Cuti, um dos mais significativos poetas de origem africana da

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AFRICANIDADES
COMO VALORIZAR AS RAÍZES AFRO NAS PROPOSTAS PEDAGÓGICAS
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva1
Cuti, um dos mais significativos poetas de origem africana da atualidade,
escreveu:
Quem conhece meus Nilos de dentro
meus rios
raízes que regam felizes
a carne do Brasil?
Pois é, quem conhece as raízes africanas da nossa cultura? Já perceberam
que muitas pessoas valorizam como contribuições mais importantes para a cultura
brasileira as de origem européia? Este é um julgamento que demonstra preconceito
contra os índios, os primeiros habitantes deste país, e contra os africanos e seus
descendentes. Mais ainda, demonstra ignorância profunda a respeito desses povos.
Quem pensa que somente na Europa e nos Estados Unidos são concebidas
idéias, iniciativas, invenções importantes para a humanidade, que somente ali se
desenvolvem civilizações, está redondamente enganado.
Quantos de nós sabem que:
a) o ancestral mais antigo de que a humanidade tem notícia é uma mulher
africana, cuja ossada foi encontrada no Quênia?
b) Antes de os europeus começarem a escravizar africanos, eles mantinham
amistosas relações comerciais com diferentes nações do continente
africano?
Muito antes da chegada dos europeus, na África floresciam respeitáveis
civilizações, como a do Reino do Zimbábue, a do Congo, a do Egito. É difícil lembrar
que o a Egito é um país africano, quando imagens nos livros e no cinema
representam os antigos egípcios com traços europeus.
Quando para as América foram trazidos mulheres e homens escravizados,
em diferentes pontos da áfrica – em diferentes nações – desenvolviam-se sistemas
1
Doutora em Educação
Professora do Departamento de Metodologia do Ensino da Universidade Federal de São Carlos - SP
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de pensamento, chamados na Europa de filosofia; complexas sociedades e formas
de governo organizavam-se; avançadas criações tecnológicas eram postas em
prática. Como, então, acreditar que pessoas oriundas daquele ambiente tenham
esquecido tudo que sabiam, ao serem escravizadas, e que nada trouxeram para o
Brasil?
Africanidades brasileiras
Ao dizer africanidades estamos nos referindo ao legado africano, à herança
que mulheres e homens escravizados deixaram par nós, povo brasileiro.
Os africanos escravizados, afastados de suas nações , separados de suas
famílias, vistos como objetos de uso e de dominação, desenraizados de suas
culturas, viram-se provocados a reagir, para manterem-se vivos física e moralmente.
E reagir, neste caso, significou fugir, organizar os quilombos, criar todas as
formas de resistência, inventar um jeito de ser africano, no Brasil, em meio à
opressão e aos desprezo pelo que tinham de mais genuíno: a cor de sua pele e sua
cultura.
Foi essencial reagir contra as ações e atitudes dos europeus brancos e
cristãos que de tudo faziam para lhes impor a sua religião, sua visão do mundo, sua
organização econômica e social, o contato entre o africano escravizado e o europeu
seu senhor não foi uma experiência de trocas, mas de choque, de imposição, de
destruição.
Os europeus formaram uma imagem negativa do escravizado e seus
descendentes não esqueceram esta imagem, nem se importaram em verificar se
correspondia, de fato, à realidade. E ficaram por aí, ainda em nossos dias
continuam, dizendo que nós, negros, somos feios, pobres e incapazes de sair desta
situação, incultos, porque não partilhamos de suas raízes culturais.
Talvez algumas pessoas, ainda se perguntem: - Mas, tudo isto não é
verdade? Evidente que não é.
Voltemso ao legado africano para a cultura brasileira. O que mesmo
herdamos, além da culinária, dos ritmos musicais, do gosto pela dança?
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Sem dúvida, herdamos uma invejável capacidade de resistência, uma forte
e esperançosa crença nas pessoas, em Deus, uma ação criadora capaz de
enfrentar as continuadas tentativas de extermínio do povo negro. Vejamos alguns
exemplos.
A religião, importante lugar de refúgio da identidade africana, encontra, em
tradições de diferentes culturas africanas, elementos que levaram os escravizados a
africanizar os cultos cristãos, criando as congadas, moçambiques, ensaios. Tais
tradições também permitiram o reinventar das religiões nativas que, apesar das
incessantes perseguições, impuseram-se e permaneceram nas expressões, por
exemplo, do batuque, candomblé, macumba, tambor de minas, umbanda. Hoje,
descendentes de africanos e, também, muitos de europeus se reúnem, nos terreiros.
Ali, uns e outros, todos, não mais africanos nem europeus, mas brasileiros,
vão tendo acesso ao sistema de conhecimentos próprio das religiões afro, através
da experiência intensamente vivida. Só tem realmente sentido, ensina Helena
Teodoro, o que for aprendido pela ação de cada um, informado e apoiado pelos
mais experientes. Aprender, pois, implica trocas entre pessoas e construção de
caminhos para aprender, trilhados por cada um. Em outras palavras, aprende-se
realmente o que se vive, e muito pouco sobre o que unicamente se ouve falar.
Já pensaram a importância disso tudo para as propostas de educação que
visam a atingir a população negra, de modo especial, e a população brasileira, de
um modo geral?
E não ficamos nisso. No seio das religiões afro-brasileiras, os cantos e as
danças são formas que permitem o relacionamento com Deus. Temos, no ritmo dos
atabaques, das palavras (cantos), dos corpos, uma maneira de organizar e de tornar
público os pensamentos, desejos, agradecimentos, as propostas, orações. E dizer
que a nossa sociedade considera quase que exclusivamente as expressões de
pensamento, feitas pelo raciocínio!
Mas as africanidades brasileiras não estão presentes apenas nas religiões
afro. Também tecnologias forma transportadas da África e aqui recriadas. Cunha
aponta que, na época colonial, materiais para construção de casas, bem como as
técnicas de edificação empregadas em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia
coincidem com os utilizados na África, no mesmo período. Assinala a presença de
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formatos de engenhos concebidos em África, na construção de equipamentos para
beneficiamento do açúcar. Sublinha a semelhança entre os procedimentos para
extração do ouro, durante o período escravista, em África e Brasil. Salienta que a
produção de instrumentos de ferro era feita por mestres, escravos africanos.
Como se vê, os escravizados não serviram apenas como força de trabalho
manual, como insistentemente, até nossos dias, posições racistas fazem crer. Para
cá trouxeram ciência e tecnologia, entre outros.
Como teria surgido Palmares, se os escravizados não soubessem mais do
que realizar atividades braçais? E é evidente que todos temos consciência do
significado de Palmares, não só para o povo negro, mas para toda a nação
brasielira.
E por aí vão as africanidades brasileiras. Temos que aprender a conhecê-las,
valoriza-las e a aplicá-las em favor do povo brasileiro.
Que proposta pedagógica podemos fazer?
Em parte, a solução fica em nossas mãos de educadores, estejamos nas
escolas, nos centros comunitários, nas oficinas, em atividades formais e não-formais
de educação.
Para tanto, é preciso que tenhamos permanente cuidado de aprender e
ensinar a história do povo da África e da diáspora. Busquemos apoio em grupos do
Movimento Negro, para identificar quais são os interesses do povo negro, seus
traços culturais, sua contribuição na construção da nacionalidade brasileira.
Busquemos também embasamento em estudiosos que se dedicam ao estudo do
negro, sua cultura e sua história.
São muitas as denúncias de atitudes racistas a que os descendentes de
africanos têm de fazer face. São freqüentes e sempre renovadas. Por exemplo, a
Leio do Ventre Livre livrou a criança de se tornar escrava, mas não criou nenhum
tipo de apoio para lhe garantir bem –estar, desenvolvimento sadio, proteção afetiva
e material e, hoje, temos crianças nas ruas, tendo violentamente que sobreviver.
Para resolver o problema, a solução mais eficaz que muitos segmentos da
sociedade vêm encontrando resume-se numa palavra, extermínio.
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Extermínio! Luta contra ele tem sido a luta do povo negro, há 500 anos no
Brasil. Esta tem que ser uma luta fortemente assumida por todos os educadores,
que acreditam ser papel seu o de lutar por justiça.
Aqui entram as africanidades brasileiras. Sua valorização e presença
deliberada, não casual, em atividade educativas, de lazer, de divulgação de raízes
culturais é forma contundente de lutar contra o extermínio, seja ele físico ou
psicológico.
Esta presença não pode ser uma concessão, um gesto paternalista para o s
coitadinhos, mas atitude convicta de cidadãos brasileiros que assumem pela raiz a
situação trágica em que a sociedade lança o povo e, sentindo-se povo, a combate,
contribuindo para construir uma nação realmente livre, ciosa de suas origens.
E como conseguir isto? Estudando, conversando, trabalhando, propondo,
arriscando, corrigindo, recomeçando, aprendendo a conhecer outros pontos de vista
que não os divulgados como únicos certos.
Trabalhar em propostas educativas de interesse dos afro-brasileiros implica
combater os próprios preconceitos, os gestos de discriminação tão fortemente
enraizados na personalidade dos brasileiros, desejo sincero de superar sua
ignorância relativamente à história e à cultura deste povo.
Como vamos fazer? Há muito trabalho pela frente. Para quem ainda não o
iniciou, começando por participar de eventos de resgate da cultura afro-brasileira,
lendo sobre o assunto, discutindo-o, assumindo compromissos com a melhora do
currículo escolar.
Em frente, pois. E um dia chegaremos a propostas educativas que se
construam, levando em conta, também, a cultura afro-brasileira, para todos – negros
e não-negros.
BIBLIOGRAFIA
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Africanidades. Revista do Professor, Porto
Alegre, p.29-30, out./dez. 1995.
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