A Urbanização Crítica na Metrópole de São Paulo, a partir de

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A Urbanização Crítica na Metrópole de São Paulo,
a partir de fundamentos da Geografia Urbana
Amélia Luisa Damiani
Metamorfoses de concepções da Geografia Urbana
É extraordinário examinar o livro de Pierre GEORGE, Geografia Urbana1, a luz da
realidade da urbanização de nossos tempos. Trata-se de encontrar a potência da
observação dos fenômenos urbanos, nos anos 1950-60, e avaliar como o corpo
conceitual da Geografia, deste período, lidava com fenômenos tão mutáveis, como
aqueles que envolvem o urbano.
O autor buscou dentro da Geografia uma concepção de totalidade dos processos
geográficos, que atravessavam as cidades no mundo, nos anos 1960. O livro data de
1961. Contudo, já em 1952, ele escrevia sobre o tema, desse ponto de vista: o de uma
geografia geral sobre o urbano no mundo, sugerindo tipos de cidades e os
condicionantes de seu crescimento urbano, de sua repartição desigual no mundo, em
estudos comparativos.2
Os instrumentos analíticos em voga, à época, conceituavam a cidade como um
organismo urbano. Essa concepção orgânica atravessa a Geografia alemã e a francesa,
resvala na influência das ciências naturais e biológicas no interior das ciências humanas,
o que foi conceituado como positivismo na Geografia, e é possível incluí-la nos
fundamentos do pensamento sobre o urbano de Pierre GEORGE. Mas tais instrumentos
analíticos já apresentavam sinais evidentes de sua ruptura e limite. Nesse livro, as
cidades são conceituadas como organismos urbanos e se agrega à conceituação a idéia
de aglomeração urbana: a cidade e suas aglomerações urbanas, afinal, sintetizam as
noções de fundamento. A rigor, essa composição já é contraditória e sustenta uma
situação de impasse, inclusive conceitual: a negação da cidade como organismo urbano
coerente e solidário em seus elementos constitutivos. A noção de aglomeração urbana já
expressa à iminente contradição. Leituras recentes sobre o autor demonstram a potência
crítica de seus escritos sobre o urbano, vislumbrando a crise urbana.
Podemos estabelecer a seguinte tese: o livro apresenta um descompasso entre as
observações empíricas do processo de urbanização e o acervo conceitual disponível; ao
mesmo tempo, de modo rico e complexo, anunciava novas concepções, confirmadas
pela realidade urbana atual. O movimento de interpretação do livro sugerido, portanto, é
informado pelas novas abordagens e fenômenos urbanos. Sua leitura compôs sua
primeira e sua segunda partes, simultaneamente, pois a segunda elucida conceitualmente
o trajeto empírico da primeira.
Numa linha de continuidade, que tenta decifrar o processo de urbanização, como
pensado por Pierre GEORGE, à luz desta primeira aproximação, que é a população,
tem-se o seguinte movimento: da urbanização difusa, de crescimento gradual e
constante, à urbanização empírica, de crescimento abrupto e acelerado.
No movimento do texto, a concepção ganha mais plasticidade, absorvendo o tratamento
do fenômeno urbano em sua complexidade, embora, conceitualmente, ainda haja hiatos:
a cidade e suas aglomerações urbanas - a cidade não vem sozinha, mas sempre
acompanhada desse adendo “aglomerações urbanas”, formando o que o autor designa
como conjunto urbano -.
1
GEORGE, Pierre. Geografia urbana. São Paulo: Difel, 1983. (no original, Précis de Géographie
Urbaine).
2
Data de 1952, o livro “La Ville, le fait urbain à travers le monde”, do autor. E, em 1961, lança “Précis
de géographie urbaine”, no qual nos baseamos.
1
Embora o tratamento das cidades inclua os bairros, como modo de organização do
espaço, aparecem os termos analíticos da urbanização empírica, contraditória a essa
organicidade, em princípio designadora do fenômeno: zonas periféricas, áreas
suburbanas, guetos, segregação urbana, habitats espontâneos, como áreas incluindo
populações “não integradas”. As peculiaridades dos chamados países subdesenvolvidos
seriam reveladoras dessa realidade instável.
O fenômeno urbano é tratado em extensão: vários modos de crescimento, cujo teor
maior é a aceleração do processo de concentração de população nas cidades; que, por
sua vez, define mudanças intensivas das cidades. As Metamorfoses sócio-culturais do
urbano equivalem às perdas de gêneros de vida, próprios de coletividades singulares, de
identidades perenes e à afirmação de identidades regionais e nacionais provisórias,
como o caso de guetos, o sentido é do esgotamento dessas identidades concretas.
A perspectiva da cidade como organismo urbano é também a compreensão da cidade
como obra humana, aquela que reflete e, ao mesmo tempo, humaniza o homem. Nesta
literatura geográfica sobre a cidade antevê-se um embate surdo, não refletido
completamente, ambíguo teoricamente, entre a humanização e a desumanização,
expresso na manutenção da idéia da cidade como organismo urbano. Essa ambigüidade
conceitual também é aquela da relação não plenamente resolvida entre o imediato e o
mediato; a dificuldade da compreensão da presença constitutiva da abstração nas
relações sociais modernas. Por outro lado, o espaço guarda outros tempos, incluindo os
da imediaticidade das relações sociais. Os próprios princípios de tratamento da
população: por idade, sexo; equivalendo a diferenças primárias, ainda mantêm esse
caráter antropológico.
Mas, a voracidade do processo urbano, da urbanização, recebe, nesse método
geográfico, um impulso necessário e considerável, inclusive, pondo em questão, de
alguma forma, o conceito de organismo urbano, no caso do estudo das cidades.
Estaríamos resvalando algo relativo à noção de medida - quando a quantidade deixa de
ser estritamente um elemento indiferente e passa a ser ativo, impulsionando a dialética
entre quantidade e qualidade -.3
O reconhecimento é o da universalidade e o da aceleração do crescimento dos grandes
aglomerados urbanos (de milhares a milhões de habitantes); ele sugeriria tipos de
cidades. Vislumbra-se a necessidade de comparação das cidades no mundo. Mede-se a
extensão e intensidade da ocupação territorial urbana, que, ao mesmo tempo, sugere um
tratamento em espectro, de situações globais a escalas intra-urbanas, considerando as
transformações do aspecto físico urbano e da vida cotidiana no urbano, por exemplo, o
ritmo de crescimento das periferias, com superpovoamento crítico (densidade maior de
ocupação por cômodo da casa; afluxo maior de migrantes homens jovens e jovens
casais; até zonas suburbanas, enquanto consumidoras de homens, “pois nelas a morte
sobrepuja a vida”, quando o emprego é instável). A coroa suburbana apresenta-se como
frente pioneira e de colonização da urbanização. Essa leitura manifesta sua atualidade
inconteste. O urbano espelha e reproduz o aspecto crítico da economia capitalista: no
limite, “o enorme contraste de renda entre classes dirigentes e proprietárias, e a massa
da população sem poder aquisitivo, que vive, no sentido próprio do termo o dia a dia”4.
De um lado, a cidade configura uma unidade demográfica; de outro, as coletividades
geográficas - inclusive os bairros - são substituídas pelas relações sócio-profissionais. A
superação da tradição de se pensar o meio geográfico e suas diferenciações, através de
gêneros de vida - da relação entre o homem e a natureza e entre os homens, num
3
HEGEL, Morceaux Choisis. Paris: Gallimard, 1995 (primeira edição 1939), p. 163 (Propedêutica
Filosófica). Tradução de Henri Lefebvre e Norbert Guterman.
4
GEORGE, Pierre. Geografia Urbana, 1983, p. 165.
2
processo de apropriação social da natureza, de longa duração - com o concurso da noção
de divisão social do trabalho, no centro do debate sobre o desenvolvimento das
atividades produtivas, e sua organização espacial, significou uma importante mudança
na literatura geográfica e em novas relações com a sociologia, num movimento embora relutante, pois prevaleceria uma compreensão progressista do capitalismo - de
reconhecimento das abstrações concretas, próprias do mundo moderno; da realidade das
relações sociais formais, sintetizadas na alienação social do trabalho. Os
desdobramentos teórico-metodológicos para a Geografia levam à centralidade, hoje, da
categoria de produção do espaço.
O trajeto do conhecimento do objeto da Geografia Urbana, que se anuncia através dos
estudos populacionais e se desdobra na repartição geográfica das cidades no mundo,
com suas qualidades sócio-culturais, muitas vezes, de raízes de longa duração, definindo
uma regionalização do fenômeno no mundo; esse trajeto, compreendido no plano mais
abrangente do processo de conhecimento em geral, tem a profundidade do
desenvolvimento do conhecimento moderno, assim como seus impasses: a relação
dialética entre o infinito e o finito; entre a quantidade e a qualidade; entre a análise e a
síntese; entre a parte e o todo, a superfície terrestre como um todo e a particularidade,
mesmo a individualidade, dos lugares...5
Anunciemos então essas derivações, mesmo que esboçadas, em grandes linhas.
No trajeto do livro, que nos serve de base e exemplo, Geografia Urbana, de Pierre
GEORGE, após essa aproximação do fenômeno urbano, através da população e seus
índices, o autor discorre sobre a repartição das cidades no mundo. O importante a
considerar, metodologicamente, é a contradição dialética quantidade-qualidade posta
nesse movimento. Contradição que pode se resolver no livro, ao nível de seus conceitos
mais evidentes, de modo formal; mas que é latente e de profundo resultado na definição
do trajeto do desvendamento do objeto de estudo.
Se, nos primeiros capítulos, das duas partes do livro, a noção de quantidade funda a
inteligibilidade do percurso, com a idéia do deciframento dos dados populacionais, os
capítulos sobre a regionalização do fenômeno urbano trazem uma base qualitativa, que
subverte o que veio antes. É a densidade dos modos de vida, das culturas, das técnicas e
do trabalho humano, traduzida nas configurações geográficas. A natureza da análise
altera seus procedimentos. Os documentos históricos passam a parte necessária do
acervo de consulta. E a tragédia das mudanças urbanas e suas desigualdades vão sendo
expostas.
Aqui um movimento importante no texto é aquele de introduzir os modernos processos
econômicos e as configurações geográficas resultantes e pressupostos dos mesmos
processos - causa e efeito, na sua relação mútua -. Assim, as repartições geográficas
chegam à regionalização dos países desenvolvidos e subdesenvolvidos, como momentos
necessários do moderno processo de desenvolvimento econômico.
Um momento demarcatório do livro base de nosso ensaio, referente à dialética entre
quantidade e qualidade na Geografia Urbana, é a idéia do processo de urbanização que,
5
O objeto da Geografia, contendo a relação entre o homem e a natureza e entre os homens, contém a
infinitude do que é essencial da natureza; da relação entre o homem e a natureza; e entre os homens; e de
suas relações mútuas. Mas, ao mesmo tempo, deve se realizar como finitude e o faz elegendo a superfície
da terra como totalidade. Sempre lembrando a plasticidade dessa base material e finita: o ecúmeno, em
constante acréscimo; inclusive, com o desenvolvimento científico e técnico. Há uma contradição dialética
implicada no objeto: a relação entre infinito e finito. O importante a considerar é que a contradição existe,
mas pode não estar explicitada, pensada, resolvida, enquanto dialética, pela Geografia.
3
no limite, inclui a noção de urbanização empírica, de extraordinária possibilidade, pois
anuncia, nessa obra, a implosão-explosão da cidade como obra humana.6
Assim, o eixo da compreensão do fenômeno urbano, como movimento da prática social
- prática social, que poderíamos qualificar como alienada, inclusive da perspectiva do
texto em exame - tem o processo de urbanização como base.
A base filosófica da repartição geográfica está assentada na enorme conquista da
filosofia moderna que é o entendimento, a destruição do objeto para constituição de sua
inteligibilidade.7 Participa da negação da conquista da unidade, da totalidade como
premissa metafísica escolástica ou mágica. A repartição geográfica das cidades no
mundo, neste caso, comporta uma tradição de geografia comparada8, própria ao seu teor
disciplinar, o que envolve dizer que à repartição acrescentam-se as noções de
encadeamento, de relação de conjunto; os fenômenos particulares subordinando-se ao
compito da “Terra tomada em seu conjunto”.
Essa geografia comparativa tem como princípio uma geografia geral na relação com as
particularidades, até singularidades, dos lugares. As monografias urbanas se compõem
com estudos gerais e comparativos.
Neste livro, Pierre GEORGE, mesmo de modo não pensado plena e conceitualmente,
exercita a metamorfose do espaço absoluto em espaço relativo. Ele se divide nesses dois
pertencimentos da Geografia: a Geografia tradicional, antropológica, e a Geografia
contemporânea, que deve conter uma concepção social da historicidade e da
espacialidade modernas.
A noção de espaço absoluto, definido de modo materialista, confirma a não
problematização da relação partes e todo; cada qual expressando o outro sem fissuras.
Dessa maneira, a sociedade moderna, baseada na negação entre sujeito e predicado (em
termos mais abstratos), não é suficiente e crucialmente expressa em suas contradições.
Define-se assim o plano mental e, ao mesmo tempo, social, do espaço absoluto.
Mentalmente, é o espaço geométrico e euclidiano; socialmente, é a sociedade moderna,
o presente, sem contradições refletidas como tais; pelo menos, os fundamentos lógicos
do pensamento geográfico não as esclarecem. Mas é exatamente Pierre GEORGE e seu
grupo que, em meados dos anos 1960, definem a idéia do espaço relativizado. O próprio
espaço como situação.9
O debate sobre o espaço definido como absoluto, que aparece como fundamento lógico
das concepções em curso, ao mesmo tempo, oferece a oportunidade de atualizar o livro
e pô-lo em relação com Geografias Pós-modernas, de Edward SOJA, ambos nos
levando a um percurso do pensamento em Geografia Urbana.
Como espaço absoluto, tudo se propõe como elemento e momento da organização do
espaço. Nada se separa de modo estrito, isto é, nada é simplesmente decorativo.
Organização aqui ganha o sentido do obedecer a uma ‘ordem’. Não há o fortuito. A
noção de superfície da terra prevalecerá e ela equivale a compor o mundo e sua
repartição, excluindo o acima e o abaixo: o cosmos e as profundezas, a não ser quando
estabelecem relações evidentes com essa superfície, quando técnica e socialmente
6
Fartamente discutida por Henri LEFEBVRE; entre as citações, destacamos Le droit à la ville suivi de
Espace et politique. Paris: Anthropos, 1974 e La Révolution Urbaine. Paris: Gallimard, 1970.
7
LEFEBVRE, Henri. Descartes. Paris: Éditions Hier et Aujourd’hui, 1947. Excelente análise da filosofia
moderna, em concepção, no século XVII.
8
À Geografia se reservaria o tratamento das diferenças localizadas na superfície da terra, comparando-as.
(CAPEL, Horacio. Filosofía y Ciencia en La Geografía Contemporánea. Barcelona: Barcanova, 1981, p.
321)
9
GEORGE, Pierre; GUGLIEMO, Raymond; LACOSTE, Yves e KAYSER, Bernard. A Geografia Ativa.
São Paulo: Difusão Européia do Livro/EDUSP, 1966.
4
passam a fazer parte da organização do espaço social. Às alturas, reserva-se a ciência da
astronomia; da teologia... Às profundezas, à psicologia e mesmo à sociologia. Mas, as
condições climáticas são parte da superfície; assim como, a geomorfologia absorve a
geologia. E ambas podem configurar condições naturais a partir das quais o homem atua
e definem segmentos da Geografia como ciência. A natureza humanizada, a produção
de qualidades sócio-culturais e suas diferenças constroem a Geografia Humana, ou,
especificamente, a Geografia Urbana, como civilizatória. A base é a natureza e a
natureza modificada; o princípio da propriedade privada, no sentido lato, que se afirma
como traço irrevogável do processo de modernização, vai aparecer por vezes como
residual; ele posto, chega-se à noção de espaço relativo e não absoluto: envolvendo
mediações abstratas, definidoras do espaço da acumulação. Na repartição geográfica das
cidades no mundo, em sua regionalização, há um lugar proeminente para as qualidades
sócio-culturais dos espaços; a realidade das abstrações concretas, econômicas, vai
aparecendo a posteriori, não é o principio formador do argumento.
A argumentação aqui desenvolvida sobre a noção de espaço absoluto, no sentido
concreto, materialista do termo, como fundamento dessa Geografia Urbana, não
equivale a descaracterizá-la como anunciadora do que veio a ser a produção do espaço incluindo o espaço como relacional10 -, mas se trata de demonstrar um movimento do
conhecimento que é também, a partir do reconhecimento das diferenças e práticas sócioespaciais, aquele da superação, mais o menos consciente, da natureza como base e
princípio, enquanto superfície da terra, em prol do exame da “natureza abstrata” - a
segunda natureza, produzida pelo homem e dele alienada -, exigida como fundamento
do moderno. No plano fenomênico pode estar presente, na argumentação, o sentido
último da modernidade, mas os instrumentos lógicos adequados ao seu conhecimento
ainda havia que configurar. Isto é, no início, há um princípio homogeneizador, em
relação e destrutivo das particularidades, e não as próprias particularidades regionais e
locais a decifrar, depois o reconhecimento dessa abstração concreta.
O trabalho de Pierre GEORGE é o deste anunciador de uma geografia crítica.
Sim, o 2.º capítulo do livro em exame é sobre origem e gênese das cidades; portanto, de
suas particularidades. Nele, o autor identifica diferentes gerações de cidades no mundo,
convergindo, no entanto, para tipos de cidades. Os tipos definem os modernos processos
econômicos e sociais, atravessando as cidades, com histórias e passados diferentes e de
modo diferente. Uma regionalização, como diz, em sentido lato, é o plano analítico; isto
é: o conjunto urbano nos/dos países; as funções econômicas das cidades, definindo-as; e
a distribuição das funções no interior de cada cidade. A composição desse capítulo com
o 2.º capítulo, da 2.ª parte do livro, sobre o trabalho urbano, nos ajuda a examinar sua
atualidade conceitual.
Uma ruptura histórica, que move a transformação das cidades, costura toda a análise: a
industrialização. Sendo que esta e seus derivados, como a extensão dos serviços e
comércio - mais ou menos contraditórios -, implicam em formas de trabalho
concentrado, em fenômenos de massa, que metamorfoseiam as cidades. No interior de
um raciocínio aparentemente desenvolvimentista, o autor formula uma tese crítica sobre
o desenvolvimento das cidades: o crescimento das cidades conduz à negação
(impossibilidade) do urbanismo (enquanto projeto coletivo, social) e está sob o
privilégio da economia (indústria, finanças, circulação e especulação) e da arquitetura
(como solução individual, isolada).
10
“Devemos, também, pensar relacionalmente o espaço porque há um sentido importante no qual um
ponto no espaço ‘contém’ todos os outros pontos [...] e é também crucial para entender a determinação do
valor do solo...” (HARVEY, David. A justiça social e a cidade. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 143-144)
5
As cidades, como fenômenos de longa duração, remetem a um plano histórico contínuo,
a partir do qual se localiza uma descontinuidade, que redefine esse complexo têmporoespacial.11
Com instrumentos conceituais ainda ambíguos, preservando uma idéia de organicidade
da cidade, o autor anuncia, num movimento logicamente não explicitado como
contraditório: os limites do urbano na sociedade capitalista moderna. Assaltando o
autor, para fundamentar sua atualidade, podemos devia-lo de algumas maneiras, como
estamos tentando fazer até aqui. Será preciso ousar mais, no desvio, a seguir. Sendo o
desvio a prática de utilizar o autor de modo irreverente, não para vulgarizá-lo ou
enaltecê-lo, mas para posicioná-lo num outro patamar de relação, neste caso, com o
conhecimento geográfico vindouro.12
A composição desviada entre os 3.ºs capítulos, das partes 1 e 2 do livro em exame, nos
permite um tratamento inusitado: partir das condições naturais, que enraizaram as
cidades, cujo elemento analítico mais evidente é o sítio urbano, em escala local, para
circunscrever esta escala, superando-a, na relação com outras escalas, como a regional.
Assim, o par paradigmático dos estudos urbanos em Geografia remete ao sitio e à
situação da cidade; par que propõe a concepção do urbano como relativa a diferentes
escalas: no tempo e no espaço. No tempo, o sítio vai se desatualizando, as
condicionantes naturais vão perdendo valor explicativo na explicação da morfologia da
cidade; contudo, a análise remete aos inícios de formação do núcleo urbano, numa
escala espacial local e à história de seu desenvolvimento morfológico. A situação define
um segmento regional de tratamento da cidade, seu processo de irradiação, e garante, o
tempo todo, o exame da atualidade das condições materiais de relacionamento da cidade
com o entorno; as condições de desenvolvimento urbano, no âmbito da organização dos
meios de transporte, de circulação e troca. Neste sentido, o problema fundamental da
geografia urbana é o problema da geografia da circulação, envolvendo o deslocamento
de homens e mercadorias em quantidades de crescimento exponencial. A geografia
urbana reitera-se por sua natureza de fenômeno de massa. Sob impulsos naturais
particulares, a posição da cidade recebe os meios de comunicação sempre renovados e
acrescentados. A concepção, então, à base dessas transformações, é a formação de um
sistema de organização territorial, como fator decisivo. A escala geográfica é a
regional, no sentido lato, inclusive, quanto à situação e na escala temporal conta a
atualidade das conquistas técnicas e científicas, que move as novas condições materiais
de circulação em geral. Esta geografia, que vai se forjando, no urbano, é a geografia
como geografia da circulação, inclusive, do ponto de vista da vida cotidiana: a noção de
ambiente equivale a conceber como as formas de organização da vida material
interferem na vida cotidiana. A circulação necessária de grandes massas de população,
diariamente. A mobilidade da população urbana localiza um temário caro aos estudiosos
do cotidiano, temário que aparece nessa obra: o tempo obrigatório, a imposição de
uma penosa circulação diária ou impossibilidade de.
Do par sitio e situação não extraímos, somente, um darwinismo da formulação em
geografia urbana, mas também a atualidade de seu tratamento da cotidianidade (cuja
11
Algumas tentativas para demonstrar a extensão e intensidade das mudanças são assim expressas:
- sobre a revolução industrial no urbano, no âmbito planetário tem-se: cidade nova (criação da
industrialização); cidade, com passado, transformada (pela industrialização); e cidade tradicional (ecos da
transformação);
- como características do movimento urbano: sociedade rural (cidade e conjunto patriarcal); coexistência
de arcaísmos e modernismos (duas cidades); e sociedade urbana (separação entre as atividades produtivas
e as atividades residenciais – incluindo a utopia dos pavilhões e os movimentos diários da população ativa
-), incluindo a idéia de conurbações industriais.
12
Sobre a noção de desvio, Internationale Situationniste. Paris: Fayard, 1997.
6
formulação teórica apenas de esboça). Para uma leitura mais vulgarizada, a estrutura
analítica de apoio, desse livro, neste momento, reiterada em compêndios de geografia
urbana, faz prevalecer à arquitetura dos condicionamentos naturais.
Contudo, temos como movimento de superação dos condicionamentos naturais um
sentido que não se define como ascendente, no limite último: condições naturais;
sistema de organização territorial e ambiente e vida cotidiana.
Através do trajeto exposto mais acima, de Pierre GEORGE, que vai de condicionantes
naturais ao sistema territorial organizado e dele ao ambiente subversivo à vida cotidiana
dos citadinos, como modo de deterioração da vida urbana, temos um trajeto anunciado
que não cabe em esclarecimentos sobre se é positivista ou não o argumento do autor,
mas que o mesmo, com instrumentos conceituais não suficientes, chega a considerar a
alienação social, através do urbano.
No capítulo terceiro, “Aspectos da vida social urbana”, da segunda parte do livro
Geografia Urbana, Pierre GEORGE anuncia, sintética e conceitualmente, a tese do
texto, da qual derivará sua estrutura analítica em fases da vida na e da cidade:
“mobilidade cotidiana da população, recurso aos equipamentos comerciais, aos serviços
de todos os tipos, busca de lazer e de descanso”. Que, na condição de fenômeno de
massa, comporta situações de vida provisórias e instáveis. É próprio da condição
citadina, em sociedades industriais, esta vulnerabilidade social.
O composto atividades produtivas - movidas pelo processo industrial - e vida cotidiana
na cidade é explosivo, redefinindo os limites do fenômeno urbano. As formas de
irradiação para além da cidade levam à consideração das redes urbanas, das formas de
conurbação, da constituição de periferias. O quadro tradicional da cidade é rompido, e
ela é, ao nível da vida cotidiana, penosamente suportada. “Este esquema geral deve ser
retocado em função do desigual desenvolvimento econômico e social dos diversos
países e também de certas modalidades da organização da vida coletiva.”13
O plano da análise dos últimos capítulos (4.º e 5.º da 1.ª parte e último da 2.ª parte),
sinteticamente, pode ser reconduzido a partir da idéia de espaço de catástrofes.14
A organização do espaço urbano, redefinida e cada vez mais funcional, inserida na
dinâmica abstrata da economia moderna, que materialmente se transforma
exponencialmente15, pode comportar a análise dos pontos de ruptura, dos pontos críticos
da estruturação em curso. O argumento não flui somente no sentido da coerência e do
equilíbrio das novas realidades urbanas, mas contém contradições não pensadas como
tais, expostas como realidades sociais a corrigir, no âmbito coletivo estatista. O sentido
dessa realidade urbana, como elemento crucial das contradições sociais modernas, não
foi totalmente desvendado, mas o texto inclui momentos fundantes dessa possibilidade.
Da urbanização difusa à urbanização empírica, há a exposição do espaço de catástrofe
do organismo urbano, como forma de agrupamento e forma de atividade: a explosão
das cidades em periferias enquanto unidades urbanas incompletas. “A realidade é o
aglomerado urbano. A cidade não é senão uma fração, o fenômeno é uma bola de neve”,
sob pressão dos negócios financeiros, há expansão, com expulsão da maior parte da
população dos núcleos citadinos e metropolitanos centrais.
13
GEORGE, Pierre. Geografia Urbana, 1983, p. 203.
OSEKI, Jorge Hajime. O único e o homogêneo na produção do espaço. IN: MARTINS, José de Souza
(org.) Henri Lefebvre e o retorno à dialética. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 109-119.
15
É, inclusive, belo e dramático o texto sobre Tunis, cidade colonizada pelos franceses, representativa do
que veio a ser outras cidades do Norte da África. (GEORGE, Pierre. Geografia Urbana, 1983, p. 129-132)
14
7
Qual a passagem dessa geografia que viemos de explorar de alguma forma e aquela que
veio a ser a geografia contemporânea crítica. Qual acervo as diferencia? Como?
Profundamente? Superficialmente? Ao nível da história do pensamento geográfico,
houve uma ruptura nítida entre o que foi e o que veio a ser a Geografia Crítica. Para os
anglo-americanos, a Geografia Radical.16
Aqui, indicamos a dificuldade de demarcar a ruptura, como descontinuidade absoluta. O
movimento de superação da geografia anterior em relação à geografia contemporânea
crítica está no seu fundamento marxista: a crítica à economia política.
Geografias Pós-modernas de Edward SOJA17, discutindo a dialética do espaço, de
modo mais abstrato; localizando seu sentido na literatura marxista, seu ponto de ruptura
com a dialética do tempo, esta última monopolizando essa mesma literatura, ao decifrar
os fundamentos do capitalismo; e sintetizando o argumento, através de um ensaio
paradigmático sobre Los Angeles, pode nos sugerir, como exercício metodológico,
outros instrumentos conceituais e formais de interpretação geográfica; uma
descontinuidade do pensamento em Geografia Urbana. Agora, essa descontinuidade
pode se apresentar, com este e outros autores contemporâneos, sem se forjar na negação
estrita do que foi antes a Geografia Urbana.
A Geografia que viemos de discutir, anteriormente, é elucidativa da grandeza do
processo social de modernização, que atinge a todos, mesmo os lugares mais afastados
de sua centralidade; embora, tal processo seja, inerentemente, desigual. Mesmo a
expressão descritiva dessa presença, assim, aponta, incluindo a metamorfose ou dura
destruição de tradições e culturas passadas. Uma Geografia Geral, que comportava a
diversidade do fenômeno geográfico no mundo, definiu-se como momento necessário
do projeto de Geografia Humana; neste caso tratado, realizando-se como Geografia
Urbana.
Anuncia-se o capitalismo financeiro: incluindo a descrição de empreendimentos
econômicos e especulativos envolvidos; varrendo as histórias de povos colonizados;
reproduzindo-se em impérios; e constituindo uma massa de população potencialmente
trabalhadora, agigantada e concentrada, especialmente, em grandes cidades.
Perversamente, concentradas, pois são denunciadas as formas de segregação espacial
produzida.
O pensamento marxista, cada vez mais interferindo na geografia produzida, acabou por
produzir uma nova hipótese teórico-metodológica para a Geografia, ainda em
constituição: a Geografia deixa de ser periférica no interior de uma teoria social crítica,
e passa a lhe ser constitutiva.
Na obra de SOJA aparece a idéia da importância do desenvolvimento geográfico
desigual, na interpretação marxista do mundo. Ele teria o estatuto das contradições de
classe na explicação do capitalismo, da relação capital-trabalho. Por esse caminho, o
autor chega à necessidade de uma concepção dialética do espaço.
Na obra de SOJA, Geografias Pós-modernas, é possível compreender a centralidade do
pensamento de Henri LEFEBVRE, que teria precipitado uma costura de tendências, que
se afirmavam dentro e em torno do marxismo, com certa dificuldade, o propósito de
uma dialética espacial e seu sentido na teoria social crítica. Do ponto de vista abstratoconceitual, a noção de heterotopias, de FOUCAULT, punha outro registro do espacial
na interpretação do mundo moderno, embora o autor, também, a tenha identificado
como constitutiva de outras sociedades, ao longo do tempo histórico. “A heterotopia é
16
JOHNSTON, R. J. Geografia e Geógrafos. São Paulo: Difel, 1986.
SOJA, Edward. Geografias Pós-Modernas – A Reafirmação do Espaço na Teoria Social Crítica. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
17
8
capaz de superpor num único lugar real diversos espaços, diversos locais que em si são
incompatíveis...”18 O espaço heterotópico é um espaço de contradição latente.
Simultaneamente, realizam-se espaços diferenciais, exatamente invertidos, e, ao mesmo
tempo, combinados. Do ponto de vista histórico-concreto, a concepção de MANDEL
sobre a significância do desenvolvimento desigual, no processo capitalista19, juntamente
com toda a obra sobre o Imperialismo, especialmente a de LENIN, esclarecem a tensão
dialética entre diferenciação e igualação, própria das leis do movimento do capital,
pondo as desigualdades geográficas no centro da explicação sobre a reprodução
capitalista.
Do abstrato ao concreto, as visões sobre a espacialidade acabavam por desaguar,
sintetizadas, nas concepções de LEFEBVRE sobre a relação entre produção social do
espaço e reprodução social das relações de produção, expondo a necessidade de um
pensamento, que incluísse a dialética do espaço.
O argumento de SOJA sobre a geografia humana crítica leva-o a refletir a geografia
urbana através das reestruturações urbanas, como constitutivas do processo crítico do
capital.
A economia política da reestruturação urbana e regional, que SOJA analisa a partir de
Los Angeles, demarca a dialética do imóvel-móvel, arranjos espaciais urbanos
provisórios, isto é, passíveis de destruições econômicas criadoras, produtiva e
financeiramente compensatórias, próprias da economia contemporânea. O ponto de
ruptura da imobilidade envolve uma rede complexa de produção de lugares. A direção
de uma dialética do espaço expõe um movimento que vai da dialética do tempo àquela
do espaço, tendo como intermediário, a ser negado, a fetichização do espaço;
movimento necessário à compreensão crítica das forças estruturais do capitalismo.
A atualização da metrópole urbana ao nível da produção do espaço, explicitando a
urbanização crítica
O que rege estas considerações é a tese de que há necessidade de uma leitura de
totalidade da metrópole para expor sua inserção no processo social moderno, no
compasso das estratégias econômicas e políticas de sua mercantilização. Para tanto,
sustenta o argumento três complexos analíticos, sendo que cada um deles contém
sintética e dialeticamente elementos com nexos contraditórios e em estreita conexão
com os demais complexos. São eles:
1 - A crise do trabalho, contida na crise do capital. Esta crise se manifesta como
desemprego maciço; aumento da composição orgânica do capital dos empreendimentos
econômicos, que reduz proporcionalmente o trabalho vivo da referida composição; uma
economia de “sobrevivência”, em novos moldes, pois, diante da crise do trabalho,
setores produtivos e de serviços, de baixa composição orgânica do capital, são mantidos
e, pulverizadamente, ampliados.20 Lembrando que a economia brasileira sempre conteve
18
SOJA, Edward. Geografias Pós-modernas, 1993, p. 24-30, citando Foucault , p. 25.
“Ao não subordinar a estrutura espacial do desenvolvimento desigual à classe social, mas encará-la
como estando ‘no mesmo plano’, Mandel identificou, na escala regional e internacional, uma
problemática espacial que se assemelha de perto à interpretação da espacialidade urbana por Lefebvre, a
ponto de sugerir, inclusive, uma poderosa força revolucionária emergindo das desigualdades espaciais,
que ele claramente afirmou serem necessárias à acumulação capitalista.” (SOJA, Edward. Geografias Pósmodernas, 1993, p. 103)
20
“A tendência à formalização das relações sociais estancou nos anos 1980, e expandiu-se o que ainda é
impropriamente chamado trabalho informal [...] a desconstrução da relação salarial que se dá em todos os
níveis e setores. Terceirização, precarização, flexibilização, desemprego a taxas de 20,6% na Grande São
Paulo - dados de 2003 [...] -, e não tão contraditoriamente como se pensa, ocupação, e não mais emprego
[...]” (OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista / O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003, p.
19
9
essa presença; daí todas as formas de dualismos a explicando: a formalidade e a
informalidade do trabalho; mais recentemente, a exclusão e inclusão produtivas dos
trabalhadores...
“Todo tempo de trabalho é tempo de produção” coincide com a análise da dissociação
entre rendimento (proletário) e trabalho (produtivo na fábrica). Isto é: “desta leitura,
decorre, na ordem do dia, a crise do trabalho – a atual fase histórica sendo marcada pelo
fim do trabalho como centro de gravidade da vida e fundamento do laço social. Sobre o
terreno da ação coletiva, esta crítica equivale a colocar uma dissociação entre
rendimento e trabalho [...].”21
No interior dessa situação, de fundamento crítico, de modo pulverizado, no sentido de
que em todo e qualquer espaço e em todo e qualquer tempo, são buscadas formas de
sobrevivência, que incluem além de modos precarizados de trabalho, formas de
assistência institucionalizadas (bolsa família, programa de renda mínima...). O
Programa Fome Zero é bem ilustrativo da via estrutural em curso, nos países
periféricos do capitalismo. É interessante notar que as grandes metrópoles constituem
espaço-temporalmente essa presença do trabalho em tempo integral, completamente
desvalorizado.
2 - As cidades passam a constituir espaços privilegiados da produção mercantil do
espaço, internalizando a metamorfose do capital produtivo em capital financeiro. Não
são espaços do homem-habitante como, por algum tempo, definia LE LANNOU, nem,
exatamente, espaços do homem-produtor e do homem-consumidor, como avaliava
Pierre GEORGE, para citar autores já mencionados, mas espaços do habitat e dos
negócios, que negam o homem; espaços de desumanização e sujeição social e
individual. De modo fenomênico, as cidades tornam-se sujeitos sociais22; em sua
essencialidade, é o processo de urbanização, tendo como fundamento a proletarização
absoluta. Deslocar o sujeito na direção do processo de urbanização significa que todos
os espaços e tempos sociais são absorvidos, tendencialmente, pelo processo do capital.
O espaço como um todo move-se, economicamente, segundo as necessidades da
economia urbana, voraz, inteiramente baseada na urbanização como negócio. Sob esse
fundamento, não há como identificar um sujeito, senão aquele imanente à própria
economia desumanizadora. Não há um sujeito e seu habitat, como moradia degradada;
há o habitat, negando o habitante, no interior de uma economia, que nega,
contraditoriamente, o trabalho. Dialeticamente, aparecem como necessidade de moradia
e necessidade de trabalho. Dizer que o habitar se transforma em habitat, significa dizer
que o habitante não é o sujeito, mas o negócio imobiliário o é, e todas as suas extensões
econômico-políticas. Dizer que há negação do trabalho é dizer que existe uma economia
que se move, contraditoriamente, por destituição do trabalho e tornando todo tempo
humano um tempo de todo e qualquer trabalho. Ela sujeita e é o sujeito. No fundo, são
alienações por destituição de apropriações sociais e individuais possíveis. O
desenvolvimento das forças produtivas sociais, absorvidas pelo capital, cada vez mais
financeirizado, se resolve socialmente, inclusive, comportando restos de técnicas,
142). “Então, graças à produtividade do trabalho, desaparecem os tempos de não trabalho: todo o tempo
de trabalho é tempo de produção.” (Op. cit. p. 136, negrito nosso)
21
MARTINI-SCALZONE, Lucia e SCALZONE, Oreste. Écologisme et autonomie. IN: GROUPE DE
NAVARRENX. Du Contrat de Citoyenneté. Paris: Syllepse/Périscope, 1990, p. 226-227.
22
Fala-se em protagonismo das cidades: “entre os itens de inserção: a promoção econômica para o
exterior e a concepção e implementação de projetos urbanísticos. (BARRETO, Maria Inês. Inserção
internacional de governos locais. IN: Revista Teoria e Debate. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, ano
17, n.º 59, agosto/setembro de 2004, p. 12). A concepção dos projetos urbanos tem por base o tratamento
da cidade como empresa-cidade. (OSMONT, Annik. La banque mondiale et les villes – du
développement à l’ajustement. Paris: Karthalam 1995, p. 281)
10
inseridos na vida cotidiana urbana. Nas imensas periferias, a dos centros histórico e
expandido das cidades, ou a do seu entorno, cada vez mais amplo e distanciado,
metropolitano, prevalece a baixa composição orgânica do espaço, que aparece como
falta de infra-estrutura urbana. Designamos por urbanização crítica. O movimento é ir
distanciando os espaços periféricos e ir constituindo novas centralidades econômicas
metropolitanas.23
O planejamento espacial faz parte constitutiva das estratégias político-econômicas.
O “trabalho intelectual” se resolve na realização superestrutural de uma pesada carga
legal, de escalas multiplicadas e sobrepostas - leis regionais, municipais e federais;
combinadas com regulamentos setoriais - numa enorme burocratização, incluindo além
do aparelho estatal, organizações não governamentais, com vistas a assegurar o
enobrecimento dos espaços degradados socialmente, incluindo justificativas sociais,
para o que acaba se realizando, especialmente, como uma economia urbana ou produção
do espaço urbano. No interior dessa superestrutura, há conquistas sociais,
proporcionalmente, bem inferiores à economia em movimento.
A lei, n.º 10.257, referente ao Estatuto da Cidade, regulamentada em 2001, significa,
contraditoriamente, uma modernização do aparato legal com vistas ao direito de
propriedade. Do ponto de vista das Operações Urbanas, equivale à manipulação dos
índices e características de uso e ocupação do solo e a um processo de financeirização
da propriedade privada da terra urbana.24 E, ao mesmo tempo, institui a função social da
propriedade, como combate à especulação urbana, servindo de justificativa política para
as ocupações urbanas, realizadas por movimentos sociais urbanos, reiterada e
violentamente combatidas, através de instituições do Estado; reprimidas como invasões
de propriedade alheia.
Os conteúdos da necessária dialetização do espaço envolvem: o aparato legal de apoio,
sustentado por uma leitura estratégica do espaço, apoiada em lógicas espaciais que
arrematam e sintetizam mecanismos econômicos e políticos, neste caso, metropolitanos;
seu desdobramento financeiro e social, pois se estabelece que a economia urbana vai
tecendo um processo de reprodução do capital imobiliário, inclusivo de sua
financeirização, produtor do habitat e dos negócios, no seio da produção do espaço
urbano, portanto, definindo formas de sujeição social. No caso de São Paulo, a
composição ou o conjunto das Operações Urbanas Consorciadas, do Plano Diretor
Estratégico do Município, projetadas e existentes, revela-se claramente como espaço
instrumental, instruindo os mecanismos econômicos e financeiros.
A mobilização da propriedade privada da terra, no interior da produção do espaço
urbano, tem um desdobramento de 2.º grau: além de colar num segmento produtivo
como o do capital imobiliário, e inclusive através dele, reproduz-se na sua
financeirização e na implicação de instituições do Estado, diretamente, na manipulação
23
Especialmente significativo sobre este trajeto, entre outros, de toda uma geração de novos geógrafos
devotados ao tema é a pesquisa de Ana Fani Alessandri CARLOS. (CARLOS, Ana Fani Alessandri.
Espaço-tempo na metrópole. São Paulo: Contexto, 2001)
24
“Sob a forma de Operações Urbanas, os interessados em construir grandes edifícios que extrapolam o
zoneamento ‘normal’ podem fazê-lo nas regiões delimitadas por esse instituto, bastando para isso a
compra de ‘aditivos’ à propriedade que podem ser adquiridos da própria municipalidade, ou de
particulares, vista serem direitos reais, representados por papéis de livre negociação. Com a raridade do
espaço horizontal criou-se a raridade do espaço vertical, ainda que fictícia, sob a representação de títulos
que na cidade de São Paulo chamam-se CEPACs (ou Certificados de Potencial Adicional de Construção),
que são igualmente finitos, embora sejam apenas números.” (BAITZ, Ricardo. A propriedade contra a
posse e a propriedade 2. IN: GEOUSP – Espaço e Tempo. São Paulo: Departamento de Geografia,
FFLCH, USP, 2007, n.º 22, p. 95).
11
do agenciamento financeiro.25 Como processo de urbanização, configura-se um circuito
próprio de capital imobiliário, com suas conseqüências tanto no processo do capital,
como nos limites da vida urbana; o que se observa, hoje, como imediatamente
materializado. E esse circuito deixa de ser secundário no conjunto dos setores
econômicos. Negativamente, define-se uma acumulação primitiva do espaço: um
processo de expropriação, combinado à degradação do trabalho, antes enunciada.
A produção de uma nova centralidade é, imediata e sensivelmente, a expropriação dos
usos anteriores desse mesmo lugar. Com SMITH, poderíamos falar de produção de
escalas geográficas: produz-se uma centralidade e, ao mesmo tempo, sua periferia,
incluídos no mesmo processo.26
. No caso de São Paulo, as estratégias imobiliárias renovadas sugerem a direção
sudoeste, preferencialmente. Estratégias que se expandem, também, por outros eixos de
valorização, o que nos leva ao Rodoanel (grande anel viário metropolitano perimetral),
como a fronteira desenhada dos novos negócios potenciais da urbanização.
Sob o ponto de vista da urbanização crítica, é possível examinar a produção do espaço
num processo de continuidade-descontinuidade da produção industrial na moderna
sociedade capitalista: determinados setores produtivos ganham potência entre os
negócios - as indústrias da construção, que deixam de ser um setor secundário -;
desenvolve-se um sistema complexo de comercialização do produto-espaço - as
incorporadoras e imobiliárias internacionalizadas e consorciadas no urbano a ponto de
produzir territórios de negócios -; a circulação da riqueza produzida e fictícia envolve
um processo ampliado de financeirização; políticas diversas amparam a pulsação das
necessidades dessa produção; e a produção do espaço atualiza a importância da
mobilização da moderna propriedade da terra - aqui também se vai de extração de
rendas da terra urbana, a partir de estratégias econômicas e urbanas, a rentismos vários,
na rabeira das tais estratégias de negócios urbanos. Pode-se falar de uma estratificação
espacial das centralidades: de centralidades locais - que facilitam a vida cotidiana da
população em sua mobilidade diária e oferecem os serviços e comércio básicos -; às
regionais (na mesma zona da metrópole) - que incluem as redes comerciais e de serviços
de maior porte -; às metropolitanas - cujo acesso é mais reduzido, e que podem incluir
uma inserção profissional necessária à sobrevivência -; e assim por diante.
Por esse caráter, o da densidade relativa da composição orgânica do espaço, como
momento necessário de elucidar a urbanização crítica, insistimos na dialética centroperiferia.27 Ao mesmo tempo tem-se a produção de novas centralidades, que conduzem
à mobilidade espacial da população originária do lugar e a empurra para a fronteira
dessa nova nucleação.
3 - Esta profunda destituição da humanidade do homem é, ao mesmo tempo, a
“naturalização” do humano. SCALZONE diz “A crítica ecológica compreendeu na raiz
uma das questões centrais de nossa época: a relação entre modernização e catástrofe.”28
25
Observem-se os CEPACs - certificados de potencial adicional de construção -, instrumentos financeiros
ligado às Operações Urbanas, tornados títulos, alienados em leilões, vendidos no mercado, podendo ser,
de modo fictício, valorizados. O que se pretendia era angariar fundos para os investimentos definidos
como públicos, mas, na verdade, se alavancam os investimentos, em parceria, com o setor privado.
26
SMITH, Neil. Geografia, diferencia y políticas de escala. IN: Terra Livre. São Paulo: AGB, ano 18, n.º
19, julho/dezembro de 2002.
27
“A noção de centro e de periferia é uma noção muito importante na condição de ser precisada e
diferenciada.” Sugere “sempre novas centralidades e novas periferias.” É possível considerar a noção de
centralidades subordinadas (RENAUDIE, Serge (e outros). Henri Lefebvre - Uma nova positividade do
urbano. Paris: Journal M, fevereiro de 1988, p. 62-66.
28
MARTINI-SCALZONE, Lucia e SCALZONE, Oreste. Écologisme et autonomie. IN: GROUPE DE
NAVARRENX. Du Contrat de Citoyenneté, 1990, p. 228.
12
Há uma exaltação da natureza e do natural, preenchendo o vazio de projetos políticos de
superação de inúmeras crises sociais. A potência ideológica do ambiental, substituindo
o “caos sócio-espacial” é extremamente paradoxal, pois, em São Paulo, chega a ser
justificativa do Rodoanel Mário Covas, um projeto setorial da área de transportes,
definindo um sistema viário perimetral, que circunda a metrópole de São Paulo, na
altura do que é designado por anel peri-urbano; dividido em 4 trechos, sendo que o
Trecho Oeste já está em funcionamento (desde 2002) e o Trecho Sul está em produção;
nesses dois trechos, já são 90 kms de estrada previstos. Faltam os trechos Norte e Leste,
fechando o circuito de por volta de 175 kms, distantes de 20 a 40 kms do centro
histórico de São Paulo; sendo que o Trecho Sul já precipita uma ligação possível com o
que se constituirá como Trecho Leste, e assim sucessivamente. Novamente, prevalece
uma noção de conjunto da área metropolitana a irrigar, economicamente.
Para justificar uma rodovia assim extensa e seu sentido, na base de uma nova
plataforma logística para os negócios metropolitanos, ela aparece induzindo o chamado
efeito barreira, “inibidor da ocupação irregular”29 e do avanço do que foi
convencionado como urbanização desordenada30 - ocupações irregulares, do ponto de
vista fundiário e urbanístico: favelas e loteamentos clandestinos, a maioria -, que denota
o que se definiu como anel peri-urbano. E exatamente o sistema rodoviário em
implantação se apresenta como um elemento propulsor da qualidade ambiental de
espaços metropolitanos; estes já definidos como áreas de conservação e proteção
ambiental (especialmente, nas zonas sul, sudoeste e norte da metrópole), com uma
normatização, datada dos anos 1970, que foi sucumbindo aos fracassos sucessivos dos
avanços da urbanização metropolitana e, repetidamente, reformulada no plano legal.
As leis de proteção ambiental indicam a magnitude da periferia urbana envolvida e por
conta disso sofrem inúmeras modificações, absorvendo e revelando, através dessas
modificações, as próprias dificuldades de sua realização. Ainda mais, elas mesmas
justificam o crescimento do mercado popular de terras, em certas áreas protegidas, que
passam, com essas leis, a serem desvalorizadas para outros usos; caso de parte
substantiva da Zona Sul de São Paulo.31
O motor econômico de enobrecimento desses espaços peri-urbanos, através de novos
condomínios, projetos econômicos e atualização da infra-estrutura urbana, combina-se
com a ideologia da preservação e conservação ambientais. Retira-se o inconveniente de
milhões de gente, aí fixados, restando a combinação entre economia e natureza. A
primeira como base estrutural; a segunda, sua superestrutura ideológica de suporte.
Mesmo que, paradoxalmente, justificando uma rodovia expressa e suas extensões
viárias.
O espaço instrumental, assim conceituado, por Henri LEFEBVRE, na metrópole de São
Paulo serve para configurar uma substituição crucial: a neutralização do social por meio
da natureza-natural.
O Rodoanel Mário Covas, como sistema viário perimetral, projetado e em execução,
desde os anos 1990, atravessa a metrópole de São Paulo32 e passa a demarcar o círculo e
29
Avaliação Ambiental Estratégica do Programa Rodoanel. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo,
2004.
30
A concepção de urbanização desordenada, que induz à idéia de planificação, contradiz àquela de
urbanização crítica.
31
A propósito dos loteamentos da Represa Guarapiranga, pesquisas recentes sugerem um mercado
informal de terras muito lucrativo, impulsionado pela própria legislação ambiental. O mesmo se repete na
Billings.
32
O Projeto Rodoanel Mário Covas refere-se a um anel rodoviário metropolitano fechado, cortando as
principais rodovias de acesso à metrópole, cuja produção é controlada pelo governo do Estado de São
Paulo e pelo governo federal. O primeiro trecho, oeste, interliga a rodovia Régis Bittencourt com a
13
circuito de realização e renovação potenciais de valorização econômica desta
metrópole.33 Ele nos fornece a imagem do perímetro urbano metropolitano que foi
desenhado e está se implementando, formando um grande anel de valorização
econômica do espaço. Ele determina um contexto e uma imagem espaciais de totalidade
sobre a produção do espaço urbano e, imediatamente, ele alavanca um processo de
expropriação social, próprio à acumulação primitiva do espaço, que forja o espaço de
valorização.
Uma noção de conjunto da “realidade urbana economizada” torna-se mais patente se
preenchermos essa imagem totalizante do Rodoanel Mário Covas com outros projetos,
como aqueles das Operações Urbanas em São Paulo.
O Programa Rodoanel Mário Covas pode estar definindo a magnitude necessária das
políticas urbanas, com vistas a mobilizar economicamente as imensas periferias
metropolitanas. Tal Programa apresenta-se como política econômica sustentável,
corrigindo a “péssima qualidade ambiental das áreas periféricas pobres”.
A urbanização, definida crítica, cujo fundamento subjetivo negado é a massa proletária
das periferias metropolitanas, sujeita aos avanços do capital imobiliário, e de outras
formas de capital, financeirizadas, e sob incentivo estatista, inclui a produção de
representação em telescopagem34, entre a crise social e a crise ambiental, a partir de
políticas de sustentabilidade, como imagética ilusória de equilíbrio.
As maneiras como a impossibilidade do urbano aparece põem desequilíbrios
constitutivos: nos conjuntos habitacionais e em outras formas de loteamentos urbanos,
os adensamentos, que comprometem a urbanização dos mesmos; o controle dos que
poderão fazer parte dos mutirões para torná-los viáveis; o receio das invasões, numa
ocupação; o embate entre as questões sociais e aquelas especificamente ambientais;
tornar o lugar mais urbano significa, nos limites desta reprodução social crítica, expulsar
a população que é excedente; e dependendo de seus termos, esta seleção é quase
naturalizada.
É possível permanecer na telescopagem dos problemas ambientais e sociais? Seria
possível administrá-los? Seria possível neutralizar a centralidade do econômico na
sociedade moderna?
É possível compreender a revisão econômica do território metropolitano urbano,
atualizando a metrópole de São Paulo, para os novos negócios urbanos. Ela deve ganhar
uma macro-dimensão para mover uma área extensa de usos residenciais populares e dar
lugar a novos investimentos. As polêmicas, entre os últimos prefeitos, a partir do final
estrada velha de Campinas, em Perus, passando pelas rodovias Anhanguera, Bandeirantes, Castelo
Branco e Raposo Tavares, com 32 kms. Ele está concluído. O segundo trecho, sul, vai ligar a rodovia
Régis Bittencourt com a rodovia Anchieta (passando pela rodovia Imigrantes), tendo por volta de 40 kms.
Completam o circuito os trechos norte e leste. O rodoanel metropolitano envolve, além de São Paulo,
mais 15 municípios. No trecho oeste, estão Barueri, Carapicuíba, Cotia, Embu e Osasco. No sul, Embu,
Itapecerica da Serra e São Bernardo do Campo. No leste, Mauá, Ribeirão Pires, São Bernardo, Ferraz de
Vasconcelos, Itaquaquecetuba, Guarulhos, Poá e Suzano. No norte, Guarulhos.
33
Há uma metamorfose da funcionalidade da presença do trabalhador potencial na do morador
temporário. A valorização e capitalização das periferias, inclusive reproduzindo formas de especulação
financeira e fundiária, constitutivas de centralidades potenciais, acabam por levar a uma acumulação
primitiva desses espaços; isto é, uma varredura dos seus usos e moradores existentes, em prol de novas
estratégias e empreendimentos. Considerando a imensidão das periferias, as estratégias de expropriação
devem ser gigantescas, a exemplo do Rodoanel Mário Covas, em São Paulo, que envolve potencialmente
a metrópole inteira.
34
O termo foi configurado por Henri Lefebvre. A télescopage está no plano da produção de uma ilusão,
de uma confusão, de um misto de realidade e representação, potencializado, por transferência e
redefinição de conteúdos, terrivelmente ativas. LEFEBVRE, Henri. Production de l’Espace. Paris:
Anthropos, 2000, 4.ª edição.
14
dos anos 1980, demonstram como essas novas estratégias estatistas, configurando o
território economizado da metrópole, ainda estão em curso e definição.
Alguns elementos, do que foi tratado, visam ser uma representação analítica do urbano
economizado como totalização, e dos restos que sobram à massa proletária. Não são
fatos, são processos; estão em curso e se realizarão mais ou menos, no tempo e no
espaço, segundo a eficácia das formas de atualização da metrópole de São Paulo, na
tentativa de inserção na circulação global dos negócios que movem o mundo. E depende
do lugar no mundo economizado, dessa porção que é a metrópole de São Paulo. É uma
escala produzida e em produção, que depende das outras, internacionalizadas, para se
realizar de fato. Diríamos, está em preparação o terreno para essa possibilidade, nos
termos da produção social do espaço, e a extensão da crise social, que precipita.
15
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