trabalho, desenvolvimento e os impactos na vida cotidiana

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TRABALHO, DESENVOLVIMENTO
IMPACTOS NA VIDA COTIDIANA
E
OS
Texto de Maria Betânia Ávila, Doutora em Sociologia pela Universidade
Federal de Pernambuco – UFPE, Pesquisadora e Coordenadora de Relações
Institucionais do SOS CORPO Instituto Feminista para a Democracia.
O modelo de desenvolvimento que vigora na América Latina e
no cenário global pode ser caracterizado, de maneira breve, como produtor e
reprodutor de desigualdades. O trabalho como dimensão criadora e propulsora do
desenvolvimento deve ser uma questão central na análise crítica sobre esse tema.
As controvérsias são imensas em torno desse conceito; no entanto, na sociedade
capitalista e patriarcal em que vivemos, é incontornável o fato de que as relações
de dominação e exploração são historicamente reproduzidas nos processos de
desenvolvimento desse sistema.
Para pensar essa relação entre trabalho e desenvolvimento,
tomamos como tarefa inicial a reflexão crítica sobre o conceito de trabalho – e,
com isso, já entramos no cerne da questão. Partimos do suposto que os conceitos
são historicamente construídos e definidos e redefinidos de acordo com o contexto
e as perspectivas dos sujeitos, que tanto podem ser críticas como legitimadoras
da ordem social. Do ponto de vista de quem detém o poder nessa sociedade, os
conceitos são reestruturados para responder à necessidade de novas explicações
que justifiquem as relações sociais que vigoram em cada contexto social e histórico,
as quais são determinadas pelas estruturas de poder. Se o modo de produção, por
um lado, “se altera em consequência dos resultados acumulados do trabalho da
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atividade humana – as relações sociais necessárias para levar a efeito a produção
também se alteram e do mesmo modo as concepções que justificam e interpretam
essas relações”. (Foracchi e Martins, 2006, p. 4)
Faz parte da ideologia neoliberal tratar a realidade social como
formada, de um lado, por estruturas permanentes, naturalizadas e funcionais, e
de outro, por uma soma de indivíduos, que nessa visão constituem uma multidão
fragmentada, para assim evadir das leituras dessa realidade as relações sociais,
retirando do cenário mundial os confrontos sociais e políticos que transformam as
relações e as estruturas de poder. Sobre o conceito de relação social retomamos aqui
as questões colocadas por Kergoat: “o que é importante na noção de relação social
– definida pelo antagonismo entre grupos sociais – é a dinâmica que ela introduz,
uma vez que volta a colocar a contradição, o antagonismo entre os grupos sociais
no centro da análise, e que se trata de contradição viva, perpetuamente em via de
modificação e de recriação”. (KERGOAT, 2002, p. 244) O que a autora coloca é que
se tomarmos em conta apenas as estruturas, isso nos levará a um raciocínio que
negaria a possibilidade da existência dos sujeitos, como se os indivíduos agissem
somente a partir da ação das formas exteriores. Para ela, é contra a visão solidificada
de estrutura social “que se insere o raciocínio em termos de relações sociais (com
seu corolário: as práticas sociais): relação significa contradição, antagonismo, luta
pelo poder, recusa de considerar que os sistemas dominantes (capitalismo, sistema
patriarcal) sejam totalmente determinantes” (KERGOAT, idem).
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Essa visão de sistema “dominante” como aquilo que não é
“totalmente determinante” constrói uma abertura para entender o movimento de
subversão à ordem, que constitui o sujeito, e para enxergar as dinâmicas individuais
e coletivas que formam as tensões e revelam as contradições que engendram a
vida social. É uma perspectiva que leva a perceber as novas práticas presentes nas
relações sociais e os movimentos que formam o devir. (Ávila, 2010)
Uma outra ação forte dos sujeitos do conhecimento, que sustentam
as teses do neoliberalismo, é a tentativa permanente de decretar o fim do trabalho,
como se o trabalho fora algo que pudesse ser extinto da vida social. Uma coisa é
a eliminação dos empregos formais, a desregulação que leva à perda de direitos
dos trabalhadores e trabalhadoras, outra coisa é a ideia de que uma sociedade
pode se reproduzir sem o trabalho. Mas essa investida contra a existência social
do trabalho e sua importância para a economia e para a política está justamente
ligada à tentativa de negar os antagonismos e as contradições, ignorando assim
as relações de exploração e dominação nessa fase do capitalismo, para desse
modo destituir de sentido os sujeitos das lutas no campo do trabalho, negar sua
organização e colocá-los/as como historicamente fora do lugar.
Uma das formas de confrontar essa ideologia e esse sistema de
dominação é justamente visibilizar o trabalho e as relações sociais que engendram
e são engendradas na sua dinâmica. Como afirma Antunes (2005), o trabalho é
uma questão central dos nossos dias. As teóricas e pesquisadoras feministas desse
campo, não só insistem na centralidade do trabalho nesta sociedade como também
produziram uma reestruturação desse conceito.
53
Trabalho produtivo e reprodutivo
O conceito de trabalho ao longo do tempo foi referido apenas ao
trabalho produtivo. Assim foi tratado pelas ciências sociais, pela economia, nos
planos de desenvolvimento das políticas nacionais e dos organismos internacionais.
O trabalho reprodutivo ou trabalho doméstico, assim definido no contexto da
sociedade capitalista patriarcal, esteve fora do conteúdo que dava significado ao
conceito de trabalho até muito recentemente. A reestruturação desse conceito
para alcançar as duas esferas do trabalho é parte de um processo político e de uma
prática de produção do conhecimento que se constroem a partir do movimento
feminista em uma relação dialética.
Para Marx e Engels (1991), o trabalho é o lugar da construção de
si, como sujeito, sendo assim a dimensão fundante da ontologia do ser social.
Porém, nessa concepção, é o trabalho definido como produtivo, que está sendo
considerado. O trabalho reprodutivo fica fora dessa dimensão ontológica, e assim,
fica excluído como uma prática de trabalho, sendo descartada dessa forma uma
experiência concreta, cotidiana, e sobretudo de trabalho das mulheres. Como
conseqüência, as relações de trabalho do campo reprodutivo não são consideradas
como um elemento da exploração e dominação que estrutura relações sociais.
Na análise marxista, a reprodução é tratada apenas como substrato do processo
produtivo, e o trabalho reprodutivo, realizado no espaço doméstico e elemento
central para a reprodução social, não é levado em conta. Os custos da reprodução
da força de trabalho são contados apenas a partir do consumo dos produtos
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necessários à manutenção e reprodução dos trabalhadores/as, mas todo trabalho
investido no cuidado, na produção da alimentação, na organização e manutenção
do espaço de convivência familiar está fora da conta que configura a mais-valia e,
portanto, que mede o grau do lucro na exploração capitalista.
Nós nos reportamos às análises de Marx e Engels porque são
as que nos interessam como referência matriz, pois foi a partir de conteúdos
teórico e do método de análise produzidos por esses autores, e sobretudo por
Marx, que foram construídas as bases teóricas para uma análise feminista que
desse conta da exploração e dominação das mulheres na sociedade capitalista
e patriarcal. Mesmo com todo o questionamento feito sobre a teoria marxista,
que não considerou a exploração e dominação patriarcal como elementos
indissociáveis do desenvolvimento capitalista, foi a partir do resgate da tradição
dessa teoria crítica, que surgiram as teorizações feministas que podem sustentar
um projeto emancipatório, à medida que trabalham a questão das contradições e
antagonismos das relações sociais de gênero e do seu imbricamento com outras
relações sociais como classe e raça.
A tradição funcionalista do Durkheim, por exemplo, outro teórico da
questão do trabalho nessa sociedade, não poderia ser essa referência na medida
em que está embasada em uma concepção de manutenção da ordem social, pois
como diz Pfefferkorn (2007) referindo-se a esse autor
para ele, a divisão do trabalho social própria às sociedades modernas é um
modo de organização superior. É primeiramente um fator de integração
social. Na perspectiva desse autor este é o fundamento do laço social, quer
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dizer daquilo que assegura a coesão nas sociedades contemporâneas. O que
opõe os membros da sociedade é remetido ao impensado ou ao patológico.
(PFEFFERKORN, 2007, p. 40-41)
Repensando essa questão com base em uma dimensão histórica
mais alargada, Hannah Arendt (2005) analisa a divisão entre trabalho produtivo
e trabalho reprodutivo a partir da Grécia antiga, evidenciando a falta de valor do
“labor”, que corresponde justamente ao trabalho reprodutivo, e a sua relação
histórica com a servidão. Poderíamos, aí também, falar de um trabalho que em
princípio foi tomado como não trabalho e, portanto, como o lugar da constituição
do não sujeito. Historicamente, assim, associado a uma relação de servidão.
É a partir da construção do conceito de trabalho como pertinente
às esferas produtiva e reprodutiva que a análise crítica sobre a divisão social do
trabalho pode evidenciar a existência de uma divisão sexual do trabalho como uma
dimensão estrutural no interior da primeira divisão. Do ponto de vista histórico,
segundo KERGOAT (2002), é possível observar que a “estruturação atual da divisão
sexual do trabalho surgiu simultaneamente ao capitalismo” (p. 234) e que a relação
do trabalho assalariado não teria podido se estabelecer na ausência do trabalho
doméstico. Para a abordagem aqui apresentada, vejamos a definição de Danièle
Kergoat, para quem:
A divisão sexual do trabalho tem por características a designação prioritária
dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva, como
também, simultaneamente, a captação pelos homens das funções com forte
valor social agregado (políticos, religiosos, militares etc.). Esta forma de divisão
social tem dois princípios organizadores: o princípio da separação (há trabalhos
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de homem e trabalhos de mulher) e o princípio hierárquico (um trabalho de
homem "vale" mais que um trabalho de mulher. (KERGOAT, 2002, p. 89)
Se, historicamente, instituiu-se na sociedade capitalista/patriarcal
a divisão sexual do trabalho que atribui às mulheres as tarefas domésticas e aos
homens as atividades produtivas, na prática, sempre houve mulheres que estiveram
tanto na esfera da produção como na esfera da reprodução. O trabalho reprodutivo,
em geral ausente das análises clássicas sobre desenvolvimento e reprodução social,
o qual sustenta a reprodução da força de trabalho e da humanidade permanece,
majoritariamente, de responsabilidade das mulheres. Os homens se mantiveram,
até hoje, pelo menos a maioria, apenas na esfera da produção. Atualmente, a
inserção das mulheres no mercado de trabalho formal ou informal se expandiu.
"Vivencia-se um aumento significativo do trabalho feminino, que atinge mais de
40% da força de trabalho em diversos países avançados e tem sido absorvido
pelo capital, preferencialmente no universo do trabalho part-time, precarizado e
desregulamentado." (ANTUNES, 2000, p. 105)
Na reestruturação produtiva se reatualizam as formas de divisão
sexual do trabalho no interior da esfera produtiva. Cabe às mulheres uma reinserção
nos trabalhos precarizados, flexibilizados, o que significa perda de direitos. Os
trabalhos a domicílio ultra precários são basicamente feitos por mulheres. E em
muitos países a redução da jornada de trabalho com redução de salário atinge
prioritariamente as mulheres, além de resgatar uma abordagem conservadora para
justificativa da necessidade de um retorno ao “lar”.
O fato de o trabalho em tempo parcial, precarizado e
desregulamentado, atingir preferencialmente as mulheres está, no contexto da
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globalização, dentro de uma reconfiguração da divisão sexual do trabalho. As
análises sobre desigualdade no mercado de trabalho são importantes, mas só
mediante uma análise que contemple mercado de trabalho e trabalho doméstico
é possível aprofundar a compreensão da relação de desigualdade das mulheres
na divisão sexual do trabalho. Isso nos leva a pensar o trabalho como dimensão
central na constituição da vida cotidiana que, para Torns (2001), aparece como
o “cenário analítico”, a partir do qual podemos observar como se desenrola
essa dinâmica e por meio do qual tem sido possível delimitar as presenças e as
ausências masculinas e femininas, de maneira estrita, e reconhecer, a partir daí, a
hierarquia que as preside.
A divisão sexual do trabalho dá significado às práticas de trabalho no
interior de cada uma de suas esferas. No campo produtivo, há uma representação
simbólica do trabalho de homens e do trabalho de mulheres e uma divisão de
tarefas que responde a essa representação. Essa divisão incide também sobre o
valor do trabalho de homem e de mulher, expresso no nível diferenciado de salários
e no desvalor do trabalho doméstico. Além disso, no trabalho produtivo há uma
captura das habilidades desenvolvidas no trabalho doméstico.
Há tarefas no interior do espaço doméstico consideradas pequenos
trabalhos masculinos, ligados à habilitação do homem como trabalhador da
esfera produtiva, como, por exemplo, os consertos na estrutura física das casas,
serviços elétricos, e outros que não estão diretamente vinculados às necessidades
incontornáveis de manutenção da vida no cotidiano.
As políticas públicas de bem-estar social que, segundo Oliveira
(1998), vêm sustentar a reprodução da força de trabalho na parte não coberta pelo
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capitalista no trabalho pago, geram o que ele chama de “direitos de antivalor”.
Portanto, ao tempo socialmente necessário para a reprodução, somam-se,
segundo ele, essas políticas públicas. Consideramos que deve ser acrescentado,
ainda, o trabalho doméstico não remunerado e remunerado como parte dessa
sustentação. A questão é a sua importância para a reprodução social. É em relação
a essa questão que Moraes interroga: “se os capitalistas...puderem diminuir os
custos de reprodução da força de trabalho, aproveitando-se da dupla jornada das
mulheres, por que investiriam em creches e equipamentos coletivos que minorem
os trabalhos domésticos?”(MORAES, 2003, p. 99). Esse trabalho, necessário à
reprodução social, é funcional para o sistema capitalista e patriarcal.
Em uma crítica feita à teoria sobre mulher e desenvolvimento, que
partia de uma análise da produção de mercadorias para explicar a situação do
trabalho das mulheres, Lourdes Benería e Guita Sen dizem que “para um completo
entendimento da natureza da discriminação, salário das mulheres, participação
das mulheres no processo de desenvolvimento, e implicações para ação política,
analistas devem examinar as duas áreas da produção e reprodução, assim como a
interação entre elas”. (BENERÍA & SEN, 1986, p.152)
O modelo de desenvolvimento em curso na América Latina, que se
caracteriza como capitalista, racista e patriarcal, reproduz desigualdades como
consequência direta da sua lógica e da sua dinâmica. Nesse sentido as desigualdades
de gênero classe e raça estão imbricadas como parte do processo. Como parte
dessa reprodução a população jovem vê-se diretamente afetada por essas relações
59
na sua inserção no mundo do trabalho. A relação entre gerações também se
constitui como uma relação social, portanto faz parte da mesma imbricação. As
relações desiguais de classe, raça e gênero são reproduzidas e mantidas a partir de
um sistema de poder que se sustenta na produção articulada dessas desigualdades
e que ao mesmo tempo produz uma percepção fragmentada dos problemas.
Posicionar-se contra esse sistema estruturalmente produtor de injustiças é, em
primeiro lugar, reconhecer as várias formas de desigualdades e discriminações e as
consequências sobre a realidade social.
O capitalismo está atingindo patamares jamais alcançados de
acumulação, ou seja, o capitalismo alcançou atualmente o maior grau de
acumulação da sua história. Tão grande que está criando uma defasagem profunda
entre a capacidade de produzir riqueza e a capacidade de redistribuí-la em um
patamar que possa alimentar a relação entre produção e consumo em níveis
funcionais para o sistema que se mantém pela produção e superação de crises
como parte estrutural do seu funcionamento. Podemos perceber que o grau de
desigualdade se aprofundou, pois a crise atual, que tem no sistema financeiro o
centro do qual emanam os problemas, tem sido “enfrentada”, pelos países que
detêm a hegemonia do poder econômico, em favor do capital financeiro.
O conceito de trabalho produtivo esteve sempre associado à
dominação da natureza. Essa visão levada ao extremo na sociedade capitalista
se expressa hoje em modelos produtivos que causam danos irreparáveis ao meio
ambiente, que ameaçam a reprodução da vida cotidianamente, e que têm levado a
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uma tentativa cada vez maior de mercantilização dos bens comuns da humanidade
e de todas as fontes naturais de riqueza. A lógica do mercado está assentada numa
lógica produtivista e na produção incessante de criação de novas necessidades.
É evidente que, como cada vez se produz mais, cada vez mais é preciso vender.
O acesso ao consumo é moldado de acordo com as possiblidades dos sujeitos
consumidores a partir dos seus pertencimentos de classe, raça e gênero no sentido
de manter e reproduzir as desigualdades e hierarquia nas quais estão inseridos.
Cada vez mais são produzidos objetos caríssimos e sofisticados para consumo de
elite e ao mesmo tempo se produzem milhões de objetos semelhantes na aparência
mas de baixa qualidade para o consumo massificado. Na lógica de mercado, na
ideologia subjacente a ela, a inclusão social se faz pelo consumo, e nesse conceito
de inclusão já está subtendida a desigualdade social. O mercado, atualmente,
lança mão de todos os meios midiáticos de massa para capturar o sentido da
vida cotidiana e reificá-la como uma dimensão determinada exclusivamente pela
capacidade de consumo. As mensagens midiáticas para incentivar o consumismo
têm como alvo sobretudo as mulheres e os jovens.
A pluralidade dos sujeitos políticos e de suas lutas permitiu
o aprofundamento da crítica a esse sistema. Por exemplo, a crítica à lógica
produtivista que sustenta esse sistema está sendo radicalmente (no sentido
ir a suas raízes) reformulada a partir da teoria crítica, mas avançando ou
reestruturando toda a formulação em termos da relação entre produção e
desenvolvimento, com o objetivo de combater qualquer relação hierárquica
entre produção, reprodução e meio ambiente.
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Questões sobre desenvolvimento
O desenvolvimento é pleno de definições, muitas vezes conflitantes.
Uma das formas usadas para sua definição é a sua adjetivação: desenvolvimento
econômico, desenvolvimento humano, desenvolvimento sustentável e assim por
diante. Na maioria dos casos essas qualificações aparecem como contraponto
ao conceito de desenvolvimento econômico ou para questionar sua lógica, em
geral predatória, que não leva em conta as necessidades humanas e costuma
estar submetida aos interesses dos setores que dominam o poder econômico.
No entanto, o que podemos afirmar é que as dimensões econômicas, social,
política e cultural são indissociáveis. A afirmação de cada campo particular do
desenvolvimento pode ser interessante de um ponto de vista analítico, ou mesmo
para revelar suas várias dimensões e contradições, mas, na prática, são dimensões
imbricadas em um mesmo processo.
A América Latina não está fora do processo de globalização e,
portanto, dos seus efeitos perversos provocados pelos modelos de desenvolvimento
impostos pela correlação de forças hegemonizada pela tendência neoliberal. Esta
ainda vigora, de maneira contraditória, nos países da região nos quais avançaram
os processos de democratização no campo popular democrático, e que em graus
diferenciados fazem contraposição a essa tendência, e de maneira contundente
em países que se mantêm alinhados a essa perspectiva. Os efeitos nefastos desse
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processo sobre as condições de trabalho são imensos. A reestruturação produtiva e
reprodutiva trazida pela globalização aumentou a expansão do trabalho precarizado
e sem direitos dentro de uma divisão internacional do trabalho que penaliza
sobremaneira os países do sul e os/as migrantes desses países no contexto dos
países do norte. É importante frisar que apesar de ser mais visível a reestruturação
produtiva, há também uma reestruturação das relações de trabalho no campo
reprodutivo dentro dessa divisão internacional do trabalho, que tem como uma
de suas fortes características a migração das mulheres dos países do sul para os do
norte, para assumirem o trabalho como empregadas domésticas.
Muitos países da América Latina são exportadores de força de
trabalho para o trabalho reprodutivo para os países do Norte. Internamente,
na própria América Latina, também acontece a migração de mulheres para o
trabalho reprodutivo. A categoria das empregadas domésticas, nessa região, é
formada por um contingente em torno de 14 milhões de trabalhadoras. Segundo
análises da OIT (2010), em sua maioria elas convivem com extensas jornadas de
trabalho, baixas remunerações, escassa cobertura de seguridade social e alto nível
de descumprimento das normas laborais. As mulheres são mais pobres que os
homens em todos os países da região. As maiores diferenças de gênero ocorrem na
Argentina, Chile, Costa Rica, Panamá, República Bolivariana da Venezuela, República
Dominicana e Uruguai. A taxa de pobreza das mulheres é 1,15 vez maior que a dos
homens. (OIT, 2010) Nos estratos mais pobres da população latino-americana estão
as mulheres negras e em grande parte dos países também as mulheres indígenas.
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A população jovem enfrenta grandes problemas em relação ao
mercado de trabalho. Cerca de 20% das pessoas jovens na América Latina não
estudam nem trabalham. As mulheres constituem 72% desse total. “Pelas maiores
dificuldades que têm em ingressar no mercado de trabalho, e muitas vezes, por
padrões culturais, atribuem-se às mulheres tarefas domésticas no interior das
famílias, que assumem também ao se casarem e/ou terem filhos.” (OIT, 2007, p. 40)
No
campo
do
trabalho
produtivo,
elemento
crucial
do
desenvolvimento econômico, um problema central na América Latina diz respeito às
relações de trabalho com alto grau de exploração e à concentração da riqueza que
leva à criação de empregos precários e dificulta a criação de novos postos. Segundo
a OIT, “os jovens enfrentam maiores desvantagens no mercado de trabalho, pois
normalmente eles têm acesso a empregos de alta rotatividade, temporários ou
eventuais, com menos proteção social e com salários inferiores”. (OIT, 2007, p. 26)
A OIT preconiza a necessidade de uma legislação voltada para a garantia da proteção
social no sentido de “impedir que os jovens se incorporem a um emprego através de
um contrato precário, sem garantias sociais nem cobertura de seguridade social...
Isso impulsionaria trajetórias juvenis de trabalho positivas”. (OIT, 2007, p. 30)
O emprego estável é uma das principais demandas das pessoas
jovens de 15 a 29 anos. Dois de cada três jovens trabalham em atividades
informais, nas quais frequentemente a remuneração é menor do que um salário
mínimo e sem cobertura da seguridade social. A análise da realidade social dos
jovens na América Latina mostra, como parte da dinâmica de reprodução das
desigualdades, um “retrato da juventude trabalhadora com impacto de fortes
discriminações de gênero e de etnia”. (Ibase/Polis, 2008)
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No modelo neoliberal de desenvolvimento acontece uma nova
forma de apropriação da forma de exploração da mão de obra feminina, a partir
da divisão trabalho produtivo x reprodutivo, para implantação de políticas sociais
a baixo custo baseadas na exploração da capacidade de as mulheres exercerem
múltiplas atividades com criatividade e eficiência nas jornadas de trabalho
cotidiano. Essa capacidade é explorada pelos projetos de desenvolvimento, para
cobrir a falta de distribuição de renda das políticas governamentais. Isto é, essa
forma de exploração ajuda a diminuir os custos com a reprodução social, o que
contribui para a concentração da riqueza.
A produção da pobreza é um produto da mesma lógica de poder
que constrói a concentração da riqueza e não um resultado inesperado do
modelo econômico. Não é algo que esteja fora do controle, é antes algo que
necessariamente tem de ocorrer dentro da permanência de um modelo que se
sustenta nas desigualdades.
Com isso queremos dizer que as relações de produção e acumulação
de riquezas, de repressão e discriminação sexual, de racismo não constituem
dimensões estanques da vida social, mas, ao contrário, são elementos constitutivos
de uma determinada ordem social. A dissociação entre esses campos e entre eles
e a política é uma necessidade do sistema de poder capitalista e patriarcal que, ao
fragmentar e dissociar essas várias dimensões, fragiliza as estratégias de resistência.
A expressão contundente das várias engrenagens da dominação desse sistema é a
própria realidade social, que, tomando o caso da América Latina, apresenta um
grau elevadíssimo de desigualdade social de classe, raça, etnia e gênero.
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Desenvolvimento é um processo e só pode ser democrático se a
pluralidade dos sujeitos coletivos estiver presente nas decisões sobre os seus rumos.
O avanço político de vários países na América Latina cria um contexto favorável
para impulsionar mudanças, e nesse processo os jovens organizados politicamente
devem ser sujeitos estratégicos.
Como questão de método devemos pensar a democracia e o
desenvolvimento como processos indissociáveis. Esse método deve servir como
referência para os contextos nacional e global e para a relação entre eles. As abordagens
que tomam esses termos como dimensões separadas na organização da vida social
fazem que haja, de um lado, a despolitização das decisões e ações denominadas como
de desenvolvimento, e, de outro, restringem o sentido da democracia ao exercício da
prática política, sobretudo ao âmbito da democracia representativa.
Um jeito de se contrapor a essa abordagem é aquela que coloca a
luta por cidadania como uma forma de qualificação da construção da democracia,
que opera justamente no sentido da conjunção das dimensões de que estamos
tratando. A referência à cidadania está vinculada a uma demanda por um Estado
promotor de bem-estar social e a uma democratização das formas de participação
política e de exercício do poder. Essa tem sido uma prática dos movimentos sociais
na região que aliam a luta por direitos e por democracia participativa e direta à
perspectiva mais ampliada de transformação social.
Outra questão importante é a relação entre vida cotidiana e
democracia. A radicalização do projeto democrático exige que o cotidiano seja
tomado como uma questão fundamental da sua agenda política e da reflexão
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teórica de quem pensa a transformação social. A partir daí a dicotomia entre esfera
pública e esfera privada e a hierarquização da relação entre produção e reprodução
podem ser questionadas e repensadas. A organização do tempo social é feita a partir
dessa dicotomia e dessa hierarquização, as quais são baseadas nas desigualdades
de gênero e de raça e são fundamentais para reprodução e acumulação do capital.
É na vida cotidiana que os efeitos perversos dos modelos de
desenvolvimento ganham sentido e geram sofrimentos. É no dia a dia que as
desigualdades sociais tomam formas concretas como existência humana.
Desenvolvimento e tempo do trabalho no cotidiano
Uma forma concreta de avaliar os efeitos dos processos de
desenvolvimento consiste em analisar os seus impactos sobre a vida cotidiana, pois
é nela que estão a vida em comum e a vida do dia a dia. Apesar dos avanços
científicos e tecnológicos alcançados no desenvolvimento da sociedade capitalista, a
qualidade de vida para a maioria das populações está marcada pela precariedade.
Ao trabalho como elemento central na análise sobre desenvolvimento
podemos acrescentar que o tempo do trabalho determina a organização do tempo
social na vida cotidiana. Duas questões nos parecem importantes na reflexão sobre
a organização do tempo social: em primeiro lugar, a dimensão que a apropriação do
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tempo de trabalho tem na relação entre capital e trabalho. Trazer essa dimensão
para o tempo da vida cotidiana oferece a possibilidade de vê-lo como o tempo
concreto da existência das pessoas que, para assegurar sua própria reprodução,
vendem sua força de trabalho. A outra diz respeito à desigualdade no uso do
tempo social. As mulheres no cotidiano, diferentemente dos homens, dividem o
tempo entre trabalho reprodutivo e trabalho produtivo. Na relação de classe a
apropriação do tempo dos/as trabalhadores/as pelos/as patrões/oas leva a uma
desigualdade na forma segundo a qual que cada classe pode usufruir do tempo
social. Para mulheres e homens, há uma desigualdade nesse uso do tempo social,
que se realiza em conexão com as desigualdades de classe e que é decorrente de
relações sociais de sexo/gênero/raça.
Em um enfoque a partir da relação entre capital e trabalho sobre o
tempo do trabalho no cotidiano, podemos dizer que o tempo que sobra da atividade
produtiva, para a “classe que vive do trabalho” (ANTUNES, 1999), é contado como um
tempo do descanso, do lazer, do cuidado consigo mesmo/a, isto é, da reconstituição
de cada pessoa como força de trabalho. O tempo do trabalho doméstico do cuidado
com a reprodução da vida das pessoas não é levado em conta na organização
do tempo social dentro da relação entre produção e reprodução. Esse tempo do
trabalho reprodutivo não poderia ter sido considerado na teoria marxiana, pois sua
grade teórica está referida especificamente ao valor do tempo do trabalho na esfera
produtiva a partir da sua equivalência como mercadoria e a partir da venda da força
de trabalho na relação entre capital e trabalho, o que exclui o tempo de trabalho
na esfera reprodutiva. São relevantes as questões: qual é o tempo para os cuidados
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necessários para produzir os meios de manutenção da vida individual e coletiva,
isto é, para o desenvolvimento das tarefas que garantem a alimentação, o abrigo, a
vestimenta, o cuidado, o aconchego, e a manutenção do espaço doméstico? Qual
o tempo social definido para o cuidado com as pessoas que não têm condições de
cuidar de si mesmas, como as crianças, idosos/as e outras pessoas sem condições
física ou mentais para isso? Esse tempo de trabalho, que não é percebido como
parte da organização do tempo social, é retirado do tempo que forma o dia a dia das
mulheres como parte das atribuições femininas, determinadas por relações de poder
que entrelaçam a dominação/exploração patriarcal à capitalista.
A duração da “sobra” do trabalho produtivo é fruto de processos
históricos, de transformações nas relações sociais entre capital e trabalho. Não
é o mesmo em todo lugar, nem para todos/as os/as trabalhadores/as. Como
consequência de um longo processo de lutas e conflitos, foram instituídos direitos
sociais e trabalhistas que regulam a duração da jornada de trabalho e definem os
dias de folga semanal e de férias, mas para se ter acesso a esses direitos é preciso
estar legalmente registrado/a como empregado/a, constituindo um vínculo social
que assegura outros direitos e também deveres. Esses períodos liberados da
produção são, portanto, um direito de cada trabalhador/a de se reconstituir física
e mentalmente. Na atualidade, com a crescente precariedade das relações de
trabalho, esses direitos têm sido ameaçados e em muitos casos desestruturados.
O trabalho informal, que está fora da proteção social, é um campo no qual
predominam as mulheres. Nesse caso, a relação entre tempo de trabalho para
produzir uma renda e tempo do trabalho reprodutivo traz configurações bastante
irregulares e difíceis para as mulheres.
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A forma de desenvolvimento capitalista produziu historicamente uma
vida cotidiana na qual o tempo social que conta – o uso do tempo que tem valor
– é aquele empregado na produção de mercadorias, gerador de mais-valia, porque
a noção de valor está diretamente vinculada ao valor de troca que caracteriza a
mercadoria. Nesse enfoque, portanto, tem um sentido mercantil, restrito a essa
relação, pois, como ressalta Carrasco, “em nossas sociedades capitalistas atuais, a
organização do tempo social vem determinada fundamentalmente pelo tempo do
trabalho mercantil”. (CARRASCO, 2005, p. 52) A mais-valia é a base da acumulação
do capital. Portanto, a apropriação do tempo de trabalho é uma dimensão fundante
e permanente da sociabilidade capitalista. "Tempo como medida que se impõe
por excelência na primeira sociedade industrial, a partir dos aportes de Marx, que
utiliza o uso do tempo para fixar a equivalência entre tempo de trabalho (jornada
laboral) e preço (salário).” (TORNS, 2002, p. 141). Porém, “o binômio tempodinheiro preside a atual organização sócio-produtiva que vai acompanhada por
representações simbólicas herdadas do ideal de maximizar e quantificar os usos
do tempo”. (TORNS, idem) Por isso, segundo esta autora, as demandas e lutas pela
redução da jornada de trabalho que não questionam o modelo de temporalidade
subjacente podem ser tomadas como um aceitação do modelo dominante.
Se na vida cotidiana está a tensão entre a alienação e a desalienação,
há também uma tensão de natureza prática entre as atividades produtivas,
reprodutivas e as possibilidades de deslocamento para outras esferas da vida
social. Contudo, os sujeitos não são meros receptáculos de uma ordem absoluta,
mesmo quando se configura uma relação de dominação. Segundo Antunes (2002),
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“a referência à vida cotidiana e as suas conexões com o mundo do trabalho e da
reprodução social é imprescindível, quando se pretende apreender algumas das
dimensões mais importantes do ser social”. (ANTUNES, 2002, p. 170)
Deve-se considerar que mesmo quando a alocação do uso do
tempo das pessoas é feita sob um constrangimento social, é possível adquirir
graus diferenciados de autonomia para lidar com esse constrangimento e também
para tentar transformá-lo. O que chamo de constrangimento está relacionado à
dominação ideológica, à falta de meios materiais, à subjetivação da dominação, à
coerção pela violência etc.
Partindo da elaboração sobre vida cotidiana em Lefebvre (1958,
1961, 1972), Martins (2000) coloca que, para o primeiro, a pobreza tem um
significado bem diverso da concepção limitada de pobreza material que era
característica da época de Marx.
A pobreza é pobreza de realização das possibilidades criadas pelo próprio
homem para sua libertação das carências que o colocam aquém do
possível. Numa sociedade e num tempo de abundâncias possíveis, inclusive
e especialmente abundância de tempo para desfrute das condições de
humanização do homem, em que a necessidade de tempo de trabalho é
imensamente menor do que era há um século, uma das grandes pobrezas é a
pobreza de tempo (MARTINS, 2000, p. 104).
Em um mundo globalizado, sobre o qual se diz transformado na relação
da organização do seu tempo social pela tecnologia, que permite deslocamentos cada
vez mais rápidos, comunicação imediata entre pessoas em qualquer país do mundo,
71
aceleração do grau de produtividade etc., é importante explorar como campo de
estudo a persistência dos tempos sociais marcados pela lógica da desigualdade, ou
melhor, como o emprego da tecnologia refaz essa lógica para atender às exigências do
desenvolvimento econômico ditadas pelo processo de globalização.
O desenvolvimento tecnológico não tem possibilitado a liberação
de tempo livre para “a classe que vive do trabalho”. (ANTUNES, 2000) Nem
tampouco tem garantido melhoria nas condições reais do trabalho para a grande
maioria da população. Para isso são necessárias políticas públicas que garantam
que as tecnologias sejam utilizadas em benefício, não somente da sofisticação
dos produtos e do aumento da produtividade, mas sobretudo em benefício da
cidadania para a classe trabalhadora. De acordo com a OIT (2007), para os jovens
na América Latina o cenário atual exige a implantação de políticas públicas
que garantam que o conhecimento sobre as tecnologias aliado a outros fatores
possam de fato garantir outra maneira de inserção no mercado de trabalho. A
entidade acrescenta que “há um cenário favorável para a juventude que deve ser
aproveitado, para isso, são necessárias políticas que abram oportunidades para
todos, facilitando a difusão massiva e inclusiva do conhecimento produtivo e das
novas tecnologias”. (OIT, 2007, p. 25)
As políticas públicas para engendrar novas relações entre trabalho
e cidadania devem ser consideradas como uma forma de se contrapor à lógica dos
modelos de desenvolvimento que prevalecem na região e mundialmente, os quais
utilizam o avanço tecnológico como elemento de poder e exploração. Lefebvre
(1958) já colocava em questão que “o mesmo período que viu o desenvolvimento
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estupendo das técnicas aplicadas à vida cotidiana viu também uma, não menos
estupeficante, degradação da vida cotidiana para as grandes massas humanas”.
(LEFEBVRE, 1958, p. 15). No contexto atual o desenvolvimento das tecnologias para
os mais variados fins serve não só para manter, mas também para elevar a um
grau antes impensável, a hierarquização entre produção x reprodução. Os usos da
tecnologia como meio para explorar e dominar têm levado a uma realidade na qual
trabalhadores/as são descartados/as, a natureza é ameaçada, animais e plantas são
produzidos nos laboratórios. Assim a vida e as formas de resistência no cotidiano
ficam ainda mais difíceis, sobretudo quando o tempo da existência é tragado pela
exploração do tempo do trabalho.
Regra geral, ou a pessoa está no mercado de trabalho com muito
mais comprometimento do seu tempo ou está totalmente fora dele, sem nenhum
controle sobre o seu tempo e sem possibilidade de usufruir o tempo liberado das
ocupações chamadas de produtivas. Porque alguém sem recursos financeiros
perde sua autonomia de decidir sobre sua participação na vida social. Muitas
vezes, a própria liberdade de ir e vir fica comprometida. Por exemplo, como
todas as possibilidades de deslocamento nas cidades e no campo, e entre esses
espaços urbanos e rurais são realizadas através de meios de transporte privados,
portanto dentro da esfera das relações mercantis, há necessidade de ter dinheiro
para circular em qualquer dimensão – dentro do território local e do território
mundial. O desemprego, que significa a falta de uma renda para viver, quando por
longo período e/ou sem proteção social, produz um processo de desagregação
que coloca o sujeito em descompasso com um cotidiano marcado pela inserção
no mercado de trabalho.
73
Na América Latina há um abismo entre a vida cotidiana e a história,
pois a conquista de direitos e os avanços no processo de democratização política
ainda não se expressam de maneira concreta no cotidiano da maioria da população.
Um processo de transformação que leve à emancipação dos sujeitos, garantindo
a igualdade com justiça social, requer também a construção de concepções
que possam levar em conta a pluralidade das experiências nesse continente,
que reconheçam a experiência dos povos originais dessa terra como sujeitos
fundamentais para construção de outras formas de desenvolvimento que levem a
um outro mundo possível no continente.
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