CONTABILÍSTAS, TÉCNICOS DE CONTAS E TÉCNICOS DE CONTABILIDADE Martim Noel Monteiro (in Jornal de Contabilidade n.º 42, de Setembro de 1980, pp. 197-8) O comentário aqui publicado1 - “Bacharéis, licenciados e revisores oficias de contas” – suscitou, como era de esperar, reacção. E era de esperar porque nunca se tocou nas questões profissionais relacionadas com as habilitações escolares, que não surgissem sempre os mesmos argumentos e as mesmas pretensões, quanto a nós em grande parte insustentáveis, da parte de um certo grupo de pessoas, do exclusivo e da primazia, respectivamente, do usos do título de contabilista e do exercício profissional e do ensino em certos escalões. É questão que se arrasta há cerca de meio século, depois que se extinguiram os Institutos Superiores de Comércio, que deram lugar ao Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras de Lisboa, (hoje Instituto Superior de Economia) e, mais tarde, à Faculdade de Economia da Universidade do Porto, esta com um curso polivalente de economia-finanças, embora só denominado de Economia, e foram criados nas duas cidades os Institutos Comerciais, estabelecimentos de ensino médio-superior, actualmente convertidos em Institutos Superiores de Contabilidade e Administração e que existem também noutras cidades do País. Nos últimos anos, multiplicaram-se os estabelecimentos de ensino superior nas áreas da organização, da gestão, da economia, das ciências da empresa, quer oficiais, quer particulares2, uns conferindo licenciaturas, outros apenas o bacharelato; as escolas do Ensino Técnico Profissional estão em extensão e foi recentemente criado o 12.º ano de escolaridade com uma via profissionalizante, compreendendo vários cursos, entre eles o de técnico de contabilidade3. Malgrado todas estas alterações e evoluções no campo do ensino, os argumentos desse grupo de pessoas – que não serão sempre as mesmas e fazemos a justiça de dizer que não são partilhados pela generalidade dos seu colegas de curso – parecem tirados a químico durante este quase meio ano: (a) Não se concebe que quem tenha andado a “queimar pestanas” sofra a concorrência de curiosos, amadores ou charlatães; (b) Para outras profissões, como a de médico, advogado, engenheiro, etc., exige-se diploma de curso; (c) O elenco de disciplinas do seu curso é superior e mais completo em matéria contabilística que o das licenciaturas em Economia, Finanças, Gestão de empresas, etc. 1 N.º 38, p.96, Maio de 1980. Vd. lista neste jornal, n.º 36, p. 53, Março de 1980. 3 Vd. neste jornal, “Noticiário”, n.º 42, Setembro de 1980. 2 Há um tanto de verdade nesta argumentação e um tanto de exagero e falta de compreensão noutra parte quanto aos condicionalismos económicos, sociais, etc. que não permitem que em todos os lugares e em todos os tempos a cada profissional – seja do que for – corresponda diploma de curso. Há também aquilo a que alguém já chamou “diplomacracia”4, ou fetichismo do diploma, que permite chegar a equações de matemáticas superiores como as seguintes (caricaturadas, claro!): Burro + diploma = génio Génio – diploma = 0 Por raciocínios simplistas como estes e que não levam em conta o valor pessoal, Darwin não seria um grande biologista mas um amador: Corbusier, em vez de notabilíssimo arquitecto, seria um “pato bravo”; Pascal pouco mais que um curioso; Jean Dumarchey, o nosso Ricardo de Sá e outros ilustres contabilistas não o seriam por lhes faltar o diploma respectivo. Ora, se é certo que estas excepções não podem, porque o são, constituir regra, também não há que negar que, muitas vezes, o talento e uma carreira profissional, suprem as deficiências de preparação escolar. Na Inglaterra, ainda não há muito se podia chegar à advocacia através de uma tal carreira, só para citar um exemplo. E nós também tivemos ilustres advogados e notários que não tinham o curso de Direito. O que sucede quando estas situações profissionais “anormais” se regularizam e se regulamentam as profissões exigindo diploma adequado, é que se provisionam os profissionais existentes. Sempre sucedeu, assim, entre nós, com profissões tais como as de advogado, notário, solicitador, despachante oficial, construtor civil, etc., e sucede em todo o lado, onde haja constituições democráticas, com todas as profissões, inclusive a contabilística, como por exemplo, no Brasil, quando se criaram as carteiras profissionais de “contador” e de “técnico em contabilidade”, e em França com os comptables agreés à “Ordre des Experts-Comptables…”. De qualquer modo, também em todo o mundo civilizado se considera que o título profissional é conferido pela admissão nas organizações profissionais próprias e não se confunde com o título académico, mesmo que este seja um pré-requisito. Sucede assim também entre nós com advogados, médicos, engenheiros, revisores oficias de contas, etc. que têm de estar inscritos nas respectivas Ordens, Câmaras ou sindicatos, estando a sua admissão condicionada a certas exigências, algumas vezes prestação de provas. 4 António José Saraiva, cit. neste jornal, n.º 36, p. 52, Maio de 1980. Afinal, sucede assim também com os técnicos de contas que têm de estar inscritos na respectiva lista oficial, também mediante a exigência de certas habilitações e, em casos transitórios, de exames de aptidão. E aqui entramos ma multiplicidade de designações para profissões equivalentes, ou uma só profissão: contabilistas, técnicos de contas e técnicos de contabilidade. Em todo o mundo, com poucas excepções, se designam por contabilistas (accountants, comptables, contables, etc.) mas a variedade de denominações usada entre nós tem a sua história e as suas razões: primeiro havia o guarda-livros, como noutros lados (book-keepers, teneurs-des-livres, etc.), mas com a evolução do simples conceito de escrituração para o de contabilidade, surgiram os contabilistas; depois, como se instituiu um curso oficial de contabilista (cujo regulamento, entre outras funções, dizia que habilitava para a de peritos contabilistas), começou a querer banir-se desta designação todos que não o tivessem. Deste modo, quando se procurou condicionar a responsabilidade pela contabilidade de certas empresas, para efeitos fiscais, a profissionais com dada habilitação (que de princípio seriam apenas licenciados e diplomados com certos cursos superiores e médicos), chamou-se-lhes técnicos de contas; quando se procurou circunscrever a fiscalização das sociedades anónimas também os portadores de diplomas de cursos idênticos, chamou-se-lhes, primeiro, verificadores das sociedades anónimas (num diploma que não chegou a entrar em vigor) e, depois, revisores oficias de contas; e agora que se resolveu profissionalizar os portadores de cursos secundários complementares, chama-se-lhes técnicos de contabilidade. Tantas designações apenas para designar duas funções que em todo o Mundo são distintas, mas exercidas por uma só profissão: a de contabilista e a de auditores; os primeiros dirigem e executam as contabilidades; os segundos verificam e certificam a sua exactidão – mas todos são contabilistas. Por isso teve razão a APOTEC em considerar nos seus estatutos equivalentes, para fins associativos, as designações de técnico de contas, técnico de contabilidade ou contabilista. Mas foi-se escrupuloso ao ponto de a associação não considerar “membro qualificado” senão quem fizesse prova perante ela de estar habilitado, e prever a qualificação de “perito contabilista” mediante a mesma exigência – qualificações estas que, até agora, nunca deu por, em relação à primeira, estar em funcionamento ainda o primeiro cursos de preparação, e em relação à segunda nem sequer ter sido ainda regulamentada. Entretanto, os peritos contabilistas existem – queiram ou não queiram – e não são apenas os revisores oficiais de contas, e por isso se lançou a ideia do IAIP – Instituto de Auditores Independentes de Portugal, que possa reunir uns e outros. Verdadeiramente não é perito quem quer, mas quem reúne determinados predicados – aqui como em todo o lado e seja qual for o campo de actuação, desde os peritos de arte aos peritos contabilistas. Porém, o Código do Processo Civil permite que as partes que nomeiem livremente o seu perito e só em relação ao do juiz prefere, em primeiro lugar, administradores de falências, revisores oficias de contas e diplomados do ensino comercial, médio ou superior, enquanto a lista das profissões liberais do Código do Imposto Profissional não exige diploma para o exercício da profissão. Por isso dizemos que os peritos contabilistas existem, quer queiram, quer não. E temos uma Constituição Política que não permite privilégios nem privações de direitos por razões de educação, nem que alguém seja privado de direitos de trabalho adquiridos. Por isso, alguma vez que a profissão seja oficialmente regulamentada, terão de ser provisionados todos os profissionais existentes, como o deveriam ter sido quando se regulamentou a actividade de revisores oficias de contas. Há bons e maus profissionais, mais e menos habilitados, a exercer a profissão? Certo que os há, como em todas, entrando em conta, além do mais, com as qualidades pessoais. Mas isto sucede em todas as profissões e para indivíduos até com as mesmas habilitações. É por isso que se vai a um médico e não a outro, que se consulta um advogado e não outro, que temos engenheiros notáveis e outros não, etc. Tem de se reconhecer os direitos de quem andou a “queimar pestanas” em cursos custosos e muitas vezes dispendiosos; mas tem também de se reconhecer os dos que fizeram uma carreira profissional árdua. Nas tabelas salariais da URSS – onde todo o ensino é inteiramente gratuito – encontramos equivalências e até superações por um frezador ou torneiro-mecânico muito especializado em relação a um médico, por exemplo. Todos fizeram o seu esforço, todos têm o seu valor social. Razões económicas, razões geográficas, razões sociais etc., têm feito com que muitos não tenham podido frequentar escolas que muitas vezes não existem senão a centenas de quilómetros donde residem e inacessíveis aos seus recursos económicos. Se são profissionais válidos e honestos, nada justifica que sejam olhados com menosprezo. E sabe-se como os estabelecimentos de ensino médio e superior entre nós foram sempre escassos e inacessíveis à maioria da população. Outra questão é a da comparação de cursos: este é melhor do que aquele, ainda que superior em grau, porque tem mais disciplinas de contabilidade, mais isto e mais aquilo. Avisadamente, a portaria que regulamenta a inscrição como técnico de contas o que exige dos cursos para os considerar válidos para tal é que tenham as disciplinas nucleares ou fundamentais da profissão: contabilidade geral e industrial e fiscalidade. É pouco? Decerto, mas é fundamental e é isso que interessa em primeiro lugar. Agora um curso pode ser, na letra, muito superior, ter muitas disciplinas, mas na realidade, preparar cientificamente bastante mal. Por isso disse um inquestionável Mestre5: “Um país vale o que valerem as suas escolas, todas as suas escolas (elementares, médias e superiores). A eficácia e préstimo das mesmas dependem, por sua vez, em grande parte, da competência e diligência de quem nelas ensina a nelas ingressou por contratação livremente aceite…”6. Conhecem-se – e poderiam citar-se – escolas nacionais que, por tradição, têm sido alfobre de gerações de profissionais muito válidos, entre ouros campos, na economia e na contabilidade, e também outras que pouca ou nenhuma gente notável têm produzido. É que pelas pessoas falam as suas obras e só por estas se pode aferir a sua utilidade social. Longe vai este comentário e não desejamos alongá-lo e ainda menos polemizar o assunto, já gasto de tantos anos de uma querela descabida. Ainda menos personalizá-lo como é pecha dos que preferem discutir pessoas às ideias. Nós não valemos nada, admitimos – se quiserem – sermos o “burro” de uma equação das tais de “matemáticas superiores” onde não há termos “talento” e “diploma” e, portanto, com uma só solução: o zero absoluto. O que se discute não são pessoas – acreditamos piamente que os senhores fulanos e sicranos, ou outros nomes que tenham, sejam uns “barras” em contabilidade, tão “barras” que, para eles, mais ninguém vale nada -, mas sim ideias e situações gerais que interessam a toda uma classe. Foi para ela que este Jornal foi feito e decerto à mesma não interessará nada que se discutam méritos ou deméritos individuais. 5 in “Jornal de Contabilidade”, n.º 36, p. 52, Março de 1980. Não se compreende como umas vezes se reclama, para o mesmo curso, tanta superioridade e primazia e outras vezes se tema que, não sendo entendido com uma licenciatura os diplomados pelo mesmo sejam considerados os “guarda-livros da Europa” (sic). 6