Figuras da alteridade e posições éticas na obra de Freud Figures of otherness and ethical positions in the work of Freud Resumo Este ensaio apresenta e discute as diferentes configurações da alteridade e suas implicações para uma concepção de ética implícita no pensamento freudiano. Parte-se de um paradoxo: se grande parte do discurso freudiano aponta uma ética próxima à do senso comum e a toma majoritariamente no campo do desenvolvimento da consciência moral, como se pode falar de uma originalidade da psicanálise na abordagem do problema ético? A resposta está não no discurso manifesto da teoria, mas em seu conteúdo latente. Propõe-se que se pense o problema da ética em Freud atrelado à sua relação com o lugar que o outro assume na constituição subjetiva. Partindo de algumas considerações teóricas acerca do campo da alteridade e da ética em psicanálise, argumenta-se que a posição freudiana mais superficial seja a de uma intersubjetividade intrapsíquica. Nesta, a representação psíquica tende a minimizar o papel do outro na constituição subjetiva, uma vez que o objeto é o atributo mais contingente e menos determinado das moções pulsionais. O papel do outro só será devidamente abordado com o desenvolvimento dos conceitos de narcisismo, identificação e pulsão de morte. Esses desdobramentos apontam na direção das intersubjetividades traumática e trans-subjetiva, as quais, por sua vez, apontam na direção de dois posicionamentos éticos distintos: o da responsabilidade e o do cuidado. Palavras-chave: psicanálise, sigmund freud, alteridade, ética. Abstract This essay presents and discusses the different configurations of otherness and their implications for a concept of ethics implicit in Freudian thought. It starts with a paradox: if much of the Freudian discourse suggests an ethics close to common sense and takes it mostly in the field of moral conscience development, how can one speak of psychoanalysis’ originality in addressing the ethical problem? The answer is not obvious in the theory’s manifest discourse, but in its latent content. It is proposed that the problem of ethics in Freud should be related to how the other takes place in the subjective constitution. Starting from some theoretical considerations on the field of otherness and ethics in psychoanalysis, one argues that the most superficial Freudian position is that of an intrapsychic intersubjectivity, where the psychic representation tends to minimize the role of the other in the constitution of subjectivity, since the object is the most contingent and less certain attribute of the instinctual impulses. The role of the other can only be properly addressed with the development of the concepts of narcissism, identification, and death instinct. These developments point towards the traumatic and trans-subjective intersubjectivities, which in turn point towards two different ethical positions: those of responsibility and care. Keywords: psychoanalysis, sigmund freud, otherness, ethics. Érico Bruno Viana Campos Centro Universitário Hermínio Ometto (UniAraras). [email protected] Introdução H oje, é bastante comum ouvirmos falar da relação entre ética e psicanálise, tanto que a questão sobre a ética da ou na psicanálise se incorporou ao nosso jargão profissional. Essa polêmica nos trouxe algumas discussões interessantes na literatura (ALLOUCH, 1997; MEZAN, 1998; COELHO JR. e FIGUEIREDO, 2000; KHEL, 2002; JUNQUEIRA, 2006). Sem dúvida, o grande responsável pelo resgate dessa temática e preocupação é Lacan, com sua afirmação de que a psicanálise implicaria uma ética do desejo, em seu já clássico Seminário VII (LACAN, 1995). Nessa perspectiva, entende-se que o sujeito da psicanálise é marcado pela sua condição simbólica e desejante. Esse sujeito do inconsciente se produz na alienação ao desejo do outro e, portanto, se constitui na sua singularidade a partir de uma posição subjetiva desejante, que se constitui na relação com a alteridade. Nesse sentido, a ética da psicanálise e, consequentemente, a posição do analista, deveria ser a de dar expressão à singularidade do desejo e compreender sua estrutura de formação sem pré-julgamentos morais para, a partir daí, o sujeito poder responder do lugar simbólico que o constitui. Constituição essa que, por sua vez, estaria relacionada ao registro da castração como constituinte do próprio regime simbólico, levando à afirmação que o desejo é produto da inscrição da falta. Essa posição não implica uma postura hedonista ou individualista como muitas vezes se afirmou com relação à psicanálise, pelo contrário, implica uma posição de responsabilização pelo desejo que nos constitui. É, portanto, a afirmação de uma ética da responsabilidade como fundamento último da subjetividade. Não é meu intuito abordar o tratamento lacaniano do problema, mas somente apontar que é a partir desse contexto mais geral que se delineiam as balizas da discussão que se segue. Mais informações sobre o percurso da discussão ética de Freud a Lacan podem ser encontradas no livro de Maurano (1995) e no artigo de Mariguela (2007). 20 De qualquer forma, essa posição com relação ao problema ético não é exclusiva da tradição estruturalista lacaniana. Seus aspectos essenciais também podem ser encontrados na abordagem da subjetividade a partir da fenomenologia existencial. Quer seja em uma posição heideggeriana da ética como a morada do ser, isto é, de que a abertura existencial que constitui o ser no mundo é, sobretudo, um posicionamento em relação ao sentido, quer seja em uma posição propriamente sartreana da responsabilidade diante da escolha como o fundamento último do ato humano, o que se afirma é, também, um posicionamento ético fundamental que se constitui na experiência intersubjetiva. Essa tradição, por sua vez, também tem sido resgatada por autores da psicanálise contemporânea, com o objetivo de pensarem questões fundamentais sobre o sujeito da psicanálise. Novamente esclareço que não é meu intuito apresentar sistematicamente essa outra posição, cuja apresentação mais detalhada pode ser encontrada nos livros de Coelho Junior e Figueiredo (2000) e Figueiredo (1996). O fato é que a psicanálise contemporânea cada vez mais se aproxima de uma discussão ampliada de ética como uma forma de afirmar um posicionamento fundamental em relação à subjetividade. É possível indicar duas grandes polarizações em torno da questão: uma, mais claramente francesa, coloca a ética no centro da definição do que é a psicanálise; outra, mais próxima do establishment da International Psychoanalytical Association (IPA), retira a questão da ética do campo da psicanálise, colocando-a em termos estritamente técnicos, ou seja, afirmando que não caberia essa teoria um julgamento de valor acerca do desejo e do sistema moral do analisando. Dos dois lados temos o perigo do excesso. No primeiro, a psicanálise ganha ares de uma “visão de mundo” ou Weltanschaunng (FREUD, 1933/1994), convertendo-se, praticamente, em uma filosofia moral do campo das ciências humanas. No segundo, a discussão fica esvaziada por uma definição muito circunscrita do que seria o posicionamento ético no seio do processo analítico. Impulso, Piracicaba • 21(52), 19-29, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 Minha proposta é tentar circunscrever um caminho intermediário, tomando como base o equacionamento desse problema na obra de Freud. Essa tarefa não é menos difícil, uma vez que uma ampla gama de considerações é dedutível dos escritos freudianos. De qualquer forma, é possível marcar algumas linhas mais fortes no esboço traçado por Freud sobre a questão. Quando se examina essa figura, contudo, percebe-se quão longe se está de encontrar uma resposta satisfatória para o problema levantado, pois nota-se que a preocupação de Freud está voltada para o problema do conflito entre natureza e cultura e de sua solução de compromisso por meio do estabelecimento da consciência moral como marca estrutural do aparelho psíquico. Como se sabe, o superego, herdeiro do complexo de Édipo, constitui o representante internalizado da cultura no seio da subjetividade (FREUD, 1923/1994), garantindo que a cultura possa emergir da coerção das pulsões (FREUD, 1929/1994). Isso quer dizer que, no tocante à perspectiva que me interessa, é possível afirmar, apoiado em Junqueira (2006), que Freud lança luz sobre a psicogênese da moral, mas não a trabalha em um plano propriamente filosófico. Além disso, parece tomar as questões morais e éticas a partir de uma concepção do senso comum, ou seja, de um conjunto de regras de valoração entre o bem e o mal. Diante disso, aponto o seguinte paradoxo: como falar de uma originalidade da psicanálise na abordagem do problema ético? A saída para essa questão passa por dois redimensionamentos. O primeiro é definir a ética a partir de um caráter menos transcendental e mais existencial. O segundo é, a partir desse posicionamento, colocar a ética em relação aos lugares do outro na metapsicologia. Portanto, o objetivo deste ensaio é apresentar uma proposta de esquematização sobre as posições éticas em psicanálise a partir das concepções de intersubjetividade presentes na obra de Freud. Apresento a seguir como essas duas ideias se alinham e que consequências trazem para a discussão acerca da ética na psicanálise contemporânea. Sobre Ética e Alteridade Não cabe aqui fazer um retrospecto exaustivo das definições de ética e consciência moral. Remeto os interessados ao já citado trabalho de Junqueira (2006), além do ótimo texto de Figueiredo (1996). Vou me limitar a distinguir entre as regras de conduta social, denominada moral, a sua internalização psíquica, denominada consciência moral, e a sua fundamentação, denominada ética. No campo daquilo que seria a fundamentação da moral, ou seja, a ética, penso que seja interessante abordar a temática não pelo viés de uma teoria transcendental dos valores, mas, sim, de um ponto de vista fenomenológico-existencial. Partindo da raiz etimológica da palavra ethos, Heidegger (1995), a partir de sua ontologia hermenêutica, pretende resgatar o sentido existencial da ética como abertura. Na concepção heideggeriana, a ética comparece como a morada do ser, a clareira existencial a partir da qual são definidas as aberturas de significação do ser-no-mundo. A ética, nesse sentido, é definida como um “habitar sereno e confiado” (FIGUEIREDO, 1996, p. 44), entendida como um posicionamento do ser em situação. Uma abordagem complementar desse mesmo tema pode ser encontrada em Lévinas (2000). A diferença é que, nesse caso, a abertura existencial é tomada em uma perspectiva mais personalista. O existente é convocado a responder ao rosto que o traumatiza em sua alteridade radical. A ética fundamenta-se em uma resposta à alteridade, que lança o homem para nada a partir de um enigma, tirando-o da mesmice da totalidade. A alteridade é, portanto, a marca radical da diferença. É no encontro com a alteridade que o homem se significa e desvela seu ser. Embora haja diferenças significativas entre essas duas abordagens, o que elas trazem de comum é a concepção da ética como uma situação existencial – situação do ser enquanto intérprete de uma alteridade que o convoca e o traumatiza. Partindo dessa abordagem, pode-se afirmar que a ética se define como um posicionamento fundamental com relação à alteridade. Impulso, Piracicaba • 21(52), 19-29, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 21 Posto isso, a questão proposta pelo ensaio encontra um novo encaminhamento. Não se trata mais de buscar a gênese da consciência moral nas subjetividades ou os destinos do conflito entre natureza e cultura nos campos do psiquismo individual e da organização social. É possível pensar em uma abordagem das concepções de alteridade presentes na gênese da subjetividade como uma chave de leitura para o problema ético. Assim, se a questão da ética se fundamenta no posicionamento do eu em relação à alteridade, é possível derivar uma postura ética a partir das modalidades de alteridade que comparecem na constituição da subjetividade. Em suma, a questão da ética se colocaria a partir dos lugares do outro nos discursos e nas práticas psicanalíticas, o que levaria a duas possibilidades de abordagem. Uma primeira possibilidade seria enveredar pelo caminho da prática analítica, ou de sua técnica, como forma de reduzir categorias existenciais a partir das situações postas pelo método analítico. Uma tentativa nesse sentido foi feita por Moreira (2003), que tentou definir categorias de comparecimento do outro a partir dos escritos técnicos de Freud. Nesse sentido, estabelece uma constelação de termos organizada em um contínuo de experiências de alteridade: outro-objeto, outro-narcísico, outro-transferencial, outro-alteritário, outro-pessoa e outro-abstrato. Não me interessa tanto entrar nos detalhes dessa classificação, que é, ademais, bastante confusa, mas apontar dois aspectos cruciais. O primeiro é que essas categorizações constituem, na verdade, categorias de análise de discurso, e não categorias fenomenológico-existenciais. Penso que o esforço de retornar às coisas mesmas aqui não se converteu em um resgate do sentido existencial, mas em uma manutenção da investigação no plano puramente descritivo. O segundo ponto é que há uma certa orientação geral dessas figuras da alteridade em termos de uma polarização entre o que é puramente narcísico e o que é um outro radical, como se o grau de radicalidade pudesse ser um parâmetro 22 do que poderíamos, canhestramente, chamar de “autenticidade ética”. Desse modo, seria no corte radical da integridade narcísica, por meio da castração simbólica, que se daria a constituição da subjetividade. Não é preciso fazer muito esforço para reconhecer aqui o mais puro lacanismo: a ética do desejo como falta inexpugnável. A crítica não é tanto pela conclusão, mas pelo fato de que tamanho artifício não resulta em uma contribuição original. Além do mais, esse tipo de abordagem peca por considerar a relação com a alteridade a partir de uma perspectiva unidimensional. Uma segunda alternativa seria buscar o fundamento da subjetividade em psicanálise em que ela realmente se circunscreve: nas suas concepções epistemológicas. Abordando a epistemologia de uma perspectiva mais ampla, como propõe Mezan (2002) ao defini-la como a leitura de caráter transversal de uma teoria, será na articulação dos conceitos metapsicológicos que serão encontradas as indicações de como a subjetividade se constitui na relação com a alteridade e quais os posicionamentos éticos que a psicanálise pode extrair dessa construção. Sobre Alteridade e Subjetividade A partir do duplo redirecionamento da questão da ética em psicanálise, é possível encontrar uma abordagem mais interessante para a abordagem da matriz epistemológica freudiana: discutir os lugares do outro na metapsicologia. Como grade de leitura da teoria freudiana, proponho utilizar o mapeamento das figuras da intersubjetividade presentes na constituição da subjetividade proposto por Coelho Jr. e Figueiredo (2003, 2004). Esses autores fizeram um amplo recenseamento das abordagens da questão da intersubjetividade nas teorias filosóficas, psicológicas e psicanalíticas, chegando a um arranjo de quatro grandes figuras que ordenam as possibilidades de equacionamento da relação entre alteridade e constituição subjetiva. Entende-se que essas matrizes devam ser concebidas Impulso, Piracicaba • 21(52), 19-29, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 como elementos simultâneos nos diferentes processos de constituição e elaboração subjetiva, ou seja, elas não ocupam de forma exclusiva o campo das experiências humanas, e não podem ser comparadas entre si a partir de um único parâmetro. No esquema proposto pelos autores, as quatro matrizes são: (1) intersubjetividade transsubjetiva; (2) intersubjetividade traumática; (3) intersubjetividade interpessoal; (4) intersubjetividade intrapsíquica. Dentre essas figuras, a intersubjetividade interpessoal é a que mais se aproxima da concepção mais imediata e comum do termo, em que as oposições entre as subjetividades e as pessoas coincidem. Essa acepção é muito comum nas ciências humanas e, em especial, na psicologia, quando se define a constituição da identidade pelo jogo de papéis sociais. Dessa forma, a alteridade está situada na pessoa dos outros, a qual, no jogo de oposição e complementaridade dos papéis sociais, define a identidade do eu. A intersubjetividade intrapsíquica constitui outra figura amplamente trabalhada pelo campo das teorias psicológicas e, em especial, pelas teorias psicanalíticas. Afinal, foi a psicanálise a grande responsável pela subversão da consciência, mostrando como a alteridade, antes contraposta ao que era externo, também se colocava a partir disso que não era o eu, mas o inconsciente. Assim, a psicanálise foi a responsável pela introdução de uma alteridade no seio do próprio psiquismo. Pode-se descrever no movimento psicanalítico uma série de concepções acerca da dinâmica da alteridade na constituição do aparelho psíquico: de Freud às teorias sobre as relações de objetais (Klein, Fairbairn e Winnicott) e destas até a concepção de um sujeito do inconsciente (Lacan). Tratarei de alguns dos meandros dessa discussão posteriormente. O interessante, por enquanto, é assinalar que nessa matriz se mantém a distinção das polaridades entre o que se reconhece como mesmo e o que comparece como outro, ou seja, qualquer que seja a concepção de psiquismo, há uma distinção entre o que são as representações do eu e aquilo que está fora do eu. As matrizes transsubjetiva e traumática, por sua vez, são mais originárias do ponto de vista da constituição da subjetividade e, também, mais originais no tratamento do problema da alteridade. Sua elaboração é mais presente no campo da filosofia, mais especificamente a partir de abordagens de extração fenomenológicas e existenciais. A ideia de uma intersubjetividade transsubjetiva é tributária do esquadrinhamento da dimensão pré-reflexiva da existência. De Scheler e Merleau-Ponty em diante, além do próprio Heidegger, encontra-se uma consideração sobre a constituição primordial da subjetividade a partir das experiências pré-reflexivas. Habitamos um mundo de formas expressivas, gestos corporais ou linguagem que nos preexiste e no qual vamos nos constituindo e diferenciando enquanto sujeitos. Portanto, aqui não há uma diferenciação primária entre elementos de identidade e de alteridade, mas a própria identidade se constitui na diferenciação progressiva em relação à alteridade que lhe habita. Embora na perspectiva da intersubjetividade transsubjetiva a ambiguidade e a indiferenciação sejam inerentes à constituição do ser, elas sempre são, de alguma forma, suportáveis. Nesse caso, a alteridade não constitui uma experiência radical e traumática. Essa dimensão será explorada com maestria por Lévinas, que marca, como foi visto, o sujeito pelo imperativo ético de responder ao rosto do outro. Aqui, também, não há uma distinção clara entre o campo dos objetos identificatórios e os alteritários, simplesmente porque o rosto não tem face, isto é, a alteridade radical não pode ser identificada ou comportada em alguma significação. É justamente isso que faz dela traumática: o fato de ser inominável; puro trabalho de significação e posicionamento em relação a uma alteridade que sempre escapa. Uma vez dispostas as matrizes de articulação do problema da alteridade na constituição subjetiva, é possível passar à interpretação desse problema em Freud. Impulso, Piracicaba • 21(52), 19-29, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 23 Sobre Metapsicologia e Alteridade Voltando agora para a psicanálise, pode-se perguntar: onde está o outro em Freud? Sim, pois não há uma concepção manifesta de sujeito em Freud, muito menos uma definição precisa das dimensões do outro em sua constituição. Para piorar a situação, a própria trama de conceitos que constitui a metapsicologia não é unívoca. Como esse ensaio pretende contribuir para a compreensão psicanalítica do lugar da alteridade na constituição da subjetividade, penso que uma abordagem produtiva dessa temática seja propiciada por dois elementos inter-relacionados: a relação entre sujeito e objeto e a teoria da representação. É possível afirmar que a teoria da representação é a grade conceitual inicial que permite a sistematização dos lugares de sujeito e objeto na metapsicologia freudiana. Como disse anteriormente, Freud não conceitua um sujeito, mas define uma série de objetos no seio do aparelho psíquico. Podemos tentar mapear esses diferentes registros do objeto. Merea (1994) distingue entre objeto da percepção, objeto da pulsão, objeto de identificação e objeto interno ou estrutura endopsíquica, como quatro dimensões em que a questão se coloca para Freud. É interessante perceber como se tratam, de fato, de níveis diferenciados de abordagem do objeto. Não é possível estabelecer uma oposição clara entre objeto da percepção e da pulsão em termos de externo e interno, por exemplo. Da mesma forma, estruturas endopsíquicas e objetos de identificação não se confundem. Há estruturas endopsíquicas que não estão relacionadas diretamente a um objeto de identificação, como na identificação histérica, embora haja identificações constituintes de instâncias psíquicas, como no narcisismo. Além disso, pode-se estabelecer uma série de gradações dentro desses níveis, como os diferentes objetos da pulsão ou as diferentes estruturas endopsíquicas. Coelho Jr. (2002) propõe uma classificação um pouco mais simples e, também, mais interessante para o problema em questão. Deixando de lado a dimensão perceptiva do psiquismo e focando na sua estrutura de 24 registros de inscrição psíquica, há duas grandes classes de objetos: os da pulsão e os da identificação. O primeiro grupo, no esquema clássico de definição da pulsão, diz respeito a qualquer objeto que possa ser utilizado como meio de satisfação da meta de descarga da pressão pulsional no aparelho psíquico. São, portanto, representações psíquicas que estão subordinadas a uma lógica de significação que as utiliza para um fim próprio. Em outras palavras, o objeto da pulsão é um mero “objeto” que segue associações de uma estrutura inconsciente que o precede, ou seja, é completamente secundário na estruturação do aparelho psíquico. Esse objeto, portanto, está subordinado a um sujeito ativo que se encontra em outra cena, o inconsciente. Essa primeira série constitui o aparelho psíquico da primeira tópica. Ela se materializa nas clássicas formações do inconsciente trabalhadas nas duas primeiras décadas de produção teórica em psicanálise: os sintomas neuróticos, os sonhos, os chistes e os atos falhos. A segunda série de objetos começa a aparecer mais claramente na psicanálise a partir da introdução do narcisismo e ganhará cada vez mais espaço até proporcionar uma verdadeira revolução na topografia psíquica com o modelo estrutural. A teoria das identificações permitirá a Freud uma sistematização da gênese e estruturação do aparelho psíquico, centradas no complexo de Édipo. O objeto da identificação, diferentemente do objeto clássico da pulsão, é um elemento organizador da lógica de produção de sentidos no aparelho psíquico; é um elemento estruturante e, portanto, primário. A identificação permite que um objeto da pulsão seja internalizado no aparelho psíquico como um modelo para seu funcionamento, criando os protótipos das instâncias egoica e superegoica. O objeto, nesse segundo caso, não está sujeito a uma lógica cuja fórmula se inscreve em outro lugar, mas ele se constitui como a própria estrutura codificadora. Desse jogo de alternâncias entre sujeito e objeto, depreende-se o seguinte: em Freud há uma oscilação essencial entre um objeto que constitui o sujeito e um sujeito que Impulso, Piracicaba • 21(52), 19-29, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 constitui o objeto, em uma lógica na qual qualquer dos elementos da equação clama pela suplementação do oposto, transpondo uma concepção puramente identitária de conceituação por meio do que Derrida definiu como lógica da suplementaridade (citado por COELHO JUNIOR, 2002). Dessa constatação afirmo que a ambiguidade entre sujeito e objeto é essencial na teoria psicanalítica. Tal posição é endossada por De Martini (2006), que afirma a necessidade de se pensar em um jogo de alternâncias simultâneas de diferenciação e indiferenciação entre sujeito e objeto na obra de Freud. Embora possa parecer simples, a ideia de suplementaridade de opostos como elemento dinamizador da teorização em psicanálise é bastante complexa. Implica conceber que o movimento do pensamento freudiano é uma retomada progressiva de polaridades que se apresentam uma como limite à outra, fazendo com que o absurdo emerja o tempo todo no seio da tentativa de síntese conceitual. Alguns aspectos dessa hipótese metodológica, que encontra apoio em leituras de Laplanche (1988), Monzani (1989) e Figueiredo (1999), foram trabalhados por mim em pesquisas sobre a teoria da representação na metapsicologia freudiana (CAMPOS, 2004, 2009). Tomando a teoria da representação em sua concepção clássica, ou seja, como o investimento libidinal em representações de objeto, em representações de palavra e em afetos, percebe-se que ela se coaduna muito bem com a primeira tópica. De fato, como bem apontam Greenberg e Mitchell (1994), pode-se afirmar que a metapsicologia de Freud foi se construindo com adendos a essa concepção inicial, fazendo com que mais lá na frente os absurdos presentes na própria tese inicial minassem o modelo. Esses autores sustentam que a teoria da representação e seus adendos freudianos configuram um modelo estrutural-pulsional do psiquismo, o qual será completado pelos desenvolvimentos dos kleinianos e da psicologia do ego. Por outro lado, esses autores sustentam que as inovações trazidas por Fairbairn, com a primazia do objeto sobre a pulsão, e por Kohut, com o enfoque na constituição narcísica do self, teriam inaugurado outra forma de concepção de constituição da subjetividade, agora a partir de relações objetais primárias à instalação de demandas pulsionais. Essas ideias constituiriam o núcleo de um modelo estrutural-relacional. Embora proponham uma organização interessante e esclarecedora, esses autores pecam por se restringirem ao campo da psicanálise norte-americana e alguns autores ingleses. Nota-se a falta de autores importantes do campo psicanalítico contemporâneo de língua inglesa e a total ausência de considerações acerca da escola francesa. Eu tenderia, por exemplo, a adicionar a esse quadro autores do grupo independente inglês, como Balint e Winnicott, que trabalharam justamente a questão da ausência e a presença do objeto subjetivo na constituição do aparelho psíquico. De qualquer forma, segundo o quadro proposto por Greenberg e Mitchell (1994), é possível afirmar que no modelo estrutural-pulsional há uma tendência a considerar o outro como objeto, aparecendo a alteridade apenas em nível intrapsíquico. Da mesma forma, constata-se que uma concepção interpessoal de alteridade emergiria apenas no modelo estrutural-relacional. De fato, tomando a psicologia do ego como representante mais adequado da ortodoxia freudiana em seu viés cientificista e objetivante, é possível afirmar que a teoria psicanalítica de Freud se insere em uma matriz de intersubjetividade intrapsíquica, na qual o outro não comparece como uma alteridade externa ao aparelho psíquico. Esse tipo de abordagem do problema da alteridade simplesmente isola a subjetividade de sua inserção na cultura, fazendo com que a dimensão ética seja desvinculada de qualquer dimensão técnica ou política. Não é à toa, como mostra Junqueira (2006), que, para Hartmann, a moral e a ética se situariam completamente fora da esfera da ciência psicanalítica. Parece-me que o trabalho desses autores peca por não explorar a radicalidade das relações objetais como condição estruturante Impulso, Piracicaba • 21(52), 19-29, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 25 do aparelho psíquico. Essa crítica se situa em dois sentidos. O primeiro porque a relação objetal, enquanto modalidade de identificação, lança luz para modalidades mais originárias de constituição subjetiva, quer seja em uma matriz transsubjetiva, quer seja em uma matriz traumática. O segundo porque no próprio quadro delineado por Freud encontram-se indícios dessas duas últimas matrizes. Como disse, de fato a teoria da representação é a pedra angular do psiquismo freudiano. O problema é que, com a reformulação tópica e pulsional engendrada pela virada dos anos 20, configuram-se duas grandes rupturas no tecido da trama representacional. A primeira é a teoria das identificações, que já tive a oportunidade de apresentar. Essa teoria possibilita pensar em mais além da representação, na forma de uma estrutura endopsíquica no sentido específico de um objeto internalizado. Aí entrariam não apenas a identificação edípica como constitutiva do superego, mas, principalmente, a identificação narcísica como constitutiva das fronteiras do ego. A radicalidade do conceito de identificação para o problema da alteridade está na possibilidade de pensar uma constituição transsubjetiva do aparelho psíquico por meio da experiência com a alteridade. Embora tenha apontado para essa direção, Freud (1926/1994) optou por recalcar a dinâmica pré-genital e a identificação materna em sua teoria, dando lugar de destaque para a triangulação edípica, para o complexo de castração e para a identificação paterna. Com isso, apagou-se a possibilidade de pensar uma constituição da subjetividade em sua indiferenciação originária com a alteridade. A segunda teoria pulsional, por sua vez, indica algo aquém da representação, no sentido de que há algo de “não representado” ou irrepresentável no aparelho psíquico. Levando às últimas consequências a hipótese do “mais pulsional da pulsão” (FREUD, 1920/1994), delineia-se uma subjetividade que se constitui respondendo a uma demanda de ligação e elaboração simbólica de uma angústia inominável, fruto do puro desamparo original frente à alteridade. 26 Dessa forma, pode-se pensar que há, na metapsicologia freudiana, indicações preciosas para pensar o problema da alteridade na constituição da subjetividade, possibilitando uma abordagem do problema para além do problema da psicogênese da consciência moral. Portanto, é no plano do desamparo originário que a questão da relação entre alteridade e ética se evidencia: quer seja na indiferenciação simbiótica, quer seja na diferenciação traumática, é o outro o único recurso por meio do qual se pode começar a esboçar um eu. Nesse sentido, afirmo que a compreensão do narcisismo é a chave para a fundamentação da ética da psicanálise. A título de ilustração da absurda potência suplementar da obra freudiana, gostaria de citar dois trechos de um dos textos mais enigmáticos do pai da psicanálise acerca do que se convencionou chamar de “complexo do próximo” (Nebensmench). O primeiro afirma: Esta via de eliminação [o reconhecimento do grito e/ou choro pelo adulto] passa a ter, assim, a função secundária, da mais alta importância, de comunicação, e o desamparo inicial é a fonte originária de todos os motivos morais. (FREUD, 1895/1995, p. 32, grifo do autor) Encontra-se, mais adiante, a afirmação paradigmática de que outro surge como objeto prototípico sob três aspectos: (1) primeiro objeto de satisfação; (2) primeiro objeto hostil; (3) único auxiliar. A partir desse triplo registro, o autor chega à conclusão de que “através do próximo, o homem aprende a reconhecer” (FREUD, 1895/1995, p. 44). Tal como era no início, será no final: o outro é o inferno e a redenção. É por meio do outro que o sujeito encontra saída para o desamparo, é por intermédio dele que se personifica o traumatismo pulsional. A alteridade é o único suporte para a emergência do eu. Direcionamentos do Problema a partir de Freud Diante desse campo de possibilidades de interpretação do problema da alteridade Impulso, Piracicaba • 21(52), 19-29, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 que nos legou Freud, resta responder à questão de como essa abordagem da constituição originária da subjetividade via narcisismo pode apontar direcionamentos interessantes para a questão da ética em psicanálise. Outro autor irá possibilitar, enfim, completar o movimento anunciado. Otávio Souza (2000, 2001) trabalha a questão da ética em psicanálise a partir de posicionamentos fundamentais da teoria psicanalítica com relação à alteridade, remetendo a questão desta na constituição da subjetividade como um indicador de posições éticas da escuta analítica. Não caberá aqui discutir o alcance dessas hipóteses, mas apenas apresentá-las em sua relação com o legado freudiano. Souza demonstra que posições com relação à alteridade que a veem como um elemento fundamentalmente traumático da constituição subjetiva tendem a sustentar uma posição ética de escuta visando a responsabilização do sujeito pelo seu desejo. Já aquelas que reconhecem na alteridade um elemento diferenciador da constituição subjetiva tendem a sustentar o que se poderia chamar de uma escuta orientada pela ética do cuidado. Não pretendo aprofundar essa discussão no campo psicanalítico contemporâneo, mas, só para localizar a questão, pode-se dizer que Souza, grosso modo, localiza as posições kleinianas e lacanianas na primeira constelação, que reuniria a intersubjetividade traumática e a ética da responsabilidade, enquanto as posições winnicottianas estariam na segunda, que reuniria a intersubjetividade transsubjetiva e a ética do cuidado. O que pretendi mostrar neste texto foi como podemos encontrar as raízes dessa discussão na matriz freudiana. Desse modo, sustento que também é possível encontrar no campo teórico deixado por Freud uma exigência de suplementação entre a ética da responsabilidade e a do cuidado. Conclusão Com esse último movimento, encerro a apresentação da proposta de derivar alguns direcionamentos éticos a partir das múlti- plas modalidades de alteridade que podem ser identificadas na obra de Freud. Procurei mostrar neste artigo como é possível derivar concepções menos tradicionais de alteridade a partir dos limites que a concepção de representação psíquica apresenta ao longo da metapsicologia, indicando que tanto pelo caminho da alteridade traumática quanto da transsubjetiva é possível esboçar posições éticas para além do conteúdo manifesto que historicamente marcou a psicanálise como uma teoria determinista, funcionalista e inatista da personalidade. Nesse sentido, pode-se observar o quanto o legado de Freud continua sendo uma fonte rica e produtiva para a psicanálise contemporânea. Este ensaio, portanto, vem endossar as perspectivas contemporâneas que buscam na relação com a alteridade um eixo norteador para pensar a psicanálise não apenas como uma teoria sobre a subjetividade individual, mas como um posicionamento ético sobre o humano, mostrando a origem dessa problemática na obra de Freud. Permite, também, mostrar como o recurso a uma concepção de alteridade própria da fenomenologia existencial, tirando-a de uma concepção estruturalista estrita em que o “outro” é assimilado a uma estrutura universal simbólica, possibilita uma ampliação considerável das modalidades de simbolização da experiência do outro, permitindo, por sua vez, derivar uma gama maior de implicações e posições éticas com relação à subjetividade. Por fim, apresenta, ainda, um eixo possível de direcionamento na esquematização e organização de uma discussão sobre a questão no âmbito das teorias pós-freudianas em psicanálise. Com isso, quero afirmar que independentemente da posição específica sobre a ética em psicanálise, ou seja, quer seja mais lacaniana ou mais existencialista, o fato é que essa discussão e esse posicionamento são extremamente importantes para a psicanálise contemporânea, de forma que a discussão sobre a referida ética não pode mais se restringir a uma questão de neutralidade técnica e profissional do psicanalista. Impulso, Piracicaba • 21(52), 19-29, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 27 Referências ALLOUCH, J. A etificação da psicanálise: calamidade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1997. CAMPOS, E. B. V. Figuras da representação na emergência da primeira tópica freudiana. 209 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia). São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2004. 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Professor dos cursos de psicologia da Unimep e da UniAraras. Recebido: 11-09-2011 Aprovado: 20-03-2012 Impulso, Piracicaba • 21(52), 19-29, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 29