REPRESENTAÇÕES E IMAGINÁRIOS DAS PAISAGENS GEOGRÁFICAS NO CINEMA Midiane Scarabeli Alves Coelho da Silva E-mail: [email protected] Graduanda em Geografia pela PUC Minas, bolsista FAPEMIG e membra do Grupo de pesquisas do Laboratório de Estudos Urbanos e Regionais da PUC Minas. RESUMO No âmbito do conhecimento geográfico, um dos temas mais peculiares se refere às relações entre paisagem, espaço e imagem. Estes três conceitos, na trajetória das escolas geográficas, possuem suas próprias construções, tensões e questionamentos, que propiciam o desenvolvimento de debates acerca da sua natureza e significado. Neste sentido, as paisagens urbanas e as formas como são representadas - através de imagens cinematográficas que perpetuam imaginários sobre um local específico correspondem ao eixo central deste trabalho, bem como as representações dessas, questionando se as paisagens possuem uma aproximação com a realidade ou se são estereotipadas. Pretende-se aqui, também, apresentar outras questões fundamentais, no sentido de servirem como embasamento para a ideia condutora desta pesquisa. Palavras-Chave: Geografia; paisagem; espaço; cinema. ABSTRACT In the context of geographic knowledge, one of the most peculiar themes refers to relationships between landscape, space and image. These three concepts, on the trajectory of the geographical schools close their own constructions, tensions and questions, which encourage the development of debates about its nature and meaning. In this sense, the cityscapes, as well as the ways in which they are represented through cinematic images that perpetuate imaginary on a specific location - correspond to the central axis of this work, as well as the representations of these, questioning whether the landscapes have an approximation to reality or whether they are stereotyped. The following is also present other fundamental issues, to serve as basis for the idea of this research guide. ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1614 Keywords: Geography; landscape; space; cinema. INTRODUÇÃO O trabalho segue uma reflexão sobre as relações entre paisagem, espaço e cinema. Sem ainda problematizar as construções geográficas destes conceitos, este trabalho inicia com um convite à reflexão: pensemos, por exemplo, em Nova Iorque, uma das maiores e mais populosas cidades do planeta, e certamente uma das mais conhecidas. Sabe-se que a maioria esmagadora da população brasileira não visitou a cidade de Nova Iorque. Não a conhecendo, portanto, no sentido físico, de caminhar pela cidade, sentir seu clima, sua língua, seu ritmo, enfim, de experimentar a cidade. No entanto, pode-se admitir que diante do desafio de descrever a cidade, um número expressivo de pessoas seria capaz de fazê-lo. Não restam dúvidas de que um dos principais elementos responsáveis por este aparente paradoxo seja o cinema, sobretudo as produções hollywoodianas que demonstram certa predileção pelas paisagens de Nova Iorque. Devido à dimensão de seu alcance e circulação, o cinema hollywoodiano ambienta as suas histórias na cidade, espalhando as imagens da cidade pelos “quatro cantos do mundo”. No entanto, nesta linha de pensamento, pode-se questionar o seguinte: aqueles que apesar de não terem visitado a cidade de Nova York podem de fato afirmar que conhecem a cidade tal como ela é? Como é possível conhecer de fato um lugar? Destaque-se que as imagens representativas de paisagens no cinema podem ser fruto de elaborações construídas artificialmente em estúdios. Além disso, deve-se considerar que a construção dessas imagens é fruto da interpretação dos seus construtores, sendo, portanto, influenciadas por suas vivências, experiências, leituras de mundo, preconceitos, formas de olhar e interesses. Por outro lado, a descrição de Nova Iorque por aqueles que não a experimentaram diretamente sofre, ainda, outra forma de contaminação: a maneira como as imagens fílmicas são traduzidas e interpretadas por esses expectadores, que por sua vez, também são fruto das vivências, repertórios, preconceitos, valores e interesses. Diante disso, pode-se considerar que todo o olhar direcionado a uma paisagem, ou que se propõe a construir e representar uma, leva em conta formas de visões diferentes, e de uma forma ou de outra, acaba construindo estereótipos e ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1615 estigmatizando lugares. A construção das imagens e percepções sobre as paisagens é campo fértil para a reflexão geográfica. Com base nessas premissas, a escolha da temática central deste trabalho parte de inquietações sobre a construção de paisagens e do imaginário acerca de lugares produzidos pelo cinema. Ao longo dos últimos anos, o cinema nacional tem ampliado tanto do ponto de vista quantitativo, quanto qualitativo as suas produções. Tendo como exemplo o que Hollywood tem feito em relação a Nova York, o cinema nacional também tem idealizado paisagens e estigmatizado comunidades. Dentre os vários temas retratados nos filmes brasileiros, a violência e a criminalidade figuram entre as mais recorrentes, fato que merece a nossa atenção. Vale, portanto, explorar do ponto de vista geográfico a maneira como o cinema nacional tem construído e popularizado a imagem de cidades e comunidades nas produções onde os temas sobre violência e criminalidade são centrais. Sendo assim, este artigo se propõe a trazer possibilidades e discussões teóricas para o I Simpósio Mineiro de Geografia acerca das relações entre geografia, paisagem urbana, estigmatizações e cinema. É válido ressaltar que este assunto vem sendo tratado na monografia que venho desenvolvendo de maneira mais aprofundada, onde procuro realizar uma análise mais minunciosa do filme “Uma onda no ar”, dirigido por Helvécio Ratton, lançado no ano de 2002. O trabalho visa contrastar as imagens produzidas pelo filme no Aglomerado da Serra, um bairro da cidade de Belo Horizonte, com a realidade do local. Busca-se estudar como alguns enquadramentos de cenas podem super ou subvalorizar certos aspectos da paisagem, ignorando outros tantos. Busca-se, ainda, conhecer as percepções dos próprios moradores do Aglomerado sobre a maneira como a paisagem local é retratada no filme. Em suma, temos como objetivo saber de que forma as imagens sobre a paisagem local, produzidas artificialmente pelo cinema, afetaram a percepção e a concepção da realidade sobre a paisagem do Aglomerado da Serra. Esta pesquisa vem sendo desenvolvida sob a orientação do professor Alexandre Diniz. Talvez seja uma das percussoras no que se refere às análises que levam em conta o cinema e a geografia como elementos de pesquisa no Departamento de Geografia da PUC Minas, e isto é uma situação a ser considerada, já que por meio desta pesquisa pode acontecer uma aproximação, sobretudo em termos bibliográficos que possam gerar interlocuções, entre os estudantes, professores e pesquisadores da PUC Minas com outros profissionais de geografia de ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1616 outras instituições, e assim abrir novas portas e apontar novos caminhos e eixos temáticos. CINEMA E PAISAGEM NA GEOGRAFIA O cinema tem um enorme alcance popular. Os filmes são exibidos para milhares de pessoas nos cinemas, em casa por meio de cópias “piratas” e originais, e, também simultaneamente a milhões de pessoas por meio das programações televisivas. Sendo assim, como todo meio de comunicação, o cinema pode ser abordado pelos seus aspectos técnicos, estéticos, geográficos e culturais. Assim sendo, o interesse em pensar a relação do cinema com a geografia e a problemática das estereotipizações sobre às paisagens urbanas, pode levar a uma clara contribuição para o entendimento do cinema como fonte de pesquisas geográficas e como produtor de discursos que gera efeitos sobre o social. Neste sentido, pode-se perceber o quão evidente é o fato de que o cinema corresponde a um campo frutífero para se buscar uma compreensão mais aprofundada de como a sociedade se auto-representa por meio de imagens cinematográficas. O interesse pela compreensão do fenômeno da representação paisagística ligada à dimensão espacial dos filmes têm se expandido, e de acordo com Freire-Medeiros e Name (2003): “na última década, ganharam centralidade acadêmica os estudos que associam “cultura” e “meio urbano” e, mais especificamente, “cinema” e “cidade.” Portanto, torna-se evidente que, Debruçar-se sobre a relação entre esses dois elementos significa não apenas pesquisar o papel, no mais das vezes não creditado, que as cidades desempenham nos filmes, mas, sobretudo, examinar as múltiplas e significativas interações entre a mais importante forma cultural e a mais importante forma de organização social do século XX. (NAME, 2003, p. 1). Em relação à ciência geográfica ligada a outros saberes do conhecimento, especificamente o cinema e a geografia, É, sobretudo, uma arte geográfica, uma vez que constrói representações da realidade concreta, recria processos sócio espaciais, e por fim, acaba influenciando em maior ou menor medida, a produção-reprodução do espaço geográfico. (MOREIRA, 2011, p. 42). ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1617 Sendo assim, as relações entre geografia e cinema tomam proporções de importância para a sociedade e a comunidade científica. Levando a discussão da ciência geográfica ou “geografia oficial”, de acordo com Neves e Ferraz (2006, p. 3-4), a geografia enquanto ciência é fruto, sobretudo do século XIX, liderada pelos alemães Kant, Humboldt, Ritter e Ratzel. É válido ressaltar que o conhecimento geográfico vem desde os primórdios da humanidade, e ao se consolidar como saber científico recebeu “um tratado cartográfico-descritivo visando auxiliar a administração do Estado”. E deste modo, a paisagem geográfica, “era apenas estudada por meios de recursos verbais, raramente havia interpretações a partir de seu fundamento imagético.” Segundo os autores, com o próprio evoluir da sociedade capitalista, Os elementos imagéticos se tornaram cada vez mais presentes nos processos de comunicação, acumulação e interpretação das condições concretas e cotidianas de existência, tanto dos indivíduos quanto do sistema como um todo, o que gerou pressões sobre os saberes científicos no sentido de buscar melhor compreender o papel e a lógica de elaboração e divulgação das imagens. Desta forma, destacou-se para a Geografia, a necessidade de melhor compreender o papel da imagem na configuração e leitura das relações sócio espaciais estabelecidas. (NEVEZ; FERRAZ, 2007, p. 76) A paisagem como categoria de análise da geografia nos remete a construção de uma linguagem fundamentada em imagens, sendo que, (...) essa imagem torna-se paisagem a partir do momento em que as imagens não se reduzem a si mesmas, não são meros fragmentos e elementos figurativos e superficiais das formas das coisas observadas, experimentadas ou imaginadas, mas quando estas passam a ser entendidas como produto humano, sendo fruto das relações, desejos e necessidades humanas que se espacializam, ou possuem alguma expressão espacial, espaço não necessariamente geometrizável, mas possuidor de certa lógica e processos explicativos e contextualizadores dessas imagens a partir do e com o ser humano em suas relações. (FERRAZ apud NEVES, 2006, p. 5). Sendo assim, as imagens nos possibilitam uma leitura de mundo baseada nas observações e interpretações do espaço geográfico. Partindo deste ponto de vista, a paisagem “torna-se algo extremamente complexo e repleto de significados, de experiências humanas vivenciadas inseridas dentro de um contexto espacial, que interagem (entre si o local e o global) ”. (NEVES; FERRAZ, 2006, p. 9). Vale ressaltar que essa análise levantada é de enorme importância para a pesquisa no campo da geografia, entretanto, ainda não se tem um volume grande de estudos relacionados a essa discussão. ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1618 Benito e Ferraz defendem a ideia de que em uma análise formulada sob o ponto de vista geográfico, as imagens cinematográficas (recortes/fragmentos) possibilitam outras interpretações que permitem uma leitura da paisagem que vai além da forma que são vistas e percebidas de imediato. (NEVES; FERRAZ, 2006, p. 9). Neste aspecto, a paisagem no cinema é trabalhada de acordo com o autor a partir de um conjunto de imagens temporais para se criar um sentido organizacional para as ações humanas sobre um espaço, o espaço geográfico, ou seja, interpretar, qualificar, dar sentido/significado as imagens, é o que permite compreender o conteúdo paisagístico da organização sócio espacial da sociedade atual. (NEVES; FERRAZ, 2006, p. 9-10). O espaço geográfico, em suas múltiplas escalas, deve ser caracterizado como um complexo de relações/inter-relações e elementos em constantes redefinições. A possibilidade existente de se analisar imagens cinematográficas por uma perspectiva geográfica, aponta para uma leitura pautada na interpretação e presentificação imagética, de forma que o ser humano não “reduza suas imagens mentais à mera memória de um passado conservado em si, mas que compreenda que essas ações pretéritas influenciam no arranjo espacial presente e na construção do próprio futuro de cada indivíduo.” (NEVES; FERRAZ, 2006, p. 12-13). O cinema, desde seu início, propiciou a populações de todas as partes do globo a observação de paisagens, sejam elas exibidas com a intenção naturalista ou mesmo artificialmente construídas. Ciente de que a paisagem, para a ciência geográfica, se constitui como um conceito de amplas abordagens e reflexões na trajetória do pensamento geográfico, a inserção dos estudos a respeito da paisagem relacionados a seu constructo por meio cinematográfico se faz por demais pertinentes. Sabe-se que o cinema geralmente se apresenta para grandes públicos e é de longo alcance. Neste sentido, o cinema permite que a paisagem, com toda a movimentação humana e natural que ela apresenta, mesmo de forma construída e imaginada, chegue ao espectador. Ou seja, as imagens paisagísticas do cinema permitem que as pessoas não necessitem ir até o local para observar a paisagem, e possibilitam que elas possam observar um recorte desta paisagem, em sintonia com um enredo fílmico, nas telas do cinema ou mesmo na poltrona de casa. Devido a este enorme alcance dos filmes, acredita-se ser de fundamental importância para a geografia as considerações de teóricos que refletiram sobre esta situação, uma vez que após o advento do filme, as paisagens em movimento se tornaram possíveis de serem observadas, mesmo que recortadas de formas diferentes, possibilitam novas formas de olhares e construções sobre elas. ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1619 Também no que se refere à questão das relações das construções imagéticas, a interface das relações entre cinema e geografia se dá, na concepção de Alexandre Aldo Neves, a partir dos elementos que estão impressos e que compõem a paisagem geográfica, uma vez que “o cinema os recria, à sua maneira, constituindo novas formas de perceber e visualizar os espaços concretamente vivenciados e os explora com o intuito de atribuir sentido à narrativa fílmica”. (NEVES, 2010, p. 147-148). Os adensamentos paisagísticos na concepção do autor revelam os ícones dos lugares e regiões que estão presentes na memória das pessoas e que são fundamentais para construção da ideia de paisagem. Através das imagens que a obra fílmica apresenta, ao narrar os acontecimentos do mundo, o cinema permite aos observadores resgatar as memórias espacialmente vivenciadas em diferentes momentos, e, sobretudo, as paisagens ressignificam “perante as novas experiências, produzindo aí novas memórias por meio de “somas, comparação, classificação” entre o já vivido com o atualmente experimentado e percebido”. (NEVES, 2010, p. 155). Outro ponto que se pode dialogar com este autor diz respeito ao fato de que, quando ele estabelece uma ponte entre a linguagem geográfica, ligada ao conceito de espaço, visando confirmar que todo e qualquer acontecimento da vida “implica um espaço”, postula-se que o mesmo pode ser reiterado para se analisar a questão da paisagem, não afirmando que todo e qualquer acontecimento da vida dela necessita, mas reiterando que as paisagens são construções e elementos chaves dos filmes para quando se quer dar uma ideia de lugar geográfico, no sentido mais geral, associado a uma cidade ou a um ambiente natural, as paisagens indicam, de forma imaginária ou representacional, o local onde o espectador entenderá que o filme se passa, local no sentido amplo, criando uma sensação de lugar onde o filme se passa. Por exemplo, se um filme tem como objetivo destacar que se passa em uma vila de uma época passada, ele deve construir esta paisagem em estúdio ou mesmo se apropriar dela em outro lugar, para dar sentido de que o filme se passa em um determinado contexto. Sem o elemento da paisagem, o filme perde muito sobre este imaginário. Portanto, de acordo com a análise de Alexandre Aldo Neves, Todo espectador sempre relaciona o que imageticamente está sendo narrado no filme com “um espaço narrativo” da vida real, fazendo “com que todos os acontecimentos e fenômenos experimentados por qualquer ser humano só foram possíveis de ocorrerem em algum lugar e em um determinado momento. (NEVES, 2010, p. 155). Desta forma, acredita-se que este argumento pode ser utilizado para se referir ao que está sendo narrado no filme como uma “paisagem narrativa” dando ideia do ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1620 lugar onde se passa, formando imaginários sobre paisagens que muitas vezes perpassam pelo senso comum. Karina Eugênia Fioravante e Washington Drummond da Silva, por sua vez, também destacam que dentre os vários conceitos que são considerados importantes para a Geografia, a paisagem é o que “possui o maior potencial visual e seu caráter pictórico vem sendo fortemente explorado por geógrafos”. (FIORAVANTE; SILVA, 2013, p. 7). No entanto, o conceito pode ser utilizado a partir de “muitas perspectivas e que, cada uma delas, acaba por desenhar um caminho específico de reflexão”. (FIORAVANTE; SILVA, 2013, p. 8). A partir desta premissa às relações entre cinema, geografia e paisagem, visam demonstrar plausibilidade e potencialidade nesta perspectiva de abordagem. Segundo os autores, Os estudos mais comuns buscam interpretar as paisagens urbanas em filmes, como visto em Costa, 2005; Harper, 2010 e Clarke, 1997, entre outros. A paisagem cinemática ajuda a compreender a construção da materialidade e também da subjetividade nos filmes, pois como lembra Escher (2006), a paisagem é vista nas abordagens como parte da psique dos personagens. Outros optam por discutir a noção de paisagem como construída e construtora a partir de um viés do realismo cinematográfico. Existem ainda as paisagens imaginárias ou futuristas dos filmes de ficção científica, as paisagens textuais, etc.. Resumindo, os posicionamentos são múltiplos e, dependendo do foco de interesse ou pergunta de partida do pesquisador, as abordagens são infinitas. (FIORAVANTE; SILVA, 2013, p. 8). Portanto, com base nos argumentos destacados a noção de paisagem corresponde a um tema abrangente e propício a investigações geográficas da forma como elas são representadas no cinema. Analisar as paisagens do cinema corresponde a trabalhar com imaginários e construções artificiais de uma dada realidade imagética que pode perpassar para o imaginário social, fazendo crer em muitos casos que as imagens da vida real são como as do cinema, produzindo assim situações que fogem a realidade em substituição da paisagem representada e artificialmente construída. A REPRESENTAÇÃO DAS PAISAGENS URBANAS PERIFÉRICAS NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO É sabido que desde os seus primórdios as experiências nas novas metrópoles do século XX foram foco de muitos ciclos e gêneros cinematográficos, marcando ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1621 presença e sendo importantes tanto para o processo de desenvolvimento desses ciclos e gêneros quanto “para a “construção” de si mesmos, ao longo do tempo, como “vistas” específicas, que, em determinados momentos, mudaram as bases do imaginário coletivo mapeando e re-mapeando visões e compreensões das mais diversas paisagens urbanas”. (COSTA, 2006, p. 36). Por ter o cinema uma íntima relação com o meio urbano, desde suas origens, a investigação conjunta do cinema e do meio urbano possibilita, “um conhecimento mais acurado das relações entre espaço, tempo e cultura, arquitetura e representações do “eu” e do “outro”.” (COSTA, 2006, p. 36-37). Pelos filmes, pode-se perceber que, de certa forma, existem padrões espaciais que representam o que é o meio urbano, num sentido “universal”, pois ao escolherem determinada cidade para palco de seus enredos, os filmes recriam espaços e tempos que singularizam esta cidade diante e (em relação) das outras. (COSTA, 2006, p. 36-37). A partir de então, a autora sugere algumas questões: (1) Por que diferentes temas culturais ocupam hoje o centro das atenções em determinados contextos cinematográficos?; (2) de que forma determinados filmes têm participado da disseminação de novos modos de ser, estar, agir, comportar-se, ou de repensar o passado e pensar o futuro dos grandes centros urbanos?; (3) como e através de que formas os filmes têm tratado e contextualizado temas como lutas de classes sociais, etnias, conflitos raciais, gênero, etc., comuns ao espaço urbano?; e finalmente, (4) como, no campo da análise, se está avançando no sentido de propor discussões eficazes para o melhor entendimento dos processos contemporâneos de construção representacional em relação à construção do nosso imaginário cultural urbano? (COSTA, 2006, p. 36). No que se refere às representações visuais de cidades, a autora constata que estes são fenômenos “eternos”, presentes desde que se começou a notar certos tipos de assentamentos humanos em contraponto a outros, e a diferentes formas de ocupação do espaço. (COSTA, 2006, p. 36). A autora traça um levantamento histórico, alegando que, Na antiguidade, as pinturas e moedas, serviam como aparatos materiais que permitiam singularizar as cidades; na Idade Média, imagens da cidade a associavam ao paradigma da cidade celeste (Jerusalém); a partir do Renascimento, a cidade passa a ser objeto subjugado ao humanismo e condizente com a busca de uma representação (pictórica) mais realista ditada pelas normas da perspectiva. (Cf. Kagan, 1981 apud COSTA, 2006, p. 36). Sendo assim, este diálogo é importante para a pesquisa proposta, pois indaga com a questão da geografia da cidade (a representada, construída no filme, e a “real”, ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1622 concreta) e como essa é, por vezes, também re-construída em estúdio. Neste sentido é importante observar que, outros geógrafos pesquisadores das relações entre geografia e cinema, "têm procurado analisar a maneira como o cinema ajuda a construir tanto a nossa experiência quanto o nosso imaginário do espaço da cidade.” (COSTA, 2006, p. 35). Há existência real e necessária de se aprender a respeito das diversas maneiras através das quais “o espaço da cidade, sua identidade, e a identidade dos que a habitam - e suas relações - são registradas, descritas, imaginadas e representadas no espaço fílmico, dentro de um discurso histórico, ou não.” (COSTA, 2006, p. 35). Neste sentido, a ideia de paisagem pode então ser considerada um dos conceitos-chave da geografia, e sua relação com o cinema pode propiciar uma amplitude ainda maior. Uma vez que geógrafos culturais ampliaram o conceito de paisagem, considerando-o sob novas perspectivas, o filme, se configurou como um importante objeto de análise que leva em conta a perspectiva hermenêutica, válido para a análise do discurso dos conceitos geográficos assinalados, como também possibilitou, na ótica da autora, “o surgimento de novas tipologias geográficas – que advêm de uma geografia fílmica –, já que se conclui que o cinema é capaz de construir e produzir novos espaços através da produção de novas visibilidades desses espaços”. (COSTA, 2009, p. 111). A autora também discorre sobre alguns filmes brasileiros contemporâneos que a serviram de contraponto na reflexão sobre a construção de uma geografia em que os “mais diferentes formatos de diferenças, fragmentações, pluralidade e conflitos entram em ação no espaço fílmico para representar, em um determinado formato estético, a sociedade urbana contemporânea.” (COSTA, 2009, p. 115). Nesta linhagem, a autora considera que: O continuum de espaço-tempo de um filme é singular e coerente dentro de sua construção narrativa codificada, e desta forma não se pode negar que a experiência desse continuum por parte do espectador traduz uma experiência geográfica que, por mais que se distancie de visões, ideias e atitudes dadas em realidade e que acontecem no espaço concreto, permite — e entrega-se a elas — a própria experiência da paisagem e a subjetividade do espectador que permeia e confunde as duas formas de experiência. (COSTA, 2009, p. 113). Ou seja, o espaço de representação pode potencializar e estruturar geograficamente a paisagem e a experiência dos personagens e, por conseguinte, a vivência do espectador. A experiência que o cinema proporciona ao expectador tanto ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1623 influencia quanto reproduz sensações e sentimentos relacionados a uma geografia da experiência cotidiana do espaço e da paisagem urbana. A REPRESENTAÇÃO DAS PAISAGENS URBANAS PERIFÉRICAS NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO COMO ESTEREOTIPIZAÇÃO A paisagem é explorada no cinema a partir de “um conjunto de imagens temporais para se criar uma história, um sentido organizacional para as ações humanas sobre um espaço, o espaço geográfico”. (NEVES; FERRAZ, 2007, p. 10). Essa noção espacial geográfica nos filmes se direciona para um sentido norteador/ locacional, onde se desenvolve uma narrativa que é uma representação da veracidade dos espaços, no entanto, a imagem nem sempre é pura e simplesmente real, como afirmam os autores, Na verdade o cinema não representa a realidade, mas a “representifica” por meio de uma interação entre o real (contato com as imagens difundidas), com a fantasia (suposta representação do real – o que está sendo mostrado-), mais as experiências individuais de cada espectador da obra, o desfecho dessa soma resultaria na construção imagética da realidade (uma interface entre o real, o representado e o vivido). (NEVES; FERRAZ, 2007, p. 77). Partindo do ponto de vista que o mercado cinematográfico está inserido mundialmente, Ferraz e Neves (2006, p. 10-12), apontam uma problemática relacionada a discussão acima, “quando a influência cultural estrangeira se interage com as características internas gerando hábitos, gostos e rítmos.” Ou seja, os países que dominam o mercado mundial podem criar estereótipos de determinados lugares representados no cinema. No entanto, há uma diversidade de escolas cinematográficas em que as transmissões das imagens são diferentes e consequentemente as perspectivas são na maioria das vezes heterogêneas, como por exemplo, pode-se ter um parâmetro a partir do cinema Hollywoodiano, o Cinema Novo no Brasil, a Nouvelle Vague da França, Neo-Realismo Italiano, entre outras construções do cinema. Assim sendo, entende-se que “o mundo nunca é a sua representação exata, mas sim fruto das interações entre o real, o representado e o arcabouço ideológico de cada ser.” (NEVES; FERRAZ, 2006, p. 13). Neste sentido, Freire-Medeiros e Name (2002), discutem sobre estereotipizações a partir das relações entre cidade, cinema e representações do “eu” e da “alteridade” da cidade do Rio de Janeiro. Para tanto, dois filmes estrangeiros e outros dois nacionais foram selecionados para se fazer a análise e o estudo de caso: ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1624 Kickboxer 3 e Boca provêm uma excelente oportunidade para examinarmos os mecanismos que produzem uma imagem mítica do Rio como lugar híbrido onde é possível exercer a sexualidade sem restrições, ainda que em meio a uma atmosfera de exacerbada violência urbana. (...) A grande arte e Bossa Nova fazem parte da chamada retomada do cinema brasileiro, iniciada no início dos anos 1990, geralmente caracterizada, de um lado, por apuro estético e narrativo, e, de outro, por certo apelo comercial. (FREIREMEDEIROS; NAME, 2003, p. 202). Por meio desses filmes, pode-se questionar a relação referente à imagem que a mídia, tanto nacional quanto estrangeira, constrói a partir da ambientalização de filmes, em cidades como a do Rio de Janeiro: “mas até que ponto as representações da cidade produzidas pelo olhar estrangeiro e as representações nativas visando ao público nacional de fato diferem?”. (FREIRE-MEDEIROS; NAME, 2003, p. 203). Sendo assim, chega-se a conclusão de que a cidade, onde se passa a trama dos filmes, é reconhecida por símbolos que remetem a identidade do cenário urbano carioca, como paisagem da imaginação, ou seja, acaba-se construindo paisagens do Rio de Janeiro de acordo com a narrativa fílmica estrangeira e nacional, cada qual com seu enfoque. Segundo os autores, No caso dos quatro filmes apresentados, tais elementos ganham destaque ao serem associados a cenários de centralidade simbólica: o centro do Rio e a favela, responsáveis pelo conteúdo distópico da cidade, e a Zona Sul das praias vivenciadas com intenso prazer. O Corcovado, o Pão de Açúcar, a baía de Guanabara, os Arcos da Carioca, o mar e a montanha, ícones da paisagem carioca, de simbolismo cristalizado e difundidos ao longo dos tempos, mostramse preponderantes na construção e localização da cidade, mesmo que utilizados de maneira não-convencional ou francamente negativa. (FREIRE-MEDEIROS; NAME, 2003, p. 216). Portanto, as representações da paisagem podem de fato levar a uma imagem distorcida da realidade. Ou seja, quando as imagens transmitidas ao espectador são identificadas como o Rio do carnaval ou da violência, pode-se alegar que “essas narrativas fílmicas apresentam uma série de imagens complementares de uma cidade apreendida com um olhar concomitantemente ingênuo e paternalista, temeroso ou seduzido”. (FREIRE-MEDEIROS; NAME, 2003, p. 215). A partir de então, a narrativa fílmica colocada no pitoresco e no melodramático gera consequências na dimensão histórica, que é inevitavelmente deslocada para uma realidade alterada. ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1625 CONSIDERAÇÕES FINAIS É sabido que nas últimas décadas o Brasil se notabiliza pela expansão nas taxas de criminalidade e violência, várias delas tendo atingido patamares insustentáveis, gerando uma série de impactos sociais, econômicos, culturais e demográficos. Este aumento é resultado de intensos processos de migração, periferização e ausência de políticas públicas sociais, tendo também nas crescentes tensões entre ricos e pobres das grandes metrópoles brasileiras a sua gênese. Dado o intrínseco apelo que a temática traz aos meios de comunicação, jornais, revistas, emissões televisivas, o cinema tem de certa forma, reproduzido o tratamento sensacionalista de eventos criminosos e violentos, no afã de ampliar as suas audiências ou mesmo promover reflexões sobre o assunto. No caso específico do cinema nacional, nota-se, sobretudo, a partir da década de 1990, a proliferação de filmes e documentários que exploram a temática da violência associada a paisagens urbanas, construindo imagens possivelmente estereotipadas de cidades e recortes urbanos caracterizados como lócus de marginalidade, criminalidade e violência, estigmatizando comunidades. Não que a violência só exista nestes locais, mas de certa forma os filmes parecem evidenciar e reforçar que são produtos destes ambientes, descartando outros locais e outras formas de violência, sem considerar a abrangência deste conceito e reduzindo-o a violência principalmente associada a crimes com uso de armas de fogo. Neste sentido, uma avaliação prévia da abordagem cinematográfica recente sobre a violência deu conta de que as favelas e periferias das grandes cidades, bem como o interior do Nordeste brasileiro, são regularmente associadas a manifestações criminais, o que contribui para generalizar a percepção negativa dessas áreas. Alguns personagens isolados são descritos muitas vezes como vítimas sociais, de maneira inclusive melodramática. No entanto, a paisagem apresentada, de forma mais geral, exibe os locais onde ocorrem as cenas, como ambientes marcados por uma violência clichê nos filmes. Os filmes onde tais produções apresentaram ao grande público o tema da violência quase sempre associado à tensão ocorrida entre a população residente em morros e a polícia, podem ser considerados representações consistentes do drama no crime e violência urbana no contexto ou se são exageros, maniqueísmos, frutos do imaginário típico cinematográfico e da sua necessidade de criar enredos e narrativas sensacionalistas com objetivo de atrair grandes públicos e ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1626 bilheterias. Deste modo, as representações dos filmes por meio de paisagens urbanas destacam frequentemente as relações entre elite/pobreza, centro/periferia, morro/asfalto. Vale ressaltar que os trabalhos citados dos pesquisadores que trabalham a respeito das estigmatizações trouxeram grandes e significativas contribuições teóricas e metodológicas para os estudos. No entanto, torna-se importante a divulgação da contribuição deste tema, já que existem poucos estudos a ele relacionados. Ressalta-se que o cinema tem sido cada vez mais utilizado no ensino e como fonte de pesquisa para geografia e outras ciências. ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1627 REFERÊNCIAS COSTA, M. H. B. V. A Cidade como Cinema Existencial (ISSN:0103-1651). RUA. Revista de Arquitetura e Urbanismo, v. 1, p. 34-43, 2006. COSTA, M. H. B. V. Espaços de Subjetividade e Transgressão nas Paisagens Fílmicas (ISSN:0103-7307). Pro-Posições (UNICAMP. Impresso), v. 20, p. 109-119, 2009. FERRAZ, C. B.; NEVES, A. A. Cinema e Geografia: A Construção da Paisagem. In: 1 Colóquio Nacional do NEER (Núcleo de Estudos em Espaço e Representações), 2006, Curitiba. 1 Colóquio Nacional do NEER, 2006, p. 3-9. FIORAVANTE, K. E. ; SILVA, W. D. Aproximações entre a Geografia e o Cinema: em busca de um novo subcampo. In: 14 Encuentro de Geógrafos de America Latina, 2013, Lima. 14 Encuentro de Geógrafos de America Latina. Lima: EGAL, 2013. v. 1. p. 1-20. FREIRE – MEDEIROS, B.; NAME, L. Como ser estrangeiro no Rio: paisagens cariocas no cinema brasileiro e norte-americano contemporâneo. Estudos históricos, n. 31, 2003. p. 201. MOREIRA, T. A. A Dimensão Espacial nos Filmes. Revista de Geografia (Recife), v. 28, p. 42/2-43, 2011. NAME, L. . Apontamentos sobre a relação entre o cinema e a cidade. Arquitextos (São Paulo), v. 037, n.2, p. 1-4, 2003. NEVES, Alexandre Aldo ; FERRAZ, Cláudio Benito Oliveira . Cinema e Geografia: em busca de aproximações. Espaço Plural (Unioeste), v. 16, p. 75-78, 2007. NEVES, A. A. Geografias do Cinema: Do espaço geográfico ao espaço fílmico. Revista Entre-Lugar, Dourados, MS, ano 1, n. 1, 1º semestre de 2010, p. 135-165. ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1628