções’ (37,5% das ocorrências). Esse aspectual também compartilha a mesma semântica vestigial de romper e desatar, qual seja a da remoção de barreiras, porém, de maneira um pouco diferente, na medida em que é a própria remoção da barreira o que permite o movimento do agonista. Quando algo cai, isso ocorre porque a força ou barreira que o mantinha apoiado ou em pé é removida. Tal fato também se dá repentinamente, o que aproxima bastante o esquema imagético subjacente desse verbo ao dos outros dois discutidos anteriormente. Ademais, todas as emoções codificadas pelos V2inf ligados a cair são negativas, o que se associa com a ideia de que o sujeito que “começa a soluçar” – exemplo (79) – ou a “entristecer” – exemplo (80) – começa também a “ficar para baixo”, o que é a manifestação de outra das metáforas orientacionais previstas por Lakoff e Johnson (2002 [1980]): 147 BOM É PARA CIMA RUIM É PARA BAIXO (79) (80) Chegou tarde à casa grande e quando disse que o pastor velho tinha morrido caiu a soluçar. (CP, XX, Nascimento: Tempera) Veio-lhe então um sobressalto de contentamento, mas logo depois caiu a entristecer. (CP, XIX, Azevedo: Mulato) Poder-se-ia questionar porque, então, o aspectual deitar não figura entre aqueles que se associam aos verbos emotivos, uma vez que indica um movimento com direção semelhante ao de cair. Entretanto, enquanto aquele indica um movimento controlado e provocado por um agente, este, como se disse, deve-se à remoção de um apoio, que leva a uma queda repentina e sem controle do agonista, o que casa com a noção de descontrole emocional. Vê-se, portanto, que a associação de um dado tipo de V2inf à CI, produto de sua extensão a outros contextos de uso, não se dá aleatoriamente. Tipos semânticos específicos de V2inf tendem a se associar a alguns aspectuais cuja semântica vestigial, aqui representada através de um esquema da Dinâmica de Forças, liga-se à sua própria configuração semântica. 5.3.2.2. Movimento sem Barreira Outro esquema da Dinâmica de Forças de Talmy (2001) contribui para este trabalho. Ao pensarmos nos sentidos lexicais originais de disparar e deitar, por exemplo, temos que ambos indicam a noção de que um antagonista faz com que o agonista vença a inércia e se ponha em movimento, o que é representado pelo esquema de Movimento sem Barreira indicado na Figura 5. + Figura 5: Esquema de representação do Movimento sem Barreira : 148 Nesse esquema, vemos que o agonista, representado pelo círculo, estava em inércia (●) e uma força, representada pelo antagonista, coloca-o em movimento. Nesse caso, não há barreira que impeça o movimento. Esse esquema se reflete nos sentidos lexicais tanto de disparar quanto de deitar, conforme se pode perceber em (81) e (82). (81) (82) O numero da gemte que, senhor, laa jaz me pareçee casy emfimdo, & com tudo esto veem agora aymda que nõ quedam. & tamto que nos vyram logo foram na praya, mas do gasalhado que rreçeberam de nossas beestas sey que vam pouco comtemtes, & allë disto disparamos tres trõs com que os fezemos de todo pomto leyxar a praya. (CP, XV, Meneses: Crónica) E esto sse deue a fazer mayormët en quanto diserem a missa por que estonçe cõsagrã o corpo & o sanguy de nostro senhor ihesu xpisto Ca tã nobre & tã santa cousa he esta que todo o al deue seer leixado ëmentre esto fezerë assy que nõ possa per elle viir destoruo në enbargo ao clerigo que consagrar. E sse lhy algûû perfiar nõ querendo leixar de o fazer deueno deitar ffora da igreia que seia clerigo quer leygo E ainda esta mãdaraõ que leuãdo o aa igreia ou aa coua o ffezessem que leyxassem os clerigos de ssoterrallo & dëcomëdar lhy a alma a deus dizendo sobre sobre elle aquelas oraçõës que ssom estabeleçudas. (CP, XIV, Afonso: Partida 1) Em (81) o agonista são os trons, pedras lançadas por uma catapulta, sendo os antagonistas os soldados que disparam a catapulta, responsáveis pela geração da força que impele o agonista a sair da inércia. Já em (82), o agonista é aquele que se interpuser à realização do ritual eclesiástico, o qual será lançado para fora da igreja pelo antagonista, cuja força o impelirá a sair da inércia. É importante ressaltar que o sentido mais antigo do verbo deitar é o de ‘lançar ao chão, jogar fora’ e não o de ‘colocar-se horizontalmente sobre uma superfície’. O esquema do Movimento sem Barreiras presente nos usos lexicais de disparar e deitar se mantém no uso aspectual desses dois verbos na CI, o que pode ser comprovado pela análise dos exemplos (83) e (84). Neles, o agonista é levado a principiar um movimento (saindo do estado de inércia) por obra da força de um antagonista, qual seja a “exclamação” do exemplo (83) e a vontade de pegar um fugitivo em (84). (83) (84) Taroucando tamancos, dois homens passaram por ele discutindo e, já longe, romperam em gargalhada estrondosa. Chegando ao Largo de S. Francisco teve uma exclamação e deitou a correr para um bonde que partia, quase vazio, com as cortinas descidas. Tomou-o na volta, apesar do aviso do condutor: " Que ia recolher ". (CP, XX, Neto: Turbilhão) Se amolaram as palanganas, e lá se vão zunindo! - Aonde? - Para o mosteiro em busca de asilo. Agora é assobiar-lhes às botas, ou aos calcanhares. - Pega! exclamou um mais ardente e disparou a correr. Outros o seguiram maquinalmente. ao mesmo tempo o meirinho com seus acólitos, capturando os dois improvisados minorenses, se 149 afastaram com eles, levando após a maior porção do povo. (CP, XIX, Alencar: Garatuja) As implicações propostas para os verbos romper e desatar na seção anterior também se fazem presentes para os verbos que compartilham o esquema do Movimento sem Barreiras. De todas as instanciações da CI preenchidas em V1fin por disparar, 36.36% se combinam com V2inf que indicam deslocamento. Para o verbo deitar, essa porcentagem é de 55,5% (vide Tabela 2). De maneira complementar, quando a CI se estende para abarcar verbos de movimento no século XVI, a única ocorrência com esse tipo de V2inf se dá em uma instanciação com o auxiliar deitar. Tal exclusividade se mantém no século XVIII, com quatro ocorrências. No século XIX, conforme se nota pelos gráficos, o número de instanciações da CI com V2inf de deslocamento salta para 105. Ainda assim, 61,9% delas têm V1fin preenchido por deitar, enquanto 7,6% o tem preenchido por disparar, totalizando 69,5% das ocorrências. Outro dado que chama a atenção na tabela diz respeito àqueles relacionados ao preenchimento com entrar de, o qual seleciona, em 33% das ocorrências, V2inf de mudança de estado. Essa motivação se torna clara ao considerarmos a metáfora proposta Lakoff (2006 [1979], p.211): ESTADOS SÃO LUGARES Ela evidencia que a associação de entrar à noção de mudança de estado não ocorre aleatoriamente, havendo ligação semântica direta e motivação clara entre V1fin e V2inf. Quanto aos demais aspectuais estudados, todos ocorrem majoritariamente vinculados a V2inf do tipo semântico agentivo, os quais não portam traços semânticos que possam ser conflitantes com nenhum desses aspectuais, uma vez que todos indicam, em alguma medida, algum tipo de ação. Isso é corroborado pelo fato de, frequentemente, em seus sentidos lexicais, os V1fin apresentarem sujeitos agentes, o que os faz se ligarem também a verbos de carga semântica semelhante. 150 5.4 Conclusão do Capítulo Este capítulo visou a analisar os preenchimentos não prototípicos da CI, ou seja, aquelas instanciações em que a posição de V1fin foi ocupada por verbos cujos sentidos lexicais não remetem à marcação aspectual, a fim de discutir a influência do princípio da persistência e do parâmetro da extensão nessa construção. Para isso, foram levantadas ocorrências da CI em corpora dos séculos XIII a XX. Os dados revelaram alto índice de preenchimento da posição de V2inf por de ação, emotivos e de deslocamento, sendo que, no caso dos dois últimos grupos, percebeu-se uma correlação entre o tipo semântico de V2inf e a semântica vestigial de V1fin. Através da aplicação de dois modelos da Dinâmica de Forças propostos por Talmy (2001) e de sua correlação com metáforas propostas por Lakoff e Johnson (2002 [1980]), mostrou-se que a Extensão da CI a tipos semânticos de V2fin que não sejam de ação pode ser condicionada pela Persistência de esquemas imagéticos subjacentes ao significado gramatical de aspectuais como romper, desatar, cair, disparar, deitar e entrar. Portanto, a análise mostrou que, ao se lidar com a gramaticalização de uma construção que apresenta possibilidades de preenchimento parcialmente abertas, fazse necessário avaliar em que medida os vários subprocessos da gramaticalização ocorridos com cada item que a compõe podem interferir na operacionalização de um ou outro parâmetro. No caso estudado, a semântica vestigial da Quebra de Barreiras dos aspectuais romper, desatar e cair e a do Movimento sem Barreiras de disparar e deitar fez com que o processo de extensão da CI para abarcar V2inf emotivos e de deslocamento, respectivamente, ocorresse preferencialmente com esses verbos. Em trabalhos futuros, pretende-se investigar em que medida outros parâmetros da gramaticalização podem apresentar correlações sistêmicas, considerando-se que esse processo passa a ser, de fato, encarado no nível construcional. 151 6 EVIDÊNCIAS TRANSLINGUÍSTICAS DA METÁFORA DE MOVIMENTO NA CONSTRUÇÃO DE ASPECTO INCEPTIVO Ao investigar semanticamente os verbos (V1fin) não canônicos da CI em seus sentidos lexicais, é possível notar que todos eles compartilham a categoria cognitiva de movimento (cf. JOHNSON, 1987). Tal fato pode ser analisado por meio da Teoria da Metáfora Conceptual (cf. LAKOFF, 2006 [1979]). Na perspectiva de Lakoff, as metáforas são concebidas como mapeamentos entre domínios conceptuais, constituindo-se num dos principais elementos da cognição humana e, com isso, parte da vida cotidiana. Esse autor, juntamente com Johnson (LAKOFF & JOHNSON, 2002 [1980]), ressalta ainda a base corporificada da metáfora, a qual é considerada, portanto, profundamente dependente da experiência humana no mundo. Tais linguistas, ao proporem metáforas do tipo “TEMPO É ESPAÇO”, “MUDANÇA É MOVIMENTO” e “ESTADOS SÃO LUGARES” (LAKOFF, 2006 [1979], p.211), reafirmam tanto a base experencial e concreta dos conceitos abstratos, quanto sua presença nos diversos tipos de processamentos cognitivos. Ainda, a presença da preposição a também corrobora a análise da base metafórica dessa construção. Esse fato indica que a preposição eleita para compor a construção em análise aponta para a noção de movimento, a qual, aliada às metáforas descritas acima, parece despertar na cognição humana a noção da marcação de fase inicial de ocorrência de uma ação, ancorada na metáfora de que AÇÕES SÃO MOVIMENTO PARA UM DESTINO. Tendo em vista esses fatos, este capítulo visa a buscar evidências translinguísticas para a metáfora de movimento em Construções de Aspecto Inceptivo semelhantes à encontrada no Português. Para tanto, procedeu-se à busca de padrões construcionais indicadores de aspecto inceptivo em outras línguas, que não o português. Primeiramente, buscou-se nas bases de dados das FrameNets53 do inglês, 53 FrameNets são recursos lexicais disponíveis online, fundados no arcabouço teórico da Semântica de Frames e sustentandos por evidências advindas de corpora. São organizados por um conjunto de esquemas de significado (frames), relacionadas aos quais se encontram listas de itens lexicais que os 152 alemão e espanhol, através da ferramenta FrameSQL, verbos evocadores dos frames de início de atividade e início de processo, os quais também possam se referir à categoria de movimento. Por fim, incluíram-se também dados do estoniano, uma vez que essa língua possui uma CI de base muito semelhante à do português (PIIROJA, 2011). Não se trata de argumentar que a presença da categoria cognitiva de movimento nas CIs de línguas tão diferentes seja uma evidência de um universal nos termos tradicionalmente propostos pela Linguística Gerativa, ou seja: inato e circunscrito ao domínio específico da linguagem. Ao contrário, a hipótese com que se trabalha é aquela segundo a qual a presença das metáforas de movimento nas CIs das várias línguas aponta para a continuidade entre a capacidade da linguagem e as demais capacidades cognitivas, todas fundadas na experiência humana no mundo (GIBBS, 2006, GOLDBERG, 2006). De maneira complementar, estudos em Gramática das Construções (GOLDBERG, 1995; 2006) sugerem que as escolhas lexicais – e as categorias cognitivas nelas envolvidas – para a composição de uma construção não ocorrem de forma arbitrária. Pelo contrário, são motivadas por relações subjacentes à linguagem. Assim, uma vez que as categorias cognitivas subjacentes às escolhas lexicais são ancoradas na experiência humana no mundo e considerando que os falantes das várias línguas compartilham uma mesma biologia, é de se esperar que sejam encontradas semelhanças nas escolhas lexicais presentes nas Construções de Aspecto Inceptivo das diversas línguas do mundo, fato que aponta para a existência da continuidade da capacidade da linguagem com as demais atividades cognitivas. 6.1 Evidências translinguísticas para a presença da metáfora de movimento na CI A fim de se observarem as evidências translinguísticas para a presença da metáfora de movimento na CI, será preciso retomar hipóteses já apresentadas, bem como conceitos e exemplos de ocorrência. evocam. Assim, junto ao frame de início de atividade, encontram-se verbos, como start, enter e begin, nomes, como beginning, dentre outros itens lexicais. De forma semelhante, no espanhol, encontram-se comenzar, lanzarse, empezar. No alemão, starten. 153 Conforme já foi discutido no capítulo anterior, novos verbos evocadores da categoria cognitiva do movimento corporal entram no esquema construcional da CI primeiramente de forma especializada e, ao longo do tempo, estendem-se a outros tipos semânticos de V2inf. No que tange ao V1fin, é importante reiterar que todos evocam a categoria cognitiva de movimento, conforme se pode confirmar em seus usos como verbos plenos no português atual e/ou a partir de suas etimologias (veja-se Quadro 14). V1fin Sentido pleno Etimologia cair ir de cima para baixo, ir ao lat. cadĕre ‘cair, escorregar; chão; tombar cair no combate; abaixarse, desfalecer, perecer’ danar (-se) Atirar ou meter (algo) com lat. ímpeto e decisão damnāre em; judicialmente, ‘condenar censurar 54 arremessar; iniciar (ação) etc.’ com ímpeto e vontade; ir embora sem rumo, fugir apressadamente; desaparecer deitar deixar(-se) cair; lançar(-se), lat. medv. hsp. dectāre, f. contracta do lat. dejactāre jogar(-se) para baixo ‘derrubar’ desandar mover (veículo, animal etc.) des- + andar. lat. ambulāre para trás; (caminho, sentido percorrer ‘ir, vir, passear, caminhar’ trajeto) inverso; em recuar; voltar 54 Segundo o dicionário latino de Lewis e Short (1879), damnāre poderia significar ainda “atar ou obrigar, por testamento, que a herança de alguém seja destinada ao cumprimento de algum ato”. Nesse sentido, a etimologia de danar aproxima-se mais da categoria de movimento. Pretende-se, em próximos trabalhos, refinar o estudo etimológico do verbo danar. O dicionário Houaiss registra a acepção atirar como oriunda do Nordeste do país. 154 desatar desmanchar, desfazer (nó); des- + atar. lat. aptāre desprender(-se), soltar(-se) ‘acomodar, unir, juntar’ o nó de disparar fazer ir longe; arremessar, lat. lançar; lançar, enviar (olhar) entrar disparāre distinguir, diferir’ deslocar-se ou passar de lat. intrāre 'penetrar em fora para dentro de; ir ou vir (lugar ou fechado para dentro de; introduzir- delimitado); se em; invadir pegar ‘separar, tornar-se membro de; iniciar etc.' prender lat. picāre 'impregnar(-se) segurar; segurando; fixar(-se), de breu ou piche' aderir, colar romper criar abertura ou passagem lat. rumpĕre 'quebrar, à força em; arrombar; abrir, rasgar, fender, arrebentar' penetrando; passar para o interior de; dilacerar, penetrar, rasgar. Quadro 14: Sentidos dos verbos investigados em usos como verbo pleno e suas etimologias. Fontes: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009; Dicionário Escolar Latino-Português, 1956 O exame do significado e das respectivas etimologias mostra que todos os verbos não canônicos da CI analisados pressupõem, em seu sentido lexical, a noção de movimento, fato que reitera não ser a escolha desses verbos aleatória, como já vem sendo apresentado nesta tese. Ela é motivada na medida em que os verbos que ocupam a posição de V1fin têm em seu âmago um quesito comum: a categoria de movimento que perpassa seu sentido. Sabe-se que metáforas como TEMPO É ESPAÇO (LAKOFF & JOHNSON, 2002 [1980]) motivam mudanças como essas, visto que o movimento de um corpo em um espaço é encarado, nesse caso, como a passagem do tempo. Tal processo parece motivar a escolha, pelo falante, de verbos com características determinadas. A interpretação proposta é confirmada pela escolha da preposição que ocorre intercalada entre V1 e V2 na CI. Veja-se novamente: 155 (85) DEPOIS, vendo que não podia trabalhar, acabou se despedindo do botequim. Mas ficou rondando por ali, ainda muito pálido e magro, sem fazer despesas, conversando com os conhecidos. Aos poucos, a bem dizer sem se sentir, pegou a trabalhar para o bicheiro que fazia ponto na charutaria. De começo passava as listas, tomava jogo de um ou outro, quando o velho Jamil - que assim chamavam o bicheiro - se afastava um momento. (CP, Dôra, Doralina, Rachel de Queiroz, XX) Como já foi observado no capítulo 3, a preposição de ocorrência típica na CI é a. Ao analisarmos sua etimologia, vemos que ela se origina da "prep. lat.tar. a, da prep.lat. ad 'aproximação, início de uma ação etc.'". As informações etimológicas reiteram a hipótese de que a escolha do falante não é arbitrária, sendo reforçada pela preposição a. Ela se une à marcação de movimento do V1 para reforçar a noção do aspecto inceptivo. Considerando a metáfora TEMPO É ESPAÇO presente, seria, portanto, possível tratar da marcação do movimento de um corpo em um espaço da seguinte maneira: t’ t’’ t’’’ Nesse esquema, a seta representaria o lugar por onde o corpo se move e os círculos seriam o próprio corpo. A letra “t” sinaliza momentos de tempo distintos, pressupondo movimento para um destino. Dessa forma, uma maneira de esquematizar os aspectos imperfectivos do português seria: No padrão sintático [V1fin (Prep) V2inf], V1 e preposição se uniriam para demarcar início de um processo apresentado por V2: (86)Pôs-se à escuta e os olhos foram-se-lhe enchendo d' água, uma opressão pesou-lhe no peito como se lho fosse esmagando e, de repente. afundando a cabeça no travesseiro, rompeu a chorar desesperadamente. (CP, 19Br:Neto, Turbilhão) Assim, a construção disposta em (86) poderia ser esquematizada da seguinte maneira: t’ t’’ t’’’ 156 No caso da CI, o foco da ação seria no início do processo, portanto, destacando o t’, o início do desenvolvimento da ação, e demarcando, portanto, o Aspecto Inceptivo. Porém, se consideramos que a linguagem é apenas uma das capacidades humanas e que ela é corporificada, tendo base nas demais, seria possível pensar que a metáfora TEMPO É ESPAÇO e que a associação do movimento corporal ao movimento da ação, como ocorre nesses casos de gramaticalização, não são exclusivos da língua portuguesa. Afinal, se o movimento corporal pode se refletir na designação do movimento mental aplicado à linguagem, isso deve se dar também em outras línguas, constituindo-se em mais uma demonstração clara de que há continuidade entre a capacidade da linguagem e as demais capacidades cognitivas. Todas elas seriam fundadas na experiência humana, neste caso, a de andar, correr e realizar outras ações que pressupõem movimento. Num primeiro momento, poder-se-ia pensar que o mesmo ocorre nas línguas de origem comum ao português, as línguas românicas. Observem-se esses casos: (87) (88) Les enfants se mettent à courir. (Fonte: http://lacoronica.org/, La corónica 34.1, 2005) rompió a hacer versos desconsolados. (Fonte: http://www.grancanariaweb.com/cine/edgar) Tanto no exemplo em francês (87), quanto no dado em espanhol (88), é possível observar o mesmo processo pelo qual passam os verbos da CI no português. Em ambos os casos, a delimitação sintática é a mesma e, principalmente, as características da construção são compartilhadas: há verbos que, em seu sentido lexical, denotam movimento e que, usados na CI, adquirem sentido de início de movimento, de marcação aspectual inceptiva. No entanto, poder-se-ia pensar que essa relação é motivada pela origem comum às línguas, afinal francês, espanhol e português são línguas neolatinas. Caso isso ocorresse, veríamos a comprovação da origem comum, e não necessariamente da hipótese da corporificação da linguagem. 157 Porém, Yin (2002, p.79), ao pesquisar o verbo kuru (‘vir’) em japonês, verificou que ele pode denotar aspecto inceptivo, como em55: (89) Hi ga kie-te kita fogo NOM sair-SUBJ vir-PASS ‘O fogo começou a sair.’ (Koga, 2001: 53) (90) Ame ga fut-te kita. chuva NOM cair-SUBJ vir-PASS ‘Começou a chover.’ (Kondo & Takano, 1993: 518) Segundo Yin, o sentido inceptivo de kuru (kita na forma do passado) é motivado pela metáfora CAMINHO DE EVENTO É TRAJETÓRIA DE MOVIMENTO. De acordo com esse autor, se olharmos para o desenvolvimento do caminho de um evento como uma trajetória de movimento, o verbo kuru, nesses exemplos, é perspectivizado no início da trajetória, indicando o início do evento. Novamente, vemos a CI formada por dois verbos com um deles marcando início de processo, mesmo sendo um verbo cujo sentido pleno indica movimento. Porém, foi empregado na construção para demarcação de aspecto e compartilha a característica com os demais da CI de ter em seu sentido a noção de movimento. Nessa mesma linha, Piiroja (2011) mostra que, no estoniano, algo semelhante ocorre: O estoniano tem muitos verbos que carregam um sentido aspectual quando usados em associação a outros verbos. Verbos como lööma ‘bater’, panema ‘por’, pistma ‘colar’ podem indicar o início de uma ação, enquanto vihtuma ‘refrescar-se (em uma sauna)’ pode se referir a uma ação contínua. A maioria desses verbos também indica o modo como se inicia a execução da ação. Há vários desses verbos e eles variam dos mais específicos ao mais genéricos. Por exemplo, o verbo estoniano hakkama pode ter dois significados – ‘cercar, pegar’ e ‘começar’. O primeiro uso, mais lexical, tem reduzido sua frequência ao longo dos últimos séculos, abrindo espaço para o 56 segundo uso, mais gramatical. 55 As glosas dos exemplos (89) a (98) foram adaptadas dos trabalhos originais, tendo sido traduzidas para o português. 56 Estonian has many verbs which can carry aspectual meaning when used in combination with another verb. Verbs such as lööma ‘to hit’, panema ‘to put’, pistma ‘to stick’ can indicate the beginning of an action whereas vihtuma ‘to whisk oneself (in a sauna)’ can refer to a continuous action. Most of these verbs also indicate the manner of the beginning or the execution of the action. There are a number of such verbs and they range from more specific to quite general. For example, the Estonian verb hakkama can be considered to have two meanings – ‘to seize, to grab’ and ‘to start’ whereas the first, more lexical use has been decreasing in frequency over the last few centuries giving way to the latter more grammatical use. 158 De acordo essa autora, no estoniano, há verbos que tipicamente não são marcadores de aspecto e que passam a sê-lo com o tempo. Todos esses verbos são associados à noção de movimento. Veja-se: (91) hakkama ‘agarrar’ Nad hakka-si-d vaidle-ma. Eles agarrar-PASS-3PL discutir-SUP. ‘Eles começaram a discutir.’ (92) kukkuma ‘cair’ Ma kukku-si-n Eu cair-PASS-1SG ‘Eu comecei a gritar.’ (93) (94) (95) (96) (97) (98) karju-ma. gritar-SUP lahvatama ‘explodir’ Tõrvik lahvata-s Tocha explodir-PASS-3SG ‘A tocha começou a queimar.’ põle-ma. queimar-SUP lööma ‘bater’ Tähe-d lõi-d Estrela-PL bater-PASS-3PL ‘As estrelas começaram a brilhar.’ sära-ma. brilhar-SUP. minema ‘ir’ Auto ei lähe Carro NEG ir ‘O carro não vai andar.’ pahvatama ‘explodir’ Mees pahvata-s Homem explodir-PASS.3SG ‘O homem começou a rir.’ pistma ‘enfiar’ Koer pisti-s Cão enfiar-PASS.3SG ‘O cão começou a latir.’ puhkema ‘romper’ Laps puhke-s Criança romper-PST.3SG ‘A criança começou a chorar’ käi-ma. andar-SUP. naer-ma. rir-SUP hauku-ma. latir-SUP. nut-ma. chorar-SUP. Os exemplos de (91) a (98) mostram que a Construção Inceptiva usada no estoniano é semelhante à do português no sentido de que a função de auxiliar 159 aspectual inceptivo é desempenhada por verbos que, prototipicamente, evocam a categoria cognitiva de movimento. Como se vê, a CI, em outras línguas, também pode ser expressa com dois verbos associados com um deles sendo originalmente um verbo de movimento57. Esse fato pode ser considerado mais uma evidência de que a criação das metáforas conceptuais é baseada na nossa experiência física e cultural (cf. LAKOFF 2006 [1979]), o que justificaria tantas confluências translinguísticas. 6.2 Simulação Mental na Construção de Aspecto Inceptivo Como já vem sendo discutido, diversos estudos linguísticos mencionam a existência de uma relação neurobiológica entre domínios concretos e abstratos, ou, em outros termos, de mostram, no nível cerebral, a base corporificada da linguagem (cf. GALLESE & LAKOFF, 2005; GIBBS & MATLOCK, 2008; BERGEN & WHEELER, 2010). De acordo com Bergen & Wheeler (2010), os falantes e ouvintes da língua ativam os sistemas perceptual e motor para realizar simulações mentais de eventos ao processar sentenças sobre cenas perceptíveis e ações realizáveis. Assim, quando as pessoas processam a linguagem, elas exibem a ativação seletiva dos sistemas perceptuais e motores, chamada de simulação mental (PULVERMÜLLER, HAERLE & HUMMEL, 2001; HAUK, JOHNSRUDE & PULVERMÜLLER, 2004 apud BERGEN & WHEELER, 2010). No entanto, enquanto o conteúdo mental e perceptual das simulações pode ser frequentemente tornado acessível pela introspecção consciente, a simulação mental construída durante o uso da linguagem tem processamento imediato, automático e, na maioria das vezes, inconsciente (BARSALOU, 1999 apud BERGEN & WHEELER, 2010) 57 O fato de o auxiliar apresentar-se como primeiro ou segundo verbo pode estar relacionado à ordem canônica de cada uma das línguas cujos exemplos foram analisados. Assim como o português, o francês, o espanhol e o estoniano são línguas SVO, enquanto o Japonês é SOV. Muitos estudos demonstram haver uma correspondência entre a posição de “modificadores” e a ordem preferencial das línguas. Segundo Lehmann (1973), em línguas SVO, modificadores tendem a ser colocados antes dos verbos, enquanto em línguas SOV, a posição preferencial passa a ser após o verbo. Nesse tema, veja-se também Kuno (1974). 160 Diversos autores argumentam que o uso dos sistemas motor ou perceptivo para realizar simulações mentais é parte integrante do entendimento da linguagem (GLENBERG & KASCHAK, 2002; BERGEN & CHANG, 2005; FELDMAN E NARAYANAN, 2004; GALLESE & LAKOFF, 2005). Ademais, alguns estudos já mostraram a associação entre palavras específicas e simulação motora. Através de testes de observação visual (motora), notou-se que empurrar denota movimento horizontal e bombardear, vertical (RICHARDSON ET AL, 2003). Outras pesquisas já apontaram para o fato de que as associações lexicais não são o único território linguístico em que as simulações ocorrem e, em alguns casos, nem mesmo o preferencial. Um estudo comportamental focado no processamento visual durante o processamento de linguagem revelou que palavras concretas que descrevem movimentos para cima ou para baixo (como cair e escalar) apenas algumas vezes produzem processamento específico de localização por meio do sistema visual. Quando essas palavras são usadas no sentido lexical pleno, elas ativam de fato o sistema visual, mas não o fazem quando estão no sentido lexical metafórico (como em os preços subiram) (BERGEN ET AL., 2007). Begen e Wheeler (2010), partindo dessas premissas, buscam resolver a seguinte questão: será que as estruturas gramaticais contribuem também para a ativação da simulação perceptual e motora? Eles argumentam que, ao se considerarem frases distintas apenas pelas marcações gramaticais, nota-se que há ênfases em diferentes processos. Assim, em frases como John has closed the drawer, tem-se foco no estado final, enquanto em John is closing the drawer, acentua-se a estrutura interna do evento. De acordo com os autores, ao traduzir isso para a simulação mental, espera-se que o aspecto gramatical module a parte de um evento que é mentalmente simulado em mais detalhe. Afinal, se uma simulação mental (em que o processamento perceptual e motor é subjacente a isso) é constitutiva de entendimento, então ela deveria ocorrer em compasso com o significado da proposição que está sendo processada. Assim, ao analisar as duas sentenças citadas que diferem quanto ao aspecto, seria esperado que, na frase progressiva, haveria ativação dos sistemas motores; pelo contrário, na perfectiva, como se foca no final, na ação acabada, não seria ativada a simulação da ação de fechar. Portanto, baseados na concepção de que as sentenças 161 constituídas de mesmas palavras, porém com conteúdo gramatical distinto, acarreta produção de usos diferentes do sistema motor, a hipótese apresentada pela pesquisa de Bergen e Wheeler (2010) é de que o sistema motor só é ativado quando as palavras e a gramática de uma proposição conspiram para não só indicar uma ação motora, mas também focar no processo daquela ação. Para testar essa hipótese, foi aplicado um experimento que visa a medir o Efeito de Compatibilidade Ação-Sentença (ECA), em que os participantes eram convidados a pressionar um botão (localizado no meio do teclado) para disparar uma sentença na tela. Quando o botão era liberado, a sentença desaparecia e eles pressionavam um segundo botão para indicar se a sentença produzia sentido ou não, era aceitável ou não. Propositalmente, o segundo botão estava localizado mais perto ou mais distante do corpo do participante do que o primeiro. Então, apertar a tecla exigia deles um movimento com as mãos em direção favorável ou contrária ao corpo. Os pesquisadores optaram por inverter o teclado (para que a tecla a ser pressionada estivesse mais perto ou mais longe do corpo), porque estudos anteriores (GLENBERG & KASCHAK, 2002; BERGEN & WHEELER, 2005; TSENG & BERGEN, 2005; BORREGGINNE & KASCHAK, 2006 apud BERGEN & WHEELER, 2010) mostraram que, quando a direção do movimento descrita pela sentença é a mesma da direção responsável pelo movimento do braço, os participantes realizam mais rapidamente as respostas manuais. Esse resultado mostra que eles usaram o sistema motor para mentalmente simular ações manuais na direção esperada, o que lhes garantiu agilidade na marcação de resposta. O experimento foi aplicado e, como esperado, foi encontrado o ECA nas ações progressivas, ou seja, nas respostas manuais, quando dadas em direção compatível com a codificada na sentença. No entanto, as sentenças perfectivas não produziram nenhum efeito. Esses resultados revelam os efeitos de aspecto no processamento da sentença. Assim, enquanto sentenças progressivas levam o entendedor a mentalmente simular o processo interno do evento descrito, as perfectivas não o fazem. Isso sugere que estruturas gramaticais afetam como os entendedores da linguagem engajam-se 162 nos sistemas perceptuais e motores para produzir simulações mentais do conteúdo descrito. Partindo do experimento proposto por Bergen e Wheeler (2010), desenvolveu-se nesta tese experimento similar cujo objetivo é o de responder à seguinte pergunta: em estruturas gramaticais que envolvem o uso metafórico de itens lexicais como marcadores de aspecto também se verificará o ECA? 6.3.1 Aplicação do Experimento Visando à obtenção de uma resposta para a questão acima, foi desenhado um experimento com o intuito de analisar a presença do ECA na CI. Este experimento objetivou investigar se – e em que medida – os falantes de uma língua recorrem à simulação mental da experiência corporificada de um conceito codificado por um lexema na interpretação deste lexema, mesmo que tenha, em alguma medida, conservado apenas alguns aspectos de seu sentido original. Em termos específicos, buscou-se investigar se, para compreender um conceito como o de pegar a conversar, além de mobilizar as áreas funcionais do cérebro responsáveis pela linguagem, um falante mobiliza também o conjunto de neurônios responsáveis pela realização do ato de pegar, simulando, no nível neuronal, o movimento corporal indicado pelo esquema conceptual de movimento subjacente a este uso aspectual, o que levaria à manifestação do ECA. Por outro lado, considerando-se o ancoramento metafórico dos auxiliares presentes na CI, é possível que tal efeito não se manifeste, em consonância com os achados de Bergen et al. (2007). Foram montados dois desenhos experimentais nos quais falantes nativos do português deveriam avaliar sentenças de seu idioma, julgando-as como possíveis ou impossíveis na língua. Como já exposto na metodologia, houve 52 participantes, 26 para cada experimento.Todos eram destros e deveriam marcar as respostas apenas com o indicador da mão direita. No total, foram criadas 180 sentenças: 20 sentenças aspectuais com começar; 20 sentenças aspectuais com pegar, 20 sentenças aspectuais com disparar; 40 sentenças aleatórias boas; 80 sentenças aleatórias agramaticais. Com base nestas 163 frases, dois experimentos foram aplicados. Um deles tinha o intuito de comparar aspectuais canônicos com não canônicos (começar x pegar), enquanto o outro objetivava comparar dois aspectuais não canônicos (disparar x pegar) que se diferenciam pelo tipo de movimento de braço e mão envolvido na simulação mental. Um teclado ligado ao software PsyScope mediu o tempo de resposta para cada sentença. Assim, para disparar a sentença a ser julgada, o falante deveria pressionar um botão azul localizado exatamente ao lado do centro do eixo vertical do teclado. Ao soltá-lo, deveria movimentar seu indicador primeiramente até o centro do teclado, pressionando a tecla H (demarcada com a cor laranja), a qual disparava a contagem do tempo. Em sequência, o participante poderia optar por movimentar sua mão para frente ou para trás de modo a pressionar uma tecla verde (letra A do teclado) – que indicava que a sentença é bem formada – ou uma tecla rosa (aspas do teclado) – que indicava sua má formação, respectivamente. A hipótese é a de que, quando a direção do deslocamento da mão do falante/julgador coincide com a direção do movimento corporal simulado mentalmente para a compreensão da sentença (ECA), o tempo de resposta do falante é mais rápido do que o medido para a condição inversa. Ou seja, a simulação do movimento da mão interfere na velocidade de resposta quando do uso de CI preenchida por verbos indicadores de movimento manual compatível com o utilizado para o julgamento. Na fase de pré-teste, realizada com 5 participantes, notamos que os falantes, ao compararem frases aspectuais com começar, pegar e frases aleatórias boas e ruins, julgavam aquelas preenchidas em V1 por pegar como ruins em sua maioria. Por isso, para testar a hipótese, o experimento foi fragmentado em dois, os quais foram detalhados na seção de metodologia. Além disso, a divisão do experimento em dois foi motivada também devido a outros fatores: (1) tempo de teste; (2) análise de grupos não canônicos distintos. O primeiro motivo se deve ao fato de que a aplicação do experimento, se ocorresse sem divisões, seria muito cansativa para o participante, levando cerca de 45 minutos. Optouse, portanto, por dividir em duas partes de 20 minutos a serem realizadas por pessoas diferentes. Ademais, como o objetivo era o de comparar manifestações de tempo de resposta diferente (ou não) entre preenchimentos de usos canônicos e não canônicos 164 de V1fin e de usos não canônicos que denotassem movimentos distintos com a finalidade de analisar a existência de relação do movimento corporal simulado, fez-se necessário dividir grupos de sentenças que cumprissem esse papel. Um deles objetivou comparar aspectuais canônicos com não canônicos, a fim de observar resquício de simulação de movimento nas ocorrências não prototípicas. Por isso, foram comparadas sentenças aspectuais com começar e pegar, misturadas a frases aleatórias. Começar é um verbo que em seu sentido pleno não denota movimento, mas sim início; pegar, diferentemente, indica movimento dos braços. O outro experimento, aplicado a participantes diferentes do primeiro, teve o intuito de observar o tempo de resposta aplicado às sentenças com pegar quando comparadas às também aspectuais com disparar. Ambos os preenchimentos prototipicamente denotam movimento, porém não exatamente reproduzem o mesmo movimento com a mão. Enquanto pegar denota movimento semelhante ao utilizado pelo falante ao realizar o julgamento no teclado, disparar é associado ao movimento dos dedos (em disparar a arma). 6.3.2 Resultados e Discussão Dos 52 participantes que efetivamente realizaram os experimentos (26 em cada condição), três tiveram seus julgamentos excluídos da análise no Experimento 1 e quatro no Experimento 2. Tal exclusão se deveu ao fato de esses participantes terem julgado todas as sentenças com pegar ou disparar como inaceitáveis, o que impediria que suas respostas fossem calculadas na ANOVA58. Ademais, as respostas contrárias à expectativa do desenho experimental, ou seja, aquelas em que os falantes julgaram sentenças-alvo com começar, disparar e pegar como ruins, também foram excluídas quando do cálculo das médias do tempo de resposta por sujeito. Para o Experimento 1, foram exlcluídas, ao todo, 16 respostas relativas a sentenças com o verbo começar (3,48% do total) e 104 relativas ao verbo 58 O software utilizado para a realização da Análise de Variância (ANOVA) foi o ezANOVA, desenvolvido por Rorden e disponível para download em http://www.mccauslandcenter.sc.edu/mricro/ezanova/index.htm. 165 pegar (22,6%). Já no Experimento 2, excluíram-se 13 respostas relativas a disparar (2,95%) e 42 relativas a pegar (9,55%). O cruzamento entre os RTs médios – medidos em milissegundos –, obtidos para cada verbo, e a direção do movimento do braço na resposta em cada metade do Experimento 1 encontra-se disposto na Tabela 6. São apresentados ainda nessa mesma tabela o desvio padrão medido em milissegundos e o número total de participantes considerados em cada condição. Note-se, primeiramente, que os RTs médios são menores quando o participante deve realizar o julgamento movendo seu braço para frente, considerados ambos os verbos. Entretanto, contrariando a hipótese do Efeito de Compatibilidade AçãoSentença (ECA), os RTs médios para o verbo pegar – cujo processamento deveria envolver a simulação de movimento com o braço – não são menores do que os observados para o verbo começar. É importante ressaltar ainda os altos valores apresentados na coluna Desvio Padrão, o que revela alta variabilidade entre os RTs médios de cada participante. Marcador Direção da Resposta Frente Pegar Trás Começar RT Médio (ms) 502,76 595,59 Desvio Padrão (ms) 126,90 130,30 N 23 23 476,31 535,28 97,59 89,94 23 23 Frente Trás Tabela 6: Resultados do Experimento 1 Considerando-se essa configuração dos dados, conforme pode ser visto no Gráfico 13, não é possível propor a ocorrência de ECA para o Experimento 1, já que: i. os RTs para as sentenças com pegar, em cuja interpretação a simulação de movimento deveria ocorrer, são maiores do que aqueles para as sentenças com começar; ii. apesar de o RT para as sentenças com pegar ser menor quando há compatibilidade entre a direção do movimento da mão (para frente) e a sentença, tal diferença não é estatisticamente relevante (p<0,0779), considerando-se o Erro Padrão; 166 iii. apesar de começar não envolver em seu sentido básico o movimento manual para frente, o RT para sentenças com este marcador na condição de resposta com afastamento da mão em relação ao corpo também é menor, o que impossibilita que se atribua o menor RT das sentenças com pegar nessa mesma condição ao ECA. Por fim, enquanto a ANOVA reconheceu no preechimento do marcador aspectual um fator estatisticamente relevante na determinação do RT – p<0.008393 –, o mesmo não se pode dizer do cruzamento entre os dois fatores, marcador e direção – p<0.347581. Além do mais, conforme se pode notar nos dados, o fato de o preenchimento com começar ser fator relevante sobre a variação do RT fornece evidência negativa para o ECA, já que o marcador associado aos menores RTs é começar e, não, pegar. Gráfico 13: Tempos médios de resposta dos falantes submetidos ao Experimento 1. As barras indicam o Erro Padrão59. 59 Erro Padrão é uma medida que, assim como o Desvio Padrão, dá conta da variabilidade dos RTs coletados, porém, ao invés de ser calculado sobre o desempenho de cada sujeito, é calculado sobre a média dos RTs, através de uma fórmula que divide o Desvio Padrão pela raiz quadrada do número de participantes cujos RTs foram medidos. 167 Para o Experimento 2, os dados são bastante semelhantes – vide Tabela 6 –, ou seja: os RTs associados a julgamentos realizados com movimento da mão para frente são menores do que os associados àqueles com movimento da mão para próximo do corpo e o Desvio Padrão é alto. Marcador Direção da Resposta Frente Pegar Trás Disparar RT Médio (ms) 514,02 539.79 Desvio Padrão (ms) 106,04 98,06 N 22 22 479,87 548,20 79,31 81,17 22 22 Frente Trás Tabela 7: Resultados do Experimento 2 Plotados no Gráfico 14, os resultados também não nos habilitam a propor a ocorrência de ECA para as sentenças com pegar, já que, assim como no Experimento 1: i. os RTs para as sentenças com pegar, em cuja interpretação a simulação de movimento deveria ocorrer, são maiores do que aqueles para as sentenças com disparar; ii. apesar de o RT para as sentenças com pegar ser menor quando há compatibilidade entre a direção do movimento da mão (para frente) e a sentença, tal diferença não é estatisticamente relevante (p<0,5063), considerando-se o Erro Padrão; iii. apesar de disparar não envolver em seu sentido básico o mesmo tipo de movimento manual utilizado para se julgarem as sentenças, o RT para este marcador na condição de afastamento da mão em relação ao corpo também é menor, o que impossibilita que se atribua o menor RT das sentenças com pegar nessa mesma condição ao ECA. 168 Gráfico 14: Tempos médios de resposta dos falantes submetidos ao Experimento 2. As barras indicam o Erro Padrão. Ainda no mesmo sentido, para o Experimento 2, nem o marcador aspectual utilizado, seja pegar ou disparar – p<0.504526 –, nem o cruzamento entre o marcador e a direção do movimento – p<0.143618 – se mostraram fatores relevantes sobre o RT. Considerados os resultados expostos, pode-se dizer que, com base nos dois experimentos aplicados, não é possível confirmar a ocorrência de Efeito de Compatibilidade Ação-Sentença nos usos da CI cujo marcador aspectual é pegar. Isso posto, passemos a analisar o que os dados obtidos revelam para além da confirmação ou não da hipótese inicial. Em primeiro lugar, dado o fato de que os falantes julgaram sentenças com pegar de maneira contrária ao esperado com muito mais frequência do que o observado para os outros dois marcadores – 6,5 vezes em relação a começar e 3,23 vezes considerando-se disparar –, podemos concluir que o emprego desse marcador na CI ainda é visto com ressalvas pelo menos pelos sujeitos do experimento. O mesmo não se pode dizer de disparar, o que aponta para o fato de que pode haver certa 169 gradualidade entre os aspectuais não canônicos do português no que tange à sua aceitabilidade. Ainda, cabe ressaltar que a dificuldade dos sujeitos em reconhecer as sentenças com pegar como boas e possíveis em sua língua pode ter influenciado seu tempo de resposta, uma vez que o estranhamento pode gerar uma resposta menos direta e mais hesitante do sujeito no teclado, o que aumenta o RT. Em segundo lugar, a questão de o ECA não ter sido observado pode ser devido ao fato de que, conforme reportam Bergen et al. (2007), itens lexicais utilizados metaforicamente não apresentam o efeito. Em experimento envolvendo os verbos climb – ‘escalar’ – e fall – ‘cair’ – do inglês, tais autores demonstraram que, enquanto o ECA foi observado em usos concretos desses verbos, o mesmo não ocorreu em sentenças como the prices climbed – ‘os preço subiram’. Como os marcadores aspectuais, conforme discutido nesta tese, constituem-se em usos metafóricos dos verbos dos quais se desenvolveram dentro da CI, pode residir nesse fato a não observação do ECA nos experimentos realizados. Outro caminho explicativo seria propor que o fato de os RTs serem menores quando associados a movimento do braço para frente pode estar associado a um ECA aplicado genericamente à CI. Explica-se: como o aspecto inceptivo é caracterizado metaforicamente como movimento para frente (e tal metáfora não está associada apenas a um item lexical, mas é abarcada pela construção gramatical como um todo), é possível que, em comparação com outras construções aspectuais, a CI seja um fator estatisticamente relevante a influenciar os RTs de falantes em experimentos como os aplicados nesta tese. Entretanto, os dados de que dispomos neste momento não nos habilitam a tirar quaisquer conclusões nesse sentido, sendo que, para que avancemos do nível meramente especulativo, novos desenhos experimentais precisam ser desenvolvidos e aplicados. 6.4 Conclusão do Capítulo Neste capítulo, por meio do levantamento contrastivo de construções marcadoras de aspecto inceptivo em línguas das mais diversas origens, foi possível 170 apresentar evidências em favor da hipótese da corporificação da linguagem e de suas consequências para a estruturação metafórica das categorias cognitivas, mesmo as gramaticais, como o aspecto. A análise da marcação de aspecto inceptivo no português, espanhol, francês, japonês e estoniano mostra que as Construções de Aspecto Inceptivo compartilham um atributo em comum: a presença de verbos sinalizadores de movimento corporal que passaram a marcar aspecto em conjunto com um V2, que aponta para o estado de coisas que se inicia. Com base na metáfora de que TEMPO É ESPAÇO, conceptualiza-se a trajetória com semelhança à marcação temporal interna da situação, ou seja, o aspecto. Esse fato, reiterado pelos dados, mostra que o uso da língua não ocorre de maneira arbitrária, ou seja, há um fator motivador comum, que está ligado ao fato de que a língua tem base corporal. Assim, haveria projeção da noção de movimento corporal naquela da linguagem, em que a marcação de aspecto inceptivo destacaria o início de movimento na trajetória. Assim, esta análise segue a mesma direção de outros autores (LAKOFF, 2006 [1979]; LAKOFF & JOHNSON, 2002 [1980], JOHNSON, 1987; LAKOFF, 1987; GOLDBERG, 1995; 2006; GALLESE & LAKOFF, 2005; GIBBS & MATLOCK, 2008) que já defederam a base corporificada da linguagem, mostrando que as escolhas lexicais das construções ocorrem de forma motivada. Nesse mesmo sentido, Bergen & Wheeler (2010) propõem que os falantes e ouvintes da língua ativam os sistemas perceptual e motor para realizar simulações mentais de eventos ao processar sentenças sobre cenas perceptíveis e ações realizáveis. Esses autores mostraram por meio da aplicação de um experimento que enquanto sentenças progressivas levam o entendedor a mentalmente simular o processo interno do evento descrito, as perfectivas não o fazem. Isso sugere que estruturas gramaticais afetam como os entendedores da linguagem engajam-se nos sistemas perceptuais e motores para produzir simulações mentais do conteúdo descrito. Visando a investigar se o Efeito de Compatibilidade Ação-Sentença se manifesta na CI, na qual os marcadores gramaticais constituem-se em usos metafóricos de itens lexiciais, desenhou-se um experimento psicolinguístico comportamental. Este 171 experimento objetivou investigar se – e em que medida – os falantes de uma língua recorrem à simulação mental da experiência corporificada de um conceito codificado por um lexema na interpretação deste lexema, mesmo que tenha, em alguma medida, conservado apenas alguns aspectos de seu sentido original. Os resultados revelaram, com base nos dois experimentos aplicados, que não é possível confirmar a ocorrência de Efeito de Compatibilidade Ação-Sentença nos usos da CI cujo marcador aspectual é pegar. Isso parece se dever a diversos fatores. O primeiro deles se refere ao fato de que o emprego desse marcador na CI ainda é visto com ressalvas pelo menos pelos sujeitos do experimento, que o julgaram, por vezes, como inaceitável. Esse fato parece ter gerado influência direta no tempo de resposta dos participantes. Foi apresentado também que pesquisas de Bergen et al. (2007) apontaram para o fato de que itens lexicais utilizados metaforicamente não apresentam o efeito. Nesse sentido, a aplicação do experimento corrobora essa conclusão dos linguistas, visto que, na CI não canônica, os V1fin são metaforizados. Ademais, é possível afirmar que o fato de os RTs serem menores quando associados a movimento do braço para frente pode estar associado a um ECA aplicado genericamente à CI, e não a preenchimentos específicos. Assim, se por um lado foi possível claramente observar a relação corpolinguagem através da análise de ocorrências de CIs em distintas línguas, por outro, mostram-se necessárias mais pesquisas a fim de se chegar a um resultado conclusivo. 172 7. CONCLUSÕES Nesta tese, desenvolveu-se a análise da Construção Aspectual Inceptiva com preenchimento de V1 não prototípico. Tal construção segue o padrão construcional [(SN) V1fin (Prep) V2inf]. Foram estudadas aquelas instanciações que contêm um V1fin não canônico, ou seja, verbos que, em seu sentido pleno, não demarcam noção de início de processo, quais sejam: cair, danar, deitar, desandar, desatar, disparar, entrar, pegar e romper. Essa construção foi analisada baseada em critérios morfossintáticos e semânticos, tendo como base o levantamento de dados da CI em diversos corpora de fala e escrita, o que permitiu uma análise sincrônica e diacrônica dos dados. Vimos que os itens que compõem as instanciações da CI em português não são escolhidos aleatoriamente. Pelo contrário, os verbos compartilham uma semelhança semântica: em seu sentido lexical, marcam a noção de movimento ou de movimento para contêineres. De forma semelhante, as preposições são semanticamente associadas a deslocamento. Ademais, foi possível notar a diversidade de preenchimento da posição de Prep na Construção Aspectual Inceptiva, que pode variar sobretudo entre de e a ou mesmo não estar presente. Verificamos, ainda, por meio de evidências diacrônicas, as quais foram observadas tendo como ponto de partida a CI preenchida em V1fin por pegar, que a presença do verbo não contribui apenas para a semântica da construção, mas também para a escolha e motivação da preposição que pode ocupar essa posição. Vimos que a transitividade do verbo pegar, em seu sentido pleno, contribui para a escolha da preposição a ser usada na CI quando de sua passagem a verbo auxiliar marcador de aspecto. Ao analisarmos os dados com entrar e com danar – este, verbo mais recente na CI – percebemos que houve uma motivação construcional destes com relação àqueles em que havia preenchimento de pegar na posição de V1fin, uma vez que, apesar de entrar e danar, em seus sentidos plenos, não exigirem a preposição de, na passagem para aspectual, tal preposição pode ser verificada. Pode haver ainda relação disso com o fato de que preenchimentos canônicos da CI como com começar , em análise diacrônica, mostraram a ocorrência da posição de preposição preenchida 173 por de. Nota-se, com isso, o efeito do priming construcional, conforme proposto por Goldberg ou mesmo da analogia, conforme apresentado por Bybee (2010). Observamos, também, casos nos dados sincrônicos em que houve mudança no padrão construcional sem perda semântica da noção de inceptividade. Isso porque, na fala, a preposição tem desaparecido entre o V1fin e o V2inf, o que parece se relacionar a um processo de gramaticalização pelo qual a construção passa. Foi proposta uma rede construcional, a fim de fazer com que se perceba, com mais propriedade, o percurso pelo qual a CI não prototípica pode ter passado. A rede foi estabelecida tomando como centro o preenchimento de pegar em V1fin. Por meio dela, notamos que as construções prototípicas de V1lexical dão origem a novos usos e preenchimentos da Construção Aspectual Inceptiva. Buscando a possível motivação de co-ocorrência entre V1fin e V2inf na CI, por fim, foi discutida a influência do princípio da persistência e do parâmetro da extensão nessa construção. Para isso, foram levantadas ocorrências da CI em corpora dos séculos XIV a XX. Os dados apontaram para o alto índice de preenchimento da posição de V2inf por verbos de ação emotivos e de deslocamento, sendo que, no caso dos dois últimos grupos, percebeu-se uma correlação entre o tipo semântico de V2inf e a semântica vestigial de V1fin. A partir disso, mostrou-se que a Extensão da CI a tipos semânticos de V2fin que não de ação pode ser condicionada pela Persistência de esquemas imagéticos subjacentes ao significado gramatical de aspectuais como romper, desatar, cair, disparar, entrar e deitar. Com isso, fez-se relevante notar que, ao se lidar com a gramaticalização de uma construção que apresenta possibilidades de preenchimento parcialmente abertas, é também necessário avaliar a atuação dos vários subprocessos da gramaticalização. Nos casos abordados nesta tese, notamos que a semântica vestigial da Quebra de Barreiras e do Movimento sem Barreiras em alguns aspectuais fez com que o processo de extensão da CI se desse preferencialmente com tipos semânticos verbais específicos. Por fim, no capítulo 5, dados de ocorrências da CI em outras línguas permitiram atestar que o uso ou as mudanças linguísticas não ocorrem aleatoriamente: pelo 174 contrário, são motivados pela base corporificada da língua. Por outro lado, a tentativa experimental de comprovar o Efeito de Compatibilidade Ação-Sentença não forneceu dados estatisticamente relevantes que apontem para simulação mental do movimento de pegar na interpretação de sentenças de instanciações da CI preenchidas por esse marcador. Tal fato pode ser atribuído ao caráter metafórico dos marcadores aspectuais não canônicos utilizados na CI. Dessa forma, este trabalho teve como objetivo contribuir para os mais diversos campos da linguística, adotando como base trabalhos prévios, aos quais foram incorporadas visões cognitivas para o tratamento da linguagem. Isso se deu por meio da análise de dados reais sincrônicos e diacrônicos do português. Podemos dizer que a presente tese contribui teoricamente para o tratamento dos aspectuais no português porque: i. Trata dos aspectuais como Construções, o que permite perceber as motivações sintáticas da CI e na CI, tendo em vista que a escolha da preposição e do V2inf pelo falante não se dá aleatoriamente. ii. Faz um tratamento cognitivo que envolve os preenchimentos da construção, justificando sua motivação, o que é observado por meio de dados reais de fala e escrita. iii. Apresenta uma motivação não apenas semântica para a relação entre os elementos constituintes da CI, mas uma relação histórica da sintaxe dessas construções, as quais guiam a escolha da preposição na CI, a depender do preenchimento de V1fin ou mesmo do processo de motivação pelo qual ele passou. iv. Mostra que os vários subprocessos da gramaticalização ocorridos com cada item que compõe a construção interferem na operacionalização de um ou outro parâmetro, fato que foi demonstrado pela ideia de que a Extensão da CI a tipos semânticos de V2fin não agentivos pode ser condicionada pela Persistência de esquemas imagéticos subjacentes ao significado gramatical de aspectuais. v. Aponta para o fato de existirem motivações subjcentes à linguagem, as quais permitem traçar comparações translinguísticas de uso da CI. 175 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAGNO, M.. Português ou brasileiro?: Um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola, 2001. BERGEN, B., LINDSAY, S., MATLOCK, T., & NARAYANAN, S. 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Os efeitos começaram a aparecer agora. A mulher começou a sentir dor. Minha irmã começou a refletir melhor. A vida começou a correr depois dos 30. A costureira começou a fazer o vestido. Eles começaram a ler a obra. O menino começou a descer a escada. O síndico começou a arrumar o prédio. A criança começou a andar de bicicleta. O professor começou a tirar as dúvidas. A secretária começou a resolver os problemas. O pedreiro começou a consertar a calçada. A amiga começou a chorar muito. O engenheiro começou a trabalhar cedo. V1 Pegar Iara pegou a chamar o moço. O sabiá pegou a cantar com alegria. As águas pegaram a vazar depressa. Tia Carlota pegou a conversar com o moço. Ele pegou a rezar para Santo Antônio. O homem pegou a andar outra vez. A menina pegou a gritar por socorro. O homem pegou a inventar histórias. Ela pegou a correr com medo. O menino pegou a soprar forte. O avô pegou a contar mentiras. O motoqueiro pegou a subir o morro. Ela pegou a falar dele. O jardineiro pegou a arrumar as plantas. A estudante pegou a reclamar do curso. O irmão pegou a implicar com ele. O trocador pegou a separar as moedas. O pai pegou a dar lições. 181 A aluna pegou a perguntar sobre a matéria. O marido pegou a dizer besteiras. V1Disparar Flávio disparou a rir muito. Ele disparou a correr rápido. Fabiano disparou a cantar a música. A moça disparou a gritar alto. Joca disparou a correr para casa. Ele disparou a chorar convulsivamente. A personagem disparou a tremer de medo. O candidato disparou a falar sobre a prova. Os cachorros disparam a latir de madrugada. Minha avó disparou a reclamar de tudo. A adolescente disparou a fazer chilique. O ladrão disparou a andar rápido. A criança disparou a fazer bagunça. A idosa disparou a resmungar baixinho. A Patrícia disparou a gargalhar alto. Karla disparou a pular de alegria. A professora danou a berrar como doida. Mateus disparou a andar pelo bairro. João disparou a arrumar a casa. Ricardo disparou a beber todos os drinks. Sentenças aceitáveis Eu terminei de ler este livro. O presidente está falando muito. Você fica telefonando para ele! Ela acabou fazendo besteira. A chuva vai parar agora. O sol vai aparecer no Rio. A violência vem ocorrendo há meses. Ele vivia dizendo asneiras. A reforma foi feita no mês passado. A menina terminou de anotar a matéria. Marta vem achando leitura. Karla principiou morreu amanhã. O ônibus andará partindo ontem. Esse lápis é bonito. A professora elogiou o aluno. O estudante resolveu o problema. A menina está nervosa com a prova. O quadro estava apagado. A marginalidade está cada dia maior. 182 O livro pareceu interessante. A folha do caderno estava manchada. A blusa dela é muito chamativa. O ambiente é saudável para as crianças. O aluno correu para a sala. O garoto fugiu da mãe. A casa está bem arrumada. O pássaro voou para longe. O amigo cuida da avó. O tênis está sujo. A tia gosta de reclamar. Ele anda rápido. A sobremesa estava gostosa. Os pais foram ao restaurante. A família toda foi viajar. Os irmãos são parecidos. A empregada gosta de fofocar. O elevador parou de funcionar. A caneta começou a falhar hoje. Os patrões são antipáticos. A natureza precisa de cuidado. Sentenças inaceitáveis Os filhos vem nasceram sadios. A menina ia resolveu o problema. Eu iniciei fizer bagunça. Paulo deixou estudando os estudos. Meu coração estava partir todo. A raiva vinha passar rápido. Ele estava ando na rua. O vestibulando andava estar cansado. Aquela mãe vivia desanimar o filho. O rico estava para comprou o carro. A garota parara ficar cansada. Minha irmã foi fazendo bonita. O professor passou a interessará por ela. A abelha fez cessar de bagunça. O avô costuma correndo na praia. Valdir já tinha emoldurando a pintura. O professor terminara de feito a aula. O computador está muita lenta. Aline contar resolveu e Paula a verdade. O tênis parece apertou o calo. A apartamento muito parece você . O controle parara de funcionou. A garagem estará ocupada ontem. 183 O problema resolvido facilmente. Os livros estão mofandos. Murcha simples as flores. Ele resolveu me emocionei. A série fica mostrado diferença. Ela gosta comer batata. Thales fala índio. Dos sonho dela casamento. Foto o menino resolve. A árvore caiu tombou derrubou. A chia inteira TV. Ficou menino comprou confuso. Gosta ele ela. Sofisticado dinheiro inveja padrão. Tricô grama bebe. Desordem viu arrumou. Sujos copos tive. Loucura sentia bagunça. Ele amo a filha. Carro frente casa. Hospital o fechado sempre. Identificação frente rua. Calota perdida carro do. Bagunça pintar barulhenta. Obra arte espaço sempre. Pintora arte da falou muito. Expectativas galerias frustradas. Está cadeira afastada. Lanhe arrumou irmã para. Planos fazer positivos. Raiva piquenique sem querer. Espetacular tarde fim. Vítimas presas vento forte. Pode mudar sábado estréia. Planejamento essencial sentido fazer. Enfeite cabelo desarrumado está. Letra gigante moldada toalha. Festival todos bonitos atropeleis. Nadar água suja na. Fizer cenas resolveu. A menina vai falado muito. O português instiga estudará. Outro mundo visão fez. O hotel bonito cinema. A aluna resolverá fazido aquilo. O cantor planeta sacudiu o. Fama abre jogo fortuna da. 184 Aron enfrenta viajando chefs. Culinária desafiar constante. Animação faz lugar bolo. Enormes ideias sabor para delícia. Comum coisas em viajar. Norte ao Cancun toda família. Aventureiros divertem-se falado. Passagens vieram trocando hoje. Calor em resolve problemas. O país costa resorts. 185 ANEXO II INSTRUÇÕES FORNECIDAS AO PARTICIPANTE Prezado (a) participante, Neste experimento voce deve julgar se as sentencas que lhe forem apresentadas poderiam ser utilizadas, mesmo que informalmente, no portugues brasileiro. Para ver cada sentenca, voce deve pressionar a tecla azul quando solicitado. Ao terminar de ler a sentenca, voce deve pressionar a tecla laranja e, logo em seguida, a tecla verde ou a tecla rosa, a depender do seu julgamento sobre a sentenca. Caso julgue que a sentenca poderia ser utilizada por um falante do portugues, pressione a tecla verde. Caso julgue que a sentenca nao seria utilizada por um falante do portugues, pressione a tecla rosa. Voce deve utilizar exclusivamente o dedo indicador da mao direita para pressionar as teclas. Havera um intervalo para que voce possa descansar durante o experimento. Pressione qualquer tecla para continuar. 186