universidade federal do rio de janeiro faculdade de letras programa

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA
A CONSTRUÇÃO ASPECTUAL INCEPTIVA DO PORTUGUÊS
COM VERBOS NÃO CANÔNICOS
Natália Sathler Sigiliano
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA
A CONSTRUÇÃO ASPECTUAL INCEPTIVA DO PORTUGUÊS
COM VERBOS NÃO CANÔNICOS
Natália Sathler Sigiliano
Tese submetida ao programa de PósGraduação em Linguística da Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial para obtenção
do título de Doutora em Linguística.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Luiza Braga
Rio de Janeiro
Janeiro de 2013
ii
A CONSTRUÇÃO ASPECTUAL INCEPTIVA DO PORTUGUÊS
COM VERBOS NÃO CANÔNICOS
Natália Sathler Sigiliano
Orientadora: Professora Doutora Maria Luiza Braga
Tese de Doutorado submetida ao programa de Pós-Graduação em Linguística da
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial
para obtenção do título de Doutora em Linguística.
Aprovada por:
_________________________________________________
Presidente, Profa. Doutora Maria Luiza Braga
_________________________________________________
Prof. Doutora Mariângela Rios de Oliveira – UFF
_________________________________________________
Profa. Doutora Maria Margarida Martins Salomão – UFJF
_________________________________________________
Profa. Doutora Maria Maura da Conceição Cezário – UFRJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Nilza Barrozo Dias – UFF
Rio de Janeiro
Janeiro de 2013
iii
Sigiliano, Natália Sathler.
A Construção Aspectual Inceptiva do Português com verbos
não canônicos / Natália Sathler Sigiliano. – Rio de Janeiro:
UFRJ/Faculdade de Letras, 2013.
xiv, 180f.: il.; 31cm
Orientadora: Maria Luiza Braga
Tese (doutorado) – UFRJ/ Departamento de Letras/ Programa de
Pós-Graduação em Linguística, 2013.
Referências Bibliográficas: f. 170-174
1. Aspecto Inceptivo 2. Movimento 3. Gramaticalização 4.
Motivações Semânticas I. Braga, Maria Luiza. II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, Programa de Pós
graduação em Linguística. III. A Construção Aspectual Inceptiva do
Português com verbos não canônicos
iv
RESUMO
A CONSTRUÇÃO ASPECTUAL INCEPTIVA DO PORTUGUÊS COM VERBOS NÃO
CANÔNICOS
Natália Sathler Sigiliano
Orientadora: Maria Luiza Braga
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao programa de Pós-Graduação em
Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Linguística.
Adotando uma perspectiva baseada no uso, esta tese investiga a Construção
Aspectual Inceptiva do Português (CI), que segue o padrão [(SN) V1fin (Prep) V2inf].
Foram analisados sincronicamente e diacronicamente os preenchimentos de V1 por
cair, danar, deitar, desandar, desatar, disparar, entrar, pegar e romper. Realizaram-se
buscas no Córpus do Português, no Córpus Conceição de Ibitipoca, no Córpus Juiz de
Fora e Arredores e no Córpus Procon JF, com o intuito de examinar as relações
sintático-semânticas que perpassam a CI e as relações subjacentes ao seu emprego.
Com o intuito de verificar as relações sintático-semânticas entre os elementos que
compõem a CI, foi realizado um estudo de caso que partiu do verbo pegar, o qual pôde
ser observado tanto nas suas relações lexicais quanto gramaticais. Por meio dele, foi
possível propor uma rede de motivações sintáticas e observar as restrições semânticas
do uso de V1 e de Prep associadas à categoria de movimento. Uma análise diacrônica
com vias a analisar a gramaticalização da CI corroborou essas restrições inclusive no
que tange à escolha do V2. A aplicação do parâmetro da extensão e do princípio da
persistência mostrou ser a CI uma construção em processo de gramaticalização, em
que a posição de V1, com o passar do tempo, é preenchida por diversos verbos não
canônicos, persistindo a categoria de movimento associada a eles, e, a extensão a
novos contextos em que se restringem as ligações entre determinados V1 e tipos
específicos de V2. Foram buscadas também evidências translinguísticas da metáfora
de movimento na CI, visto que a linguagem é corporificada. Para tanto, analisaram-se
dados em diversas línguas, as quais revelaram haver forte associação ao tipo
semântico de V1 na CI não canônica do português com a do estoniano, espanhol,
francês e japonês, por exemplo. Foi desenhado um experimento com vias a observar a
relação corpo x linguagem e suas manifestações nos usos aspectuais. Essa pesquisa
psicolinguística não mostrou dados estatisticamente relevantes no que tange à ativação
neuronal de movimento e o uso de V1 que denote essa noção; ela colaborou com
pesquisas já realizadas que demonstraram a inexistência de relações direção e
velocidade de resposta no que diz respeito ao uso de expressões metafóricas.
Palavras-chave:
Semânticas
Aspecto
Inceptivo,
Movimento,
Gramaticalização,
Motivações
Rio de Janeiro
Janeiro de 2013
v
ABSTRACT
THE INCEPTIVE ASPECTUAL CONSTRUCTION IN PORTUGUESE WITH NON
CANONICAL VERBS
Natália Sathler Sigiliano
Orientadora: Maria Luiza Braga
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao programa de Pós-Graduação em
Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Linguística.
From a usage-based perspective, this dissertation investigates the Inceptive
Aspect Construction [(NP) V1fin (Prep) V2inf] (CI) in Portuguese. Instances of such
constructions in which the V1 slot is filled by cair, danar, deitar, desandar, desatar,
disparar, entrar, pegar and romper were analized both synchronically and diachronically.
Four different corpora – Corpus do Português, Corpus Conceição de Ibitipoca, Corpus
Juiz de Fora e Arredores and Corpus Procon JF – were surveyed for the CI syntactic
pattern. Data collected were analized so as to examine the syntactic and semantic
relations involved in the CI. Aiming at describing the relations extant between the
elements in the construction, a case study with the verb pegar was carried out. It was
possible to propose a network of syntactic motivations as well as to observe the
semantic restrictions to the usage of V1 and Prep associated to the cognitive category of
Motion. A diachronic analysis performed in order to verify the grammaticalization of the
CI reinforced such semantic restrictions and extended them to the usage of different
semantic types of V2. Taking the extension parameter and the persistence principle as
analitical categories, it is claimed that the CI is a construction in process of
grammaticalization, in which several non-canonical aspectual auxiliaries have been
entering the V1 slot through time. The cognitive category of Motion is persistent in all of
those verbs, while the extension of such construction to new contexts of usage is
restricted to certain collocations of V1 and specific semantic types of V2. Crosslinguistic
evidence for the presence of motion metaphors in the CI was also provided. Data from
several languages – such as Estonian, Spanish, French and Japanese – showed the
resence of motion verbs in aspectual constructions very similar to the one studied in this
dissertation. Finally, a behavioral experiment was design so as to observe whether it
was possible to find Action-sentence Compatibility Effects in the CI. Data were not
statistically relevant in which regards the simulation of hand motion during the
understanding of the CI. Such fact may be due to the fact that, in the CI, aspectual
auxiliaries are used metaphorically.
Keywords: Inceptive Aspect, Motion, Grammaticalization, Semantic Motivation
Rio de Janeiro
Janeiro de 2013
vi
AGRADECIMENTO
À querida e especial professora Maria Luiza Braga, por receber-me como sua
orientanda! Obrigada por ter me dedicado seu tempo, compartilhado vastos
conhecimentos e se aplicado à leitura atenta dos meus textos. Agradeço também por
ter se tornado uma grande amiga.
À Profa. Nilza Barrozo Dias, por investir junto comigo no projeto de trabalho com
o verbo pegar, que acabou dando origem a esta tese, e por me incentivar na pesquisa
linguística. Obrigada pelo carinho e pela dedicação em ensinar.
À Profa. Maria Margarida Martins Salomão, minha ex-reitora do período de
graduação, por ser um exemplo de professora, política e pesquisadora. Agradeço por
ter despertado em mim o interesse pela interface da linguística com outras áreas de
conhecimento e por ter proporcionado aulas incríveis no curso de Cognição da UFJF.
À Profa. Maria Maura Cezário, pelas valiosas contribuições na ocasião do
exame de qualificação e por ter aceitado o convite para ser membro da minha defesa.
À Profa. Mariangela Rios de Oliveira, por aceitar imediantamente o convite para
participar da banca de defesa como membro titular externo e pelo comprometimento
com a pesquisa.
Às Professoras Thaís Fernandes Sampaio e Christina Abreu, por terem aceitado
o convite de membros suplentes da banca.
Aos professores da UFJF, por todos os ensinamentos. Em especial, ao querido
Prof. Mario Roberto Lobuglio Zággari, in memoriam, que me conduziu ao caminho da
Linguística. Ademais, foi um grande exemplo de professor vocacionado e de homem de
ética e caráter. Agradeço ainda à sua família que sempre me recebeu de braços
abertos em sua casa.
Agradeço também aos professores da UFRJ, pelo modo como me receberam e
pelo convívio harmonioso e encorajador. Agradeço em especial ao Prof. Mário
Martelotta, in memoriam, e ao Prof. Marcus Maia que, à frente da coordenação, sempre
estiveram aptos a ajudar no que fosse preciso.
Aos funcionários da Pós-Graduação em Linguística, principalmente ao Lúcio,
pela presteza.
Aos meus amigos de sempre, com quem compartilhei as angústias e as alegrias
de meu percurso acadêmico e da minha vida: Carol, Ulisses, Ana Paula, Luis Felipe,
Larissa, Gabriela, Alice, Cláudia, Marina, amigos dos Contadores de Histórias e da
Primeira Igreja Presbiteriana de Juiz de Fora.
À CAPES, pela concessão da bolsa no desenvolvimento da pesquisa.
Ao Wagner Arbex e à Carolina pela ajuda essencial na estatística e no
desenvolvimento do experimento.
A todos os meus familiares, dos dois lados, pela paciência nos momentos de
choro, pelo incentivo e pela compreensão nos momentos em que não pude partilhar de
suas companhias. Em especial à minha querida avó Bailinha, aos meus tão amados e
incentivadores primos, aos meus tios, aos meus sogros e aos meus cunhados.
Ao Tiago, por ter me apoiado e me apoiar sempre em tudo; por estar ao meu
lado em todos os momentos; pelas conversas, risadas, carinhos, brincadeiras, livros e
por ter mudado a minha vida; obrigada pelas opiniões e leituras do meu trabalho;
obrigada pelo companheirismo e pelo amor dedicado a mim.
vii
Aos meus pais, Carlos Alberto e Mariza, por serem exemplo de amor, trabalho e
dedicação; por terem me ensinado de modo muito eficiente a não desistir e a sempre
buscar fazer o melhor, seja em que área for, por serem tão generosos comigo, pela
paciência com os meus erros, enfim, por serem esses grandes pais!
Aos meus amados irmãos, Larissa, Vítor e Renata, por torcerem pela minha
felicidade e me ajudarem a caminhar mais confiante, agradeço por todas as palavras de
apoio.
Por fim e principalmente agradeço a Deus por todas as oportunidades diárias de
respirar, aprender e ensinar.
viii
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Classificação das oposições aspectuais segundo Comrie (1978) ................... 32
Figura 2: Processos perfectivo e imperfectivo, segundo Taylor (2002, p.398) ............... 35
Figura 3: Taxonomia dos tipos de processo (TAYLOR, 2002, p.401) ............................ 36
Figura 4:Esquema de representação do modelo da Quebra de Barreiras ................... 143
Figura 5: Esquema de representação do Movimento sem Barreira ............................. 148
ix
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1: Ocorrências de CI preenchidas por cair a, na posição de V1fin, através dos
séculos. ........................................................................................................................ 129
Gráfico 2: CI preenchida por danar a, na posição de V1fin, através dos séculos.......... 129
Gráfico 3: CI preenchida por danar de, na posição de V1fin, através dos séculos. ....... 129
Gráfico 4: CI preenchida por desandar a, na posição de V1fin, através dos séculos. ... 130
Gráfico 5: CI preenchida por disparar a, na posição de V1fin, através dos séculos. ..... 130
Gráfico 6: CI preenchida por romper a, na posição de V1fin, através dos séculos. ...... 131
Gráfico 7: CI preenchida por desatar a, na posição de V1fin, através dos séculos. ...... 132
Gráfico 8: CI preenchida por pegar a, na posição de V1fin, através dos séculos.......... 132
Gráfico 9: CI preenchida por pegar de, na posição de V1fin, através dos séculos. ....... 133
Gráfico 10: CI preenchida por deitar a, na posição de V1fin, através dos séculos. ....... 133
Gráfico 11: CI preenchida por entrar de, na posição de V1fin, através dos séculos .... 134
Gráfico 12: CI preenchida por entrar a, na posição de V1fin, através dos séculos. ...... 135
Gráfico 13: Tempos médios de resposta dos falantes submetidos ao Experimento 1. As
barras indicam o Erro Padrão. ...................................................................................... 167
Gráfico 14: Tempos médios de resposta dos falantes submetidos ao Experimento 2. As
barras indicam o Erro Padrão. ...................................................................................... 169
x
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Distribuição do número de palavras do CP por século, origem e gênero. ..... 23
Quadro 2: Corpora do Português do Brasil dos séculos XX e XXI, acompanhados do
número aproximado de palavras que os compõem........................................................ 24
Quadro 3: Noções aspectuais segundo Travaglia (1985 [1981]).................................... 38
Quadro 4: Quadro aspectual do Português, Travaglia, 1985, p. 96. .............................. 42
Quadro 5: Quadro resumo das noções aspectuais de Travaglia (1985) ........................ 44
Quadro 6: Aspectos verbais do português (CASTILHO, 1968, p. 51) ............................ 46
Quadro 7: Tipologia do Aspecto (CASTILHO, 2010, p.420) ........................................... 50
Quadro 8: Perífrases inceptivas, segundo Travaglia (1985) .......................................... 70
Quadro 9: Parâmetros de auxiliação segundo Vieira e Brandão (2004) ........................ 75
Quadro 10: Afastamento do polo de auxiliaridade.......................................................... 76
Quadro 11: Critérios de auxiliaridade, Lobato (1975) ..................................................... 79
Quadro 12: Parâmetros da transitividade segundo Hopper e Thompson (1980) ........... 81
Quadro 13: Formação de going to como marcador de tempo futuro, através de um
continuum constituído pelos polos source (origem) e target (alvo). ............................. 122
Quadro 14: Sentidos dos verbos investigados em usos como verbo pleno e suas
etimologias. Fontes: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009; Dicionário Escolar
Latino-Português, 1956 ................................................................................................ 155
xi
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Tipos semânticos de V2inf ............................................................................. 126
Tabela 2: Distribuição das ocorrências da CI com base na combinação de tipos
semânticos de V2 com cada possibilidade de preenchimento de V1fin. ....................... 127
Tabela 3: Ocorrências da CI preenchidas em V1fin por entrar e romper ao longo dos
séculos. A mancha em cinza aponta para a extensão da construção no que tange aos
tipos semânticos de V2. ............................................................................................... 137
Tabela 4: Ocorrências da CI preenchidas em V1fin por entrar e romper ao longo dos
séculos. A mancha em cinza aponta para a extensão da construção no que tange aos
tipos semânticos de V2. ............................................................................................... 138
Tabela 5: Aplicação do esquema da Quebra de Barreiras a usos metafóricos de romper
e desatar ...................................................................................................................... 145
Tabela 6: Resultados do Experimento 1 ...................................................................... 166
Tabela 7: Resultados do Experimento 2 ...................................................................... 168
xii
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS ....................................................................................................... ix
LISTA DE GRÁFICOS ...................................................................................................... x
LISTA DE QUADROS ..................................................................................................... xi
LISTA DE TABELAS ...................................................................................................... xii
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 15
1 METODOLOGIA .......................................................................................................... 21
1.1 Corpora Utilizados .................................................................................................... 21
1.1.1 Corpora Escritos ............................................................................................. 22
1.1.2 Corpora Falados ............................................................................................. 23
1.2 Levantamento dos Dados......................................................................................... 24
1.3 Desenho Experimental ............................................................................................. 26
1.3.1 Experimento 1 ....................................................................................................... 27
1.3.2 Experimento 2 ....................................................................................................... 28
2 TEORIAS DO ASPECTO ............................................................................................ 29
2.1 Visão Geral ............................................................................................................... 29
2.2 Aspecto Segundo Comrie (1978 [1976]) .................................................................. 29
2.3 Aspecto Segundo Taylor (2002) ............................................................................... 34
2.4 Aspecto Segundo Travaglia (1985 [1981]) ............................................................... 37
2.5 Aspecto verbal de acordo com Castilho (1968; 2010) .............................................. 45
2.5.1 Castilho (1968)................................................................................................ 45
2.5.2 Castilho (2010)................................................................................................ 49
2.6 Aspecto segundo Bybee, Perkins e Pagliuca (1994) ................................................ 53
2.7 Conclusão ................................................................................................................ 56
3 A ABORDAGEM COGNITIVISTA PARA A LINGUAGEM ........................................... 58
3.1 Semântica Cognitiva ................................................................................................ 59
3.2 Gramática das Construções ..................................................................................... 66
4 MOTIVAÇÕES SINTÁTICO-SEMÂNTICAS DA CONSTRUÇão DE ASPECTO
INCEPTIVO DO PORTUGUÊS ...................................................................................... 69
4.1 A Construção de Aspecto Inceptivo ......................................................................... 69
xiii
4.2 Propriedades Sintáticas da Construção de Aspecto Inceptivo ................................. 79
4.2.1 Estudo de caso: o verbo pegar e seus esquemas de transitividade...................... 83
4.2.2 Adjunção ou Complementação em relação a pegar pleno: um desafio ao
tratamento construcionista da estrutura argumental ...................................................... 86
4.3 As Categorias de Movimento e Contêiner na Construção de Aspecto Inceptivo...... 95
4.4 O Preenchimento Variável da Posição de Prep ....................................................... 98
4.6 A Construção de Aspecto Inceptivo e A Rede de Construções com Pegar ........... 108
4.7 Conclusão do Capítulo ........................................................................................... 117
5. A GRAMATICALIZAÇÃO DA CONSTRUÇÃO DE ASPECTO INCEPTIVO NO
PORTUGUÊS............................................................................................................... 119
5.1 Gramaticalização .................................................................................................... 121
5.2 Possibilidades de Combinação entre V1fin e V2inf na CI ......................................... 126
5.3 Gramaticalização na CI .......................................................................................... 139
5.3.1 O Parâmetro da Extensão na CI ......................................................................... 140
5.3.2 O Princípio da Persistência na CI ........................................................................ 142
5.3.2.1. Quebra de Barreiras ........................................................................................ 143
5.3.2.2. Movimento sem Barreira ................................................................................. 148
5.4 Conclusão do Capítulo ........................................................................................... 151
6 Evidências translinguísticas da metáfora de movimento na Construção de Aspecto
Inceptivo ....................................................................................................................... 152
6.1 Evidências translinguísticas para a presença da metáfora de movimento na CI.... 153
6.2 Simulação Mental na Construção de Aspecto Inceptivo ........................................ 160
6.3.1 Aplicação do Experimento ................................................................................... 163
6.3.2 Resultados e Discussão ...................................................................................... 165
6.4 Conclusão do Capítulo ........................................................................................... 170
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 176
ANEXO I ....................................................................................................................... 181
ANEXO II ...................................................................................................................... 186
xiv
INTRODUÇÃO
A construção marcadora de aspecto inceptivo (CI) segue o padrão sintático [(SN)
V1fin (Prep) V2inf]. Essa construção é constituída por um verbo auxiliar1 (V1) flexionado2
em tempo, modo e pessoa e um verbo infinitivo (V2). Entre eles, as preposições a e de
podem aparecer. Essa posição, entretanto, na proposta sintática da construção, está
entre parênteses, demarcando, justamente, sua possibilidade de não ocorrer, fato que
pode ser notado em dados de fala.
Diversos verbos auxiliares podem ocupar a posição de V1fin, desde os mais
prototipicamente aspectuais, como começar, iniciar e principiar, até aqueles que, com o
tempo, ganharam contornos para fazê-lo, como cair, danar, deitar, desandar, desatar,
disparar, entrar, pegar e romper3, verbos motivados figurativamente. Este trabalho tem
como intuito analisar os V1fin a que nos referimos por último, ou seja, os não
prototipicamente aspectuais. Vejamos os exemplos abaixo, encontrados no Córpus do
Português4 (CP) (DAVIES & FERREIRA, 2006):
5
(1) Feitos os quinze anos, ela começou pouco e pouco a descobrir em si estranhas mudanças;
percebeu, sentiu que uma transformação importante se operava no seu espírito e no seu corpo:
sobressatavam-na terrores acometiam-na tristezas sem sem motificável. Um dia, afinal, acordou
mais preocupada; assentou-se na rede, a cismar. E, com surpresa, reparou que seus membros
ultimamente se tinham arredondado; notou que em todo seu corpo a linha curva suplantara a reta
e que as suas formas eram já completamente de mulher. Veio-lhe então um sobressalto de
1 A designação do V1fin na CI como verbo auxiliar será apresentada na seção 3.2.1
2
Uma vez que a CI pode ocorrer com V2inf indicador de fenômenos da natureza, bem como verbos
existenciais, cabe a ressalva de que a noção de flexão proposta para o V1fin não está necessariamente
atrelada à concordância deste com um sujeito. Também devido a esse fato, o SN sujeito de V1fin é
representado entre parênteses.
3
É importante ressaltar que não se ignora a existência de outros verbos não canônicos que venham a
preencher a posição de V1, como é o caso, por exemplo, de agarrar, desgraçar ou despejar. Porém,
acreditamos que, a partir da análise do recorte deste grupo específico de V1, selecionado com base na
leitura dos Corpora de fala, será possível perceber as características associadas à Construção Aspectual
Inceptiva, suas relações e/ou mesmo as generalizações realizadas pelo falante, que envolvem a escolha
do V1.
4
Disponível em: http://www.corpusdoportugues.org
5
O leitor pode notar a presença de um advérbio entre V1 e V2 no exemplo tipicamente aspectual e
poderia questionar a relevância de o advérbio constar no esquema da construção. Entretanto, a
Gramática das Construções, perspectiva adotada neste trabalho, não anota, nas construções de
estrutura argumental, os adjuntos que possam modificar os elementos da sentença, dado o fato de que
sua grande mobilidade e seu escopo variável apontam para uma não vinculação destes à forma da
construção.
15
(2)
(3)
(4)
(5)
(6)
(7)
(8)
contentamento mas logo depois caiu a entristecer: sentia-se muito só, não lhe bastava o amor
do pai e da velha Barbara; queria uma afeição mais exclusiva, mais dela. Lembrou-se dos seus
namoros. Riu-se "coisas de criança”. (CP, O Mulato, Aluísio de Azevedo, XIX)
eu tive num: um tempo - nos Estados Unidos - então - éh:: era um programa desses de estudante
- e aí eu fui pra uma escolinha dessa - fazer uma - conferência como eles diziam falar sobre o
Brasil - e eu já tava irritada com aquele monte de gringo já tava de saco cheio - e eu fui na escola
falar sobre - fui numa numa aula que é de economia doméstica e eu me danei a dar uma receita
- eu digo " bom - já falei sobre o Brasil agora vou dar uma receita típica " - aí disse " óh pegue a
galinha viva - arranque as penas do pescoço dela - bata ((ri)) com dois dedos e passe a faca e
corte - e junte o san::gue " a essa altura o povo já tava morto de nojo ((rindo)) ninguém tava mais
querendo copiar - eu digo " junte o sangue e vá batendo com vinagre - batendo até ficar
espumoso " (CP, Linguagem falada Recife, XX)
Sacudi-a com fúria, pu-la de pé num safanão que a devia ter desarticulado. Uma vontade de
cuspir, de lançar apertava-me a glote, e vinha-me o imperioso desejo de esmurrar aquele nariz,
de quebrar aqueles dentes, de matar aquele atroz reverso da luxúria. Mas um apito trilou. O
guarda estava na esquina e olhava-nos, reparando naquela cena da semi-treva. Que fazer?
Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo a mundo que a beijara? Não resisti. Afastei-me,
apressei o passo e ao chegar ao largo inconscientemente deitei a correr como um louco para a
casa, os queixos batendo, ardendo em febre. Quando parei á porta de casa para tirar a chave, é
que reparei que a minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. (CP, Dentro da
noite, João do Rio, XX)
As ondas cresciam como feras, quebrando-se em cachões de espuma. Corremos às igaras,
temerosos do perigo que Mana corria. Foi então que um de nós ouviu um grito e outro, o de
melhor vista, disse que vira a igarazinha entornada pelas águas. - Mana, Mana, gritamos, e
nossa voz morreu na tempestade. E as igaras lutavam contra as ondas. Onde estava Mana? A
névoa cobria o lago. Mana, pobre Mana. Chorávamos aflitos. Onde as igaras? Onde os
audaciosos que haviam mergulhado nas águas? E todos desandamos a chorar, implorando a
Tupã que poupasse a inocente. E, então, eis que o Cacique Caramatex vinha de regresso e,
vendo o perigo por que passava a filha de seu coração, quis arrostar a tempestade. (CP, Os rios
inumeráveis, Álvaro Cardoso Gomes, XX)
Deixava-o falar; às vezes até usava argumentos de inimigos, para fazer que o " velho " pusesse
para fora muitas das coisas que recalcava, que guardava em seus pensamentos. Por outro lado,
ela achava esquisito prazer em azucrinar um pouco aquele pai que mais parecia um irmão. - O
que tu estás é velho, com essa mania de poltronas fofas, descanso e paz.. - Velho? Tônio fez
meia-volta, formou uma corrida e saltou por cima do sofá que se achava na frente da lareira.
Nora desatou a rir. O pai voltou a cabeça para ela num desafio. - É justamente o que fazem as
pessoas que estão envelhecendo retrucou a rapariga. (CP, O resto é silêncio, Érico Veríssimo,
XX)
Se amolaram as palanganas, e lá se vão zunindo! - Aonde? - Para o mosteiro em busca de asilo.
Agora é assobiar-lhes às botas, ou aos calcanhares. - Pega! exclamou um mais ardente
e disparou a correr. Outros o seguiram maquinalmente. ao mesmo tempo o meirinho com seus
acólitos, capturando os dois improvisados minorenses, se afastaram com eles, levando após a
maior porção do povo. Assim conseguiram os camaristas salvar a casa do prelado da devastação
que a ameaçava. (CP, O Garatuja, José de Alencar, XIX)
O negro coçou a cabeça, lastimou-se e saiu resmungando. Bateu capões de mato; esgravatou
grotas e já estava desesperado, pensando no que lhe aconteceria, por voltar com as mãos
abanando, quando se lembrou de prometer dois vinténs a Santo Antônio. Mal tinha feito a
promessa, olhou para uma banda e o que havia de ver? A vaca pastando muito de seu, no lugar
onde escondera o bezerro. Pedro pulou de contente, laçou a vaca, e partiu. Em
caminho, entrou a pensar que o santo nada havia feito; ele é que estava banzando sem prestar
atenção. Por que, então, lhe havia de dar o dinheiro.(CP, Luzia- Homem, Domingos Olímpio,
XIX)
DEPOIS, vendo que não podia trabalhar, acabou se despedindo do botequim. Mas ficou
rondando por ali, ainda muito pálido e magro, sem fazer despesas, conversando com os
conhecidos. Aos poucos, a bem dizer sem se sentir, pegou a trabalhar para o bicheiro que fazia
ponto na charutaria. De começo passava as listas, tomava jogo de um ou outro, quando o velho
16
Jamil - que assim chamavam o bicheiro - se afastava um momento. Recebia uma comissão que a
princípio não era lá essas coisas. Mas, o velho foi descobrindo que Mariano tinha nascido para
aquela profissão: se antes, na vida, só fizera bater cabeça com bobagem, agora tomava rumo. A
freguesia lhe vinha às mãos sem que ele quase fizesse esforço (CP, Dôra, Doralina, Rachel de
Queiroz, XX)
(9) Basílio correu a ela, prendeu-a por um braço. - Luísa, Luísa, o que queres tu fazer? Não
podemos romper assim! Escuta - Fujamos então, salva-me de todo! - gritou ela, abraçando-o
ansiosamente - Caramba! Se te estou a dizer que não é possível! Ela atirou com a porta, desceu
as escadas correndo. O coupé esperava-a - Para o Rossio - disse. E, deitando-se para o canto
da carruagem, rompeu a chorar, convulsivamente. Basílio saiu do « Paraíso » muito agitado. As
pretensões de Luísa, os seus terrores burgueses, a trivialidade reles do caso, irritavam-no tanto
que tinha quase vontade de não voltar ao « Paraíso», calar-se, e deixar correr o marfim. Mas
tinha pena dela,coitada! (CP, O primo Basílio, de Eça de Queirós, XIX)6
Conforme se pode perceber nos exemplos de (1) a (9), o padrão sintático se
mantém. É interessante observar nos dados que o sujeito da construção, em todos os
casos em que se manifesta, é [+humano] e, na maioria deles, [+agentivo]. Outra
característica se refere ao fato de V2 subcategorizar ou não complemento. Como a
posição de V2 é preenchida por diferentes verbos, estes trazem consigo a sua estrutura
argumental. Nos exemplos, correr, entristecer, chorar e rir foram usados como verbos
intransitivos, enquanto dar, pensar e trabalhar exigiram complemento. Inicialmente,
pode-se imaginar que a escolha de V2 seja aleatória, porém, como será exposto, há
uma motivação em V1 que restringe os usos de V2.
Outra característica relevante da construção diz respeito à escolha e à colocação
de preposição entre V1 e V2. Nos exemplos de (1) a (9), a preposição selecionada foi a.
Tal qual veremos, há ainda a possibilidade de essa mesma posição ser ocupada por de
ou mesmo por zero.
Da mesma forma como ocorre nesses dados, na pesquisa em geral notamos que
o tempo e modo verbal predominante de V1 na construção aspectual inceptiva é o
pretérito perfeito do indicativo. Houve ainda ocorrências de V1 no presente do indicativo
e também no pretérito imperfeito do indicativo e do subjuntivo.
É importante observar que, nos casos da construção de aspecto inceptivo, o
V1fin indica a fase inicial de um evento. Nessa construção, reconhecem-se como verbos
aspectuais inceptivos canônicos aqueles que originalmente marcam essa fase, como é
o caso de iniciar, começar e principiar. São, portanto, considerados aspectuais
inceptivos não canônicos do português aqueles que, em seu sentido pleno, não
66
Nesses exemplos, os dados não foram separados em modalidades e/ou gêneros pelo fato de serem
apenas ilustrativos da construção aspectual inceptiva.
17
funcionam como auxiliares, mas que passaram por um processo de gramaticalização,
como é o caso de cair, danar, deitar, desandar, desatar, disparar, entrar, pegar e
romper, ou seja, verbos que, em seu sentido lexical, não marcam noções aspectuais,
mas os quais, usados em uma configuração sintático-semântica específica, passam a
fazê-lo. Além disso, como é possível verificar nos dados de (1) a (9), todos os V1fin
deixaram de selecionar complementos nominais para se unirem a V2inf, formando um
novo significado.
Inicialmente,
este
trabalho,
dando
continuidade
a
trabalhos
anteriores
(SIGILIANO, 2008), ficaria restrito ao estudo da Construção Aspectual Inceptiva cujo V1
era preenchido por pegar. No entanto, considerando-se a noção de construção,
conforme postula Goldberg (1995), viu-se a necessidade de ajustar o foco da análise,
tirando-o do verbo e levando-o para a construção aspectual, o que conduziu à
exploração de outros preenchimentos de V1.
Adota-se uma perspectiva baseada no uso, com a incorporação de pressupostos
teórico-analíticos da Gramática Cognitivista das Construções (GOLDBERG, 1995;
2006) e da Gramaticalização (BYBEE, 2003; HEINE, 2003; HOPPER, 1991; HOPPER
&TRAUGOTT, 2003 [1993]; LEHMANN, 2002 [1982]; SWEETSER, 1988; 1990;
TRAUGOTT & DASHER, 2002). Dão suporte à análise a Teoria da Metáfora Conceptual
(LAKOFF & JOHNSON, 1980; LAKOFF, 1987), o Modelo da Dinâmica de Forças
(TALMY, 2001) e alguns estudos recentes sobre simulação mental (GIBBS &
MATLOCK, 2008; BERGEN & WHEELER, 2010) .
Assim, apresentado o fenômeno linguístico sobre o qual esta tese se debruça,
bem como a perspectiva teórica adotada, cabe apontar quais são seus objetivos. Como
já foi dito acima, objetiva-se, principalmente, estudar as Construções Inceptivas do
português cujos V1fin sejam verbos não prototipicamente aspectuais. Tal objetivo
principal se desmembra nos seguintes objetivos específicos:
•
Descrever, com base em dados reais, os aspectos sintáticos e semânticos da
CI;
•
Discutir o papel dos verbos na sua interação com construções de estrutura
argumental;
18
•
Verificar a existência de um esquema cognitivo subjacente aos verbos que,
ao longo do tempo, se gramaticalizaram como marcadores aspectuais no
português;
•
Investigar as propriedades combinatórias de V1 e V2, buscando a
identificação de restrições de coocorrência;
•
Buscar evidências translinguísticas e psicolinguísticas para a presença da
metáfora de movimento na CI.
Dados os objetivos, propõem-se as seguintes hipóteses:
1. Ao contrário do que comumente se propõe na Gramática Cognitivista das
Construções no que tange às construções de estrutura argumental
(GOLDBERG, 1995; 2006; 2010), trabalha-se com a hipótese de que os
verbos, além de perspectivizarem o significado da construção, podem
também contribuir para sua estrutura sintática, em especial no que tange à
escolha de preposições;
2. Os verbos não prototipicamente aspectuais devem compartilhar algum
esquema de significado subjacente, sendo tal esquema relacionado à
categoria cognitiva de movimento;
3. As restrições de coocorrência observáveis entre V1 e V2 relacionam-se à
existência e à manutenção, quando do processo de gramaticalização, de
estruturas conceptuais comuns aos verbos que preenchem a posição de V1
na Construção Aspectual Inceptiva;
4. A metáfora de movimento, tratada como universal cognitivo fundado na
experiência humana corporificada, deve estar presente em construções de
aspecto inceptivo de outras línguas, bem como envolvida no processamento
cognitivo das ocorrências da CI.
Com objetivo de verificar a validade dessas hipóteses, foi realizada pesquisa
diacrônica e sincrônica, em diversos corpora, das construções inceptivas preenchidas
em V1 por verbos não prototipicamente aspectuais. Os métodos empregados nessa
pesquisa, bem como nas demais fases do trabalho são apresentados no capítulo 1.
19
Discutem-se também, já no capítulo 2, as principais teorias do aspecto para que,
no capítulo 3, apresentem-se as propriedades sintático-semânticas da CI e discuta-se o
o papel dos verbos na sua configuração sintática.
Passando-se à análise diacrônica, elucidada no capítulo 4, revela-se que os
dados apontaram para a extensão dos contextos de uso da construção inceptiva como
um todo, ao mesmo tempo em que a persistência de sentidos subjacentes a V1 define
tendências de combinação entre cada V1 e tipos semânticos específicos de V2.
Por fim, dado o papel fundamental da categoria cognitiva de movimento na CI,
ilustra-se, no capítulo 5, a presença de tal categoria em outras línguas não
necessariamente relacionadas ao português, bem como é realizado um experimento
psicolinguístico com vias a analisar a possibilidade de simulação mental do esquema
cognitivo do movimento quando do processamento de sentenças em que a CI com
preenchimentos não prototípicos se manifesta.
20
1 METODOLOGIA
Este capítulo detalha a metodologia empregada nesta tese, no que diz respeito
às análises sincrônica e diacrônica de dados reais de fala e escrita, bem como no que
concerne ao desenho experimental utilizado no teste psicolinguístico aplicado com o
objetivo de examinar a ocorrência ou não de simulação mental de movimento manual
quando do processamento da CI.
1.1 Corpora Utilizados
Os dados falados e escritos foram utilizados no intuito de se identificarem pistas
que expliquem a seleção dos verbos que se instanciam como V1fin ou V2inf, das
preposições e de sua relação nas construções de aspecto inceptivo ao longo da história
da língua portuguesa. As frequências de ocorrência de cada uma das construções
encontradas no Córpus do Português foram estimadas por século e serão apresentadas
no capítulo 4, sendo que, para cada século, por serem construções nem sempre muito
frequentes, todas as ocorrências foram analisadas. Já os dados de fala decorrentes de
outros corpora – todos coletados na primeira década do século XXI – cumprem o papel
de delinear a situação atual de uso dessas construções e não foram quantificados.
As análises desta tese mesclam estudos quantitativos e qualitativos. Aplicam-se
à análise desenvolvida neste trabalho as palavras de Schiffrin (1987, p. 66), acerca da
artificialidade da divisão entre análises quantitativas e análises qualitativas. Segundo a
autora, ao mesmo tempo em que toda análise quantitativa abarca algum tipo de análise
qualitativa – seja antes ou depois da contagem, uma vez que é necessário
primeiramente descrever as categorias nas quais serão enquadrados os dados e, em
sequência, elaborar generalizações analíticas a partir das tendências que os números
revelam –, toda análise qualitativa – assim como as quantitativas – recorre à noção de
que “mais é melhor”. Isso porque as análises qualitativas acreditam que um número
elevado de ocorrências de dado padrão leva a crer que a análise de sua estrutura está
21
correta; enquanto, por sua vez, as análises quantitativas dependem de frequências
elevadas para os testes de significância estatística.
Assim, Schiffrin argumenta que os dois tipos de análise são complementares,
mesmo sendo associados a abordagens distintas da pesquisa linguística. Com outras
palavras, a autora afirma que se faz relevante o estudioso levar em conta tanto as
generalidades observáveis muito frequentemente, tomando essa frequência como
indicativo de uma preferência geral dos falantes, quanto as particularidades de cada
ocorrência, mesmo que única, uma vez que uma boa descrição de suas
particularidades pode servir como pista para novas ocorrências que ainda podem ser
encontradas em outros dados.
É nessa perspectiva que se baseiam as análises a serem desenvolvidas nesta
tese.
1.1.1 Corpora Escritos
Para a análise, foram empregados dados coletados de textos escritos em prosa
pertencentes a diversos gêneros textuais (códigos jurídicos, textos notariais, crônicas,
biografias, romances, cartas oficiais e pessoais, bem como textos jornalísticos). Tais
textos cobrem um intervalo de tempo que vai do século XIII ao XX, para o Português
Europeu (PE), e do XVIII ao XX para o Português do Brasil (PB).
Foram levantadas ocorrências da Construção Aspectual Inceptiva no Projeto
Córpus do Português (CP) (DAVIES & FERREIRA, 2006), o qual permite o acesso a
uma coletânea de textos de tipos e gêneros diversos, que abarca o período dos séculos
XIII a XX.
Segundo o que se encontra disponível no site do CP, “este corpus é constituído
de mais de 45 milhões de palavras que vêm de pouco menos de 57,000 textos. Tem 20
milhões de palavras do século XX, 10 milhões do século XIX, e 15 milhões de palavras
22
dos séculos XIII-XVIII”. A distribuição do número de palavras por país de origem e por
gênero, quando existente, encontra-se reproduzida no Quadro 17.
# DE PALAVRAS
550,968
1.316,268
2.875,653
4.435,031
3.407,741
2.234,951
10.008,622
3.087,052
3.271,328
3.048,020
2.816,802
3.346,988
3.028,646
43.428,07
SÉCULO
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
XX
XX
XX
XX
XX
PAÍS
Portugal
Portugal
Portugal
Portugal / Brasil
Portugal / Brasil
Portugal / Brasil
Portugal / Brasil
Portugal
Portugal
Portugal
Brasil
Brasil
Brasil
Total
GÊNERO
Acadêmico
Notícias
Ficção
Acadêmico
Notícias
Ficção
Quadro 1: Distribuição do número de palavras do CP por século, origem e gênero.
Fonte: http://www.corpusdoportugues.org/
1.1.2 Corpora Falados
Uma parte dos dados de fala do século XXI é oriunda do projeto O português
falado na região de Juiz de Fora e arredores – constituição de um banco de dados
“anotado” (PFJF), coordenado pela professora Dra. Nilza Barrozo Dias (UFF/FAPEMIG)
e composto por um conjunto de seis gravações de reuniões familiares informais. O
gênero textual predominante é o relato pessoal, os famosos “causos”, tão típicos da
região da Zona da Mata Mineira. Os dados pertencentes a esse projeto são
identificados pela sigla PFJF.
Outra parte integra o córpus de audiências do PROCON de Juiz de Fora – MG
(PROCON-JF), cujos dados foram levantados, transcritos, refinados e organizados sob
a coordenação dos professores doutores Nilza Barroso Dias, Paulo Cortes Gago e
Sônia Bittencourt Silveira, da Universidade Federal de Juiz de Fora, os quais
7
Nem todos os textos disponíveis no CP são classificados quanto ao gênero, entretanto, como as
análises a serem empreendidas neste trabalho são de viés muito mais qualitativo do que quantitativo, não
se acredita que esse fato possa prejudicá-las.
23
gentilmente cederam os dados a esta pesquisa. Os dados encontrados nos corpora
desse projeto recebem a etiqueta PROCON-JF.
O projeto Córpus do Português, supracitado, também disponibiliza, como fonte
de pesquisa, um córpus oral, coletado no século XX no Brasil e em Portugal, o qual
também foi fonte de pesquisa para este trabalho.
Também foi coletado um conjunto de dados em oito entrevistas do córpus
Conceição de Ibitipoca, levantado, transcrito e organizado sob a coordenação da Dra.
Terezinha Cristina Campos de Resende para sua tese de doutoramento junto à
Universidade Federal do Rio de Janeiro. As entrevistas versam sobre temas que
contemplam as tradições da Vila de Conceição de Ibitipoca, bem como o turismo e as
histórias pessoais. Os dados extraídos desse córpus são identificados pela etiqueta IBI,
seguida de uma sigla de duas letras que remete ao sujeito entrevistado.
Os corpora de fala supracitados foram os motivadores para a escolha dos
preenchimentos de V1 a serem trabalhados e focados na presente tese. A partir da
leitura cuidadosa das entrevistas, foi possível listar um conjunto de verbos marcadores
de aspecto não canônicos presentes na Construção Inceptiva do Português, quais
sejam: cair, danar, deitar, desandar, desatar, disparar, entrar, pegar e romper.
Ao todo, as transcrições dos corpora de língua falada totalizam 185.298 palavras,
distribuídas conforme o que consta no Quadro 2.
Século XXI
Projeto O Português Falado na Região de Juiz de Fora PFJF
e Arredores
Projeto PROCON – Juiz de Fora
PROCONJF
Projeto Conceição de Ibitipoca
IBI
Córpus do Português
CP
TOTAL GERAL
83,173
33,034
69,091
2.178,889
2.364,187
Quadro 2: Corpora do Português do Brasil dos séculos XX e XXI, acompanhados do número aproximado
de palavras que os compõem.
1.2 Levantamento dos Dados
Para que as instanciações da Construção Inceptiva fossem levantadas,
adotaram-se duas estratégias distintas, a depender da base de dados pesquisada.
24
Primeiramente, foram definidos quais dentre os verbos que ocupam a posição de
V1 no esquema [(SN) V1fin (Prep) V2inf] seriam estudados com base na leitura dos
corpora de fala selecionados para a pesquisa. Como já apresentado, os V1 analisados
foram aqueles que não seriam marcadores inceptivos canônicos.
Em seguida, as transcrições das audiências do PROCON de Juiz de Fora – MG
e as reuniões familiares gravadas pelos pesquisadores do projeto O português falado
na região de Juiz de Fora e arredores, foram submetidas ao processo de busca padrão
do programa Microsoft Office Word, versão 2007: utilizando-se a ferramenta Localizar,
buscaram-se os radicais dos verbos estudados e foram coletados apenas aqueles
trechos em que tais verbos ocorriam no contexto como descrito acima.
Após esse levantamento, os dados eram analisados a fim de verificar se, de fato,
cada um sinalizava aspecto inceptivo.
Já o Córpus do Português, por ser anotado quanto à morfossintaxe, dispõe de
uma ferramenta de busca muito mais eficiente. Tal ferramenta permite que se defina um
padrão sintático a ser buscado em um determinado intervalo de tempo. Permite ainda
que se configure a busca de modo que ela cubra todas as variações ortográficas de um
dado item – algo impossível em mecanismos baseados em text-matching, como a
ferramenta Localizar, do Word. Também, por meio dela, é possível se definir apenas a
busca de um V1fin específico, seguido de V2inf. Este pode ser buscado em até quatro
palavras após o V1fin, o que permite constatar a presença ou não de preposições entre
V1 e V2, além de observar a existência ou não de advérbios intercalados entre esses
verbos. Os V1 são inseridos no ícone de busca do córpus em sua forma ortográfica
atual e buscados através dos séculos em todas as suas variações.
Ao inserir esses parâmetros, o mecanismo de busca do CP retornou as
ocorrências que se encaixam no padrão sintático V1 finito cair, danar, deitar, desandar,
desatar, disparar, entrar, pegar e romper, seguido de V2 infinitivo. Elas, então, foram
refinadas, analisadas e quantificadas.
Nesse tipo de busca, foram considerados todos e quaisquer textos disponíveis
para cada século, incluindo-se, nesse caso, os textos literários.
25
1.3 Desenho Experimental
A fim de corroborar o argumento em favor da presença da metáfora de
movimento
na
CI,
adaptou-se,
nesta
tese,
um
protocolo
de
experimento
comportamental desenvolvido para o inglês por Bergen e Wheeler (2010). Seu objetivo
é o de fornecer evidências para o ancoramento neuronal da metáfora de movimento
através da medição do Efeito de Compatibilidade Ação-Sentença (ECA). Para tanto,
propôs-se um desenho experimental no qual falantes nativos do português deveriam
avaliar sentenças de seu idioma no que tange ao fato de poderem ser consideradas, ou
não, como bem formadas.
Cinquenta e dois alunos de graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora
participaram do experimento em troca de um lanche ao final. Todos eram destros,
deveriam marcar as respostas apenas com o indicador da mão direita e eram falantes
nativos do português. No total, foram criadas 180 sentenças: 20 sentenças aspectuais
com começar; 20 sentenças aspectuais com pegar, 20 sentenças aspectuais com
disparar; 40 sentenças aleatórias boas; 80 sentenças aleatórias agramaticais. Essas
sentenças encontram-se disponíveis no Anexo 1.
Para a realização dessa tarefa, os falantes utilizaram um teclado QWERTY
girado em 90º em relação a sua posição convencional e ligado ao software PsyScope,
capaz de medir com precisão o tempo de resposta para cada sentença. Para visualizar
a sentença a ser julgada, o falante deveria pressionar um botão azul – a tela N –
localizado exatamente ao lado do centro do eixo vertical do teclado. Após ler a
sentença, o participante deveria pressionar um botão laranja – a tecla H –, o qual
disparava a contagem do tempo. Em sequência, o participante poderia optar por
movimentar sua mão para frente ou para trás de modo a pressionar uma tecla verde
(letra A do teclado) – que indica que a sentença é bem formada – ou uma tecla rosa
(aspas do teclado) – que indica sua má formação, respectivamente.
Foram aplicados dois experimentos com o mesmo intuito, com 26 participantes
em cada. Um deles objetivou comparar aspectuais canônicos com não canônicos. Por
isso, foram comparadas sentenças aspectuais com começar e pegar, misturadas a
26
frases aleatórias. Começar é um verbo que, em seu sentido pleno, não denota
movimento, mas sim início; pegar, diferentemente, indica movimento do braço.
O outro experimento, aplicado a participantes diferentes do primeiro, teve o
intuito de observar o efeito temporal aplicado às sentenças com pegar quando
comparadas às também aspectuais com disparar.
Cada um dos experimentos foi composto por quatro partes: uma seção de
treinamento, uma de julgamento, outra de treinamento com o teclado em posição
verticalmente invertida em relação à primeira e outra de julgamento com o teclado
também em posição verticalmente invertida em relação à primeira.
A hipótese a ser testada, a do ECA, prevê que o tempo de resposta dos falantes
tenderá a ser mais rápido quando determinado constituinte da sentença, neste caso, o
marcador aspectual pegar, for compatível com o movimento do braço e da mão
envolvidos na ação de julgamento realizada sobre o teclado.
Os dados foram analisados utilizando-se Análise de Variância – ANOVA –, tendo
sido tratados no software ezANOVA.
1.3.1 Experimento 1
Inicialmente, os 26 participantes passaram por uma fase de treinamento,
composta por 10 frases genéricas ruins e boas. Nesta fase, além de ler as instruções
dadas na tela inicial – Anexo 2 – acerca do teste, os graduandos voluntários recebiam
as mesmas instruções oralmente. Eventuais dúvidas eram sanadas ainda nessa fase,
antes que se passasse à primeira seção de julgamento.
Na primeira parte do experimento, os voluntários julgaram 80 sentenças, sendo
que, no total, 10 eram aspectuais com começar, outras 10 com pegar, 20 eram
sentenças distratoras boas e 40 distratoras ruins. O teclado ficou posicionado de forma
que o botão verde, indicando aceitabilidade do fragmento, ficasse posicionado distante
do corpo do julgador e que o botão rosa, indicando inaceitabilidade, estivesse mais
próximo ao corpo do participante.
Passada a análise de 80 frases, havia 30 segundos de descanso. Nesse
momento, o teclado era invertido e, portanto, passava a se posicionar de forma que o
botão rosa, indicando inaceitabilidade do fragmento, ficasse posicionado distante do
27
corpo do julgador e que o botão verde, indicando aceitabilidade, estivesse mais próximo
ao corpo do participante. Antes de julgar as sentenças nessa segunda metade, o
participante foi submetido a um novo treinamento, em que avaliou mais 10 frases
genéricas.
1.3.2 Experimento 2
Neste segundo experimento, outros 26 universitários julgaram 160 sentenças. No
total, 20 eram aspectuais com disparar, as mesmas 20 com pegar do experimento
anterior, as mesmas 40 aleatórias boas e 80 aleatórias ruins.
Adotou-se o mesmo procedimento quanto ao treinamento dos participantes, em
que se dispuseram 10 frases genéricas ruins e boas. Na primeira metade desta fase, ou
seja, nas primeiras 80 frases, o botão rosa, indicando inaceitabilidade do fragmento,
ficou posicionado distante do corpo do julgador e o botão verde, indicando
aceitabilidade, mais próximo ao corpo do participante, ou seja, esta fase se iniciou
invertida com relação ao posicionamento do teclado na primeira metade do
Experimento 1.
Nessa primeira parte, foram comparadas: 10 sentenças aspectuais com disparar,
10 sentenças aspectuais com pegar, 20 sentenças aleatórias boas e 40 sentenças
aleatórias agramaticais.
Passada a análise de 80 frases, havia 30 segundos de descanso. Nesse
momento, o teclado foi invertido e, portanto, passou a se posicionar de forma que o
botão verde, indicando aceitabilidade do fragmento, ficasse posicionado distante do
corpo do julgador e que o botão rosa, indicando inaceitabilidade, estivesse mais
próximo ao corpo do participante.
Antes de julgar as sentenças nessa segunda metade, o participante foi
submetido a um novo treinamento, avaliando novas 10 frases genéricas. Em seguida,
ele julgou 10 sentenças aspectuais com disparar, 10 sentenças aspectuais com pegar,
20 sentenças aleatórias boas e 40 sentenças aleatórias agramaticais.
28
2 TEORIAS DO ASPECTO
Neste capítulo, serão discutidas as principais visões dos estudiosos de aspecto
tais como formuladas por Comrie (1978); Taylor (2002); Travaglia (1985); Mira Mateus
et al (1989); Castilho (1968; 2010) e Bybee, Perkins e Pagliuca (1994). Esses definem
e/ou descrevem a categoria de aspecto e, para tanto, distinguem-na da de tempo, o que
auxiliará na percepção das características atreladas à marcação de incepção.
2.1 Visão Geral
O aspecto é uma categoria gramatical a qual marca as várias organizações
temporais de um evento. Elas podem ser divididas em aspecto perfectivo e
imperfectivo, a depender da demarcação ou não de início e/ou fim, completamento ou
não do processo. Tais “macro-aspectos” apresentam uma série de subclassificações
com relação ao ponto de vista de suas fases de realização, as quais diferem em alguns
pontos dentre os autores.
Neste capítulo, será exposta uma breve análise da literatura a respeito do
aspecto para que se tenha uma visão geral sobre a temática, a fim de se exporem as
motivações da classificação adotada para o exame da construção estudada.
Nomenclaturas distintas são aplicadas a noções processuais semelhantes no
que tange à aspectualidade. O objetivo, entretanto, não é confrontar as nomenclaturas
utilizadas, mas apresentá-las de forma a facilitar a abordagem daquilo que aqui será
designado como Construção Aspectual Inceptiva. Passaremos a considerá-las a seguir.
2.2 Aspecto Segundo Comrie (1978 [1976])
Segundo Comrie (1978 [1976]), aspecto é distinto de tempo. A categoria de
tempo enquadra a situação em referência a outro tempo, geralmente, o momento da
enunciação. Assim, este é encarado como um dêitico, uma vez que localiza o tempo da
situação no tempo do enunciado. Já o aspecto tem a ver com a constituição temporal
interna de uma situação, como pode ser notado nos exemplos abaixo:
29
(i) Por sinal o mesmo que soprava quando Glauber Rocha desandou a proclamar a
superioridade de José de Alencar. (19BrFolha)
(ii) Os periquitos e tuins desandam a vaiá-los. (19BrTeixeiraRua)
Nos dados apresentados em (i) e (ii), é possível peceber que, apesar da
distinção de tempo do verbo desandar – passado e presente – o aspecto continua
sendo o mesmo. Em ambos os casos, desandar é usado como um auxiliar que marca
aspecto inceptivo, apontando para o início de um processo.
É importante ressaltar que, assim como o autor apresenta, a noção de aspecto
não está desconectada da de tempo, já que este se refere à situação temporal externa
e aquele, à situação temporal interna. Nos exemplos (i) e (ii), temos tanto a marcação
do aspecto inceptivo quanto a marcação dos tempos passado e presente
respectivamente. Uma análise pouco cuidadosa da língua portuguesa poderia levar à
conclusão equivocada de que, enquanto tempo é marcado morfologicamente no verbo,
o aspecto é marcado por auxiliares. A própria nomenclatura de Desinência ModoTemporal empregada pelos estudos mais tradicionais poderia reforçar essa visão.
Considerem-se, entretanto, os exemplos (iii) e (iv) abaixo:
(iii) Por sinal o mesmo que soprava quando Glauber Rocha desandou a proclamar a
superioridade de José de Alencar. (19BrFolha)
(iv) Ele ia até certo ponto e desandava a chorar. (19BrBarretoCemiterio)
Em ambos os exemplos, tem-se a marcação do aspecto inceptivo realizada pelo
auxiliar desandar. É interessante notar, entretanto, que, em (iv), a desinência
marcadora de pretérito imperfeito acrescenta à construção um aspecto distinto, de
iteratividade. Assim é que a noção aspectual de habitualidade, no português, pode ser
marcada também pela morfologia do verbo, e não apenas por auxiliares. Nos exemplos
acima, ambas as situações narradas se situam em um tempo anterior ao da
enunciação, logo, ambas estão no passado, o que reitera o fato de que a distinção
flexional entre desandou e desandava aponta para uma distinção aspectual.
De acordo com Comrie, a distinção entre perfectivo e imperfectivo é crucial. A
perfectividade indica a visão da situação em seu todo, completa, sem distinção das
fases que perfazem a situação. Assim, quando se trata de aspecto perfectivo, a
situação é observada “de fora”, sem necessariamente distinguir algo da estrutura
interna da situação. O contrário ocorre com o imperfectivo, no qual a situação é
observada “por dentro” e há distinção no que tange à estrutura interna dela.
30
Apresentadas as distinções iniciais, Comrie (1978, p.16-21) propõe que o
aspecto perfectivo:
I.
Não deve ser confundido como um marcador de duração curta, sendo que
tanto este quanto o imperfectivo podem ser usados em referência a
situações cuja duração seja caracterizada como longa ou curta. A título de
ilustração, considere-se que a distinção entre as sentenças “Ao longo da
década de 70, ele frequentou a universidade” e “Ao longo da década de 70,
ele frequentava a universidade” não se refere à duração do ato de frequentar
a universidade, mas, sim, à forma de se conceptualizar tal ato que, quando
codificado por uma forma do pretérito perfeito, é encarado como um todo
único, ao contrário de quando codificado por uma forma do imperfeito,
situação em que “frequentar a universidade” passa a se referir a um conjunto
de iterações impossíveis de serem precisadas.
II.
Não pode ser descrito como apresentando uma duração limitada, oposta à
duração ilimitada do imperfectivo. As duas sentenças apresentadas em I
acima ilustram essa impossibilidade, visto que, em ambas, o SP “ao longo da
década de 70” indica uma duração limitada, o que não significa que ambas
indiquem aspecto perfectivo.
III.
Não marca apenas situações pontuais, ou momentâneas. Novamente, os
exemplos em I demontram esse fato. Frequentar uma universidade ao longo
de uma década não pode ser encarado como uma situação momentânea,
ainda assim, na primeira das sentenças do par de exemplos, tem-se aspecto
perfectivo.
IV.
Não indica uma ação completa: indicar o final de uma situação é apenas um
dos sentidos possíveis para uma forma perfectiva.
V.
Não indica necessariamente um resultado, sendo esta possibilidade mais
relacionada à semântica do próprio verbo do que ao aspecto.
VI.
Representa a ação pura e simples, sem a presença de demais implicações.
Ainda segundo Comrie, o imperfectivo apresenta subdivisões e aquelas que são
mais comuns entre as línguas estão apresentadas na Figura 1. Para este autor, a
31
habitualidade é distinta da iteratividade, ao contrário do que se costuma afirmar8. Assim,
todos os habituais descrevem uma situação que se prolonga por um período estendido
no tempo, sendo estendido o bastante para que a situação à qual se refere seja vista
não como uma propriedade incidental do momento mas, precisamente, como uma
característica de todo um período. Ao contrário, a iteratividade é percebida quando da
repetição da situação. Assim, é possível haver sentenças em que se percebe
habitualidade, tais como The Temple of Diana used to stand at Ephesus, em que não
há como inferir iteratividade, já que não se pode pensar que o templo ocupou essa
localização em algumas ocasiões, mas não em outras.
Comrie sustenta também que a progressividade é similar à continuidade (ou
duratividade), que é definida como imperfectiva, a qual não é ocasionada pela
habitualidade. De acordo com esse autor, como a habitualidade não determina
progressão, igualmente a progressividade não determina habitualidade (cf. COMRIE,
1978, p.34).
Aspecto
Perfectivo
Habitual
Imperfectivo
Contínuo
Não-progressivo
Progressivo
Figura 1: Classificação das oposições aspectuais segundo Comrie (1978)
Apesar de não o listar entre as principais subdivisões do imperfectivo, Comrie
menciona o aspecto inceptivo (referido pelo autor como sentido ingressivo) ao se opor à
ideia de que o perfectivo marca ações acabadas (1978, p.19-20). O autor mostra que
verbos conjugados em tempos verbais tipicamente perfectivos (tais como o pretérito
8
Travaglia (1985[1981], p.60) afirma, entretanto, ser, no português, todo habitual também iterativo.
32
perfeito do português) podem indicar o início de uma ação ou evento. Tome-se, por
exemplo, verbos como conhecer (“Eu conheci a Maria nas férias de 98.”) e ficar (“Eu
fiquei amigo do Jorge no colégio.”). Em ambos os casos, não se pode dizer que a ação
de conhecer a Maria e a situação de ser amigo do Jorge tenham se acabado, apesar de
os verbos terem se flexionado no pretérito perfeito. Pelo contrário, a inferência que
parece mais acessível é aquela de que o enunciador de sentenças como as acima
ainda conheça a Maria e ainda seja amigo do Jorge.
As Construções de Aspecto Inceptivo estudadas neste trabalho, com frequência,
têm seu V1 conjugado no pretérito perfeito, conforme será possível notar nesta tese.
Isso não significa, contudo, assim como ocorre com os verbos estativos analisados por
Comrie, que o aspecto inceptivo seja um subtipo de perfectivo.
Ao compararmos a proposta de Comrie ilustrada pela Figura 1 com a forma
como o imperfectivo ocorre no português, temos que há classificações distintas em
relação àquilo apresentado como mais comum entre as línguas. Castilho (1967) propõe,
após uma vasta análise de frases da nossa língua, que, entre os aspectos básicos que
se inserem no imperfectivo, têm-se o Inceptivo, o Cursivo e o Terminativo. Travaglia
(1985 [1981]) divide as noções aspectuais em Duração e Não duração e Fases de
realização, desenvolvimento e completamento, como poderá ser visto adiante.
Comrie defende que a imperfectividade tem a ver com a percepção de uma
situação a partir de sua estrutura interna. Nela, há foco na duração e nas sequências
fasais, por exemplo. Já a duratividade (ou continuidade) apenas se refere ao fato de
que algumas situações duram um certo período de tempo, noção essa que se
contrapõe à de pontualidade (cf. COMRIE 1978, p.41-42). Situações pontuais são vistas
como aquelas que não têm duração. Por isso, não apresentam estrutura interna.
Semelhantemente
são
classificadas
as
situações
que
apresentam
aspecto
semelfactivo, que são caracterizadas como aquelas que têm lugar apenas de vez em
vez.
Outra distinção relevante e comum aos verbos aspectuais envolve a noção de
télico e atélico. Diferentemente da situação atélica, aquela encarada como télica
envolve um processo que lida com um ponto terminal bem definido, após o qual o
33
processo não pode continuar. Segundo o autor, esse processo é exemplificado nas
situações que envolvem sujeitos e objetos que podem influenciá-las.
Conforme anuncia o autor, quando associada à oposição perfectivo/imperfectivo,
a carga semântica dos verbos télicos é consideravelmente restringida. Assim, algumas
deduções lógicas podem ser feitas do aspecto de uma sentença que se refere à
situação télica, as quais não podem ser inferidas de uma situação atélica. Dessa forma,
o autor assevera que, nas expressões que se referem a situações télicas, é importante
ressaltar que deva tanto existir um processo que leva ao ponto terminal, quanto o
próprio ponto terminal (COMRIE, 1978, p.47).
2.3 Aspecto Segundo Taylor (2002)
Taylor distingue dois tipos de aspecto: perfectivo e imperfectivo. De acordo com
o autor, o aspecto perfectivo se caracteriza como um processo temporalmente
delineado, ou seja, sua caracterização faz referência ao ponto de início e fim. Já quanto
ao aspecto imperfectivo, a caracterização não faz referência à completa delimitação do
evento (cf. TAYLOR, 2002, p.397). Constata-se que a proposta dele para a divisão
entre aspecto perfectivo e imperfectivo baseia-se em critérios um pouco distintos
daqueles propostos por Comrie. Isso ocorre na medida em que o foco de Taylor nessa
definição recai sobre a noção de fronteira do evento ao qual o aspecto se aplica. Já
Comrie enfatiza a duração do processo no imperfectivo, delineando suas fases, e, no
caso do perfectivo, tal processo é considerado como um todo compacto, no qual não é
possível identificar fases iniciais, intermediárias e finais.
Para ilustrar essa distinção, uma esquematização é proposta:
34
t
Processo perfectivo
t
Processo imperfectivo
Figura
2: Processos
perfectivo
e imperfectivo
Figura
2: Processos
perfectivo
e imperfectivo,
segundo Taylor (2002, p.398)
Ele destaca que é raro o caso de o verbo ser, por ele mesmo, perfectivo ou
imperfectivo:
os
diferentes
tipos
de
complementos
e
modificadores
podem
frequentemente criar/permitir uma leitura perfectiva e imperfectiva. Percebe-se, nessa
proposição de Taylor, uma visão mais gestáltica da marcação de aspecto, condizente
com a adotada neste trabalho. Como se viu na flexão verbal em (ii) Os periquitos e tuins
desandam a vaiá-los e na presença de um advérbio em (1) ela começou pouco e pouco
a descobrir em si as estranhas mudanças, não é apenas a semântica verbal ou mesmo
o verbo especificamente que define o aspecto da situação, apesar de ele contribuir.
O autor (2002, p.401), por meio de um esquema (Figura 3), apresenta a
taxonomia dos tipos de processos aspectuais. Nesse esquema, os processos são
divididos em dois grandes grupos, o dos processos Limitados (Perfectivos) e o dos
Ilimitados (Imperfectivos). Dentro do grupo dos Limitados, encontram-se os de aspecto
Pontual e os de aspecto Estendido; enquanto no grupo dos Ilimitados encontram-se os
aspectos Estativo e Dinâmico. O Pontual é concebido como ocorrendo em um ponto do
tempo sem, portanto, extensão temporal. Como exemplos, o autor cita espirrar, tossir,
morrer, chegar, dentre outros. Já os eventos Estendidos são aqueles que se
desenvolvem através do tempo. Para ilustrá-los, ele cita viajar de A a B, escrever uma
novela, construir uma casa, dentre outros.
O autor observa, ainda, que a subcategorização dos eventos estendidos envolve
um número específico de eventos, os quais podem ser pontuais ou estendidos. Ele cita,
por exemplo, as frases walk to the store three times, em que há perfectividade e walk to
the sore every Saturday, que é imperfectiva.
35
Taylor (2002, p.402) classifica o processo Estativo como sendo aquele que
envolve pouca ou nenhuma mudança, em que a situação simplesmente prossegue. Ele
cita como casos ilustrativos desse processo ser alto, saber a resposta e gostar de
queijo. Já as atividades Dinâmicas são aquelas em que as coisas acontecem, ficam
prontas, ou seja, em que há mudança, sem, entretanto, haver um desdobramento de
um ponto final, como ocorre em aprender francês e trabalhar numa dissertação.
O autor também define o Iterativo como a ocorrência de um número não
específico de instanciações de um simples evento pontual. Como exemplo, ele cita he
coughed, como he coughed repeatedly. Já os Habituais são vistos como aqueles em
que o processo ocorre em intervalos mais ou menos regulares através de um período
de tempo não especificado. Exemplos dele incluem read a newspaper every morning e
have the breakfast at 8.
Processo
Limitado
Pontual
Estendido
Ilimitado
Estativo
Dinâmico
Habitual
Iterativo
Figura 3: Taxonomia dos tipos de processo (TAYLOR, 2002, p.401)
Na figura 3, os tipos de processo apresentados por Taylor partem do princípio
semelhante aos de Comrie que, ao apresentar as oposições aspectuais, analisa como
ponto importante a distinção entre Perfectivo (limitado) e Imperfectivo (Ilimitado). É
interessante notar que, ao diferenciar os tipos de processos Ilimitados, Taylor foca na
noção de mudança que pode ou não estar envolvida na ação (fazendo com que o
36
processo seja Estativo ou Dinâmico), enquanto Comrie enfatiza a duração e as
sequências fasais (características definidoras do aspecto habitual ou contínuo).
Taylor (2002), ao fazer breve referência à categoria do aspecto, não cita o
Inceptivo como sendo uma possibilidade de tipo de aspecto. Assim, a noção de
inceptividade, em que há marcação clara de ponto inicial de processo e de determinada
duração após esse ponto, não é proposta por esse autor. No entanto, ele apresenta
uma visão bastante relevante a respeito da consideração do todo do processo
aspectual, em que não se observa apenas o verbo, por exemplo, mas a sua relação
com os complementos e adjuntos, apontando para uma noção construcional.
Do tratamento do aspecto como uma categoria conceptual fundada na existência
ou não de fronteiras que delimitam a ação verbal, emerge outra confluência entre a
proposta desse autor e esta tese: trata-se, nesta última, das Construções de Aspecto
Inceptivo do Português sob a ótica da Semântica Cognitiva, segundo a qual, a
existência de verbos que recrutam as categorias conceptuais de MOVIMENTO e, por
vezes, de CONTÊINER na posição de V1fin dessa construção se sustenta pelo
mapeamento metafórico entre o domínio do ESPAÇO e aquele da ESTRUTURA DE
EVENTOS (cf. LAKOFF, 1987). Toda a proposta de Taylor (2002) parece se fiar à
mesma perspectiva teórica, segundo a qual as categorias linguísticas, assim como as
demais categorias cognitivas, se organizam a partir de mapeamentos metafóricos
ontológicos como os citados acima.
2.4 Aspecto Segundo Travaglia (1985 [1981])
Travaglia (1985 [1981], p.53) considera o aspecto como uma "categoria verbal de
tempo, não dêitica, através da qual se marca a duração da situação e/ou suas fases,
sendo que estas podem ser consideradas sob diferentes pontos de vista, a saber: o do
desenvolvimento, o do completamento e o da realização da situação".
Segundo o autor, as noções aspectuais podem ser ligadas à duração, a qual é
oposta à pontualidade, ou seja, à situação em que o início e o término ocorrem no
mesmo instante ou separados por um tempo curto. Já a duração pode ser entendida
como limitada, ilimitada, contínua ou descontínua. A primeira se caracteriza por indicar
37
o início, fim ou valor da duração de uma situação. A segunda é ligada ao fato de os
limites de início e fim não serem conhecidos. Já a situação contínua é aquela
apresentada sem interrupção no tempo de existência, enquanto a descontínua sofre
interrupções em sua duração.
As noções aspectuais podem ser ligadas também às fases da situação, do ponto
de vista de sua realização, que podem ser: (a) a fase em que a situação ainda não
começou; (b) a fase em que a situação já é começada. Esta é caracterizada como em
movimento, podendo ser dividida em novas fases de início, meio e fim.
A noção aspectual que se liga ao início do desenvolvimento é chamada
Inceptividade ou Incepção. Aquela relacionada ao meio, de Cursividade e aquela
relacionada ao fim, de Terminatividade.
Todas essas noções são apresentadas com o intuito de se discutir um parâmetro
para caracterização do aspecto. Para sumarizar os conceitos estudados, a obra de
Travaglia dispõe de um quadro (Quadro 3) que aponta, em linhas gerais, para as
noções aspectuais citadas como válidas para análise linguística.
A. Contínua
I. Duração
1. Duração
B. Descontínua
a. Limitada
b. Ilimitada
a. Limitada
b. Ilimitada
2. Não duração ou Pontualidade
a. Por começar
1. Fases de Realização
b. Não Acabado ou Começado
c. Acabado
a. Início (no ponto de início ou nos
II. Fases
primeiros momentos)
2. Fases do Desenvolvimento
b. Meio
c. Fim (no ponto de término ou nos
últimos momentos)
3. Completamento
a. Completo
b. Incompleto
Quadro 3: Noções aspectuais segundo Travaglia (1985 [1981])
38
Após apresentadas as noções aspectuais admitidas por ele, Travaglia (1985
[1981]) busca demonstrar que outras, comumente relacionadas ao aspecto em
trabalhos diversos, não devem ser entendidas como tal, uma vez que seu surgimento é
condicionado à ligação delas a algum dos tipos de aspecto demarcados por esse autor.
A fim de mostrar quais noções não podem ser consideradas aspectuais, Travaglia
(1985 [1981], p.66-69) lista os seguintes conceitos:
(a) Habitualidade: existe quando temos iteração, se liga à noção de duração e
advém dela.
(b) Incoação: é uma indicação de mudança de estado e, por isso, liga-se à
inceptividade. Essas nomenclaturas são apresentadas como sinônimas por
Câmara Jr. e como coocorrentes por Castilho (cf. TRAVAGLIA, 1985 [1981],
p.67-68).
(c) Progressividade: indica que a situação apresenta um desenvolvimento
gradual, o que está ligado ao que é denominado como durativo.
(d) Resultatividade ou permansividade: associadas às noções de um estado
resultante de uma situação dinâmica que se concluiu, de permanência em um
estado em consequência do término, ou ainda de situação concluída ao se
atingir um ponto terminal. Esta noção faz referência ao que se chama de aspecto
perfectivo.
(e) Cessamento: surge quando se percebe na situação expressa pelo verbo uma
noção de negação que se reporta ao presente. Conforme o autor, o
“cessamento” é uma combinação do aspecto acabado e de uma noção temporal.
(f) Experenciamento: indica que alguém já vivenciou uma determinada situação
ao menos uma vez. Ela se liga ao aspecto chamado perfectivo, já que aparece
apenas quando ele está presente.
Apresentadas as noções – ou valores – aspectuais, Travaglia passa a propor o
conceito de “aspectos compostos” para designar aqueles valores aspectuais que se
constroem pela combinação de outros. Sob essa perspectiva e dialogando com as
propostas de Castilho (1967), Travaglia propõe que o Perfectivo seria um aspecto
39
composto caracterizado pelas noções de completamento (acabamento) e pontualidade,
enquanto o Imperfectivo seria um aspecto composto que poderia ocorrer em três
subtipos, quais sejam: Inceptivo (noções de duração + início), Cursivo (noções de
duração + meio) e Terminativo (duração + fim). Ele lista exemplos de Castilho (1967) e,
em sequência, destaca os seguintes dados: “Na sua voz irradiante começou logo a
contar uma complicada história familiar”; “Principiou a falar pausadamente”; e
“Desatou a chorar convulsivamente”. Em seguida, considera que, nesses exemplos:
temos realmente uma duração “pressentida pelo falante”, como diz Castilho. Acontece,
porém, que essa duração não é das situações de “começar a contar”, “principiar a falar” e
desatar a chorar” que são ações pontuais inceptivas e que nos exemplos aparecem como
situações referenciais; a duração é das situações narradas “contar”, “falar” e “chorar”.
Vemos assim que as formas sublinhadas nestes exemplos não podem ter aspecto
Imperfectivo porque aí não há duração, mas pontualidade e, além disso, as situações
referenciais são apresentadas como acabadas. Portanto nos exemplos [...] teríamos, na
verdade, aspecto Perfectivo. É preciso considerar, entretanto, que as situações são
apresentadas em seu ponto de início e, portanto, há incepção. Para analisar o aspecto
destas fases teríamos, pois, de acrescentar ao quadro de aspectos compostos um
Perfectivo Inceptivo, que estaria presente em frases onde tivéssemos eventos cujo
completamento (=acabamento) implica o início de uma situação durativa. Com estes três
exemplos pudemos ver além de uma impropriedade de análise, a necessidade de
proposição de mais um aspecto composto. (Travaglia, 1985, p. 88-89)
Nesse ponto, a proposta de Travaglia se opõe também à de Comrie (1978) e à
adotada nesta tese. Opõe-se à proposta daquele por considerar perfectivas as formas
“começou”, “principiou” e “desatou”, contrariando o proposto por Comrie (1978) acerca
da possibilidade de haver sentido ingressivo em verbos conjugados em um tempo
verbal como o pretérito perfeito (vide seção 2.2). Já no que tange à proposta levada a
cabo neste trabalho, o grande ponto de diferenciação (além do anterior) reside no fato
de Travaglia centrar sua análise em uma visão muito composicional do significado. Ao
tentar atribuir a cada elemento da perífrase um valor aspectual próprio, de cuja soma
emerge o valor aspectual composto chamado Perfectivo Inceptivo, esse autor parece
considerar cada elemento da chamada perífrase como uma entidade linguística
autônoma que, apesar de poder emprestar seu valor aspectual imanente na
constituição de um aspecto composto, não interage verdadeiramente com os demais
elementos da cadeia linguística de modo a constituir um todo de sentido mais coeso.
A perspectiva construcionista adotada nesta tese rechaça a Hipótese da
Composicionalidade Forte (cf. GOLDBERG, 1995), segundo a qual o significado de um
todo é produto da soma do significado das partes que o compõem. Na visão
40
construcionista, um padrão de organização sintática de uma perífrase verbal, por
exemplo, pode estar pareado a um sentido específico (aspecto inceptivo, por exemplo).
Nesses termos, não se trata de dizer que o verbo X é perfectivo, enquanto o verbo Y é
durativo. Trata-se, sim, de reconhecer que o esquema formal [(SN) V1fin (Prep) V2inf]
encontra-se pareado à noção de aspecto inceptivo e que, além disso, apresenta
propriedades definidas no que tange às possibilidades de preenchimento das posições
de V1, Prep e V2. Trata-se, ainda, de verificar em que medida a semântica dos V1 e
dos V2 interage nesse contexto construcional, sempre tendo como norte o sentido do
todo, ou, em outras palavras, o sentido da construção.
Se a referida “duração ‘pressentida pelo falante’” residisse, de fato, apenas nas
“situações narradas” como de “contar”, “falar” e “chorar”, não seria possível que essa
mesma noção de duração aparecesse nos exemplos (v) e (vi):
(v) Esta é a última geração a poder respirar livremente sem desatar a tossir.
(CPPtFerroTudo)
(vi) À primeira tentativa, o pobre moço desatou a espirrar e passou assim a espirrar toda
a tarde. (CPPtFerreraAparicao)
Em ambos os casos, infere-se um sentido inceptivo e também uma duração,
chamada por Travaglia (1985 [1981], p.102-104) de descontínua. Os verbos infinitivos
em (v) e (vi) não podem ser considerados como iminentemente iterativos, assim como
“saltitar” e “repicar”, sendo, pelo contrário, codificadores de eventos pontuais: a tosse e
o espirro. Assim é que as noções de inceptividade e de duração (mesmo que
descontínua e, portanto, relativa à iteratividade) não estão separadas, não sendo cada
uma de responsabilidade de um dos verbos da perífrase. Elas emergem da interação
entre os verbos que preenchem as posições de V1 e V2 da Construção de Aspecto
Inceptivo, esta sim, responsável, em primeira instância, pelo sentido ingressivo presente
em (v) e (vi).
Travaglia (1985 [1981], p. 88-95), entretanto, por não considerar, na obra em
questão, a noção de construção, propõe que:
em primeiro lugar observamos que a cada nova noção aspectual que consideramos,
novas combinações de noções se tornam possíveis, caracterizando diferentes aspectos
compostos; em segundo lugar vemos que, embora as noções aspectuais apareçam
combinadas nas frases, também aparecem isoladas; o que nos impede de propor um
quadro aspectual apenas de aspectos compostos, levando-nos a propor um quadro
aspectual misto; em terceiro lugar notamos que os aspectos compostos nada mais são
do que diferentes combinações de aspectos simples tais como Perfectivo, Imperfectivo,
41
Durativo, Pontual, Iterativo, Inceptivo, Terminativo, etc. Tendo em vista: a) que não se
pode propor um quadro aspectual apenas de aspectos compostos; b) que os aspectos
compostos são na verdade combinações de aspectos simples; c) e que se adotarrnos um
quadro misto de aspectos simples e aspectos compostos teremos de trabalhar com nada
menos de quarenta aspectos, enquanto que um quadro de aspectos simples nos dará
apenas treze aspectos; podemos concluir que a proposição de um quadro de aspectos
simples é melhor para a análise aspectual por ser extremamente mais simples e eliminar
terminologia cuja existência é desnecessária. (Travaglia, 1985, p. 88-89)
Em linhas gerais, Travaglia propõe que o aspecto em Português poderia ser
organizado conforme o Quadro 4.
Noções aspectuais
A. Contínua
1. Duração
I.
Duração
B. Descontínua
ASPECTOS
a. Limitada
DURATIVO
b. Ilimitada
INDETERMINADO
a. Limitada
ITERATIVO
b. Ilimitada
HABITUAL
2. Não duração ou Pontualidade
1. Fases de
PONTUAL
a. Por começar
NÃO COMEÇADO
b. Não Acabado ou Começado
NÃO
Realização
ACABADO
OU COMEÇADO
c. Acabado
ACABADO
a. Início (no ponto de início ou INCEPTIVO
II. Fases
2. Fases do
Desenvolvimento
nos primeiros momentos)
b. Meio
CURSIVO
c. Fim (no ponto de término ou TERMINATIVO
nos últimos momentos)
3. Completamento
a. Completo
PERFECTIVO
b. Incompleto
IMPERFECTIVO
Ausência de Noções aspectuais
Aspecto
não
atualizado
Quadro 4: Quadro aspectual do Português, Travaglia, 1985, p. 96.
De maneira semelhante aos outros linguistas apresentados até aqui, Travaglia
mostra a necessidade de se distinguir Perfectivo e Imperfectivo, visto serem os que
estão marcados em quase todos os usos. O Perfectivo é caracterizado por apresentar a
42
situação como completa, em sua totalidade, em que o todo da situação tem começo e
fim englobados. Já o Imperfectivo se caracteriza por apresentar a situação incompleta,
isto é, sem ter o todo da situação e, por isso, normalmente ser apresentada em uma de
suas fases de desenvolvimento.
Vejamos, no Quadro 5, em linhas gerais, como são apresentados os tipos de
aspecto por Travaglia (1985 [1981], p. 99-116):
Aspecto
Durativo
Caracterização
Exemplo
Apresenta a situação como tendo duração Ele
estava
nadando
desde as 6 horas da
contínua limitada.
manhã.
Indeterminado9 Apresenta a situação como tendo duração O ano tem 365 dias.
contínua ilimitada, sem limites conhecidos
ou perceptíveis.
Iterativo
Apresenta a situação como tendo duração Ela me acenou várias
descontínua ilimitada, em que ocorre um vezes.
“modo de repetição”
Habitual
Apresenta a situação como tendo duração Sempre que chegavam
contínua ilimitada. É destacado que a visitas,
mamãe
fazia
habitualidade não é uma noção aspectual, biscoitos fritos.
em que se poderia propor a reunião dos
aspectos
iterativo
e
habitual
num
só
aspecto já que ambos se caracterizam
basicamente pela repetição originada da
duração
descontínua.
Isso
implicaria
desconsiderar a distinção entre duração
limitada
e
representando
ilimitada
duas
que
noções
é
real,
aspectuais
9
Travaglia (1985, p.101) destaca ser o aspecto indeterminado caracterizado por ele como distinto de
diversos outros autores. Segundo ele, o aspecto indeterminado não seria uma ausência de aspecto, tal
qual é para Castilho (1967), embora haja enfraquecimento da noção aspectual.
43
distintas.
Pontual
Apresenta a situação como não tendo Raulzinho pega a bola e
atira para Roberto.
duração.
Não começado Apresenta a situação na fase anterior ao Pedro
está
para
início de sua realização, como algo por emoldurar o quadro.
começar.
Não
acabado Apresenta a situação já em realização, ou Minha cabeça tem doído
ou começado
seja, após o seu momento de início e antes muito.
de seu momento de término.
Acabado
Apresenta a situação após seu momento de Maria leu o livro.
término, concluída, acabada, terminada.
Inceptivo
Apresenta a situação em seu ponto de José começou a falar na
início ou em seus primeiros momentos.
Cursivo
Apresenta
a
situação
em
segunda aula.
pleno O
presidente
estava
desenvolvimento, ou seja, concebida como falando desde as cinco
tendo passado seus primeiros momentos e horas.
ainda não atingido os últimos momentos.
Terminativo
Apresenta a situação nos seus últimos Raquel
momentos ou em seu momento de término.
terminava
escrever
quando
a
o
de
carta,
telefone
tocou.
Não aspecto
Ocorre caso não haja nenhuma noção As crianças precisam se
aspectual na frase, em que não há início à alimentar bem.
duração ou às fases da situação.
Quadro 5: Quadro resumo das noções aspectuais de Travaglia (1985)
Na proposta de Travaglia, vemos algumas distinções com relação a outros
linguistas até aqui apresentados e discussões interessantes no que tange à
conceituação do aspecto aplicado ao Português. Esse autor dedica seus estudos aos
verbos aspectuais e esse trabalho de 1985 [1981] é considerado um clássico do estudo
de aspecto do português, visto que se aplica a descrever e a discutir a relação dos
conceitos com outros já anteriormente apresentados, além de fazê-lo por meio de
44
exemplificações, visando a estabelecer diversas questões relacionadas às noções
aspectuais. Entretanto, sua proposta não pode ser aplicada integralmente a esta tese,
tendo em vista as distinções de base entre a perspectiva fortemente composicional
deste autor e a perspectiva construcionista deste trabalho.
2.5 Aspecto verbal de acordo com Castilho (1968; 2010)
2.5.1 Castilho (1968)
Castilho (1968) afirma que “o aspecto é a visão objetiva da relação entre o
processo e o estado expressos pelo verbo e a ideia de duração ou desenvolvimento”
(1968, p. 14). Segundo ele, o aspecto é caracterizado não só pelo sentido do verbo,
mas também pela interação de elementos sintáticos, como adjuntos adverbiais,
complementos e tipo oracional. Ademais, defende ser ele o responsável por expressar
ideia mais concreta e objetiva que o tempo, além de ser mais ligado à noção de
processo.
Castilho propõe valores e, ligados a eles, aspectos típicos do português. Assim,
são apresentados os seguintes critérios: a) duração; b) completamento; c) repetição; d)
neutralidade.
Na duração, podem-se reconhecer os primeiros momentos, pressentindo-se o
prosseguimento do processo, chamado de aspecto imperfectivo inceptivo, aspecto tema
desta tese. Pode ocorrer ainda de não se reconhecer o princípio nem o fim,
apresentando-se o processo em pleno desenvolvimento, que é conhecido por aspecto
imperfectivo cursivo. Além dele, é possível se reconhecer o término da duração,
chamado de aspecto imperfectivo terminativo.
Quanto à noção de completamento, peculiar ao aspecto perfectivo, tem-se uma
implicação precisa do começo e do fim do processo. O perfectivo por excelência é
designado de perfectivo pontual, aquele que indica o resultado consequente ao
acabamento da ação é chamado de perfectivo resultativo e aquele em que se
45
depreende da ação expressa pelo verbo uma noção de negação, chama-se perfectivo
cessativo.
Segundo o autor, a noção de ação repetida levou ao aspecto iterativo, que é um
verdadeiro coletivo de ações durativas (aspecto iterativo imperfectivo) ou pontuais
(aspecto iterativo perfectivo).
Castilho (1968) postula a existência, ainda, de um tipo de aspecto que se
caracteriza por não ser nem imperfectivo nem perfectivo, chamado de aspecto
indeterminado. Conforme o autor, no seu levantamento de dados, observaram-se certos
casos em que “as formas verbais se mantinham avessas à indicação do aspecto,
conservando aquele tom virtual próprio ao infinitivo” (CASTILHO, 1968, p.102). Um
exemplo apresentado foi do enunciado a terra gira em torno do sol, em que girar
representa, de acordo com o autor, o aspecto indeterminado.
Em resumo, os valores e os aspectos a eles relacionados são:
Valores
Aspectos
1. Duração
Imperfectivo: inceptivo, cursivo,
terminativo
2. Completamento
Perfectivo: pontual, resultativo,
cessativo
3. Repetição
Iterativo: iterativo imperfectivo, iterativo
perfectivo
4. Negação da duração e do
Indeterminado
completamento
Quadro 6: Aspectos verbais do português (CASTILHO, 1968, p. 51)
Castilho, após longa descrição, conclui que “o aspecto na língua portuguesa é
maiormente representado pelo sentido próprio do verbo, pela flexão temporal, pelos
adjuntos adverbais e pelos tipos oracionais (...) o aspecto é uma categoria de natureza
léxico-sintática” (CASTILHO, 1968, p.55).
46
Ele assinala, ainda, a distinção entre dois tipos de semantemas10: os télicos, que
exprimem ação tendente a um fim, sem o qual a ação não se dá (caso de matar,
morrer, cair, engolir, atirar etc), e os atélicos, os quais figuram o processo em sua
duração, da qual não se exige completamento para admitir-lhe a existência (caso de
dormir, atuar, andar, aumentar, contemplar etc). Essas definições são importantes, na
medida em que apontam para a ideia de que uma mesma forma pode denotar
diferentes noções aspectuais. A razão para isso parece estar, segundo Castilho (1968,
p. 57), na natureza do semantema do verbo.
Destaca-se, ainda, o fato de a flexão temporal ser “decisiva na indicação do
aspecto, quando ela consegue contornar a tendência aspectual do semantema,
imprimindo-lhe um valor diferente” (CASTILHO, 1968, p.58). Portanto, as categorias de
tempo e aspecto não são vistas como exclusivas, coexistindo na mesma forma.
Ao tratar da expressão da duração, Castilho analisa o aspecto estudado no
presente trabalho: o imperfectivo inceptivo. Segundo ele, essa marcação aspectual
ocorre quando se indicam claramente os momentos iniciais de uma ação, escapandonos a duração sequente que é, todavia, pressentida pelo falante” (CASTILHO, 1968, p.
62). Ele apresenta duas modalidades de inceptivo: o inceptivo, que se refere ao começo
puro e simples, e o incoativo, que denota início com mudança de estado, o que é
exemplicado com ocorrências de sufixos –ejar e –ecer (como em fraquejar, e
amanhecer).
Ao tratar dos casos do inceptivo propriamente dito, o autor cita perífrases que
indicam começo, as quais podem decorrer do semantema do verbo auxiliar ou do todo
formado pelo verbo auxiliar + verbo principal. No segundo caso, são encaixadas as
construções análogas àquelas que estudamos no presente trabalho. O autor cita as
seguintes perífrases para ilustrar a segunda possibilidade: passar a, pôr-se a, (a)garrar
a, dar(-se) a/para/em, feitar a, cair a , romper a, desatar a, entrar a, filhar (arcaico),
pegar a, despejar a, desandar a + infinitivo ou gerúndio.
10
De acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss (2009), semantema é a “parte de um vocábulo que
expressa um conceito, uma ideia de caráter unicamente lexical (substância, qualidade, processo,
modalidade da ação ou da qualidade); está presente em diferentes elementos lexicais: radicais, palavras
simples, palavras compostas; não está presente nos morfemas com funções exclusivamente
gramaticais”.
47
Castilho (1968, p.66) já sinaliza para algo que poderá ser observado na análise
dos dados deste trabalho: a presença da preposição de regida por começar na fase
arcaica e clássica da língua, que se encontra hoje em processo de substituição.
Ele observa ainda que o auxiliar no pretérito marca com maior objetividade o
começo da ação em relação ao auxiliar no presente ou no imperfeito, o que fica claro ao
compararmos “começou a estudar” a “começava a estudar”. Apesar disso, notamos ser
importante destacar que ambos focalizam o início do processo, embora o caráter da
duração pareça ser mais proeminente nos casos de uso do pretérito imperfeito.
Vejamos como isso ocorre em alguns dados que coletamos do Córpus do Português:
(10)
(11)
DEPOIS, vendo que não podia trabalhar, acabou se despedindo do botequim. Mas
ficou rondando por ali, ainda muito pálido e magro, sem fazer despesas, conversando
com os conhecidos. Aos poucos, a bem dizer sem se sentir, pegou a trabalhar para o
bicheiro que fazia ponto na charutaria. De começo passava as listas, tomava jogo de
um ou outro, quando o velho Jamil - que assim chamavam o bicheiro - se afastava um
momento. (Dôra Doralina, Rachel de Queiroz, 1975)
Convidava um bando de colegas para o domingo no subúrbio. A patroa preparava uma
feijoada e ele, que tinha as suas tinturas de pedreiro, enquanto os outros estavam ao
redor, pegava a trabalhar. Aos poucos vinha um ajudar, outro, mais outro. Trabalho
de construção é coisa engraçada, todos foram se interessando. (Dôra Doralina, Rachel
de Queiroz, 1975)
Em ambos os exemplos, encontramos a CI preenchida com pegar na posição de
V1, seguida de preposição e do mesmo preenchimento de V2 no infinitivo. Entretanto,
nesses dados, há distinção com relação ao tempo verbal usado. Em (10), emprega-se o
pretérito perfeito e, em (11), o imperfeito. Notamos que o dado (10) parece marcar um
ponto mais específico no tempo, enquanto em (11), apesar de o ponto de início também
estar destacado na relação aspectual, há uma extensão maior com relação à
continuidade do trabalho, dando ideia de habitualidade. Nesse caso, há uma
sobreposição dos valores aspectuais indicados pela CI e pela flexão modo-temporal de
V1.
Castilho (1968) afirma que a existência de um verbo principal (V2) atélico
demarca noção de começo da ação. Quando télico, há noções paralelas de começo e
repetição11.
Sobre os mecanismos das perífrases, ele conclui que eles podem ocorrer
isoladamente ou em conjunto, como se propõe:
11
Esta colocação de Castilho (1968) vai ao encontro da crítica proposta nesta tese ao tratamento
composicional proposto por Travaglia para as perífrases inceptivas, conforme seção 2.4.
48
a) o valor aspectual decorre da natureza semântica do verbo auxiliar;
b) o valor aspectual decorre da natureza semântica do verbo principal;
c) o valor aspectual decorre do conjunto “verbo auxiliar + verbo principal”, em que há
duas possibilidades: I) em que os dois semantemas pertencem à mesma classe e, por
isso, conduziriam ao aspecto correspondente (caso de fico a imaginar); II) os dois
elementos da perífrase são semanticamente diversos do aspecto resultante (caso de pôsse a falar). (cf. Castilho, 1968, 112-113).
Como se pode verificar, de acordo com essa proposta, nosso estudo se
encaixaria na opção proposta em C, visto que estudaremos a Construção de Aspecto
Inceptivo, mostrando que a relação entre V1fin, V2inf promove seu sentido ingressivo e
que, ainda, essa relação entre os verbos e a presença da preposição entre eles não é
aleatória, mas motivada sintática ou semanticamente.
2.5.2 Castilho (2010)
Em obra mais recente, Castilho (2010) define o aspecto verbal como sendo “uma
propriedade da predicação que consiste em representar os graus do desenvolvimento
do estado de coisas aí codificado, ou seja, as fases que ele pode compreender”.
O autor defende que o estudo do aspecto pode ser dividido em três fases
históricas:
(1) Uma fase léxico-semântica, durante a qual foram identificadas as classes acionais
semântico-aspectuais do verbo, ou classes acionais. Esta perspectiva atribui à semântica do
radical verbal as noções aspectuais apuradas. Observações de Diez (1876), Bello (1883),
Jespersen (1924), Bull (1960), e ainda os comentários de Sten (1953) e Garey (1957)
situam-se nesta perspectiva.
(2) Uma fase semântico-sintática, ou composicional, durante a qual se examina o aspecto como
a resultante da combinação das classes acionais do verbo (i) com a flexão e os verbos
auxiliares, (ii) com os argumentos do verbo e os adjuntos adverbiais, aqui incluídas as
sentenças condicionais-temporais. Nesta perspectiva, o aspecto passa a ser encarado mais
claramente como uma propriedade da predicação. Os trabalhos de Castilho (1968), Verkuyl
(1972), Dietrich (1973), Comrie (1976), Almeida (1980), Travaglia (1981) e Soares (1987),
entre outros, situam-se nesta fase.
(3) Uma fase discursiva, em que se investigam as condições discursivas que favorecem a
emergência dos aspectos assim constituídos: Hopper (1979 a, b), Hopper/Thompson (1980).
(CASTILHO, 2010, p.418)
Castilho distingue a noção de tempo e aspecto por meio de uma afirmativa de
Jackobson (1957) segundo a qual o aspecto quantifica o evento narrado, sem haver
envolvimento dos participantes dessa narração e também sem haver referência ao
49
evento de fala. No que tange ao tempo, está ligado ao evento narrado com referência
ao evento de fala.
Não se referindo aos predicados estativos, Castilho propõe a tipologia de
aspecto de acordo com o Quadro 7:
FACE QUALITATIVA DO ASPECTO
IMPERFECTIVO
PERFECTIVO
Inceptivo
Pontual
Cursivo
Resultativo
Terminativo
FACE QUANTITATIVA DO
ASPECTO
SEMELFACTIVO
ITERATIVO
Imperfectivo/ Perfectivo
Quadro 7: Tipologia do Aspecto (CASTILHO, 2010, p.420)
Segundo Castilho, o aspecto imperfectivo (a) apresenta as propriedades de
conter uma predicação dinâmica de sujeito específico; (b) compreende as fases inicial,
em pleno curso e em fase final e (c) é recursivo nas estruturas de fundo das narrativas
(CASTILHO, 2010, p.420-421). Inserido no aspecto Imperfectivo, o autor mostra estar o
Imperfectivo Inceptivo, “o qual expressa uma duração de que se destacam os
momentos iniciais”. Como exemplo, ele cita começar e iniciar, em que a significação
inceptiva decorre do auxiliar. Castilho destaca que, nesses casos, o uso pleno desses
verbos e seu uso como auxiliares têm o mesmo sentido (e.g. tanto em “Jorge começou
o curso em janeiro” quanto em “Começou a chover”, começar indica sentido inceptivo).
Ao aplicar testes de escopo da negação e focalização, mostrou haver uma escassa
gramaticalização do verbo auxiliar. Ele aponta para casos distintos, em que há maior
grau de gramaticalização, apresentando exemplos das perífrases com pegar e agarrar
seguidas de preposição e de infinitivo.
Uma decorrência natural dessa observação de Castilho que, por uma questão de
enfoque, não foi formulada pelo autor diz respeito à parcela de sentido inceptivo trazida
pelo esquema construcional como um todo e não só pelo verbo. A diferença entre o
emprego de um verbo prototipicamente inceptivo (como começar) e de um verbo que
não tem essa característica (como pegar) numa perífrase aspectual pode, sim, ser
explicada diacronicamente em termos de um processo de gramaticalização. Entretanto,
50
para o falante de uma sincronia qualquer em que essas duas possibilidades de
emprego existem de forma já estável (e, portanto, têm sua história na língua
desconhecida por esses mesmos falantes), o que diferencia esses usos é a parcela de
sentido trazida pela construção e a parcela trazida pelo verbo. Se, por um lado, casos
como “começou a chorar” têm o sentido ingressivo inferível pelo V1 (e também pela
construção), o que permite que esse V1 seja usado em sentido ingressivo em outros
padrões construcionais (e.g. “comecei o curso ontem”); por outro, o preenchimento de
V1 por outros verbos não prototipicamente inceptivos (pegar, desatar, romper)
perspectiviza de maneiras diversas o sentido inceptivo do esquema construcional [V1fin
(Prep) V2inf], conferindo-lhe, por exemplo, o sentido de início abrupto (e.g. “rompeu a
chorar”), como se verá nas análises desenvolvidas no capítulo 4.
Em sequência, o linguista trata do Imperfectivo Cursivo que apresenta “o estado
de coisas em pleno curso, sem referências à fase inicial ou final”. Aponta, ainda, para a
proeminência das perífrases gerundiais as quais expressam o aspecto Imperfectivo
Cursivo. Destaca, também, a existência do Imperfectivo Terminativo, em que são
assinalados os momentos finais de uma duração, como ocorre em perífrases com
acabar de/por, cessar de, deixar de, terminar de + infinitivo.
O aspecto Perfectivo é caracterizado primeiramente por, assim como o
Imperfectivo, ocorrer em predicações dinâmicas, com sujeito específico. Entretanto, é
relacionado à apresentação da predicação como um todo, sem menção a fases.
Ocorre, ainda, nos fragmentos em que se narra o evento central, ou seja, na estrutura
de figura das narrativas. O autor identifica dois subtipos de perfectivo: pontual e
resultativo (CASTILHO, 2010, p.424-425). O primeiro é caracterizado por ter verbos no
presente,
pretérito
perfeito simples
e pretérito-mais-que-perfeito do indicativo
flexionados com verbos télicos. Já o Perfectivo resultativo é caracterizado por ter as
seguintes propriedades:
(1) ocorrer nas predicações estático-dinâmicas, associando uma ação a um estado;
(2) a ação, necessariamente tomada no passado, é pressuposta;
(3) o estado presente decorre dessa ação;
(4) há relações entre o resultativo e a voz passiva (CASTILHO, 2010, p. 425)
A fim de justificar a descrição que realiza sobre o aspecto no português, ele
mostra que:
51
A hipótese que anima esta descrição do Aspecto no português falado se fundamenta no
caráter composicional dessa propriedade da predicação. Aplicada essa hipótese,
aprende-se o seguinte:
(1) Papel do Léxico e da Semântica
(i) Verbos atélicos favorecem o imperfectivo, e verbos télicos favorecem o perfectivo,
predominante numericamente aqueles sobre estes.
(ii) A classe acional do verbo, decisiva na emergência do imperfectivo e do perfectivo,
não é fator importante para o Iterativo, salvo se o verbo vier sufixado por –itar, -ejar.
(2) Papel da Gramática: a flexão e as perífrases
(i) O imperfeito do indicativo e o gerúndio encerram traços de /duração/ mais fortes que
as outras formas verbais, transformando-se em codificadores altamente frequentes do
Imperfectivo.
(ii) O presente e o pretérito perfeito simples são mais dependentes de adjuntos para
codificar o aspecto; será necessário desenvolver uma reflexão mais detalhada sobre as
combinações classe acional-flexão, para o que o livro-resenha de Koefoed (1979: 125139) apresenta interessantes indicações.
(iii) As perífrases de gerúndio, além de mais numerosas, são as mais inclinadas a
expressar o Imperfectivo, com grande predominância do papel lexical do verbo pleno, ou
verbo auxiliado, nesse processo; as perífrases de valor iterativo são mais dependentes
dos arranjos sintáticos e do contexto que excede a sentença. Por outro lado, pode-se
propor que o presente, o imperfeito e o pretérito perfeito composto são ‘flexões
aspectualmente não específicas’, pois predominam nas expressões iterativas, o que não
parece ser o caso das ‘flexões aspectualmente específicas’, como o pretérito perfeito
simples e o pretérito mais-que-perfeito.
(3) Papel da Gramática: os argumentos e os adjuntos quantificados
(i) Argumentos no singular favorecem o semelfactivo, enquanto que argumentos
pluralizados favorecem o Iterativo.
(ii) Argumentos verbais /não específicos/ favorecem o Iterativo, ao passo que os
/específicos/ favorecem mais o Imperfectivo e o Perfectivo.
(iii) Adjuntos adverbiais qualificadores durativos favorecem a emergência do Imperfectivo,
e os pontuais, do Perfectivo, ao passo que os adjuntos adverbiais quantificadores
favorecem o Iterativo.
(4) Papel do Discurso
(1) Narrativas favorecem o Imperfectivo e o Perfectivo.
(2) Textos argumentativos com generalizações favorecem o Iterativo. (CASTILHO, 2010,
p. 430-431)
Nota-se, por meio desse fragmento, que Castilho propõe que o tratamento do
aspecto deve observar a convergência de diversos fatores. Entretanto, diferentemente
da proposta de Travaglia (1985 [1981]), a composicionalidade aqui não é absoluta. Ao
reconhecer a noção de convergência e, ainda, ao modalizar o papel de cada nível
linguístico na constituição de um valor aspectual (dizendo, por exemplo, que
determinado fator favorece um valor aspectual), Castilho parece adotar a Hipótese da
Composicionalidade Fraca, segundo a qual não se desprezam as contribuições de cada
forma linguística para o sentido do todo, porém, ao mesmo tempo, não se tenta reduzir
52
o sentido do todo à soma dos sentidos das partes. Essa hipótese casa com o
empreendimento de se estudar o aspecto em uma perspectiva construcionista.
2.6 Aspecto segundo Bybee, Perkins e Pagliuca (1994)
Bybee et al (1994) se baseiam em Comrie (1976, 1985b apud BYBEE ET AL,
1994) e Dahl (1985 apud BYBEE ET AL, 1994) para examinar a marcação de aspecto
em diversas línguas. Asseveram que o Imperfectivo é tratado nos trabalhos base em
contraste com o Perfectivo e, assim, a situação é vista não como delimitada, mas com
referência explícita à sua estrutura interna. Segundo os autores, as formas
Imperfectivas são tipicamente usadas no discurso para configurar as situações de pano
de fundo
Os autores referem-se aos sentidos específicos que foram úteis para análise
linguística que se propuseram fazer na obra, definindo-os, como se pode observar a
seguir:
a) Progressivo: vê a ação como em andamento no tempo de referência. No
inglês, aplica-se a predicados dinâmicos e não estativos.
b) Contínuo: mais geral que o progressivo porque pode ser usado em situações
progressivas, mas ligado a predicados estativos.
c) Habitual: refere-se a situações que se repetem comumente em diferentes
ocasiões.
d) Iterativo: descreve um evento que se repete em uma situação particular. A
noção de iteração é relevante para os predicados télicos.
e) Frequentativo: inclui os sentidos habituais, mas especifica que a situação seja
frequente durante um período de tempo.
f) Continuativo: inclui o sentido do progressivo - que uma situação dinâmica está
em curso - e especifica que o agente da ação mantém a ação em curso. Os
continuativos apresentam o sentido de 'continuar fazendo'.
Afirmam, ainda, que os auxiliares verbais devem derivar-se de um verbo postural
específico, como 'sentar', 'levantar' ou 'deitar' ou devem expressar a noção de estar em
um lugar sem referência a uma postura específica, significando apenas 'estar em', 'ficar'
ou, mais especificamente, 'residir' e 'morar' (1994, p.129-130). As fontes de movimento
53
e locativas contêm algo em comum: ambas permitem a localização do sujeito e da
atividade, seja porque o sujeito está localizado em algum lugar fazendo algo ou porque
o sujeito está se movendo, fazendo algo. Nesse ponto, referendam a análise diacrônica
de Comrie para tempo e aspecto. A metáfora espacial de Comrie para o entendimento
do imperfectivo - de que a situação é vista por dentro - foi confirmada pelo número de
ocorrências (significando estar em uma atividade) dos progressivos, os quais se
desenvolvem nos imperfectivos.
Propõem que o sentido original da construção progressiva é 'o sujeito está
localizado em meio à feitura de algo' ('subject is located in the midst of doing
something'). A função dessa locução é dar a localização do sujeito. Ela é usada
primeiramente para atividades que implicam uma localização específica para o sujeito e
para a atividade.
Assim, a construção contém tanto implicitamente quanto
explicitamente os elementos de sentidos que seguem:
a. Um agente
b. está localizado espacialmente
c. entre uma
d. atividade
e. em um tempo de referência. (BYBEE et al, 1994, p.136)
Os autores sustentam que, em algumas línguas, a construção progressiva está
restrita a atividades que estão em curso no momento de fala. Ressaltam que, no inglês,
o aspecto progressivo é ligado àquelas atividades que são características de um
determinado período de tempo, não precisando estar de fato em progresso no momento
do discurso.
Ao retomarem a definição de Comrie para o imperfectivo, o contínuo e o
progressivo, Bybee et al se mostram de acordo com o que é chamado de imperfectivo e
habitual. Entretanto, criticam a definição do progressivo e do contínuo. Os autores
apresentam a figura da classificação das oposições aspectuais de Comrie (vide Figura
1 deste trabalho), explicitando que um gram-type para cada nódulo não existe.
Declaram ter muitas evidências em seus corpora sobre o progressivo, o habitual, o
imperfectivo passado, o imperfectivo e o presente como tipos gramaticais que fazem
parte de diversas línguas. Porém, não há distinção clara entre o progressivo que está
restrito a verbos dinâmicos e o contínuo que não apareceu nos dados. Assim, rejeitam
54
a hipótese de que o progressivo deveria ser definido em termos de continuidade, a qual
é definida como imperfectividade sem habitualidade.
Os autores definem o iterativo como uma ocorrência comum nos dados ligada
especialmente a sentidos específicos. Isso sinaliza que uma ação é repetida em uma
única ocasião e difere do habitual e do frequentativo, os quais sinalizam que a repetição
ocorre em situações diferentes. Bybee et al notaram que a noção de repetição se aplica
principalmente em situações que compreendem um único ciclo - ou seja, uma situação
que apresente, inerentemente, início, meio e fim. Contudo, uma construção iterativa
pode também se aplicar a um predicado que descreve uma situação com ciclos
múltiplos em que parece haver também um sentido continuativo.
Bybee et al também defendem que, enquanto parece claro que tanto sentidos
continuativos e frequentativos podem se desenvolver diretamente dos sentidos lexicais
do tipo expresso pelos auxiliares como 'manter-se' ou advérbios como 'sempre',
também pode existir uma relação diacrônica entre iterativos e cada um desses sentidos.
Propõem que a distinção entre iterativos e continuativos é um problema decorrente de
tipo de verbo ligado a eles. Sugerem, assim, que o iterativo deve se generalizar para
um continuativo. O frequentativo implica que a situação ocorreu nas diferentes ocasiões
e, assim, também pode ser uma extensão de um sentido especificamente iterativo. O
habitual e o progressivo são mais gerais ainda e os habituais parecem se desenvolver a
partir dos sentidos do frequentativo, enquanto o progressivo vem do sentido
continuativo. Segundo eles, algumas dessas hipóteses se baseiam em estudos sobre
as construções reduplicadas.
Os
autores
destacam,
ainda,
que
uma
propriedade
importante
da
gramaticalização de tempo e aspecto é relacionada ao fato de que, muitas vezes, essas
duas categorias acabam por se gramaticalizar juntas em uma mesma forma (tome-se,
por exemplo, o pretérito imperfeito do indicativo, flexão verbal na qual se manifestam
tanto a categoria de tempo passado quanto a de aspecto habitual). Ressaltam, assim, a
necessidade de estudos específicos das várias línguas no sentido de buscar padrões
gramaticais em que determinadas categorias de tempo e aspecto coocorram. O estudo
realizado nesta tese sobre o português aponta, entretanto, para o fato de que este não
55
é o caso do aspecto inceptivo, uma vez que o V1 da CI pode ser flexionado,
potencialmente, em qualquer tempo.
2.7 Conclusão
Tal qual fora afirmado por Castilho (1968, p. 39), notamos que os conceitos de
aspecto são muito díspares na bibliografia e um estudo analítico específico deste ponto
nos levaria a todo um variado corpo de doutrinas linguísticas. Buscou-se, portanto,
destacar os estudos mais relevantes sobre aspecto, tendo em vista o tema em geral e
também o estudo dele na língua portuguesa.
As concepções apresentadas por Comrie (1978 [1976]) são relevantes para os
estudos de aspecto. Nessa obra, o autor se utiliza de uma grande quantidade de dados,
oriundos de diversas línguas, para propor sua teoria aspectológica. Além de
quantidade, os dados têm também qualidade, o que ajuda na formulação teórica da
obra, tornando-a referência de estudos posteriores. Diversos dos trabalhos lidos
tomam-no como base, o que o faz ser uma referência inicial sobre aspecto.
Travaglia
(1985)
identifica
e
descreve
muitas
das
possibilidades
de
preenchimento das Construções Inceptivas de que trataremos neste trabalho. Porém,
esse autor trata cada possibilidade de preenchimento de V1 e V2 individualmente,
apesar de se constituírem numa mesma construção. Além disso, não se tentam
estabelecer critérios semânticos que motivariam as relações preferenciais entre V1 e
V2. Foi possível detectar, na revisão realizada, que Travaglia, portanto, não reconhece
que o esquema formal [V1fin (Prep) V2inf] encontra-se pareado à noção de aspecto
inceptivo e que, além disso, apresenta propriedades definidas no que tange às
possibilidades de preenchimento das posições de V1, Prep e V2. No entanto,
ocorrências da CI mostraram que as noções de inceptividade e de duração emergem
da interação entre os verbos que preenchem as posições de V1 e V2 da CI.
Castilho (1968, 2010) realiza um estudo aprofundado do aspecto em português.
É interessante notar que esse linguista, assim como Taylor (2002), declara a
necessidade de se investigarem as contribuições do enunciado, mostrando que a
marcação dessa categoria não se restringe a um elemento, como um verbo, por
56
exemplo. Ao contrário, deve-se analisar a conjuntura dos itens linguísticos e suas
relações na marcação do aspecto.
Há que se considerar ainda a relevância dos trabalhos de Castilho (2010) e de
Bybee et al.(1994), os quais lançam luzes importantes para este trabalho, na medida
em que apontam para a gramaticalização dos marcadores aspectuais. Ademais, estes
propuseram a relação direta que poderia existir entre a marcação modo-temporal e a
noção de aspecto. Nossos dados mostram, entretanto, não haver uma relação direta
entre eles na CI, visto que o V1 dessa construção inceptiva pode ocorrer em diversos
tempos e modo verbais.
57
3 A ABORDAGEM COGNITIVISTA PARA A LINGUAGEM
Conforme já foi sinalizado anteriormente, a análise da categoria gramatical de
aspecto, mais especificamente do aspecto inceptivo, levada a cabo nesta tese adota
uma perspectiva construcionista. Tal perspectiva analítica é corroborada por uma
análise semântica de cunho cognitivista, a qual considera fortemente o papel dos
esquemas imagéticos e das metáforas conceptuais no processo de significação. Esse
contexto teórico enquadra a análise da Construção de Aspecto Inceptivo aqui
desenvolvida no escopo da Linguística Cognitiva (LC), abordagem nascida na virada da
década de 70 para 80 a partir de uma ruptura havida no seio do Gerativisto devida ao
tratamento que esta corrente de análise dispensava à semântica.
De acordo com Salomão (2007):
A linguística cognitiva, uma evolução da semântica gerativa que desistiu da semântica
formal (...), emerge pela proposição de que as categorias linguísticas exibem efeitos
de prototipia, à imagem das categorias cognitivas e culturais estudadas por Eleanor
Rosch (1977) (...). Emerge também pela proposição da semântica de frames por
Charles Fillmore (FILLMORE, 1977a, 1977b, 1982, 1985), na esteira de seus esforços
anteriores para postulação de uma “gramática de casos”, e a partir da contribuição de
Minsky (1975) sobre frames na Inteligência Artificial, e de formulaçoes de Bateson
(1972) e de Rumelhart (1975) sobre a natureza das estruturas do conhecimento.
Emerge, ainda, com a forte influência que a psicologia da gestalt desempenha sobre
as teorizações de Talmy (1978,1983) e Langacker (1987, 1991). Em outras palavras,
a linguística cognitiva, que propõe a continuidade entre competência linguística, as
outras capacidades cognitivas e as práticas sociais que lhes correspondem, é
fortemente tributária, já no seu nascedouro, da psicologia, da antropologia, da filosofia
e das ciências cognitivas. (SALOMÃO, 2007, p.33)
Desse
emaranhado de influências
transdiciplinares
nasce
uma ciência
preocupada com a relação entre linguagem, cognição, experiência sensório-motora e
cultura, melhor caracterizável como um arquipélago de abordagens assentadas sobre
princípios comuns do que como uma teoria única. De acordo com Geeraerts e
Cuyckens (2007, p.4), a própria Linguística Cognitiva pode ser vista como uma
categoria radial, constituindo-se em um agrupamento de abordagens parcialmente
sobrepostas. Dessas abordagens, duas serão discutidas nesta seção, dada sua
relevância para as análises que se farão mais adiante nesta tese: a Semântica
Cognitiva e a Gramática das Construções.
58
3.1 Semântica Cognitiva
Semântica Cognitiva e Linguística Cognitiva foram, durante a gênese e grande
parte do desenvolvimento desta última, termos sinônimos. Ainda hoje, a LC debruça-se,
em larga medida, sobre o estudo da significação (cf. SALOMÃO, 2007). Essa
preocupação com o tratamento do sentido foi, conforme já se sinalizou acima, o
principal fator motivador para o desenvolvimento da área.
Newmeyer (1986), em obra focada na historiografia da Linguística na América do
Norte sob a ótica gerativista, dedica um capítulo à análise do conjunto de fatores que
levaram à eclosão das Guerras Linguísticas, um período de intenso debate acerca da
natureza do significado linguístico que opôs lexicalistas e semanticistas gerativos.
Dentre estes últimos, estavam George Lakoff, cuja tese de doutoramento (1970 [1965])
havia fundado a Semântica Gerativa e desafiava a até então inquestionável autonomia
entre processos sintáticos e processos semânticos. A grande questão em discussão na
época relacionava-se à natureza das representações constantes da Estrutura Profunda
(EP).
Chomsky havia proposto, em Aspects of The Theory of Syntax (1965), ainda que
de maneira hesitante, a ideia de que as restrições de seleção observáveis entre
constituintes fossem tratadas, na EP, como regras de subcategorização dos itens
lexicais. Isso permitia a conclusão de que cada identidade semântica precisava ser
representada como uma identidade de EP. Paradoxalmente, quanto mais abstratas
ficavam as EPs, mais difícil era aplicar uma outra proposta do Aspects, qual seja a de
que a EP é o nível em que os itens lexicais entram na derivação. Tal paradoxo tornouse mais sério quando da conclusão de Lakoff (1970a [1965]) de que, se a teoria tinha
que dar conta das restrições entre itens lexicais, ela deveria também dar conta das
restrições dentro dos itens lexicais. Assim, como conseqüência, tornava-se necessário
abandonar a ideia de EP (cf. NEWMEYER, 1986, p.81-138).
Ao abandonar a ideia de EP, os Semanticistas Gerativos derrubavam um
postulado até então intocado na Linguística Gerativa: o de que os processos sintáticos
e semânticos eram independentes. Numa tentativa de preencher os vazios relativos à
interpretação semântica existentes na Teoria Padrão (TP), Lakoff (1970 [1965])
59
propunha que sua abordagem para fenômenos tratados como exceções na TP poderia
não só resolver tais exceções, como também eliminar muitas distinções categoriais na
EP e propor análises em que predicados complexos da Estrutura de Superfície (ES)
pudessem ser decompostos em predicados mais simples na EP. Desse modo,
sentenças como “Maria quebrou o copo” poderiam ser decompostas na EP como “Maria
CAUSAR ((o copo QUEBRADO) TORNAR-SE)”.
A ruptura inicial de Lakoff com os gerativistas levou-o a inaugurar um novo
paradigma dos estudos semânticos, no qual a “periferia” linguística passava a ocupar o
“centro”dos debates acerca da natureza da linguagem. Dos estudos iniciais sobre
irregularidades sintáticas que eram semanticamente motivadas, Lakoff (2006 [1979])
passa a dedicar-se ao tratamento da metáfora conceptual, da polissemia e da
categorização linguística.
O primeiro ponto discutido por este linguista se refere ao fato de que, desde
Aristóteles, a Teoria Clássica da Metáfora adotou como objeto aqueles usos inovadores
da linguagem poética. Assim sendo, a metáfora vinha sendo, historicamente, tratada
como um fato da linguagem. Entretanto, a metáfora habita o domínio conceptual,
devendo ser estudada a partir dos princípios que regulam os processos de projeção
entre domínios cognitivos.
Segundo Lakoff (2006 [1979], p. 204-205), a vertente clássica foi responsável
pela criação de um conjunto de pressupostos falsos acerca do significado metafórico e
de sua instanciação na linguagem, dentre eles, destacam-se os seguintes:
•
a linguagem cotidiana é totalmente literal e nada metafórica;
•
qualquer matéria ou assunto pode ser compreendido literalmente, sem
metáforas;
•
apenas a linguagem literal pode ser julgada como falsa ou verdadeira;
•
todas as definições dadas no léxico de uma língua são literais, não
metafóricas;
•
os conceitos usados na gramática de uma língua são todos literais, nenhum
deles é metafórico.
Ao propor sua teoria contemporânea da metáfora – a Teoria da Metáfora
Conceptual –, Lakoff afirma que a construção do significado se dá de maneira
60
largamente metafórica, sendo a noção de sentido literal posta em perspectiva. O
linguista afirma que é necessário, primeiramente, que se observe que a distinção literal /
metafórico não é absoluta e nem possui fronteiras claras e que conceitos literais
costumam se referir a experiências que estejam totalmente circunscritas às
experiências físicas do falante. Sua teoria encontra respaldo em um conjunto de
evidências dentre as quais o autor destaca as generalizações que governam as
polissemias, os padrões de inferência, a emergência de novos usos metafóricos e os
padrões de mudança semântica, bem como os experimentos psicolinguísticos
(LAKOFF, 2006 [1979]).
Como exemplo da pervasividade da metáfora na linguagem cotidiana, Lakoff
(2006 [1979], p. 206-208) discute a sentença “Nosso relacionamento chegou a um beco
sem saída”, na qual se manifesta a metáfora O AMOR É UMA VIAGEM. Conforme o
autor, para que se possa compreender adequadamente essa sentença, a qual não se
manifesta exclusivamente em discursos poéticos, o falante precisa conceptualizar que
os amantes são viajantes que estão juntos em uma viagem, sendo seus objetivos de
vida em comum vistos como destinos a serem atingidos. O relacionamento é seu
veículo, que lhes permite perseguir tais objetivos conjuntamente. O relacionamento
alcança seu objetivo na medida em que lhes permite avançar em direção a seus
objetivos comuns. A viagem não é fácil. Há impedimentos e há lugares (encruzilhadas)
nos quais é necessário decidir que rumo tomar ou mesmo se vale a pena continuar a
viagem conjuntamente.
Lakoff argumenta, ainda, que é muito importante separar o nome do
mapeamento entre domínios do mapeamento em si. O nome do mapeamento é
proposicional, mas o mapeamento é um conjunto de correspondências cognitivas, não
proposicionais: metáforas não são apenas palavras, são mapeamentos conceptuais
que caracterizam generalizações sobre a polissemia e os padrões inferenciais. Assim, a
interpretação polissêmica de beco sem saída na sentença discutida acima, bem como
possíveis inferências sobre o sentido que “mas eu conheço uma passagem secreta”
teria, caso fosse dito após essa mesma sentença, dependem do mapeamento
metafórico entre os domínios cognitivos do amor e da viagem.
61
Cabe ressaltar também que, nem todas as correspondências entre domínios são
aplicadas a estruturas de conhecimento ou palavras do domínio fonte, o que não
impede, entretanto, que elas sejam recrutadas em construções inovadoras (governadas
pela mesma metáfora) que passem a caracterizar algum aspecto do domínio alvo em
termos do domínio fonte. Nesse sentido, metáforas motivam expressões idiomáticas,
outrora analisadas como detentoras de sentido arbitrário.
Lakoff avança em sua proposta ao afirma que os mapeamentos metafóricos são
regidos pelo Princípio da Invariância, segundo o qual tais mapeamentos preservam a
topologia cognitiva (isto é, a estrutura do esquema imagético) do domínio fonte de
maneira consistente com a estrutura inerente do domínio alvo. Em decorrência desse
princípio, Lakoff conclui que muitos, se não todos, os conceitos abstratos mais básicos
são construídos metaforicamente a partir de esquemas imagéticos espaciais. A título de
exemplo, considerem-se os mapeamentos metafóricos envolvendo a noção de tempo:
TEMPO É ESPAÇO
TEMPOS SÃO COISAS
A PASSAGEM DO TEMPO É MOVIMENTO
TEMPOS FUTUROS ESTÃO NA FRENTE DO OBSERVADOR; TEMPOS PASSADOS
ATRÁS DELE
Em decorrência do Princípio da Invariância, uma vez que o movimento é
contínuo e unidimensional, o tempo é contínuo e unidimensional.
Lakoff propõe, por fim, que a forma como conceptualizamos a estrutura dos
eventos nos quais nos engajamos é fortemente metafórica, no sentido de que está
ancorada em nossa percepção do espaço que nos cerca e nas forças que atuam sobre
ele. São listadas diversas metáforas que estruturam nossa concepção de mundo e que
se encontram na base, inclusive, da categoria gramatical do aspecto, conforme se verá
mais adiante. Dentre elas, destacam-se: ESTADOS SÃO LOCALIDADES (REGIÕES
LIMITADAS NO ESPAÇO); MUDANÇAS SÃO MOVIMENTOS; CAUSAS SÃO
FORÇAS; AÇÕES SÃO MOVIMENTOS AUTOPROPULSIONADOS; FINALIDADES
62
SÃO DESTINOS; MEIOS SÃO CAMINHOS e DIFICULDADES SÃO BARREIRAS
(LAKOFF, 2006 [1979]).
Ao final do seu artigo fundador da Teoria da Metáfora Conceptual, Lakoff,
buscando reponder a pergunta sobre por que as metáforas conceptuais de que
dispomos são essas e não outras, propõe que isso se deva ao fato de que elas são
ancoradas na experiência humana. Nesse estágio da teoria, Lakoff propõe que as
generalidades encontradas translinguisticamente como evidência para a base
experiencial e/ou corporificada da metáfora se situam mais no domínio das
constatações do que da sustentação científica, entretanto, essa proposta avançará
bastante, conforme se verá em trabalhos posteriores.
Seguindo esse viés, Lakoff & Johnson (2002 [1980]), ao analisarem distintas
expressões linguísticas, dispõem sobre a existência de um sistema conceptual
metafórico subjacente à linguagem, o qual exerce influência sobre o pensamento e as
ações
humanas.
Partindo
de
usos
cotidianos
da
linguagem,
mostram
que
compreendemos o mundo por meio de metáforas, as quais são construídas com base
em nossa experiência corporal. Assim, propõem que a linguagem tem base
corporificada, o que fica evidente, por exemplo, em metáforas orientacionais, as quais
possuem base física e cultural (2002 [1980], p. 59, 60). Eles propõem que as metáforas
orientacionais não são arbitrárias. Para ilustrá-las, um dos casos bastante difundidos é:
FELIZ É PARA CIMA; TRISTE É PARA BAIXO, em que a postura caída corresponde à
tristeza e à depressão e a postura ereta se liga a um estado emocional positivo. Frases
como Ele é muito para cima! ou Aquele problema me deixou para baixo apontam para a
existência dessas metáforas de base física.
Johnson (1987) e Lakoff (1987) reafirmam a relação do corpo com a mente por
meio da observação e do levantamento de hipóteses sobre como a linguagem é
associada às experiências corporais. Johnson (1987, p.34) aponta para o fato de que
conceitos básicos – como força e posicionamento – emergem de nossa experiência
física. Ele propõe, por exemplo, que “nosso esquema DENTRO-FORA emerge
primeiramente da nossa experiência corporal, da nossa percepção e movimento”. Lakoff
(1987) sugere que a categorização humana envolve, essencialmente, dois lados: (a) o
da experiência humana, da simulação de atividade motora e da cultura e (b) o da
63
metáfora, da metonímia e das imagens mentais. Segundo ele, entender como
categorizamos é central para o entendimento de como pensamos e de como
funcionamos. Além disso, é essencial também para o entendimento do que nos faz
seres humanos.
Apesar de contar com argumentos convincentes relativos à presença de
metáforas na linguagem do cotidiano e apesar mesmo da existência de tais metáforas
em outras línguas, a Teoria da Metáfora Conceptual não consegue, até o final do século
XX, fornecer evidências empíricas do ancoramento cerebral das projeções entre os
domínios abstratos (dentre os quais os da linguagem) e os domínios corporais. No
século XXI, entretanto, um conjunto de trabalhos revolucionaria novamente os estudos
da metáfora.
Trata-se dos diversos experimentos comportamentais e de imagem cerebral
realizados no sentido de comprovar a existência de uma relação neurobiológica entre
domínios concretos e abstratos, em outros termos, no sentido de mostrar, no nível
cerebral, a base corporificada da linguagem. Em um desses estudos, Gallese e Lakoff
(2005), partindo da noção de que os conceitos básicos à experiência humana
empregam capacidades sensório-motoras do sistema corpo-cérebro, abordam as bases
neurobiológicas da cognição linguística, mostrando que a compreensão é alcançada
pela simulação da ação sendo compreendida. Assim, para compreender um conceito
como o de pegar, além de mobilizar as áreas funcionais do cérebro responsáveis pela
linguagem, um falante mobiliza também o conjunto de neurônios responsáveis pela
realização do ato de pegar, simulando, no nível neuronal, o movimento corporal
indicado pelo conceito sendo compreendido.
Ainda no que diz respeito à corporificação da cognição, Gibbs e Matlock (2008)
apresentam os resultados de uma série de pesquisas que visam a observar, por meio
da investigação psicolinguística, o fato de que as pessoas entendem as metáforas
criando uma simulação imaginativa de seus corpos em ação. Com isso, os autores
defendem a proposta de que o recrutamento de metáforas corporificadas em alguns
aspectos do entendimento de metáforas verbais é feito imaginariamente, com a
recriação pelas pessoas de como seria a cena caso se engajassem em ações similares.
64
Segundo os autores, as pessoas simulam todos os tipos de coisas de todas as
maneiras. Algumas simulações são físicas e servem a uma função comunicativa –
como é o caso de ações como a de realizar um sinal para que um garçom feche a
conta. Entretanto, há ainda outras simulações que são apenas mentais.
Gibbs e Matlock (2008) mostram que as simulações corporificadas incluem uma
sensação corporal, de forma que uma pessoa pode experimentar sensações de
movimento até em situações como a de um voo em um simulador. Dessa forma,
simulações corporificadas são atos imaginativos que estão intimamente envolvidos com
processos os quais, na maior parte dos casos, são realizados automaticamente, sem
uma reflexão consciente.
A grande questão discutida por Gibbs e Matlock (2008) se pauta na possibilidade
de as pessoas simularem movimento em situações em que são fisicamente
impossibilitadas de se movimentarem, como aquelas representadas pelas frases
metafóricas. Assim, os falantes, ao utilizarem frases de conteúdo metafórico que
remetem a movimento, simulam, por meio da ativação neuronal, o movimento físico,
concreto. Para discutir essa questão, alguns experimentos são propostos e o resultado
desse exame será apresentado brevemente a seguir.
Entender que as metáforas são compreendidas pelas simulações corporificadas
poderia fazer com que a movimentação dos corpos em formas relevantes para as ações
fizesse com que os conceitos abstratos e concretos fossem mais facilmente entendidos.
A fim de comprovar isso, experimentos que mesclavam a enunciação de estruturas
concretas e abstratas (metafóricas) e seus movimentos físicos correspondentes
(mesmo quando as estruturas abstratas fossem impossíveis de ser plausíveis e
significáveis por movimentos físicos), comprovaram que ações relevantes reproduzidas
fisicamente permitiram mais facilmente a construção de simulações pelas pessoas.
Assim, uma proposta explicativa para a compreensão da metáfora sugere que o
movimento do corpo ou a imaginação do movimento do corpo facilita o entendimento do
conceito abstrato. Por meio dos estudos de caso, notou-se que um movimento de
maneira apropriada não ativa um item lexical, mas indica como as pessoas criam uma
simulação corporificada relevante para o entendimento de uma frase metafórica.
65
Mesmo quando o experimento exigia que as pessoas imaginassem ações
corporais antes de especificar o sentido de uma sequência de palavras, percebeu-se
que os participantes foram rápidos no processamento das metáforas quando a ação
imaginada era consistente com o sentido da frase. Isso comprova o que as pessoas
fazem para a compreensão da metáfora: simular mentalmente a ação.
A partir de uma vasta gama de experimentos comprobatórios, Gibbs e Matlock
(2008) demonstraram que as ações corporais reais e imaginadas facilitam às pessoas a
interpretação das metáforas verbais. Essas ações reais e imaginativas têm
consequências específicas para a forma como as pessoas acessam o sentido das
metáforas. Com isso, fica evidenciado que a metáfora é aliada da imaginação humana
e que está relacionada à ação corporal. Todas essas pesquisas sinalizam que a
linguagem é corporificada e processada pela mente, bem como as outras atividades
humanas. Isso leva à indicação de que, por mais que possam ser culturalmente
influenciados, há padrões linguísticos básicos compartilhados pelos falantes das várias
línguas.
3.2 Gramática das Construções
Assim como a Semântica Cognitiva, a Gramática das Construções também
nasce de uma ruptura havida, no final da década de 1970, no seio do Gerativismo.
Trata-se do trabalho de Fillmore (1968) que propunha uma Gramática de Casos cujo
traço distintivo em relação ao modelo chomskyano de então era afirmar que, no nível
sintático mais profundo, a sentença se constituía de um predicador e de uma série de
papéis temáticos caracterizáveis semanticamente chamados casos.
Sua motivação nasceu da incapacidade do modelo do Aspects (CHOMSKY,
1965) de representar simultaneamente informações categorial e temática. Expressões
como na sala, em direção à lua, no dia seguinte, de maneira descuidada, com uma faca
afiada e pelo meu irmão são, simultaneamente, SPs e indicadores de lugar, direção,
tempo, maneira, instrumento e agente, respectivamente. A solução proposta por
Fillmore (1968) era reanalizar os SPs, em uma estrutura sintática subjacente, como
uma sequência composta por um SN e uma preposição atribuidora de caso. Nesse
66
sentido, a metodologia de Fillmore era semelhante à dos Semanticistas Gerativos, uma
vez que buscava a motivação para a estrutura sintática no sentido.
Segundo Fillmore, a EP “é um nível intermediário artificial entre a ‘estrutura
semântica profunda’, passível de ser descoberta empiricamente, e a estrutura de
superfície, acessível pela observação; um nível cujas propriedades tem mais a ver com
compromissos metodológicos dos gramáticos do que com a natureza das línguas
humanas” (FILLMORE, 1968). A partir dessa postulação, Fillmore não apenas rompe
com o modelo gerativista proposto pela Teoria Padrão, como, ainda, inaugura as bases
de todas as vertentes da Gramática das Construções, ao propor uma relação direta
entre forma de superfície e sentido. Nesse caminho, afasta-se das abordagens
derivacionais para a morfossintaxe, segundo as quais variações na formas formas de
superfície de sentenças podem se explicar por regras transformacionais – ou, mais
recentemente, de movimento – que se aplicam a uma mesma estrutura profunda.
A Gramática das Construções, portanto, por ter suas raízes nos trabalhos de
Fillmore (1968) e também nos de Lakoff (1987) sobre a existência de categorias radiais
na gramática, refere-se a um conjunto de teorias que, afastando-se das abordagens
derivacionais para a morfossintaxe, partem do pressuposto de que a gramática de uma
língua é composta por um conjunto de construções – pareamentos de uma forma de
superfície a um significado – relacionadas entre si em uma rede de motivações
sintático-semânticas.
Segundo Goldberg (2006, p. 214), entre as abordagens construcionistas para a
gramática, destacam-se a Gramática Cognitivista das Construções (GOLDBERG, 1995;
2006), a Gramática Cognitiva (LANGACKER, 1991), a Gramática das Construções
Radical (CROFT, 2001) e a Gramática das Construções de Unificação (FILLMORE &
KAY, 1999). Apesar de se distinguirem quanto ao foco das análises – em especial na
última abordagem, muito mais focada na formalização das construções do que as
outras três, propostas, por sua vez, para ressaltar a plausibilidade psicológica das
construções –, todas as abordagens compartilham um conceito de construção que pode
ser postulado como se segue:
Qualquer padrão linguístico é reconhecido como uma construção desde que algum
aspecto de sua forma ou função não seja estritamente previsível a partir de suas
partes componentes ou de outras construções cuja existência seja reconhecida.
Ademais, padrões são armazenados como construções, mesmo que sejam
67
estritamente previsíveis, desde que ocorram com frequência suficiente. (GOLDBERG,
2006, p.5)
Dessa forma, construções são definidas como pareamentos de forma e sentido
que, tendo sido aprendidas pelo falante, compõem um repertório dos padrões de
licenciamento dos usos linguísticos. Em outras palavras, a Gramática das Construções
se afasta da tradição gerativista para o tratamento da morfologia e da sintaxe, na
medida em que, logo de início, renuncia a distinção entre esses dois níveis de análise
linguística, passando a adotar uma visão de continuidade entre ambos: em uma
abordagem construcionista, morfemas, itens lexicais, expressões idiomáticas, padrões
de estrutura argumental e, em última análise, até mesmo gêneros textuais são tratados
como construções.
De maneira relacionada, a Gramática das Construções também nega a distinção
de papéis atribuídos ao léxico e à sintaxe. Nessa abordagem, não há lugar para a ideia,
cara ao Gerativismo, de que, enquanto os itens do léxico definem a grade de papéis
argumentais com base em regras semânticas, é da sintaxe, módulo gerativo, a
responsabilidade de organizar a maneira como tais argumentos se estruturam na
sentença. Em decorrência desse fato, outra propriedade marcante das abordagens
construcionistas se manifesta na negação da existência de estruturas formais
subjacentes à linguagem. Em outras palavras, na Gramática das Construções, as
análises devem levar em consideração a relação entre a forma de superfície e o sentido
ou a função desempenhada por essa forma.
Por fim, as abordagens construcionistas têm um compromisso com a descrição e
explicação de todas as construções de uma língua, e não apenas com aqueles padrões
sintáticos absolutamente regulares. Nesse sentido, Salomão (2009, p.36) afirma que a
Gramática
das
Construções,
por
considerar
o
uso
linguístico,
tem
perfil
inequivocadamente maximalista em dois sentidos: “primeiro, com relação à natureza do
que seja conhecimento da linguagem; (...) segundo, porque, regressando às raízes
semioticistas da linguística (...), a gramática se apresenta como uma rede de signos.”
68
4 MOTIVAÇÕES SINTÁTICO-SEMÂNTICAS DA CONSTRUÇÃO DE ASPECTO
INCEPTIVO DO PORTUGUÊS
Tomando como base a perspectiva de que se estuda uma construção inceptiva,
este capítulo tem como intuito analisar as relações sintáticas e semânticas12 dela e
suas confluências com outras construções que permitiram que verbos não canônicos
passassem a figurar na CI.
4.1 A Construção de Aspecto Inceptivo
Travaglia (1985), ao apresentar outras perífrases inceptivas13, que não as
formadas pelos verbos começar, passar e principiar, (cf. TRAVAGLIA, 1985, p.270),
lista as seguintes:
12
Mais correlações semânticas entre V1fin e V2inf serão abordadas no capítulo 5.
Travaglia (1985, p.270-274) afirma que a noção inceptiva dessas perífrases, como ele as nomeia,
parece ser produto de uma combinação de fatores, tais como a flexão modo-temporal do verbo auxiliar e
a presença de adjuntos adverbiais. Afirma, ainda, que, em muitos casos, tais perífrases apontam também
para o aspecto iterativo. Na seção dedicada ao estudo do aspecto, essa discussão foi despertada e,
neste momento, considerar-se-ão todas as instanciações listadas por Travaglia como inceptivas.
13
69
Pôr-se
Garrar ou agarrar
Deitar
Desatar
Pegar
Despejar
Cair
+a
+ infinitivo
+Para
+Infinitivo
Romper
Desandar
Entrar
Disparar
Danar
Destampar
Dar
Quadro 8: Perífrases inceptivas, segundo Travaglia (1985)
Nesse quadro, é possível observar que aquilo que Travaglia agrupa sob o rótulo
“Outras perífrases inceptivas” são, na verdade, casos em que o verbo que ocupa a
posição de V1fin não abarca, em seu sentido pleno, a noção de início, começo da ação
ou processo.
Tais aglomerados sintaticamente organizados, rotulados por Travaglia como
perífrases verbais, podem ser encarados, em uma perspectiva construcionista, como
instanciações de uma construção cujo esquema sintático caracteriza-se pela presença
de um verbo finito, seguido, opcionalmente, por uma preposição e, obrigatoriamente,
por um verbo no infinitivo. Essa análise encontra respaldo na proposta de Goldberg
(1995; 2006), segundo a qual, as unidades da língua são pareamentos de forma e
sentido, os quais não são estritamente previsíveis a partir do conhecimento do restante
da gramática, ou são frequentes o bastante para serem armazenados como tais. Como
as perífrases apontadas acima por Travaglia são pareamentos de forma e sentido,
70
passaremos a estudá-las14 como uma construção marcadora de aspecto inceptivo.
Pegar é um dos verbos que pode ocorrer nessa construção. Veja-se um dado de
ocorrência recorrente da construção com V1pegar no português atual do Brasil retirado
do Córpus de Fala Mineira Conceição de Ibitipoca:
(12)
INQ.: Fica, acho ‘ruim, né? que aqui? igual... ; chegou um visitante e a entrevista foi
interrompida; igual tem muitos aqui em Ibitipoca que não tem.. um ganho cum
turista... então aquês que num tem fala muito mal dos que tem, né? aqui é tipo de
povo de inveja, né? Ibitipoca tamém, tem muita inveja, porque ponto de turista ocê já
viu, né? nóis tá incompreensivel ingraçado, né? que ninguém vê o lado do oto, né?
assim... aqui se pessoa lavai cresceno, né? tem muitos que dá aquele tipo de inveja,
pega a falá que o cara tá usano vendê maconha, sai muita conversa fiada aqui nessa
parte...
INQ.: Então o pessoal que não mexe reclama mais...
INF.: Recrama, xinga... que Ibitipoca... lugá que não é de vivê mais
(IBI-JO)
Como se pode notar a partir da leitura do fragmento acima, o entrevistado, ao
apresentar exemplos de comportamentos motivados pela inveja, afirma que muitas
pessoas, que se deixam contaminar por ela, começam a fazer considerações ofensivas
à honra daquele de quem têm inveja. A noção de incepção é marcada pelo uso do
verbo pegar, acompanhado de preposição a e do verbo infinitivo. Tendo em vista esse
dado, podemos dizer que a Construção Aspectual Inceptiva do português atual pode
ter seu esquema sintático definido da seguinte forma:
[(SN) V1fin (Prep) V2inf ]
Inicialmente, podemos dizer que a contraparte formal dessa construção se
caracteriza pela presença de dois verbos intercalados por uma preposição, sendo que o
verbo auxiliar é predeterminado por suas características semânticas para compor a
construção, as quais serão caracterizadas mais adiante. A semântica do segundo é
14
Não foram pesquisados os usos com dar por eles não terem figurado nos dados que motivaram a
pesquisa. Para um estudo aprofundado sobre esse preenchimento, leia Salomão (1990), que trata da
construção aspectual com dar como incoativa habitual. Nesse mesmo sentido, Castilho (1968), ao fazer a
descrição das Construções Aspectuais do Português, destaca que em “dar para” incidem dois aspectos:
inceptivo e iterativo.
71
diversificada, havendo, entretanto, motivação para a ligação entre V1fin e V2inf, o que
poderá ser observado no capítulo 415.
Antes de nos atermos aos aspectos morfossintáticos que perpassam essa
construção, cabe apresentar aqui uma breve discussão sobre auxiliaridade. Isso
porque, neste trabalho, abordamos o V1fin como um verbo auxiliar, tendo em vista as
características que lhe são atribuídas dentro da construção.
Diversos linguistas buscaram discutir a concepção do que seria um verbo auxiliar
e, ao levantarmos estudos sobre o tema, notamos que havia vastas e divergentes
concepções do termo. Segundo Heine (1993), o termo auxiliar é associado a um
conjunto limitado de domínios nocionais, em especial aqueles referentes a tempo,
aspecto e modalidade. Esse autor formulou hipóteses relativas ao estatuto dos
auxiliares, quais sejam:
(i)
Hipótese da autonomia, segundo a qual os auxiliares seriam uma
categoria diferente da de verbo ou de outras, visto que não têm
propriedades sintáticas semelhantes àquelas
exibidas
por
verbos
principais (PALMER, 1979, apud HEINE, 1993).
(ii)
Hipótese do verbo principal, de acordo com a qual os auxiliares são
verbos subjacentes ou com comportamento desviante. Auxiliares e verbos
fariam parte de uma mesma categoria lexical (ROSS, 1969, apud HEINE
1993) ou se constituiriam em um subconjunto especial da categoria de
verbo (PULLUM & WILSON, 1977, apud HEINE, 1993).
(iii)
Hipótese da gradiência, que prevê a inexistência de limites exatos entre
verbos auxiliares e principais, já que ambos integram um continuum. Os
defensores dessa hipótese ligam-se não apenas a uma perspectiva
sincrônica, mas também se utilizam da análise diacrônica para explicar a
natureza dos auxiliares.
15
Inicialmente, imaginou-se que V2inf não poderia ser preenchido por V2inf estativos e aspectuais. Para
averiguar esse fato, foi realizada uma extensa análise de dados diacrônicos, o que nos levou à
formulação de novas hipóteses sobre as escolhas verbais na construção, como poderá ser conferido no
capítulo 4.
72
Esta visão, apresentada na hipótese da gradiência, é defendida por Heine
(1993), que define o comportamento dos auxiliares como associados a uma cadeia de
verbo para tempo-aspecto-modo (verb-to-TAM). Heine (1993) também defende que os
auxiliares advêm de expressões concretas que passam a apontar para conteúdos
gramaticais normalmente relacionados a tempo, aspecto e modo.
A fim de identificar os verbos auxiliares, Heine (1993) define critérios que
contribuiriam nesse sentido. Os auxiliares:
(i)
tendem a ser compostos por expressões que exprimem domínios
nocionais, especialmente de tempo, aspecto e modalidade;
(ii)
constituem um conjunto limitado de unidades linguísticas;
(iii)
não são claramente lexicais nem claramente gramaticais;
(iv)
podem ser usados como verbos principais em alguns contextos;
(v)
expressam funções gramaticais, mas exibem, por vezes, morfossintaxe
verbal;
(vi)
integram paradigmas altamente defectivos; não podem ser apassivados;
não têm forma imperativa; não podem ser independentemente negados;
(vii)
não podem ser o predicado principal (semântico) da oração;
(viii)
têm duas variantes livres (clítico e afixo);
(ix)
tendem a não ser acentuados ou são incapazes de receber contraste
enfático;
(x)
tendem a ser cliticizados ou são necessariamente clíticos;
(xi)
demarcam informação morfológica do predicador principal (pessoa,
número, tempo/aspecto/modalidade, negação, sujeito, concordância,
evidencialidade etc); tendem a marcar concordância com o sujeito;
(xii)
não constituem orações não finitas ou imperativas;
(xiii)
não podem ser regidos por outros auxiliares;
(xiv)
não têm um sentido seu ou não contribuem para o significado da
sentença; são “sinsemânticos” e “sincategoramáticos”;
(xv)
tendem a ocorrer separados do verbo principal;
(xvi)
não podem ser nominalizados nem ocorrer em compostos;
(xvii) tendem a ocorrer numa ordem fixa ou posição fixa dentro da oração, a
depender da ordem SVO ou VSO;
73
(xviii) tendem a se apresentar associados a um verbo principal numa forma não
finita, podendo este estar ligado a uma morfologia locativa.
É possível perceber que as propriedades apresentadas por Heine são
generalizadas e nem todas aplicáveis ao português. Talvez porque não possam ser
tomadas como conceitos universais, tendo como base uma lista tão extensa. Caso nos
atenhamos ao primeiro critério apresentado, da marcação nocional de tempo, modo e
aspecto, o qual é defendido como parâmetro de auxiliaridade por outros autores,
poderíamos, de imediato, definir os V1fin da CI como auxiliares.
No entanto, não podemos ignorar a extensa bibliografia atrelada a esse conceito
para o português. De acordo com Vieira & Brandão (2004), o verbo auxiliar opera sobre
um predicador verbal no infinitivo, formando uma unidade complexa. Ademais, as
autoras afirmam que auxiliares são unidades linguísticas consideradas não-nocionais,
lexicais que se combinam com um verbo formando uma locução em torno da qual se
organiza a predicação. Assim como Heine, elas admitem que a auxiliarização é
associada a um processo de gramaticalização que atua sobre formas verbais e implica
a transferência de extensões de sentido e do uso dessas formas da categoria lexical
para uma categoria gramatical. Isso é o que ocorre com os preenchimentos de V1 na
CI, afinal todos eles perdem neste contexto seu estatuto lexical e passam a figurar
como verbos gramaticais, marcadores de aspecto inceptivo.
Campos & Longo (2002), ao analisarem as perífrases de tempo e aspecto do
português falado, ressaltam que
A auxiliaridade pode ser definida como uma relação de complementação entre duas
formas verbais; o auxiliar, como forma relacional que toma por complemento um verbo
base (cf. RADFORD, 1997, p.65-66); e a perífrase ou locução verbal, como um
complexo unitário que reúne um verbo e uma forma de infinitivo, gerúndio ou particípio
numa só predicação. (LONGO & CAMPOS, 2002, p. 447)
Como os conceitos de auxiliaridade são bastante difusos, tanto Vieira & Brandão
(2004) quanto Campos & Longo (2002) propõem parâmetros básicos para a
identificação de sequências em auxiliação, os quais serão apresentados a seguir.
74
Parâmetros de auxiliação segundo Vieira e Brandão (2004)
1. Operação/atuação sobre outro verbo num domínio predicativo;
2. Alteração/perda semântica em relação à acepção do verbo lexical;
3. Desligamento semântico entre verbo auxiliar e sujeito gramatical: é o V2 que
seleciona o sujeito;
4. Unidade significativa/fusão semântica com verbo predicador numa única
predicação (o primeiro elemento desempenha função gramatical);
5. Impossibilidade de co-ocorrência da parte da sequência introduzida por V
predicador com oração completiva finita, ou seja, a segunda parte da oração
não pode ser substituída por oração completiva;
6. Uma só posição sintática de sujeito com um só referente-sujeito para as formas
verbais da unidade complexa;
7. Impossibilidade de substituição da estrutura sintagmática introduzida por verbo
predicador por uma forma nominal demonstrativa;
8. Ocorrência de complementos clíticos em adjacência ao auxiliar;
9. Impossibilidade de incidência de operador de negação sobre o domínio do
Vpredicador;
10. Impossibilidade de circunstante temporal que afete apenas o domínio do
Vpredicador: não admite dois modificadores de tempo totalmente distintos;
11. Comportamento do Vauxiliar e do Vauxiliado diante das transformações
passiva e interrogativa: não afetam os verbos individualmente, mas os dois
como se de um só se tratasse.
Quadro 9: Parâmetros de auxiliação segundo Vieira e Brandão (2004)
Segundo Vieira e Brandão (2004) – vide Quadro 9 –, há elementos que não
revelam ter todas as características apresentadas para os auxiliares. Esses seriam
designados de semi-auxiliares. Para tratar dessa classe, as autoras traçam uma escala
de auxiliaridade, conforme o grau de afastamento da categoria de Vpredicador e a
aproximação da categoria de Vauxiliar.
75
Dos cinco graus de afastamento, as autoras citam preenchimentos da CI como
presentes no 3º grau. Segundo Vieira & Brandão (2004, p.82-83):
3º grau de afastamento do polo de auxiliaridade
PODER, DEVER modais em construções com Vpredicador no infinitivo.
ESTAR, FICAR, ANDAR, VOLTAR, TORNAR, COSTUMAR, CONTINUAR,
PERMANECER, COMEÇAR, CHEGAR, PEGAR, TERMINAR aspectuais (acurativos)
seguidos da preposição a em construções com Vpredicador no infinitivo. (...)
Propriedades que os fazem diferentes dos membros típicos da categoria de auxiliar:
- O critério de desgaste semântico não se verifica da mesma maneira nessa subclasse
de verbos. Apesar do papel instrumental que assumem e do valor de
intencionalidade/modalidade que marcam, mantêm muitos dos traços de seu valor
lexical, de seu significado objetivo.
- Isso pode ser percebido até pelo fato de algumas extensões de uso partilharem da
função de impor restrições de seleção quanto à natureza aspectual do Vpredicador
sobre o qual operam. Não é qualquer Vpredicador que pode ocorrer com esses
Vauxiliares.
- Outro aspecto que corrobora isso é o fato de que, a depender do efeito de sentido
pretendido pelo usuário, verbos como DEVER e PODER, por exemplo, podem
assumir, e até condensar num mesmo contexto enunciativo, mais de um significado
distinto. (...)
- O operador de negação pode atuar sobre o Vpredicador no infinitivo.
- São permitidos complementos clíticos em adjacência ao Vpredicador no infinitivo.
Quadro 10: Afastamento do polo de auxiliaridade
A princípio, segundo essa classificação, os V1 da CI seriam semi-auxiliares.
Relativamente ao critério do desgaste semântico, associado à escolha do verbo
principal, a presente pesquisa corrobora essa ideia ao verificar que preenchimentos
verbais como romper se associam, em grande parte dos dados, a verbos emotivos,
sendo que essa associação não é aleatória, mas resultado de resquícios semânticos de
V1 romper que o fazem associar-se ao V2 emotivo. No entanto, vemos algumas
incongruências no que tange a essa classificação, tendo em vista as justificativas de
distanciamento
de
auxiliaridade
apresentadas
por
Vieira
e
Brandão
(2004).
Primeiramente, no que diz respeito ao fato de os verbos poderem condensar ou
assumir sentidos diferentes, sabe-se que isso ocorre com mais frequência ao se
observarem diacronicamente as construções, visto que se nota que o V1 ainda passava
por um processo de mudança semântica, como será explicitado em 4.3. A possiblidade
de um contexto ambíguo, em que o V1 da CI possa assumir sentido inceptivo ou ser
76
confundido com um verbo pleno em estrutura coordenada, torna-se rara na análise
sincrônica. Além disso, o fato de o operador de negação poder atuar sobre o Vpredicador
não foi observado nos dados levantados da CI. Dados como Ele não pegou a falar
soam como aceitáveis, apesar de não frequentes. Porém, sentenças como Ele pegou a
não falar soam agramaticais.
Isso colabora com a ideia de que os V1 da CI não estão num polo tão afastado
relativo ao processo de auxiliaridade.
Campos & Longo (2002), com o mesmo intuito de tentar delinear as
características definidoras do auxiliar verbal, propõem alguns critérios de identificação,
quais sejam:
(i) A impossibilidade de desdobramento da oração, visto que os verbos auxiliares se
associam com o verbo principal formando um composto indissociável;
(ii) A existência de sujeito único, já que a perífrase forma um complexo unitário com
apenas um argumento externo, cujos traços semânticos e papel temático devem
ser compatíveis com a base; ou seja, há um sujeito para os dois verbos;
(iii) A detematização: perda, sofrida pelo auxiliar, da propriedade de atribuir papéis
semânticos ou temáticos aos elementos nominais com que se combinam.
Esses critérios, pensados tendo em vista as perífrases aspectuais do português,
encaixam-se no estatuto da CI. O V1 da CI cumpre todos os parâmetros indicadores de
auxiliaridade propostos por Campos & Longo (2002) e, portanto, são tomados como
base para a caracterização dele como auxiliar. Ressalte-se o fato de que a CI constituise em uma estrutura de alçamento de sujeito, na qual o papel de participante do
argumento externo do verbo é atribuído por V2, sendo este argumento alçado à posição
de sujeito de V1, com o qual concorda16. Tome-se como exemplo desse fato a
impossibilidade de o sujeito de V2 ser diferente do de V1, em sentenças como *Ele
16
Papel de participante é o termo utlizado por Goldberg (1995) para designar os papéis semânticos
atribuídos pelos verbos predicadores a seus argumentos. A autora reserva o termo papel temático aos
papéis atribuídos por uma construção de estrutura argumental. Mais especificamente, para o caso da CI,
como já se pontuou anteriormente, o V2inf traz para a construção sua especificação de estrutura
argumental, a qual também pode ser tratada construcionalmente. Assim, o argumento alçado à posição
de sujeito da CI recebe o papel de participante definido pelo V2 e o papel temático da construção de
estrutura argumental na qual o V2 figura.
77
rompeu a você chorar. Ademais, conforme aponta Fernandes (2012), o fato de os
auxiliares serem detematizados acarreta, necessariamente, os critérios (i) e (ii) acima.
Por fim, é relevante citar também que Lobato (1975), ao reconhecer a
multiplicidade de rótulos atrelados ao conceito de verbo auxiliar, propõe uma
hierarquização de critérios, sendo que, caso haja aplicação de todos eles, seria
adequado o uso do termo. Caso contrário, visto que ele seria tomado em seu sentido
amplo, seria conveniente designá-lo auxiliante. No Quadro 11, será possível analisar
quais critérios seriam, portanto, adotados para tal classificação.
Ao examinar os critérios de Lobato (1975), vemos que, assim como nos demais,
a lista de parâmetros para a identificação de um verbo auxiliar é muito extensa, o que
acaba por restringir a classe.
Sendo assim, há imprecisão de critérios específicos para a delimitação dos
auxiliares, visto que eles são vastos, abrangentes e, por vezes, contraditórios.
Todavia, a listagem de critérios que retoma e sintetiza mais adequadamente as
noções presentes nos auxiliares do português é a de Campos & Longo (2002). Por isso,
essa foi a perspectiva adotada neste trabalho, justificando-se a caracterização de V1fin
na CI como auxiliares do português.
Critérios de auxiliaridade, segundo Lobato (1975)
(i) semântico: há perda sêmica do auxiliar, a depender do grau de gramaticalização.
(ii) unidade significativa: o auxiliar intervém como elemento gramatical e o auxiliado
como lexical.
(iii) acepção egocêntrica: não há ligação semântica com o sujeito gramatical, mas com
o locutor.
(iv) forma: o sintagma verbal é composto de uma forma flexionada seguida de uma
forma infinitiva, gerundiva ou participial.
(v) morfológico: todo auxiliar é defectivo, não admite particípio passado ou imperativo.
(vi) ordem: em geral o auxiliar segue imediatamente o verbo principal. No entanto, isso
não pode ser visto nas formas arcaizantes por exemplo.
(vii) separabilidade: grupo verbal semanticamente uno, formando um todo funcional.
Porém, isso não acontece em casos como Ele continua, contudo, a trabalhar.
78
(viii) impossibilidade de substituição de V2 por completiva.
(ix) prosódico: o conjunto auxiliar + auxiliado forma um só grupo acentual.
(x) frequência de ocorrência: só pode ser considerada auxiliar a unidade verbal muito
frequentemente seguida de infinitivo, gerúndio ou particípio.
(xi) constituição: o grupo verbal (auxiliar + auxiliante) formam um único constituinte.
(xii) apassivação: pertencem ao grupo de verbos suscetíveis de coocorrer com verbo
apassivável, havendo relação entre formas ativa e passiva de paráfrase.
(xiii) graus de integração: a integração entre auxiliante e auxiliado é uma questão de
grau sobre eixo contínuo, indo da menor à maior lexicalização. Quanto maior a escolha,
mais lexicalizada seria a unidade.
(xiv) extensão do campo de aplicação do morfema: os auxiliares não restringem o
sujeito ou o auxiliado.
(xv) negativização: uma sequência verbal em auxiliação não pode ser separada por
uma negação.
(xvi) pronominalização: se o auxiliado puder ser substituído por um pronome, trata-se
da ocorrência de dois verbos principais.
(xvii) oposição: um grupo verbal composto por auxiliar contém uma contraparte na
forma simples.
Quadro 11: Critérios de auxiliaridade, Lobato (1975)
4.2 Propriedades Sintáticas da Construção de Aspecto Inceptivo
Discutida a atribuição do conceito de auxiliaridade ao V1 da CI, passemos agora
a refletir acerca do conceito de transitividade. A eleição desse tema se justifica pela
busca, nesta tese, de uma explicação para a variabilidade no preenchimento do slot
Prep no esquema sintático da construção.
De acordo com Cunha & Souza (2007, p. 26), na gramática tradicional, a
classificação de um verbo como transitivo e intransitivo se apoia na presença ou na
ausência de um SN objeto exigido pelo significado do verbo. A gramática admite que
verbos transitivos podem ser empregados intransitivamente, o que é possível de ser
observado no enunciado em que o verbo se insere (cf. CUNHA & SOUZA, 2007, p. 27).
79
Com isso, presume-se que a transitividade não se deve estritamente ao verbo, mas a
fatores que ultrapassam o âmbito do sintagma verbal.
Said Ali (1964 apud CUNHA & SOUZA, 2007, p. 27) classifica os verbos
transitivos como os que costumam envolver um ser agente e um ser paciente. Porém,
segundo esse mesmo autor, nem todos os verbos transitivos podem ser assim
definidos, já que alguns “não denotam os recipientes dos atos”17. Com isso, considerase uma transitiva prototípica aquela em que o verbo é acompanhado de dois SN, um
sujeito agente que provoca a ação e um objeto paciente, que é afetado por essa ação.
Portanto, a transitividade pode ser observada de uma perspectiva sintática,
considerando a forma da oração (verbo acompanhado de um SN ou de dois), e de uma
perspectiva semântica (em que se analisa o elemento afetado pela ação verbal).
Nas análises funcionalistas, o conceito de transitividade tem sido caracterizado
como uma noção escalar. Segundo Hopper e Thompson (1980 apud CUNHA &
SOUZA, 2007, THOMPSON E HOPPER, 2001, p.28), a transitividade deve ser
encarada como uma propriedade contínua, escalar, não categórica.
Essa relação do verbo e de seus argumentos pode ser observada na oração e a
escalaridade é medida por meio de dez parâmetros propostos por Hopper e Thompson
(1980). São eles:
Parâmetros
Transitividade Alta
(1) Participantes
(2) Cinese
(3) Aspecto
do verbo
(4) Pontualidade
Baixa
Dois ou mais
Um
Ação
Não ação
Perfectivo
Não perfectivo
Pontual
Não pontual
Intencional
Não intencional
do
verbo
(5) Intencionalidade
17
Transitividade
do
Como exemplos, são apresentados: ouvir um ruído, pedir dinheiro, escrever uma carta.
80
sujeito
(6) Polaridade
da
oração
(7) Modalidade
(8) Agentividade
Modo realis
Modo irrealis
Agentivo
Não agentivo
Afetado
Não afetado
Individuado
Não individuado
do
sujeito
do
objeto
(10) Individuação
objeto
Negativa
da
oração
(9) Afetamento
Afirmativa
do
Quadro 12: Parâmetros da transitividade segundo Hopper e Thompson (1980)
Hopper & Thompson (1980, 2001), argumentando que a transitividade é
composicional e que é uma questão relativa à gramática de toda a oração, e não
apenas uma relação entre o verbo e seu objeto, introduziram dez parâmetros de
transitividade composicionais. A fim de atestarem que o inglês, na fala, tem baixa
transitividade e de mostrarem questões que surgem na tentativa de quantificar a
transitividade das cláusulas e suas implicações com o entendimento de suas
gramáticas, tomaram corpora de fala como base para a análise da transitividade na
fala.
Ao abordarem a história da estrutura argumental (HOPPER & THOMPSON,
2001, p.40), esses autores observam que, no inglês, assim como em outras línguas, o
estudo da estrutura argumental inclui uma listagem de valências das quais
determinados verbos podem participar. Nesse mesmo artigo, os autores demonstram
que o mesmo verbo assume transitividade distinta em contextos distintos e que os
falantes adquirem o conhecimento do que usar e como usar na língua à medida que
aprendem a empregá-la.
81
Eles destacam ainda que a baixa transitividade da língua falada tem sérias
implicações para o estudo do que tem sido chamado de estrutura argumental. O que
eles notaram é a necessidade de, na observação da fala, moverem-se em direção a
uma teoria baseada no que os falantes de fato fazem e no que os dados revelam sobre
as formas de os falantes categorizarem e extraírem generalizações a partir do que
ouvem e dizem todos os dias (HOPPER & TRAUGOTT, 2001, p.51, 52).
Nas seções a seguir, tais generalizações serão buscadas, visando a observar
especificamente a CI preenchida em V1 por pegar, como ilustrativa de um processo que
envolve a construção18. Para tanto, serão analisados dados do Córpus Conceição de
Ibitipoca e do Córpus do Português. O primeiro visa a observar os dados sincrônicos e
o segundo será utilizado para observação diacrônica da construção.
A escolha de foco em um preenchimento específico da Construção Inceptiva se
deve ao fato de que apenas alguns poucos V1 admitem preposições distintas de a,
quais sejam: pegar, entrar e danar19. Inicialmente, desconfiamos de que, em virtude da
origem dos verbos marcadores canônicos de início, já em seu sentido lexical, a
construção teria herdado a preposição de. Ao analisarmos os verbos prototipicamente
aspectuais, como começar, iniciar e principiar, vimos que o primeiro, quando seguido de
verbo no infinitivo na Construção Inceptiva, apresentava a preposição de. Como esse
verbo, em seu sentido pleno, é marcador de aspecto e as primeiras ocorrências da
preposição na CI surgiram no século XIV, notou-se que a colocação do de na CI com
V1 não prototípico poderia ter sido motivada etimologicamente.
Ao analisarmos os dados em que a preposição de figura na CI com V1 não
prototípico, notamos que ela surge no século XIX com pegar e entrar e no XX com
danar. O primeiro se revela o mais frequente regendo a preposição de na CI durante o
século XIX. Por meio dos dados do Córpus do Português, foi possível encontrar 7
dados de pegar de e 4 dados com entrar de na CI nesse século. Isso mostra que a
força motivadora pode ser advinda do pegar de para o entrar de. Porém, não é apenas
essa pequena diferença no número de ocorrências que leva a crer ser o pegar de
18
O objetivo deste trabalho é focar na Construção Inceptiva. Foi eleito o preenchimento com pegar em
V1fin para a observação de ocorrências sintático-semânticas da construção por ele guardar peculiaridades
em relação aos outros que ocupam a mesma posição.
19
Como será possível observar, pegar, entrar e danar podem ocorrer seguidos de preposições a e de.
82
motivador do entrar seguido de de na CI. O preenchimento com pegar se destaca
também porque esse verbo, dentre os que figuram como V1fin na CI, é o único que, em
sua atribuição plena, como verbo transitivo, pode reger a preposição de. Assim, a
pesquisa diacrônica mostrou haver não só uma motivação da origem da construção
(começar), como também da semântica da preposição para ela e da sintaxe herdada do
pegar lexical, o que poderia influenciar, inclusive, os demais preenchimentos da CI
(como com entrar e danar).
4.2.1 Estudo de caso: o verbo pegar e seus esquemas de transitividade
Conforme foi exposto anteriormente, este trabalho se atém à CI com
preenchimento de V1fin por verbos não canônicos. Dentre eles, destaca-se pegar que,
em alguns contextos, rege a preposição de na CI. Ao serem estudados os seus usos
como verbo pleno, foi possível constatar que a co-ocorrência da preposição de na CI
pode ter uma origem anterior, pautada na transitividade do pegar pleno. Esta pode,
inclusive, ter motivado a presença dessa preposição em outros preenchimentos da CI.
Por isso, fez-se relevante considerar as relações de transitividade, relacionadas
anteriormente, que envolvem o pegar, a fim de observar a rede de motivações na CI.
A transitividade, como um fator variável que compreende características
sintáticas e semânticas dos participantes da ação, está correlacionada à mudança
semântica do verbo. Isso pode ser verificado, primeiramente, em dicionários de nossa
língua. Vejamos o que nos revela o dicionário Houaiss da língua portuguesa sobre as
valências e sentidos do verbo pegar:
Pegar: v. (sXIV) 1 t.d. e t.i. segurar; prender segurando <p. a (ou na) xícara> <pegou o ladrão>
<p. pelo pé> 2 t.d.bit.int. e pron. fixar(-se), aderir, colar <p. o papel (à parede)> <o feijão pegou
(no fundo da panela)> <este papel não pega> <a roupa pegava-se ao corpo> 3 int. criar raízes
<a roseira finalmente pegou> 4 int. firmar-se, estabilizar-se, ter continuidade <essa moda
pegou> 5 int. começar a funcionar, dar a partida <o carro custou a p.> 6 t.d. alcançar, encontrar,
atingir <ele não pegou o espetáculo no início> <o carro deles, mais rápido, nos pegou logo> 7
t.d. ir buscar, apanhar (algo ou alguém) <vou p. a chave> 8 t.d. adquirir, assumir, passar a ter
<p. um mau hábito> 9 int. transmitir-se por contato <o fogo pega facilmente no mato seco> 10
t.d.bit.int. e pron. adquirir ou transmitir(-se) [doença] por contágio <pegou uma gripe> <p.
parotidite da (ou na) namorada> <um vírus que (se) pega facilmente> 11 t.d. e t.i. aceitar ou
começar a fazer (algo) <p. o (ou no) serviço> <pegou uma tradução para entregar em março>
12 pron. apegar-se, valer-se de, agarrar-se (a algo ou alguém) <ele se pega por horas com
qualquer pessoa> <pegou-se ao parecer do especialista> 13 t.d. conseguir, obter, alcançar
<pegou um lugar na frente> 14 t.d. captar (som e/ou imagem) <o rádio não pega a FM fora da
cidade> 15 t.d. ganhar, receber <pegou uma fortuna na loteca> 16 t.d. surpreender, encontrar
83
<pegou a mulher em flagrante> <a notícia me pegou desprevenido> 17 t.d. embarcar em
(veículo) <pegou a moto e saiu> 18 t.d. seguir por (caminho ou direção) <vou pegar a rua da
esquerda> 19 t.d. B infrm. ir a (determinado lugar) por lazer ou diversão <p. uma praia> 20 t.d.
compreender, perceber <esse menino pega tudo o que ouve> 21 t.d. abranger, incluir,
compreender <o programa do curso não pega o Modernismo> 22 t.i. ser contíguo, entestar,
comunicar-se <as plantações de café pegavam com as de soja> 23 pron. brigar, desentenderse <pegaram-se de (ou aos) socos> 24 t.d. ser condenado a <pegou dez anos de cadeia> 25
int. apresentar dificuldade <os preços pegam neste negócio> 26 int. ser aceitável, razoável ou
plausível <essa desculpa não pega>  pega pra capar grande tumulto ger. com agressões
físicas • p. bem B infrm. ser (gesto, comportamento, dito) bem recebido <pega bem levar flores
para a anfitriã do jantar> • p. de empunhar, segurar <pegou da faca e atacou o desafeto> • p.
mal B infrm. ser (gesto, comportamento, dito) mal recebido <pega mal falar alto em recintos
elegantes> • é p. ou largar fraseol. expressa urgência na decisão, ger. sobre uma compra ou
venda <o preço é este; é p. ou largar>  gram a) no Brasil, este verbo tb. é empr. como auxiliar,
com a prep. a mais o inf. de outro verbo, indicando 'início ou insistência de ação' (aspecto
incoativo) [ver aspecto ling]: pegou a chover que não acabava mais; b) apresenta duplo part.:
pegado, pego \ê ou é\  etim lat. pico,as,ávi,átum,áre 'impregnar(-se) de breu ou piche; ter em
si, trazer para si'  sin/var ver sinonímia de colar, prender, segurar e tomar  ant despegar; ver
tb. antonímia de tomar e sinonímia de soltar  hom pega(3ªp.s.) / pega(s.f., s.m., s.2g., interj. e
adj.2g.); pega \ê ou é\ (f.part.irreg.) / pega \ê\ (s.f., s.m. e adj.2g.); pegas(2ªp.s) e pegas \ê ou é\
(f.pl.part.irreg.) / pegas \ê\ (s.m.2n. e pl.pega \ê\ [s.f.s.m. e adj.2g.] e Pegas \ê\ (antr.);
pego(1ªp.s.) e pego \ê ou é\ (part.irreg.) / pego \é\ (s.m.) e pego \ê\ (s.m.)
Fonte: HOUAISS Eletrônico, Editora Objetiva, 2009.
Como é possível notar na descrição de usos e significados do pegar pleno, há
casos em que a valência distinta implica a semântica também diferente, e há outros em
que há distinção da valência sem alteração da semântica. O verbo pegar, na maior
parte de suas ocorrências, revela-se como transitivo direto20. Esse é o caso de:
(13)
Nessa hora, o homem pegou o copo de uísque e o quebrou na mesa.
(CP16.19Or:Br:Intrv:ISP)
Se levarmos em conta a proposta de Hopper e Thompson (1980) para a
transitividade, apresentada resumidamente no Quadro 11, é possível notar que, em
(13), as características da oração atribuem a essa construção com pegar (SN V SN) um
alto grau de transitividade, atendendo a todos os parâmetros propostos. Como se nota,
há dois participantes (o homem e o copo de uísque) e pegar instaura-se como ação. O
aspecto é perfectivo e a ação expressa é pontual. O sujeito é intencional e agentivo,
uma vez que realiza uma ação sobre um objeto paciente e inanimado (o copo de
uísque), o qual é individuado. A polaridade neste dado é afirmativa e a ação realizada
apresenta modo realis.
20
Será feita uma análise de outros dados, não pertencentes à CI, para atestar a relação existente entre a
transitividade de pegar no sentido pleno e desse mesmo verbo ocupando a posição de V1fin na CI. Para
tanto, foram levantados alguns dados no Córpus do Português e suas relações numa rede de
motivações.
84
A análise do conjunto dos parâmetros permite a proposição de que o grau de
transitividade é diretamente proporcional ao grau de ancoramento na realidade
percebida pelo falante daquela cena evocada pelo verbo.
Apesar de, na grande maioria dos dados em que o complemento de pegar é
direto, esse objeto se realizar como paciente e inanimado, há casos em que o
complemento é também animado, o que ocorre em:
(14)
O pequeno ria-se de quando em quando, e a cada risada o rosto da mãe tomava uma
expressão forte, escultural de felicidade plena e remansosa. A certo momento, pegou
a criança pelo tronco, pô-la em pé sobre os joelhos, e começou a sacudi-la como a
pregar-lhes sustos. (CP, Memorial de um passageiro do bonde)
Ambas as acepções de pegar nos contextos se mostram como análogas ao
sentido de segurar. Apesar de o objeto pegado ser [-humano] e [-animado] no primeiro
caso e [+humano] e [+animado] no segundo, fica claro na mente do falante o
movimento semelhante que se faz por parte do sujeito com relação ao objeto pegado.
Nesses casos, temos uma mesma construção sintática [SN V SN] com algumas
características semânticas distintas ([+ ou – humano] ou [+ ou - animado])
correlacionada ao mesmo sentido na construção: movimento para um contêiner21.
Como sabemos, a construção se caracteriza como sendo um pareamento de
forma e sentido (GOLDBERG, 1995; 2006). Poder-se-ia pensar, então, que o sentido
das construções preenchidas por pegar pleno fosse alterado caso houvesse mudanças
na forma da construção. No entanto, é relevante observar que sintaxes distintas no que
tange à preposição selecionada pelo pegar pleno transitivo relacionam-se a uma
mesma semântica. Na pesquisa diacrônica realizada no Córpus do Português, notou-se
21
Uma proposta mais aprofundada das categorias de movimento e contêiner pode ser checada em
Johnson (1987), Lakoff (2006 [1979]), Lakoff & Johnson (2002) e em Sigiliano (2008). De acordo com
Lakoff (1987), o esquema do contêiner é aquele criado para postular distinções de DENTRO-FORA e
seria baseado em nossa experiência concreta. Nossos corpos funcionam como contêineres que têm a
capacidade de inserir ou expelir algo de ou para dentro do mesmo. A noção de contêiner não é, então,
uma conceptualização apenas muito concreta, mas tal recipiente surge com uma noção mais
abstratizada, ao se analisarem os dados . Lakoff & Johnson (2002) aceitam tal ideia e afirmam que: “Nós
conceptualizamos nosso campo visual como um recipiente e conceptualizamos o que vemos como se
estivesse dentro desse recipiente. Até mesmo o termo ‘campo visual’ sugere isso. A metáfora é natural,
pois se origina do fato de que, quando olhamos para algum território (terra, chão etc.) o nosso campo de
visão define uma demarcação do território, no caso, a parte que podemos ver. (...) Eventos e ações são
metaforicamente conceptualizados como objetos, atividades como substâncias, estados como
recipientes. (...) Atividades de um modo geral são vistas metaforicamente como substâncias e,
consequentemente, como recipientes.(...) Muitos tipos de estados também podem ser conceptualizados
como recipientes.” (Lakoff & Johnson, 2002, p.81-85)
85
uma ocorrência numerosa de pegar seguido da preposição em e de, como nos
exemplos:
(15)
D. Luís pegou na carta meio trêmulo e abriu-a. (CP 18:Diniz:Fidalgos).
(16)
Pegou de uma pedra para espantá-lo. (CP19:Fiv:Br:Rego:Fogo).
À primeira vista, a dúvida que surge se refere à relação estabelecida por na carta
e de uma pedra. Tradicionalmente, seria na carta um adjunto adverbial de lugar ou um
objeto indireto selecionado pelo verbo pegar? De uma pedra é exigido por pegar ou
assume a função de adjunto? Além disso, se as construções são pareamentos de forma
e sentido, como explicaríamos o fato de que há seleção argumental distinta atribuindo
um mesmo conteúdo semântico à construção?22
Como sabemos, no português, tanto os adjuntos quanto os complementos
podem ser instanciados por SPreps. A distinção entre essas duas categorias se fez
necessária no presente trabalho uma vez que, em algumas ocorrências, como nos
dados observados acima, de e em subcategorizavam núcleos de sintagmas nominais,
os quais se assemelhavam a complementos do verbo pegar. Neste ponto da análise,
tornou-se relevante examinar a natureza do constituinte que se correlaciona a pegar
pleno – se complemento ou adjunto – fato que poderia dar pistas sobre a organização e
escolha por determinadas preposições específicas entre V1fin e V2inf, na Construção
Inceptiva.
4.2.2 Adjunção ou Complementação em relação a pegar pleno: um desafio ao
tratamento construcionista da estrutura argumental
Mioto et al. (2005, p. 63) comentam que a projeção máxima de VP é completa
quando contém todos os argumentos internos e externos do verbo. Assim, para
identificar a projeção máxima do VP, é preciso saber quantos argumentos um verbo
seleciona. Aqueles constituintes que são licenciados em uma sentença sem serem
complemento ou especificador de um núcleo são os chamados adjuntos (MIOTO et al.,
22
Seria possível pensar que a distinção na seleção argumental poderia ser motivada por fatores
pragmáticos. Entretanto, há dados com pegar em V1fin na CI selecionando diferentes preposições em
uma mesma obra literária e em narrações, como poderá ser conferido adiante por meio de exemplos da
obra Esaú e Jacó, de Machado de Assis.
86
2005, p.65). Os autores, ainda tratando dos adjuntos, ressaltam que as categorias que
normalmente funcionam como adjuntos são preposicionadas.
Já com relação ao conceito de complementação, apresentado pelos autores, a
identificação pressupõe o conhecimento, por parte do falante, dos argumentos internos
e externos do verbo. Ou seja, se o sintagma for selecionado pelo verbo, temos uma
relação de complementação.
O verbo pegar, da forma como é comumente usado no Brasil hoje, em seu
sentido concreto, parece selecionar um sujeito agente e um objeto paciente. Ao
pensarmos, entretanto, na sua configuração sintagmática, vemos que ele pode ser
constituído por um SN ou por um SPrep. Em se tratando dos últimos, como diferenciar,
então, se, de fato, temos um objeto preposicionado ou um adjunto em (15) e (16)?
Yasunari, ao investigar a distinção entre adjunção e complementação no
japonês, toma como base os estudos de Larson no inglês. Larson (1988 apud
YASUNARI, 1991) diferencia inicialmente os argumentos, apresentando-os como
selecionados por um predicado. Os adjuntos não são selecionados e funcionam como
modificadores. Segundo esse pesquisador, os adjuntos e os argumentos podem ser
identificados empiricamente de acordo com diversos critérios, sendo os mais
importantes a opcionalidade e a iterabilidade. Para exemplificar o critério da
opcionalidade, o autor emprega o seguinte caso:
(17)
a. John loves Mary.
b. *John loves.
(18)
a. John runs enthusiastically.
b. John runs.23
Por meio do exemplo, fica claro o fato de que o verbo to love seleciona um
complemento (Mary) e de que o verbo to run é intransitivo, mostrando-se como opcional
23
Nestes exemplos dados pelo autor, há frases descontextualizadas para mostrar que o verbo love exige
complemento para ter sua projeção sintática plena. No entanto, no português, pode-se pensar em
ocorrências de objetos diretos nulos, como em – Ele ama a mãe? – Sim, ele ama. É relevante notar a
existência de um objeto implícito nesse caso. É importante observar também que a escolha lexical do
autor foi simplista nesse exemplo, uma vez que “love” é um verbo que sempre exigirá complemento, o
que não ocorre com “runs”, que é tipicamente intransitivo. Assim, pela natureza dos verbos, torna-se
lógica a observação da exigência ou não de complemento e adjunto. Entretanto, esse não é o cenário
que se encontra ao lidar com pegar, por exemplo. Ao se observarem os exemplos como ele pegou o
copo ou ele pegou do copo ou ele pegou do copo no armário ou ele pegou no copo no armário, parece
haver grande possibilidade de os primeiros sintagmas que se seguem ao verbo serem complementos
dele, mas a distinção entre essa função e adjunção não pode ser observada apenas a partir desses
exemplos, dada a sua relação bastante lógica.
87
a ocorrência do adjunto enthusiastically. O autor, nos exemplos, opta por inserir
palavras de classes morfológicas distintas na posição pós-verbal. A título de
exemplificação, fica clara a não exigência de enthusiastically pelo verbo runs.
Entretanto, ainda não fica tão clara a aplicação desses critérios aos dados com
pegar, visto que sua complementação se dá, em ambos os casos citados, com
substantivos, e não com advérbios como ocorreu no exemplo inventado por Yasunari a
propósito do inglês. Observem-se os exemplos:
(a) Ele pegou na carta.
Ele pegou.
(b) Ele pegou na carta ontem.
Ele pegou na carta.
Nos exemplos acima, vemos que o complemento na carta é exigido pelo pegar.
Ele só não o seria, caso, contextualmente, houvesse um objeto nulo, em que seria
possível a retomada de um sintagma anteriormente mencionado. Enquanto há
exigência pelo complemento por parte do pegar, o contrário ocorre com o uso do
adjunto ontem, que pode ser eliminado do contexto sem que haja perda de
preenchimento dos elementos sintáticos básicos exigidos pelo verbo. Esses exemplos
retratariam, com nossos dados e no português, casos semelhantes àqueles
apresentados por Yasunari em (17) e (18). Porém, ao aplicarmos a eliminação aos
nossos dados reais coletados, não conseguimos ver a independência de pegar com
relação àquilo que vem após o verbo. Observem-se novamente alguns exemplos
extraídos do Córpus do Português, os quais foram modificados para que sejam
realizados os testes propostos:
(19)
a. D. Luís pegou na carta meio trêmulo e abriu-a.
b. *D. Luís pegou meio trêmulo.
(20)
a. Maurícia pegou de uma das mãos de Sinhazinha. (18TavoraSacrificio)
b. *Maurícia pegou.
Pensando no critério da opcionalidade e nos exemplos, temos que o elemento
pós-verbal é exigido por pegar, portanto, seria complemento desse verbo.
88
Segundo o mesmo autor, o outro critério que ajudaria na distinção entre
complementação e adjunção é a iterabilidade. Para isso, ele se vale da iteração de um
elemento com um mesmo papel sintático, mais do que a iteração de uma sequência de
palavras. Larson usa os seguintes exemplos para comprovar esse critério:
I.
a. John loves Mary.
b. *John loves Mary that boy.
II.
a. John runs in the morning.
b. John runs in the morning during the summer.
Nos exemplos (b), houve repetição de elementos com função sintática
semelhante, uma vez que Mary e that boy são complementos diretos de Love e in the
morning e the summer, adjuntos adverbiais de tempo. Como se nota, (I b) é
considerada uma sentença agramatical e (II b) é gramatical, o que ilustra a
possibilidade de coocorrência de adjuntos temporais, mas não de objetos diretos.
Na tentativa de aplicarmos os conceitos e os exemplos ao português, buscamos,
na ferramenta Google e nos corpora coletados, a co-ocorrência de elementos pósverbais como está apresentado nos exemplos de (21) a (23). Contudo, não foi possível
encontrar dados concretos. Os que seguem são dados hipotéticos criados com o
propósito de fomentar a discussão que é travada:
(21)
* D. Luis pegou na taça no copo.
(22)
Ele pegou a taça na prateleira.
(23)
Ele pegou na taça na prateleira.
24
Em (21), temos a co-ocorrência de possíveis adjuntos adverbiais de lugar ou
mesmo de objetos indiretos de pegar. Independente de considerá-los adjuntos ou
complementos, vemos que (21) é agramatical. Teríamos a co-ocorrência de na taça e
no copo como aceitáveis, caso houvesse uma enumeração, que seria formalmente
demonstrada pela presença de uma vírgula entre eles. Porém, esse não é o caso e,
portanto, há estranheza ao se ler o enunciado. Em (22), vemos um uso comum de
pegar. Nessa construção, a posição de complemento é preenchida por um SN a taça e
um SPrep na prateleira. Para refletir sobre o dado apresentado em (23), é preciso
24
Dados (21) a (23) inventados a partir de (15) para observação da presença ou não da complementação
distinta com V1 pegar.
89
retomar (15), em que concluímos que na carta representa um possível complemento de
pegar. Sendo assim, é possível notar também a possibilidade de aceitação dessa
construção por meio da qual se torna válida a argumentação de coocorrência, no
enunciado, de funções de complemento na taça e adjunto na prateleira. Assim, (23)
teria, diacronicamente, o mesmo grau de aceitação do enunciado em (22)
sincronicamente, considerando que, em sua história, um dos usos de pegar
subcategorizava preposição em. Mas o falante de hoje poderia questionar: se tanto em
(22) quanto em (23) temos complementos preposicionados, por que (21) soa como
agramatical e (23) não?
O que parece marcar a distinção e a aceitabilidade ou não de (23) é o critério
semântico dos termos taça, copo e prateleira, já que a prateleira pode abrigar uma taça,
assumindo a função sintática de adjunto, fato que torna (23) aceitável na língua e que
não ocorre em (21).
No português, vemos com frequência também a ocorrência de verbos seguidos
por complementos verbais e adjuntos, como é o caso de Ele pegou o copo ontem e ele
pegou na bola com as mãos (CP19AcPtEnc) e, também, a co-ocorrência de adjuntos,
como em Ele chegava à academia à noite25. Contudo, como foi observado, a
iteratividade de complementos verbais não forma sentenças gramaticais. Vejamos
novamente o exemplo (23):
(23)
Ele pegou na taça na prateleira
Levando os critérios de Yasunari em conta e voltando ao exemplo (23),
poderíamos admitir duas possibilidades: na taça seria adjunto ou complemento indireto
no contexto, visto que, segundo o autor, os adjuntos podem co-ocorrer. Dessa forma,
vemos, a partir dos dados, que a conceituação ou a tentativa de diferenciação entre
adjuntos e complementos não dá conta de identificar como relação de adjunção ou de
complementação alguns dados com pegar pleno. No entanto, a necessidade do
preenchimento de na taça no exemplo (23) aponta para o fato de esse sintagma ser
complemento de pegar.
Sag et al. (2003, p. 98), ao diferenciar os complementos dos adjuntos, defende
que, apesar das confusões que podem ser geradas pelo fato de ambos os elementos
25
Exemplo inventado para verificação da proposta.
90
sintáticos poderem ser preposicionados, há uma distinção clara entre eles: um sintagma
preposicionado funciona como complemento quando a escolha da preposição é
idiossincraticamente restringida por outra palavra, como um verbo, por exemplo. Assim,
SPreps que são obrigatoriamente selecionados por um núcleo podem ser chamados de
complementos, enquanto os adjuntos são opcionais. Sag et al. defendem a existência
de SPreps que podem ocorrer com os mais diversos verbos e que são iterativos. Esse
perfil se adéqua ao que é chamado modificador.
Dessa maneira, os autores intuem que os complementos referem-se aos
elementos essenciais na situação descrita pela sentença, enquanto os modificadores
redefinem a descrição da situação. Sag et al. destacam ainda a dificuldade em se traçar
as diferenças entre os complementos e os adjuntos, dizendo que há casos a respeito
dos quais os sintaticistas não entram em acordo, sendo esta diferenciação entre
adjuntos e complementos um deles.
Essas tentativas de delimitação entre o que seria complemento e adjunto
apontam para o fato de que, guardadas as diferenças entre a língua portuguesa e a
inglesa, o verbo pegar assume também complementos preposicionados. No português,
temos que os adjuntos funcionam como termos acessórios, ou seja, apesar de se
juntarem a um verbo ou a um nome para precisar-lhe o significado, não são
indispensáveis para o entendimento do enunciado (CUNHA & CINTRA, 2001, p. 149).
Vejamos:
(24)
Nicolau então pegou na Dorotéia Cabral com muito nojo e levou para a cozinha. (CP
19:fic:BR:Castilho:avulsos)
Os sintagmas preposicionados na Dorotéia Cabral e com muito nojo parecem
desempenhar funções sintáticas distintas na sentença, já que o primeiro parece ser
requerido pelo verbo pegar, enquanto o segundo é dispensável ao contexto,
funcionando como um termo acessório.
Levando em consideração todos esses fatos, temos que o verbo pegar seleciona
complementos que podem ou não ser iniciados por preposição, os quais,
independentemente disso, assumem, por vezes, o mesmo significado: “segurar algo”.
Observe:
(25)
Arandir pegou a roupa enrolada no chão. (CP 19:fic:BR:Abreu:onde)
(26)
A moça pegou na imagem do Espírito Santo. (CP 19:fic:BR:olinto:trono)
91
(27)
Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa. (CP 18:machado:vara).
Nos dados de (25) a (27), é possível verificar que a construção preenchida com
pegar pleno tem seu complemento verbal introduzido ou não por preposição.
Independentemente
dessa
questão
formal,
os
verbos
assumem
semânticas
semelhantes. O verbo, nas três ocorrências, poderia ser substituído sem perda
substancial de sentido, por segurar. Além disso, nos três, os sujeitos são [+animado] e
[+ agente] e os complementos [-animado] e [-agente].
Após considerar esses exemplos, faz-se relevante analisá-los à luz da teoria
goldbergiana. Goldberg (1995) aponta para o fato de que uma gramática é governada
por quatro princípios cognitivos, quais sejam:
(i) O princípio da motivação maximizada, de acordo com o qual se uma construção A é
sintaticamente relacionada a uma construção B, então o sistema da construção A é
motivado de tal modo que se relaciona semanticamente com a construção B.
(ii) O princípio da não sinonímia, segundo o qual se duas construções são sintaticamente
distintas, elas devem ser semântica ou pragmaticamente distintas. Esse princípio
compreende dois corolários:
Corolário A: Se duas construções são sintaticamente distintas e semanticamente
sinônimas, então elas não devem ser pragmaticamente sinônimas.
Corolário B: Se duas construções são sintaticamente distintas e pragmaticamente
sinônimas, então elas não devem ser semanticamente sinônimas.
(iii) O princípio da força expressiva maximizada, o qual postula que o inventário de
construções é maximizado, tendo-se em vista os propósitos comunicativos.
(iv) O princípio da economia, que reza que o número de construções diferentes em uma
língua é minimizado, considerando-se o princípio iii.
Isso posto, faz-se necessário questionar se uma alteração da preposição que
rege um complemento em uma estrutura argumental poderia ser considerada como
uma diferença sintática capaz de diferenciar duas construções semântica ou
sintaticamente. Há casos em que a mudança de preposição após o verbo provoca a
alteração também semântica no verbo. Esse é o caso dos exemplos abaixo com
relação aos apresentados anteriormente:
(28)
Toda essa parte do muro, que pegava com o lavadouro, fora derrubada depois da
morte da mamã. (CP 18:queirós:ramires)
(29)
adoeci...coitadim...levô com boa vontade...depois foi passado uns dia, eu num sei que
batida que ele arrumô aí pra lá aí, quebrô a perna, o moço...até ele é irmão do meu
genro...meu genro mora na cidade (inint)...ah mia fia, aquilo pra mim foi a maior
tristeza, né? coitadim...então ta::...o pai dele pegô com Nossa Senhora da Aparecida,
fez a promessa pra ele...então eu pa ajudá a pagá a promessa dele, que fez um
benefício pra mim, né? (IBI Apa)
92
Dados como (28) e (29) nos levam a refletir sobre o estatuto sintático-semântico
da construção, uma vez que a possível mudança da preposição acarreta a alteração no
sentido da construção. Nesse caso, poderíamos dizer que a mudança sintática se
correlaciona à mudança semântica. Se pensarmos apenas nos dois dados (28) e (29),
vemos que ambos apresentam sintaxe semelhante (no sentido de subcategorizarem
preposições) e semânticas verbais distintas, já que em (28) ele parece adquirir o
sentido de encontrar e em (29) o sentido de apegar-se a. Em toda essa parte do muro
que pegava com o lavadouro, temos sujeito [- humano] e [-animado] e complemento
locativo. Já em o pai dele pegou com Nossa Senhora da Aparecida, o sujeito é [+
humano] e [+ animado] e o complemento se refere a uma entidade religiosa, fazendo
referência a um sujeito experenciador26.
Como já colocado, segundo Goldberg, construções sintaticamente distintas e
semanticamente sinônimas precisam ser pragmaticamente não sinônimas. Contudo,
nos dados que foram analisados, encontramos variação sintática dentro de uma mesma
obra literária com relação ao uso do pegar. Nas obras Esaú e Jacó e Helena, de
Machado de Assis, temos:
(a) Natividade ficou atônita quando leu isto; pegou da pena e escreveu uma carta longa e
maternal. (Esaú, Machado)
(b) Nóbrega meteu a mão no bolso do colete e pegou um níquel, entre dous que lá havia. (Esaú,
Machado)
(c) Aires sorriu e pegou na mão da mocinha, que estava de pé. (Esaú, Machado)
27
Analisando esses dados, somos levados a pensar que o preenchimento pelas
preposições em ou de ou mesmo a ausência delas (como em (b)) são irrelevantes no
que tange à semântica de pegar. Se levarmos em consideração a semântica das
preposições na construção, o em parece mais fortemente marcar uma noção de lugar,
enquanto o de, associado ao verbo pegar, assemelha-se a um uso mais arcaico da
construção, visto que não é observado atualmente28. Com isso, ficam algumas
26
Foi designado experenciador aquele que manteve relação psicológica com uma entidade religiosa por
falta de designação mais adequada.
27
Além de estarem inseridos em mesma obra literária, todos esses dados foram coletados em
sequências narrativas.
28
Buscamos no Google diversas instanciações de pegar seguido de de e encontramos apenas exemplos
que faziam referências a textos clássicos, o que comprova a ideia de que o uso da preposição de no
93
reflexões sobre os dados: são os usos ou não das preposições intercambiáveis? A
preposição contribui semanticamente para a construção?
Dados como esses, em que há variação de uso das preposições dentro de uma
mesma obra literária, por exemplo, não são raros de se encontrar. Cabe, assim, refletir
sobre alguns aspectos com relação à hipótese da não sinonímia de Goldberg, na qual a
mudança de preposição parece ser um fato considerado irrelevante, apesar da
interferência sintático-semântica que pode causar.
Ainda com relação ao estatuto sintático e semântico da construção, outra
possibilidade é que tenha ocorrido mudança no uso da preposição nesses casos de
complementação. Essa flutuação de preposições poderia ser um indício de mudança.
Ou, ainda, há que se considerar a possibilidade de a proposta da gramática das
construções parecer não dar conta da proposta da variação, uma vez que temos
construções semanticamente, pragmaticamente e sintaticamente semelhantes. É o
caso das construções (a), (b) e (c) vistas anteriormente29.
Em (28) e (29), notamos uma variação sintático-semântica em que há exigência
da preposição com. No contexto de (29), ligado aos traços semânticos do complemento,
com vocabulário referente a lugares, o verbo assume o sentido de ser contíguo. O
mesmo uso da preposição depois de pegar, no português informal, pode ser associado
a entidades religiosas, como é o caso em (29), (30) e em (31)30:
(30)
Ela pegou com Deus e o menino foi curado. (CAn)
O verbo pegar, com a mesma semântica, no português formal aparece como
pronominal:
(31)
Agora pega-te com Deus e repousa. (CP 18:Távora:Lourenço)
Esse tipo de construção, assim como outros, em que o pegar assume distintos
significados,
seja
guiado pela
mudança
de preposição,
pronominalidade
ou
complemento é característica de uma forma que está em desuso no português, podendo, talvez, ser
ainda empregada, mas de maneira escassa e por falantes mais velhos.
29
Mostra-se válida, portanto, uma revisão do princípio da não-sinonímia. Nele, seria necessário se
apresentarem, por exemplo, os tipos de alterações sintáticas que seriam possíveis numa mesma
construção, fazendo alusão à subcategorização ou não de preposições por parte do verbo (cf nota 35).
30
É possível pensar em uma forma cristalizada de “pegar + com”. Esse, porém, não foi o foco da análise
deste trabalho.
94
características do objeto que o segue, mostra-se produtivo na língua, mas não constitui
o foco do presente estudo. Como já se sabe, pretende-se focar, nesta seção, a
construção aspectual com o verbo pegar, mas, para se criarem hipóteses quanto à sua
origem, cabe observar as demais construções com preenchimento com verbo pegar,
sobretudo aquela que apresenta o significado pleno, lexical de pegar, neste caso,
representadas pelos exemplos de (25) a (27).
Essa análise se mostrou necessária para o encaminhamento de hipóteses que
justificariam a presença de distintas preposições na posição de Prep na CI. A fim de
entender melhor o preenchimento dessa posição, faz-se válido debruçar-se sobre as
características das preposições, o que será feito em 3.5 e suas relações com as
categorias que perpassam a CI (seção 3.4).
4.3 As Categorias de Movimento e Contêiner na Construção de Aspecto Inceptivo
Com o intuito de se verificar a proposta de que o preenchimento de Prep não
ocorre aleatoriamente, desenvolver-se-á neste trabalho a hipótese de que os V1fin da CI
compartilham um esquema conceptual subjacente centrado nas noções metaforizadas
de MOVIMENTO e, na maioria dos casos, de CONTÊINER.
Lakoff (2006 [1979], p.196), ao tratar da metáfora conceptual, diz que "as
categorias clássicas são entendidas metaforicamente em termos de regiões delimitadas
ou contêineres. Assim, algo pode estar dentro ou fora da categoria". O autor, nesse
mesmo artigo, comenta que, em inglês, o tempo é conceptualizado em termos de
espaço (LAKOFF, 2006 [1979], p. 200). Essa informação é relevante para o presente
trabalho, uma vez que, no PB, e em várias outras línguas, tempo também é
conceptualizado como espaço.
Como demonstrado em Sigiliano (2008), o verbo pegar, em seus sentidos
lexicais, caracteriza uma polissemia, a qual tem como base as categorias conceptuais
de movimento e de contêiner. Pesquisando mais a fundo as outras possibilidades de
preenchimento da posição de V1fin na Construção Aspectual Inceptiva, é possível notar
que a presença da categoria de movimento e, em grande parte dos casos, da categoria
de contêiner são comuns também a essas outras possibilidades de V1. Tal realização é
95
possível de ser analisada por meio da presença das metáforas conceptuais (cf.
LAKOFF, 2006 [1979]). Na perspectiva de Lakoff, as metáforas são concebidas como
mapeamentos entre domínios conceptuais, constituindo-se em um dos principais
processos da cognição humana e, com isso, parte da vida cotidiana. Tomando como
base essas propostas, podemos listar algumas metáforas que se mostram presentes
nas construções aspectuais:
TEMPO É ESPAÇO.
MUDANÇA É MOVIMENTO.
ESTADOS SÃO LUGARES. (LAKOFF, 2006 [1979], p.211)
É interessante notar que os verbos listados por Travaglia como partes de
perífrases inceptivas evocam sentidos relacionados às categorias conceptuais de
contêiner e movimento, conforme abordado anteriormente. Nota-se que verbos que
normalmente instanciam a Construção Aspectual Inceptiva – pôr, deitar, despejar,
entrar, dar, entre outros – são verbos que implicam movimento, os quais evocam uma
estrutura argumental relacionada a uma cena de transferência entre contêineres, afinal,
quem entra, entra em algum lugar e quem dá, dá algo a alguém (quem passa a ser o
contêiner abstrato).
Além do mais, a Construção Aspectual Inceptiva se caracteriza pela presença da
preposição a. Isso também corrobora a análise da base metafórica dessa construção, já
que, como veremos, a escolha da preposição a não parece ter se dado de maneira
arbitrária. Ao pensarmos nos usos comuns da preposição a acompanhando verbos no
PB, vemos que eles ocorrem, no registro formal, ligados, por exemplo, a verbos que
indicam noção de movimento direcionado ou mesmo iniciando adjuntos locativos ou
antecedendo beneficiário. Esse fato indica, a princípio, que a preposição eleita para
compor a construção em análise reforça a noção de movimento, a qual, aliada às
metáforas descritas acima, parece despertar na cognição humana a noção da
marcação de fase inicial de ocorrência de uma ação, ancorada na noção metafórica de
que AÇÕES SÃO MOVIMENTO PARA UM DESTINO.
96
Isso fica mais uma vez evidente ao observarmos a etimologia da preposição a
no português. Segundo o dicionário Eletrônico Houaiss (2009), ela se origina da "prep.
lat.tar. a, da prep.lat. ad 'aproximação, início de uma ação etc.'". No verbete de ad, do
Dicionário Escolar Latino-português, de Ernesto Faria (1956), encontramos, em sua
primeira acepção, a preposição ad denotando “aproximação, direção para (geralmente
com ideia de movimento)”. Essas informações etimológicas reiteram a hipótese de que
a preposição a não é usada de maneira arbitrária na construção. Ela se une à noção de
marcação de movimento para reforçar a noção do aspecto inceptivo.
Ilari et al (2008), ao analisarem as preposições do PB, mostram que, no que
tange aos esquemas cognitivos de tempo, podemos pensar em três modelos diferentes
em que intervém a preposição a:
1) Tempo estático, ou seja, localização de um ponto na linha do tempo. Observemos primeiro o
tempo pontual:
a
(4-115) e::uma coisa e outra...e::...agora à tarde vão dois para a escola mas...tem ativi/ os que
ficam em casa têm atividades extras...
[D2 SP 360]
(4-116) ...almoçar depressa para dar tempo de digestão para poder entrar às duas horas...
[D2 SP 360]
2) Tempo distributivo: se esta localização for periódica, estaremos tratando de um tempo
distributivo.
(4-117) Inflação é brabo: de quinze por cento. Foi um susto pro bolso da gente. [Quinze por
cento] esse primeiro trimestre, que estava previsto sete por cento ao trimestre.
[D2 POA 283]
(4-118) O crescimento populacional é de dois vírgula nove por cento ao ano.
[D2 SP 255]
97
3) Tempo dinâmico: ocorre quando um período em que a ação se desenrola é recortado pelas
preposições de e a:
de |
|a
(4-119) Nós tivemos muita orientação, recreação dirigida do meio-dia a uma e meia.
[D2 POA 283]
(4-120) Imaginar cada um de nós daqui a vinte anos?
[D2 SP 343]
Ilari et al, por meio de representações esquemáticas, mostram como a
preposição a é associada à categoria de tempo e, por meio de setas, como a noção de
movimento parece estar ligada à metáfora TEMPO É ESPAÇO. Esses fatores sugerem
que pode haver também uma restrição semântica para o preenchimento da preposição
na CI, tendo em vista o fato de que ela ocorre na grande maioria dos dados sincrônicos
observados e coletados31.
4.4 O Preenchimento Variável da Posição de Prep
No artigo The inherent semantics of argument structure: the case of the English
ditransitive construction, Goldberg (2006) argumenta que as restrições semânticas
envolvidas numa construção são associadas mais diretamente à construção como um
todo do que com a estrutura lexicossemântica dos verbos.
Para demonstrar isso, Goldberg critica a proposta de Gropen et al. (1989 apud
GOLDBERG, 2006) para os verbos bitransitivos do inglês, que dividiram os verbos em
classes semanticamente definidas. A autora analisa essa divisão, mostrando que, de
acordo com o que foi proposto, há subclasses que não foram observadas por esses
autores e há aquelas que deveriam ter sido classificadas como metafóricas. Goldberg
também discorre sobre o paradoxo que Gropen et al. começaram a resolver: a sintaxe
bitransitiva pode ser estendida a novos verbos, mas, ao mesmo tempo, não está
disponível a todos os verbos de qualquer classe definida (GOLDBERG, 2006, p.405). A
autora cita Gropen et al., deixando claro que, em 1989, esses estudiosos mostraram
31
Ocorreram apenas três dados de fala em que não foi preenchida a posição Prep.
98
que as pessoas costumam ser conservadoras no uso dos itens lexicais. Eles
demonstraram experimentalmente que as pessoas tendem a empregar os itens lexicais
nas mesmas construções em que escutaram aqueles itens sendo falados, mas que eles
podem, devido ao efeito de priming32, estender os usos a novos padrões, o que também
é sustentado por Bybee (1985 apud GOLDBERG, 2006).
Esse fato sugere que as pessoas memorizam padrões sintáticos específicos em
que as palavras são usadas. Dessa forma, a idiossincrasia lexical também é esperada.
Entretanto, segundo Goldberg, a existência de algum grau de idiossincrasia não deveria
ser tomada como fator impeditivo da existência de subclasses de verbos definidas
apenas semanticamente, as quais ocorrem nas construções bitransitivas (2006, p. 406).
Na verdade, de acordo com Goldberg (2006), a existência dessas classes começaria a
explicar o fenômeno da produtividade parcial.
Aplicado ao presente estudo, seria possível considerar, portanto, que, ao ouvir
pegar sendo usado como um aspectual, o falante é levado a empregá-lo no mesmo
contexto construcional. Além disso, em uma segunda fase, o falante, ao escutar a CI
com V1fin preenchido com verbos de movimento, tende a estender esse uso a outros
verbos de semântica semelhante.
Por meio da análise de dados e da apresentação teórica, Goldberg demonstra
que, conforme afirmado por Talmy (1977 apud GOLDBERG), Fillmore (mimeo apud
GOLDBERG) e Carter (1988 apud GOLDBERG), os sentidos dos itens lexicais podem
se adaptar ao sentido da construção. Assim, no caso das construções bitransitivas, não
era preciso se centrar apenas no sentido do verbo, mas seria necessário analisar a
construção.
Como já apresentado, a Gramática das Construções toma as unidades da
linguagem como correspondência de forma e sentido, as quais não são estritamente
previsíveis do conhecimento do restante da gramática. Tendo em vista isso, é possível
dizer que a estrutura argumental bitransitiva pode ser vista como uma construção,
pareando forma e sentido. Goldberg (2006, p.411) propõe que a construção existe
32
O efeito de priming ocorre quando o falante, ao tomar contato com um determinado padrão
construcional, passa a poder estender a esse padrão a itens lexicais os quais ele presenciou apenas em
padrões distintos. Isso justificaria o crescimento de ocorrência de verbos distintos na posição de V1fin, os
quais, pela semelhança semântica, são aplicados à CI.
99
independentemente dos verbos individuais que podem nela ocorrer. Como se vê neste
trabalho, há diversas instanciações da construção aspectual [(SN) V1fin (Prep) V2inf],
uma vez que o V1fin varia (cf. TRAVAGLIA 1985), fato que confirmaria a afirmação de
Goldberg com relação aos aspectuais inceptivos do português.
Valendo-se de diversos exemplos, a autora afirma que os diferentes sentidos
produzidos na construção não estão arbitrariamente relacionados às diferenças nos
sentidos dos verbos que entram na construção, ou seja, os itens lexicais que ocorrem
em expressões particulares desempenham um papel na decisão de qual sentido da
construção será indicado. Assim, as diferenças resultam da integração entre o sentido
central da construção e as classes verbais particulares que nela entram. De acordo com
Goldberg, ao mesmo tempo em que isso ocorre, os vários sentidos não são previsíveis
e devem ser associados à construção33. Além disso, a autora aponta para as restrições
semânticas contidas na construção. Isso pode ser exemplificado pelo fato de que o
primeiro objeto da construção bitransitiva deveria ser um ser animado e, ainda, um
beneficiário ou recipiente volitivo.
A proposta de Goldberg para a inserção de novos verbos em uma dada
construção é desenhada para dar conta de fenômenos relacionados à aquisição da
linguagem, foco dos seus trabalhos. Entretanto, o mesmo raciocínio encontra paralelo
também no que tange ao percurso histórico das construções. Nesse sentido, apresentase como muito relevante o trabalho de Bybee (2010) acerca da mudança linguística.
Segundo Bybee (2010), há processos cognitivos gerais que contribuem com a
mudança linguística. São eles a categorização, o chunking34, o armazenamento
enriquecido de memória, a analogia e a associação entre modalidades. Assim como
outros teóricos da Linguística Cognitiva (entre eles LAKOFF, 1987), Bybee reconhece o
papel central da categorização para a linguagem, visto que o conhecimento linguístico
se estrutura de maneira radial a partir da experiência do falante no mundo.
33
A título de exemplo, considere-se a ocorrência: Afundando a cabeça no travesseiro, rompeu a chorar
desesperadamente (CP, séc XX). Nessa ocorrência, a construção aspectual encontra-se relacionada a
um sentido de início abrupto do choro. Não se pode dizer que o esquema [V1fin (Prep) V2inf] codifique o
sentido referido, uma vez que, se a posição de V1 fosse preenchida por começar, manter-se-ia o aspecto
inceptivo, mas não o sentido de algo repentino. Por outro lado, também não seria correto atribuir à classe
dos verbos que indicam quebra de barreira a propriedade de marcar aspecto. É na interação entre o
significado do verbo e do esquema construcional que emerge o significado do exemplo em questão.
34
Optou-se por não traduzir chunking, devido ao uso corrente deste termo, bem como do termo primitivo
chunk, nas publicações brasileiras
100
Já chunking se refere ao processo através do qual as sequências de unidades
que são usadas juntas se aglomeram a fim de formar unidades mais complexas. Assim,
sequências de palavras são armazenadas conjuntamente de modo que possam ser
acessadas como uma única unidade. Da interação entre chuncking e categorização,
são criadas as sequências convencionais, que podem variar em níveis de
analisibilidade e composicionalidade.
No que tange ao armazenamento enriquecido de memória, a autora refere-se ao
armazenamento de detalhes da experiência linguística, como questões fonéticas,
contextos de uso e inferências associadas às proposições. A analogia é o processo
pelo qual enunciados inéditos são criados com base em outras expressões previamente
conhecidas. A lista de processos de domínio geral também inclui a habilidade de se
fazerem associações de distintas modalidades que fornecem a ligação entre forma e
significado.
Nesse sentido, um estudo diacrônico da CI mostra que um determinado padrão
verbal começa a ser preenchido por um V1fin não canônico (por exemplo, romper ou
pegar) e passa a ser interpretado pelo falante como um chunk. Como há slots abertos
nesse padrão, por analogia, começam-se a preencher as posições de Sujeito e V2inf,
por exemplo, com outros elementos. Com isso, criam-se categorias em que associam
de forma não aleatória V1fin a V2inf, como poderá ser observado por meio da análise,
por exemplo, do V1 romper com V2 emotivo no capítulo 4. De forma semelhante ocorre
com os V1fin, uma vez que todos eles contêm, arraigados na sua semântica, a noção de
movimento advinda do uso pleno.
Tudo isso encontra paralelo também no fato de que a construção V1fin + (Prep) +
V2inf pode denotar noções aspectuais diversas, dependendo do verbo que preenche V1.
Travaglia (1985, p.328) apresenta perífrases de andar + a + infinitivo e de ficar + a +
infinitivo como representantes do aspecto iterativo, por exemplo. Esse fato indica que
os sentidos produzidos na construção também decorrem dos significados dos itens
lexicais que nela ocorrem. Como foi possível notar em itens já apresentados neste
trabalho, há restrição semântica perpassando as Construções de Aspecto Inceptivo,
qual seja a necessidade de o verbo que ocupa a posição de Vaux conter, em seu
101
esquema de significado, ao menos a noção metaforizada de movimento; ou, então, de
indicar, em seu sentido pleno, a noção de início (como é o caso de começar).
A fim de aprofundar essa análise, demonstrando-a, passaremos a apresentar
instanciações da Construção Aspectual Inceptiva, nas quais a posição de V1fin é
preenchida por pegar, um verbo que, em seu sentido pleno, não apresenta como
função a marcação aspectual. Como vimos em Travaglia (1985), há diversos outros
verbos que, em seu sentido lexical, não marcam aspectualidade, porém, em um novo
uso, como auxiliares, são empregados para marcar essa categoria.
Entretanto, o que a análise a ser apresentada a seguir parece indicar é uma
outra restrição de preenchimento do esquema [V1fin (Prep) V2inf], a qual se relaciona à
preposição. Vimos que, originalmente, a preposição a relaciona-se à categoria do
movimento, demarcando, inclusive, destino de um movimento em muitos de seus usos
no português. Sabemos, contudo, da existência de outras preposições, as quais são
comumente empregadas em construções aspectuais, que também são relacionadas à
noção de movimento. Salomão (1990), ao tratar das Construções Aspectuais com Dar,
oferece exemplos como: deu pra escrever poesia. Atualmente, é possível verificar
também sentenças do tipo: ela deu de falar mal de mim. Ambas sinalizam a marcação
aspectual e são construções quase idênticas sintaticamente, embora apresentem
preposições distintas. Salomão (1990) aponta para o fato de que o preenchimento
preposicional é motivado pelo frame de transferência de posse que a semântica do
verbo evoca (dar algo que era da posse de alguém para outro indivíduo). Assim, em dar
de ou em dar para, a seleção preposicional não é aleatória. Essas foram usadas
justamente pelo fato de estarem associadas ao frame de transferência. De acordo com
Faria (1956), a preposição de, no latim, denotava ponto de partida, especificamente: 1)
a partir de; 2) saído de; 3) ideia de afastamento; 4) movimento para cima e para baixo.
No que tange à construção aspectual preenchida em V1fin pelo verbo pegar, já se
sabe que ela é composta principalmente pela preposição a. Entretanto, foram coletados
dados de fala que prescindem da preposição:
(32)
INF.- Saiu (variado)...deu a...assim(varieudade) e febre, né ô?..aí.
INQ.- Num sabia que que tava falando?
INF.- Não...sabe pri...primero ele tava sabeno mais depois dipois ele pegô variá...aí
eles medicô ele direitim lá, ele melhorô. (IBI-AU)
102
Nesse caso, à primeira vista, é perceptível uma semântica comum à Construção
Aspectual Inceptiva. Entretanto, a sintaxe é distinta, uma vez que não há presença da
preposição nela35.
Não é difícil perceber que a preposição a tem sido bastante substituída tanto na
fala quanto na escrita do brasileiro por preposições como para, em ou de. Segundo
Bagno (2001, p. 145), essa substituição pode ser explicada por não existir distinção
fonética entre a preposição a e a preposição combinada com o artigo (à). De acordo
com o autor, esse fato pode gerar ambiguidade, como em: recomendei a professora à
escola. Nesse enunciado, são permitidas ao leitor/ouvinte duas possibilidades de
interpretação "A professora foi recomendada à escola", que seria o verdadeiro sentido a
julgar pela leitura da representação escrita da sentença, ou "A escola foi recomendada
à professora". Assim, para haver eliminação dessa duplicidade de sentidos, o falante,
involuntariamente, substituiria a preposição a por para: A professora foi recomendada
para a escola, o que funciona, também, como um recurso para evitar o uso do acento
indicativo de crase.
Também conforme Bagno, outra hipótese para a substituição da preposição a
seria o fato de haver em nossa língua mais dois itens gramaticais com mesma
pronúncia: o artigo feminino a e a forma verbal há. Essas são possíveis razões para
justificar o fato de o falante do português, em uma mesma construção (a Construção
Aspectual Inceptiva) alterar ou mesmo suprimir o uso da preposição entre V1fin e V2inf.
No exemplo (32), notou-se a supressão da preposição a e, em diversos outros dados
de CI apresentados, observou-se a presença dessa preposição.
Apesar de o número de instanciações com a preposição a ser maior, o que é
esperado quando se leva em consideração a contribuição semântica que a preposição
tem na construção, o fato de haver casos em que a posição de preposição não é
preenchida é indício de que algo de diferente ocorre com a Construção Aspectual
Inceptiva. Se considerarmos uma construção como um pareamento de forma e sentido
35
Tanto na obra de 1995 quanto na de 2006, Goldberg não deixa claro se diferenças como a presença
ou ausência de preposições seriam abarcadas pelo princípio da não sinonímia, ou seja, se a essa
diferença sintática deveria corresponder, necessariamente, alguma diferença semântica ou pragmática.
Como a autora (GOLDBERG, 1995) prevê entre as distinções pragmáticas a variação de registro, poderse-ia argumentar, inicialmente, que o princípio em questão é respeitado na medida em que a ausência da
preposição na construção tende a ser mais característica da fala informal. Entretanto, em uma mesma
obra, foi possível observar ocorrência de preposições distintas na CI, como se viu em seções anteriores.
103
e se a olharmos pela ótica do Princípio da Não Sinonímia (cf GOLDBERG, 1995) –
segundo o qual construções com sintaxe diferente apresentarão diferenças semânticas
ou pragmáticas –, veremos que, nesse caso, o sentido da construção se mantém na
marcação semântica de aspecto inceptivo, embora a sintaxe seja diferente.
As razões apresentadas por Bagno para se evitar o uso do a poderiam até ser
elencadas como possíveis causas para esse fato, porém, uma pesquisa mais acurada,
envolvendo a análise de dados diacrônicos, revela que outros fatores podem ser
arrolados para explicar diferenças sintáticas motivadas por alteração preposicional,
conforme se verá na próxima seção.
4.5 A Construção Aspectual Inceptiva com pegar e os preenchimentos da posição
de Prep
Ao empreender uma análise diacrônica das construções, buscamos no CP todos
os dados com o verbo pegar através dos séculos. Foram identificadas 4.149
ocorrências de pegar. A expectativa era a de encontrar dados de construções
aspectuais com pegar apenas seguidas ou não da preposição a. Entretanto, como
apresentado anteriormente, já em uma primeira análise dos dados nesse córpus,
encontramos dados como estes:
(33)
Afinal, destacaram-se árvores, plantas, uma paisagem inteira e o Cristozinho, deixou
de espreguiçar-se e pegou de andar por entre a mata, com a tranquilidade de quem
passeia nos seus quintais. Só então foi que Magdá percebeu que estava observando
tudo isto de uma janela e apressou-se a olhar em torno de si. Ah! exclamou,
reconhecendo a sua adorada habitação da ilha. (CP, Aluísio de Azevedo, O Homem,
século XIX)
Nesse caso, a Construção Aspectual Inceptiva guarda suas peculiaridades
semânticas e formais. A curiosidade é despertada, porém, pelo fato de a posição da
preposição ter sido preenchida por de. Isso porque, em pesquisa sincrônica,
encontramos dados em que havia preposição a entre V1fin e V2inf ou em que ela
simplesmente era suprimida. Contudo, o aspecto motivador da presença da preposição
de ainda não havia sido considerado. Um fator foi relevante para ajudar na explicação
do fator motivador: as ocorrências, no mesmo século XIX, do verbo pegar em seu
sentido lexical. Observe:
(34)
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me
os pés. Um dos meus amigos (creio que e ainda meu sobrinho) pegou de outra taça e
104
(35)
pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar
brindando ao primeiro dos cariocas Ouvi cabisbaixo: fiz outro discurso agradecendo, e
entreguei a carta ao molecote. (CP, Bons dias, Machado de Assis, século XIX)
Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do
Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá
muito que lutar para separá-los. (CP, Dom Casmurro, Machado de Assis, século
36
XIX)
Por meio da análise dos dados, é possível perceber que o verbo pegar era
empregado no Português também como uma construção transitiva indireta, exigindo a
preposição de. Isso é ainda mais interessante na medida em que é possível notar, no
primeiro exemplo, que a seleção argumental do complemento se dá, inicialmente, com
objetos mais concretos. No dado apresentado em (35), é possível notar a presença de
uma nominalização (namoro < namorar).
No dado (33), foi possível perceber a
presença do pegar na construção aspectual, em que há um V2inf.
Ao analisar os dados disponíveis no CP, foram encontrados 69 dados com V1fin
pegar na CI. As primeiras ocorrências de pegar em construções aspectuais são
verificadas no século XIX. É interessante notar que, nesse século, o preenchimento da
preposição se dá, nos dados, por a ou por de. Já no século XX, encontra-se apenas
uma ocorrência da Construção Aspectual inceptiva em que a preposição que preenche
a construção é de, como é possível verificar abaixo:
(36)
Valeu-lhe acudir Seitosa em peso, ao toque dos sinos, que os tratantes pegaram de
pôr a salvo jericos e atafais e despediram deixando, por susto ou maldade, o incêndio
a lavrar. Ficou-lhe para emenda, que mais ciganos não aboletou, sob pena de
impedernir o coração devocioneiro à sua grande lamúria: -Somos do Egipto,
patroinha, terra do menino Jesus! (Manuel Ribeiro, A Planície heróica, século XX)
Já as construções aspectuais com pegar encontradas no século XX e
preenchidas com a preposição a totalizam 41 ocorrências. Esses números apontam
para o decréscimo de ocorrências de construções aspectuais com pegar preenchidas
pela preposição de e o consequente aumento dessas com preposição a.
Como já observado, a carga semântica das preposições a e de casa bem com o
sentido da construção, a qual é aliada às noções de marcação de movimento ligado a
tempo (vide metáforas apresentadas).
Contudo, a presença da preposição de nas
instanciações mais antigas da Construção Aspectual Inceptiva com pegar, sendo
coincidente com o período em que esse verbo, em seu sentido pleno, regia essa
36
Em (35), pegar parece funcionar como um verbo leve, ou, ainda, introduzir uma noção aspectual, veja
nesta reescrita: se eles namoram ou se eles começam a namorar.
105
mesma preposição, parece apontar para uma contribuição ainda maior do verbo para a
construção. Assim, diferentemente do proposto por Goldberg (1995; 2006), os verbos
não só contribuiriam para o sentido da construção, mas parecem fazê-lo também para
a sintaxe, na medida em que suas propriedades de subcategorização em seus usos
como verbo pleno poderiam, de alguma forma, guiar o falante na escolha da preposição
a ser empregada com esses verbos em outros contextos construcionais. Logo, o que se
argumenta aqui é que a presença da preposição de no exemplo em (36) não se justifica
apenas pelo fato de ela se encaixar na semântica da construção, mas sim pelo fato de
ser o de a preposição que costumava acompanhar o verbo pegar quando este era
empregado como verbo pleno, em construções transitivas indiretas.
O caso das construções em que a posição de V1fin é preenchida por dar também
parece confirmar esse raciocínio. Diferentemente do que se pode notar nos outros
verbos que podem estar presentes na Construção Inceptiva, as instanciações com o
verbo dar são descritas por Travaglia como seguidas da preposição para e de um verbo
no infinitivo. Mais uma vez, fica claro observar que a seleção dessa preposição é
semanticamente motivada, já que para também se associa ao destino de um
movimento. Porém, seria também possível argumentar que a constante substituição de
a por para em contextos informais em que se usa o verbo dar em seu sentido pleno
poderia, de alguma forma, fornecer ao falante pistas para o preenchimento da posição
de Prep na Construção Aspectual.
Esses fatos indicam que o verbo pode apresentar uma função mais relevante na
construção que somente a interferência semântica, o que traz uma nova perspectiva
para a proposta de Goldberg. O verbo também pode ajudar o falante a decidir a
preposição que será inserida. Assim, a princípio, o falante pode se basear tanto no
esquema prototípico de preenchimento da posição de Prep, já definido pelo esquema
da construção – que é a ocupação da posição de Prep pela preposição a –, quanto nas
pistas fornecidas pelo verbo auxiliar – o que pode ser notado pela diacronia dos verbos
auxiliares estudados. Assim, quando os verbos a ocuparem a posição de V1fin são
usados, em seu sentido pleno, sem reger nenhuma preposição, o falante irá utilizá-los
no contexto aspectual acompanhados pela preposição a, seguindo a semântica da
construção, que indica movimento metafórico para um destino. Porém, quando os
106
verbos vierem, em seu uso como verbos plenos, acompanhados por outras preposições
– tais como de, para o verbo pegar, e para, para o verbo dar – o falante pode confiar
nessa pista sintática para o preenchimento da posição da preposição na construção
marcadora de aspecto.
Assim, o padrão aspectual inicialmente parece advir de construções transitivas
seguidas de complementos concretos, as quais passariam a funcionar com
complementos deverbais e, em seguida, como Construção Aspectual Inceptiva,
seguindo uma espécie de cadeia, conforme esquematizado abaixo:
pegou de outra taça > pegou de namoro > pegou de andar
No mesmo sentido, a CI preenchida com danar toma como base instanciações
daquelas preenchidas por pegar e/ou entrar37. Na análise dos dados, foi possível notar
que as ocorrências com danar na CI são as mais recentes da língua, nascidas no
século XX. Ademais, não foram encontradas ocorrências de danar nem de entrar
subcategorizando preposição de no sentido pleno. Isso ocorre apenas na CI. Veja:
(36)
(37)
(38)
A mulher de Guilherme espantava-se da ausência de Inês: não sabia que o filho do
médico lhe roubara o coração da amiga; todavia, amarguras de outra espécie a
distraíam dessa suponável falta. O artista, desde que o pai falecera e
simultaneamente as inquietações do ciúme o preocuparam, entrou de adoecer de
febre lenta. Desde criança revelara sintomas de vida cuna; os pais tiravam esse
horóscopo da melancolia desnatural do menino; os médicos pressagiaram-lhe a
brevidade da vida pela configuração do tronco e pobreza de sangue. (CP, A viúva do
enforcado, Camilo Castelo Branco, séc XIX)
Tecla chegou ao altar: - Mas, ora, cadê o noivo? - A chuva o atrasou. - Na certa caiu
no rio. - Quem sabe espera na sede? Nos palpites misturados, o tempo não esperou,
danou de passar depressa. Um irmão olhou lá fora, as sugestões redobraram e nada
de o noivo chegar. (CP, Onde Andará Dulce Veiga?, Caio Fernando Abreu, séc. XX)
O seu cavalo Sulipa, desenvolvedorzinho, tão manso que sequer liga pra taca, nem
leva jeito para se espevitar em árdego passarinheiro, tanto esquipava distraído do
mundo, de beiçola balançando, e entregue ao próprio sacolejo que, sem atentar nas
37
Propõe-se, ainda, que uma rede de motivações seria responsável pelos usos de danar de, entrar de e
pegar de. Isso porque foram encontrados dados no CP que revelam a existência de preposição DE entre
V1 e V2 na CI preenchida por começar no século XIV. Veja um exemplo: Et muytas uezes demãdou que
o matasem et que nõ fose mays sua uida, ca muyto mays lle prazía de sua morte. Et cõmeçou de mesar
os cabelos et desfazer o rrostro. Et caeu en terra amorteçido, pero acordou logo toste, et cõmeçou de
dizer a grandes uozes: -!Ay, meu padre et meu señor et meu amigo bõo, cõmo sõo desauenturado et que
mao día naçí!;Catiuo, en que graue ponto seý de mïa terra et chegey a este lugar!!Meu señor, en que
graue ponto uos vim buscar et en que forte ora uos achey! (CP, CronicaTroyana, sec XIV). Isso indica
que pode, ainda, ter havido dupla força motivadora para a subcategorização da preposição de, por parte
dos preenchimentos com danar e entrar na CI.
107
ladradas e rosnados, nos dentes arreganhados de um vira-lata, levou uma mordida no
rejeito. Só aí o desatento pulou de dentro da pachorra e espantou-se. Então, pelo
sangue da dentada azoretado, danou-se a revidar a pares de coices, fastando de
costas, e raspando os cascos nas fuças do agressor, até acertar-lhe o pé do ouvido
de cheio, fazê-lo ganir de dor. (CP, Cartilha do silêncio, de Francisco Dantas, séc. XX)
A expectativa era, portanto, de encontrar com referência ao danar pleno e ao
entrar pleno a presença da preposição de. Porém, isso não se confirmou o que
corrobora a ideia de que essa dupla possibilidade de ocupação da posição de Prep na
CI preenchida por danar e entrar se deveria ao efeito de priming construcional motivado
pela duplicidade de preenchimento na CI preenchida por pegar em V1fin. Esta seria,
então, a força motivadora para a ocupação da posição de Prep também com de na CI
preenchida com danar.
4.6 A Construção de Aspecto Inceptivo e A Rede de Construções com Pegar
Como explicitado em 3.3, este capítulo foca como ponto de partida a Construção
Inceptiva preenchida em V1fin pelo verbo pegar. Isso se deve ao fato de haver
possibilidade múltipla do preenchimento de Prep na CI. Ou seja, a grande motivação
para tal se baseou no fato de que pegar, na posição de V1 da CI, guia a seleção da
preposição nessa construção, a saber, a, de ou zero. Apesar de o preenchimento com
de ser ainda raro na CI em geral, hipotetiza-se haver dupla motivação para sua
presença. A primeira delas, não associada especificamente ao V1fin pegar, remete a
ocorrências do século XIV de começar, verbo aspectual inceptivo canônico, coocorrendo com a preposição de na CI. A segunda, pautada em análise de dados dos
mais diversos séculos, está ligada ao fato de que o verbo pegar, em seu sentido pleno,
rege a preposição de, o que colabora para a hipótese de que a escolha de Prep não é
aleatória.
Como se vê a partir do que foi analisado até então, as construções com o verbo
pegar podem ser diversas, tanto no aspecto formal, quanto em sua contraparte
semântica. Como o objetivo do presente trabalho é analisar as construções aspectuais,
daremos ênfase primeiramente àquelas que se mostram mais lexicais para observar a
possível origem das mais gramaticais.
108
Tendo em vista as diversas construções preenchidas por pegar, é possível notar,
apenas nos usos do cotidiano, que o verbo pegar pleno ocorre, sobretudo, nas
construções transitivas básicas, ou seja, naquelas em que o sujeito é [+ agentivo] e [+
animado] e o complemento [+ paciente] e [- animado]. Nos dados coletados, vemos que
grande parte das ocorrências se encaixa nesse perfil. É relevante observar, ainda, que
Cunha & Souza (2007, p. 27) classificam a oração transitiva prototípica como aquela em
que o verbo é acompanhado de dois SN, um sujeito agente, que desencadeia a ação, e
um objeto paciente, afetado por essa ação. Esse perfil é o mesmo que o dos exemplos
(39), (40) e (41) que, como proposto na rede38 que segue, representam a construção
transitiva prototípica preenchida por pegar, constituindo construção base da qual se
origina a construção aspectual inceptiva39. Observe:
(39)
Então pegou as mãos dela, passou-as pelo seu rosto, no roçar de sua barba. A
mulher compreendeu. (CPBrAbreuXX)
(40)
Minha mulher esperava-me para jantar. Eu, ao entrar no quarto, peguei-lhe das
mãos, e perguntei-lhe: - O que é eterno, Iaiá Lindinha? (CPBrMachadoXIX)
(41)
Madalena pegou nas mãos de Antonio, passou os dedos no lugar do ferimento, deu
a impressão de que ia dizer qualquer coisa, mas desistiu. (CPBrAntOlinXX)
Dessas construções, outras parecem surgir, como poderemos notar adiante.
Uma delas corresponde às CFF’s40 estudadas por Rodrigues (2006) e por Tavares
(2008). É interessante observar que a construção mais transitiva dá lugar a outra menos
transitiva. Vejamos:
(42)
Uma ambulança, aqui teve uma ambulança, o...não sei se foi o Tuco, foi um deputado
lá de fora que deu, eles pegou vendeu ela ó, emborsô ela ó... (IBI MN)
(43)
aí ele ainda me mostrou, no quarto aonde ela tá falando ali, no projeto que ela fez com
a (gessoteto) teria forro igual cê tá vendo aqui. nós sugerimos (tipo isso aqui) só que
fechando no teto, tá . não é forro liso igual a gesso teto ia fazer ((barulho do aparelho
38
A noção de uma rede de construções aparece em trabalhos como Salomão (1990) e Goldberg (2006).
Em ambos, e também neste trabalho, o conceito de redes construcionais é tratado como uma extensão
das redes polissêmicas apresentadas na obra de Lakoff (1987).
39 Neste trabalho, consideram-se (39), (40), (41) como uma mesma construção. É importante notar que,
apesar de Goldberg (1995) caracterizar a construção como sendo um pareamento de forma e sentido,
não fica claro se a mudança da valência verbal também acarretaria a mudança construcional, já que a
semântica do verbo permanece a mesma. Como foi possível ver, os três usos de pegar correspondem
àquilo que pode ser denominado de transitiva básica. A distinção que ocorre dentro da construção, com
preenchimento ou não da preposição, parece se dever à diferença de registro entre os dados.
40 Segundo Rodrigues (2006), as CFFs formam-se a partir de uma sequência mínima de dois verbos, V1
e V2, em que V1 e V2 partilham sujeito e flexões modo-temporais e número-pessoais. Ela sustenta que a
posição de V1 é quase sempre preenchida por um dos verbos ir, chegar e pegar, sendo que V2 é
relativamente livre. Além disso, V1 e V2 podem estar conectados pela conjunção e, tipo 1 [+ CONJ], ou
podem estar justapostos, tipo 2 [- CONJ].
109
de som)). era ( ) morrendo no teto lá em cima. Eu peguei e falei com ele, "ó eu
quebrei aqui que vou ter que passar a fiação" (PROCON-JF)
Em (42), temos um uso da construção preenchida com pegar que se assemelha
àquela presente no centro da rede, mais prototípico. Entretanto, é possível notar que o
objeto (ela) é inferido contextualmente, não estando explícito, após o verbo pegar41, e
sim apresentado após o verbo vender. Ao mesmo tempo, (42) se assemelha à estrutura
de (43), visto que pode ser interpretada como o mesmo caso de (43), ou seja, como a
CFF. Isso porque, em (42), temos duas interpretações possíveis: eles pegou a
ambulância e vendeu a ambulância ou eles pegou vendeu a ambulância. Ou seja, a
ambulância pode ser um objeto compartilhado por V1 e V2 ou selecionado apenas por
V2. Já em (43), vemos que esse contexto de ambiguidade quanto à seleção ou não de
objeto direto por V1 e V2 não mais ocorre. Nesse caso, claramente é o verbo de
elocução a subcategorizar o discurso direto. Cabe ressaltar que V1 e V2 são unidos
por e.
Assim, a construção assume uma nova semântica e um novo padrão sintático,
visto que se perde a possibilidade de o SN objeto ser subcategorizado por V1 ou V2. A
construção, dessa forma, ainda se mostra em fase de mudança em (42), devido ao fato
de ela poder ser selecionado por pegou ou por vendeu, o que não ocorre, por exemplo,
em (43) cujo discurso direto é exigido pela grade de transitividade do falar, não sendo
um argumento do pegar.
Parece haver, portanto, graus de mudança construcional que podem ser
ilustrados como segue:
•
(44)
•
(45)
Construção Transitiva [SN Vpegar SN]:
INQ.- Ahan...sei...e o::...espera aí, acho...que tem gente chegano aqui...vamo vê
quem é que é vamo continuá...tem otra coisa também que o pessoal conta lá da vila.
INF.- Ahn::...dexa eu pegá meu poquim de açúca aqui (IBI Aur)
Construção Ambígua [SN V1pegar (SNi) V2 SNi]: CFF ou V1 lexical (mesmo tempo e
modo verbais, SN objetos correferenciais ou SN objeto de V2 compartilhado por
V1pegar):
INF:Uma ambulança, aqui teve uma ambulança, o...não sei se foi o TON, foi um
deputado lá de fora que deu, eles pegou vendeu ela ó, emborsô ela ó... . (IBI-MA)
41 Há casos em que o objeto de V1 pegar é o mesmo da oração coordenada, com em Pegou a bola e
botou mais pra dentro do quadro. Exemplos como esse ajudam a identificar um momento que parece ter
sido um “primeiro passo” para o surgimento das CFF’s.
110
•
(46)
Construção Foi e Fez – CFF – (cf. RODRIGUES, 2006) [SN V1pegar V2 (SN)] (mesmo
tempo e modo verbais, V2 com ou sem complemento):
a sala dela deu um problema técnico, de execução , não tinha no projeto da menina
os tubos passando, depois passaram a ter, entendeu. então foi sugerido em função do
que ocorreu um detalhe, por vários detalhes a gente sugeriu e deixou eles decidirem,
um dia o esposo dela pegou e falou as- eu quero parar o serviço. (Procon – AG)
O verbo pegar também se liga a outras construções. Esse é o caso da
construção marcadora de aspecto inceptivo no português. Vejamos os dados abaixo:
(47)
Tanaka pegou o barco, deixando-o descer a correnteza com suaves. (CP
19CabralBr50)
(48)
Aos dezessete anos pegou um namoro com um moço da rua. (CP19DinaBr)
(49)
Aos poucos, a bem dizer sem se sentir, pegou a trabalhar para o bicheiro que fazia
ponto na charutaria.(CP19RQBr)
Em (47), é possível observar a construção transitiva básica com pegar lexical,
em que o barco é objeto do verbo. No exemplo (48), o complemento atrelado ao verbo
pegar é um nome deverbal. Esse tipo de complemento pode indicar a tendência de
essa construção passar a selecionar um verbo infinitivo, o que ocorre no exemplo (49).
Outras preposições podem ocorrer na Construção Aspectual Inceptiva com
pegar. Elas também podem ser explicadas tendo em vista a transitiva básica com
pegar42. Observe:
(50)
Eu pego uma das menina pa ir lá te acudi as veiz que tivé precisano. (CCIDa)
(51)
(...) foi assim as primera música que eu peguei pra trabalhá (CCIFab)
(52)
Doc: agora é bonzinho? Inf.: agora é... tem dia que é meio chato sabe? Quando ele
43
pega pa estudá(r) pa lê(r) NOssa! que moleque chato! (CIbop AC 58)
A sentença em (50) exemplifica a construção transitiva básica, a qual é seguida
de uma oração hipotática iniciada por para, cujo sujeito é retomado da oração anterior.
Já em (51), é possível notar a presença de uma relativa em que o pronome representa
e substitui o objeto direto44. Porém, em (52), não existe um referente explícito na
42
Neste trabalho, não foram consideradas as expressões cristalizadas como “pega para capar”, dentre
outras. É possível que dados como ele pega pra estudar (Córpus Iboruna) faça parte da família das
expressões cristalizadas ou mesmo é possível que ele tenha advindo de uma hipotática de finalidade.
43
Foi observado apenas este dado no Córpus Iboruna, visto que ele se mostrou distinto de todos os
outros observados até então no que tange à seleção da preposição. Assim, apenas nesse Corpus foi
possível encontrar dado com pegar para, o que precisa ser destacado. Agradeço aos organizadores do
Córpus por terem-no cedido a mim para a pesquisa.
44
Talvez essa mudança seja facultada também pelo fato de, no português, poder existir objeto nulo,
conforme já citado anteriormente.
111
cláusula
anterior
que
funcione
como
um
possível
complemento
acessível
contextualmente a pegar. Nesse caso, no lugar de um SN, um sintagma verbal infinitivo
é selecionado após a preposição para. A construção [SN Vpegar para Vinfinitivo] também se
apresenta como uma Construção de Aspecto Inceptivo no Português45.
Ainda uma outra construção aspectual com pegar pode ser encontrada no
português, sendo que ela parece advir também da transitiva básica com pegar, aquela
em que o verbo exige a preposição de – como pôde ser visto em (36) e em (33), por
exemplo. Percebeu-se, nos dados, a ocorrência de nomes deverbais também
preenchendo o SP dessas construções. Veja:
(53)
Nessa festa o jovem pernambucano pegou de namoro rijo com a menina Eulália.
(CP19ManPaiBr)
A nominalização parece indicar, novamente, que há uma tendência a serem
selecionados verbos infinitivos para a posição ocupada pelo complemento.
Observe o dado (54):
(54)
Deixou de espreguiçar-se e pegou de andar por entre a mata (CPXXAluAzBr)
Como vimos, pegar em V1fin na CI pode ser seguido sobretudo – na maior parte
das ocorrências – por duas preposições distintas: a e de. Contudo, no português falado
atual, essa construção é usada de uma maneira um pouco distinta:
(55)
Ah...custô pra melhorá...o calombo dele, aí eu peguei passá é...óleo de Nossa
Senhora da Aparecida em cima do cacuruto dele... usava todo dia que dava banho
nele e foi ini fo ino desapareceu. (IBIAP)
Diferentemente dos outros usos das construções aspectuais com pegar, nesse
caso, V1fin e V2inf não são intercalados por preposição. O que se observa, portanto, é
uma tendência ao apagamento da preposição no português falado, fato que, juntamente
a outros princípios, revela que a construção aspectual apresenta maior grau de
gramaticalidade.
Na Gramática das Construções, considera-se que as construções mais básicas
dariam origem às mais complexas e seria possível descrever a relação entre elas por
meio de um estudo sintático, semântico ou pragmático. Com isso, postula-se que as
45
O objetivo aqui é de traçar possíveis relações sintáticas de mudança construcional com pegar. Faz-se
relevante destacar, porém, a confluência semântica em (52), tendo em vista a relação de movimento
atrelada à preposição para. Assim, como já observado em seções anteriores, a troca de a por para ou de
pode ter se dado também por fatores semânticos.
112
construções não se originam aleatoriamente, mas se organizam segundo determinados
princípios (cf. Goldberg, 1995, p.67). Com base nisso e na análise dos exemplos, podese constituir uma rede de construções.
Sendo assim, seria possível afirmar que a Construção Aspectual Inceptiva com
pegar integra uma rede construcional nucleada pela construção plena do verbo, a qual
é caracterizada por suas propriedades semânticas – movimento para contêineres
determinados (cf. SIGILIANO, 2008) – e sintáticas – SN[+animado] Vpegar SN[-animado] – o que
foi examinado, neste trabalho, por meio da análise dos dados e será brevemente
esquematizado a seguir.
113
Aspectual
[SN pegar infinitivo]
Não...sabe pri...primero ele tava
sabeno mais depois dipois ele
pegô variá...aí eles medicô ele
direitim lá, ele melhorô.
Aspectual
[SN pegar de infinitivo]
Deixou de espreguiçar-se e
pegou de andar por entre a mata
[SN pegar de nominalização]
nessa festa o jovem
pernambucano pegou de
namoro rijo com a menina
Eulália
Aspectual
[SN pegar a infinitivo]
Aos poucos, a bem dizer sem se
sentir, pegou a trabalhar para o
bicheiro que fazia ponto na
charutaria.
Aspectual
[SN pegar para infinitivo]
Quando ele pega pa
estudá(r) pa lê(r) NOssa! que
moleque chato
[ SN pegar nominalização]
Aos dezessete anos pegou um
namoro com um moço da rua.
Pegar lexical
[SN pegar SN para v inf]
Eu pego uma das menina pa
ir lá te acudi as veiz que tivé
precisano.
Pegar lexical
[SN pegar de SN]
Pegar lexical
[SN pegar SN]
Pegar lexical
[SN pegar em SN]
Minha mulher
esperava-me para
jantar. Eu, ao entrar no
quarto, peguei-lhe das
mãos, e perguntei-lhe:
- O que é eterno, Iaiá
Lindinha?
Então pegou as mãos
dela, passou-as pelo
seu rosto, no roçar de
sua barba. A mulher
compreendeu.
Madalena pegou nas
mãos de Antonio, passou
os dedos no lugar do
ferimento, deu a
impressão de que ia dizer
qualquer coisa, mas
desistiu.
Pegar lexical [
SN pegar SN des.] ou
discursivo
Eles pegou vendeu ela.
Pegar discursivo
[SN pegar (e) Vtm]
Eu peguei e falei com ele, "ó eu
quebrei aqui que vou ter que
passar a fiação"
114
Essa rede é resultado da análise que foi apresentada anteriormente. Note-se que
o centro da rede corresponde ao uso em que o pegar se apresenta no seu sentido
pleno (ao de pegar as mãos). Este pode variar quanto à preposição selecionada, como
se vê em peguei-lhe das mãos e em pegou nas mãos. É desse centro de pegar
prototípico que advêm todos os outros. Observando a parte inferior da rede,
observamos que o complemento de pegar passa a ser cancelado e compartilhado com
o segundo verbo da sequência, que se flexiona no mesmo tempo e modo. Esse, ainda,
pode passar a figurar em uma função discursiva46, em que não se é exigido um
complemento para tal verbo.
Além disso, ao examinar a parte superior da rede, notamos que, por selecionar
nomes deverbais para a posição de objeto, gradativamente, o verbo pegar parece
passar a selecionar verbos no infinitivo, resultando no pegar aspectual:
Pegou as mãos > pegou um namoro > pegou a trabalhar
Ainda, há também, na fala, ocorrências de pegar aspectual sem preposição
(caso de pegô variá), o que aponta para um maior grau de gramaticalidade dessa
construção.
Da mesma maneira como essa rede foi formada, enfatizando o papel do verbo
que preenche a posição de V1 na motivação da CI, ela poderia ser estendida a outros
preenchimentos dessa mesma posição. Sendo assim, pegar foi usado apenas como
exemplo daquilo que ocorre com todos os preenchimentos, visto que todos estão
ligados a uma mesma construção e cada um deles poderia ser estudado em todas as
suas instanciações em outros padrões construcionais. Para que se observem as
relações deste preenchimento de V1pegar com os demais, é possível também traçarmos
um diagrama que deixa clara a ligação entre eles. Veja:
46
Rodrigues (2006) designa essas mesmas construções como Construções do tipo Foi e Fez e, segundo
ela, “apresentam uma função discursiva na medida em que conduzem a atenção do interlocutor/ouvinte
para o fato que será descrito pelo segundo verbo da construção” (Rodrigues, 2006, p. 136).
115
Construção Inceptiva
[(SN) V1fin (Prep) V2 inf]
[(SN) V1fin a V2 inf]
[(SN) V1fin de V2 inf]
[(SN) começar a V2 inf]
[(SN) principiar a V2 inf]
[(SN) começar de V2 inf]
[(SN) entrar a V2 inf]
[(SN) pegar a V2 inf]
[(SN) danar a V2 inf]
[(SN) romper a V2 inf]
[(SN)desandar a V2 inf]
[(SN) disparar a V2 inf]
[(SN) romper a V2 inf]
[(SN) desatar a V2 inf]
[(SN) deitar a V2 inf]
[(SN) V1fin para V2 inf]
[(SN) entrar de V2inf]
[(SN) pegar de V2inf]
[(SN) danar de V2inf]
[(SN) pegar para V2 inf]
[(SN) V1fin V2 inf]
[(SN) pegar V2 inf]
Por meio deste diagrama, é possível, com mais clareza, notar que,
independentemente do preenchimento de V1fin, todas as ocorrências especificadas são
exemplos de subtipos de uma mesma construção: a marcadora de aspecto inceptivo.
Esta foi apresentada na parte superior do diagrama. Em seguida, vê-se que ela foi
especificada em quatro, a depender da preposição que figura (ou não) na construção –
a, de, para ou zero. Ademais, tendo em vista as mais prototípicas com a mesma
configuração sintática, dispôs-se a posição de V1 ocupada por começar e/ou principiar
primeiramente, para, a partir delas, listarem-se os preenchimentos não canônicos.
Essa, portanto, é uma maneira de didatizar o que já vem sendo apresentado até
aqui: trata-se de uma mesma construção, porém preenchida por itens diferentes. Ela
poderia se fragmentar ainda mais se estendida sua análise aos itens linguísticos
específicos (V1 ou V2, por exemplo). Assim, a CI apresentada na rede com pegar se
relaciona diretamente ao diagrama anteriormente disposto.
116
4.7 Conclusão do Capítulo
Com base em Lakoff (1979; 1987), neste capítulo foi possível verificar que os
verbos que compõem a Construção Inceptiva do Português compartilham algumas
propriedades semânticas: em seu sentido lexical, expressam a noção de movimento e,
em parte dos V1fin, de movimento para um contêiner. Essa foi considerada no trabalho
uma restrição semântica aos verbos que preenchem a construção.
É relevante destacar que, por meio de evidências diacrônicas e tomando como
base o preenchimento com pegar, defendeu-se que a presença do verbo não contribui
apenas para a semântica da construção – conforme afirmado por Goldberg (2006) –
mas também para a escolha e motivação da preposição que nela se faz presente.
Foi possível notar que a Construção Aspectual Inceptiva preenchida com verbos
auxiliares como pegar, desandar, dar, etc. poderia, em princípio, ocorrer com qualquer
preposição locativa para introduzir o infinitivo (para, de, a, em...). No entanto, ao realizar
pesquisa diacrônica, constatou-se que a presença da preposição de na CI preenchida
por pegar, foi motivada pelo uso pleno deste verbo. Assim, há uma recorrência, nos
séculos, entre a preposição da estrutura recrutada para o uso do verbo como pleno e
aquela do uso aspectual, o que reitera a existência de uma pista diacrônica e sintática
para a escolha da preposição a ser empregada na CI.
Como observamos, a mudança do verbo em sentido pleno, lexical, do padrão
transitivo direto ou intransitivo parece motivar prototipicamente a escolha pela
preposição a nessas construções. Isso ocorre porque se finda a pista sintática para que
o falante escolha uma preposição, já que as construções prototípicas correspondentes
ao V1fin da CI tendem a não subcategorizar mais preposições, como vimos na análise
dos dados diacrônicos e sincrônicos. Por não haver mais pistas sintáticas que motivem
a escolha da preposição, resta ao falante, apenas, a pista semântica, do valor
semântico associado a movimento que a preposição a assume em nossa língua.
Da mesma maneira, quando a preposição de se faz presente em construções
aspectuais com pegar, isso é claramente justificável se observarmos o padrão transitivo
indireto do seu uso como verbo lexical, como notado nos dados diacrônicos.
117
Percebemos, também, o efeito do priming construcional ou da analogia em se tratando
dos preenchimentos com danar, os quais seriam motivados por aqueles com pegar.
Vimos, ainda, que, hoje, nos dados sincrônicos, foram encontrados casos em
que há mudança no padrão construcional, sem que haja, à primeira vista, perda
semântica da noção de inceptividade. Isso porque, na fala, a preposição tem
desaparecido entre o V1fin e o V2inf. Essa perda parece se relacionar a um processo de
gramaticalização pelo qual a construção passa. Para observar como isso parece
ocorrer, foi proposta uma rede construcional, levando-se em consideração as diferenças
formais representadas pela presença ou ausência de preposição.
Para constituir a rede, foi verificado se as construções prototípicas com o verbo
pegar apresentam alguma distinção na forma, a qual, não necessariamente, acarreta
mudança semântica. Essa distinção se baseia na presença ou não de preposição (de,
em) no complemento.
Essas construções prototípicas, conforme defendemos e mostramos na
configuração da rede, dão origem à Construção Aspectual Inceptiva, a partir daquela
preenchida por pegar em V1fin.
Além disso, dipôs-se um diagrama que postula sobre a Construção de Aspecto
Inceptivo e os diversos verbos e preposições que podem nela figurar, a fim de tornar
claro que o preenchimento em V1fin com pegar é apenas um dos diversos possíveis da
CI. Sendo assim, nota-se que várias redes de V1lexical > V1aspectual poderiam ser
constituídas como forma de se visualizar as possíveis mudanças motivadoras da nova
construção.
Assim, pode-se verificar a existência de relações contínuas entre construções
distintas com pegar que o conduzem a figurar na CI e as relações dele com os demais
preenchimentos na marcação de aspecto.
118
5. A GRAMATICALIZAÇÃO DA CONSTRUÇÃO DE ASPECTO INCEPTIVO NO
PORTUGUÊS
Segundo Heine (2006 [2003], p.579-580), a gramaticalização das expressões
linguísticas envolve o mecanismo da extensão. A extensão, também chamada de
generalização contextual, ocorre quando um “item linguístico pode ser usado em novos
contextos nos quais não era previamente empregado”. Tal mecanismo pode ser
exemplificado através do processo de gramaticalização das construções de futuro em
[be going to + Vinf] do Inglês. Nessas construções, o verbo go, que antes indicava um
deslocamento e que, portanto, subcategorizava sujeitos [+animados], passa a marcar
futuridade, podendo se combinar com uma série de verbos que nem mesmo
pressupõem qualquer ideia de movimento ou agentividade, os quais, por sua vez,
podem subcategorizar sujeitos [-animados], tais como fall, por exemplo, em sentenças
como “The building is going to fall” (cf. HOPPER & TRAUGOTT, 2003 [1993]).
A Construção Inceptiva (CI) do Português, estudada neste trabalho, compartilha
com a construção mencionada acima o fato de sinalizar uma categoria linguística
tipicamente expressa por verbos em nossa língua – o aspecto – e de constituir também
uma estrutura sintática composta por [V1fin (Prep) V2inf]. Entretanto, ao contrário do que
ocorre com a construção de futuro do Inglês (e também com a do Português), a posição
de V1fin da CI pode ser preenchida por uma variedade de verbos não tipicamente
aspectuais: nessa posição, cair, danar, deitar, desandar, desatar, disparar, entrar, pegar
e romper também podem ocorrer. Observe como isso se dá:
(56)
(57)
(58)
(59)
Queria chegar depressa à aldeia mas o caminho era difícil. A brancura dos montes só
lhe indicava a imensidão de tudo. Nem uma vereda, nem um rasto por onde soubesse
o sítio onde estava. Chegou tarde à Casa Grande e quando disse que o pastor velho
tinha morrido caiu a soluçar. Desde esse dia maldito, Albino, que conhece a vida
como os homens da aldeia, perdeu a alegria de menino. (CP, XX, NasTemp)
Lurdinha, a meninada pequena, os irmãos e os cunhados se mesclaram aos
convidados. Tecla chegou ao altar: - Mas, ora, cadê o noivo? - A chuva o atrasou. - Na
certa caiu no rio. - Quem sabe espera na sede? Nos palpites misturados, o tempo não
esperou, danou de passar depressa. Um irmão olhou lá fora, as sugestões
redobraram e nada de o noivo chegar. (CP, XX, BrAbrSan)
Também ela ia pressurosa ao encontro da amiga e camarada de infância, cuidando já
encontrá-la no lugar emprazado, à sombra da figueira. Ouvindo o apito de Afonso,
deitou a correr; e Miguel despeitado com a sofreguidão que ela mostrara, deixou de
responder ao camarada como costumava. (CP, XIX, BrAlenTil)
Mas era algo promissor. Percebia-se Raí solto, atento ao jogo, esperto em os
movimentos. Enfim, era um Raí redivivo. Eis que, em o segundo tempo, desandou a
119
(60)
(61)
(62)
(63)
(64)
fazer besteiras, uma atrás de a outra, exatamente quando se esperava que, Brasil em
a frente, ele iria aproveitar a chance para dar a grande volta por cima. (CP, XX,
BrFolha)
É até um lindo rapaz, corpo de esgrimista, olhos devoradores. Nasceu em S. Paulo,
chama-se Vitorino Maesa e partiu há dois meses para a Itália. Como me visse pálido,
aturdido, sem saber o motivo daquela emoção, sem saber que como um imbecil eu
tivera a carta na mão: - Estás apaixonado? Contrariei-te? Todas as mulheres são
excepcionais quando se lhes quer prestar atenção. Mas no mundo não há uma que
não tenha um segredo simples, que lhe mostra um reverso inteiramente diverso da
aparência.. E desatou a rir enquanto eu esforçava-me por fazer o mesmo. A mais
estranha moléstia A Afrânio Peixoto. (CP, XX, BrRio)
Se amolaram as palanganas, e lá se vão zunindo! - Aonde? - Para o mosteiro em
busca de asilo. Agora é assobiar-lhes às botas, ou aos calcanhares. - Pega! exclamou
um mais ardente e disparou a correr. Outros o seguiram maquinalmente. ao mesmo
tempo o meirinho com seus acólitos, capturando os dois improvisados minorenses, se
afastaram com eles, levando após a maior porção do povo. (CP, XIX, BrAlen)
Sales ama a esposa; está abatido e desvairado com a idéia de a perder. Hoje de
manhã, muito cedo, não tendo dormido mais de duas horas entrou a cogitar no
desastre próximo. Desesperando da terra, voltou-se para Deus; pensou em nós, e
especialmente em mim que sou o santo do seu nome. (CP, XIX, BrMacSantos)
A paisaninha só teve alma e vida e coração para o moço.. ele também estava
entregue, de rédea no chão. Aquela visita trazia água no bico.. era o trato de
casamento. Depois que o furriel se foi as velhas pegaram a fazer rendas de bilro e
outros preparos do aprontamento da noiva. A roseira estava em todo o viço: recendia
que era um gosto e bordava de vermelho o caniçado da horta, que se via desde longe.
(CP, XX, BrLopes)
Pôs-se à escuta e os olhos foram-se-lhe enchendo d' água, uma opressão pesou-lhe
no peito como se lho fosse esmagando e, de repente, afundando a cabeça no
travesseiro, rompeu a chorar desesperadamente. (CP, XX, BrNeto)
Dessa forma, a análise da ocorrência ou não de extensão na ou da CI obriga que
se considerem as possibilidades – e restrições – de co-ocorrência de determinado
marcador aspectual (V1fin) com determinado verbo pleno (V2inf). Isso porque, ao mesmo
tempo em que a construção estende as suas possibilidades combinatórias, tornando-se
mais produtiva, alguns dos lexemas que ocupam a posição de V1fin podem apresentar
restrições de co-ocorrência com determinados tipos semânticos de verbos infinitivos.
Neste capítulo, buscaremos observar se a manutenção de estruturas semânticas
vestigiais nos verbos que ocupam a posição de V1fin faz com que suas possibilidades
de combinação com V2inf sejam restringidas pelo tipo semântico deste último. Com
objetivo de verificar a validade dessa hipótese, foram levantadas ocorrências reais da
CI em corpora e analisados os tipos semânticos dos verbos infinitivos que nela
aparecem. A fim de verificar a hipótese a respeito dessas possibilidades combinatórias
e suas restrições, analisaram-se os preenchimentos não canônicos de V1fin na CI, como
os que foram citados de (56) a (64).
120
5.1 Gramaticalização
Hopper & Traugott (2003 [1993]) mostram como o termo gramaticalização se
define com relação aos programas de pesquisa em linguística. Segundo eles, nessa
perspectiva, o termo se liga à parte do estudo da língua que se compromete com
questões relativas à maneira como os itens lexicais e as construções passam a ser
usados com funções gramaticais em certas línguas ou à forma como os itens
gramaticais se desenvolvem assumindo novas funções gramaticais.
Ao apresentarem o exemplo de gramaticalização do auxiliar do inglês be going
to, os autores reafirmam o princípio da unidirecionalidade do fenômeno, uma vez que,
como ocorre com os verbos de movimento, que passam a funcionar como auxiliares
marcadores de futuro, as estruturas menos gramaticais passam a figurar, com o tempo,
como mais gramaticais (HOPPER & TRAUGOTT, 2003 [1993], p. 16).
Ao tratar dos esquemas cognitivos formadores de auxiliares nas línguas em
geral, Heine (1993) considera o esquema de movimento como básico. Segundo o autor,
a proposição “X moves to/from Y” gera a categorização de auxiliar e expressa
comumente a noção de futuro. Segundo ele, os principais esquemas de eventos
relevantes para a compreensão do comportamento das construções com auxiliares são
os mostrados no Quadro 12.
Forma conceptual
a. X está em Y
b. X move para/de Y
c. X faz Y
d. X quer Y
e. X torna-se Y
f. X é (como) Y
g. X está com Y
h. X tem Y
i. X está como Y está
Classificação da proposição
Localização
Movimento
Ação
Volição
Mudança de estado
Equação
Companhia
Posse
Modo
Quadro 12: Esquemas de eventos fontes para as categorias gramaticais de tempo e aspecto - Heine
(1993, p. 31).
Heine (1993) propõe que os esquemas de eventos (elementos lexicais) são
tratados como itens de origem e os conceitos gramaticais, constituídos com base
121
nesses itens, são elementos alvos. Segundo ele, a transição de um conceito de origem
para o alvo não é um processo discreto, e, sim, contínuo.
Na passagem de um conceito de origem lexical para um conceito alvo
gramatical, é gerada a ambiguidade, já que uma mesma expressão pode se referir
simultaneamente a dois conceitos diferentes. Ao exemplificar com a formação da
construção is going to, mostra que o verbo passa por distintos estágios, inclusive um
ambíguo, em que é possível advir dela o sentido de movimento ou de tempo futuro. De
acordo com ele, esse é um estágio necessário na reanálise dos verbos como auxiliares,
como pode ser notado no Quadro 13.
Estágio
Conceito
I
II
III
John is going to town
John is going to work
John is going to get
soon
soon
sick soon
Fonte
Fonte / Alvo
Alvo
Quadro 13: Formação de going to como marcador de tempo futuro, através de um continuum constituído
pelos polos source (origem) e target (alvo).
A unidirecionalidade também é defendida por Heine et al. (1991), os quais
defendem que o processo de gramaticalização é metaforicamente estruturado e, do
ponto de vista cognitivo, costuma corresponder a um cline como o que segue: pessoa >
objeto > processo > espaço > tempo > qualidade. Cada uma dessas categorias
representaria um domínio conceptual que é importante para a estruturação da
experiência. Assim como apresentada pelos linguistas, a disposição linear das
categorias é unidirecional: à direita estão as mais abstratas e à esquerda, as menos
abstratas.
Segundo Heine e Kuteva (2005), a teoria da gramaticalização tem como meta
descrever como as formas e as construções gramaticais surgem e se desenvolvem no
tempo e, ainda, explicar porque elas são estruturadas da forma como são. A fim de
entender e descrever essas evoluções de padrões de uso e categorias gramaticais, os
autores apresentam os parâmetros de gramaticalização (HEINE & KUTEVA, 2005, p. 15
e 80; 2006, p. 58), como se vê a seguir:
122
(a) Extensão (ou generalização contextual): o uso em novos contextos leva a novos
significados.
(b) Dessemantização (ou desbotamento semântico): perda de traços do conteúdo.
(c) Decategorização: perda das propriedades morfossintáticas características de formas
lexicais ou menos gramaticalizadas.
(d) Erosão (ou redução fonética): perda de substância fonética.
Lehman (2002 [1982], p.112-146) propõe processos cujos resultados são
caracterizadores de um estágio mais ou menos avançado de gramaticalização. O
primeiro deles, ligado ao parâmetro da Integridade, é a Atrição. A definição desse
processo aponta para a diminuição da proeminência de um signo em relação ao
restante do sintagma através de redução de massa fonológica e de substituição de um
significado mais lexical por um mais gramatical47. O segundo, conhecido como
Paradigmatização, caracteriza-se pelo fato de que as formas mais gramaticalizadas
tendem a integrar paradigmas mais bem definidos. Esse processo se relaciona ao
parâmetro da Paradigmaticidade. Relacionado ao parâmetro da Variabilidade
Paradigmática, o processo da Obrigatoriedade refere-se ao fato de que o uso de uma
dada forma, que antes era opcional na língua, torna-se obrigatório. Os três processos
acima, bem como os parâmetros a eles correspondentes, operam no eixo
paradigmático.
Para o eixo sintagmático, o autor propõe mais três processos, também
relacionados a um parâmetro cada. A Condensação – ligada ao parâmetro do Escopo –
representa o encurtamento das formas gramaticalizadas, enquanto o da Coalescência –
ligada à Conexidade – diz respeito à aglutinação de formas adjacentes em um todo
mais coeso. Por último, pelo processo de Fixação, a ordem dos constituintes que antes
era livre tende a se tornar fixa. Esse processo diz respeito ao parâmetro da
Variabilidade Sintagmática.
Hopper
(1991)
também
apresenta
princípios
caracterizadores
da
gramaticalização, que permitem a identificação dos primeiros estágios do processo. O
primeiro princípio é conhecido como Estratificação e caracteriza-se pela emergência de
novas estruturas, de funções semelhantes ou idênticas às antigas. As novas podem
47
A Atrição está relacionada aos processos de Erosão e Dessemantização, conforme proposto por Heine
(2003).
123
coexistir com as estruturas antigas da língua e funcionar como “alternativas estilísticas”
e levar ou não séculos para substituirem as antigas. O segundo princípio é o da
Divergência, de acordo com o qual um item em processo de gramaticalização, ao se
tornar clítico ou afixo, pode manter sua forma-fonte, que permanece como um elemento
autônomo, igualmente sujeito a mudanças que atingem os membros de sua classe. De
acordo com a Especialização, o número de formas empregadas para exprimir um
significado pode sofrer uma redução e um número menor de formas passa a expressar
significados gramaticais mais gerais. Este princípio – da especialização - aproxima-se
da Obrigatoriedade, de Lehman, sendo que um foca no estágio final em que a estrutura
se torna obrigatória e outro, no processo. Podemos citar, também, o princípio da
Persistência, segundo o qual
alguns traços semânticos originais permanecem na
estrutura em processo de gramaticalização, e a Decategorização, que representa a
perda de traços categoriais primários, associados a uma determinada classe.
Os princípios aqui apresentados revelam o caráter dinâmico da gramática,
representando as constantes mudanças da língua que são consequências de buscas
incessantes pelos falantes da estruturação de novas expressões adequadas às
diferentes situações comunicativas. Logo, o processo de gramaticalização não pode ser
encarado como algo repentino, mas, sim, gradual.
A Construção do Aspecto Inceptivo no Português é produto de gramaticalização,
uma vez que verbos que antes apresentavam sentidos lexicais, passam a assumir
funções de auxiliares, visto que se realizam como marcadores de aspecto
(dessemantização e decategorização). Ao mesmo tempo, combinações entre V1fin e
V2inf, que eram improváveis quando V1fin era utilizado com sentido lexical, tornam-se
possíveis à medida em que este se torna um auxiliar (extensão).
Tanto os parâmetros propostos por Lehman (2002 [1982]), Heine e Kuteva
(2005; 2006), quanto os princípios propostos por Hopper (1991) podem ser aplicados
na análise da CI. Apesar da aparente clareza do processo de gramaticalização da CI,
algumas questões emergem justamente pelo fato de se estar tratando da
gramaticalização de uma construção e não de um item, quais sejam:
124
i.
Em que medida o parâmetro da Extensão (HEINE & KUTEVA, 2005;
2006) deve ser analisado em uma construção cujas posições tanto de V1fin
quanto de V2inf podem sofrer restrições de preenchimento?
ii.
Em que medida o princípio da Persistência (HOPPER, 1991) restringe a
aplicação do parâmetro da Extensão?
Com objetivo de responder essas questões, foram levantadas ocorrências da CI
no CP.
Dada a intenção deste capítulo de averiguar a influência da semântica vestigial
(também chamada de Esquema Imagético Subjacente, cf. SWEETSER, 1989; 1990)
dos verbos que podem ocupar a posição de V1fin na CI sobre a possibilidade de
extensão de tal construção, foram investigados os verbos que não marcadamente são
aspectuais canônicos48 – como cair, danar, deitar, desatar, desandar, disparar, entrar,
pegar e romper.
Através do mecanismo de busca do Córpus do Português (CP), foram
investigadas, em todos os séculos e em todos os textos disponíveis, as ocorrências dos
verbos listados acima seguidos de um verbo no infinitivo. Após refinamento, foram
encontrados, ao todo, 945 dados. Levantadas as instanciações da CI do Córpus do
Português, elas foram agrupadas tomando como base o verbo que ocupa a posição de
V1fin e, posteriormente, investigadas segundo o tipo semântico dos verbos que ocupam
a posição V2inf.
Com o intuito de verificar os padrões de combinação V1fin e V2inf na CI,
buscamos elaborar uma lista de tipos semânticos de V2inf para que pudéssemos notar
suas semelhanças e regularidade de ocorrência. Com base em Noonan (2007, p. 99),
propusemos alguns tipos verbais, os quais estão numerados abaixo de 1 a 6. Os
demais foram criados com base na observação dos dados e tendo em vista aqueles
apresentados por Halliday (1994). Seguem na Tabela 1 abaixo os tipos verbais que
foram analisados e, ainda, exemplos de cada um deles.
48
Como definido na introdução, são considerados aspectuais não canônicos aqueles verbos que, em seu
sentido pleno, não denotam fase. Entretanto, em uma configuração sintático-semântica específica, eles
passam a figurar como marcadores de aspecto inceptivo.
125
Número
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
Tipo verbal
Manipulativo
Desiderativo
Perceptivo
Processo mental
Atitude proposicional
De elocução
De deslocamento
De ação
Estativo atributivo
Fenômeno da natureza
Mudança de estado
De sentimento
Emotivo
Exemplos
Ordenar, persuadir, fazer com que
Querer, desejar, ter vontade de que
Ver, ouvir, escutar, sentir
Saber, entender, compreender
Achar, acreditar, crer
Dizer, falar, contar
Ir, vir, andar, entrar
Fazer, pegar
Ficar, ser, permanecer, estar
Chover, nevar
Secar, passar [o tempo]
Amar, gostar, odiar
Chorar, entristecer, soluçar [de tristeza].
Tabela 1: Tipos semânticos de V2inf
O levantamento do tipo semântico de V2inf foi associado ao século em que
primeiro ocorreu cada tipo, a fim de analisarmos o parâmetro da extensão ou não na
construção.
5.2 Possibilidades de Combinação entre V1fin e V2inf na CI
Como já foi proposto por Goldberg (1995, 2010), os verbos não se inserem
aleatoriamente nas construções. Tendo como base esse fato, analisamos a CI levando
em conta não apenas o primeiro verbo da construção, o qual é o indicador do aspecto
inceptivo, mas, ainda, o V2inf. Estes foram agrupados em tipos semânticos, os quais
foram explicitados na seção anterior. A Tabela 2 mostra, em porcentagem aproximada,
a ocorrência de cada tipo verbal associado aos distintos verbos que podem preencher a
posição de V1fin estudados nesta tese. Nela, será possível observar a quais tipos de
V2inf cada V1fin se liga. Estão tonalizados em cinza aqueles dados mais representativos
de cada agrupamento, sendo que eles podem estar em tom mais ou menos escuro, a
depender
do
número
maior
ou
menor
de
ocorrências
em
cada
caso.
126
V1 fin
V2 inf
Danar
a
Danar
de
Rom
per a
Desand
ar a
Dispa
rar a
Desa
tar a
Cair
a
Pegar
a
Pegar
de
Entrar
a
Total de dados
3
2
68
33
22
237
8
61
8
339
Manipulativo
3
Desiderativo
2
Perceptivo
16
Processo
mental
Atitude
proposicional
De elocução
0.42%
25
50%
0.42% 12.5%
12
162
7.8%
De ação
332 66.6%
18%
De sentimento
TOTAL
0.6%
1.85%
5.6%
2.46%
2.07%
0.62%
1.6%
15.15
%
12.12
%
33.3%
17.66
11.1%
%
4.21%
11,5%
36.36
%
9.7%
8.19%
13%
7.37% 11.1% 55.5%
9.9%
9.7%
37.5% 70.5%
75%
53.4% 22.2%
29.01
%
2.07%
4.32%
14
de
162
12.5% 3.25%
6.06%
De
deslocamento
Emotivo
11.1%
3.03%
6.2%
da
9
Deitar a
0.6%
87
Estativo /
atributivo
Fenômeno
natureza
Mudança
estado
Entrar
de
6
50%
11
3.03%
1.3%
3.03%
0.8%
0.31%
12.5% 1.63%
33.3% 1.23%
3
0.9%
278 33.3%
100%
100%
68%
24.24
73.41
52.5%
37.5% 6.55%
%
%
100%
100%
100%
100%
100%
100%
100%
6.78% 11.1%
3.7%
100%
100%
100%
Tabela 2: Distribuição das ocorrências da CI com base na combinação de tipos semânticos de V2 com
49
cada possibilidade de preenchimento de V1fin .
Verifica-se que, dentre as ocorrências da CI, na posição de V2inf, predominam os
verbos de ação. O segundo tipo mais recorrente de V2
inf
seriam os verbos emotivos e,
o terceiro seriam os de deslocamento.
É importante notar a presença de preposições distintas nos V1fin danar, entrar e
pegar, os quais podem ser seguidos de a ou de.
Para danar, verifica-se quase
distribuição complementar. Para os outros, uma certa superposição.
Como é possível notar pela leitura da Tabela 2, as instanciações da Construção
Inceptiva preenchida por pegar a, pegar de, entrar a e deitar a se ligam, sobretudo, a
49
As porcentagens foram calculadas verticalmente. Foram eliminados da contagem de dados desta
tabela duas ocorrências que se mostraram únicas, quais sejam, do V1fin (romper) associado ao V2inf (concluir) e
do V1fin (entrar) ligado ao V2 inf (possuir). O primeiro V2inf se encaixava na classe dos aspectuais e o segundo,
na classe dos possessivos, as quais foram eliminadas deste estudo por apresentarem apenas 1
ocorrência. Não houve ocorrências em V2inf de existenciais.
127
verbos de deslocamento e/ou de ação. A força motivadora das possíveis regularidades
será discutida neste capítulo.
Além de observar a que tipos semânticos de V2inf os V1fin da CI se combinam, é
interessante perceber a quantos tipos verbais distintos cada possibilidade de
preenchimento da Construção Inceptiva se liga. Vê-se que o preenchimento em V1fin
com danar a e de é aquele que, de acordo com os dados, mostrou-se menos produtivo
na CI, ou seja, associou-se a menos tipos verbais (apenas a dois tipos verbais distintos
em V2inf). Isso é o contrário do que ocorre com entrar a. Na posição de V1fin com entrar
a, houve associação de doze tipos semânticos distintos de V2inf.
Nota-se, em geral, que os verbos mais frequentes nas construções inceptivas
são também aqueles que se associam a mais tipos verbais em V2inf, ou seja, os verbos
que apresentam maior frequência token são também aqueles com maior frequência
type50.
Porém, essa relação direta entre números de ocorrências e associação a tipos
verbais mais variados não ocorre no caso de desandar. Esse, apesar de não figurar
entre os mais frequentes, relaciona-se a, ao menos, oito tipos verbais em V2inf. No
entanto, verbos cuja aparição na CI é mais recente, caso de danar, que só aparece a
partir do século XX, tendem a se combinar com menos tipos verbais.
Outra análise realizada com intuito de atestar parte de nossa hipótese será
apresentada por meio dos gráficos que seguem. Os gráficos foram nomeados e
organizados tendo em vista o V1fin e a preposição a que se associa na CI. Na linha
horizontal, observam-se os séculos de ocorrência de cada preenchimento da
construção e as cores e formas apontam para o tipo de V2inf que preenche a CI, de
acordo com pesquisa de dados realizada no Córpus do Português. Na linha vertical,
pode-se ver o número real de ocorrências de cada V1fin associado ao V2inf em
determinado século:
50
A distinção de frequência token e type foi tomada com base em Bybee (2003). Token ou freqüência
textual é o número de ocorrências de uma unidade, por vezes uma palavra ou morfema,
independentemente do significado advindo dela. A frequência type refere-se à frequência de um padrão
particular de dicionário.
128
Gráfico 1: Ocorrências de CI preenchidas por cair a, na posição de V1fin, através dos séculos.
No Gráfico 1, em que a posição de V1fin é preenchida por cair seguido da
preposição a, nota-se que a primeira ocorrência com ele, datada do século XVIII,
acontece com V2inf de ação. Percebe-se, ainda, que o V1fin cair a se associa a V2inf de
processo mental, de mudança de estado e emotivo. Há maior número de ocorrências
de V2inf do tipo emotivo no século XIX.
Vejamos agora as ocorrências de preenchimento da mesma construção com
danar, subcategorizando as preposições a – Gráfico 2 – e
de – Gráfico 3 –
respectivamente:
Gráfico 2: CI preenchida por danar a, na posição de V1fin, através dos séculos.
Gráfico 3: CI preenchida por danar de, na posição de V1fin, através dos séculos.
129
O verbo danar ocorre na posição V1fin apenas no século XX, o que mostra ser
recente com relação aos demais. Danar a co-ocorre com V2inf de ação e emotivo. Já
danar de, associa-se a apenas um verbo de processo mental e de mudança de estado.
O número de ocorrências com V1inf danar é pequeno.
Já com desandar a, esse número se mostra bastante saliente. Veja-se o Gráfico
4:
Gráfico 4: CI preenchida por desandar a, na posição de V1fin, através dos séculos.
Desandar a começa a ser empregado na posição de V1 no século XIX, época em
que co-ocorre com verbos de atitude proposicional, percepção, ação, mudança de
estado, emoção e deslocamento. No século XX, observa-se uma expansão contextual e
desandar a passa a anteceder também verbos de elocução e fenômeno da natureza.
Também presente a partir do século XIX, porém associado a menos tipos de
V2inf, encontramos a CI preenchida por disparar a – Gráfico 5:
Gráfico 5: CI preenchida por disparar a, na posição de V1fin, através dos séculos.
130
Dentre os dados com o V1fin
(disparar)
na CI, é relevante destacar a sua forte
associação a verbos que marcam deslocamento, ação e a verbos emotivos, nos
séculos XIX e XX. Foram encontradas 8 ocorrências de V1fin ligado a verbos de
movimento e 12, de emoção.
Em V1fin preenchido por romper a51, na CI, o número de dados mostrou-se ainda
maior:
Gráfico 6: CI preenchida por romper a, na posição de V1fin, através dos séculos.
Como é possível notar por meio do Gráfico 6, esse V1fin associou-se a verbos de
elocução, de deslocamento, de ação e de emoção, destacando-se esses últimos. Vejase que foram encontrados 28 dados de V2inf emotivos no século XIX e 17 no século XX.
Essa alta associação a emotivos também ocorreu com desatar a.
No Gráfico 7, destacam-se as ocorrências de V2inf emotivos nos séculos XIX e
XX. Embora a construção preenchida com desandar tenha surgido no século XVIII e
suas primeiras aparições tenham ocorrido com V2inf de mudança de estado, há apenas
dois dados de V2inf que denotam essa ideia nesse século.
51
Como explicitado em nota anterior, foi encontrada apenas uma ocorrência em que a posição de V2inf foi
preenchida por um verbo cuja semântica expressa o término de um estado de coisas e isso aconteceu
com o V1fin preenchido por romper. Observe:
Como tinha vindo a representar, como dissemos, ao Augustíssimo Rei, e a implorar o remédio para a
Gentilidade dos miseráveis, e desamparados Índios, foi tal o fogo, com que declamou, que (atónito, e
assombrado o auditório) rompeu a concluir o Sermão neste vivo apóstrofe, voltando-se já para Deus, já
para ElRei alternadamente.( A Vida do Padre António Vieira, 1727)
131
Gráfico 7: CI preenchida por desatar a, na posição de V1fin, através dos séculos.
O preenchimento com pegar surge na CI no século XIX e pode se dar com as
preposições a e de, como será possível notar nos Gráficos 8 e 9 a seguir:
Gráfico 8: CI preenchida por pegar a, na posição de V1fin, através dos séculos.
132
Gráfico 9: CI preenchida por pegar de, na posição de V1fin, através dos séculos.
Tanto pegar a quanto pegar de se ligam, sobretudo, a V2inf de ação. É importante
notar que, no século XX, há aumento de ocorrências com pegar seguido de a, fato que
aponta para a tendência ao desaparecimento de Construção Aspectual Inceptiva
preenchida com pegar de.
Dentre os preenchimentos mais antigos da Construção Aspectual Inceptiva na
língua, temos aqueles em que a posição de V1fin é ocupada por deitar e por entrar,
ambos V1fin seguidos da preposição a. Observem-se os Gráficos 10, 11 e 12.
Gráfico 10: CI preenchida por deitar a, na posição de V1fin, através dos séculos.
133
Em V1fin preenchido por deitar, vemos a alta associação com V2inf indicando
deslocamento a partir do século XV. Ainda, há de se destacar, principalmente, o
número de ocorrências associadas a verbos desse tipo no século XIX. Provavelmente,
por ser um preenchimento de V1fin mais antigo na língua, ele se liga a tipos diversos de
V2inf.
O verbo entrar pode ser seguido das preposições a e de na CI. No que tange a
entrar seguido por de, foram encontradas apenas 9 ocorrências. Esse preenchimento
da construção nasce no século XIX, como se pode notar abaixo:
Gráfico 11: CI preenchida por entrar de, na posição de V1fin, através dos séculos
O V1fin preenchido por entrar a teve maior número de ocorrências, associando-se
a muitos tipos de V2inf:
134
Gráfico 12: CI preenchida por entrar a, na posição de V1fin, através dos séculos.
O V1fin entrar se liga, segundo os dados, sobretudo a verbos de ação e de
elocução a partir do século XV. Esse foi o preenchimento não canônico da CI que
representou o maior número de dados na busca realizada no CP, fato que também
justifica sua alta associação a V2 inf distintos.
A Tabela 3 apresenta a relação entre V1fin e V2inf por século e a mancha em
cinza e o aumento de linhas ajudam na percepção da extensão.
Ocorrências de [V1fin cair (Prep) V2inf]
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
1
1
1
1
1
2
1
XV
Ocorrências de [V1fin danar (Prep) V2inf]
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
2
1
1
1
Tipo Semântico de V2inf
Ação
Mudança de Estado
Processo mental
Emoção
Tipo Semântico de V2inf
Ação
Mudança de Estado
Processo mental
Emoção
135
XV
4
2
Ocorrências de [V1fin deitar (Prep) V2inf]
XVI
XVII
XVIII
XIX
10
5
15
1
4
65
2
5
2
2
1
XX
13
1
20
4
4
2
1
Ocorrências de [V1fin desandar (Prep) V2inf]
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
1
10
2
6
2
2
1
1
5
1
XV
Ocorrências de [V1fin desatar (Prep) V2inf]
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
2
138
36
3
20
7
16
2
8
1
2
1
1
Ocorrências de [V1fin disparar (Prep) V2inf]
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
6
6
8
2
Tipo Semântico de V2inf
Ação
Percepção
Deslocamento
Estado
Emoção
Manipulativo
Fenômeno da natureza
Processo mental
Sentimento
Atitude proposicional
Tipo Semântico de V2inf
Ação
Emoção
Deslocamento
Percepção
Mudança de Estado
Elocução
Fenômeno da natureza
Tipo Semântico de V2inf
Mudança de Estado
Emoção
Ação
Deslocamento
Elocução
Fenômeno da natureza
Atitude proposicional
Manipulação
Tipo Semântico de V2inf
Ação
Deslocamento
Emoção
136
XV
3
Ocorrências de [V1fin entrar (Prep) V2inf]
XVI
XVII
XVIII
XIX
7
11
56
70
3
2
9
36
1
8
1
8
10
9
2
1
1
20
19
6
1
1
1
Ocorrências de [V1fin pegar (Prep) V2inf]
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
19
3
3
1
1
XX
36
11
2
1
3
7
1
1
-
XX
30
4
3
3
1
Ocorrências de [V1fin romper (Prep) V2inf]
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
28
17
7
5
3
1
2
3
Tipo Semântico de V2inf
Ação
Elocução
Percepção
Estado
Processo mental
Sentimento
Emoção
Deslocamento
Atitude proposicional
Desejo
Fenômeno da natureza
Manipulativo
Tipo Semântico de V2inf
Ação
Elocução
Deslocamento
Emoção
Percepção
Atitude proposicional
Tipo Semântico de V2inf
Emoção
Ação
Elocução
Deslocamento
Tabela 3: Ocorrências da CI preenchidas em V1fin por entrar e romper ao longo dos séculos. A mancha
em cinza aponta para a extensão da construção no que tange aos tipos semânticos de V2.
A título de esclarecimento de observação e análise dos dados tendo em vista a
aplicação dos parâmetros da gramaticalização, que será feia em 4.3, foquemos em dois
preenchimentos que serão importantes elementos de análise: romper e entrar.
137
Ocorrências de [V1fin entrar a V2inf]
XV
XVI
XVII XVIII
3
7
11
3
XX
56
70
34
Ação
2
9
35
11
Elocução
1
-
8
2
Percepção
1
-
6
-
Estado
10
9
-
Processo mental
2
1
-
Sentimento
1
20
2
Emoção
18
7
Deslocamento
6
1
Atitude proposicional
1
1
Desejo
1
-
Fenômeno da natureza
Ocorrências de [V1fin romper a V2inf]
XV
XVI
Tipo Semântico de V2inf
XIX
XVII XVIII
Tipo Semântico de V2inf
XIX
XX
28
17
Emoção
7
5
Ação
3
1
Elocução
2
3
Deslocamento
Tabela 4: Ocorrências da CI preenchidas em V1fin por entrar e romper ao longo dos séculos. A mancha
em cinza aponta para a extensão da construção no que tange aos tipos semânticos de V2.
Na Tabela 4, nota-se que os primeiros dados de entrar a na CI ocorrem no
século XV com os verbos de ação, aumentando gradativamente a frequência de uso no
século XVII. Nos séculos XVIII e XIX, há crescimento abrupto no número de dados em
que V2inf é preenchido por verbos de ação e aumento de ocorrências com V2inf de
elocução e emoção. No século XX, há uma queda vertiginosa no número de
ocorrências da CI com entrar a, sendo que os V2inf de ação e de elocução continuam
preponderantes com relação aos demais.
A instanciação com entrar a na CI representa, dentre os preenchimentos da
Construção Inceptiva menos canônicos, a mais antiga, surgindo no século XV. Uma das
138
possibilidades de preenchimento em V1fin mais recente, segundo os dados, é a de
romper. Um cotejo entre as duas instanciações da CI mostra:
•
as ocorrências em V1fin com entrar mostram-se mais produtivas, contrastando com
aquelas preenchidas por romper, que são menos produtivas;
•
V1fin entrar se associa a 11 tipos semânticos distintos de V2inf, enquanto romper se
associa a 4;
•
as primeiras construções com entrar ocorrem no século XV e com romper, no século
XIX;
•
enquanto V1fin entrar se associa com maior frequência a verbos de ação, romper o
faz com verbos de emoção.
É importante ressaltar que essa alta associação de V1fin a tipos semânticos
distintos de V2inf parece estar ligada ao fato de o preenchimento da CI com romper ser
mais recente, enquanto o com entrar ser o mais antigo nos dados. Nota-se também, em
geral, que os verbos mais frequentes na Construção Inceptiva são também aqueles que
se ligam a mais tipos verbais em V2inf.
Como se pôde notar, em alguns casos, as ocorrências apontam para uma forte
associação de um preenchimento específico de V1fin na construção aspectual a um tipo
de V2inf também determinado. Isso nos leva a notar uma ligação não aleatória entre os
verbos da construção, o que será analisado nas seções que se seguem.
5.3 Gramaticalização na CI
A pesquisa de dados mostrou que, ao longo dos séculos, a CI experimenta um
crescimento contínuo no número de tipos semânticos de V2inf que podem a ela se
vincular, o que caracteriza o parâmetro da Extensão (cf. HEINE & KUTEVA, 2005;
2006). Por outro lado, é possível perceber que determinados tipos semânticos de V2inf
associam-se preferencialmente a instanciações da CI preenchidas por verbos
específicos, o que, segundo a hipótese desenvolvida neste trabalho, deve-se à
manutenção – ou Persistência – de estruturas semânticas subjacentes nos verbos que
ocupam a posição de V1fin. É a esses pontos da análise que voltaremos nossa atenção.
139
5.3.1 O Parâmetro da Extensão na CI
Segundo Heine e Kuteva (2005; 2006), o mecanismo da extensão se traduz no
conceito de que o uso em novos contextos motiva novos significados. Tal expansão de
possibilidades de emprego de uma dada forma – a Construção Inceptiva, no caso deste
trabalho – torna-se possível, uma vez que há a perda de ancoramento de seu
significado na realidade percebida pelo falante. Em outras palavras, como a Construção
Inceptiva, ao longo do processo de gramaticalização, tem o significado de V1fin
esvaziado de seu conteúdo mais lexical e preenchido por um sentido gramatical de
aspecto – fundado na semântica vestigial dos verbos que podem ocupar essa posição,
conforme se verá na seção posterior –, a posição de V2inf passa a poder ser preenchida
por verbos cuja combinação com os respectivos V1fin seria improvável, caso um verbo
como entrar, por exemplo, mantivesse seu sentido lexical de ‘movimento para dentro’.
Vejam-se os exemplos de (65) a (68) abaixo:
(65)
(66)
(67)
(68)
A iija. he se algûû homë ouuesse conpradas as uhuas dalgûã vinha ou fructo dalgûãs
aruores dortas. ou doutra herdade & ouuesse pagado o preço. entotõ poderya entrar
a colher o fructo que conprou & o ssenhor da erdade nõ lhi pode defender a entrada.
pero o quisesse fazer. (CP, XIV, Afonso:Partida3)
O que suposto, respondendo agora à primeira pergun ta, há de se dizer, que os
primeiros progenitores dos índios da América (segundo esta opiniao) entraram a
povoá-la sucessivamente com os que entraram a povoar a ilha de Atlante; pois tudo
era a mesma terra, mais, ou menos distante das Colunas de Hércules. E foi muito
antes, que na dita ilha reinasse o Príncipe Atlante, que sucedeu nos anos da criaçao
do mundo 2334 segundo o cômputo dos Autores que descrevem este seu reinado, e o
de outro seu irmao, nesta ilha. (CP, XVII, Vasconcelos:Jesus)
Chamei então o meu criado - que é velho e minhoto - disse-lhe que daqui em diante,
quando lhe pedisse o rocló, devia trazer-me o chambre. O criado pôs as mãos às
ilhargas, e entrou a rir como um perdido. Perguntei-lhe por que se ria, e repeti-lhe a
minha ordem.
- Mas o patrão há de me perdoar se lhe digo que não entendo. Então o chambre
agora é rocló?
-Sim, que tem?
- É que lá na terra rocló é outra cousa, e um capote curto estreito e de mangas.
Parece-me tanto com chambre, como eu me pareço com o patrão, e mais não sou
feio. (CP, XIX, Machado:Bons)
Novos archotes, gente às janelas, luzes, magotes de povo ao longo da rua irregular
por onde o entêrro passa.. Depois, tornam-se a ouvir os marulhos do Tejo, pela
direita, a dois tiros d' espingarda, e alvejam como montanhas d' ossos, a um lado e
outro do caminho, os depósitos de pedra dos canteiros de Lisboa. Entra a chover,
grandes franjas de nuvens que zebram o céu, parece que se alongam cada vez mais,
como enormes crepes. Por momentos di-las-hieis miragens d' árvores gigantes,
criptomérias, cupressos, wellingtónias, todos os monstros da flora antediluvial dos'
140
velhos continentes, com a sua sensação de pesadelo subterrâneo e mina de hulha, a
sua luz hiperbórea, e a frialdade medular que infundem as grandes obras da natureza
em via de regressão ao eterno nada. (CP, XIX, Almeida: Gatos 1)
Nota-se que, em (65), o verbo entrar ainda mantém seu sentido de ‘movimentarse para dentro’, uma vez que, ao sujeito que pagou pelas uvas ou frutos, é assegurado
o direito de entrar na propriedade daquele que os vendeu para colhê-los. Assim, a
expressão em destaque “entrar a colher” não é uma instanciação da CI, mas, sim, a
junção de uma clásula núcleo – “entõto poderya entrar” – a uma cláusula hipotática de
finalidade – “a colher”. Reforça essa análise o fato de que, no mesmo trecho, a lei em
questão prevê que o dono da terra cujas uvas foram compradas “nõ lhi pode defender a
entrada”, mesmo que o queira fazer.
Já em (66), a leitura “cláusula núcleo + hipotática de finalidade” coexiste com a
leitura aspectual, na medida em que é possível tanto interpretar que os primeiros
progenitores dos índios americanos entraram na América para povoá-la (ou povoandoa) ao mesmo tempo em que o faziam os atlantes, quanto que tais progenitores
começaram a povoar a América ao mesmo tempo em que se começava a povoar a Ilha
de Atlante. A ambiguidade é sustentada pelo fato de o continente americano poder ser
entendido como o lugar em que se entra, o que levaria à manutenção da semântica
lexical do verbo entrar.
Já em (67), tal possibilidade de leitura de entrar como verbo pleno não mais
existe. O patrão e o criado encontram-se travando um diálogo no mesmo cômodo, o
que inviabiliza a leitura de entrar como ‘deslocar-se para dentro’. Apenas a leitura
aspectual é possível. O mesmo ocorre em (68), porém, nesse exemplo, é possível ver o
processo de extensão de forma nítida. Observe-se que em “Entra a chover” não há
sequer a subcategorização de um sujeito, o que caracteriza um contexto de uso
totalmente novo para as instanciações da CI.
Com o emprego em novos contextos, o V1fin entrar deixou de subcategorizar
sujeitos [+ animados] e, como se pode ver em (68), deixou mesmo de subcategorizar
qualquer sujeito. Com base em exemplos como esses e também com base nos dados
da Tabela 1, na qual é possível observar o aumento do número de tipos semânticos de
V2inf presentes na CI, pode-se argumentar em favor da ocorrência de Extensão ao
longo da gramaticalização dessa construção. Entretanto, como se verá a seguir, esse
141
não
é
um
processo
que
ocorre
aleatoriamente
ou
indiscriminadamente,
independentemente dos verbos em V1fin.
5.3.2 O Princípio da Persistência na CI
Hopper (1991), ao tratar dos princípios da gramaticalização, com o intuito de
checar o processo no início, preocupa-se mais em ressaltar seu caráter gradual do que
em propor critérios capazes de distinguir a gramaticalização de outros processos de
mudança. Nesse sentido, propõe cinco parâmetros que visam a observar o início do
processo de gramaticalização. Dentre eles, encontra-se o da Persistência, segundo o
qual há traços semânticos originais que permanecem na estrutura linguística que
passou por mudança. Há autores que, adotando um viés semântico-cognitivo do estudo
da língua, referem-se à mesma noção salientando a manutenção de esquemas
imagéticos subjacentes aos itens gramaticalizados, como produto da dessemantização
(SWEETSER, 1990).
Na CI, vemos que as associações de V1fin e V2inf não são aleatórias, o que é
comprovado por meio da análise de dados que mostram a presença mais saliente de
determinados tipos de V2inf, fato que nos leva a pensar sobre os fatores motivadores na
ligação de V1fin e V2inf. É importante perceber que todos os V1fin são associados, em
algum nível, à noção de movimento, de deslocamento, o que, inclusive, parece ser um
fator definidor para sua gramaticalização como marcador aspectual.
Uma das formas de estudar a categoria cognitiva do movimento é através da
Dinâmica de Forças. Talmy (2001, p. 409-468) mostra que a Dinâmica de Forças
pertence ao campo das relações entre a estrutura conceptual da linguagem e os
domínios cognitivos, figurando na estruturação da linguagem em todos os seus níveis.
Assim, os itens lexicais que se ligam à dinâmica de forças se referem não apenas a
interações de força, mas, por extensão metafórica, também a interações sociais e
142
psicológicas. É o que ocorre nas construções causativas e modais, por exemplo52 (Cf.
TALMY 2001; SWEETSER, 1990).
Essas relações se fazem relevantes neste trabalho, uma vez que os dados
corroboram a hipótese de persistência de estruturas vestigiais em V1fin, as quais irão
interferir em suas possibilidades combinatórias em relação a V2inf.
5.3.2.1. Quebra de Barreiras
Na Tabela 2, notamos que as instanciações da CI preenchidas em V1fin por
romper e desatar se destacaram, especialmente, por co-ocorrerem com verbos
emotivos na posição de V2inf. Romper associou-se em 68% das ocorrências a V2
emotivos, enquanto desatar o fez com 75,2%. Essas são percentagens altas e,
portanto, relevantes para a nossa pesquisa. Elas nos levaram a refletir sobre a
motivação dessa associação entre os V1fin e V2inf citados.
Dentre os padrões básicos da dinâmica de forças propostos por Talmy (2001, p.
415), o da quebra de barreiras contribui sobremaneira para a explicação de tal
associação. Observe-se o esquema representado na Figura 4.
+
>
Figura 4:Esquema de representação do modelo da Quebra de Barreiras
O círculo indica o agonista e a forma à sua direita, o antagonista. O símbolo +
indica, na dinâmica de forças, a força do agonista que, nesse caso, é maior do que a do
antagonista. O sinal > indica a tendência de movimento em direção ao agonista,
52
Sweetser (1990, p.50) cita o caso do verbo magan, do inglês antigo, o qual originalmente significava
‘ser forte’, tendo passado a desempenhar função modal.
143
desencadeado por um agente externo, enquanto a seta indica que o agonista tende ao
movimento.
Se pensarmos sobre a semântica dos usos mais lexicais dos verbos romper e
desatar, conforme apresentados nos exemplos (69) e (70), notamos que ambos trazem
em si a noção de quebra de barreira, representada pela quebra de contêiner. Leia:
(69)
(70)
Quem tomar peemdença as portas da ygreia e torna mays aquel pecado.x. anos faça
peëdemça. Quem se bem quyser cõfessar demande clerigo sesudo que lhe sayba dar
peemdença uerdadeira. E o homë que fezer sacrilegio se rompe ygreia ou dela tira
algûa cousa sagrada e metea aqueles husos que nõ deue, sete anos faça peëdemça.
E em nos primeyros dous anos nõ deue de emtrar na igreia ataa quatro anos nõ deue
d'ofrecer..(CP, XV, Tratado de Confissón)
Dos furtos & roubos. Lei. I. Dos que cortão bolsas. Determinou elRei dom Manuel em
relação a.22. de Feuereiro de. 1499. que qualquer pessoa, que fosse tomada cortando
e desatando bolsa, hora na bolsa se achasse dinheiro, hora não, se fosse pião, fosse
açoutado & desorelhado. Fol. 115. do liuro primeiro. (CP, XV, Leis Extravagantes)
No exemplo (69), prescrevem-se penitências para vários pecados, dentre eles, o
de arrombar e furtar igrejas. O verbo romper, nesse caso, indica a abertura forçada da
porta da igreja. Já em (70), o verbo desatar indica a abertura de uma bolsa que
continha dinheiro. Em ambos os casos, os limites da igreja e a bolsa podem ser
conceptualizados como contêineres, barreiras, que são quebrados, por iniciativa de um
agente. Aplicando-se a esses exemplos o esquema da Figura 4, temos que o agonista
é o invasor da igreja ou o ladrão, e o antagonista corresponde à porta da igreja ou à
bolsa.
O esquema da quebra de barreiras se mantém mesmo nos usos metafóricos dos
verbos em questão, conforme atestam os exemplos de (71) a (76), esquematizados na
Tabela 5.
Exemplos
(71)
(72)
(73)
e de lhe pedir por mercé que o encaminhasse à
salvaçaõ, e que o Infante voltou o rosto para
outra parte, e lhe disse: Torna-te ao santo
caminho, que deyxaste. E em isto adormeceo alli,
até o outro dia em rompendo a alva. (CP, XV, D.
Fernando)
Senhor Deus, rogote que sooes e queiras toar cõ
a tua voz grande e forte dentro ë na orelha do
meu coraçõ! Rompe a minha sordidade e
ësiname e salvame! (CP, XV, Agostinho)
E avendo algum, que por especie de ingratidão
trate com pouco favor meus trabalhos, a infamia
Esquema da Quebra de Barreiras
Agonista
Antagonista
Força
a alva (a
manhã)
a escuridão
(a noite)
a passagem
do tempo
Deus
a sordidez
do suplicante
a Obra
as
dificuldades
a voz grande
e forte de
Deus no
coração
a esperança
de ver a
144
de ser tal tomo por justa satisfação de meu
Pátria
agravo. Que de minha tenção sey merecer a
agradecida
todos os Portuguezes, acceitarem esta Obra,
pela obra
como de pessoa, que pela chegar ao fim tem
rompido por mil difficuldades, bastantes a vencer
qualquer animo: sustentandome no meo de tudo
a esperança de ver as cousas de minha Patria
engrandecidas por meu trabalho, & os naturaes
della agradecidos pera comigo. (CP, XVII,
Monarquia)
(74) Assy alumee vossa luz diante dos homeës pa
que vejã vossas obras & gloriffiquem a vosso
padre que esta nos çeeos Nom cuydees que vijm
a desatar h ley ou os prophetas: ca nã vijm a
defazella mas a comprilla em verdade vos digo
Em quanto correr o çeeo & este o cursu Da terra
a lei e os
aquilo que
o locutor
huû. j. ou huum tyl. nom passara da ley atee que
profetas
diz
todas as cousas se façã. Pois o que quebrantar
huû destes mãdamëtos pequenos: & ensynar
assy aos homeës seera chamado pequeno no
regno dos çeeos. (CP, XV, Santa Maria:
Evangelhos)
(75) E estando el-rey em Almada no mes d' Agosto
deste anno de mil e quatrocentos e oytenta e oito
teve conselho com todos os do seu conselho que
presentes eram sobre o casamento do principe
seu filho. Porque como atras se disse ao tempo
que as terçarias se desfizeram em Moura, foy
desatado o casamento do principe com a infanta aqueles que
a anulação
os “laços” do
Dona Isabel, e ficou concertado com a infanta
anularam o
das terçarias
casamento
Dona Joana mais moça, ficando logo declarado
casamento
em Moura
que se ao tem po que o principe ouvese ydade
perfeita pera contratar matrimonio per palavras
de presente, a infanta Dona Isabel que era mayor
estevesse por casar, que o principe casasse
todavia com ella, assi como de primeiro fora
concordado. (CP, XVI, Resende: Vida)
(76) Era tempo de acabar com aquilo; que se
casassem depressa e lhe fugissem dos olhos.
Ernestina falava agora, falava sempre, já sem
calma, feliz, desatando frases de queixa, de
a convenção
a paixão
censura, de desespero e de amor, deslumbrando
Ernestina
social que a
ardente e
Luciano com a sua voz quente, a sua formosura
faria calar-se concentrada
miraculosamente rejuvenescida nessa hora de
enlevo e de paixão ardente e concentrada. (CP,
XIX, Almeida:Viúva)
Tabela 5: Aplicação do esquema da Quebra de Barreiras a usos metafóricos de romper e desatar
Além de se manter nos usos metafóricos, o esquema da quebra de barreiras
ocorre também quando esses verbos ocupam a posição de V1fin nos usos aspectuais,
como se pode notar nos exemplos (77) e (78):
(77)
Uma sombria tarde de dezembro, de grande chuva, Afonso da Maia estava no seu
escritório lendo, quando a porta se abriu violentamente, e, alçando os olhos do livro,
145
(78)
viu Pedro diante de si. Vinha todo enlameado, desalinhado, e na sua face lívida, sob
os cabelos revoltos, luzia um olhar de loucura. O velho ergueu-se aterrado. E Pedro
sem uma palavra atirou-se aos braços do pai, rompeu a chorar perdidamente. Pedro! que sucedeu, filho? Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, à ideia
do filho livre para sempre dos Monfortes, voltando-lhe, trazendo à sua solidão os dois
netos, toda uma descendência para amar! (CP,18:PtQueirós, Maias)
A cena da fuga: a irmã, de preto, com o embrulho das jóias, a caminhar cautelosa,
surdamente e desaparecer diluindo-se como uma névoa. Deitou-se, cobriu-se, não
tinha sono. E pensava: Onde iria? Como encontrá-la? Chegou-se mais à parede e, d'
olhos fechados, meditava quando ouviu os arrancados soluços de Dona Júlia no
quarto próximo. Pôs-se à escuta e os olhos foram-se-lhe enchendo d' água, uma
opressão pesou-lhe no peito como se lho fosse esmagando e, de repente. afundando
a cabeça no travesseiro, rompeu a chorar desesperadamente. 3 Eram seis horas da
manhã quando acordou em sobressalto, como se houvesse sido violentamente
despertado. Sentou-se na cama esfregando os olhos, moído de fadiga e os fatos da
véspera afluíram-lhe à memória, nítidos e rápidos. A cena em casa, a caminhada
através da noite tormentosa, a subida à polícia, o delegado sonolento. Mas, pensando
na mãe, pôs-se de pé, descalço e saiu para a sala, já aberta e em ordem. (CP,
19Br:Neto, Turbilhão)
Em (77), a força metafórica seria a possível morte de Maria. O agonista se
constituiria no choro e o antagonista, no controle emocional. Já em (78), a força seria a
dúvida com relação ao desaparecimento da irmã do personagem. Novamente o
agonista é representado pelo choro e o antagonista, pelo controle emocional.
Como vemos em (77) e (78), marcadores de aspecto associados à quebra
repentina de barreira ligam-se sobretudo aos verbos emotivos. É interessante perceber,
ainda, a presença dos advérbios de modo perdidamente e desesperadamente, os quais
colaboram para a produção de noção de intensidade. Essa noção já está imbuída
também no verbo romper. Se compararmos, por exemplo ela rompeu a chorar e ela
começou a chorar, fica fácil notar que o primeiro exemplo apresenta uma ‘intensidade’,
uma ‘quebra’ maior.
Essa associação dos verbos como romper e desatar aos verbos emotivos é
ligada às seguintes metáforas propostas por Lakoff & Johnson (2002 [1980]):
EMOÇÃO É CONTÊINER: Estou num grande estado de nervos!
EMOÇÃO É LÍQUIDO NUM CONTÊINER: Ele transbordava de alegria.
As duas metáforas ilustram bem a associação que se dá entre V1fin(romper e desatar) e
V2inf(emotivos), já que ambos têm associada a si a noção de contêiner. Afinal, ao romper
algo, há uma barreira quebrada, e ao desatar algo, também. Quando um contêiner é
146
rompido ou desatado, as emoções “líquidas” dentro dele tendem a se espalhar,
deixando de ser contidas.
Uma vez que o esquema cognitivo dos verbos emotivos casa tão bem com o dos
marcadores aspectuais romper e desatar, duas implicações deveriam se verificar
quando da análise dos dados: (i) tais marcadores aspectuais devem combinar-se
frequentemente com verbos emotivos e (ii) quando da extensão da CI para o uso com
verbos emotivos, os aspectuais romper e desatar devem figurar prioritariamente nesses
novos usos.
A comprovação para a implicação (i) encontra-se nos dados apresentados na
Tabela 3: 68% das ocorrências de CI com verbo romper e 73.4% das com verbo
desatar marcam aspecto inceptivo com verbos codificadores de emoções. No que tange
à implicação (ii), das 199 instanciações da CI com V2inf(emotivo) encontradas no século
XIX, 28 têm V1 preenchido por romper, e 138 por desatar, o que totaliza 83,4% das
ocorrências. Para o século XX, a realidade é bem semelhante, com 70,2% de todas as
instanciações da CI com V2inf(emotivo) distribuídas entre romper (23,5%) e desatar
(46,7%).
O aspectual cair também se liga com frequência a verbos que codificam a noção
de ‘experimentar emoções’ (37,5% das ocorrências). Esse aspectual também
compartilha a mesma semântica vestigial de romper e desatar, qual seja a da remoção
de barreiras, porém, de maneira um pouco diferente, na medida em que é a própria
remoção da barreira o que permite o movimento do agonista. Quando algo cai, isso
ocorre porque a força ou barreira que o mantinha apoiado ou em pé é removida. Tal
fato também se dá repentinamente, o que aproxima bastante o esquema imagético
subjacente desse verbo ao dos outros dois discutidos anteriormente.
Ademais, todas as emoções codificadas pelos V2inf ligados a cair são negativas,
o que se associa com a ideia de que o sujeito que “começa a soluçar” – exemplo (79) –
ou a “entristecer” – exemplo (80) – começa também a “ficar para baixo”, o que é a
manifestação de outra das metáforas orientacionais previstas por Lakoff e Johnson
(2002 [1980]):
147
BOM É PARA CIMA
RUIM É PARA BAIXO
(79)
(80)
Chegou tarde à casa grande e quando disse que o pastor velho tinha morrido caiu a
soluçar. (CP, XX, Nascimento: Tempera)
Veio-lhe então um sobressalto de contentamento, mas logo depois caiu a entristecer.
(CP, XIX, Azevedo: Mulato)
Poder-se-ia questionar porque, então, o aspectual deitar não figura entre aqueles
que se associam aos verbos emotivos, uma vez que indica um movimento com direção
semelhante ao de cair. Entretanto, enquanto aquele indica um movimento controlado e
provocado por um agente, este, como se disse, deve-se à remoção de um apoio, que
leva a uma queda repentina e sem controle do agonista, o que casa com a noção de
descontrole emocional.
Vê-se, portanto, que a associação de um dado tipo de V2inf à CI, produto de sua
extensão a outros contextos de uso, não se dá aleatoriamente. Tipos semânticos
específicos de V2inf tendem a se associar a alguns aspectuais cuja semântica vestigial,
aqui representada através de um esquema da Dinâmica de Forças, liga-se à sua
própria configuração semântica.
5.3.2.2. Movimento sem Barreira
Outro esquema da Dinâmica de Forças de Talmy (2001) contribui para este
trabalho. Ao pensarmos nos sentidos lexicais originais de disparar e deitar, por
exemplo, temos que ambos indicam a noção de que um antagonista faz com que o
agonista vença a inércia e se ponha em movimento, o que é representado pelo
esquema de Movimento sem Barreira indicado na Figura 5.
+
Figura
5: Esquema de representação do Movimento sem Barreira
:
148
Nesse esquema, vemos que o agonista, representado pelo círculo, estava em
inércia (●) e uma força, representada pelo antagonista, coloca-o em movimento. Nesse
caso, não há barreira que impeça o movimento. Esse esquema se reflete nos sentidos
lexicais tanto de disparar quanto de deitar, conforme se pode perceber em (81) e (82).
(81)
(82)
O numero da gemte que, senhor, laa jaz me pareçee casy emfimdo, & com tudo esto
veem agora aymda que nõ quedam. & tamto que nos vyram logo foram na praya, mas
do gasalhado que rreçeberam de nossas beestas sey que vam pouco comtemtes, &
allë disto disparamos tres trõs com que os fezemos de todo pomto leyxar a praya.
(CP, XV, Meneses: Crónica)
E esto sse deue a fazer mayormët en quanto diserem a missa por que estonçe
cõsagrã o corpo & o sanguy de nostro senhor ihesu xpisto Ca tã nobre & tã santa
cousa he esta que todo o al deue seer leixado ëmentre esto fezerë assy que nõ possa
per elle viir destoruo në enbargo ao clerigo que consagrar. E sse lhy algûû perfiar nõ
querendo leixar de o fazer deueno deitar ffora da igreia que seia clerigo quer leygo E
ainda esta mãdaraõ que leuãdo o aa igreia ou aa coua o ffezessem que leyxassem os
clerigos de ssoterrallo & dëcomëdar lhy a alma a deus dizendo sobre sobre elle
aquelas oraçõës que ssom estabeleçudas. (CP, XIV, Afonso: Partida 1)
Em (81) o agonista são os trons, pedras lançadas por uma catapulta, sendo os
antagonistas os soldados que disparam a catapulta, responsáveis pela geração da
força que impele o agonista a sair da inércia. Já em (82), o agonista é aquele que se
interpuser à realização do ritual eclesiástico, o qual será lançado para fora da igreja
pelo antagonista, cuja força o impelirá a sair da inércia. É importante ressaltar que o
sentido mais antigo do verbo deitar é o de ‘lançar ao chão, jogar fora’ e não o de
‘colocar-se horizontalmente sobre uma superfície’.
O esquema do Movimento sem Barreiras presente nos usos lexicais de disparar
e deitar se mantém no uso aspectual desses dois verbos na CI, o que pode ser
comprovado pela análise dos exemplos (83) e (84). Neles, o agonista é levado a
principiar um movimento (saindo do estado de inércia) por obra da força de um
antagonista, qual seja a “exclamação” do exemplo (83) e a vontade de pegar um
fugitivo em (84).
(83)
(84)
Taroucando tamancos, dois homens passaram por ele discutindo e, já longe,
romperam em gargalhada estrondosa. Chegando ao Largo de S. Francisco teve uma
exclamação e deitou a correr para um bonde que partia, quase vazio, com as
cortinas descidas. Tomou-o na volta, apesar do aviso do condutor: " Que ia recolher ".
(CP, XX, Neto: Turbilhão)
Se amolaram as palanganas, e lá se vão zunindo! - Aonde? - Para o mosteiro em
busca de asilo. Agora é assobiar-lhes às botas, ou aos calcanhares. - Pega! exclamou
um mais ardente e disparou a correr. Outros o seguiram maquinalmente. ao mesmo
tempo o meirinho com seus acólitos, capturando os dois improvisados minorenses, se
149
afastaram com eles, levando após a maior porção do povo. (CP, XIX, Alencar:
Garatuja)
As implicações propostas para os verbos romper e desatar na seção anterior
também se fazem presentes para os verbos que compartilham o esquema do
Movimento sem Barreiras. De todas as instanciações da CI preenchidas em V1fin por
disparar, 36.36% se combinam com V2inf que indicam deslocamento. Para o verbo
deitar, essa porcentagem é de 55,5% (vide Tabela 2). De maneira complementar,
quando a CI se estende para abarcar verbos de movimento no século XVI, a única
ocorrência com esse tipo de V2inf se dá em uma instanciação com o auxiliar deitar. Tal
exclusividade se mantém no século XVIII, com quatro ocorrências. No século XIX,
conforme se nota pelos gráficos, o número de instanciações da CI com V2inf de
deslocamento salta para 105. Ainda assim, 61,9% delas têm V1fin preenchido por deitar,
enquanto 7,6% o tem preenchido por disparar, totalizando 69,5% das ocorrências.
Outro dado que chama a atenção na tabela diz respeito àqueles relacionados ao
preenchimento com entrar de, o qual seleciona, em 33% das ocorrências, V2inf de
mudança de estado. Essa motivação se torna clara ao considerarmos a metáfora
proposta Lakoff (2006 [1979], p.211):
ESTADOS SÃO LUGARES
Ela evidencia que a associação de entrar à noção de mudança de estado não
ocorre aleatoriamente, havendo ligação semântica direta e motivação clara entre V1fin e
V2inf.
Quanto aos demais aspectuais estudados, todos ocorrem majoritariamente
vinculados a V2inf do tipo semântico agentivo, os quais não portam traços semânticos
que possam ser conflitantes com nenhum desses aspectuais, uma vez que todos
indicam, em alguma medida, algum tipo de ação. Isso é corroborado pelo fato de,
frequentemente, em seus sentidos lexicais, os V1fin apresentarem sujeitos agentes, o
que os faz se ligarem também a verbos de carga semântica semelhante.
150
5.4 Conclusão do Capítulo
Este capítulo visou a analisar os preenchimentos não prototípicos da CI, ou seja,
aquelas instanciações em que a posição de V1fin foi ocupada por verbos cujos sentidos
lexicais não remetem à marcação aspectual, a fim de discutir a influência do princípio
da persistência e do parâmetro da extensão nessa construção. Para isso, foram
levantadas ocorrências da CI em corpora dos séculos XIII a XX.
Os dados revelaram alto índice de preenchimento da posição de V2inf por de
ação, emotivos e de deslocamento, sendo que, no caso dos dois últimos grupos,
percebeu-se uma correlação entre o tipo semântico de V2inf e a semântica vestigial de
V1fin.
Através da aplicação de dois modelos da Dinâmica de Forças propostos por
Talmy (2001) e de sua correlação com metáforas propostas por Lakoff e Johnson (2002
[1980]), mostrou-se que a Extensão da CI a tipos semânticos de V2fin que não sejam
de ação pode ser condicionada pela Persistência de esquemas imagéticos
subjacentes ao significado gramatical de aspectuais como romper, desatar, cair,
disparar, deitar e entrar.
Portanto, a análise mostrou que, ao se lidar com a gramaticalização de uma
construção que apresenta possibilidades de preenchimento parcialmente abertas, fazse necessário avaliar em que medida os vários subprocessos da gramaticalização
ocorridos com cada item que a compõe podem interferir na operacionalização de um ou
outro parâmetro.
No caso estudado, a semântica vestigial da Quebra de Barreiras dos aspectuais
romper, desatar e cair e a do Movimento sem Barreiras de disparar e deitar fez com que
o processo de extensão da CI para abarcar V2inf emotivos e de deslocamento,
respectivamente, ocorresse preferencialmente com esses verbos.
Em trabalhos futuros, pretende-se investigar em que medida outros parâmetros
da gramaticalização podem apresentar correlações sistêmicas, considerando-se que
esse processo passa a ser, de fato, encarado no nível construcional.
151
6 EVIDÊNCIAS TRANSLINGUÍSTICAS DA METÁFORA DE MOVIMENTO NA
CONSTRUÇÃO DE ASPECTO INCEPTIVO
Ao investigar semanticamente os verbos (V1fin) não canônicos da CI em seus
sentidos lexicais, é possível notar que todos eles compartilham a categoria cognitiva de
movimento (cf. JOHNSON, 1987). Tal fato pode ser analisado por meio da Teoria da
Metáfora Conceptual (cf. LAKOFF, 2006 [1979]). Na perspectiva de Lakoff, as
metáforas
são
concebidas
como
mapeamentos
entre
domínios
conceptuais,
constituindo-se num dos principais elementos da cognição humana e, com isso, parte
da vida cotidiana. Esse autor, juntamente com Johnson (LAKOFF & JOHNSON, 2002
[1980]), ressalta ainda a base corporificada da metáfora, a qual é considerada, portanto,
profundamente dependente da experiência humana no mundo. Tais linguistas, ao
proporem metáforas do tipo “TEMPO É ESPAÇO”, “MUDANÇA É MOVIMENTO” e
“ESTADOS SÃO LUGARES” (LAKOFF, 2006 [1979], p.211), reafirmam tanto a base
experencial e concreta dos conceitos abstratos, quanto sua presença nos diversos tipos
de processamentos cognitivos.
Ainda, a presença da preposição a também corrobora a análise da base
metafórica dessa construção. Esse fato indica que a preposição eleita para compor a
construção em análise aponta para a noção de movimento, a qual, aliada às metáforas
descritas acima, parece despertar na cognição humana a noção da marcação de fase
inicial de ocorrência de uma ação, ancorada na metáfora de que AÇÕES SÃO
MOVIMENTO PARA UM DESTINO.
Tendo em vista esses fatos, este capítulo visa a buscar evidências
translinguísticas para a metáfora de movimento em Construções de Aspecto Inceptivo
semelhantes à encontrada no Português. Para tanto, procedeu-se à busca de padrões
construcionais indicadores de aspecto inceptivo em outras línguas, que não o
português. Primeiramente, buscou-se nas bases de dados das FrameNets53 do inglês,
53
FrameNets são recursos lexicais disponíveis online, fundados no arcabouço teórico da Semântica de
Frames e sustentandos por evidências advindas de corpora. São organizados por um conjunto de
esquemas de significado (frames), relacionadas aos quais se encontram listas de itens lexicais que os
152
alemão e espanhol, através da ferramenta FrameSQL, verbos evocadores dos frames
de início de atividade e início de processo, os quais também possam se referir à
categoria de movimento. Por fim, incluíram-se também dados do estoniano, uma vez
que essa língua possui uma CI de base muito semelhante à do português (PIIROJA,
2011).
Não se trata de argumentar que a presença da categoria cognitiva de movimento
nas CIs de línguas tão diferentes seja uma evidência de um universal nos termos
tradicionalmente propostos pela Linguística Gerativa, ou seja: inato e circunscrito ao
domínio específico da linguagem. Ao contrário, a hipótese com que se trabalha é
aquela segundo a qual a presença das metáforas de movimento nas CIs das várias
línguas aponta para a continuidade entre a capacidade da linguagem e as demais
capacidades cognitivas, todas fundadas na experiência humana no mundo (GIBBS,
2006, GOLDBERG, 2006).
De
maneira
complementar,
estudos
em
Gramática
das
Construções
(GOLDBERG, 1995; 2006) sugerem que as escolhas lexicais – e as categorias
cognitivas nelas envolvidas – para a composição de uma construção não ocorrem de
forma arbitrária. Pelo contrário, são motivadas por relações subjacentes à linguagem.
Assim, uma vez que as categorias cognitivas subjacentes às escolhas lexicais são
ancoradas na experiência humana no mundo e considerando que os falantes das várias
línguas compartilham uma mesma biologia, é de se esperar que sejam encontradas
semelhanças nas escolhas lexicais presentes nas Construções de Aspecto Inceptivo
das diversas línguas do mundo, fato que aponta para a existência da continuidade da
capacidade da linguagem com as demais atividades cognitivas.
6.1 Evidências translinguísticas para a presença da metáfora de movimento na CI
A fim de se observarem as evidências translinguísticas para a presença da
metáfora de movimento na CI, será preciso retomar hipóteses já apresentadas, bem
como conceitos e exemplos de ocorrência.
evocam. Assim, junto ao frame de início de atividade, encontram-se verbos, como start, enter e begin,
nomes, como beginning, dentre outros itens lexicais. De forma semelhante, no espanhol, encontram-se
comenzar, lanzarse, empezar. No alemão, starten.
153
Conforme já foi discutido no capítulo anterior, novos verbos evocadores da
categoria cognitiva do movimento corporal entram no esquema construcional da CI
primeiramente de forma especializada e, ao longo do tempo, estendem-se a outros
tipos semânticos de V2inf.
No que tange ao V1fin, é importante reiterar que todos evocam a categoria
cognitiva de movimento, conforme se pode confirmar em seus usos como verbos plenos
no português atual e/ou a partir de suas etimologias (veja-se Quadro 14).
V1fin
Sentido pleno
Etimologia
cair
ir de cima para baixo, ir ao lat. cadĕre ‘cair, escorregar;
chão; tombar
cair no combate; abaixarse, desfalecer, perecer’
danar (-se)
Atirar ou meter (algo) com lat.
ímpeto
e
decisão
damnāre
em; judicialmente,
‘condenar
censurar
54
arremessar; iniciar (ação) etc.’
com ímpeto e vontade; ir
embora sem rumo, fugir
apressadamente;
desaparecer
deitar
deixar(-se) cair; lançar(-se), lat. medv. hsp. dectāre, f.
contracta do lat. dejactāre
jogar(-se) para baixo
‘derrubar’
desandar
mover (veículo, animal etc.) des- + andar. lat. ambulāre
para
trás;
(caminho,
sentido
percorrer ‘ir, vir, passear, caminhar’
trajeto)
inverso;
em
recuar;
voltar
54
Segundo o dicionário latino de Lewis e Short (1879), damnāre poderia significar ainda “atar ou obrigar,
por testamento, que a herança de alguém seja destinada ao cumprimento de algum ato”. Nesse sentido,
a etimologia de danar aproxima-se mais da categoria de movimento. Pretende-se, em próximos
trabalhos, refinar o estudo etimológico do verbo danar. O dicionário Houaiss registra a acepção atirar
como oriunda do Nordeste do país.
154
desatar
desmanchar, desfazer (nó); des- + atar. lat. aptāre
desprender(-se), soltar(-se) ‘acomodar, unir, juntar’
o nó de
disparar
fazer ir longe; arremessar, lat.
lançar; lançar, enviar (olhar)
entrar
disparāre
distinguir, diferir’
deslocar-se ou passar de lat. intrāre 'penetrar
em
fora para dentro de; ir ou vir (lugar
ou
fechado
para dentro de; introduzir- delimitado);
se em; invadir
pegar
‘separar,
tornar-se
membro de; iniciar etc.'
prender lat. picāre 'impregnar(-se)
segurar;
segurando;
fixar(-se), de breu ou piche'
aderir, colar
romper
criar abertura ou passagem lat.
rumpĕre
'quebrar,
à força em; arrombar; abrir, rasgar, fender, arrebentar'
penetrando; passar para o
interior
de;
dilacerar,
penetrar, rasgar.
Quadro 14: Sentidos dos verbos investigados em usos como verbo pleno e suas etimologias. Fontes:
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009; Dicionário Escolar Latino-Português, 1956
O exame do significado e das respectivas etimologias mostra que todos os
verbos não canônicos da CI analisados pressupõem, em seu sentido lexical, a noção de
movimento, fato que reitera não ser a escolha desses verbos aleatória, como já vem
sendo apresentado nesta tese. Ela é motivada na medida em que os verbos que
ocupam a posição de V1fin têm em seu âmago um quesito comum: a categoria de
movimento que perpassa seu sentido.
Sabe-se que metáforas como TEMPO É ESPAÇO (LAKOFF & JOHNSON, 2002
[1980]) motivam mudanças como essas, visto que o movimento de um corpo em um
espaço é encarado, nesse caso, como a passagem do tempo. Tal processo parece
motivar a escolha, pelo falante, de verbos com características determinadas.
A interpretação proposta é confirmada pela escolha da preposição que ocorre
intercalada entre V1 e V2 na CI. Veja-se novamente:
155
(85)
DEPOIS, vendo que não podia trabalhar, acabou se despedindo do botequim. Mas
ficou rondando por ali, ainda muito pálido e magro, sem fazer despesas, conversando
com os conhecidos. Aos poucos, a bem dizer sem se sentir, pegou a trabalhar para o
bicheiro que fazia ponto na charutaria. De começo passava as listas, tomava jogo de
um ou outro, quando o velho Jamil - que assim chamavam o bicheiro - se afastava um
momento. (CP, Dôra, Doralina, Rachel de Queiroz, XX)
Como já foi observado no capítulo 3, a preposição de ocorrência típica na CI é a.
Ao analisarmos sua etimologia, vemos que ela se origina da "prep. lat.tar. a, da prep.lat.
ad 'aproximação, início de uma ação etc.'". As informações etimológicas reiteram a
hipótese de que a escolha do falante não é arbitrária, sendo reforçada pela preposição
a. Ela se une à marcação de movimento do V1 para reforçar a noção do aspecto
inceptivo.
Considerando a metáfora TEMPO É ESPAÇO presente, seria, portanto, possível
tratar da marcação do movimento de um corpo em um espaço da seguinte maneira:
t’
t’’
t’’’
Nesse esquema, a seta representaria o lugar por onde o corpo se move e os
círculos seriam o próprio corpo. A letra “t” sinaliza momentos de tempo distintos,
pressupondo movimento para um destino. Dessa forma, uma maneira de esquematizar
os aspectos imperfectivos do português seria:
No padrão sintático [V1fin (Prep) V2inf], V1 e preposição se uniriam para demarcar
início de um processo apresentado por V2:
(86)Pôs-se à escuta e os olhos foram-se-lhe enchendo d' água, uma opressão pesou-lhe no peito
como se lho fosse esmagando e, de repente. afundando a cabeça no travesseiro, rompeu a
chorar desesperadamente. (CP, 19Br:Neto, Turbilhão)
Assim, a construção disposta em (86) poderia ser esquematizada da seguinte
maneira:
t’
t’’
t’’’
156
No caso da CI, o foco da ação seria no início do processo, portanto, destacando
o t’, o início do desenvolvimento da ação, e demarcando, portanto, o Aspecto Inceptivo.
Porém, se consideramos que a linguagem é apenas uma das capacidades
humanas e que ela é corporificada, tendo base nas demais, seria possível pensar que a
metáfora TEMPO É ESPAÇO e que a associação do movimento corporal ao movimento
da ação, como ocorre nesses casos de gramaticalização, não são exclusivos da língua
portuguesa. Afinal, se o movimento corporal pode se refletir na designação do
movimento mental aplicado à linguagem, isso deve se dar também em outras línguas,
constituindo-se em mais uma demonstração clara de que há continuidade entre a
capacidade da linguagem e as demais capacidades cognitivas. Todas elas seriam
fundadas na experiência humana, neste caso, a de andar, correr e realizar outras ações
que pressupõem movimento.
Num primeiro momento, poder-se-ia pensar que o mesmo ocorre nas línguas de
origem comum ao português, as línguas românicas. Observem-se esses casos:
(87)
(88)
Les enfants se mettent à courir. (Fonte: http://lacoronica.org/, La corónica 34.1,
2005)
rompió
a
hacer
versos
desconsolados.
(Fonte:
http://www.grancanariaweb.com/cine/edgar)
Tanto no exemplo em francês (87), quanto no dado em espanhol (88), é possível
observar o mesmo processo pelo qual passam os verbos da CI no português. Em
ambos os casos, a delimitação sintática é a mesma e, principalmente, as características
da construção são compartilhadas: há verbos que, em seu sentido lexical, denotam
movimento e que, usados na CI, adquirem sentido de início de movimento, de
marcação aspectual inceptiva.
No entanto, poder-se-ia pensar que essa relação é motivada pela origem comum
às línguas, afinal francês, espanhol e português são línguas neolatinas. Caso isso
ocorresse, veríamos a comprovação da origem comum, e não necessariamente da
hipótese da corporificação da linguagem.
157
Porém, Yin (2002, p.79), ao pesquisar o verbo kuru (‘vir’) em japonês, verificou
que ele pode denotar aspecto inceptivo, como em55:
(89)
Hi
ga
kie-te
kita
fogo
NOM sair-SUBJ vir-PASS
‘O fogo começou a sair.’ (Koga, 2001: 53)
(90)
Ame
ga
fut-te
kita.
chuva
NOM cair-SUBJ vir-PASS
‘Começou a chover.’ (Kondo & Takano, 1993: 518)
Segundo Yin, o sentido inceptivo de kuru (kita na forma do passado) é motivado
pela metáfora CAMINHO DE EVENTO É TRAJETÓRIA DE MOVIMENTO. De acordo
com esse autor, se olharmos para o desenvolvimento do caminho de um evento como
uma trajetória de movimento, o verbo kuru, nesses exemplos, é perspectivizado no
início da trajetória, indicando o início do evento.
Novamente, vemos a CI formada por dois verbos com um deles marcando início
de processo, mesmo sendo um verbo cujo sentido pleno indica movimento. Porém, foi
empregado na construção para demarcação de aspecto e compartilha a característica
com os demais da CI de ter em seu sentido a noção de movimento.
Nessa mesma linha, Piiroja (2011) mostra que, no estoniano, algo semelhante
ocorre:
O estoniano tem muitos verbos que carregam um sentido aspectual quando usados
em associação a outros verbos. Verbos como lööma ‘bater’, panema ‘por’, pistma
‘colar’ podem indicar o início de uma ação, enquanto vihtuma ‘refrescar-se (em uma
sauna)’ pode se referir a uma ação contínua. A maioria desses verbos também indica
o modo como se inicia a execução da ação. Há vários desses verbos e eles variam
dos mais específicos ao mais genéricos. Por exemplo, o verbo estoniano hakkama
pode ter dois significados – ‘cercar, pegar’ e ‘começar’. O primeiro uso, mais lexical,
tem reduzido sua frequência ao longo dos últimos séculos, abrindo espaço para o
56
segundo uso, mais gramatical.
55
As glosas dos exemplos (89) a (98) foram adaptadas dos trabalhos originais, tendo sido traduzidas
para o português.
56
Estonian has many verbs which can carry aspectual meaning when used in combination with another
verb. Verbs such as lööma ‘to hit’, panema ‘to put’, pistma ‘to stick’ can indicate the beginning of an
action whereas vihtuma ‘to whisk oneself (in a sauna)’ can refer to a continuous action. Most of these
verbs also indicate the manner of the beginning or the execution of the action. There are a number of
such verbs and they range from more specific to quite general. For example, the Estonian verb hakkama
can be considered to have two meanings – ‘to seize, to grab’ and ‘to start’ whereas the first, more lexical
use has been decreasing in frequency over the last few centuries giving way to the latter more
grammatical use.
158
De acordo essa autora, no estoniano, há verbos que tipicamente não são
marcadores de aspecto e que passam a sê-lo com o tempo. Todos esses verbos são
associados à noção de movimento. Veja-se:
(91)
hakkama ‘agarrar’
Nad
hakka-si-d
vaidle-ma.
Eles
agarrar-PASS-3PL discutir-SUP.
‘Eles começaram a discutir.’
(92)
kukkuma ‘cair’
Ma
kukku-si-n
Eu
cair-PASS-1SG
‘Eu comecei a gritar.’
(93)
(94)
(95)
(96)
(97)
(98)
karju-ma.
gritar-SUP
lahvatama ‘explodir’
Tõrvik
lahvata-s
Tocha
explodir-PASS-3SG
‘A tocha começou a queimar.’
põle-ma.
queimar-SUP
lööma ‘bater’
Tähe-d
lõi-d
Estrela-PL
bater-PASS-3PL
‘As estrelas começaram a brilhar.’
sära-ma.
brilhar-SUP.
minema ‘ir’
Auto
ei
lähe
Carro
NEG ir
‘O carro não vai andar.’
pahvatama ‘explodir’
Mees
pahvata-s
Homem explodir-PASS.3SG
‘O homem começou a rir.’
pistma ‘enfiar’
Koer
pisti-s
Cão
enfiar-PASS.3SG
‘O cão começou a latir.’
puhkema ‘romper’
Laps
puhke-s
Criança romper-PST.3SG
‘A criança começou a chorar’
käi-ma.
andar-SUP.
naer-ma.
rir-SUP
hauku-ma.
latir-SUP.
nut-ma.
chorar-SUP.
Os exemplos de (91) a (98) mostram que a Construção Inceptiva usada no
estoniano é semelhante à do português no sentido de que a função de auxiliar
159
aspectual inceptivo é desempenhada por verbos que, prototipicamente, evocam a
categoria cognitiva de movimento.
Como se vê, a CI, em outras línguas, também pode ser expressa com dois
verbos associados com um deles sendo originalmente um verbo de movimento57. Esse
fato pode ser considerado mais uma evidência de que a criação das metáforas
conceptuais é baseada na nossa experiência física e cultural (cf. LAKOFF 2006 [1979]),
o que justificaria tantas confluências translinguísticas.
6.2 Simulação Mental na Construção de Aspecto Inceptivo
Como já vem sendo discutido, diversos estudos linguísticos mencionam a
existência de uma relação neurobiológica entre domínios concretos e abstratos, ou, em
outros termos, de mostram, no nível cerebral, a base corporificada da linguagem (cf.
GALLESE & LAKOFF, 2005; GIBBS & MATLOCK, 2008; BERGEN & WHEELER,
2010).
De acordo com Bergen & Wheeler (2010), os falantes e ouvintes da língua
ativam os sistemas perceptual e motor para realizar simulações mentais de eventos ao
processar sentenças sobre cenas perceptíveis e ações realizáveis. Assim, quando as
pessoas processam a linguagem, elas exibem a ativação seletiva dos sistemas
perceptuais e motores, chamada de simulação mental (PULVERMÜLLER, HAERLE &
HUMMEL, 2001; HAUK, JOHNSRUDE & PULVERMÜLLER, 2004 apud BERGEN &
WHEELER, 2010). No entanto, enquanto o conteúdo mental e perceptual das
simulações pode ser frequentemente tornado acessível pela introspecção consciente, a
simulação mental construída durante o uso da linguagem tem processamento imediato,
automático e, na maioria das vezes, inconsciente (BARSALOU, 1999 apud BERGEN &
WHEELER, 2010)
57
O fato de o auxiliar apresentar-se como primeiro ou segundo verbo pode estar relacionado à ordem
canônica de cada uma das línguas cujos exemplos foram analisados. Assim como o português, o
francês, o espanhol e o estoniano são línguas SVO, enquanto o Japonês é SOV. Muitos estudos
demonstram haver uma correspondência entre a posição de “modificadores” e a ordem preferencial das
línguas. Segundo Lehmann (1973), em línguas SVO, modificadores tendem a ser colocados antes dos
verbos, enquanto em línguas SOV, a posição preferencial passa a ser após o verbo. Nesse tema, veja-se
também Kuno (1974).
160
Diversos autores argumentam que o uso dos sistemas motor ou perceptivo para
realizar simulações mentais é parte integrante do entendimento da linguagem
(GLENBERG & KASCHAK, 2002; BERGEN & CHANG, 2005; FELDMAN E
NARAYANAN, 2004; GALLESE & LAKOFF, 2005). Ademais, alguns estudos já
mostraram a associação entre palavras específicas e simulação motora. Através de
testes de observação visual (motora), notou-se que empurrar denota movimento
horizontal e bombardear, vertical (RICHARDSON ET AL, 2003). Outras pesquisas já
apontaram para o fato de que as associações lexicais não são o único território
linguístico em que as simulações ocorrem e, em alguns casos, nem mesmo o
preferencial. Um estudo comportamental focado no processamento visual durante o
processamento de linguagem revelou que palavras concretas que descrevem
movimentos para cima ou para baixo (como cair e escalar) apenas algumas vezes
produzem processamento específico de localização por meio do sistema visual. Quando
essas palavras são usadas no sentido lexical pleno, elas ativam de fato o sistema
visual, mas não o fazem quando estão no sentido lexical metafórico (como em os
preços subiram) (BERGEN ET AL., 2007).
Begen e Wheeler (2010), partindo dessas premissas, buscam resolver a seguinte
questão: será que as estruturas gramaticais contribuem também para a ativação da
simulação perceptual e motora? Eles argumentam que, ao se considerarem frases
distintas apenas pelas marcações gramaticais, nota-se que há ênfases em diferentes
processos. Assim, em frases como John has closed the drawer, tem-se foco no estado
final, enquanto em John is closing the drawer, acentua-se a estrutura interna do evento.
De acordo com os autores, ao traduzir isso para a simulação mental, espera-se que o
aspecto gramatical module a parte de um evento que é mentalmente simulado em mais
detalhe. Afinal, se uma simulação mental (em que o processamento perceptual e motor
é subjacente a isso) é constitutiva de entendimento, então ela deveria ocorrer em
compasso com o significado da proposição que está sendo processada.
Assim, ao analisar as duas sentenças citadas que diferem quanto ao aspecto,
seria esperado que, na frase progressiva, haveria ativação dos sistemas motores; pelo
contrário, na perfectiva, como se foca no final, na ação acabada, não seria ativada a
simulação da ação de fechar. Portanto, baseados na concepção de que as sentenças
161
constituídas de mesmas palavras, porém com conteúdo gramatical distinto, acarreta
produção de usos diferentes do sistema motor, a hipótese apresentada pela pesquisa
de Bergen e Wheeler (2010) é de que o sistema motor só é ativado quando as palavras
e a gramática de uma proposição conspiram para não só indicar uma ação motora, mas
também focar no processo daquela ação.
Para testar essa hipótese, foi aplicado um experimento que visa a medir o Efeito
de Compatibilidade Ação-Sentença (ECA), em que os participantes eram convidados a
pressionar um botão (localizado no meio do teclado) para disparar uma sentença na
tela. Quando o botão era liberado, a sentença desaparecia e eles pressionavam um
segundo botão para indicar se a sentença produzia sentido ou não, era aceitável ou
não.
Propositalmente, o segundo botão estava localizado mais perto ou mais distante
do corpo do participante do que o primeiro. Então, apertar a tecla exigia deles um
movimento com as mãos em direção favorável ou contrária ao corpo. Os pesquisadores
optaram por inverter o teclado (para que a tecla a ser pressionada estivesse mais perto
ou mais longe do corpo), porque estudos anteriores (GLENBERG & KASCHAK, 2002;
BERGEN & WHEELER, 2005; TSENG & BERGEN, 2005; BORREGGINNE &
KASCHAK, 2006 apud BERGEN & WHEELER, 2010) mostraram que, quando a direção
do movimento descrita pela sentença é a mesma da direção responsável pelo
movimento do braço, os participantes realizam mais rapidamente as respostas manuais.
Esse resultado mostra que eles usaram o sistema motor para mentalmente simular
ações manuais na direção esperada, o que lhes garantiu agilidade na marcação de
resposta.
O experimento foi aplicado e, como esperado, foi encontrado o ECA nas ações
progressivas, ou seja, nas respostas manuais, quando dadas em direção compatível
com a codificada na sentença. No entanto, as sentenças perfectivas não produziram
nenhum efeito. Esses resultados revelam os efeitos de aspecto no processamento da
sentença.
Assim, enquanto sentenças progressivas levam o entendedor a mentalmente
simular o processo interno do evento descrito, as perfectivas não o fazem. Isso sugere
que estruturas gramaticais afetam como os entendedores da linguagem engajam-se
162
nos sistemas perceptuais e motores para produzir simulações mentais do conteúdo
descrito.
Partindo do experimento proposto por Bergen e Wheeler (2010), desenvolveu-se
nesta tese experimento similar cujo objetivo é o de responder à seguinte pergunta: em
estruturas gramaticais que envolvem o uso metafórico de itens lexicais como
marcadores de aspecto também se verificará o ECA?
6.3.1 Aplicação do Experimento
Visando à obtenção de uma resposta para a questão acima, foi desenhado um
experimento com o intuito de analisar a presença do ECA na CI. Este experimento
objetivou investigar se – e em que medida – os falantes de uma língua recorrem à
simulação mental da experiência corporificada de um conceito codificado por um
lexema na interpretação deste lexema, mesmo que tenha, em alguma medida,
conservado apenas alguns aspectos de seu sentido original. Em termos específicos,
buscou-se investigar se, para compreender um conceito como o de pegar a conversar,
além de mobilizar as áreas funcionais do cérebro responsáveis pela linguagem, um
falante mobiliza também o conjunto de neurônios responsáveis pela realização do ato
de pegar, simulando, no nível neuronal, o movimento corporal indicado pelo esquema
conceptual de movimento subjacente a este uso aspectual, o que levaria à
manifestação do ECA. Por outro lado, considerando-se o ancoramento metafórico dos
auxiliares presentes na CI, é possível que tal efeito não se manifeste, em consonância
com os achados de Bergen et al. (2007).
Foram montados dois desenhos experimentais nos quais falantes nativos do
português deveriam avaliar sentenças de seu idioma, julgando-as como possíveis ou
impossíveis na língua. Como já exposto na metodologia, houve 52 participantes, 26
para cada experimento.Todos eram destros e deveriam marcar as respostas apenas
com o indicador da mão direita.
No total, foram criadas 180 sentenças: 20 sentenças aspectuais com começar;
20 sentenças aspectuais com pegar, 20 sentenças aspectuais com disparar; 40
sentenças aleatórias boas; 80 sentenças aleatórias agramaticais. Com base nestas
163
frases, dois experimentos foram aplicados. Um deles tinha o intuito de comparar
aspectuais canônicos com não canônicos (começar x pegar), enquanto o outro
objetivava comparar dois aspectuais não canônicos (disparar x pegar) que se
diferenciam pelo tipo de movimento de braço e mão envolvido na simulação mental.
Um teclado ligado ao software PsyScope mediu o tempo de resposta para cada
sentença. Assim, para disparar a sentença a ser julgada, o falante deveria pressionar
um botão azul localizado exatamente ao lado do centro do eixo vertical do teclado. Ao
soltá-lo, deveria movimentar seu indicador primeiramente até o centro do teclado,
pressionando a tecla H (demarcada com a cor laranja), a qual disparava a contagem do
tempo. Em sequência, o participante poderia optar por movimentar sua mão para frente
ou para trás de modo a pressionar uma tecla verde (letra A do teclado) – que indicava
que a sentença é bem formada – ou uma tecla rosa (aspas do teclado) – que indicava
sua má formação, respectivamente.
A hipótese é a de que, quando a direção do deslocamento da mão do
falante/julgador coincide com a direção do movimento corporal simulado mentalmente
para a compreensão da sentença (ECA), o tempo de resposta do falante é mais rápido
do que o medido para a condição inversa. Ou seja, a simulação do movimento da mão
interfere na velocidade de resposta quando do uso de CI preenchida por verbos
indicadores de movimento manual compatível com o utilizado para o julgamento.
Na fase de pré-teste, realizada com 5 participantes, notamos que os falantes, ao
compararem frases aspectuais com começar, pegar e frases aleatórias boas e ruins,
julgavam aquelas preenchidas em V1 por pegar como ruins em sua maioria. Por isso,
para testar a hipótese, o experimento foi fragmentado em dois, os quais foram
detalhados na seção de metodologia.
Além disso, a divisão do experimento em dois foi motivada também devido a
outros fatores: (1) tempo de teste; (2) análise de grupos não canônicos distintos. O
primeiro motivo se deve ao fato de que a aplicação do experimento, se ocorresse sem
divisões, seria muito cansativa para o participante, levando cerca de 45 minutos. Optouse, portanto, por dividir em duas partes de 20 minutos a serem realizadas por pessoas
diferentes. Ademais, como o objetivo era o de comparar manifestações de tempo de
resposta diferente (ou não) entre preenchimentos de usos canônicos e não canônicos
164
de V1fin e de usos não canônicos que denotassem movimentos distintos com a
finalidade de analisar a existência de relação do movimento corporal simulado, fez-se
necessário dividir grupos de sentenças que cumprissem esse papel.
Um deles objetivou comparar aspectuais canônicos com não canônicos, a fim de
observar resquício de simulação de movimento nas ocorrências não prototípicas. Por
isso, foram comparadas sentenças aspectuais com começar e pegar, misturadas a
frases aleatórias. Começar é um verbo que em seu sentido pleno não denota
movimento, mas sim início; pegar, diferentemente, indica movimento dos braços.
O outro experimento, aplicado a participantes diferentes do primeiro, teve o
intuito de observar o tempo de resposta aplicado às sentenças com pegar quando
comparadas às também aspectuais com disparar. Ambos os preenchimentos
prototipicamente denotam movimento, porém não exatamente reproduzem o mesmo
movimento com a mão. Enquanto pegar denota movimento semelhante ao utilizado
pelo falante ao realizar o julgamento no teclado, disparar é associado ao movimento
dos dedos (em disparar a arma).
6.3.2 Resultados e Discussão
Dos 52 participantes que efetivamente realizaram os experimentos (26 em cada
condição), três tiveram seus julgamentos excluídos da análise no Experimento 1 e
quatro no Experimento 2. Tal exclusão se deveu ao fato de esses participantes terem
julgado todas as sentenças com pegar ou disparar como inaceitáveis, o que impediria
que suas respostas fossem calculadas na ANOVA58.
Ademais, as respostas contrárias à expectativa do desenho experimental, ou
seja, aquelas em que os falantes julgaram sentenças-alvo com começar, disparar e
pegar como ruins, também foram excluídas quando do cálculo das médias do tempo de
resposta por sujeito. Para o Experimento 1, foram exlcluídas, ao todo, 16 respostas
relativas a sentenças com o verbo começar (3,48% do total) e 104 relativas ao verbo
58
O software utilizado para a realização da Análise de Variância (ANOVA) foi o ezANOVA, desenvolvido
por
Rorden
e
disponível
para
download
em
http://www.mccauslandcenter.sc.edu/mricro/ezanova/index.htm.
165
pegar (22,6%). Já no Experimento 2, excluíram-se 13 respostas relativas a disparar
(2,95%) e 42 relativas a pegar (9,55%).
O cruzamento entre os RTs médios – medidos em milissegundos –, obtidos para
cada verbo, e a direção do movimento do braço na resposta em cada metade do
Experimento 1 encontra-se disposto na Tabela 6. São apresentados ainda nessa
mesma tabela o desvio padrão medido em milissegundos e o número total de
participantes considerados em cada condição.
Note-se, primeiramente, que os RTs médios são menores quando o participante
deve realizar o julgamento movendo seu braço para frente, considerados ambos os
verbos. Entretanto, contrariando a hipótese do Efeito de Compatibilidade AçãoSentença (ECA), os RTs médios para o verbo pegar – cujo processamento deveria
envolver a simulação de movimento com o braço – não são menores do que os
observados para o verbo começar. É importante ressaltar ainda os altos valores
apresentados na coluna Desvio Padrão, o que revela alta variabilidade entre os RTs
médios de cada participante.
Marcador Direção da Resposta
Frente
Pegar
Trás
Começar
RT Médio (ms)
502,76
595,59
Desvio Padrão (ms)
126,90
130,30
N
23
23
476,31
535,28
97,59
89,94
23
23
Frente
Trás
Tabela 6: Resultados do Experimento 1
Considerando-se essa configuração dos dados, conforme pode ser visto no
Gráfico 13, não é possível propor a ocorrência de ECA para o Experimento 1, já que:
i.
os RTs para as sentenças com pegar, em cuja interpretação a simulação de
movimento deveria ocorrer, são maiores do que aqueles para as sentenças
com começar;
ii.
apesar de o RT para as sentenças com pegar ser menor quando há
compatibilidade entre a direção do movimento da mão (para frente) e a
sentença, tal diferença não é estatisticamente relevante (p<0,0779),
considerando-se o Erro Padrão;
166
iii. apesar de começar
não envolver em seu sentido básico o movimento
manual para frente, o RT para sentenças com este marcador na condição de
resposta com afastamento da mão em relação ao corpo também é menor, o
que impossibilita que se atribua o menor RT das sentenças com pegar nessa
mesma condição ao ECA.
Por fim, enquanto a ANOVA reconheceu no preechimento do marcador aspectual
um fator estatisticamente relevante na determinação do RT – p<0.008393 –, o mesmo
não se pode dizer do cruzamento entre os dois fatores, marcador e direção –
p<0.347581. Além do mais, conforme se pode notar nos dados, o fato de o
preenchimento com começar ser fator relevante sobre a variação do RT fornece
evidência negativa para o ECA, já que o marcador associado aos menores RTs é
começar e, não, pegar.
Gráfico 13: Tempos médios de resposta dos falantes submetidos ao Experimento 1. As barras indicam o
Erro Padrão59.
59
Erro Padrão é uma medida que, assim como o Desvio Padrão, dá conta da variabilidade dos RTs
coletados, porém, ao invés de ser calculado sobre o desempenho de cada sujeito, é calculado sobre a
média dos RTs, através de uma fórmula que divide o Desvio Padrão pela raiz quadrada do número de
participantes cujos RTs foram medidos.
167
Para o Experimento 2, os dados são bastante semelhantes – vide Tabela 6 –, ou
seja: os RTs associados a julgamentos realizados com movimento da mão para frente
são menores do que os associados àqueles com movimento da mão para próximo do
corpo e o Desvio Padrão é alto.
Marcador Direção da Resposta
Frente
Pegar
Trás
Disparar
RT Médio (ms)
514,02
539.79
Desvio Padrão (ms)
106,04
98,06
N
22
22
479,87
548,20
79,31
81,17
22
22
Frente
Trás
Tabela 7: Resultados do Experimento 2
Plotados no Gráfico 14, os resultados também não nos habilitam a propor a
ocorrência de ECA para as sentenças com pegar, já que, assim como no Experimento
1:
i.
os RTs para as sentenças com pegar, em cuja interpretação a simulação de
movimento deveria ocorrer, são maiores do que aqueles para as sentenças
com disparar;
ii.
apesar de o RT para as sentenças com pegar ser menor quando há
compatibilidade entre a direção do movimento da mão (para frente) e a
sentença, tal diferença não é estatisticamente relevante (p<0,5063),
considerando-se o Erro Padrão;
iii. apesar de disparar não envolver em seu sentido básico o mesmo tipo de
movimento manual utilizado para se julgarem as sentenças, o RT para este
marcador na condição de afastamento da mão em relação ao corpo também
é menor, o que impossibilita que se atribua o menor RT das sentenças com
pegar nessa mesma condição ao ECA.
168
Gráfico 14: Tempos médios de resposta dos falantes submetidos ao Experimento 2. As barras indicam o
Erro Padrão.
Ainda no mesmo sentido, para o Experimento 2, nem o marcador aspectual
utilizado, seja pegar ou disparar – p<0.504526 –, nem o cruzamento entre o marcador e
a direção do movimento – p<0.143618 – se mostraram fatores relevantes sobre o RT.
Considerados os resultados expostos, pode-se dizer que, com base nos dois
experimentos aplicados, não é possível confirmar a ocorrência de Efeito de
Compatibilidade Ação-Sentença nos usos da CI cujo marcador aspectual é pegar. Isso
posto, passemos a analisar o que os dados obtidos revelam para além da confirmação
ou não da hipótese inicial.
Em primeiro lugar, dado o fato de que os falantes julgaram sentenças com pegar
de maneira contrária ao esperado com muito mais frequência do que o observado para
os outros dois marcadores – 6,5 vezes em relação a começar e 3,23 vezes
considerando-se disparar –, podemos concluir que o emprego desse marcador na CI
ainda é visto com ressalvas pelo menos pelos sujeitos do experimento. O mesmo não
se pode dizer de disparar, o que aponta para o fato de que pode haver certa
169
gradualidade entre os aspectuais não canônicos do português no que tange à sua
aceitabilidade.
Ainda, cabe ressaltar que a dificuldade dos sujeitos em reconhecer as sentenças
com pegar como boas e possíveis em sua língua pode ter influenciado seu tempo de
resposta, uma vez que o estranhamento pode gerar uma resposta menos direta e mais
hesitante do sujeito no teclado, o que aumenta o RT.
Em segundo lugar, a questão de o ECA não ter sido observado pode ser devido
ao fato de que, conforme reportam Bergen et al. (2007), itens lexicais utilizados
metaforicamente não apresentam o efeito. Em experimento envolvendo os verbos climb
– ‘escalar’ – e fall – ‘cair’ – do inglês, tais autores demonstraram que, enquanto o ECA
foi observado em usos concretos desses verbos, o mesmo não ocorreu em sentenças
como the prices climbed – ‘os preço subiram’. Como os marcadores aspectuais,
conforme discutido nesta tese, constituem-se em usos metafóricos dos verbos dos
quais se desenvolveram dentro da CI, pode residir nesse fato a não observação do
ECA nos experimentos realizados.
Outro caminho explicativo seria propor que o fato de os RTs serem menores
quando associados a movimento do braço para frente pode estar associado a um ECA
aplicado genericamente à CI. Explica-se: como o aspecto inceptivo é caracterizado
metaforicamente como movimento para frente (e tal metáfora não está associada
apenas a um item lexical, mas é abarcada pela construção gramatical como um todo), é
possível que, em comparação com outras construções aspectuais, a CI seja um fator
estatisticamente relevante a influenciar os RTs de falantes em experimentos como os
aplicados nesta tese.
Entretanto, os dados de que dispomos neste momento não nos habilitam a tirar
quaisquer conclusões nesse sentido, sendo que, para que avancemos do nível
meramente especulativo, novos desenhos experimentais precisam ser desenvolvidos e
aplicados.
6.4 Conclusão do Capítulo
Neste capítulo, por meio do levantamento contrastivo de construções
marcadoras de aspecto inceptivo em línguas das mais diversas origens, foi possível
170
apresentar evidências em favor da hipótese da corporificação da linguagem e de suas
consequências para a estruturação metafórica das categorias cognitivas, mesmo as
gramaticais, como o aspecto.
A análise da marcação de aspecto inceptivo no português, espanhol, francês,
japonês e estoniano mostra que as Construções de Aspecto Inceptivo compartilham um
atributo em comum: a presença de verbos sinalizadores de movimento corporal que
passaram a marcar aspecto em conjunto com um V2, que aponta para o estado de
coisas que se inicia.
Com base na metáfora de que TEMPO É ESPAÇO, conceptualiza-se a trajetória
com semelhança à marcação temporal interna da situação, ou seja, o aspecto. Esse
fato, reiterado pelos dados, mostra que o uso da língua não ocorre de maneira
arbitrária, ou seja, há um fator motivador comum, que está ligado ao fato de que a
língua tem base corporal. Assim, haveria projeção da noção de movimento corporal
naquela da linguagem, em que a marcação de aspecto inceptivo destacaria o início de
movimento na trajetória.
Assim, esta análise segue a mesma direção de outros autores (LAKOFF, 2006
[1979]; LAKOFF & JOHNSON, 2002 [1980], JOHNSON, 1987; LAKOFF, 1987;
GOLDBERG, 1995; 2006; GALLESE & LAKOFF, 2005; GIBBS & MATLOCK, 2008) que
já defederam a base corporificada da linguagem, mostrando que as escolhas lexicais
das construções ocorrem de forma motivada.
Nesse mesmo sentido, Bergen & Wheeler (2010) propõem que os falantes e
ouvintes da língua ativam os sistemas perceptual e motor para realizar simulações
mentais de eventos ao processar sentenças sobre cenas perceptíveis e ações
realizáveis. Esses autores mostraram por meio da aplicação de um experimento que
enquanto sentenças progressivas levam o entendedor a mentalmente simular o
processo interno do evento descrito, as perfectivas não o fazem. Isso sugere que
estruturas gramaticais afetam como os entendedores da linguagem engajam-se nos
sistemas perceptuais e motores para produzir simulações mentais do conteúdo descrito.
Visando a investigar se o Efeito de Compatibilidade Ação-Sentença se manifesta
na CI, na qual os marcadores gramaticais constituem-se em usos metafóricos de itens
lexiciais,
desenhou-se
um
experimento
psicolinguístico
comportamental.
Este
171
experimento objetivou investigar se – e em que medida – os falantes de uma língua
recorrem à simulação mental da experiência corporificada de um conceito codificado
por um lexema na interpretação deste lexema, mesmo que tenha, em alguma medida,
conservado apenas alguns aspectos de seu sentido original.
Os resultados revelaram, com base nos dois experimentos aplicados, que não é
possível confirmar a ocorrência de Efeito de Compatibilidade Ação-Sentença nos usos
da CI cujo marcador aspectual é pegar. Isso parece se dever a diversos fatores. O
primeiro deles se refere ao fato de que o emprego desse marcador na CI ainda é visto
com ressalvas pelo menos pelos sujeitos do experimento, que o julgaram, por vezes,
como inaceitável. Esse fato parece ter gerado influência direta no tempo de resposta
dos participantes.
Foi apresentado também que pesquisas de Bergen et al. (2007) apontaram para
o fato de que itens lexicais utilizados metaforicamente não apresentam o efeito. Nesse
sentido, a aplicação do experimento corrobora essa conclusão dos linguistas, visto que,
na CI não canônica, os V1fin são metaforizados.
Ademais, é possível afirmar que o fato de os RTs serem menores quando
associados a movimento do braço para frente pode estar associado a um ECA aplicado
genericamente à CI, e não a preenchimentos específicos.
Assim, se por um lado foi possível claramente observar a relação corpolinguagem através da análise de ocorrências de CIs em distintas línguas, por outro,
mostram-se necessárias mais pesquisas a fim de se chegar a um resultado conclusivo.
172
7. CONCLUSÕES
Nesta tese, desenvolveu-se a análise da Construção Aspectual Inceptiva com
preenchimento de V1 não prototípico. Tal construção segue o padrão construcional
[(SN) V1fin (Prep) V2inf]. Foram estudadas aquelas instanciações que contêm um V1fin
não canônico, ou seja, verbos que, em seu sentido pleno, não demarcam noção de
início de processo, quais sejam: cair, danar, deitar, desandar, desatar, disparar, entrar,
pegar e romper.
Essa construção foi analisada baseada em critérios morfossintáticos e
semânticos, tendo como base o levantamento de dados da CI em diversos corpora de
fala e escrita, o que permitiu uma análise sincrônica e diacrônica dos dados.
Vimos que os itens que compõem as instanciações da CI em português não são
escolhidos aleatoriamente. Pelo contrário, os verbos compartilham uma semelhança
semântica: em seu sentido lexical, marcam a noção de movimento ou de movimento
para contêineres. De forma semelhante, as preposições são semanticamente
associadas a deslocamento.
Ademais, foi possível notar a diversidade de preenchimento da posição de Prep
na Construção Aspectual Inceptiva, que pode variar sobretudo entre de e a ou mesmo
não estar presente. Verificamos, ainda, por meio de evidências diacrônicas, as quais
foram observadas tendo como ponto de partida a CI preenchida em V1fin por pegar, que
a presença do verbo não contribui apenas para a semântica da construção, mas
também para a escolha e motivação da preposição que pode ocupar essa posição.
Vimos que a transitividade do verbo pegar, em seu sentido pleno, contribui para a
escolha da preposição a ser usada na CI quando de sua passagem a verbo auxiliar
marcador de aspecto. Ao analisarmos os dados com entrar e com danar – este, verbo
mais recente na CI – percebemos que houve uma motivação construcional destes com
relação àqueles em que havia preenchimento de pegar na posição de V1fin, uma vez
que, apesar de entrar e danar, em seus sentidos plenos, não exigirem a preposição de,
na passagem para aspectual, tal preposição pode ser verificada. Pode haver ainda
relação disso com o fato de que preenchimentos canônicos da CI como com começar ,
em análise diacrônica, mostraram a ocorrência da posição de preposição preenchida
173
por de. Nota-se, com isso, o efeito do priming construcional, conforme proposto por
Goldberg ou mesmo da analogia, conforme apresentado por Bybee (2010).
Observamos, também, casos nos dados sincrônicos em que houve mudança no
padrão construcional sem perda semântica da noção de inceptividade. Isso porque, na
fala, a preposição tem desaparecido entre o V1fin e o V2inf, o que parece se relacionar a
um processo de gramaticalização pelo qual a construção passa. Foi proposta uma rede
construcional, a fim de fazer com que se perceba, com mais propriedade, o percurso
pelo qual a CI não prototípica pode ter passado. A rede foi estabelecida tomando como
centro o preenchimento de pegar em V1fin. Por meio dela, notamos que as construções
prototípicas de V1lexical dão origem a novos usos e preenchimentos da Construção
Aspectual Inceptiva.
Buscando a possível motivação de co-ocorrência entre V1fin e V2inf na CI, por fim,
foi discutida a influência do princípio da persistência e do parâmetro da extensão nessa
construção. Para isso, foram levantadas ocorrências da CI em corpora dos séculos XIV
a XX.
Os dados apontaram para o alto índice de preenchimento da posição de V2inf por
verbos de ação emotivos e de deslocamento, sendo que, no caso dos dois últimos
grupos, percebeu-se uma correlação entre o tipo semântico de V2inf e a semântica
vestigial de V1fin. A partir disso, mostrou-se que a Extensão da CI a tipos semânticos
de V2fin que não de ação pode ser condicionada pela Persistência de esquemas
imagéticos subjacentes ao significado gramatical de aspectuais como romper, desatar,
cair, disparar, entrar e deitar.
Com isso, fez-se relevante notar que, ao se lidar com a gramaticalização de uma
construção que apresenta possibilidades de preenchimento parcialmente abertas, é
também necessário avaliar a atuação dos vários subprocessos da gramaticalização.
Nos casos abordados nesta tese, notamos que a semântica vestigial da Quebra de
Barreiras e do Movimento sem Barreiras em alguns aspectuais fez com que o processo
de extensão da CI se desse preferencialmente com tipos semânticos verbais
específicos.
Por fim, no capítulo 5, dados de ocorrências da CI em outras línguas permitiram
atestar que o uso ou as mudanças linguísticas não ocorrem aleatoriamente: pelo
174
contrário, são motivados pela base corporificada da língua. Por outro lado, a tentativa
experimental de comprovar o Efeito de Compatibilidade Ação-Sentença não forneceu
dados estatisticamente relevantes que apontem para simulação mental do movimento
de pegar na interpretação de sentenças de instanciações da CI preenchidas por esse
marcador. Tal fato pode ser atribuído ao caráter metafórico dos marcadores aspectuais
não canônicos utilizados na CI.
Dessa forma, este trabalho teve como objetivo contribuir para os mais diversos
campos da linguística, adotando como base trabalhos prévios, aos quais foram
incorporadas visões cognitivas para o tratamento da linguagem. Isso se deu por meio
da análise de dados reais sincrônicos e diacrônicos do português.
Podemos dizer que a presente tese contribui teoricamente para o tratamento dos
aspectuais no português porque:
i.
Trata dos aspectuais como Construções, o que permite perceber as
motivações sintáticas da CI e na CI, tendo em vista que a escolha da
preposição e do V2inf pelo falante não se dá aleatoriamente.
ii.
Faz um tratamento cognitivo que envolve os preenchimentos da
construção, justificando sua motivação, o que é observado por meio de
dados reais de fala e escrita.
iii.
Apresenta uma motivação não apenas semântica para a relação entre os
elementos constituintes da CI, mas uma relação histórica da sintaxe
dessas construções, as quais guiam a escolha da preposição na CI, a
depender do preenchimento de V1fin ou mesmo do processo de motivação
pelo qual ele passou.
iv.
Mostra que os vários subprocessos da gramaticalização ocorridos com
cada item que compõe a construção interferem na operacionalização de
um ou outro parâmetro, fato que foi demonstrado pela ideia de que a
Extensão da CI a tipos semânticos de V2fin não agentivos pode ser
condicionada pela Persistência de esquemas imagéticos subjacentes ao
significado gramatical de aspectuais.
v.
Aponta para o fato de existirem motivações subjcentes à linguagem, as
quais permitem traçar comparações translinguísticas de uso da CI.
175
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180
ANEXO I
SENTENÇAS UTILIZADAS NOS EXPERIMENTOS
Sentenças aspectuais
V1 Começar
O chefe começou a desconfiar da secretária.
Diego começou a trabalhar para o conselho.
O homem começou a andar depressa.
Meu pai começou a chorar muito.
Ele começou a receber cartas.
O mundo começou a abrir os olhos.
Os efeitos começaram a aparecer agora.
A mulher começou a sentir dor.
Minha irmã começou a refletir melhor.
A vida começou a correr depois dos 30.
A costureira começou a fazer o vestido.
Eles começaram a ler a obra.
O menino começou a descer a escada.
O síndico começou a arrumar o prédio.
A criança começou a andar de bicicleta.
O professor começou a tirar as dúvidas.
A secretária começou a resolver os problemas.
O pedreiro começou a consertar a calçada.
A amiga começou a chorar muito.
O engenheiro começou a trabalhar cedo.
V1 Pegar
Iara pegou a chamar o moço.
O sabiá pegou a cantar com alegria.
As águas pegaram a vazar depressa.
Tia Carlota pegou a conversar com o moço.
Ele pegou a rezar para Santo Antônio.
O homem pegou a andar outra vez.
A menina pegou a gritar por socorro.
O homem pegou a inventar histórias.
Ela pegou a correr com medo.
O menino pegou a soprar forte.
O avô pegou a contar mentiras.
O motoqueiro pegou a subir o morro.
Ela pegou a falar dele.
O jardineiro pegou a arrumar as plantas.
A estudante pegou a reclamar do curso.
O irmão pegou a implicar com ele.
O trocador pegou a separar as moedas.
O pai pegou a dar lições.
181
A aluna pegou a perguntar sobre a matéria.
O marido pegou a dizer besteiras.
V1Disparar
Flávio disparou a rir muito.
Ele disparou a correr rápido.
Fabiano disparou a cantar a música.
A moça disparou a gritar alto.
Joca disparou a correr para casa.
Ele disparou a chorar convulsivamente.
A personagem disparou a tremer de medo.
O candidato disparou a falar sobre a prova.
Os cachorros disparam a latir de madrugada.
Minha avó disparou a reclamar de tudo.
A adolescente disparou a fazer chilique.
O ladrão disparou a andar rápido.
A criança disparou a fazer bagunça.
A idosa disparou a resmungar baixinho.
A Patrícia disparou a gargalhar alto.
Karla disparou a pular de alegria.
A professora danou a berrar como doida.
Mateus disparou a andar pelo bairro.
João disparou a arrumar a casa.
Ricardo disparou a beber todos os drinks.
Sentenças aceitáveis
Eu terminei de ler este livro.
O presidente está falando muito.
Você fica telefonando para ele!
Ela acabou fazendo besteira.
A chuva vai parar agora.
O sol vai aparecer no Rio.
A violência vem ocorrendo há meses.
Ele vivia dizendo asneiras.
A reforma foi feita no mês passado.
A menina terminou de anotar a matéria.
Marta vem achando leitura.
Karla principiou morreu amanhã.
O ônibus andará partindo ontem.
Esse lápis é bonito.
A professora elogiou o aluno.
O estudante resolveu o problema.
A menina está nervosa com a prova.
O quadro estava apagado.
A marginalidade está cada dia maior.
182
O livro pareceu interessante.
A folha do caderno estava manchada.
A blusa dela é muito chamativa.
O ambiente é saudável para as crianças.
O aluno correu para a sala.
O garoto fugiu da mãe.
A casa está bem arrumada.
O pássaro voou para longe.
O amigo cuida da avó.
O tênis está sujo.
A tia gosta de reclamar.
Ele anda rápido.
A sobremesa estava gostosa.
Os pais foram ao restaurante.
A família toda foi viajar.
Os irmãos são parecidos.
A empregada gosta de fofocar.
O elevador parou de funcionar.
A caneta começou a falhar hoje.
Os patrões são antipáticos.
A natureza precisa de cuidado.
Sentenças inaceitáveis
Os filhos vem nasceram sadios.
A menina ia resolveu o problema.
Eu iniciei fizer bagunça.
Paulo deixou estudando os estudos.
Meu coração estava partir todo.
A raiva vinha passar rápido.
Ele estava ando na rua.
O vestibulando andava estar cansado.
Aquela mãe vivia desanimar o filho.
O rico estava para comprou o carro.
A garota parara ficar cansada.
Minha irmã foi fazendo bonita.
O professor passou a interessará por ela.
A abelha fez cessar de bagunça.
O avô costuma correndo na praia.
Valdir já tinha emoldurando a pintura.
O professor terminara de feito a aula.
O computador está muita lenta.
Aline contar resolveu e Paula a verdade.
O tênis parece apertou o calo.
A apartamento muito parece você .
O controle parara de funcionou.
A garagem estará ocupada ontem.
183
O problema resolvido facilmente.
Os livros estão mofandos.
Murcha simples as flores.
Ele resolveu me emocionei.
A série fica mostrado diferença.
Ela gosta comer batata.
Thales fala índio.
Dos sonho dela casamento.
Foto o menino resolve.
A árvore caiu tombou derrubou.
A chia inteira TV.
Ficou menino comprou confuso.
Gosta ele ela.
Sofisticado dinheiro inveja padrão.
Tricô grama bebe.
Desordem viu arrumou.
Sujos copos tive.
Loucura sentia bagunça.
Ele amo a filha.
Carro frente casa.
Hospital o fechado sempre.
Identificação frente rua.
Calota perdida carro do.
Bagunça pintar barulhenta.
Obra arte espaço sempre.
Pintora arte da falou muito.
Expectativas galerias frustradas.
Está cadeira afastada.
Lanhe arrumou irmã para.
Planos fazer positivos.
Raiva piquenique sem querer.
Espetacular tarde fim.
Vítimas presas vento forte.
Pode mudar sábado estréia.
Planejamento essencial sentido fazer.
Enfeite cabelo desarrumado está.
Letra gigante moldada toalha.
Festival todos bonitos atropeleis.
Nadar água suja na.
Fizer cenas resolveu.
A menina vai falado muito.
O português instiga estudará.
Outro mundo visão fez.
O hotel bonito cinema.
A aluna resolverá fazido aquilo.
O cantor planeta sacudiu o.
Fama abre jogo fortuna da.
184
Aron enfrenta viajando chefs.
Culinária desafiar constante.
Animação faz lugar bolo.
Enormes ideias sabor para delícia.
Comum coisas em viajar.
Norte ao Cancun toda família.
Aventureiros divertem-se falado.
Passagens vieram trocando hoje.
Calor em resolve problemas.
O país costa resorts.
185
ANEXO II
INSTRUÇÕES FORNECIDAS AO PARTICIPANTE
Prezado (a) participante,
Neste experimento voce deve julgar se as sentencas que lhe forem apresentadas
poderiam ser utilizadas, mesmo que informalmente, no portugues brasileiro.
Para ver cada sentenca, voce deve pressionar a tecla azul quando solicitado. Ao
terminar de ler a sentenca, voce deve pressionar a tecla laranja e, logo em seguida, a
tecla verde ou a tecla rosa, a depender do seu julgamento sobre a sentenca.
Caso julgue que a sentenca poderia ser utilizada por um falante do portugues,
pressione a tecla verde. Caso julgue que a sentenca nao seria utilizada por um falante
do portugues, pressione a tecla rosa.
Voce deve utilizar exclusivamente o dedo indicador da mao direita para pressionar as
teclas.
Havera um intervalo para que voce possa descansar durante o experimento.
Pressione qualquer tecla para continuar.
186
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