II Encontro Regional da Associação Brasileira de - labetno

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II Encontro Regional da Associação Brasileira de Etnomusicologia
II Colóquio Amazônico de Etnomusicologia
Etnomusicologia na contemporaneidade:
Diálogos disciplinares e interdisciplinares
Belém, 22 a 24 de junho de 2016
REALIZAÇÃO
APOIO
2
ANAIS
ADRIANA COUCEIRO, LILIAM BARROS COHEN, PAULO MURILO
GUERREIRO DO AMARAL, SONIA CHADA (Orgs.)
ISBN 978-85-67528-01-4
Disponível em: <http://www.labetno.ufpa.br>
http://iienabetnorte.wix.com/iienabetnorte
3
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
Reitor
Carlos Edilson de Almeida Maneschy
Vice-Reitor
Horácio Schneider
Pró-reitora de Ensino de Graduação
Maria Lúcia Harada
Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
Emmanuel Zagury Tourinho
Pró-reitor de Extensão
Fernando Arthur de Freitas Neves
Pró-reitor de Administração
Edson Ortiz de Matos
Pró-reitora de Planejamento
Raquel Trindade Borges
Pró-reitor de Relações Internacionais
Flávio Augusto Sidrim Nassar
Pró-Reitora de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal
Edilziete Eduardo Pinheiro de Aragão
INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA ARTE
Diretora Geral
Adriana Azulay
Diretor Adjunto
Joel Cardoso
BIBLIOTECA CENTRAL
Coordenadoria de Desenvolvimento de Coleções
Nelma Maria da Silva Maia de Lima
Coordenadoria de Processamento de Material Informacional
Ana Maria Pereira Gomes da Cruz
Coordenadoria de Serviços aos Usuários
Carmecy Ferreira de Muniz
Coordenadoria de Gestão de Produtos Informacionais
Albirene de Sousa Aires
Coordenadoria de Planejamento e Marketing (Sistema de Bibliotecas - SIBI/UFPA)
Hilma Celeste Alves Melo
LABETNO
Coordenadoras
Líliam Cristina Barros Cohen
Sonia Maria Moraes Chada
4
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ
Reitor
Juarez Antonio Simões Quaresma
Vice-Reitor
Rubens Cardoso da Silva
Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação
Hebe Morganne Campos Ribeiro
Pró-Reitora de Graduação Ana
da Conceição Oliveira
Pró-Reitor de Gestão e Planejamento
Carlos Capela
Pró-Reitora de Extensão
Mariane Franco
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
Diretor
Anderson Madson Oliveira Maia
Vice-Diretor
Jairo de Jesus Nascimento da Silva
EDITORA DA UEPA
Coordenação e Chefia de Edição:
Paulo Murilo Guerreiro do Amaral
GEMAM
Coordenador
Paulo Murilo Guerreiro do Amaral
5
COMISSÃO ORGANIZADORA
Adriana Couceiro
Líliam Barros Cohen
Paulo Murilo Guerreiro do Amaral
Sonia Chada
COMISSÃO CIENTÍFICA
Jorgete Lago
José Ruy Henderson
Liliam Barros
Lívia Negrão
Maria José Moraes
Paulo Murilo Guerreiro do Amaral
Rosa Maria Mota da Silva
Sônia Blanco
Sonia Chada
ASSISTENTES DE PRODUÇÃO
COORDENAÇÃO
Jucélia Estumano Henderson
Tainá Maria Magalhães Façanha
Alice Alves
Anderson Clayton Gonçalves Sandim
André W.Louzada D'Albuquerque
Bárbara Lobato Batista
Dayse Maria Pamplona Puget
Ednésio Teixeira Pimentel Canto
Edson Santos da Silva
Evandro Williams da Cruz Silva
Laura Vicunha Paraense Guimarães
Natália Lobato da Silva
Paulo Roberto da Costa Barra
Ricardo Smith
Rodrigo Pinto de Macedo
Thomas Rafael Alves Teixeira
ARTE
Josi Mendes
EDIÇÃO E REVISÃO
Tainá Maria Magalhães Façanha
DIAGRAMAÇÃO
Tainá Maria Magalhães Façanha
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Biblioteca Central – UFPA
Encontro Regional da Associação Brasileira de Etnomusicologia (2: 2016 jun.
22-24: Belém, PA)
Anais [do] II Encontro Regional da Associação Brasileira de Etnomusicologia [e] II
Colóquio Amazônico de Etnomusicologia / Encontro Regional da Associação
Brasileira de Etnomusicologia, Colóquio Amazônico de Etnomusicologia. – Belém:
LABETNO: GEMAM, 2016.
ISBN ISBN 978-85-67528-01-4
<http://iienabetnorte.wix.com/iienabetnorte>
1. Etnomusicologia. I. Colóquio Amazônico de Etnomusicologia (2: 2016 jun. 2224: Belém,PA). II. Título.
CDD - 23. ED. 780.89
O conteúdo publicado é de inteira responsabilidade dos respectivos autores.
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Apresentação
O Laboratório de Etnomusicologia (LabEtno) da Universidade Federal do Pará e
o Grupo de Estudos sobre a Música na Amazônia (GEMAM) da Universidade do Estado
do Pará realizaram o II Encontro Regional Norte da Associação Brasileira de
Etnomusicologia – ABET e o II Colóquio Amazônico de Etnomusicologia, apoio das
Universidades Federal e Estadual do Pará.
Os encontros aconteceram no período de 22 a 24 de junho, no Auditório do
Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA, com o tema: “Etnomusicologia na
contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares", reflexões sobre a
Etnomusicologia na contemporaneidade, a disciplinaridade/interdisciplinaridade da área
e investigações em seus modi operandi que distinguem, identificam contextos e suas
culturas.
Conferências, Mesas Redondas, Sessões de Comunicações e Apresentações
artísticas foram realizados, envolvendo convidados nacionais e da Amazônia, estudantes,
professores, músicos, mestres da cultura popular, constituindo-se em espaços
institucionalizados de debates e de socialização de pesquisas na área da Etnomusicologia,
mais um passo em direção a consolidação da área na Região Norte do Brasil.
Comissão organizadora
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II ENCONTRO REGIONAL NORTE DAASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE ETNOMUSICOLOGIA
II COLÓQUIO AMAZÔNICO DE
ETNOMUSICOLOGIA
Etnomusicologia na Contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares
PROGRAMAÇÃO GERAL
Horários
22 de junho
16:00
INSCRIÇÃO E CREDENCIAMENTO
23 de junho
ABERTURA
Dr. Fernando Arthur Neves (Pró-reitor de Extensão UFPA)
LANÇAMENTOS
REVISTA TUCUNDUBA – PROEX/UFPA
MIXAGENS EM CAMPO – PPGMUS/UFRGS
CONFERÊNCIA
ETNOMUSICOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE
Dra. Marilia Stein (UFRGS)
Coordenação – Dr. Paulo Murilo Guerreiro do Amaral (UEPA)
MESA REDONDA 2
DIÁLOGOS DISCIPLINARES
Dra. Alice Satomi (UFPB)
Dr. Bernardo Mesquita (UEAM)
Mestre Lucas Bragança (SANCARI)
Coordenação – Dra. Rosa Maria Mota da Silva (UFPA)
SESSÕES DE COMUNICAÇÃO ORAL
19:20
MESA REDONDA 1
REFLEXÕES SOBRE GÊNERO,
RELAÇÕES ETNICORACIAIS E SEXUALIDADES NA
ETNOMUSICOLOGIA BRASILEIRA E ESTUDOS
MUSICAIS DA AMAZÕNIA
Dra. Laila Rosa (UFBA)
Ms. Jorgete Lago (UFPA)
Dr. Rafael Noleto (UFT)
Dr. Paulo Murilo Guerreiro do Amaral (UEPA)
Coordenação – Dra. Lívia Negrão (UEPA)
20:50
COQUETEL
APRESENTAÇÃO ARTÍSTICA
CACIQUE SMALL BAND
17:30
18:00
19:00
24 de junho
MESA REDONDA 3
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES
Dr. Paulo Tiné (UNICAMP)
Dra. Giselle Guilhon (UFPA)
Dr. Miguel Santa Brígida (UFPA)
Mestre Nego Ray (COISAS DE NEGRO
Coordenação – Dra. Maria José Pinto da Costa de Moraes (UFPA)
SESSÕES DE COMUNICAÇÃO ORAL
APRESENTAÇÃO ARTÍSTICA
GRUPO COISAS DE NEGRO
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II ENCONTRO REGIONAL NORTE DAASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE ETNOMUSICOLOGIA
II COLÓQUIO AMAZÔNICO DE
ETNOMUSICOLOGIA
Etnomusicologia na Contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares
SESSÕES DE COMUNICAÇÃO
23.06.2016
HORÁRIO
19:10
19:30
19:50
20:10
20:30
SESSÃO 1
SESSÃO 2
SESSÃO 3
Coordenação: Edson Santos Silva
Coordenação: Tainá Façanha
Coordenação: Ricardo Smith
BANDA DE MÚSICA DA POLÍCIA MILITAR NO OESTE
PARAENSE
Andréa Reni Mendes Mardock
Anderson Levy Mardock Corrêa
CIDADE E CULTURA MUSICAL: A FEIRA
PIXINGUINHA EM BELÉM DO PARÁ (1980)
A PRÁTICA DO CARIMBÓ NO ESPAÇO
CULTURAL COISAS DE NEGRO: POR UMA
ETNOMUSICOLOGIA COLABORATIVA
JURUNAS: DA PERSPECTIVA DE SEIS REPRESENTANTES
DA MÚSICA LOCAL
Bárbara Lobato Batista / Ediel Rocha de Sousa / Erica Caroline
Paixão / Lana Luisa Aragão / Nathália Lobato da Silva / Pedro
Miranda dos Santos Júnior / Sonia Chada
FUNDAMENTOS DO BOI DE TOQUINHO: BRINQUEDO DE
ENCANTADO
Luiz Antonio de Albuquerque Lins Filho / Luana Bagarrão Guedes
O FENÔMENO DA LAMBADA: REFLEXÕES
SOBRE
PROCESSOS
DE
EXPANSÃO,
DESTERRITORIALIZAÇÃO
E
MUDANÇA
CULTURAL/MUSICAL
Francinaldo Gomes Paz Júnior
MESTRE SEVERINO GRAVA UM CD: MAS O
PRODUTOR É QUEM FAZ A MÚSICA
Nélio Ribeiro Moreira
CORDÃO DE PEIXE BACU: ESTUDO DE UMA PRÁTICA
MUSICAL EM ICOARACI-PARÁ
Kleber Moreira / Agostinho Lima
CATEGORIAS E PRÁTICAS MUSICAIS
CARUARU (PE): O MUNDO DO FORRÓ
Luany Guilherme Ferreira / Lívia Alexandra Negrão Braga
Philipe Moreira Sales Silva / Carlos Sandroni
O CORAL EDGARD MORAES ALIANDO TRADIÇÃO E
INOVAÇÃO NO FREVO-DE-BLOCO: O ÁLBUM CANTOS E
ENCANTOS
EM
CONSIDERAÇÕES SOBRE A DESCENDÊNCIA DA
MÚSICA
ARMORIAL
NA
CONTEMPORANEIDADE:
MUDANÇA
E
CONTINUIDADE
Carina Malaquias de Lima / Liliam Barros Cohen
O ACERVO DE TCCS DA UEPA
Bárbara Lobato Batista / Sonia Chada
MAPEANDO CENAS E CENÁRIOS MUSICAIS
NO BAIRRO DO GUAMÁ, EM BELÉM-PA
Jucélia Estumano Henderson / Sonia Chada
OLHAR E ESCUTAR COM ATENÇÃO:
TRANSMISSÃO E ASSIMILAÇÃO DO SABER
NAS PRÁTICAS MUSICAIS DO POVO
KA'APOR
Hugo Maximino Camarinha / Claudia Leonor López
Garcés
OS TUPINAMBÁ NO BRASIL COLONIAL:
SABER-FAZER INSTRUMENTOS MUSICAIS
Rafael Severiano / Liliam Barros
Alice E. da Silva Alves / Carlos Sandroni
Marília Paula dos Santos / Carlos Sandroni
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II ENCONTRO REGIONAL NORTE DAASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE ETNOMUSICOLOGIA
II COLÓQUIO AMAZÔNICO DE
ETNOMUSICOLOGIA
Etnomusicologia na Contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares
SESSÕES DE COMUNICAÇÃO
HORÁRIO
24.06.2016
SESSÃO 4
Coordenação: Jucélia Henderson
A ENGENHARIA DE SOM E A AUTORIA DA OBRA FONOGRÁFICA EM MÚSICA
POPULAR
SESSÃO 5
Coordenação: Dayse Puget
PESQUISA EM MÚSICA: METODOLOGIA EM HISTÓRIA ORAL
Tainá Maria Magalhães Façanha
19:25
Ricardo Smith / Sonia Chada
UNIVERSO DE SI: O CANTO E A FOTOGRAFIA COMO FONTES DE
IDENTIDADE
A GUITARRADA E MESTRE VIEIRA: DOIS CASOS DE CONVERSÃO
SEMIÓTICA
Yvana Crizanto
Saulo Christ Caraveo
MÚSICA SMART: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE A ESCUTA MUSICAL
EM DISPOSITIVOS MÓVEIS
PONTOS
RITUAIS:
A
RELIGIOSIDADE
COMPOSIÇÕES DE WALDEMAR HENRIQUE
José Ruy Henderson Filho
Edson Santos da Silva / Sonia Chada
A HIERARQUIA COMO MÉTODO: EQUIDADE NA PRODUÇÃO DA MÚSICA DE
CONCERTO, UM RELATO ETNOGRÁFICO
PRESENÇA DOS PONTOS DE RAIZ DA UMBANDA E DO CANDOMBLÉ NA
M.P.B.
Hudson Cláudio Neres Lima / José Alberto Salgado
Dayse Maria Pamplona Puget
19:45
AFRO-BRASILEIRA
NAS
20:05
20:25
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/
Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÕES MUSICAIS:
CACIQUE SMALL BAND ........................................................................................................... 16
GRUPO CARIMBÓ DE ICOARACI .............................................................................................. 17
CONFERÊNCIA: ETNOMUSICOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE
MARÍLIA RAQUEL ALBORNOZ STEIN ............................................................................................... 19
MESA REDONDA 1: REFLEXÕES SOBRE GÊNERO, RELAÇÕES ETNICORACIAIS E
SEXUALIDADES NA ETNOMUSICOLOGIA BRASILEIRA E ESTUDOS MUSICAIS DA
AMAZÕNIA
“O JAMBU TREME!”: ESTUDOS, FECHAÇÕES ETNOMUSICOLÓGICAS E A(R)TIVISMOS MUSICAIS PIONEIROS E
NECESSÁRIOS DA AMAZÔNIA ........................................................................................................ 52
LAILA ROSA
CAIPIRA, MULATA, SIMPATIA E GAY: REFLEXÕES SOBRE GÊNERO, RAÇA E SEXUALIDADE NOS CONCURSOS DE MISS
DAS FESTAS JUNINAS EM BELÉM – PARÁ .......................................................................................... 66
RAFAEL DA SILVA NOLETO
ENSAIO SOBRE RELAÇÕES DE GÊNERO EM GABY AMARANTOS, A “RAINHA DO TECNOBREGA” ........................ 75
PAULO MURILO GUERREIRO DO AMARAL.
MESA REDONDA 2: DIÁLOGOS DISCIPLINARES
ORGANOLOGIA, ARQUIVOS ONLINE E ETNOMUSICOLOGIA ....................................................................88
ALICE LUMI SATOM
PALESTRA DE MESTRE LUCAS BRAGANÇA .............................................................................. 99
TRANSCRIÇÃO: TAINÁ FAÇANHA (MESTRANDA DO PPGARTES – UFPA)
SUPERVISÃO: PROF. DR. PAULO MURILO GUERREIRO DO AMARAL (UEPA)
MESA REDONDA 3: DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES
DESDE QUE O SAMBA É SAMBA: REFLEXÕES E CRIAÇÕES SOBRE O GÊNERO.............................................. 103
PAULO JOSÉ DE SIQUEIRA TINÉ
OUVIR-DANÇAR-ESCREVER: A “DANÇA” [RAQṢ] COMO “AUDIÇÃO” [SAMÂ’] NA COSMOPOESIA DE RUMI ..... 119
GISELLE GUILHON ANTUNES CAMARGO
ETNOCORPOGRAFANDO SONS E GESTOS NA AMAZÔNIA .................................................................... 136
MIGUEL SANTA BRIGIDA
PALESTRA DE MESTRE NEGO RAY ........................................................................................ 143
TRANSCRIÇÃO: PAULO ROBERTO DA COSTA BARRA (BOLSISTA PIBIC/CNPQ – UEPA)
SUPERVISÃO: PROF. DR. PAULO MURILO GUERREIRO DO AMARAL (UEPA)
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
COMUNICAÇÕES ORAIS
SESSÃO 1
BANDA DE MÚSICA DA POLÍCIA MILITAR NO OESTE PARAENSE ........................................................... 147
ANDRÉA RENI MENDES MARDOCK
ANDERSON LEVY MARDOCK CORRÊA
JURUNAS: DA PERSPECTIVA DE SEIS REPRESENTANTES DA MÚSICA LOCAL ............................................... 154
BÁRBARA LOBATO BATISTA
EDIEL ROCHA DE SOUSA
ERICA CAROLINE PAIXÃO
LANA LUISA ARAGÃO
NATHÁLIA LOBATO DA SILVA
PEDRO MIRANDA DOS SANTOS JUNIOR
SONIA CHADA
FUNDAMENTOS DO BOI DE TOQUINHO: BRINQUEDO DE ENCANTADO .....................................................162
LUIZ ANTÔNIO DE ALBUQUERQUE LINS FILHO
LUANA BAGARRÃO GUEDES
CORDÃO DE PEIXE BACU: ESTUDO DE UMA PRÁTICA MUSICAL EM ICOARACI –PARÁ ................................... 171
LUANY GUILHERME FERREIRA
PROF.ª DR.ª LÍVIA ALEXANDRA NEGRÃO BRAGA
O CORAL EDGARD MORAES ALIANDO TRADIÇÃO E INOVAÇÃO NO FREVO-DE-BLOCO: O ÁLBUM CANTOS E
ENCANTOS ............................................................................................................................. 182
ALICE E. DA SILVA ALVES
CARLOS SANDRONI
SESSÃO 2
CIDADE E CULTURA MUSICAL: A FEIRA PIXINGUINHA EM BELÉM DO PARÁ (1980) .....................................192
NÉLIO RIBEIRO MOREIRA
O FENÔMENO DA LAMBADA: REFLEXÕES SOBRE PROCESSOS DE EXPANSÃO, DESTERRITORIALIZAÇÃO E MUDANÇA
CULTURAL/MUSICAL ................................................................................................................. 203
FRANCINALDO GOMES PAZ JÚNIOR
MESTRE SEVERINO GRAVA UM CD, MAS O PRODUTOR É QUEM FAZ A MÚSICA ......................................... 214
KLEBER MOREIRA
AGOSTINHO LIMA
CATEGORIAS E PRÁTICAS MUSICAIS EM CARUARU (PE): O MUNDO DO FORRÓ ......................................... 223
PHILIPE MOREIRA SALES SILVA
CARLOS SANDRONI
CONSIDERAÇÕES SOBRE A DESCENDÊNCIA DA MÚSICA ARMORIAL NA CONTEMPORANEIDADE : MUDANÇA E
CONTINUIDADE ........................................................................................................................ 231
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
MARÍLIA PAULA DOS SANTOS
CARLOS SANDRONI
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
SESSÃO 3
A PRÁTICA DO CARIMBÓ NO ESPAÇO CULTURAL COISAS DE NEGRO: POR UMA ETNOMUSICOLOGIA
COLABORATIVA ........................................................................................................................ 239
CARINA MALAQUIAS DE LIMA
LILIAM BARROS COHEN
O ACERVO DE TCC’S DA UEPA.................................................................................................... 245
BÁRBARA LOBATO BATISTA
SONIA CHADA
MAPEANDO CENAS E CENÁRIOS MUSICAIS NO BAIRRO DO GUAMÁ, EM BELÉM-PA.................................... 254
JUCÉLIA ESTUMANO HENDERSON
SONIA CHADA
OLHAR E ESCUTAR COM ATENÇÃO: TRANSMISSÃO E ASSIMILAÇÃO DO SABER NAS PRÁTICAS MUSICAIS DO POVO
KA'APOR ................................................................................................................................ 263
HUGO MAXIMINO CAMARINHA
CLAUDIA LEONOR LÓPEZ GARCÉS
OS TUPINAMBÁ NO BRASIL COLONIAL: SABER-FAZER INSTRUMENTOS MUSICAIS ...................................... 273
Rafael Severiano
LILIAM BARROS
SESSÃO 4
A ENGENHARIA DE SOM E A AUTORIA DA OBRA FONOGRÁFICA EM MÚSICA POPULAR................................ 284
RICARDO SMITH
SONIA CHADA
UNIVERSO DE SI: O CANTO E A FOTOGRAFIA COMO FONTES DE IDENTIDADE............................................. 290
YVANA CRIZANTO
MÚSICA SMART: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE A ESCUTA MUSICAL EM DISPOSITIVOS MÓVEIS ............... 299
JOSÉ RUY HENDERSON FILHO
A HIERARQUIA COMO MÉTODO: EQUIDADE NA PRODUÇÃO DA MÚSICA DE CONCERTO, UM RELATO ETNOGRÁFICO.
...............................................................................................................................................306
HUDSON CLÁUDIO NERES LIMA
JOSÉ ALBERTO SALGADO
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
SESSÃO 5
PESQUISA EM MÚSICA: METODOLOGIA EM HISTÓRIA ORAL .................................................................. 315
TAINÁ MARIA MAGALHÃES FAÇANHA
A GUITARRADA E MESTRE VIEIRA: DOIS CASOS DE CONVERSÃO SEMIÓTICA ............................................. 321
SAULO CHRIST CARAVEO
PONTOS RITUAIS: A RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA NAS COMPOSIÇÕES DE WALDEMAR HENRIQUE ............ 330
EDSON SANTOS DA SILVA
SONIA CHADA
A PRESENÇA DOS PONTOS DE RAIZ DA UMBANDA E DO CANDOMBLÉ NA M.P.B ...................................... 339
DAYSE MARIA PAMPLONA PUGET
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
APRESENTAÇÕES MUSICAIS
CACIQUE SMALL BAND
Small Band integrada por músicos do norte do Brasil que se dedicam a execução de
música autoral e arranjos já criados para esta formação. O grupo nasceu num ambiente
de cooperação e troca de ideias, que marcava os encontros de músicos de metal para o
estudo de improvisação. Com o passar do tempo, firmou-se como uma Small band com
repertório de música instrumental brasileira de influência jazzística. Os traços
marcantes na identidade do Cacique Small Band é a música autoral e os arranjos feitos
pelos próprios músicos. Nos saxofones, Elias Coutinho (alto), Thiago Levy (tenor) e
Rafael Oliva (barítono). Nos trompetes, Johab Quadros e Gerson Levi, e no trombone,
Adnelson Azevedo. Na base, Adelbert Carneiro ao contrabaixo, Isac Almeida ao piano e
Tiago Belém na bateria.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
GRUPO CARIMBÓ DE ICOARACI
O Grupo Carimbo de Icoaraci surgiu no Espaço Cultural Coisas de Negro, local de
referência para a prática musical do carimbó em Icoaraci-PA, oportunizando várias
atividades culturais/musicais à comunidade do seu entorno, incluindo a Roda de
Carimbó, representando a resistência da cultura africana e amazônica no Estado
paraense. O Grupo Carimbó de Icoaraci atua com formações instrumentais variadas,
apresentando características particulares na sua prática musical, cujos processos
criativos, de aquisição e transmissão de música, de construção de conhecimento e de
significado musical acontecem socialmente, por meio da participação na prática
musical. Os instrumentos utilizados pelo grupo são dois curimbós - um grave e outro
médio, um banjo, uma flauta transversal, dois pares de maracas, um milheiro, um par de
claves, um contrabaixo elétrico e uma guitarra. A utilização de instrumentos artesanais
com instrumentos elétricos é uma das características desse grupo, resultando em uma
sonoridade particular, algumas vezes considerada pelo grupo “uma questão de
modernidade”, na formação instrumental.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
CONFERÊNCIA: ETNOMUSICOLOGIA NA
CONTEMPORANEIDADE
Coordenação – Dr. Paulo Murilo Guerreiro do
Amaral (UEPA)
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Etnomusicologia na contemporaneidade
Marília Raquel Albornoz Stein
UFRGS - [email protected]
Resumo: Este artigo apresenta alguns temas para se pensar a entomusicologia contemporânea no Brasil,
levantando questões metodológicas, apontando produções escritas publicadas e aspectos de coletivos de
pesquisa na área. Pretende-se, assim, instigar o debate e a curiosidade, de ouvintes e leitores, no
enfrentamento de desafios que atingem aqueles que praticam a etnografia da música, historicamente e
especialmente no momento atual no Brasil, no âmbito das universidades e em outros contextos.
Palavras-chave: Etnomusicologia no Brasil. Etnografia da Música. Universidade.
Abertura- diálogos interdisciplinares – transdisciplinares
Esta apresentação tem por objetivo instigar o debate e a curiosidade, de ouvintes e
leitores, no enfrentamento de desafios etnomusicológicos que nos atingem historicamente e
especialmente no momento atual no Brasil, no âmbito das universidades, dos centros de
cultura, dos espaços de formação e atuação de professores da educação básica, das
instâncias de defesa dos direitos das minorias, dos núcleos de apoio aos jovens
pesquisadores e também aos mais experientes. Durante esta semana, teremos oportunidade
de discutir, de forma mais aprofundada, os diálogos disciplinares e interdisciplinares que a
etnomusicologia vem realizando, ou já realizou, ou que acreditamos que deveria realizar.
Neste momento, levantarei alguns aspectos que me parecem relevantes para instigar esta
conversa.
Não se trata de pensar o positivo e o negativo da etnomusicologia, ou suas
condições de possibilidade (pois sabemos que para isso não existe uma fórmula), nem de
traçar uma história linear de acontecimentos. Pretendo abordar fragmentos desta ciência a
partir de uma escuta, de um olhar, de uma experiência do coletivo que dá suporte para
algumas interpretações de continuidades e mudanças na área.
Apesar do título generoso que me foi sugerido – a etnomusicologia contemporânea
-, sem limites geopolíticos pré-estabelecidos, optei por tratar do estado da arte em nosso
território nacional (sobreposto e tensionado pelos territórios dos povos originários).
Compreendo o contexto de grande florescimento das pesquisas e de simultânea crise
políticano Brasil- que envolve ameaças às instituições públicas voltadas à cultura, à
educação e à ciência - como um inevitável momento de reflexão e de busca de
19
/
Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
fortalecimento coletivo de etnomusicólogos, atuantes e em formação, junto a seus
interlocutores e parceiros. Minha fala pretende se somar a esta reflexão e a esta busca.
Neste sentido, primeiro serão descritos paradigmas históricos e mudanças
metodológicas em etnomusicologia, assim como o caso do projeto Encontro de Saberes
(INCTI, 2015), para se pensarem alguns dilemas da etnomusicologia em busca de se
enriquecer o debate. Na segunda parte da apresentação, revisarei brevemente a trajetória de
institucionalização da etnomusicologia no Brasil, comentarei a produção de livros e
periódicos no âmbito desta ciênciae trareidados, alguns panorâmicos e outros pontuais, dos
coletivos brasileiros de pesquisa em etnomusicologia.
1.
Diálogos – Com quem? Quem somos? De paradigmas históricos e dilemas
político-epistêmicos
O conhecimento etnomusicológico tem sido produzido em diálogoentre os pares
tanto da área como de outras áreas de pesquisa. A própria entomusicologia, como nos
lembram Lühninget al., é oriunda de um caminho interdisciplinar e dinâmico (2013, p. 7).
Também parecem estar em curso, cada vez mais, importantes parcerias com diferentes
setores da sociedade brasileira, co-responsáveis pelo desenvolvimento da disciplina.
Desafiam-nos os esforços de ampliar as redes de pesquisa em âmbito internacional, na
América Latina e nos outros continentes, não apenas colocando o Brasil como receptor de
informações e paradigmas, mas também como propositor em etnomusicologia (ver
LÜHNING, 2014a). Dessa forma, no campo da etnomusicologia, a construçãode estudos,
reestudos, diagnoses de campos emergentes e atendimento a demandas sócio musicais
pode seguir colaborando na promoção da qualificação do ensino e da pesquisa nas escolas
de educação básica e superior, e também na melhora da qualidade de vida de todos no
Brasil e na defesa de nossos princípios democráticos. Assim, com diferentes aportes
interdisciplinares, em diálogo com a sociedade brasileira e também com a comunidade
internacional, o próprio campo da etnomusicologia brasileira se consolida, qualifica e
diversifica.
A etomusicologia no Brasil, especialmente desde sua organização em torno da
Associação Brasileira de Etnomusicologia(ABET), criada em 2001, e certamente muito
antes disso - pelo esforço de pesquisadores, movimentos sociais, coletivos de agentes
culturais, professores, etc. - vem-se pautando pela ampliação da pesquisa no país, não
20
/
Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
apenas através de sua institucionalização, mas também de ações investigativas articuladas
em torno da inclusão social, do respeito à diferença e da valorização da
interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade. Interdisciplinaridade seria “acapacidade de
cruzar as fronteiras da segmentação moderna, recombinando linguagens, conhecimentos e
metodologias” (INCTI, 2015, p. 14). Transdisciplinaridade, por sua vez, seria “uma
perspectiva de reflexão aberta sobre problemas concretos, capaz de reconciliar as Ciências
Exatas com as Humanidades, bem como incluir saberes externos ao paradigma moderno e
ao cânone acadêmico” (ibid.).
Uma etnomusicologia incipiente, eurocêntrica e simultaneamente nacionalista,
ocorria através das ações de folcloristas como Mario de Andrade1, entre muitos outros, na
primeira metade do século XX no Brasil. Apesar de seu caráter exotizante e evolucionista,
até hoje seus frutos permanecem de valor incalculável - desde que interpretados de forma
crítica -em livros e fonogramas digitalizados, pelos acervos que constituíram, pois
permitiram, com base em novos paradigmas, reestudos e avanços etnomusicais entre o
passado e o futuro. A nascente etnomusicologia brasileira, baseava-sepor um lado na
musicologia comparada e na “psico-musicologia” (MENEZES BASTOS, 1990) alemã e
por outro lado inspirava-se, em meados do século XX, na perspectiva norte-americana da
etnomusicologia, de forte matriz antropológica, metodologicamente marcada pelo trabalho
de campo, cindida, no entanto, entre a musicologia histórica e a musicologia semântica.
Os dilemas de então parecem ser ainda os de hoje: como evitar isolar a música de
seu contexto? Como descrever conteúdos musicais sem separá-los de outros, sociais (serão
outros?)? Como tratar as descrições pela perspectiva dos músicos e dos outros participantes
do evento musical sem se abster de uma posição de pesquisador na narrativa? É certo que
muito se transformou o projeto de fazer etnomusicologia com a virada hermenêutica, ou
seja, com o reconhecimento do campo interpretativo na construção do conhecimentodos
sujeitos da pesquisa, opondo-se à tradição descritivista. Mais do que isso, o próprio
questionamento sobre quem pesquisa e para que se pesquisa estimula uma mudança radical
nas maneiras de se pensarem as escolhas temáticas e metodológicas na etnomusicologia.
Em diversos países, e também no Brasil. O aspecto colaborativo se torna central. A ciência
não é feita pelo cientista para o cientista. Ou melhor, o cientista não é só quem está com o
1
Sobre o acervo sonoro e documental da Missão de Pesquisas Folclóricas, consultar:
http://ww2.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao/. Acessado em: 22 jun. 2016.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
título reconhecido pela academia. Divide-se a notoriedade e reconhece-se a expertise dos
sujeitos que produzem as sonoridades e performances no mundo, que fazem soar e pulsar o
mundo, que permitem haver o mundo. Além disso, a música não é mais compreendida
como sons unicamente, nem mesmo só como as pessoas que fazem a música em relação
com o contexto do fazer musical e com os sons. Trata-se de um acontecimento, analisado
em sua singularidade performativa a partir das perspectivas de seus realizadores, em
contexto específico e cujas convenções e intencionalidades são ora repetidas, ora inovadas.
Para Finnegan (2008), o complexo multimodal que é observado e vivenciado pelo
pesquisador nas experiências de campo extrapola o conceito de “música”, envolvendo
pessoas, memórias, cheiros, gostos, objetos, movimentos, palavras, olhares, intenções,
identidades.
As resistências interpretativas de muitos contextos sonoro-preformáticos - como
muitos em que se realiza a música ameríndia - aos modelos ocidentais de realização
musical ede criação de vocabulário musical (que, apesar de não serem a-corpóreos e
também integrarem um fenômeno holístico, persistem sob um discurso de que a música se
restringe a sons – ou mesmo ao registro gráfico dos sons) são parte dos fatores que criama
necessidade, emum grande número de pesquisas etnomusicológicas, de trabalhar com o
multimodalismo, única forma de se obterem soluções aproximativas às teorias nativas do
universo sonoro-performático destes grupos (por exemplo, ver STEIN, 2009). Piedade
enfatiza esta característica das práticas sonoro-performáticas originárias:
[...] os sistemas musicais nativosimbricam-se nos domínios dos saberes,
havendoportanto necessidade da compreensão da músicapara além da ordem
sônica, tomando-a como um"sistema significante de relevância estratégicapara a
construção do real" (MENEZES BASTOS e LAGROU, 1995, p. 2). A música
amazônica lançadesafios ao próprio conceito de música, enriquecendo, portanto,
todo o campo da Musicologia, Teoria Musical e Filosofia daMúsica. (PIEDADE,
2006, p. 67).
No entanto, não se trata apenas de reconhecer o caráter holístico multimodal do
fenômeno sonoro-performático. Também está em jogo na pesquisa aqueles que não são
pesquisadores nativos superarem dicotomias que escondem preconceitos baseados na
hierarquização de aspectos e práticas sociais, que justifiquem dominações, invisibilizações,
negações, silenciamentos. A complexidade das formas de registro e transmissão musical,
que não se encaixam em padrões de apenas oralidade ou apenas escrita, assim como o
caráter discursivo das categorizações da música como tradicional ou nova/moderna, foram
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
tratados por Araújo em encontro de etnomusicologia de 2000 na UFMG (descrito adiante)
e encontra-se em capítulo do livro resultante do encontro (ARAÚJO, 2006b).
Movimentos sociais, políticas públicas e a etnomusicologia – mais sobre a necessária
mudança de paradigmas e nossa inspiração antropológica
Próximo à fundação da ABET -no contexto da reabertura democrática no Brasil e
do estabelecimento da nova Constituição Federal (1988) - projetos importantes com
presença de etnomusicólogos foram sendo constituídos no país, ora com apoio financeiro
do governo federal,2 ora por iniciativas variadas, como as inspiradas no pioneirismo de
órgãos de cultura e educação, como o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de
Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI),3 que propôs o projeto Encontro de
Saberes, marcandoo cenário acadêmico brasileiro de forma definitiva.
No último encontro da ABET4, em 2015, foi muito significativa a presença de
mestres latino-americanos representantes de povos originários das Terras Baixas e Andinos
da América do Sul, de comunidades quilombolas e de movimentos jovens populares. A
conferência de abertura foi proferida pelo compositor indígena e pesquisador musical
colombiano da etnia Nasa, Inocêncio Ramos. Em mesas redondas sobre diferentes
temáticas, assim como em outros momentos músico-performáticos, apresentaram suas
reflexões sobre etnomusicologia, práticas sonoro-performáticas e políticas culturais e
territoriais: o músico do grupo de rap KaiováBroMC's, Bruno Verón, do Mato Grosso do
2
Por exemplo, projetos de extensão como Saberes Indígenas na Escola e outros, de formação
continuada para indígenas e para não indígenas, e Programa de Educação Tutorial–Indígena, ocorreram com
financiamento Ministério da Educação (MEC) / Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão (SECADI); o projeto de extensão Intervivências, entre comunidades populares e
tradicionais e universidade, ocorreu com financiamento Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA); etc.
3
O INCTI se consolidou em 2009, através do Programa dos Institutos Nacionais de Ciência e
Tecnologia (Portaria MCT nº 429/2008), selecionado no Edital nº 015/2008 do Ministério da Ciência e
Tecnologia (MCT), por intermédio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, com a
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), com a Fundação Carlos Chagas de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), e com a Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP). O INCTI contribui para consolidar uma rede nacional de pesquisadores,
realizando pesquisas sobre as políticas de ações afirmativas nas universidades brasileiras. “O projeto resulta
de uma parceria estabelecida junto à UnB, ao CNPq, ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
(MCTI), ao MEC e ao Ministério da Cultura (MinC) – sendo o último o órgão financiador da proposta, bem
como um aliado fundamental desde a sua criação.” (INCTI, 2015, p. 3).
4
Programação
disponível
em<http://www.enabet-2015.ufsc.br/wpcontent/uploads/2015/05/CADERNO-programacao-copia1.pdf>
e
os
Anais
em<http://abetmusica.org.br/conteudo.php?&sys=downloads>.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Sul; a professora, pesquisadora e cantora Mapuche Elisa Avendaño Curaqueo, do Chile; e
o músico e líder da comunidade quilombola da Manga, Nazário Frazão de Almeira,
coordenador geral da Festa do Congo, entre outros participantes identificados com práticas
culturais e territórios tradicionais no Brasil e em outros países da América Latina. Em
diferentes planos do evento, estes intelectuais e artistas trouxeram perspectivas não
hegemônicas sobre o estudo da música como prática cultural, político-performática. Entre
metáforas sobre a força da música Nasa como condutora de alegria e sobre o
pesquisarcomo pescar, em conexão com a crítica à destruição dos territórios e a poluição
das águas (Ramos); realização de cantos Mapuche inspirados em cenas de repressão e
violência cotidianas, como a do jovem assassinado em conflito étnico-territorial, junto à
reflexão sobre a organização comunitária Mapuche e suas formas de educação musical
(Curaqueo); a apresentação de composições de rap Kaiová como afirmação identitária e
espiritual e denúncia de violências, injustiças, preconceito e negligência dos órgãos
públicos (responsáveis pela demora na efetivação de seus direitos territoriais) para com os
Kaiová no Mato Grosso do Sul (Verón) - sonoridades, performances, projetos políticos,
resistências culturais foram imprimindo força e beleza discursiva ao encontro,
potencializando a reflexão sobre diversidade musical e direitos territoriais, sobre relações
entre seres humanos e extra humanos esobre formas desistematização de conhecimentos
musicais, motivando continuidades e novas abordagens de pesquisa entre os diferentes
pesquisadores presentes.
Foi um encontro novo neste sentido, pois a área - apesar de há anos haver um
crescimento das pesquisas participativas, dialógicas, colaborativas, aplicadas sobre temas
das práticas musicais tradicionais e populares brasileiras5 - produz suas programações de
difusão majoritariamente entre os pares com formação universitária, etnomusicólogos em
geral não indígenas, não quilombolas, não de outras comunidades tradicionais e não
juventude e outros grupos de perfil popular. Mas, como veremos, este mapa de
visibilidade/audibilidade epistêmica vem se reconfigurando, por conta das demandas dos
movimentos sociais e de grupos populares e tradicionais, das políticas de cotas nas
universidades, doingresso de mestres tradicionais no ensino universitário (por
ex.,
5
Sobre o tema da enotmusicologia participativa, dialógica, aplicada e/ou colaborativa, ver Lühning
(2003; 2006; 2014), Araújo (2006a), Cambria (2008), Lucas (2011), Stein e Silva (2014), Guazina (2015) e
os artigos no último número da revista World of Music, recentemente publicada (2016).
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Encontro de Saberes, desde 2010) eda formação - por diferentes projetos e programas - de
pesquisadores indígenas, quilombolas e de outras minorias étnico-raciais.
Na edição anterior do Encontro Nacional da ABET (VI ENABET, João Pessoa,
2013), um grupo de mestres indígenaspesquisadores das práticas sonoro-performáticas dos
povos Krahô, Guarani-Kaiová, Guarani-Mbyá, Maxakali/Tikmũ’ũn e Baniwa havia
participado do evento. Estes pesquisadores apresentaram, em colaboração com
etnomusicólogos não indígenas, resultados parciais da pesquisa ProDocSon – Memória
através dos Cantos, desenvolvida a partir de 2011, pelo Museu do Índio do Rio de Janeiro
e pela UNESCO.6
Nas outras edições do ENABET (assim como em outros eventos científicos
nacionais e internacionais; por exemplo, nas Reuniões Brasileiras de Antropologia RBAs), outros pesquisadores já vinham representando nos eventos as próprias
comunidades em investigação. Por exemplo, os estudantes da Maré, do projeto Música,
memória e sociabilidade da Maré, coordenado por Samuel Araújo e Vicenzo Cambria
(Laboratório de Etnomusicologia/UFRJ)7; e o mestre Guarani-Mbyá Vherá Poty, da equipe
de coordenadores musicais do projeto Salvaguarda do patrimônio musical indígena:
registro etnográfico multimídia da cultura musical em comunidades Mbyá-Guarani da
Grande Porto Alegre, RS, coordenado por Maria Elizabeth Lucas (Grupo de Estudos
Musicais [GEM]/Universidade Federal do Rio Grande do Sul [UFRGS])8 e pesquisador do
projeto ProDocSon, acima mencionado. Reflete-se nestes encontros científicos o esforço
da sociedade, dos movimentos sociais, das instâncias públicas de formação educacional
e
6
O Projeto de Documentação de Sonoridades (ProDocSon), vinculado ao Projeto de Documentação de
Línguas e Culturas Indígenas Brasileiras (ProgDoc), do Museu do Índio do Rio de Janeiro/UNESCO,
intitulado Memória através dos cantos,écoordenado por Rogângela Tugny e conta com a participação de
equipes regionais, constituídas por pesquisadores indígenas Guarani-Mbyá (RS); Kaiowá (MS); Baniwa
(AM); Krahô (TO); Enawene Nawe (MT); Tikmũ’ũn/Maxakali (MG), entre outros, e por etnomusicólogos
não-indígenas. Pretendecriarinstâncias de troca de conhecimento entre povos vizinhos com passado comum,
estimular a transmissão e a manutenção dos conhecimentos musicais tradicionais (TUGNYet al., 2010) e
pesquisar pela perspectiva etnomusicológica junto a estes povos indígenas (para maior detalhamento sobre o
projeto ver: LIMA RODGERS et al., 2016).
7
Os pesquisadores Samuel Araújo e Vicenzo Cambria, com outros membros do Laboratório de
Etnomusicologia da UFRJ, desenvolvem desde 2005 este projeto etnomusicológico colaborativo com jovens
moradores no bairro da Maré, RJ.
8
Projeto desenvolvido no âmbito do Edital nº 1/2007 – Apoio e Fomento ao Patrimônio Cultural Imaterial,
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), 2008-2009. Além de Vherá Poty, mestre de
música, professor de Guarani e liderança Guarani-Mbyá, participaram deste projeto outras lideranças Guarani
e familiares das tekoá (aldeias) Nhundy (Estiva, Viamão, RS), Jataity (Terra Indígena do Cantagalo, Porto
Alegre, RS) e Pindó Mirim (Terra Indígena de Itapuã, Viamão, RS) e diversos integrantes do GEM, entre os
quais a antropóloga Janaina Lobo, que atuou centralmente na equipe executiva.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
dos pesquisadores etnomusicólogos de superar a perspectiva colonialista de pesquisar pelo
Outro, com o Outro objetificado, ou de superar ainda a perspectiva que reconhece a
subjetividade do Outro, mas apenas como “informante” ou “colaborador”. Em vez disso,
pretende-se que os diferentes pesquisadores/nativos – da comunidade pesquisada, de fora
da comunidade pesquisada – negociem seus espaços de construtores de conhecimento,
tomem suas decisões metodológicas e interpretativas e conduzam os resultados da pesquisa
em camadas e abrangências diversificadas de divulgação e aplicação (STEIN e SILVA,
2014).
No plano da experiência etnográfica, a etnomusicologia divide perspectivas
metodológicas pós-coloniais com a antropologia, entre outras áreas, pelas quais reconhece
os conflitos sociais, as hegemonias e as resistências, como pano de fundo da constituição
do campo e dos conhecimentos nele construídos. Para entender este movimento de
“descolonização”, remeto a alguns pensadores que o historicizam e sobre ele refletem:
James Clifford analisa “a formação e desintegração da autoridade etnográfica na
antropologia social do século XX” (1999: 18), que apresenta o dilema da interpretação
intercultural “associado à desintegração e à redistribuição do poder colonial” (1999: 18) a
partir da metade do século XX, quando o Ocidente reconhece não ser mais possível “se
apresentar como o único provedor de conhecimento antropológico sobre o outro”
(1999:18-19). Para Clifford, neste mundo “ambíguo, multivocal, torna-se cada vez mais
difícil conceber a diversidade humana como culturas independentes, delimitadas e
inscritas” (1999, p. 19). Se “a escrita etnográfica não pode escapar inteiramente do uso
reducionista de dicotomias e essências, ela pode ao menos lutar conscientemente para
evitar representar ‘outros’ abstratos e a-históricos” (1999, p. 19). Desta maneira, diferentes
povos terão condições de “formar imagens complexas e concretas uns dos outros, assim
como das relações de poder e de conhecimento que os conectam” (1999, p. 19). Tais
imagens serão formadas “a partir de relações históricas específicas de dominação e
diálogo”, envolvendo um debate político-epistemológico mais geral sobre a escrita e a
representação da alteridade.
No mesmo sentido, de explicitar os contextos e as relações de poder inerentes às
produções de conhecimento, Boaventura de Souza Santos (2010) propõe uma “ecologia de
saberes”que promova uma revisão do conhecimento instituído na sociedade atual e o
questionamento da legitimidade do resultado das ciências modernas (dominadas por uma
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
reflexão epistemológica desprovida de contexto cultural e político da produção e
reprodução do conhecimento) nos territórios colonizados.
Ao encontro da “antropologia simétrica” de Bruno Latour (1994), Eduardo Viveiros
de Castro reivindica que a antropologia seja tomada como uma prática de sentido em
continuidade epistêmica com as práticas sobre as quais discorre, “não para fulminá-la por
colonialista, exorcizar seu exotismo, minar seu campo intelectual, mas para fazê-la dizer
outra coisa” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 2). Tal reflexão, como as anteriores, não
explicita as maneiras concretas de proceder na pesquisa que corresponderiam a estas novas
posições epistêmicas (interepistêmicas, como diria CARVALHO, 2016), mas fornece
bases sólidas – éticas, filosóficas e políticas - para a constituição de debates, para
redefinições metodológicas, para a constituição de campos, disputas e diálogos, com
consequências tanto na esfera da legitimação de saberes e de processos de fazer pesquisa,
quanto na valorização de sujeitos, de coletivos humanos e da defesa de territórios
simbólicos e materiais vitais à constituição ontoepistêmica de cada sujeito e de cada
comunidade.
A análise do antropólogo Sergio Baptista da Silva, que aponta a existência de um
necessário “constrangimento cosmológico”no fazer antropológico de pesquisadores que
entram em experiências entográficas em contextos nos quais não têm familiaridade prévia
com as sociocosmologias dos sujeitos socializados no campo, ajuda a construirmos essa
imagem do antropólogo, e do etnomusicólogo, que, ao invés de principalmente falar do
Outro, fala com o Outro, percebendo-se movido por sua diferença, por esta relação que o
tempo todo tensiona o fazer científico.
A presença no VII ENABET dos mestres latino-americanos de culturas tradicionais
e urbanas populares como tecedores de contrapontos epistêmicos nos domínios de uma
etnomusicologia
eurocentrada,
que
historicamente
os
excluiu,
simboliza
um
reconhecimento da grandeza de seu acervo de conhecimentos, a potencialidade de
interlocução, aprendizagem e a incompletude das perspectivas, mesmo que diversas, mas
hegemonicamente ocidentalizadas. A mudança de paradigma está em curso, mas é
necessário estar atento para manter, mesmo que em fragmentos, ensaios, ações pontuais e
em redes - locais, nacionais e transnacionais -, a vitalidade da tarefa de seguir produzindo
uma etnomusicologia latino-americana cada vez mais plural e, assim, inclusiva.
O
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
intelectual Ailton Krenak descreve encontros míticos e históricos coloniais no Brasil,
observando sobre o necessário protagonismo dos povos originários que
mais do que um esforço pessoal de contato com o Outro, nós precisamos
influenciar de maneira decisiva a política pública do Estado brasileiro.[...]Esses
gestos de aproximação e de reconhecimento, eles podem se expressar também
numa abertura efetiva e maior dos lugares na mídia, nas universidades, nos
centros de estudo, nos investimentos e também no acesso das nossas famílias e
do nosso povo àquilo que é bom e àquilo que é considerado conquista da cultura
brasileira, da cultura nacional. Se continuarmos sendo vistos como os que estão
para serem descobertos e virmos também as cidades e os grandes centros e as
tecnologias que são desenvolvidas somente como alguma coisa que nos ameaça e
que nos exclui, o encontro continua sendo protelado. (KRENAK, 2016[1999]).
Ao encontro de saberes
Não mais protelar este encontro foi o objetivo do projeto de ensino universitário
Encontro de Saberes, implementadorecentemente na UFRJ e já vivido por seis outras
instituições de ensino superior no Brasil, além de uma na Colômbia. Na ocasião de sua
abertura, seu mentor, o antropólogo e etnomusicólogo José Jorge de Carvalho, destacou
que a valorização da separação dos saberes em compartimentos é um aspecto que está na
base das universidades. O Encontro de Saberes seria um movimento de busca de ampliação
do universo de saberes na universidade, fundamentado em um diálogo interepistêmico
entre os conhecimentos eurocêntricos dominantes na instituição e os saberes tradicionais
promovidos por mestres indígenas e afrodescendentes convidados a ministrar aulas
regulares (INCTI, 2015). Uma retomada da integração entre saberes e entre intelecto e
sentimento (mente e coração). Para tanto, os mestres precisam estar “em presença”
(CARVALHO, 2016), são insubstituíveis. É indispensável trazê-los, e não apenas seus
saberes. Carvalho menciona a adequação de uma expressão japonesa, constituída pelo
ideograma “Shin” (心), para definir esse processo, pois denota não apenas a compreensão
cognitiva, senão também a conexão afetiva entre os sujeitos da construção do
conhecimento – mestres e aprendizes. A palavra representariatanto a mente quanto o
coração epoderia ser traduzida como“mente a mente”, ou “mente-corpo e também
coração”. Carvalho explica o fundamento pedagógico que está em questão: “Minha mente
sabe o que sua mente está pensando e meu coração sente o que seu coração está sentindo”
(CARVALHO, 2016). A presença dos mestres é imprescindível, pois são eles que estão
sentindo e pensando, falando com os alunos. Não pode alguém ficar no lugar deles. Tratase de um conhecimento diferente do ocidental, que se poderia retransmitir fora de contexto.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Trata-se de um “saber direto”. Introduzir o Encontro de Saberes é fazer com que a
universidade retome um saber que foi reduzido com base na Revolução Científica
europeia, que foi regressiva, pois anulou a validade de vários saberes que anteriormente
eram válidos naquela sociedade (CARVALHO, 2016).9 Como na psicanálise, informa
Carvalho, a presença dos mestres na construção da aprendizagem é fundamental, por se
tratar de um ato único, envolvente das subjetividades na experiência epistêmica.
No Brasil ocorreram experiências deste tipo naUnB (primeiro oferecimento, em
2010), UFMG, UFJF, UECE, UFPA10e UFSB e no exterior, na Pontifícia Universidad
Javeriana, Colômbia. Na UFRGS, será iniciada em agosto de 2016 a primeira turma da
nova disciplina, proposta pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos
(NEAB)11 e implementada no currículo do curso de Música, oferecida para toda a
universidade como Curso 212 e com possibilidade de ser inserida nos currículos de outros
cursos já em 2017. Ressalte-se que, apesar do caráter transdisciplinar do projeto – na
UFRGS, contaremos com professores mediadores dos cursos de Economia, Música, Letras,
Educação, Museologia, Agronomia, Antropologia -, há um contingente importante de
etnomusicólogos atuando no Encontro de Saberes desde sua origem13, o que
provavelmente esteja relacionado com o entendimento político e epistemológico de um
grande número de etnomusicólogos brasileiros - envolvidos nesta perspectiva
descolonizadora, inclusiva e atuando em pesquisas colaborativas/participativas– e também
com a potência transdisciplinar das práticas sonoro-performáticas de grupos tradicionais,
9
Encontram-se aqui os vídeos da palestra de José Jorge de Carvalho no lançamento do projeto Encontro de
Saberes da UFRJ (28 jan. 2016). Parte I: https://www.youtube.com/watch?v=R_0rIcsrvF0; Parte II:
https://www.youtube.com/watch?v=rUx6n3V3cXI. No youtube estão também os demais registros (até a
Parte VII).
10
A este respeito, ver o número 5 da Revista Tucunduba, lançado neste evento (TUCUNDUBA, 2016),
exclusivamente sobre o projeto Encontro de Saberes na UFPA em 2014.
11
Os grupos apoiadores são: Grupo de Estudos Musicais – GEM (PPGMUS/PPGAS); Laboratório de Ensino
de História e Educação– LHISTE; Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais – NIT
(PPGAS); Núcleo de Estudos em Desenvolvimento Rural Sustentável – DESMA; Grupo de Estudos em
Memória, Patrimônio e Museus – GEMMUS; Programa Saberes Indígenas na Escola/UFRGS – SIE
(FACED); RIMP AbyaYala: Epistemologias Ameríndias em Rede (ILEA); RIMP Estudos Africanos (ILEA).
12
Chama-se Curso 2 a modalidade de disciplina que pode ser cursada e validada como crédito complementar
para o estudante.
13
Dados muito relevantes são expostos no relatório (2015), apresentando a maioria dos professores parceiros
(ou mediadores) como pertencentes às áreas de conhecimento Ciências Humanas e Linguística, Letras e
Artes. Note-se que a etnomusicologia pode ser pensada como pertencente aos dois campos – ou construtora
deles. Ao mesmo tempo, o relatório chama a atenção para a multiplicidade de pertencimentos da equipe de
professores, pois, “com exceção das Engenharias, todas as demais áreas delimitadas pelo CNPq estão
contempladas, através da participação dos acadêmicos, em diálogo com os mestres e mestras tradicionais”
(INCTI, 2015: 51), o que indica o diálogo interdisciplinar em curso.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
centrais nas constituições de seus mundos. Tais experiências têm oportunizado que
pesquisadores da área tenham conhecido, nos seus trabalhos de campo, mestres
qualificados para o Encontro de Saberes, podendo, assim, colaborar na mediação de sua
presença nas universidades.
A disciplina Encontro de Saberes atende, entre muitas outras instâncias legais, às
leis 10.639/03 e 11.645/08– que tornam obrigatórioo ensino, respectivamente,da história e
da cultura afro-brasileira e africana e da história e da cultura indígena nos currículos
escolares no Brasil -e à meta da Câmara Interministerial de Educação e Cultura,
regulamentada pela Portaria Normativa Interministerial nº 1/2007, de incorporar os mestres
de ofício e das artes tradicionais nos vários níveis de ensino(PRASS et al., 2016: 7).
Assim,
ressalta-se ainda a afinação da proposta com potencialidades importantes para a
formação de professores da Educação Básica, no sentido de possibilitar que
construam conhecimentos que subsidiem suas práticas pedagógicas na escola.
Ao terem oportunidade de cursar a disciplina e vivenciar e perceber que saberes
populares e acadêmicos se interconectam de diferentes e inúmeras formas,
convergindo para importantes aspectos de uma formação interepistêmica, os
licenciandos poderão igualmente promover a ampliação de critérios de seleção e
de modos de desenvolvimento de temas e conteúdos atuais nas escolas,
laborando currículos plurais em uma perspectiva inclusiva, não dicotômica e
crítica. (PRASS et al., 2016, p. 6).
No último número da revista World of Music, Carvalho, Barros, Corrêa e Chada
refletem sobre o Encontro de Saberes como campo interdisciplinar e transdisciplinar que
possibilita confluências entre muitas áreas, entre elas a entomusicologia e a educação
musical (CARVALHO et al., 2016). Este número da revista consiste em um dossiê
intitulado Ethnomusicology in Brazil14, organizado por Angela Lühning e Rosângela
Tugny (2016), e pode ser visto como um marco na etnomusicologia brasileira, pois nele se
esboça um panorama atualizado de pesquisas e ações entomusicológicas no Brasil. Além
da introdução, os seis artigos reunidos neste volume foram escritos coletivamente, por
grupos de pesquisadores agregados em torno de temas de especialização ou de experiências
comuns desenvolvidas através de redes interinstitucionais, etc. Entre as temáticas
abordadas, encontram-se a pesquisa colaborativa e participativa em etnomusicologia; a
pesquisa colaborativa em enotmusicologia ameríndia, sobre o projeto ProDocSon, do
Museu do Índio do Rio de Janeiro; o já referido artigo sobre o projeto Encontro de Saberes;
14
Disponível em: http://www.journal-the-world-of-music.com/current.html. Acessado em: jun. 2016.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
interfaces etnográficas entre práticas e pedagogias musicais em contextos musicais afrodescendentes; e as perspectivas dos músicos praticantes e dançantes do forró sobre
mudanças nos festivais de rua no Nordeste brasileiro.
2
Dados sistematizados – um sobrevoo
A etnomusicologia no Brasil é uma área complexa, diversificada, que se congrega,
reforça, transforma e revisa em encontros científicos, publicações e ações em rede. A fim
de contribuir de alguma maneira no mapeamento da pesquisa etnomusicológica
contemporânea dos últimos anos no Brasil, optei por revisaro estado da arte, revisitando
artigos que anteriormente o fizeram, assim como listando alguns livros e revistas e
exemplos de coletivos de pesquisa em etnomusicologia no Brasil.
Panoramas sobre a etnomusicologia no Brasil
Encontram-se disponíveis, em anais de encontros científicos (ABET, Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música [ANPPOM], Associação Brasileira de
Antropologia [ABA], etc.) e periódicos científicos, uma série de artigos em que
pesquisadores nos apresentam o estado da arte do fazer etnomusicológico no Brasil nos
últimos anos, reunindo aspectos como a história da institucionalizaçãodo campo,
tendências metodológicas, dilemas, etc. Entre estes textos, destacamos os de Gerard
Béhague (1987), Angela Lühning (1991, 2014a, 2015), Elizabeth Travassos (2003), Carlos
Sandroni (2008), Rafael de Menezes Bastos (2004, 2014[2006]) e Richard Rautman(2015).
Abrem-se aqui parênteses necessários, para lembrar que outros autores se ocuparam
mais especificamente das interfaces da etnomusicologia com a educação musical, como
Lucas (1992, 1994, 1994-1995), Béhague (1997), Reginaldo Braga (1997, 2005), Luciana
Prass (1998, 2005), Stein (1998), Margareth Arroyo (1999, 2000), Sandroni (2000), Lucas,
Arroyo, Stein e Prass (2001), Travassos (2002), Luiz Ricardo Queiroz (2004, 2010),
Acácio Tadeu Piedade (2006), Samuel Araújo (2006b), Líliam Barros (2008), André Luiz
Pereira (2011) e AngelaLühning (2014b). Essa interlocução entre etnomusicologia e
educação musical vem-se mostrando um campo profícuo para ambas as áreas, contendo
um conjunto significativo de produções brasileiras em torno do tema. Recentemente esta
articulação foi tratada no VII ENABET (Florianópolis, 2015), em mesa redonda
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
organizada por Líliam Barros, assim como foi constituída esta interlocução em mesa
redonda organizada por Jusamara Souza e Luciana Prass, em 2016, no encerramento do
projeto Música na Escola (Porto Alegre).15Nestes espaços se colocaram questões sobre as
intersecções entre estudos sobre músicas tradicionais e suas formas de transmissão - em
seus contextos criativos, nas escolas diferenciadas e na educação básica em geral -, tendo
em vista não só o reconhecimento das especificidades destas práticas musicais e de seus
contextos e sua riqueza, expressa em múltiplas produções e demandas sócio-musicais, mas
considerando também a legislação já referida (as leis 10.639/2003 e 11.645/2008), assim
como a lei 11.769/2008, que trata da obrigatoriedade do ensino de Música nas escolas
brasileiras.
Retomando textos que promoveram panorama da etnomusicologia no Brasil:
Travassos (2003) realiza um balanço da área pela perspectiva de sua institucionalização em
Esboço de balanço da etnomusicologia no Brasil (2003, reapresentado na XV Reunião da
ANPPOM, 2005), pontuando processos importantes para isso: fundação da ABET em 2001
(durante a 36ª Conferência do International Council for Traditional Music-ICTM); I
ENABET em 2002, em Recife; criação de Laboratórios de Etnomusicologia (UFRJ e
UFMG); constituição de outros grupos de pesquisa em etnomusicologia (Florianópolis,
Porto Alegre, Salvador). Analisa a parcial superação do paradigma da estética do nacionalpopular e uma ampliação dos estudos no âmbito de música e mídia.
Em artigo de interesse para a área da etnomusicologia indígena, Música nas Terras
Baixas da América do Sul: estado da arte (escrito em 2006 como artigo de periódico e
publicado em coletânea de 2013), Menezes Bastos apresenta a produção de dissertações e
tese em etnologia indígena voltada às práticas sonoro-performáticas das terras baixas
ameríndias. Antes disso, em 2004, o autor publicou Etnomusicologia no Brasil: algumas
tendências hoje, em que propunha um panorama mais amplo, de pesquisas
enotmusicológicas naquele momento, atendo-se, por fim, aos resultados de seu grupo de
pesquisa, especialmente voltados aos campos sonoros ameríndios.
Sandroni (2008) descreve a institucionalização e a ampliação dos profissionais
etnomusicólogos no Brasil, destacando haver nos anos 1990 doze doutores identificados
com o campo da Etnomusicologia, formados no exterior (SANDRONI, 2008, p. 69). Os
15
Projeto de extensão (ForProf/MEC) voltado à formação continuada de professores em atuação na área de
música no Rio Grande do Sul.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
primeiros mestrados em música no país foram criados nos anos 1980 (assim como data
daquela década a fundação da ANPPOM, 1988) e os primeiros doutorados surgem do final
dos anos 1990. Localiza em 2000, durante o “Encontro Internacional de Músicas Africanas
e Indígenas no Brasil”, organizado por Rosângela Pereira de Tugny e Ruben de Queiroz
em Belo Horizonte, a maturidade de uma organização nacional da etnomusicologia,16
expressa pelo grande número de participantes e peloprotagonismo de mestres de cultura
popular nos debates. Esse encontro deu origem ao livro Músicas Africanas e Indígenas no
Brasil (TUGNY e QUEIROZ, 2006), anteriormente mencionado. Em abril de 2001, no
XIII Encontro da ANPPOM, em Belo Horizonte, um grupo de trabalho (“Etnomusicologia
no Brasil – Balanço e Perspectivas”) relançou o debate sobre a criação da associação. Em
julho do mesmo ano, no 36º Congresso do ICTM, no Rio de Janeiro, fez-se a assembleia de
fundação da ABET, contando com mais de 50 pessoas presentes, e definiu-se para o ano
seguinte (2002) a ocorrência do I ENABET, em Recife (SANDRONI, 2008: 71-72).
Depois deste primeiro encontro, foram realizados Encontros Nacionais da ABET
em 2004 (Salvador), 2006 (São Paulo), 2008 (Maceió), 2011 (Belém), 2013 (João Pessoa)
e 2015 (Florianópolis). Ocorreu também uma série de Encontros Regionais (ver a esse
respeito LÜHNING, 2014b; RAUTMAN, 2015).
Lühninget al. (2013) analisam a formação de etnomusicólogos no Brasil no âmbito
dos pós-graduações. Remete ao texto de Sandroni (2008), sobre a trajetória histórica da
institucionalização da entomusicologia no Brasil; assim como a Travassos (2003),
enfatizando que a autora interpreta que a formação e a atuação do etnomusicólogo não se
confinam às Instituições de Ensino Superior (IES) (LÜHNING et al., 2013: 2). Atualiza o
conjunto denúcleos com produção relevante em etnomusicologia. Além dos mencionados
por Travassos (Salvador, Florianópolis e Porto Alegre), propõe João Pessoa, Rio de
Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte como novos polos desta produção, até o ano de seu
artigo. Acrescentaria que, neste ínterim, outros polos vêm sendo constituídos, entre eles em
Belém, Manaus, Porto Seguro, Pelotas e Curitiba.
Em 2014, Lühning produziu mais dois artigos que colaboram para a configuração
deste panorama, atendo-se à trajetória histórica e a sua representação disciplinar no Brasil,
em relação ao desenvolvimento internacional da área, considerando nesta comparação
16
Previamente, Manuel Veiga e outros etnomusicólogos já haviam buscado esta organização, a partir da
experiência sistemática das Jornadas Nacionais de Etnomusicologia, bianuais, do final dos anos 1980 até
1993, na UFBA, organizadas por Veiga.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
aspectos como compromisso social, relação com políticas públicas e identidade cultural
(LÜHNING, 2014a: 1). Oferece uma aguçada interpretação das trajetórias históricas da
etnomusicologia na Alemanha e nos EUA, desde seu surgimento, no início do século XX,
ao que vem se tornando: áreas menos centrais e mais dialógicas com outras disciplinas como a educação musical e a sociologia da música, na Alemanha, e a antropologia e
diversas outras áreas, nos EUA (1914ª, p. 10-13). Passa então a refletir sobre a
etnomusicologia no Brasil e sua trajetória contrastante com a destes dois países em
especial, considerando que vimos construindo um caminho próprio (LÜHNING, 1991).
Desde o primeiro programa de pós-graduação nesta área, instituído na Universidade
Federal da Bahia (UFBA) em 1990, realizaram-se etnografias musicais majoritariamente
em contextos brasileiros, diferentemente dos países europeus e norte-americanos, que em
geral produziram conhecimento etnomusicológico a partir de contextos externos a seus
próprios países.17 A autora destaca também que a área dialoga com as demandas sociais e
reflete sobre os desafios desta sociedade complexa nas suas diferenças e contradições
(2014a: 15), constituindo-se como uma “etnomusicologia brasileira” (LÜHNING, 2014a).
Crítico preciso de uma série de limites que percebe na constituição da
etnomusicologia nos anos 1970-1980 no Brasil, Gerhard Béhague já atentava na década de
1980 para a necessidade de uma configuração no país de uma etnomusicologia com
características próprias, contrária a uma orientação etnocêntrica:
Nem o folclore musical brasileiro nem a incipiente etnomusicologia têm contribuído muito para a
teoria etnomusicológica em geral. Isso não quer dizer que a etnomusicologia brasileira deva seguir
cegamente as lições da etnomusicologia européia ou norte-americana, mas sim que os etnomusicólogos
brasileiros devem tentar formular os seus próprios objetivos teóricos, baseados na sua própria conceituação
da problemática de pesquisa e na sua finalidade, conforme vêm fazendo, por exemplo, Rafael José de
Menezes Bastos, José Jorge Carvalho, Elizabeth Travassos e Maria Elizabeth Lucas. A atitude ou posição
sócio-política do etnomusicólogo brasileiro ainda está por ser definida. O problema da hegemonia cultural e
do populismo cultural atuante deve ser enfrentado com a devida honestidade. Basta reafirmar aqui a
necessidade de abandonar de uma vez por todas a orientação etnocêntrica e as atitudes um tanto neocolonialistas que herdamos do velho folclore musical e da musicologia comparada. (BÉHAGUE, 1987: 200).
Por outro lado, a busca de uma internacionalização da etnomusicologia brasileira é
um esforço relevante, tanto em direção a interlocuções com países consolidados em termos
17
Semelhante constatação fazem Travassos (2003), Sandroni (2008), Barros et al. (2015) e Richard (2015).
No entanto, os motivos interpretados e as consequências aferidas pelos autores são bastante diferentes e por
vezes mesmo contrastantes, o que neste contexto não será abordado.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
de pesquisa em etnomusicologia, como em direção a outros países, especialmente na
América Latina, em que esta área está, como aqui, em construção. No âmbito da instituição
em que atuo como docente há dois grupos de pesquisa em etnomusicologia. Participo do
Grupo de Estudos Musicais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(GEM/UFRGS), coordenado pela Profa. Maria Elizabeth Lucas. Criado em 1991 e
registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq desde 1992, constitui-se como um
coletivo interdisciplinar de formação acadêmica e atuação profissional na área de
Etnomusicologia/Antropologia da Música, integrado por estudantes dos Programas de PósGraduação em Música e em Antropologia Social da UFRGS, cujas pesquisas tratam de
repertórios musicais tradicionais, populares e eruditos, a partir dos métodos e técnicas de
pesquisa arquivística e trabalho de campo etnográfico. Representando um esforço do GEM
de produção de conhecimento musical pela etnografia na América Latina, para além do
território nacional brasileiro,no sentido de desencadear interpretações sobre uma “cosmosônica” (STEIN, 2009) ameríndia, destaco os trabalhos recentemente defendidos de Ivan
Fritzen Andrade, Os cantos das copleras em Amaichadel Valle: performatividadevocosonora, corpos e sentido de lugar no noroeste argentino (2016), e de Juan Carlos Molano
Zuluaga, Damaciri y Jaury: laper formatividad sonora EmberáChamíenel resguardo
indígena de San Lorenzo. Caldas (Colombia) (2016), ambos com orientação de Maria
Elizabeth Lucas.
Outro coletivo de pesquisa em etnomusicologia do PPGMUS-UFRGS, o Núcleo de
Etnomusicologia da UFRGS, foi criado em 2014 e é coordenado por Reginaldo Gil Braga.
Visa a contribuir para o estudo do patrimônio musical brasileiro e latino-americano,
especialmente do chamado cone sul, a partir da pesquisa em torno de questões de memória
e patrimônio musical, bem como de estudos em música do Brasil e América Latina.
No mesmo sentido da abertura da universidade aos mestres tradicionais e seus
saberes e da internacionalização das pesquisas, em 2013 na UFRGS criou-se o coletivo
AbyaYala18: epistemologias ameríndias em rede, uma rede interdisciplinar de pesquisaextensão composta por professores e estudantes das áreas de Música,
Antropologia,
18
Termo utilizado pelo povo Kuna (Colômbia e Panamá) para referir-se ao território do continente, antes da
conquista europeia. Líderes indígenas de diferentes etnias defendem hoje o emprego desta expressão para
designar a América em declarações e documentos, argumentando que seu emprego remete à primazia da
identidade ancestral. Esta rede do ILEA foi aprovada em abril de 2014 no âmbito do edital do Instituto
Latino-americano de Estudos Avançados (ILEA)/PROPESQ /UFRGS (nº 001/2013, de 18 nov. 2013), e
deverá submeter novo projeto em 2017 ao ILEA, condição de sua continuidade neste âmbito.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Educação e Letras, cujo objetivo é divulgar as pesquisas e ações extensionistas das áreas
envolvidas e desenvolver novos projetos conjuntos, relacionados aos modos de estar
ameríndios, como apoio dos grupos de pesquisa aos quais estamos ligados. Esta rede
pretende, ainda, possibilitar a articulação de pesquisas que vêm sendo desenvolvidas em
instituições de ensino superior do Brasil, Uruguai, Colômbia, Peru e México; discutir
algumas relações entre os processos de aprendizagem e as sócio-mito-cosmo-ontologias
ameríndias; e criar um espaço institucional de interlocução entre vários especialistas
oriundos de diferentes áreas do conhecimento e filiados a diversas instituições.
Livros e revistas emetnomusicologia no Brasil
Os mecanismos de difusão da produção científica são muitos (ver a este respeito
GARCIA, 2013, p. 39). Livros organizados em torno do tema etnografia da música, com
exposição de pesquisas, interpretação de contextos etnomusicológicos e com reflexão
crítica sobre questões metodológicas, que tenham superado o mero nível descritivo, são
especialmente relevantes para estabelecer uma espécie de “zona franca de conhecimento”
(ibid.). Convocam leitores ao diálogo em uma “rede interpessoal e interinstitucional”,
“contribuindo para a sustentabilidade do conhecimento” (ibid.).
Por esta perspectiva podem ser pensados os livros coletâneas produzidos nos
últimos 10 anos no Brasil, como por exemplo: Música indígena e africana no Brasil
(TUGNY e QUEIROZ, 2006), Música Popular na América Latina (ULHÔA e OCHOA,
2005), Música em Debate (ARAÚJO; PAZ e CAMBRIA, 2008), Palavra Cantada
(MATOS et al., 2008) e Mixagens em Campo (LUCAS, 2013). Os quatro primeiros livros
foram organizados a partir de trabalhos apresentados em encontros científicos. Já esta
última publicação reúne artigos sobre pesquisas etnográficas (mestrado e doutorado) em
Etnomusicologia desenvolvidas no âmbito do GEM, nos Programas de Pós-Graduação de
Antropologia e de Música da UFRGS, sob orientação de Maria Elizabeth Lucas,
organizadora da publicação, sobre temas diversos, tais como a relação entre música e
território, gênero e música, práticas musicais urbanas edireitos autorais coletivos na música
indígena, entre outros.
A publicação de monografias etnomusicológicas tem aumentado consideravelmente
no Brasil. Em seu artigo de 2003, Travassos elege três livros etnomusicológicos que
considera modelares para se compreender o caminho da disciplina, por serem atuais
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
naquele momento: Feitiço decente, de Carlos Sandroni (2001); Os sons do Rosário, de
Glaura Lucas (2002); e Voices of the Magi, de Suzel Ana Reily (2003). Relembra
etnografias paradigmáticas, como A musicológica Kamayurá, de Rafael de Menezes Bastos
(1999[1978]); Ubatuba nos cantos das praias, de Kilza Setti (1985); e Why Suyá Sing, de
Anthony Seeger (1987), à época conhecido no Brasil na 1ª versão da edição inglesa. Sobre
este livro, cabe destacar que em 2004 foi lançada a 2ª edição em língua inglesa e, em 2015,
uma tradução atualizada do livro em Português (trad. Guilherme Werlang), uma iniciativa
muito importante para as áreas de etnomusicologia e de etnologia indígena, pois permitiu
que mais profissionais e estudantes tivessem acesso a este estudo pioneiro de um
pesquisador norte-americano que muito produziu no Brasil e em parceria com instituições
nacionais19.Outro livro etnomusicológico mencionado por Travassos é Contribuição bantu
na música popular brasileira, de Kazadi Wa Mukuna (2000). Destaco a publicação,
posterior a este artigo, de A música dos Caboclos nos candomblés baianos, de Sônia Chada
(2006, apresentada como tese de doutorado em 2001, pela UFBA, orientada por Manuel
Veiga), além de A festa da Jaguatirica. Uma partitura crítico-interpretativa, de Rafael
José de Menezes Bastos (2014, fruto de sua pesquisa de doutorado finalizada em 1990).
Estas duas obras ajudam a compor este panorama de pesquisas precursoras no
enraizamento da etnomusicologia no Brasil, publicadas em livro.
Atualmente uma nova geração de etnomusicólogos tem publicado suas etnografias,
contribuindo de forma ímpar com o amadurecimento da reflexão metodológica na área, a
partir da difusão mais ampla da produção de conhecimento sobre realidades sonoroperformáticas no Brasil e a partir da exposição depossibilidades investigativas,
comparativas, políticas e sistematizadoras no fazer etnomusicológico. Cito alguns autores e
seus trabalhos publicados: Deise Lucy OliveiraMontardo, Através do “Mbaraka”: música,
dança e xamanismo Guarani(2009); Rosângela Tugny, dois volumes de cantos traduzidos,
Para a tradução recente do livro de Seeger, Por que cantam os Kisêdjê – uma antropologia musical de um
povo amazônico (2015[1987]), foi feita uma resenha porPrass e Stein (2016) - El oído pensante, v. 4, n. 1.
(Disponível em: http://ppct.caicyt.gov.ar/index.php/oidopensante/issue/current. Acessado em: maio 2016).
Nonato (2015) também publicou uma resenha desta obra - Mana, v. 21, n. 3, Rio de Janeiro, dez. 2015.
(Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p675. Acessado em: maio 2016) e posicionase como conhecedor não só do texto lido, mas também de experiências performáticas vividas anos depois da
etnografia de Seegerentre os Kisêdjê, pois desenvolveu um reestudo entre os Kisêdjê. Isto lhe permitiu uma
interpretação comparativa que engrandece o campo da etnomusicologia. Não temos por objetivo falar
especialmente sobre reestudos, porém cabe destacar que se trata de processos investigativos importantes, que
demonstram a continuidade e a complexificação dos saberes musicais sistematizados, potencializando o
amadurecimento da área. Ver sobre reestudo: Sandroni (2005), Prass (2013[2009]) eIyanaga (2013).
19
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
realizados em colaboração com os especialistas Tikmũ’ũn, Yamĩyxop Xũnĩmyog Kutex xi
agtux xi hemexyog Kutex/Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex(2009a) e
Mogmokayog Kutex xi agtux/ Cantos e histórias do gavião-espírito (2009b); de Toninho
Maxakali e Eduardo Pires Rosse (Orgs.), Escuta e Poder na Estética Tikmũ’ũn Maxakali;
Kõmãyxop: Cantos Xamânicos Maxakali/Tikimũ’ũn(2011); Rosângela PereiraTugny,
Escuta e poder na estética Tikmu'un (2011); Werner Ewald, “Walkingand Singingand
Following the Song”: Musical Practice in the Acculturation of German Brazilian in South
Brazil – Ethnomusicological and Historical Perspectives (2011); Ivan Paolo de Paris
Fontanari,20 Os “DJs da Perifa”: música eletrônica, trajetórias e mediações culturais em
São Paulo (2013); LucianaPrass, Maçambiques, quicumbis e ensaios de promessa:
musicalidades quilombolas do sul do Brasil (2013); Luiz Fernando Hering Coelho, Os
músicos transeuntes: de palavras e coisas em torno de uns Batutas (2013); Reginaldo Gil
Braga, Tamboreiros de Nação: música e modernidade religiosa no Extremo Sul do Brasil
(2013); e Álvaro Neder, “Enquanto este novo trem atravessa o litoral”: música popular
urbana, latino-americanismo e conflitos sobre modernização em Mato Grosso do Sul
(2014). Essa produção publicada em livro vem-se ampliando de forma significativa no
Brasil, sendoestes apenas alguns de seus exemplos.
A profusão de etnografias etnomusicológicas descritivo-reflexivas certamente
também é responsável pelo amadurecimento da área. Talvez seja cedo para apontar quais
dessas etnografias musicais publicadas nos últimos anos que sejam especialmente basilares
para a constituição do campo, e é importante que sejam muitas bases, diversificadas, pois
os campos, as demandas e as perguntas de pesquisas também são de variadas ordens,
precisando dialogar com diferentes referenciais, conforme o caso, Há, ainda, as incontáveis
monografias etnomusicológicas finalizadas ou em curso que não foram publicadas, mas
estão disponíveis em diferentes repositórios digitais na internet. Pode-se afirmar sem receio
que essa diversificação, proliferação e descentralização da construção do conhecimento
etnomusicológico via etnografia é significativo de um saudável enriquecimento e
amadurecimento deste campo.
Assim como os livros, revistas especializadas e números especiais em
etnomusicologia nos últimos anos vêm colaborando na disseminação de etnografias
musicais e potencializando reflexões sobre questões metodológicas inerentes
20
às
A respeito deste último livro, consultar: http://www.editorasulina.com.br/img/sumarios/621.pdf.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
experiências etnográficas-intervencionistas no Brasil. Periódicos dedicados a artigos
etnomusicológicos nos apresentam a diversidade do pensamento brasileiro nesta área. Por
um lado, existem revistas especializadas, como a da ABET –Música e Cultura-
21
cujo
último volume até o momento foi o 9, número 1, de 2014.22 Por outro lado, revistas
científicas em áreas que investem no caráter interdisciplinar do fazer científico, em alguns
de seus números dedicaram-se à etnomusicologia, como, por exemplo, a Revista da USP
(n. 77, organizado por Francisco Costa, 2008);23Anthropológica, dossiê especial sobre
“etnomusicologia” (organizado por Carlos Sandroni, ano 10, v. 17, n. 1, 2006)24e outro
sobre “música e festa”, também com etnografias entomusicológicas(organizado por
Sandroni e Michael Iyanaga, 2015, v. 26, n. 1).25
Dos coletivos em etnomusicologia no Brasil
Conforme Sandroni:
Os etnomusicólogos brasileiros estiveram presentes nos grupos de pesquisa
repertoriados pelo CNPq desde o primeiro “censo” realizado pela instituição, em
2000. No site do CNPq, é possível fazer buscas textuais sobre os censos
realizados de dois em dois anos desde então. Os resultados para a palavra
“etnomusicologia”, considerando-se os campos “nome do grupo”, “nome da
linha de pesquisa” e “palavras-chave da linha de pesquisa”, mostram um
crescimento de 250% desde a fundação da Abet em 2001: 2000 – 4 grupos; 2002
– 7 grupos; 2004 – 11 grupos; 2006 – 14 grupos (SANDRONI, 2008, p. 72).
Em busca de atualização destas informações, nos deparamos com duas
possibilidades de acessar os Grupos de Pesquisa no site do CNPq: por “busca textual” e
por “consulta parametrizada” (“base corrente”). Considerando os mesmos campos
adotados por Sandroni, fazendo no site do CNPq “busca textual” no censo de 2008 com a
palavra-chave “etnomusicologia”, encontramos 15 grupos; e, em 2010, também,
15
21
Disponível em: http://musicaecultura.abetmusica.org.br/index.php/revista.Acessado em: maio 2016.
Disponível em: http://musicaecultura.abetmusica.org.br/index.php/revista/issue/current. Acessado em: maio
2016.
23
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revusp/issue/view/1078. Acessado em: maio 2016.
24
Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/revistaanthropologicas/index.php/revista/issue/view/13.
Acessado em: maio 2016.
25
Disponível
em:
http://www.revista.ufpe.br/revistaanthropologicas/index.php/revista/issue/view/55/showToc. Acessado em:
maio 2016.
22
39
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
grupos,26 indicando um leve incremento no número de grupos. Atribuímos este resultado
nos dados a um provável maior rigor na contagem dos censos mais atuais.
No entanto, pela “consulta parametrizada” no site do CNPq, adotando ainda os
mesmos campos e a mesma palavra-chave, os grupos de pesquisa totalizam 49, indicando,
nesta situação, um acréscimo considerável de grupos de pesquisa relacionados à
etnomusicologia
no
Brasil.
Estes
grupos
estão
vinculados
às
seguintes
instituições:27Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro,
Instituto Federal do Ceará-Reitoria, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, 2 grupos na
Universidade Anhembi Morumbi, Universidade de Caxias do Sul, 3 grupos na
Universidade de São Paulo, Universidade do Contestado, Universidade do Estado da
Bahia, Universidade do Estado de Santa Catarina, Universidade do Estado do Pará,
Universidade do Vale do Itajaí, 2 grupos na Universidade Estadual de Campinas,
Universidade Estadual de Londrina, Universidade Estadual do Ceará, Universidade
Estadual do Paraná, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Universidade
Federal da Bahia, Universidade Federal da Integração Latino-Americana, 2 grupos na
Universidade Federal da Paraíba, 2 grupos na Universidade de Brasília, Universidade
Federal de Goiás, 2 grupos na Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade
Federal de Pelotas, Universidade Federal de Pernambuco, Universidade Federal do Acre,
Universidade Federal do Amazonas, Universidade Federal do Cariri, Universidade Federal
do Ceará, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Federal do
Mato Grosso do Sul, 2 grupos na Universidade Federal do Pará, Universidade Federal do
Paraná, 2 grupos na Universidade Federal do Piauí, Universidade Federal do Recôncavo
Baiano, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 3 grupos na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Universidade Federal do Sul da Bahia, Universidade Federal do Tocantins,
Universidade Federal Fluminense.
Estes dados indicam que, nos últimos oito anos, o incremento na organização
institucional de pesquisadores em Etnomusicologia continua ocorrendo, ao mesmo tempo
em que, comparativamente, os dados censitários e os dados obtidos também no CNPq,
porém por consulta parametrizada (busca corrente), apresentam uma defasagem
de
26
Para acompanhar o censo atual, sobre grupos de pesquisa no Brasil, consultar:
http://lattes.cnpq.br/web/dgp/censo-atual/.
27
Há também a opção de se procurar por grupos de pesquisa registrados que estejam atualizados. Neste caso,
aparecem 32 grupos de pesquisa na mesma consulta parametrizada.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
informação, talvez relacionada à metodologia censitária e ao ritmo de atualização dos
dados pelos grupos, entre outros motivos.
Um polo que exemplifica o desenvolvimento em pesquisa etnomusicológica é do
estado do Pará. Líliam Barros, em Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará (2011),
descreve aspectos da constituição de grupos de pesquisa no estado do Pará e pesquisas
etnomusicológicas no âmbito daquele estado. Aprovado em 2008, o Programa de PósGraduação em Artes inaugurou o primeiro Mestrado em Artes na Amazônia, que congrega
três linguagens artísticas – Artes Visuais, Artes Cênicas e Música. Naquele momento, 90%
dos estudos estavam voltados a temáticas que atendessem a demandas dos grupos musicais
locais, porém respondendo a necessidades e interesses mais amplos, em nível nacional e
internacional (BARROS, 2011: 42). Apesar do interesse predominante nas pesquisas pelos
temas das músicas tradicionais dos povos originários amazônicos, assim como por aspectos
patrimoniais e pedagógicos vinculados, os estudos têm uma grande abrangência e
diversidade, como se percebe tomando como exemplos as teses dos pesquisadores
paraenses Líliam Barros, Repertórios Musicais em Trânsito: música e identidade indígenas
em São Gabriel da Cachoeira, AM (2006), e Paulo Murilo Guerreiro do Amaral, Estigma e
Cosmopolitismo na constituição de uma música popular urbana de periferia: etnografia
da produção do tecnobrega em Belém do Pará (2009). Barros, Severiano e Chada realizam
em 2015 uma revisão da produção etnomusicológica na Universidade Federal do Pará
(UFPA), no artigo Pesquisa e o Laboratório de Etnomusicologia da Universidade Federal
do Pará: uma análise interpretativa. Além dos grupos de pesquisa Grupo de Estudos e
Pesquisas em Música (GEPEM) e Grupo de Estudos sobre Música na Amazônia
(GEMAM), da Universidade do Estado do Pará (UEPA), e do Grupo de Pesquisa Música e
Identidade na Amazônia (GPMIA), da UFPA, criou-se em 2011 o Grupo de Estudos sobre
Música no Pará (GEMPA), também disposto a “produzir conhecimento sobre as práticas
musicais existentes no Pará e na Amazônia, à luz da etnomusicologia” (BARROS, 2015: 23), contribuindo para uma crescente produção de teses e dissertações no viés
etnomusicológico no Pará. Os autores destacam entre os aspectos marcantes desta
produção a abordagem de temáticas regionais, a busca de compreensão da diversidade de
práticas musicais paraenses, o caráter interdisciplinar de suas pesquisas e a ênfase na
etnomusicologia colaborativa como busca de consolidação de trocas de saberes
interculturais (idem: 3). Recentemente foi criado o Laboratório de Etnomusicologia da
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
UFPA (LabEtno), pelo qual se pretende contribuir ainda mais para o aprofundamento das
pesquisas em andamento e para estimular novos estudantes à pesquisa etnomusicológica.
Conforme Barros et al., o LabEtno se junta aos já existentes Laboratório de
Etnomusicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG, criado em 2000), da Universidade Federal do Sul da
Bahia (UFSB) e o Laboratório de Etnomusicologia Elizabeth Travassos da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) (BARROS et al.: 4).
Considerações finais
Este artigo pretendeu apresentar alguns temas pertinentes para se pensar a
entomusicologia contemporânea no Brasil, levantando questões metodológicas e dilemas,
apontando percursos da área, produções escritas publicadas e exemplos de redes e grupos
de pesquisa na área e em campos interdisciplinares.
Outros temas foram tangenciados, sem o aprofundamento com que merecerão ser
tratados em outras oportunidades: educação musical, projetos sociais em Música,
patrimonialização, registros sonoros e audiovisuais e materiais didático-pedagógicosetnomusicológicos28.
Em síntese, creio que a etnomusicologia na contemporaneidade parece continuar se
institucionalizando, mas também se inclina a abrir seus núcleos institucionalizados à
sociedade, criando opções metodológicas que implicam a escuta à sociedade e o
enfrentamento de seus dilemas, no exercício cotidiano do diálogo - dentro dos coletivos de
pesquisa, em redes interdisciplinaresinter e intrainstitucionais.
Conforme Lühning (2014a) a etnomusicologia deveria buscar temas que abordem a
composição da sociedade brasileira, a inserção de segmentos sociais, identidades, questões
de gênero, políticas educacionais e culturais, direitos coletivos de propriedade intelectual
ou conhecimentos tradicionais e do uso de tecnologias (2014a: 18), e também a educação
28
Penso ser urgente o debate não só sobre a produção, mas também sobre o acompanhamento das formas de
produção, divulgação e utilização dos materiais etnomusicológicos no ensino escolar e não escolar. Este tema
é instigante e, por exemplo, Lühning vem refletindo sobre ele: “Especialmente os professores das escolas
públicas, atuando na área de música ou não, precisam de materiais fundamentados para trabalhar as questões
das identidades locais e regionais, em vez de manter a ideia teórica de uma cultura nacional única que na
prática nunca existiu. Estes materiais deveriam ser fruto da participação maciça dos pesquisadores na assim
chamada divulgação científica como compromisso social e ético das universidades, mantidas com dinheiro
público, materiais que não necessariamente precisam ser didáticos.” (LÜHNING, 2014ª, p. 20).
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musical (2014a: 19) e, principalmente, que tenham relevância para um conjunto de pessoas
na sociedade. “Seguindo esta lógica, não seria mais o ineditismo do ponto de vista
acadêmico de um tema que o torna relevante, mas a sua necessidade política e até urgência
social/ cultural que, pelo menos, devem ser cogitadas como aspectos importantes na
delimitação dos possíveis temas” (ibid.). Nesta perspectiva, temas emergentes seriam:
temas que lidam com tradições ou expressões musicais em constante diálogo
com as pessoas envolvidas nelas, o que pode ocorrer em contextos urbanos
comunitários em situação de vulnerabilidade social, grupos minoritários, como
grupos indígenas, quilombolas ou ribeirinhas, processos educacionais escolares
ou não escolares, em contextos geográficos e sociais periféricos ou não, questões
de transmissão e processamento de informações através dos mais diversos meios,
novas formas e processos criativos, hoje tão relacionados com novas tecnologias
e processos midiáticos, entre muitos outros possíveis temas. (LÜHNING, 2014a:
19).
Com base na interdisciplinaridade e na transdisciplinaridade, parece-nos necessário
eurgente traçarcaminhos para contemplar - pela chave da sonoridade e da performance, a
diversidade de etnoteorias, etnometodologias (STEIN, 1998), sociocosmo-ontologias dos
mundos sonoros - os conflitos e as interrogações suscitadas nos encontros de alguns destes
mundos. Esse esforço de ouvir e criar novas relações poderá ajudar a constituição de
universidades ampliadas por diferentes concepções de ciência e cosmos, em que diferentes
corpos, performances e processos de construção da pessoa se tornem pensáveis, na
educação superior e na educação básica, assim como em diferentes contextos.
Conseguiremos assim evitar a violência, nas palavras de Vherá Poty (comunicação oral,
2012), da “puni-diversidade”? Ou seja, conseguiremos que a universidade deixe de ser um
espaço exclusivo - centrado em formas específicas de fazer ciência e de se relacionar entre
as pessoas, com o mundo - para que se torne uma pluriversidade, aberta à sociedade,
inclusiva, crítica e auto-crítica? Para isso, é importante que não só os etnomusicólogos
estranhos a seus contextos de trabalho de campo estudem músicas tradicionais e outras,
mas também que os cursos e os grupos de pesquisa se abram para que, cada vez mais, os
atores sociais familiarizados com os temas e terrenos da pesquisa etnográfica musical os
estudem. Tomando emprestada uma afirmação de Eduardo Viveiros de Castro acerca da
vocação da antropologia, penso que, se há algo que cabe de direito à etnomusicologia, não
é certamente a tarefa de explicar o mundo de outrem, mas a de multiplicar nosso mundo
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 11).
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
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pontos de escuta. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O nativo relativo”. Mana, v. 8, n. 1, p. 113-148,
2002.
ZULUAGA, Juan Carlos Molano. Damaciri y Jaury: la performatividad sonora Emberá
Chamí en el resguardo indígena de San Lorenzo. Caldas (Colombia). Dissertação
(Mestrado em Música) – PPGMUS, UFRGS, 2016.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
MESA REDONDA 1
MESA REDONDA 1: REFLEXÕES SOBRE GÊNERO,
RELAÇÕES ETNICORACIAIS E SEXUALIDADES
NA ETNOMUSICOLOGIA BRASILEIRA E ESTUDOS
MUSICAIS DA AMAZÕNIA
Coordenação – Dra. Lívia Negrão (UEPA)
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
“O jambu treme!”: estudos, fechações etnomusicológicas e a(r)tivismos
musicais pioneiros e necessários da Amazônia
Laila Rosa
Universidade Federal da Bahia - [email protected]
Resumo: Neste artigo sigo pelos caminhos de um breve panorama das epistemologias feministas
descoloniais no campo da etnomusicologia brasileira aos “a(r)tivismos, estudos pioneiros e necessários da
Amazônia”. Para trilhar esta rota, inicio situando a minha própria fala enquanto cantautora pernambucana,
pesquisadora e professora feminista, para então considerar as atuações, pesquisas e a(r)tivismos de jovens
pesquisadorxs do Pará e do Maranhão que, de perspectivas, lugares e identidades distintas, vêm se
debruçando sobre o campo dos estudos sobre mulheres, feminismos, feminismo negro, gênero, raça e
sexualidade em música popular, antropologia e na etnomusicologia, especificamente. A ideia é dialogar com
estas perspectivas que são recentes e pioneiras, reiterando a relevância das mesmas para os campos dos
estudos e a(r)tivismos da etnomusicologia brasileira e dos estudos sobre música popular.
Palavras-chave: Etnomusicologia Brasileira. Estudos sobre música da Amazônia. Epistemologias
feministas.
Situando a minha fala: das reflexões sobre gênero, relações étnico-raciais e
sexualidades na etnomusicologia brasileira e nos estudos musicais da Amazônia
“Se você quiser saber
o que a jamburana faz...
O tremor do jambu
É gostoso demais.
O jambu treme...
Vai descendo,
Vem subindo,
Chega até o céu da boca, boca fica muito louca
Com o tremor do jambu...
O jambu treme...”
Dona Onete
Gostaria de iniciar junto ao canto de Dona Onete, cantora e compositora paraense
para dizer que sim, é preciso tremer e fazer tremer como o jambu.29 Tremer o que ainda
“Planta cultivada na região norte do país, onde é utilizada como condimento culinário amazônico,
principalmente para ao preparar o famoso “molho-de-tucupi”. As folhas e inflorescência são empregadas na
medicina caseira na região norte do país, para tratamento de males da boca e garganta, além de tuberculose e
litíase pulmonar. As folhas e flores quando mastigadas dão uma sensação de formigamento nos lábios e na
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
está por ser tremido, o que está de certo modo conformado, seja por não identificação ou
aprofundamento, percepção teórica e política de que falar sobre categorias estruturantes
das desigualdades sociorraciais e de gênero na sociedade brasileira tais quais gênero, raça e
etnia, sexualidades, geração, classe social, dentre outras, numa perspectiva interseccional, é
diluir ou excluir a questão da desigualdade da classe social. É preciso compreender que
estas categorias articuladas auxiliam na compreensão inclusive do contexto de análise do
etnocídio, trazendo a questão do feminicídio para a pauta, por exemplo, como aponta Rita
Segato (2014).
Por quê tremer? Porque infelizmente ainda se nutre uma perspectiva de que falar
sobre gênero e feminismos é se engajar em “especificidades” ou “isolamentos” políticos
que excluem os homens, também subalternos e que, portanto, não contemplaria o “todo”.
Outra crítica comum é de que, ao falarmos sobre gênero e feminismos no campo da
etnomusicologia, estaríamos ocidentalizando culturas tradicionais que não se pautam por
parâmetros ocidentais. Importante lembrar que os movimentos feministas e de mulheres
indígenas, negras, trans, lésbicas, bissexuais, trabalhadoras rurais e tantas várias sempre
foram estigmatizados por esta perspectiva de que há uma suposta “setorização” na luta
feminista, antirracista e LGBTTI. O oposto, no entanto, não é devidamente observado, de
que historicamente as mulheres e outras “minorias” são sujeitxs invisíveis (SCOTT, 1992 e
1989; BUTLER, 2004; CURIEL, 2010; LOURO, 1997).
A questão da invisibilização recai sobre a materialidade do musical, como bem
pontuam Ana Maria Ochoa (2006) e Talitha Couto Moreira (2012), pois a mesma implica
pensar sobre as materialidades/corpos/vivências/conhecimentos que são heterogêneos e
desiguais no campo da etnomusicologia brasileira, quais as questões colocadas,
hierarquizadas ou invisibilizadas, quais as interlocuções construídas ou negligenciadas,
firmando aí a importância de reconhecer com os movimentos sociais, incluindo os
movimentos de mulheres, feministas e LGBTTI.
língua devido sua ação anestésica local, sendo por isso usada para dor-de-dente como anestésico e como
estimulante do apetite.” Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jambu.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Considerando o campo da “Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos
disciplinares e interdisciplinares”, tema deste importante Encontro Regional da Associação
Brasileira de Etnomusicologia – ABET e I Encontro de Estudos Musicais da Amazônia, no
âmbito da universidade pública e de qualidade, no caso, a Universidade Federal do Pará, é
fundamental ainda trazer a perspectiva da formação em etnomusicologia.
Tomando como ponto de partida a formação do primeiro Programa de PósGraduação em Música- Etnomusicologia em 1990, na Universidade Federal da Bahia, que
formou parte considerável de etnomusicólogxs que se tornaram pesquisadorxs e docentes
pelas universidades brasileiras, formando também novos programas, e também, a criação
da ABET em 2001 e a realização do I Encontro Nacional que ocorreu em Recife, PE, em
2002,30 como importante espaço de encontro, produção de conhecimento, formação e
atuação política na área.
Ainda sobre a dimensão da formação, é importante trazer os termos da
dialogicidade freireana, engajada e participativa em contextos comunitários propostas e
vivenciadas de formas diferenciadas por Samuel Araújo e o grupo Musicultura (2006),
Angela Lühning (2006), Rosângela Tugny (2006), José Jorge de Carvalho e o projeto
Encontro de Saberes debatido por Laize Guazina (2015), dentre outrxs que pensam a
perspectiva de engajamento, interlocução e ética, como Angela Lühning e eu discutimos
também no texto sobre invisibilidades e inaudibilidades de sujeitxs musicais que estejam
fora das hegemonias diversas (LÜHNING e ROSA, 2010).
Contudo, penso ser fundamental enquanto pesquisadora, pessoa e educadora, trazer
a pedagogia feminista, lembrando, por exemplo, Nísia Floresta, autora potiguar que mais
de 100 anos antes de Paulo Freire, já defendia a igualdade de gênero no acesso à educação,
e infelizmente é pouco conhecida ou lembrada no campo da educação e educação
musical.31 Na mesma linha mais de cem anos depois, e com a mesma atualidade, trazendo
30
Sobre o perfil institucional da etnomusicologia no Brasil ver Carlos Sandroni (2008). Faço questão de
mencionar ainda atuação politizada de interlocução com os grupos/sujeitxs construída, da qual me considero
diretamente formada pelo meu ex-orientador e amigo querido, o Prof. Dr. e compositor Carlos Sandroni,
durante 3 anos consecutivos na iniciação científica enquanto graduanda do curso de licenciatura em música
da UFPE, do Núcleo de Etnomusicologia e da Associação Respeita Januário, fundada em 1999. A mesma
articulava encontros, apresentações, oficinas, dentre outras ações sempre em parceria com grupos tradicionais
populares pernambucanos, tais quais, diversos grupos de cavalo-marinho, coco e maracatu, dentre outros.
31
O livro Direitos das mulheres e injustiça dos homens foi publicado por Dionísia Gonçalves Pinto (18101885), mais conhecida como Nísia Floresta, em 1832. Tal obra foi considerada uma tradução livre de A
Vindication of the rights of woman de Mary Wollstonecraft (1759-1797), autora inglesa que se tornou o
principal nome em defesa dos direitos das mulheres no século XIX.” (CAMPOI, 2011, p. 1).
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
a perspectiva da interseccionalidade, a pensadora negra estadunidense bell hooks
32
(2013)
propõe uma educação feminista e antirracista da transgressão e do entusiasmo, com a qual,
particularmente me identifico e procuro trabalhar cotidianamente nas minhas aulas e
demais espaços pelos quais transito, inclusive nos contextos comunitários de Salvador.
É neste sentido de pedagogia feminista antirracista sugerido por bell hooks (2013) e
Nísia Floresta (CAMPOI, 2011) e também de uma etnomusicologia feminista e da
diferença defendida por Debora Wong (2006) que, desde 2012, venho trabalhando com a
Feminaria Musical: grupo de pesquisa e experimentos sonoros (ROSA et alli, 2013), que
integra a linha de pesquisa Gênero, Arte e Cultura do Núcleo de Estudos Interdisciplinares
da Mulher – NEIM/UFBA, histórico Núcleo feminista que desde seu surgimento em 1984,
associa a produção de conhecimento à práxis feminista articulada com os movimentos
sociais e de mulheres.
É importante compreender que nem toda etnomusicologia engajada é feminista,
mas que toda etnomusicologia feminista é engajada, pois não se compreende uma práxis
feminista que não seja igualmente politizada voltada com os dois pés para fora do âmbito
da universidade e que retorne para ela, juntamente com xs protagonistas historicamente
invisibilizadas inclusive por vários dos estudos etnomusicológicos, que são as mulheres
negras, indígenas, trans, lésbicas, bissexuais, deficientes, velhas, bem como as crianças.
Claro que todo movimento contempla fissuras, conflitos e heterogeneidades e por esta
razão, falamos em feminismos no plural, mas sim, é preciso tremer e encarar as
importantes articulações, interlocuções e protagonismos.
Neste sentido, para seguir adiante, proponho aqui relembrar o breve panorama das
epistemologias feministas descoloniais no campo da etnomusicologia brasileira que tratei
em outro momento (ROSA, SOBRAL e CARDOSO, 2015), trazendo para dialogar com os
nomes como os de Rita Laura Segato (2014, 2002, 1999, 1995 e 1984), Maria Ignez Cruz
Mello (2005) e a pioneira coletânea Estudos de Gênero, Corpo e Música organizada pelas
musicólogas e compositoras feministas Isabel Nogueira e Susan Campos Fonseca (2013).
A partir deste breve panorama, seguimos finalmente para os “a(r)tivismos, estudos
musicais pioneiros, *fechativos* e necessários da Amazônia”. Para trilhar esta rota,
considero as atuações, pesquisas e ativismos de jovens pesquisadorxs do Pará e Maranhão
32
bell hooks é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins e é adotado pela autora propositalmente com as iniciais
em minúsculo, como denúncia da invisibilidade das mulheres negras na sociedade.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
que, de perspectivas, lugares e identidades distintos, vêm se debruçando sobre o campo dos
estudos sobre mulheres, feminismos, feminismo negro, gênero, raça e sexualidade em
música popular e na etnomusicologia, especificamente. A ideia é dialogar com estas
perspectivas que são recentes e pioneiras, reiterando a relevância das mesmas para os
campos dos estudos e a(r)tivismos da etnomusicologia brasileira e dos estudos sobre
música popular.
Como não tenho uma inserção no campo dos estudos musicais da Amazônia, fiquei
pensando sobre qual seria a minha contribuição, desde este lugar “outsider” para este
encontro e este artigo, especificamente, e então decidi contextualizar um pouco sobre a
nossa proposta de simpósio temático “Reflexões sobre gênero, relações étnico-raciais e
sexualidades na etnomusicologia brasileira e nos estudos musicais da Amazônia” no
presente encontro.
O mesmo surgiu de um esboço de desejo ainda em Havana, Cuba, durante o
encontro da seção Latino-Americana da Associação Internacional dos Estudos Sobre
Música Popular (IASPM), que aconteceu em março desde ano de 2016. Foi um encontro
histórico para todxs nós que, igualmente esquerdistas, sonhávamos um dia visitar Cuba, e
nos encontramos todxs ali emocionadxs pela primeira vez.33 Neste encontro, tive a alegria
de coordenar o GT “Gênero, corpo e pós-colonialidade na música popular,” juntamente
com Francisca Helena Marques (UFRB), Jorgete Lago (UEPA e UFBA) e Bernardo
Mesquita (UEA). A partir dali, num grupo maior, falamos sobre o desejo de trocar
figurinhas de pesquisa, projetos e interlocuções, e também de discutir sobre a importância
do debate de gênero no campo da etnomusicologia brasileira e dos estudos amazônicos,
fortalecendo a nossa própria interlocução em âmbito Norte-Nordeste.
Neste encontro de Belém, a ideia do simpósio é de articular as nossas diferentes
abordagens e experiências sobre aspectos teóricos das epistemologias feministas e dos
estudos de gênero e queer numa perspectiva interseccional e descolonial, e suas
contribuições para o campo da etnomusicologia e dos estudos amazônicos, a partir do
compartilhamento de pesquisas e vivências com distintas temáticas que vêm sendo
realizadas neste contexto. O simpósio nasce do encontro entre pesquisadorxs e artistas
33
Prontamente formamos um grupo Norte-Nordeste, compreendendo pesquisadorxs e professorxs de
Manaus, Belém, Salvador, Maceió e Recife: além da minha pessoa, Alice Alves (UFPE), Andrey Faro
(UEPA), Bernardo Mesquita (UEA), Francisca Marques (UFRB), Jorgete Lago (UEPA/UFBA), Maria Aida
(UFPE), Nadir Nóbrega (UFAL), Paulo Murilo Amaral (UEPA) e Tony Leão Costa (UEPA).
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
inseridxs no campo da etnomusicologia e da antropologia, que têm se debruçado sobre o
tema no Brasil e especificamente, no contexto amazônico. Para esta empreitada nos
articulamos conforme nossas atuações e produções, onde eu abordo uma parte mais teórica
desta perspectiva com referenciais importantes da etnomusicologia e fora dela, e um pouco
sobre a experiência com a Feminaria Musical: grupo de pesquisas e experimentos sonoros,
grupo que integra a linha de pesquisa Gênero, Arte e Cultura, do Núcleo de Estudos
Interdisciplinares da Mulher, UFBA, do qual faço parte como pesquisadora desde o final
de 2010.
Entre interlocuções, fechações, militâncias e a(r)tivismos
Premissa feminista 1:
O pessoal é político
Premissa feminista 2:
Nem toda política é feminista, mas todo feminismo é político
Premissa feminista 3:
Nem toda etnomusicologia engajada é feminista,
mas toda etnomusicologia feminista é engajada
Para tremer com “o sabor do jambu”, seguindo a receita da maravilhosa Dona
Onete, nada melhor que o conceito de fechação para traduzir as experiências, identidades e
corpos de sujeitxs, movimentos, práticas musicais e performáticas que permanecem
invisibilizadas, bem como, as produções de conhecimento dissidentes que procuram pensar
música e a etnomusicologia brasileira a partir destas “outras” experiências, para dialogar
com a perspectiva de alteridades históricas problematizada por Rita Segato (2002).
Quando trago o termo fechação articulado aos a(r)tivismos, feminismos, e
engajamentos diversos, proponho que, ao tratar desta perspectiva dissidente, alcançamos
outros olhares e estratégias para pensar sobre os movimentos sociais, os protagonismos de
artistas como Gaby Amarantos, das mestras da cultura popular e/ou das travestis na
quadrilhas juninas beleneses, a questão da formação em etnomusicologia e/ou
pesquisa/atuação em música em geral, da educação popular e indígena, etc., perspectivas
que estarão presentes no nosso GT, que, de modo diferentes e tratando de contextos
diferentes, abordam protagonismos que são historicamente periféricos. Acredito que, a
partir desta perspectiva dissidente, é possível pensar também em estratégias de ação,
intervenção e interlocução.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Um exemplo bacana da perspectiva da fechação enquanto dissidência
epistemológica e política foi a realização do I Encontro sobre Gênero e Música da
Amazônia, organizado pelo compositor, baterista e Prof. Dr. Bernardo Paiva Mesquita, que
aconteceu na Universidade do Estado do Amazonas, nos dias 1 e 2 de setembro de 2015,
em Manaus, que considero um marco pioneiro e fundamental dos estudos musicais da
Amazônia e do Brasil. Tive a honra de ser convidada como musicista e palestrante da mesa
de abertura “Música e gênero no contemporâneo: panorama e desafios”, juntamente com a
Profa Dra Iraildes Caldas, da área da antropologia da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM), que tratou e o próprio Bernardo Mesquita que recentemente tem se debruçado
sobre os “trânsitos, crimes e prazeres” na história da música popular da Amazônia,
problematizando o meretrício como importante espaço de trânsito de música popular, onde
emerge o protagonismo não somente dos músicos que tocavam nestes espaços, como das
próprias prostitutas que consumiam discos de música popular e atuavam como importantes
mediadoras no consumo e trânsito desta produção fonográfica que à época era de acesso
restrito.
Uma outra articulação importante e dissidente no âmbito de Belém do Pará se
refere ao projeto Encontro de Saberes, coordenado pelo Prof. Dr. José Jorge de Carvalho,
que conta com a participação dxs colegas da UEPA e UFPA, Jorgete Lago, Liliam Barros,
Sonia Chada, Paulo Murilo Amaral. Contudo, foi o olhar feminista e negro da Profa Ms.
Jorgete Lago que constatou e questionou a desproporcionalidade entre a presença de
mestres e mestras neste evento de referência e na produção de conhecimento sobre o
universo da cultura popular paraense, questionamento que a pesquisadora trouxe para sua
tese de doutorado em construção sobre a invisibilidade das mestras no cenário da música
popular paraense, o que contradiz a realidade de seus protagonismos desde sempre. Na
qualidade de doutoranda do PPGMUS- UFBA, Jorgete é também tutora e colaboradora da
Feminaria Musical, tendo participado de diversas de suas intervenções e performances
poético-musicais em Salvador e também em Recife, durante o encontro da Redor – Rede
Feminista Norte e Nordeste, em 2014, bem como, tem produzido textos interessantes sobre
a sua pesquisa (LAGO, 2015a e b; LAGO, 2014; LAGO e ROSA, 2014).
Outra
dissidência teórica e política que tem reverberado não somente na sua pesquisa de
doutorado, como na sua inserção no campo da etnomusicologia brasileira e,
especificamente da Associação Brasileira de Etnomusicologia – ABET, é que, ao retornar a
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Belém, Jorgete vem se articulando enquanto colaboradora de grupos de referência sobre
estudos de gênero no Estado, como o Nós Mulheres – grupo “Pela equidade de gênero e
étnico-racial, coordenado pela Profa Dra Mônica Conrado, na UFPA34 e o GEPEM –
Grupo de Estudos e Pesquisas “Eneida de Moraes”35, grupo igualmente e referência no
Estado do Pará no campo dos estudos sobre gênero. Menciono esta articulação para
problematizar como precisamos sair do campo teórico da música para podermos nos
apropriar de ferramentas epistemológicas que deem conta da complexidade das relações de
gênero, étnico-raciais, das sexualidades dissidentes e outros marcadores que também estão
presentes no campo do musical, mas que ainda são pouco abordados.
O Prof. Ms. Rafael Noleto, por sua vez, tem se engajada nas dissidências de gênero,
raça e sexualidades em música, dentro do campo da Antropologia, onde tem mestrado e
está cursando o doutorado sob orientação da Profa Dra Laura Moutinho, na USP. Contudo,
Rafael, que é maranhense radicado em Belém por vários anos, sendo atualmente professor
da Universidade Federal do Tocantins – UFT, tem formação em Licenciatura em Música
pela UFPA, sendo também cantor e compositor. Desde o seu mestrado que conclui em
2013 com a dissertação “Poderosas, divinas e maravilhosas: o imaginário e a sociabilidade
homossexual masculina construídos em torno das cantoras de MPB” (UFPA), que nos
brinda com um título altamente fechativo, vem produzindo e publicando importantes
trabalhos sobre o tema (NOLETO, 2013). Atualmente o mesmo nos brinda com uma nova
fechação que é seu projeto de doutorado sobre as travestis nas festas juninas "Brilham
estrelas de São João!": gênero, sexualidade e raça nas festas juninas de Belém – Pará,
projeto pioneiro que tem se dedicado a analisar o protagonismo feminino, homossexual,
travesti e transgênero nas festas juninas do Estado do Pará.
34
O Grupo Nós mulheres é coordenado pela professora Mônica Conrado, da Faculdade de Ciências Sociais,
e nasceu em 2009, a partir do Observatório da Lei Maria da Penha. Com o objetivo de discutir questões que
se tencionam em torno da temática das relações de gênero e raça, o Grupo agrega pesquisadores de diversas
áreas, como Direito, Psicologia e Ciências Sociais, que desenvolvem seus trabalhos baseados nessa
perspectiva. O Grupo tem o papel de articulador estratégico e propulsor de iniciativas que reinscrevam a
cor/raça e etnia como componente simbólico que institui sujeitos sociais inter-relacionados com gênero,
classe e sexualidade. Ele possui a meta de fornecer instrumentos sociais por meio de pesquisa, extensão e
ações estratégicas para formação de uma rede com as universidades, instituições públicas, ONGs, órgãos e
entidades comunitárias nacionais e internacionais sob a tematização das relações sociais e de gênero.
Disponível em: http://www.organizacaonosmulheres.com.br/nosmulheres.php
35
O Gepem é constituído por docentes, discentes, técnico-administrativos, pesquisadores e profissionais da
UFPA e de outras instituições públicas e privadas, e dos movimentos de mulheres interessados na temática
mulher e gênero. O Gepem tem uma coordenação colegiada exercida pelas professoras doutoras Maria Luzia
Miranda Álvares (FACS/IFCH/UFPA) e Eunice Ferreira dos Santos (ICED/UFPA). Disponível em:
https://bibliotecaqueer.wordpress.com/2012/03/02/grupo-de-estudos-e-pesquisa-eneida-de-moraes-gepemufpa/
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
O Prof. Dr. Paulo Murilo do Amaral, por outro lado, além de ter trazido para o foco
o tecnobrega paraense, gênero musical que, por si só, é estigmatizado e periférico como
bem problematiza em sua tese de doutorado, traz ainda o protagonismo de Gaby
Amarantos, cantora negra paraense (AMARAL, 2009). Vale ressaltar que Paulo guarda em
seu repertório ressalvas em tom de crítica sobre ser paraense e estudar tecnobrega, “ao
invés” de se dedicar ao estudo das músicas indígenas tradicionais do Estado, sendo o
primeiro considerado como algo “menor” ou simplesmente música de “má qualidade”,
discussão que ele tece brilhantemente na sua tese de doutorado. Sob a orientação da Profa
Dra Maria Elizabeth Lucas, a tese de doutorado “Estigma e cosmopolitismo na
constituição de uma música popular urbana de periferia: etnografia da produção do
Tecnobrega Belém do Pará” tornou-se referência importante no campo dos estudos sobre
música popular no Brasil, a partir de uma perspectiva da etnomusicologia.
Por fim, compartilho um pouco dos a(r)tivismos nossos com a Feminaria Musical:
grupo de pesquisa e experimentos sonoros, enquanto um espaço de produção de
conhecimento que existe há 5 anos, de formação, a partir dos parâmetros da
etnomusicologia engajada e da pedagogia feminista, pois temos construídos um espaço
coletivo e colaborativo onde trabalhamos nossos corpos, trocamos experiências e saberes,
realizamos oficinas, acompanhamos ações diversas em interlocução com os movimentos
sociais, sobretudo de mulheres e feministas. Para citar algumas importantes ações temos o
ato do 17 de maio, dia internacional contra a homofobia, realizado em 2014, que contou
com a parceria do coletivo Kiu! Pela diversidade sexual, da UFBA, que reuniu cerca de
100 pessoas, incluindo a participação de Viviane Vergueiro, intelectual e ativista
transfeminista negra (FERNANDES, ROSA, SOBRAL e FIUZA, 2015 e 2014;
VERGUEIRO, 2014); o ato contra a mortalidade materna, em parceria com o Odara,
Organização de Mulheres Negras da Bahia, também em 2014; ato contra a redução da
maioridade penal e 20 de novembro de 2015, com o histórico Grupo de Mulheres do Alto
das Pombas, bairro periférico de Salvador, com quem temos cultivado uma importante
interlocução que tem se estendido para o campo institucional de estágio docente de
licenciatura em música na Escola Municipal Nossa Senhora de Fátima, recentemente
compartilhado pela formanda Priscila Graziela Mascarenhas, sob minha (des)orientação,
onde estamos trabalhando com práticas musicais e encontros sobre temas diversos como
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Lei Maria da Penha, Zika, genocídio da população negra, saúde da mulher negra, etc. com
turmas de EJA e com o próprio GRUMAP (MASCARENHAS, 2016), dentre outras ações.
Assumindo o campo da etnomusicologia brasileira, bem como, dos estudos musicais
amazônicos, tema deste encontro na querida Belém do Pará, não vejo como ignorar o
diálogo com a pauta de gênero, sexualidades, relações étnico-raciais e outros marcadores
sociais da diferença tanto nas nossas produções de conhecimento sobre música, como na
forma com as quais pensamos projetos e interlocuções. A invisibilização é também uma
forma de violência traduzida por um silenciamento epistêmico já denunciado pela
feminista indiana Gayatri Spivak (2010). Então, é mesmo preciso tremer, como sugere
Dona Onete “toda se querendo”, como se diz no Pará, mas que esse
tremer jamais seja de
medo ou de invisibilização.
“E o jambu treme...”
Tremo por acreditar.
Tremo por desejar.
Tremo para colorir
e ser colorida pelas cores do arco-íris da diversidade.
Tremo dissidente.
Tremo poética.
Tremo bruxa.
Tremo feminista.
Tremo fechativa.
Tremo Fora do Objeto.
Tremo com o jambu de Dona Onete
“Toda se querendo”
Para não Temer jamais.
ForaTemer.
Referências
AMARAL, Paulo Murilo do. “Estigma e cosmopolitismo na constituição de uma música
popular urbana de periferia: etnografia da produção do Tecnobrega Belém do Pará”. Tese
(Doutorado em Pós-Graduação em Música Mestrado e Doutorado UFRGS) - Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2009.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Caipira, mulata, simpatia e gay: reflexões sobre gênero, raça e
sexualidade nos concursos de miss das festas juninas em Belém – Pará.
Rafael da Silva Noleto
Universidade Federal do Tocantins - [email protected]
Resumo: Anualmente, a cidade de Belém (PA) se torna palco para as apresentações de inúmeros grupos de
quadrilhas juninas, que compõem a programação das festas de São João realizadas na cidade. Estas festas são
marcadas por diversos concursos de dança (financiados pelos poderes públicos ou promovidos por lideranças
e/ou associações culturais das periferias de Belém) que visam escolher as melhores apresentações
coreográficas de quadrilhas durante o período das festas juninas. Paralelamente aos concursos de quadrilhas,
ocorrem também os concursos de miss, que estão subdivididas nas categorias Miss Caipira, Miss Mulata (ou
Miss Morena Cheirosa), Miss Simpatia e Miss Gay (ou Miss Mix). As “misses”, como são popularmente
conhecidas, são dançarinas que possuem status diferenciado dentro de uma quadrilha junina, pois são as
principais representantes destes grupos coreográficos e, por este motivo, disputam títulos de reconhecimento
que estão diretamente relacionados à avaliação de sua beleza, seu figurino e suas habilidades em dança.
Antes de cada quadrilha se apresentar para um júri especializado, as “misses” que a representam dançam e
investem na conquista de um título correspondente à sua categoria. Entretanto, a Miss Gay é a única que não
dança caracterizada como tal junto com sua respectiva quadrilha, mas possui um concurso específico para sua
categoria realizado em data diferenciada. Este trabalho visa problematizar questões relativas a gênero, raça e
sexualidade que estão imbricadas nesses concursos de miss, atentando para como a articulação de marcadores
sociais da diferença está diretamente relacionada com a lógica de produção desses concursos.
Palavras-Chave: Festas Juninas. Gênero. Raça. Sexualidade. Concursos de beleza.
Este paper visa ser um texto de compartilhamento de dados etnográficos coletados
em trabalho de campo recém concluído na cidade de Belém (Pará) acerca dos concursos
juninos realizados no período festivo genericamente denominado como “São João” ou
“quadra junina”. De caráter menos teórico e mais descritivo, este texto traz para a
discussão alguns pontos centrais, percebidos no contexto destes concursos festivos, que
podem iluminar a discussão que pretendo propor em minha tese – pesquisa que vem sendo
desenvolvida sob orientação da Prof.ª Dr.ª Laura Moutinho –, pautada sobretudo na
problematização de como certos marcadores sociais da diferença (raça, gênero,
sexualidade, geração), articulados entre si, podem engendrar uma lógica própria para os
concursos de dança e de beleza que analiso.
Antes de adentrar o tópico mais específico deste texto (os concursos de miss), será
necessário explicar a dinâmica geral dos concursos aos quais me refiro. Os concursos
juninos ocorrem anualmente em Belém (e no interior do Estado) durante todo o mês de
junho, resvalando, às vezes, para as primeiras semanas de julho. Contudo, sua preparação
acontece no período entre o final do carnaval e o término do mês de maio. Neste caso, meu
trabalho de campo em 2014 compreendeu exatamente este período de preparação para os
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
concursos e, obviamente, a temporada de concursos em si, estendendo-se até o início de
agosto, quando acompanhei alguns preparativos para um concurso denominado como
“Rainha do Folclore” (que não compõe os certames do São João, mas que a eles está
relacionado).
Os concursos juninos são divididos em cinco principais categorias, a saber: os
concursos de quadrilha, os concursos de quadrilhas mirins, os concursos de miss, os
concursos de miss mirim e, finalmente, os concursos de miss gay (destinados a apenas
maiores de 18 anos). Além destes três concursos, há a realização dos concursos de Miss
Terceira Idade, destinados a mulheres acima de 60 anos, mas que não são realizados na
grande maioria dos eventos que são promovidos por lideranças culturais nos bairros
periféricos de Belém, destacando-se como um certame promovido pelos poderes públicos
estadual e municipal. O recorte empírico deste trabalho toma como ponto de partida para a
reflexão os concursos adultos de quadrilha, de miss e de miss gay, fazendo uso de dados
relativos aos concursos mirins e de terceira idade apenas quando (e se for) necessário.
Os concursos adultos de quadrilha consistem em uma disputa coreográfica coletiva
entre grupos de dança com cerca de 20 pares (divididos pela identidade de gênero
“feminina” ou “masculina”), que dançam uma coreografia de aproximadamente 20
minutos e lutam pela conquista do título de “melhor quadrilha” nos mais diversos certames
realizados nas periferias de Belém (e região metropolitana) e em cidades do interior do
Pará. Entretanto, antes que cada quadrilha se apresente, há a apresentação de suas três
principais representantes: a miss caipira, miss mulata (ou miss morena cheirosa)36 e a miss
simpatia. A apresentação das misses consiste em um concurso paralelo, que ocorre de
maneira independente ao concurso de quadrilhas, no qual essas mulheres disputam o título
de “melhor miss” referente à sua categoria específica, dançando uma coreografia que,
em
36
Há um debate (que será apenas resumido e apontado aqui nesta nota de rodapé), motivado pelos
regulamentos do concurso oficial promovido pela Prefeitura de Belém, que diz respeito à nomenclatura
“Miss Mulata” e Miss Morena Cheirosa”. Em 2014, a Prefeitura de Belém resolveu abandonar a categoria
“Miss Mulata” e adotar a designação “Morena Cheirosa” com o intuito de aproximar o qualificador racial
“morena” da designação usualmente mobilizada para descrever Belém como cidade morena e cheirosa,
referindo-se, respectivamente, ao caráter “mestiço” que configura a formação racial da população da cidade e
aos cheiros dos frutos e temperos que integram os ingredientes da culinária local, tais como a manga (Belém
também é considerada como cidade das mangueiras) e o tucupi (caldo aromático extraído da mandioca e
utilizado para receitas como tacacá e arroz paraense). Por outro lado, de acordo com informações coletadas
em entrevistas realizadas com Alice Miranda e Ruth Botelho (principais organizadoras dos concursos
promovidos pela prefeitura), a categoria “Morena Cheirosa” sublinha o caráter mais paraense e amazônico
pretendido para esta categoria de miss, afastando-se do caráter mais “negro” e “africano”, utilizados em anos
anteriores nas coreografias dessas misses e percebidos, pela organização dos concursos da prefeitura, como
não amazônicos.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
geral, possui 2 minutos de duração e rivalizando com as misses das outras quadrilhas.
Ressalta-se que, dentro desta configuração, as misses (caipira, mulata e simpatia) de uma
mesma quadrilha não competem entre si, pelo contrário, muitas vezes criam relações de
reciprocidade e solidariedade, facilitadas pelo fato de que possuem status individualmente
diferenciado e reconhecido no interior de sua quadrilha.
Não obstante, há uma quarta categoria de miss para a qual existe um concurso
específico, realizado em data à parte, e desvinculado dos concursos de quadrilha: a miss
gay ou miss mix. Em geral, trata-se de um homem homossexual, travesti, transgênero,
mulher transexual que figura em uma quadrilha como brincante (ou seja, um dos
componentes da quadrilha) e que, no dia do concurso de Miss Gay ou Mix, disputa o título
de melhor miss em sua categoria, representando a quadrilha para a qual dança ou com a
qual possui algum tipo de vínculo.
Após expor, muito resumidamente, o contexto empírico de minha pesquisa,
compartilho alguns pontos teóricos centrais que devem orientar as reflexões de minha tese
de doutorado. É necessário mencionar que este trabalho, inserido nos campos teóricos da
antropologia e dos estudos de gênero e sexualidade, identifica-se com pesquisas recémpublicadas (ou ainda em processo de publicação)37 cujo foco é a discussão de como a
articulação de conceitos relativos aos marcadores sociais da diferença (gênero, raça, classe,
sexualidade e geração) pode engendrar ideais performativos de masculinidade e
feminilidade em concursos de beleza (e de performance). Assim, afino-me à perspectiva de
observação de autoras como Marcia Ochoa (2014), que, analisando concursos de beleza
(feminina e transexual) na Venezuela, percebe como esses certames forjam um ideal de
feminilidade nacional, que é projetado em um contexto transnacional com o auxílio de um
grande aparato midiático. Para Ochoa (2014), estes concursos, de alguma forma, projetam
as feminilidades que produzem num imaginário urbano e contemporâneo. Em parte, estas
imagens do feminino figuram como representações de certa identidade nacional
venezuelana na contemporaneidade.
37
Refiro-me à recente publicação do trabalho de Marcia Ochoa (2014) sobre como os concursos de miss e de
beleza “trans” na Venezuela produzem feminilidades atreladas a certa noção de modernidade e identidade
nacional. Destaco também a pesquisa de Silvana Nascimento (2013), ainda não publicada e realizada no
estado da Paraíba (Brasil), acerca dos circuitos gays e transexuais da prostituição, dos concursos de beleza e
da articulação política através do Movimento LGBT. Partindo da perspectiva da antropologia urbana, a
autora avalia estes três circuitos (e, particularmente, destaco os concursos de beleza gay e trans) como
importantes veículos propulsores da circulação dessa população LGBT pelos contextos urbanos brasileiros e
internacionais.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Devo mencionar ainda que esta análise pressupõe que os concursos de dança e
beleza aqui analisados produzem o significado próprio daquilo que é considerado belo a
partir de parâmetros e avaliações estéticas que sobressaltam, empiricamente, a articulação
de marcadores sociais da diferença tais como gênero, raça, geração, classe social e
sexualidade. Inspiro-me em uma vasta literatura dos estudos de gênero e sexualidade, com
diversas discussões estabelecidas por autoras tais como Bederman (1996), Brah (2006
[1996]), McClintock (2010 [1995]), Stolke (2006 [2003]), Moutinho (2004a; 2004b; 2006)
e Piscitelli (2008), que problematizaram o uso desses marcadores como eixos de produção
da diferença utilizados como vetores que engendram certas hierarquias sociais. Assim, é
possível dizer que esta análise visa contemplar uma abordagem interseccional dos
marcadores sociais da diferença com o intuito de problematizar como certas estruturas de
poder são engendradas para produzir matrizes de desigualdade social. Afino-me, então, à
perspectiva de que “estruturas de classe, racismo, gênero e sexualidade não podem ser
tratadas como ‘variáveis independentes’ porque a opressão de cada uma está inscrita dentro
da outra – é constituída pela outra e é constitutiva dela” (Brah, 2006 [1996]: 351). É
importante notar, neste caso, como as categorias “raça”, “gênero”, “sexualidade” e “classe”
estão articuladas entre si, existem em relação a si e através dessa relação – ainda que de
maneira contraditória, às vezes conflitante e sem uma articulação de perfeito encaixe entre
elas (McClintock 2010 [1995]:19).
Expostos os parâmetros teóricos que balizam este paper, insiro agora nesta
discussão, alguns dados etnográficos para reflexão. Há dois marcadores de diferença que se
sobressaem nestes concursos: gênero e raça. Se, de um lado, há um grande divisor
generificado que opõe as categorias “mulher” e “gay/mix”, por outro lado, estes concursos
demarcam o lugar racial das misses, estabelecendo a categoria “mulata” como destinada às
mulheres mais “negras” ou com coloração de pele consideradas “escuras”, “morenas” ou
“mestiças”. A partir disso, percebe-se que, em geral (mas não invariavelmente), as misses
caipira e simpatia são visivelmente mais “brancas” ou “claras”. Embora haja casos
esporádicos e pontuais em que candidatas “negras” ou “morenas” tenham disputado os
títulos de miss caipira ou simpatia, a ocorrência maior consiste em que as candidatas mais
“brancas” sejam alocadas nestas categorias.
Vale ressaltar que, entre meus interlocutores, há um entendimento de que existem
diferenças hierárquicas entre as três categorias femininas de miss, sendo a miss caipira a
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
mulher mais importante da quadrilha, que carrega a temática de seu grupo em sua
coreografia e figurinos. No segundo posto hierárquico há a miss mulata (ou morena
cheirosa), que, de acordo com meus interlocutores, carrega consigo a “força” da quadrilha.
Em última posição, há a miss simpatia que tem a função de representar a graciosidade de
seu grupo coreográfico.
Do ponto de vista coreográfico, coletei em campo algumas informações sobre a
percepção de meus interlocutores quanto às diferenças entre as categorias femininas de
miss. Nesta perspectiva nativa, é possível notar que espera-se da miss caipira uma
apresentação coreograficamente mais complexa, que reflita o seu status maior dentro do
grupo e que “traduza” os elementos temáticos propostos para a coreografia de sua
quadrilha como um todo. Em geral, estas misses são vistas como melhores conhecedoras
de técnicas de dança e são mais cobradas para inovarem em suas performances a cada ano.
Por sua vez, espera-se que a miss mulata apresente-se com uma coreografia “forte”, que
represente supostos atributos da raça “negra” como “energia” e sensualidade. Muitos de
meus interlocutores afirmam que estas misses são mais “brutas” e dançam coreografias
com movimentos percebidos como mais “pesados”. Possuem a incumbência de “levantar”
a torcida das plateias, mostrando a garra de sua quadrilha. Finalmente, as misses da
categoria simpatia configuram-se como um estágio inicial para a carreira de miss.
Executam movimentos considerados mais “leves” e menos complexos, devem “encantar” o
corpo de jurados que analisa os concursos e tem a missão de empreender uma sedução
pueril em relação ao público presente, exibindo sorrisos e movimentos que são,
simultaneamente, maliciosos e infantis. Dentre todas as misses, a miss simpatia é, quase
sempre, a mais jovem.
Com relação à categoria gay/mix, percebi, em campo, que as expectativas que se
mantém em relação aos sujeitos homossexuais, transgêneros, travestis ou transexuais que
disputam os títulos de miss são bem próximas das exigências coreográficas que são
direcionadas para as miss mulatas. De acordo com a maioria dos discursos que pude ouvir
e registrar em campo, meus interlocutores afirmam que as miss gay/mix possuem uma
“força” que pode ser comparada ou equiparada às miss mulata, o que masculiniza a mulher
“negra” (ou não “branca”) e não reconhece a feminilidade das misses gays/mix.
Ressalto ainda o fato de que muitos sujeitos homossexuais e/ou trans do universo
quadrilheiro são coreógrafos de inúmeras misses (mulheres ou gays/mix) que dançam nos
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
concursos juninos, estabelecendo com elas uma relação dialógica através da qual ensinam
e aprendem atributos de feminilidade, mobilizando, inclusive, marcadores raciais como
elementos que reforçam a beleza, a densidade e a sensualidade de suas coreografias.
Assim, a feminilidade é adquirida e aprimorada coreograficamente a partir de complexos
movimentos de dança, que conferem a estas misses a possibilidade de se constituírem
como mulheres.
Outro aspecto relevante é o fato de como os concursos de miss produzem noções de
“raça” e “etnicidade”. Na opinião da maioria das candidatas (miss mulata e gay/mix) com
quem dialoguei, “os jurados gostam do que é diferente, do que é exótico, das coisas que
representam a nossa cultura paraense”, conforme avaliação de Nandinha Castro38. De fato,
esta percepção parece fazer sentido quando se verifica que grande parte dessas candidatas
lança mão de coreografias e figurinos temáticos vinculados a certos ideais de brasilidade e,
mais especificamente, de amazoneidade, que seriam condizentes, inclusive, com suas peles
mais “morenas”, “negras” ou ainda percebida como peles com uma coloração “indígena”.
Neste sentido, se os jurados e a comissão organizadora desses concursos indicam certa
preferência em relação às candidatas que exploram tais ideais de brasilidade e
amazoneidade, as noções de “raça” e “etnicidade” são propositalmente mobilizadas pelas
candidatas em suas fantasias. Aproveitando o fato de que esses concursos não limitam a
confecção das fantasias nem a elaboração de coreografias à temática junina, as candidatas
exploram amplas possibilidades de figurinos e danças com motivações étnicas, religiosas e
raciais, tornando visível a afinidade (ou até o pertencimento) dessas candidatas às
chamadas religiões de matriz africana, a identificação com os rituais de pajelança e a
valorização dos seres “encantados” da Amazônia39.
É importante lembrar que essa mobilização de aspectos racialmente “negros”,
“mestiços” e “caboclos” acaba por forjar certo poder libidinal nos corpos e performances
das candidatas aos concursos juninos de beleza gay e “trans”, sustentado pela ideia de
“mistura”, simbolicamente representada tanto pela ambiguidade das identidades de gênero
e de sexualidade das candidatas quanto pelo fator de miscigenação racial que seus corpos
38
Entrevistada em 2013.
Para reflexões mais detalhadas acerca das formas amazônicas de expressão religiosa (especialmente
relativas ao catolicismo popular), dos rituais de pajelança e dos seres “encantados” da Amazônia, indico a
leitura de Maués (1995; 2005).
39
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ostentam quando performatizam em cena40. Se as candidatas veem como um diferencial a
adoção de uma fantasia cujo tema é representativo de algo “exótico”, “amazônico” e
racialmente marcado como “moreno”, “negro” ou genericamente “indígena”, tal diferença
acaba se diluindo no conjunto de fantasias que carregam, igualmente, temáticas cujos
conteúdos são semelhantes. Assim, os jurados ficam diante de uma gama de candidatas que
optam pelo “exotismo”, em certa medida, racializado, aumentando o grau de concorrência
entre elas. Neste sentido, além do investimento em aspectos culturais entendidos como
“amazônicos”, “indígenas” ou “exóticos”, as candidatas investem ainda na representação
ressignificada e modernizadora de uma identidade “cabocla”, uma categoria classificatória
móvel, que traduz um amálgama entre mestiçagem e etnicidade vinculado ao estereótipo
do atavismo, alocando sujeitos que não podem ser classificados racialmente nem como
“negros” nem como “indígenas” e muito menos como um grupo étnico específico41.
Dessa maneira, é possível inferir que os concursos de beleza e de performance
cênica, em seus mais variados formatos, operam ativamente na construção de parâmetros
definidores do belo a partir da articulação de concepções próprias relacionadas aos
marcadores sociais da diferença tais como gênero, raça, sexualidade, geração
e
etnicidade42. Sendo assim, creio que os concursos de beleza em geral – e não apenas
aqueles voltados à população LGBT – constituem-se como campos empíricos férteis para
reflexões teóricas produtivas. Os concursos de beleza configuram-se como importantes
fontes expressivas de valores sociais e convenções morais vigentes, ao menos no plano
ideal, construindo os parâmetros da beleza a partir de noções especificamente produzidas
Em artigo que problematiza a categoria racial e de gênero “mulata”, Mariza Corrêa (1996) discorre acerca
de como essa classificação de cor é pensada num imaginário social como um elemento que sexualiza a raça e
racializa o gênero.
41
Inspiro-me em Rodrigues (2006: 126-127) quando analisa o uso da classificação “caboclo” como uma
categoria contextual, ligada ao estereótipo do suposto “atraso” social/cultural/intelectual das populações
amazônicas. De acordo com a autora, “a categoria caboclo não é apenas uma categoria relacional, mas antes
de tudo, intersticial, intervalar, categoria mediadora entre o dentro e o fora, o interior e o exterior, e não pode
ser apreendida em termos de descontinuidades e rupturas, conceituais ou práticas, entre um espaço regional e
um tempo colonial, e os espaços e tempos pós-coloniais, translocais ou transnacionais. Mas, ainda que,
conceitualmente, imprecisa e politicamente não-situada, deslocada entre fronteiras e margens, exatamente por
isso pode permitir melhor o exercício de auto-reflexividade sobre o contexto amazônico e a constituição de
seus sujeitos” (Rodrigues, 2006: 128). Em publicação mais recente, Castro (2013) problematiza a categoria
“caboclo” como uma anti-identidade, isto é, uma identidade denegada que foi forjada a partir de discursos
materializadores de uma violência simbólica que institui os caboclos como sujeitos sociais na Amazônia.
42
Embora o foco deste artigo não esteja voltado, em primeira instância, para a análise da conexão entre raça,
beleza e mercado, vale destacar algumas reflexões da antropologia brasileira, que se movem na direção de
compreender como aspectos raciais podem ser ressignificados dentro de um mercado de consumo voltado
para negros (Fry, 2002) ou mobilizados de maneira politizada em concursos de beleza negra (Pinho, 2004).
40
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
(e constantemente reinventadas) em torno de hierarquias sociais definidas por raça, classe,
gênero, sexualidade e geração.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
STOLKE, Verena. O enigma das interseções: classe, ‘raça’, sexo, sexualidade. A formação
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n. 14, 15-42, 2006 [2003].
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Ensaio sobre relações de gênero em Gaby Amarantos, a “rainha do
tecnobrega”
Paulo Murilo Guerreiro do Amaral
Universidade do Estado do Pará – [email protected]
Resumo: A escritura deste paper resulta de um convite que recebi para fazer uma fala sobre relações entre
gênero e música no II Encontro ABET Norte da Associação Brasileira de Etnomusicologia e no II Colóquio
Amazônico de Etnomusicologia. Para tanto, retomei pesquisa de doutorado em que realizei uma etnografia da
produção musical do tecnobrega, na cidade de Belém do Pará, Norte do Brasil, Amazônia Oriental. Naquela
ocasião, entre 2005 e 2009, o trabalho foi desenvolvido com vários atores sociais da cena musical popular
local, entre cantores, produtores e DJs, incluindo a cantora Gaby Amarantos. Passagens de sua trajetória
artística e profissional, entre outras memórias de pesquisa, conduziram-me a constatações e percepções atuais
sobre mudanças musicais e culturais da artista e da música em si. Em termos de gênero, essas mudanças
encerram ressignificações socioculturais, estético-visuais, de etnia e de estilo de vida relacionadas a temas de
maior abrangência sobre o tecnobrega, tais como o fato de ser uma música considerada de periferia e de
“mau gosto” estético. Embora o propósito seja, stricto sensu, o de comentar relações de gênero, as referências
teóricas retomam, por um lado, orientações clássicas da Etnomusicologia, com Bruno Nettl e Alan Merriam,
bem como recorrem, por outro, a etnomusicólogos de safras mais recentes, a exemplo de Thomas Turino e
Samuel Araújo, que discutem, respectivamente, sobre cosmopolitismo e a noção de brega no Brasil.
Palavras-chave: Gaby Amarantos. Mudança musical. Gênero (em música)
1. Preâmbulo
A escritura deste texto decorreu de um retorno meu, cerca de onze anos, ao tempo
em que ingressei no doutorado em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). A pesquisa que ali se configurava, de alinhamento etnomusicológico, investigou
o tecnobrega, um saber-fazer musical popular estigmatizado pelo “mau-gosto” estético e
emergido de regiões periféricas da cidade de Belém, Capital do Estado do Pará, na
Amazônia oriental (GUERREIRO DO AMARAL, 2009). Naquele contexto aproximei-me
da cantora Gabriela do Amaral Santos, uma de minhas principais interlocutoras.
O tecnobrega constitui uma modalidade de música dançante, voltada a públicos
jovens, e resulta do atrelamento de timbres, melodias e ritmos de danças locais e
translocais a matrizes percussivas eletrônicas. Distante de gravadoras convencionais, o
tecnobrega vincula-se ao trabalho de produtores musicais em estúdios amadores.
Chamados de DJs, esses produtores lançam mão, em seus processos criativos, de
procedimentos como a mixagem, a masterização, o sampling e o looping, realizados por
meio de programas de computador baixados por eles da internet, gratuitamente. Também
se encontra distante das rádios convencionais, já que as mídias privilegiadas de divulgação
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
dos hits de tecnobrega são as chamadas “festas de aparelhagens”, espécies de radiodifusoras independentes que circulam em diferentes localidades de Belém, especialmente
em bairros de periferia e em interiores do Pará. As festas acontecem em grandes galpões e
reúnem milhares de pessoas (GUERREIRO DO AMARAL, 2009).
O “mau gosto” atribuído ao tecnobrega deve-se, por um lado, aos seus vínculos
socioculturais e históricos, e, por outro, à produção musical em si. Em relação ao primeiro
aspecto, o tecnobrega corresponde a uma techno-versão regional contemporânea do brega
(idem; ibidem), que, por sua vez, teria se estabelecido em diversas partes do Brasil, a partir
da década de 1960, como música excessivamente romântica e de “má qualidade”
relacionada ao gosto estético e ao estilo de vida de classes populares (ARAÚJO, 1987). O
tecnobrega despontou na cena musical popular de Belém por volta de 2003, quando da
criação da Banda Tecnoshow, coordenada por Gabriela. Já no que diz respeito ao segundo
aspecto, o tecnobrega “transgride” um modus operandis mais canônico da produção
musical, na medida em que pode lançar mão de sintetizadores de timbres e de
diferenciados recursos aplicados à música digital. Idem, porque o tempo do produtor não
corresponde ao tempo de que necessita um compositor para garantir, ao seu produto,
resultante de inspiração e amadurecimento estético-musical, o devido valor artístico.43 Ou
ainda, entre outros elementos, em razão de que o produtor não anseia pela garantia de seus
direitos autorais, e sim pela ampla divulgação das músicas que produz – no caso dos
direitos, vale acrescentar que parte significativa da produção do tecnobrega corresponde a
versões, na “batida” do tecnobrega, de músicas autorais, motivo pelo qual a questão do
copyright passa-lhe ao largo.
Ao longo da etnografia que desenvolvi no universo de domínio do tecnobrega em
quatro anos de pesquisa, fui percebendo o alto poder gerativo, de transformação, ou mesmo
de desaparecimento desta música. Após esse tempo, e com o seu passar no lapso de vários
anos após a finalização da tese, passei a percebê-lo menos como gênero musical e bem
43
Não há intenção de estabelecer qualquer distinção formal entre o compositor e o produtor musical, a não
ser pela razão didática de evidenciar, neste texto, duas variáveis que emolduram contundentes
hierarquizações nos âmbitos dos saberes e das práticas musicais: a linhagem do criador musical e os tipos de
música que produz. Em relação à linhagem, entende-se, normalmente, que o compositor é aquele que
conhece partitura, que cria dentro de formas musicais, que segue regras de estruturação secularmente
estabelecidas pela literatura especializada, e ainda, que necessita de inspiração e da generosidade do tempo
em favor da elaboração de uma obra autoral. Já o produtor musical, em especial o de música eletrônica e
computacional, não conhece, normalmente, as ferramentas de que necessita o compositor. Em outras
palavras, em virtude de não lançar mão, em seu processo criativo, de conhecimentos e de práticas musicais
canônicas, o produtor, não raramente, é vítima de preconceito, independente da qualidade de sua produção.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
mais como comportamento. Um comportamento que sempre urgiu para mudanças, e
mudanças vertiginosas; que não desperdiçou muitos arrebóis para alavancar a visibilidade
nacional de Gaby Amarantos: a mesma Gabriela, cantora de bairro que soltou a voz, pela
primeira vez, em uma igreja do bairro do Jurunas, em Belém, e que, agora, divide espaço
na grande mídia televisiva com ícones da música brasileira, alguns deles antigos arautos da
MPB e outros que estão na “crista da onda”; ainda, e muito importante para este pequeno
ensaio, um comportamento não apenas da música, mas também da mulher, cabocla,
nortista, de periferia, rotulada de “brega” e desviante de um padrão estético-visual
globalizado que confere inflexível valor à magreza. A respeito de algumas questões de
gênero relacionadas à trajetória de Gaby Amarantos é que me detenho aqui.
2. Fazendo Gênero ao Redor: engajamento e ativismo
Deixo as teorias sobre gênero em música para os colegas especialistas. Limito-me,
neste item, e de modo breve, em invocar temas magnos que vêm se destacando,
contundentemente, no Brasil pós-afastamento da Presidente Dilma Rousseff, em
importantes agendas sociais e políticas sobre o papel da mulher na sociedade, direitos
humanos, civis e das minorias, entre outras que menciono a seguir.
Além da sociedade em geral, a Academia e as entidades de classe, por meio de seus
Sindicatos e Associações, têm participado dessas agendas de diferentes maneiras:
manifestando-se nas ruas, preenchendo abaixo-assinados, elaborando e fazendo circular
notas de apoio ou de repúdio, difundindo informações em redes sociais globais, publicando
etc.
As reuniões científicas, por exemplo, cumprem essencial papel político e social, ao
lançar olhares qualificados sobre problemas que, ao contrário do que muitos pensam,
dizem respeito a um país inteiro e a todos os seus habitantes. Para exemplificar, cito a
violência contra homossexuais, o preconceito racial, a intolerância religiosa, a xenofobia,
as rotulações culturais e comportamentais, entre outros que encontram fértil território de
debate em inúmeros fóruns sobre gênero que acontecem no Brasil e mundo afora.
Menciono dois casos: a Redor e o Fazendo Gênero.
Fundada em 1992, a Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre
a Mulher e Relações de Gênero (Redor) acaba de realizar, de 15 a 17 de junho de 2016, a
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
sua décima nona edição, na Universidade Federal de Sergipe. A Redor reúne pesquisadores
interessados em examinar temas importantes para os estudos feministas e de gênero, tais
como políticas públicas, inclusão e educação, violência, identidade, meio-ambiente,
relações étnico-raciais, direitos, diversidade sexual e religiosidade. Possui mais de trinta
organismos de estudo e pesquisa associados, dentre os quais o Núcleo de Estudos
Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no
Nordeste do Brasil, e o Grupo de Estudos e Pesquisas “Eneida de Moraes” sobre a Mulher
e Relações de Gênero (Gepem), da Universidade Federal do Pará (UFPA), na região Norte.
O Seminário Internacional Fazendo Gênero, que acontece desde 1994, em Florianópolis,
ruma para a sua décima primeira edição, em 2017. Sua diversificada paleta temática
encampa matérias de relevância capital para as ciências humanas e sociais, tais como
políticas de identidade, cultura, corpo e sexualidade; globalização; relações de poder entre
grandes projetos da modernidade e desafios pós-coloniais; preconceitos e estereótipos;
etnicidade; cibercultura; comunicação, consumo e turismo; trajetórias,
narrativas e memórias; entre outros.
Com maior ou menor intensidade, e dependendo do contexto, vários desses
problemas, temas ou matérias entrelaçam-se à história de vida e à trajetória artísticoprofissional de Gaby Amarantos, a partir das quais faço alguns recortes mediante algumas
considerações sobre gênero.
3. A partir do Jurunas: recortes da trajetória da “rainha do tecnobrega”
Gaby Amarantos viveu em Belém, desde o seu nascimento, em 1979, até mais ou
menos o final dos anos 2000, quando se mudou para a região sudeste do Brasil. Morava
com os pais, Seu Conrado e Dona Elza (falecida em 2015), e com os seus dois irmãos,
Gabriel e Gabriele. A casa era grande, de dois andares, no coração do bairro do Jurunas, na
periferia da cidade. Havia lugar para todos, inclusive para visitantes como eu, que
acompanhei muitos ensaios da Tecnoshow, ali mesmo, na casa da família Santos. Após o
nascimento de Davi, filho de Gaby, Seu Conrado construiu mais um andar, onde o menino
passou os primeiros anos de vida. A cantora e o pai já não mais residem na casa.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Desde tenra idade, Gaby já ouvia música nas esquinas jurunenses44, incluindo o
brega. Nas brincadeiras com os colegas de bairro, ela era quem determinava o papel de
cada um dos integrantes de sua equipe. Um pouco mais velha, começou a desenhar roupas,
liderou um grupo de quadrilha, e cantou, pela primeira vez, na paróquia de Santa
Terezinha, próxima de sua casa.
Sua inserção na música brega antecedeu outra experiência musical que teve, em
bares de Belém, cantando MPB. Em uma das entrevistas que me concedeu (GUERREIRO
DO AMARAL, 2006), justificou que o fato de pertencer ao universo do brega não queria
dizer que ela cantava apenas brega. Mencionou que gostava de Billie Holiday, Elis Regina,
Elza Soares, Dulce Pontes, Mercedes Sosa, Noel Rosa, entre outros.
Mesmo explorando um gosto musical variado no seu fazer artístico, foi com o
brega, e em particular, com o tecnobrega, que Gaby consolidou sua imagem pública, a
ponto de ter sido agraciada, no imaginário popular, com o título de “rainha do tecnobrega”.
Contrariando o desejo de seu pai, bancário de profissão e músico nas horas vagas,
Gaby não quis seguir outra carreira que não a de cantora. Chegou a fazer vestibular para o
curso de Geografia, provavelmente pressionada pela família para cursar o nível superior.
Não obteve aprovação. Deu aulas de reforço, em casa, além de ter trabalhado como
atendente de telemarketing. Mas não se firmou em quaisquer destas atividades.
Em favor de que sua família se convencesse de sua opção pela música, de modo
particular Seu Conrado, Gaby precisou engajar-se em projetos por meio dos quais lhe fosse
conferida maior visibilidade do que aquela que estava acostumada a ter nos palcos de
Belém. Em um deles, a artista teve a oportunidade de se apresentar, ao vivo, em vários
programas de auditório, de entretenimento e jornalísticos de longo alcance. Hoje em dia,
ironicamente, Seu Conrado é quem a acompanha em shows e viagens de trabalho Brasil
afora.
Do auge de popularidade regional da Banda Tecnoshow – em meados dos anos
2000 – até uma primeira fase de “explosão” de Gaby Amarantos – em nível nacional, por
volta do início da década seguinte, – a cantora, além de assumir-se, verbalmente, como
representante da música brega e detentora de um jeito brega de ser, incorporava traços
kitsch reveladores deste universo, a exemplo das roupas extravagantes que usava em
apresentações, do apelo à sensualidade em performances corporais da banda, e do uso de
44
Quem nasce no bairro do Jurunas é considerado jurunense.
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recursos vocais estridentes, em solos, como se a garganta estivesse arranhando os sons
emitidos. Esses movimentos, visualidades e sonoridades integravam um conjunto estético
com base no qual Gaby se propunha a afirmar e valorizar a cultura brega, por um lado, e a
reverter o rótulo desabonador atribuído aos artistas e à música brega, por outro.
A respeito da fase seguinte de Gaby Amarantos, que pode chegar até aos dias
atuais, arrisco-me a referir nada além do que hipóteses. Por exemplo, apesar do grande
público massivo nacional não ter, provavelmente, a mais remota ideia do que significa ser
um jurunense para alguém nascido e criado ali, a cantora jamais deixou de referir seus
traços identitários. Ao mesmo tempo, curiosamente, parece distanciar-se do ser, agir, e
principalmente, do dizer-se brega.
4. Relações de gênero e a passagem épica de Gaby Amarantos
Ao retomar, neste momento, o anúncio sobre o comportamento da mulher
periférica, cabocla, brega e estético-visualmente desviante, faço uma tentativa de
apresentar relações de gênero atuantes em um processo de “mudança musical” e cultural ao
qual denomino passagem épica de Gaby Amarantos. Segundo o etnomusicólogo Bruno
Nettl, o termo mudança musical [e cultural] significa “mudanças e continuidades de estilo,
repertório, tecnologia e aspectos dos componentes sociais da música [que] são manipuladas
por uma sociedade, a fim de acomodar as necessidades tanto de mudança quanto de
continuidade” (NETTL, 2006: 16). Considera ainda que a modificação ou o intercâmbio de
repertório, operado pela sociedade, vai depender de como ela identifica e circunscreve o
elemento primordial de seu pensamento musical (idem; ibidem).
Na esteira do que menciona o autor, a mudança ou a continuidade deriva de
disposições que emergem da sociedade. A partir disto, eu poderia depreender, por
exemplo, que a subjetividade do detentor de um conhecimento ou de uma prática musical
não define, per se, se haverá ou não modificação no suporte tecnológico de produção de
timbres para uma grade de fontes sonoras; ou se determinado repertório precisa ou não ser
atualizado; se alterações de estilo tornariam uma performance musical mais interessante à
equipe de gravação ou a um público específico; entre outras possibilidades – não por falta
de autoridade criadora, mas porque a música agrega ideias e conceitos gerados fora do
campo estritamente sonoro. Merriam (1964) já considerava esta questão quando
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
estabeleceu o seu modelo tripartite de entendimento da música como som propriamente
dito, comportamento e conceito.
Reflexões ainda primárias sobre questões de gênero relacionadas à
Gaby
Amarantos levam-me a quatro variáveis – estigma, mídias, feminilidade e cosmopolitismo
– que corroborariam possíveis ressignificações de seus marcadores de etnia (cabocla),
estilo de vida (brega), condição sociocultural (periférica) e padrão estético-visual
pretensamente desviante.
O termo estigma remete, imediatamente, à pesquisa do sociólogo canadense Ervin
Goffman. O autor explora os sentimentos do indivíduo “estigmatizado” sobre si mesmo e
em relação às pessoas consideradas “normais” (GOFFMAN, 1978). O estigma consiste em
um atributo individual, mas de origem social, que representa uma ameaça à coletividade.
Ou ainda, consiste na deterioração de uma identidade pessoal que não se encontra
coadunada a padrões estabelecidos pela sociedade.
Do ponto de vista de quem sofre o estigma, a sociedade lhe usurpa possibilidades e
oportunidades, bem como derroga sua individualidade por meio da imposição de padrões
de poder. Transgredir esses padrões significa estar à margem da sociedade e dos
mecanismos de controle social, motivo pelo qual o estigmatizado é classificado como
elemento pernicioso e desprovido de potencialidades.
O incômodo decorrente do atributo de “mau gosto” estético conferido à música
brega apresentou-se, nas narrativas de Gaby Amarantos, como talvez a sua única
manifestação evidente em relação ao estigma, não me parecendo, portanto, que ela tenha se
visto pessoalmente vitimada. Apesar disto, a artista se valeu da condição de protagonista
de uma modalidade musical “degradada” para positivar a sua prática enquanto expressão
de identidade regional.
Dentre os mecanismos de positivação do estigma de ser brega, e também de sua
consequente reversão, encontram-se mudanças musicais em níveis de estilo e repertório. O
pulsante tecnobrega ganhou andamento mais cadenciado, transformando-se em melody ou
tecnomelody.45 Tal mudança pode indicar que o feitio techno teria sido ressignificado no
âmbito de processos criativos e de comportamentos musicais mais próximos à canção, no
seio dos quais a participação da voz do solista é mais presente. A canção seria, em certa
medida, a antítese do tecnobrega. A despeito daquele feitio, a tendência de canção
45
viria
Não quero dizer, com isto, que o tecnobrega foi substituído pelo melody.
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legitimar outra visão de mundo e de música, de um modo geral, em relação à estética
“degradada” do tecnobrega. Pouco tempo depois, “estourava” nas paradas radiofônicas e
televisivas o arrebatador Ex Mai [sic.] Love, sucesso autoral de Gaby que conquistou
grande popularidade e reposicionou a artista na cena midiática massiva nacional.
O rótulo desabonador do tecnobrega transcende o gosto estético-musical em si,
abrangendo também duas outras noções: uma de que a música pertence à periferia e a ela
deve ser destinada, e outra de que os seus produtores, divulgadores e consumidores seriam
menos favorecidos em termos sociais, culturais e econômicos, do ponto de vista de quem
atribui o estigma.
O estabelecimento do tecnobrega como música de e para as periferias se encontra
relacionado a um específico “modelo de negócios” (LEMOS & CASTRO, 2008) cujo
funcionamento se dá, em tese, à margem de princípios como o dos direitos autorais e o da
comercialização de produtos por intermédio de gravadoras. Em outras palavras, produz-se,
divulga-se e consome-se música, sem que, para isto, artistas necessitem assinar contratos
com selos e/ou pagar por espaços de divulgação em radio-difusoras convencionais. A
produção e o consumo livre de CDs “piratas” consistem em um dos traços mais
emblemáticos deste modelo, assim como a divulgação de músicas no âmbito das “festas de
aparelhagem”.
À medida que Gaby Amarantos se distanciava desse modelo, grandes corporações
midiáticas tratavam de agenciar uma artista que, apesar de ter vindo da periferia, “superou
dificuldades e chegou até aqui, vitoriosamente”. Destaco o trecho, entre aspas, apenas no
intuito de assinalar opinião particular quanto ao discurso elaborado no nível dos
mainstreams, que atribui valor ao artista das margens, normalmente, bem mais pelo seu
sacrifício de vida em prol da arte do que pela relevância cultural de seu saber e de suas
práticas. De modo consciente ou não, tal visão viria corroborar o adoecimento de uma
sociedade, já bastante empedernida, em relação às suas abismais desigualdades
socioculturais e econômicas.
Gaby veio de “baixo”. Isto é inegável. Entretanto, é possível que o Jurunas lhe
tenha pesado absolutamente nada, ou bem pouco, como a espécie de periferia que apetece
o mundo hegemônico: a dos vitimados sociais, culturais e econômicos. Graças a inúmeros
atributos dessa artista talentosa, musicalmente versátil, politizada e muito segura em
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
relação ao potencial da música regional e dos artistas jurunenses, a periferia que sempre
agenciou possui aura bem diferente.
Ser jurunense é, entre outras coisas, estar junto de um celeiro de músicos e músicas,
passando pelo cantador de carimbó (...) Mestre Verequete, pela Escola de Samba Rancho
Não Posso Me Amofiná (...), além de Gabi [sic.] Amarantos, Beto Metralha e outros sons e
personagens de uma paisagem sonora multíplice; é como ser mangueirense no Rio de
Janeiro, ainda que não exista em Belém uma Escola de Samba como a Estação Primeira de
Mangueira – que me parece ter sido escolhida como a “menina dos olhos” de todo o
brasileiro que gosta de samba-enredo –, ou porque o Jurunas está às margens de um rio e
não aos pés de um morro; é pertencer a um lugar que “tem uma diversidade musical
maravilhosa”, nas orgulhosas palavras de Gabi, nascida e criada naquele bairro; é ainda
não querer estar em outro lugar, mesmo em se podendo estar (GUERREIRO DO
AMARAL, 2009: 80-81).
Outra variável atuante na passagem épica de Gaby Amarantos, a feminilidade,
articula-se com o corpo de uma artista cabocla, com uma patente referência à sensualidade
consignada na dança – aspecto que, no caso de Gaby, se conecta a um padrão estéticovisual “desviante”, e com o estilo de vida brega de uma protagonista cultural da periferia.
Lanço mão, para esta reflexão, de algumas experiências de pesquisa e de insights mais
recentes.
A primeira experiência de que me recordo aconteceu na casa de Seu Conrado e
Dona Elza, quando Gaby perguntou-me se a letra de um hit de tecnobrega poderia ser
interpretada pelo público como “vulgar”. Respondi-lhe evasivamente, creio. Mas pensei,
com toda certeza, que ser “vulgar” consiste em um traço indelével da estética brega. O
etnomusicólogo Samuel Araújo elenca alguns significados e sentidos sociais para o termo
brega, dentre os quais “festa em um bordel” e coisa vulgar e cafona (ARAÚJO, 1987: 2021).
Na segunda delas eu subi ao palco para registrar uma performance musical e
coreográfica da Tecnoshow. Quando da apresentação de uma das músicas, notei que a letra
fazia referência ao termo “xana”, considerado no Pará como uma das denominações
populares para o órgão sexual feminino. A questão ficou-me ainda mais clara quando
percebi os movimentos coreográficos dos dançarinos aludindo a um ato sexual. E pensei, lá
com os meus botões de outsider em início de trabalho etnográfico, que aquela música e
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dança não seriam apreciadas positivamente em outros espaços que não os de periferia.
Enganei-me, pois. Apesar de não ter simulado um ato sexual, o aclamado clipe “Xirley”
anunciava o poder enfeitiçador de um café coado na calcinha.
“Xirley” pode ter sido um divisor de águas para Gaby Amarantos em sua passagem
épica. Além de ter incorporado a estética brega de forma magistral, o clipe percorreu o
Brasil, a ponto de, provavelmente, ter alavancado a popularidade da artista. Um de seus
pontos altos é o tratamento irreverente para temas seculares como a sexualidade, que
continua alimentando tabus em uma sociedade machista e moralista como a brasileira.
Outro aspecto emergente do clipe, ainda no que diz respeito à sexualidade, consiste na
delimitação de alguns contextos. Em seu início, por exemplo, Gaby veste uma camiseta
regata preta, bem como se encontra sem maquiagem e com o penteado desgrenhado. Se
não fossem os contornos de um corpo tipicamente feminino (e destoante do padrão
ditatorial de magreza que se quer impor, diga-se de passagem), ela poderia ser confundida
com um estereotipado rapaz de periferia. Talvez tenha sido esta a sua intenção. Em
contrapartida, Gaby ressurge, em duas sequências seguintes, com figurinos e performances
irrefutavelmente femininas: primeiramente veste um modelo preto bastante jovial; e, em
seguida, um traje mais pomposo, adornado com plumas. Na última, o modelo apoteótico da
cantora poderia servir a uma porta bandeira de escola de samba ou a uma drag-queen.
A versatilidade da artista, para além das questões estritamente musicais, reside
também no fato de poder incorporar, em suas performances, traços visuais,
comportamentais e aurais do masculino, do feminino ou do transgênero, do centro ou da
periferia, do chique ou do brega, entre outros. Simula contextos étnicos, como em uma
performance que registrei de uma coreografia ambientada em uma aldeia indígena. Além
de espaços, suas performances também simulam o tempo, como no caso da gravação da
faixa Shut-up, para o primeiro DVD da Tecnoshow, em que Gaby e os dançarinos da
banda, devidamente trajados com roupas futuristas, executaram movimentos robotizados
de androides. Tal versatilidade revela em Gaby um comportamento cosmopolita. O ser e o
agir cosmopolita de Gaby Amarantos constituem a última das variáveis relacionadas à sua
passagem épica.
Conforme o etnomusicólogo Thomas Turino, cosmopolitismo significa tudo o que
faz referência a objetos, ideias e posições culturais que podem ser mundialmente
difundidos, mesmo sendo oriundos de determinados países [regiões, localidades]
e
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
populações. Representa determinações translocais sobre hábitos e formações culturais
específicos, mas também práticas, tecnologias e estruturas conceptuais concretizadas em
localidades específicas e nas vidas das pessoas (TURINO, 2000: 7-8). Ser cosmopolita é
forjar tempos, recriar espaços, estabelecer relações interculturais e transculturais; é
absorver linguagens universais sem perder as referências identitárias regionais; é também,
no caso das culturas pretensamente subalternas, relativizar sua condição de dominado e
também exercer a hegemonia.
5. Desfecho
A escritura deste artigo decorreu da surpresa de um convite inusitado que recebi da
colega Laila Rosa, etnomusicóloga como eu, e professora doutora do Programa de PósGraduação em Música da Universidade Federal da Bahia, para participar de uma Mesa
Redonda composta por especialistas em estudos de gênero. Mesmo sem ser conhecer
profundamente o assunto, aceitei o convite. Em termos práticos, a proposta foi de que,
baseado em um dos capítulos de minha tese, eu consolidasse uma discussão açambarcando
questões de gênero em Gaby Amarantos.
Ao longo da elaboração deste texto, percebi, também de forma inusitada, que a
análise que eu havia feito da trajetória da artista, no doutorado, não daria conta de sustentar
a proposta atual. Foi quando compreendi que eu não teria como prescindir da tese, em sua
totalidade, já que desdobramentos sobre gênero, no particular de Gaby Amarantos, incidem
sobre temas de base do trabalho de onze anos atrás, tais como a relação entre
comportamento cosmopolita e produção musical de periferia. Quase declinei... Só que eu já
havia aceitado o desafio.
Contudo, antes de empreender, neste texto, conexões mais diretas com a pesquisa
anterior, Laila e eu já havíamos trocado algumas ideias sobre a pertinência de enfocar
Gaby Amarantos à luz do gênero, no que diz respeito, por exemplo: à preponderante
presença da figura masculina no universo de domínio do tecnobrega e do diferencial deste
aspecto em relação ao protagonismo artístico e musical de uma mulher; e a mudanças
musicais, culturais e visuais da artista – e de uma artista cabocla – frente ao propósito da
positivação do estima de ser brega e à sua entrada em outros contextos midiáticos.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
O cosmopolitismo em Gaby Amarantos vem abrindo, diante de mim, novos
caminhos de compreensão sobre diferentes saberes e práticas musicais populares massivos
que lidam com rótulos de desabono. As relações de gênero, exatamente por serem
muitíssimo exploradas no nível da visibilidade midiática desses artistas, consistem em um
desses caminhos.
Referências
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(Mestrado em Música). University of Illinois at Urbana-Champaign, Urbana, 1987.
GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre manipulação da identidade deteriorada. Rio de
Janeiro: Zahar, 1978.
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fevereiro de 2006. Belém. Gravada em áudio no formato mp3. Bairro do Jurunas.
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periferia: etnografia da produção do tecnobrega em Belém do Pará. 2009. 244 p. Tese
(Doutorado em Música). Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2009.
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Janeiro: Aeroplano, 2008.
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TURINO, T. Nationalists, Cosmopolitans, and Popular Music in Zimbabwe. Chicago and
London: University of Chicago Press, 2000.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
MESA REDONDA 2
MESA REDONDA 2: DIÁLOGOS DISCIPLINARES
Coordenação – Dra. Rosa Maria Mota da Silva (UFPA)
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Organologia, arquivos online e etnomusicologia
Alice Lumi Satomi
Universidade Federal da Paraíba – [email protected]
Resumo: A partir da temática do encontro sobre “a etnomusicologia na
contemporaneidade”, o artigo pretende trazer a questão dos acervos on-line, apresentando
o “Projeto de Disponibilização de cartografia organológica da cultura brasileira”. Este visa
criar um banco de dados para dinamizar um espaço de consulta e intercâmbio científico
sobre os instrumentos musicais locais – sobretudo dos manufaturados – em sua diversidade
social, espacial e temporal. Na página hospedada no sítio eletrônico da UFPB, os assuntos
estão divididos pelo primeiro nível do quadro organológico, exibindo quatro das seis
categorias de Hornbostel-Sachs: idiofones, membranofones, aerofones e cordofones.
Exceto os raros casos híbridos, cada instrumento é descrito conforme a numeração do
sistema de classificação adotado pelo MIMO (Musical Instrument Museums Online)
Consortium46 (2011). A cartografia apresenta todos os níveis existentes de tal sistema,
chegando a criar algum, quando necessário. Além dessa abertura, a adoção da sistemática
possibilita fornecer não somente os dados estruturais e acústicos de cada instrumento, mas
também, links ou ilustrações bibliográficas, iconográficas, fonográficas e dados
contextuais, contendo a realidade geográfica, histórica e social de cada instrumento com
suas utilizações, representações, estilos e cultura musical. Desse modo seria possível
discutir o lugar da organologia na disciplinaridade da etnomusicologia, pelo viés da
observação timbrística, que reiteradamente, tem revelado a identidade de cada
agrupamento social.
Palavras-chave:
etnomusicologia.
Organologia
brasileira.
Arquivos
online.
Disciplinaridade
e
Apresentação e terminologias
Desde 1996, tenho me debruçado sobre a temática da música japonesa
transterritorial, confirmando a presença do alaúde tricórdio sanshin47 da região de
Okinawa, e do koto48, uma cítara pranchiforme com treze cordas, cujos primeiros registros
constam na obra de Dale Olsen e Mário de Andrade (1981). Assim, o interesse pela
organologia – despertado no aprendizado e desenvolvido no ensino de construção de
46
HORNBOSTEL, Erich M. von; SACHS, Curt. Systematik der Musikinstrumente. Ein Versuch.
Zeitschrift für Ethnologie. Berlin, v. 46, p. 553-90, 1914.
Satomi, Alice Lumi. “’As gotas de chuva do telhado’: música de Ryûkyû no Brasil”. Dissertação em
etnomusicologia. Salvador: UFBA, 1998.
47
48
. Dragão confabulando: etnicidade, ideologia e herança culturas através das escolas de koto no
Brasil. Tese em etnomusicologia. Salvador: UFBA, 2004
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
instrumentos artesanais – permaneceu também no âmbito da pesquisa etnomusicológica.
Ao receber o convite para participar da mesa sobre “Diálogos disciplinares” oscilei entre
uma e outra área. Considerando a temática do encontro “a etnomusicologia na
contemporaneidade” pendi para questão dos acervos on-line, como ponto de partida para a
discussão do lugar da organologia na disciplinaridade ou interdisciplinaridade da
etnomusicologia.
O artigo tem como tema transversal o Projeto de Disponibilização da cartografia
organológica, que envolve alunos de iniciação científica, desde 2014. Trata-se de uma
continuidade do artigo “Vislumbrando uma organologia da música brasileira” (SATOMI,
2008), que desembocou no estágio pós-doutoral “Organologia das tradições musicais
brasileiras”, no MIM – Museu de Instrumentos Musicais de Bruxelas, em 2010. Antes de
apresentar o projeto, seria válido esclarecer a terminologia empregada sobre organologia,
etnomusicologia e acervos.
Entre o final do século XIX e a primeira metade do XX, a organologia firmou sua
cientificidade, quando sistematizou a classificação dos instrumentos musicais, ao que tudo
indica, através do catálogo de Victor Mahillon (1880). Diante de uma coleção generosa, o
curador do museu belga resolveu classificá-la de acordo com os princípios construtivos e
acústicos, estabelecendo como primeira divisão ou “classe”, a matéria vibrante principal:
autofone, membrana, corda ou ar. Mais tarde, a dupla interdisciplinar Hornbostel-Sachs
(1914), da coleção de Berlim, ampliou o sistema tripartite, que se tornou o padrão até os
dias de hoje, assegurando a disciplinaridade da organologia no campo da musicologia
sistemática.
Na segunda metade do século passado, com o crescimento do reconhecimento das
ciências humanas já podemos encontrar a preocupação em incluir o estudo da “perspectiva
sociológica do instrumento, do instrumentista e seu contexto” (TRANCHEFORT, 1980, p.
11). Essa perspectiva aponta para a possibilidade de situar um instrumento de uma maneira
menos estática e isolada, mas fazendo parte da cultura. Em seu artigo sobre a classificação
de Hornbostel-Sachs, Anthony Seeger problematiza a limitação do sistema para “responder
às questões sobre o papel dos instrumentos [...]. Ou seja, quem faz, quem toca, quando,
onde, como e por quê” (1986, p. 175]. Associando a abordagem enunciada por Tranchefort
com a lacuna observada por Seeger, o presente artigo fundamenta-se na seguinte definição:
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Organologia é o estudo dos instrumentos musicais que compreende não apenas a sua
classificação, mas também o seu entorno espacial, temporal e humano.
Quanto à (inter)disciplinaridade da etnomusicologia trago as palavras do professor
Manuel Veiga “ a etnomusicologia é interdisciplinar por natureza”, que deve ser buscada
incessantemente e não de maneira superficial (RIBEIRO, 2005, p. 9). Ao mesmo tempo, não
é possível alcançá-la “sem antes enfatizar a disciplinaridade” e nesta podemos esbarrar na
questão de determinar “os elementos essenciais da etnomusicologia”. Se um deles é a
música, deve ser praticada por músicos bem preparados e capacitados para realizar
análises de vários tipos [...] e dominar uma linguagem para se comunicar com
ela. Por outro lado, há todas essas relações da etnomusicologia com as ciências
do homem, que talvez também estejam nesse bloco da disciplinaridade, não da
interdisciplinaridade.” (RIBEIRO, ib., p.10)
Considerando as camadas internas de uma “coleção” explicitadas por Flávia Toni
temos: Documento refere-se a “todo suporte [...] suscetível de ser usado para consulta,
estudos ou provas”. Documentação ao “ato de reunir documentos sobre um determinado
assunto”. Coleção refere-se à “reunião de vários tipos de documentação [e documentos]
relacionados entre si.” (TONI, 2008, p. 57-8). No caso do projeto em tela, o emprego da
terminologia acervo teria o sentido amplo de abrigar essas três camadas internas: a
“coleção”, no caso, dos instrumentos musicais; a “documentação”, ou agrupamento de
exemplares reunidos por semelhanças na fonte vibratória principal, como os idiofones,
membranofones, aerofones e cordofones; e o “documento”, no caso descrição, amostra
sonora e visual do instrumento individual.
Projeto de disponibilização de acervo
O projeto Disponibilização de cartografia organológica da cultura brasileira,
iniciado em 2014, originou-se dos exercícios de elaboração de quadros sinóticos, seguindo
a sistemática de Hornbostel-Sachs, porém, eliminando o sistema numérico, para facilitar a
visualização das subcategorias. Foi elaborado um primeiro quadro, ou cartografia, dos
idiofones brasileiros, durante o curso de organologia, e um segundo, para ilustrar contexto
instrumental da música japonesa, durante a elaboração da tese, na UFBA. A experiência de
coordenar o Projeto de disponibilização do museu NUPPO – Núcleo de Pesquisa e
Documentação da Cultura Popular, da UFPB, entre 2008 e 2012, certamente, facilitou a
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
iniciativa do projeto atual. O projeto em andamento amadureceu na época do estágio, onde
tive a chance de auxiliar a supervisora Anne Caufriez, no preenchimento da tabela do
inventário da coleção indonesiana e latinoamericana do MIM em Bruxelas. A experiência
fez parte do projeto MIMO – Musical Instrument Museums On-line, integrado por onze
principais museus da Europa. E, finalmente aumentou a confiança para terminar o projeto,
ao ser convidada para escrever onze verbetes de exemplares brasileiros para o Grove
Dictionary of Musical Instruments, em 2012.
Através da revisão de literatura ou em visitas virtuais ou presenciais, observou-se
que constam coleções da cultura indígena esparsas pela Biblioteca Nacional, no Rio de
Janeiro (CAMEU, 1987 e TRAVASSOS, 1986), a coleção de Curt Nimuendaju, no Museu
Paraense Emilio Goeldi, em Belém, acervo do Departamento de Arqueologia e Etnologia,
da Universidade de São Paulo (PINTO, 2001, p. 264). A ONG do projeto da cultura caiçara
(SETTI, 2004) é o único acervo disponível em rede eletrônica encontrado pela pesquisa.
No exterior parece haver uma amostra razoável no Museu de Göterborg, em
Estocolmo, recolhidas por Karl Izikowitz (1935), que publicou um estudo abrangendo a
América Latina. Dos onze museus integrados no projeto MIMO constam alguns
exemplares no museu etnológico, de Berlim, e Horniman Museum, em Londres, e raros
exemplares, no de Bruxelas. No museu etnológico de Lisboa, o acervo da cultura material
indígena é bastante significativo, mas não foram observados instrumentos musicais. Em
2015 observou-se a existência do Museu Virtual de Instrumentos Musicais, do Rio de
Janeiro, cuja coleção não se limita ao Brasil, consta apenas uma “trompa indígena dos
Carajás”, entre os aerofones.
A pesquisa bibliográfica segue a lista anterior de publicações seminais, que
constam nos dicionários específicos de música brasileira como o de Mário de Andrade
(1989), no compêndio histórico de Renato de Almeida (1942), e, principalmente, do
catálogo etnológico da exposição da Biblioteca Nacional, específico em instrumentos
musicais indígenas, de Helza Cameu (1979). Ademais da iconografia e breve descrição, ela
se preocupou em constar, quando possível, o nome vernacular do instrumento,
comunidades, ou tronco linguístico, região, detalhes da construção ou modo de tocar e
ritual, usos e funções. Com a equipe de iniciação científica, estão sendo levantados e
catalogados, também, os verbetes dos dicionários de folclore brasileiro (C ASCUDO, 2012),
dos instrumentos musicais (LIBIN, 2014), da Enciclopédia da Música
Brasileira
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(ALVARENGA; MELO, 1977) os registros gerais e específicos anteriormente mencionados e,
sobretudo, da secção organológica do professor Manuel Veiga (1981), pioneiro ao abordar
a organologia indígena, em termos etnomusicológicos.
Das fontes específicas sobre os instrumentos da cultura indígena, que tem como
base a proposição de Hornbostel-Sachs temos mais duas publicações. A primeira a ser
destacada é a de Karl Izikowitz (1935), que classifica de acordo com os princípios
acústicos, detalhes técnicos de produção e variação sonora, usos e distribuição. Embora
seja um estudo comparativo, etnográfico, e de certa forma difusionista e estruturalista,
preocupa-se em abordar o instrumento como um “elemento cultural”, ou seja, uma célula
de um organismo cultural ou complexo, com seus usos e funções, concepções religiosas,
ritualísticas e outras. A segunda é um glossário dos exemplares brasileiros, de Elizabeth
Travassos (1986) – a partir dos instrumentos descritos por Izikowitz (1970), Cameu (1977,
1979) e Sachs (1947) – que aplicam a numeração até o terceiro nível do esquema
Hornbostel-Sachs.
Da lista da revisão de literatura no artigo anterior, valeria seguir destacando a
documentação de instrumentos indígenas nos trabalhos de Rafael M. Bastos (1999),
Anthony Seeger (2004), Kilza Setti (1985), Acácio Piedade (1997 e 2004), Deise
Montardo (2002). Acrescenta-se a pesquisa de Desidério Aytai (1985), sobre os
Xavante,
M. Ignez Mello (2005), sobre os Wauja, e as gravações dos Timbira, de Kilza Setti (2004),
e os registros fonográficos de Roquette-Pinto, em 1912 (PEREIRA; PACHECO, 2012)
Tendo como sujeito o instrumentarium brasileiro, priorizando os manufaturados, o
objetivo do projeto é criar um espaço virtual para disponibilizar um acervo de dados,
obtidos através de registros na literatura e em acervos, contendo coleções, documentações
e verbetes de cada exemplar em sua diversidade social, espacial e temporal. Como o sítio
eletrônico possibilita a atualização contínua do banco de dados, o projeto visa dinamizar,
ademais da consulta, um espaço de intercâmbio científico sobre o timbre, ou a sonoridade
local de cada comunidade, ou evento social.
Especificamente o projeto almeja as seguintes metas ou etapas: 1. Levantar e fichar
as fontes consultadas na pesquisa documental, visitando arquivos bibliográficos
fonográficos e iconográfica em museus, acervos, ou bibliotecas, virtual
ou
presencialmente; 2. Catalogar cada instrumento, anotando dados musicais – acústicos,
ergológicos e morfológicos, com descrição da extensão melódica, tessitura, dos estilos,
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tipo de escala, modo, conjunto – e contextuais – realidade geográfica, histórica e social,
com descrições de suas utilizações e funções. 3. Criar e desenvolver o quadro sinótico,
para classificar os instrumentos procurando contemplar o máximo dos dados anotados e
sempre, que possível, acompanhados ilustração visual, sonora, áudio visual, ou
hiperlink.
4. A partir do lançamento do sítio eletrônico, promover a reunião, difusão e intercâmbio de
pesquisas e estudiosos em torno da organologia popular brasileira.
Quanto aos resultados esperados, em nível local, ou talvez nacional, espera-se
formar material didático para as disciplinas de interesse do curso de Educação Musical e da
Pós-Graduação em Música (etnomusicologia). Em esfera mais ampla, envolvendo ou não a
equipe, estimular a produção de revisão de literatura e traduções das principais discussões
sobre organologia. E em longo prazo, o projeto aspira a publicação em livro de estudos
mais aprofundados, seguindo abordagens consistentes e completas, tais como as de
William Malm (1946), sobre a música japonesa, e Rodríguez et all. (1997), sobre a cultura
musical cubana, obra exemplar de trabalho em equipe interdisciplinar.
Para a construção do quadro classificatório o corpus teórico principal adota o
projeto MIMO, que tem como base atualização de Jeremy Montagu (2009). Este revisou a
sistematização de Hornbostel-Sachs (1914), que, por sua vez, aperfeiçoou a divisão
tetrapartite criada por Victor Mahillon, em 1880. E, naturalmente, há influências do filtro
natural da literatura absorvida, onde predominam as reflexões de Kartomi (1992),
Geneviève Dournon (1992) e Seeger (1986).
Apesar da amplitude e intenção taxonômica do projeto, o procedimento
metodológico principal se restringe à pesquisa bibliográfica, fonográfica e museológica,
através do levantamento dos registros existentes em bibliotecas, acervos, pesquisas e na
literatura, Para o fichamento tentar-se-á reunir os dados pertinentes para cada subdivisão
prevista, complementando ou reduzindo as anotações de cada instrumento.
Assim, a construção do quadro organológico brasileiro tem como ponto de partida o
instrumental disponível, ou consultado, para depois utilizar os sub-ítens aplicáveis da
“classificação descendente [partindo do geral para o particular]” (ver KARTOMI 1992, p.
17) proposta por Sachs-Hornbostel (1961), Dournon (1992) e Montagu (2009). O quadro
concilia a forma de uma tabela taxonômica com um diagrama árvore com flexibilidade
para crescer mais no comprimento do que na largura. O comprimento conta com a inclusão
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
de um instrumento por linha e a largura com os parâmetros ou itens de classificação, por
coluna.
Na seleção de itens do quadro organológico, aproveitou-se grande parte dos
subitens aplicáveis dos modelos mencionados, dispensando os que não se enquadram e
acrescentando alguns exigidos pelos exemplares brasileiros. O quadro dos idiofones é o
primeiro da série que contará com as outras três categorias principais do modelo
tetrapartite de Hornbostel-Sachs. Está ainda em fase de construção, apresentando vinte e
duas colunas. Da esquerda para a direita adaptam-se as subdivisões do modelo tetrapartite
de Hornbostel-Sachs (1961) e Dournon (1992), seguindo ou sintetizando em seis níveis, as
subcategorias ergológicas e morfológicas: forma de tocar, formato, componentes,
particularidades, material e outras variáveis.
Aos dados estandartizados do modelo tetrapartite e critérios de numeração nas
colunas W (Hornbostel-Sachs, ampliado por Montagu) e X (Dournon), acrescentam-se os
dados contextuais etnográficos do projeto MIMO, tais como: nomenclatura êmica (L);
outros nomes éticos (M); identidade da comunidade ou grupo social (N); comentários (R),
descrições; referências à bibliografia histórica (S); acervo ou coleção (T); fonte
bibliográfica (U); fonte iconográfica (V) e as dimensões.
Na coluna usos e funções (O), incluindo tipo de conjunto, manifestação ou ritual;
temos as possibilidades musicais, onde além do âmbito, extensão do instrumento, (a
exemplo de Victor Mahillon, 1984) podem ser acrescentados ritmos ou padrões estéticos,
sugeridos por A. Seeger (1986). A região ou área cultural (P) onde cabem os troncos
lingüísticos, responde a pergunta onde. A coluna da simbologia (Q), cosmologia ou
representações do instrumento, um aspecto remarcado por Kartomi (1991). Nas colunas
restantes, acrescentaram-se algumas colunas que, particularmente, considero relevantes
como: fonte bibliográfica (V), referência à iconografia histórica (W); a numeração de
Dournon (X); links (Y) que possam remeter o visitante virtual aos outros registros
gravados e que indiquem outros endereços ou homepage, de estudos ou referências mais
aprofundadas; e as dimensões (Z).
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Palavras finais
Repensando a pergunta de partida, lembro que quando fui convidada para debater a
questão da disciplinaridade causou-me estranheza pelo caráter interdisciplinar da
etnomusicologia. Embora tenha reparado que, seguindo o modelo da UFBA, os cursos de
mestrado da área estão implementados nos departamentos de música, sobretudo aqui no
nordeste, vejo que na produção dos alunos de pós-graduação, predominam referências das
ciências humanas em relação à musicologia, incluindo a etnomusicologia. Observa-se que
há certa dose de desvalorização da transcrição em pentagrama, da análise musical e da
organologia, o que pode incorrer no desinteresse, também, pelas fontes históricas. A
cautela é compreensível para evitar os deslizes do etnocentrismo, da musicologia
comparada, das abordagens folcloristas e, no caso, da organologia, das tendências
evolucionistas ou difusionistas. Seria possível questionar se tais argumentos e cuidados não
estariam camuflando limitações em percepção, análise e acústica musicais. Acredito, ainda,
que tratam-se de ferramentas (transcrição, análise e organologia) que podem proporcionam
consistência e identidade etnomusicológica. Sem desconsiderar a ênfase antropológica que
muitos temas exigem, abster-se de tais ferramentas é esperado em outros departamentos,
mas tenho observado que justamente nos de antropologia, conforme o orientador, existe a
preocupação de utilizar pelo menos uma delas. Essas ferramentas podem fornecer uma
maior cientificidade e credibilidade até para a própria cultura pesquisada, que aprecia ver
suas peças musicais no papel, ou seus instrumentos organizados.
A idéia de disciplinaridade é importante para demarcar e para poder compor o
espaço [não só mostrando o conteúdo], mas sua maneira de olhar, o que ela não é
capaz de olhar, onde é preciso olhar de outra maneira e onde ela pode se compor
com outros olhares. [...] Somente é possível compor um todo unindo as partes
quando você conhece as partes. A disciplinaridade é o ato de conhecer essas
partes. Um todo é muito mais do que a soma das partes, mas é preciso que você
tenha essas partes. (KAWAMURA, 1997, p. ##)
A autora da área de física, ou seja, das ciências exatas, é categórica na delimitação
da área, mas semelhante ao posicionamento de Veiga, valoriza o domínio das partes, ou
conhecimento, para desenvolver sensibilidade e bom senso para escolher as ênfases e as
ferramentas de análises adequadas, para enxergar nossos limites, flexibilidade mudar e
refazer se for preciso, considerando a perspectiva insider. Até mesmo na mudança de
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ênfase de abordagem das duas vertentes da etnomusicologia: uma que privilegia o som e
outra que enfatiza o contexto.
Após desenvolver o gosto pela pesquisa de campo, que hoje já se transformou em
etnomusicologia aplicada, o desvio para a pesquisa bibliográfica, ou de gabinete, e na
descrição etnográfica, implicaria num aparente retrocesso. No entanto, ao deparar com
incipiente material didático, ou incompletos registros de instrumentos brasileiros nos livros
e acervos gerais de música, somando-se ao crescimento dos estudos etnomusicológicos e
às possibilidades modernas do mundo virtual, seria o momento oportuno para desenvolver
uma organologia brasileira com uma abordagem etnomusicológica.
Embora não se possa aprofundar o estudo num primeiro momento, a construção da
cartografia já poderia contribuir em questões elementares de terminologia, mapeamento e
classificação. Ao servir-se da rede eletrônica e acrescentar colunas referentes ao contexto
musical e sociocultural, espero ter atendido as observações de Seeger. Antevendo o avanço
tecnológico ele sugere complementar “dados na classificação dos instrumentos musicais
para melhor servir a antropologia com uma tecnologia ainda por vir”. Dados esses num
“procedimento que amplie a informação [...] tendo em vista inferir seu lugar na cultura
material e nos processos sociais como um todo” (SEEGER, 1986, p. 173).
E para finalizar lembro as palavras de Acácio para dissipar essa fronteira nebulosa e
apontar uma saída agregadora e holística para nossas ciências demasiadamente
fragmentadas:
Os modelos teóricos que alicerçam a pesquisa em antropologia serviram de base
para a consolidação da etnomusicologia, tais como as teorias do relativismo
cultural. Porém, com a influência da fenomenologia e da hermenêutica cultural
nas ciências humanas, a etnomusicologia e a musicologia se transformaram e se
aproximaram de tal modo que, atualmente, é possível falar em um único campo
de saber, uma musicologia geral, que abraça uma diversidade de estudos sobre a
música (PIEDADE, 2010, p. 77)
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BAINES, Anthony; WACHSMANN, Klaus P. “Classification of Musical
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
PALESTRA DE MESTRE LUCAS BRAGANÇA
Transcrição: Tainá Maria Magalhães Façanha (Mestranda do PPGARTES – UFPA)
Supervisão: Prof. Dr. Paulo Murilo Guerreiro do Amaral (UEPA)
Boa noite a todos! Aqui a gente perde um pouco da noção do tempo, mas eu tô
ligado lá na pranchinha... [trecho inaudível]. Antes, quero agradecer à professora Líliam,
ao Murilo e à Sônia Chada pelo convite; agradecer aqui aos mestres.Eu não tenho essa
formação acadêmica, mas a minha formação é popular, tradicional. Eu venho lá do meu
interior, trazendo aquilo que os meus antepassados me deixaram: a tradição do nosso
carimbo. E, eu vejo assim, muitas pessoas falam porque o carimbó é isso, é aquilo. Mas é
uma coisa que foi nos deixado. E nós temos que lutar por isso, pra que ele seja reconhecido
ainda mais do que já é. Nós já passamos por alguns momentos ruins, muito ruins, ondeos
nossos antepassados, por tocarem o carimbó, eram descriminados; presos, porqueaquilo
achavam que era vagabundagem. Eles só estavam mostrando aquilo que eles sabiam fazer,
que era tocar o carimbo. E isso nós estamos fazendo até hoje, graças a Deus e aos nossos
mestres que deixaram essa herança muito boa.E a gente vai pensando, vivendo,
estudando... Depois, será que isso um dia vai melhorar? Será que um dia nós vamos chegar
[trecho inaudível] à grande mídia tocando carimbó, que é uma cultura tradicional? Será que
[trecho inaudível] das cidades as escolas vão abrir a porta para o carimbó? Isso a gente tem
que pensar, porque [trecho inaudível] isso é muito importante. Que as portas se abram, que
sejam mais claras, que venham mais conhecimentos, mais tecnologias pra nos ajudar. Mas
não deixando nosso carimbó de lado, porque isso é a nossa força. Isso que nós devemos
fazer: você repassar esse seu conhecimento, que já foi transmitido pra você. Isso é legal. É
isso que eu faço. [Trecho inaudível] Quando eu vou ensinar as minhas crianças, porque lá a
gente ensina eles tocar, ensina a confeccionar o curimbó, ensina a confeccionar uma
maraca. Eu confecciono banjo artesanal com panela de pressão. Isso é legal a gente fazer.
Mostrar como se faz. Quer dizer: o caminho é esse. Você pode ser um doutorado em
música e ter tudo, mas [trecho inaudível] falta pouco pra você viver nossa riqueza natural,
nossa carimbó, [trecho inaudível] que é pras pessoas conhecerem, pra pessoas valorizarem;
que eu acho que é por aí que a gente vai abrir as portas. Então, esse contexto de música, de
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Etnomusicologia, são muito bacana essa discussão. Você... Eu, por exemplo, tá no meio
dos professores, dos mestres formados academicamente. E eu tô aqui, escutando e
analisando, né. Quando será que, um dia, nós vamos ter um professor de carimbó nas
universidades? Quando a nossa música realmente vai chegar a encontros desses assim?
Porque isso é importante pra nós. Porque, afinal de contas, a gente vem brigando por uma
coisa que há muito tempo tá aí. São mais de duzentos anos que a gente vem lutando aí pro
carimbó ser reconhecido. Passamos dez anos numa luta pro camribó ser reconhecido como
patrimônio cultural imaterial brasileiro. Foram dez anos de luta. Hoje nós temos uma
abertura mais ou menos bacana, que leva os brega pra fora do Pará, pra fora do Brasil, pra
mostrar a nossa cultura. Então, é por ai que a gente vai chegando. É lutando... É mostrando
como se deve fazer. Porque você... Eu tenho um professor aqui do lado. Eu tenho certeza
que, com toda formação que ele tem, ele nunca ouviufalar da confecção de um carimbó ou
como se fazer. Não é verdade? E esse conhecimento eu tenho, como fazer. Tanto é que a
gente teve uma passagem aqui com a professora Líliam, [trecho inaudível] Paulo Murilo,
professora Chada, que entraram em contato comigo. E a gente fez o Encontro de Saberes,
que nós tivemos aqui, neste mesmo local, tocando com as pessoas, maestros, tudo aqui,
formado. E... e o cidadão chegou comigo e disse: “[trecho inaudível], eu sou paraense, eu
sou formado em música, sou maestro e nunca tinha visto ninguém chegar e fazer o que
você tá fazendo!” Esse conhecimento é tradicional. Isso é legal da gente chegar e mostrar.
Fui em Brasília e passei dez dias lá na UnB, ministrando aula. Lá foi diferente a história.
Lá não foi como confeccionar, mas sim como tocar. E eu tenho certeza que a turma que
ficou lá, eles devemtá fazendo barulho por lá, porque eles gostaram muito de conhecer
aquilo que eles nunca tinham visto. [Perguntavam (?)]: “que negócio é esse? – que toque é
esse desse negócio aqui? – o que faz com isso?” A gente toca. Porque muitas pessoas
dizem que “ah, você tá aqui; vou bater o carimbó.” Eu disse: eu não vou bater... Sem
dúvida, você vai tocar o curimbó. [Trecho inaudível] Maraca... Você não vai sacudir a
maraca. Você vai tocar a maraca. Isso aqui é um instrumento musical. Isso não é um
brinquedo que (...). Isso não é uma palheta que a gente toca. Isso é um instrumento
musical, que tem que ser levado, tocado e aceito como um instrumento musical.Então, é
por ai que a gente vai caminhando. E, nessa vivência toda, a gente aprende que toda
música deve ser respeitada. Não importa se ela é clássica, se ela é popular. Mas é música, e
isso eu gosto de escutar. Eu gosto de escutar, é... Na minha casa eu tenho Beethoven, lá. E
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
boto na minha casa, lá no meu gravadorzinho [trecho inaudível]. Escuto Zezé di Camargo e
Luciano. Escuto Xavantinho e Pena Branca. Mas eu escuto também o meu Mestre
Lucindo. Eu escuto o meu Mestre Verequete. Eu escuto o meu Mestre Cantilho [trecho
inaudível], Mestre Zelé. Foramesses caras que deixaram essa herança pra gente. E a gente
não pode esquecer deles. Assim como eu escuto Luciano Pavarotti eu também escuto
Mestre Lucindo, né. [Trecho inaudível] E é por ai que a gente vai.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
MESA REDONDA 3
MESA REDONDA 3: DIÁLOGOS
INTERDISCIPLINARES
Coordenação – Dra. Maria José Pinto da Costa de
Moraes (UFPA)
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Desde que o Samba é Samba: reflexões e criações sobre o gênero
Paulo José de Siqueira Tiné
Instituto de Artes – UNICAMP
Resumo: O trabalho discorre sobre resultados parciais obtidos nos recentes projetos de pesquisa sobre
processos criativos em música popular do autor sobre ponto de vista do gênero samba. Esses projetos tiveram
como objetivo registrar a produção para a formação idealizada (Ensemble Brasileiro), dentro da relação
tensional entre ela e antecedentes históricos (Orquestras Típicas e Jazz Bands) próximos. Além disso, para
além do processo de produção, o artigo tece sobre o contexto social no qual as execuções de tais peças se
deram, bem como o perfil dos membros integrantes do processo e sua recepção.
Palavras-chave: samba; processos criativos, orquestra típica.
1.Introdução
SANDRONI (2003), em sua clássica obra Feitiço Decente, aponta dois paradigmas
rítmicos que, de certa forma, dividem a história do gênero, principalmente a partir de sua
introdução na história da indústria fonográfica brasileira, portanto, naquilo que viemos a
entender como sendo música popular como algo diverso no folclórico ou étnico no sentido
contemporâneo da compreensão da etnomusicologia49. Ou seja, os paradigmas do tresillo e
do Estácio, filiando o primeiro à influência da habanera na América Latina e Central de
uma maneira geral e ao continente africano, em especial ao Zaire, o segundo. O ponto
brilhante, a meu ver, do texto reside no fato do autor entender que foi o modo de grafar tais
paradigmas pelos artistas alfabetizados musicalmente, dentro da tradição europeia e
ocidental, que trouxe à luz a questão da síncope, central na definição histórica do gênero,
ainda que por vias tortuosas, como bem demonstra o autor. Portanto, a questão central do
papel do arranjador, como um mediador cultural e como aquele que traduz sua escuta ao
escrever o arranjo, como aponta SZENDY (2008), se encontra prefigurada na visão de
SANDRONI.
“O termo etno-musicologia, ainda com hífen, só aparece após a Segunda Guerra Mundial, na
publicação do holandês Jaap Kunst, um dos primeiros estudiosos da música balinesa e javanesa – ‘Ethnomusicology: a study of the nature of ethno-musicology, its problems, methods and representative
personalities’, tomando lugar ao de musicologia comparada, pela visão expressada por vários pesquisadores
de que esse estudo não era mais comparativo do que os de outros campos do conhecimento. Em 1956 surge,
nos Estados Unidos, a Society for Ethnomusicology, que retira oficialmente o hífen da palavra
etnomusicologia, enquanto que a Associação Brasileira de Etnomusicologia só veio a firmar-se em 2001. A
tendencia etnomusicológica das décadas posteriores tem sido a do estudo da música em uma sociedade, assim
como a interação da musica com o seu contexto cultural, histórico e social”. CHADA: 2012, 3.
49
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Quanto ao processo de comercialização do samba que se deu através do início da
era do rádio e entre os meios mecânicos e elétricos de reprodução com a indústria do disco,
esse gênero se caracterizou, então, tonalmente do ponto de vista do viés melódicoharmônico. Para isso, é preciso pensar que os primeiros compositores no cenário carioca da
década de 1920 não eram mais aqueles puramente comunitários, ou seja, apesar de fazerem
parte de uma prática musical coletiva baseada na oralidade, eles expandem essa prática
para os meios de comunicação e se profissionalizam. Tais compositores trabalharam, é de
supor, no sentido de uma estilização tonal do gênero. Nesse sentido, parece ter havido uma
neutralização dos elementos modais – como os pentatônicos - comuns na cultura
afrobrasileira nesse processo de estilização.
A partir disso, na década de 30, foi construído, no meio musical popular brasileiro,
um modelo de exaltação nacional através do samba, principalmente através dos signos de
exaltação encontrados na obra Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. Quando se lembra que
a primeira gravação de Aquarela do Brasil foi realizada em 1939, ano da partida de
Carmen Miranda para os Estados Unidos da América, vê-se que uma série de signos e um
ideário brasileiro foi constituído, ainda que tal processo pudesse ser completamente
inconscientemente por parte dos compositores. A transformação da Aquarela do Brasil em
parâmetro de exaltação se dá em pleno período do Estado Novoa ponto de o samba ser
considerado o gênero brasileiro de música popular por excelência.
[...] o samba de Ary Barroso transformou-se em emblema sonoro interno para os
compositores populares [...] Estes símbolos são costurados, no paradigma
exaltativo [sic], pelo sentimento de reconhecimento, aceitação e amor para com
os mesmos, pois supõem-se sejam valores compartilhados, igual e integralmente,
por todos brasileiros. (SOARES, 2002, p. 40)
É de se supor que, musicalmente, a construção desse ideário nacional e regional
realizado por Ary Barroso, já se dá sob a égide do paradigma do Estácio. Na década de
1940, o locutor Almirante conduziu, na rádio Nacional o programa cujo epíteto “O Pessoal
da Velha Guarda” já apontava para um viés nostálgico à turma de Pixinguinha e, na década
seguinte, a gravadora Sinter lançou uma série de LPs que somam a faceta nostálgica ao
aspecto carnavalesco. Tais arranjos foram editados recentemente pelo Instituto Moreira
Salles em parceria com o selo SESC e, justamente os LPs, foram nomeados por “O
Carnaval de Pixinguinha”.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Do ponto de vista da performance musical, toma como base a questão de como se
deve interpretar, arranjar e compor dentro do gênero tendo o conhecimento prévio de tais
paradigmas. Devemos nos ater a eles ao interpretar um samba hoje?
2.A Proposta
A discussão sobre processos criativos na área de música popular permanece em
aberto. O campo da composição erudita e, principalmente quando envolve o uso de
tecnologia, parece estar bem delimitado por envolver pesquisa e inovação estética.
Entretanto, quando se passa ao campo da música popular muitas dúvidas permanecem.
Como deveria ser realizada essa produção sem que, por um lado, a questão da pesquisa
permaneça em foco e, por outro, que ela não seja simplesmente uma produção artística,
pois, nesse caso, o legado desse trabalho seria parcial. Apenas como um método
incompleto e provisório que estou realizando, além da produção artística propriamente
dita, uma reflexão sobre seus pressupostos estéticos, análise, descrição de obras e contexto
da recepção e dos realizadores.
Em primeiro lugar a base para esse trabalho foi o grupo artístico que coordeno, o
Ensemble Brasileiro para o projeto FAPESP de pesquisa “Processos Criativos em Arranjos
e Composições para Jazz Band/Orquestra Típica”50. Qual ideia está por trás do grupo? A
de se interpretar música brasileira com instrumentos característicos da mesma. A formação
é um agrupamento reduzido do trabalho que coordenei entre 2003 e 2008 chamado
Orquestra Popular Brasileira, uma orquestra típica, mas que tinha um objetivo de equilíbrio
sonoro normalmente não previsto em tais formações: 2 flautas; 2 clarinetes; 2 saxofones
(um alto e um tenor mas com possiblidades do uso do soprano); 1 trompete; 1 trombones; 2
percussionistas; 1 bandolim; 1 cavaquinho; 2 violões (um de 7 cordas); 1 acordeom e 1
baixo acústico. Findado esse projeto parti para uma versão reduzida do grupo, sem as
madeiras aos pares, exceto os saxofones, com apenas o violão como representante das
cordas e com uma bateria no lugar das percussões.51
Para o gênero samba dividi em duas etapas: interpretação, confecção de um arranjo
original. Em complementação, incluí uma terceira composição que, embora não utilize
50
Processo No. 12/21209-2.
Há que se considerar aqui que a escolha de instrumentos característicos difere daqueles típicos, quer dizer,
não se trata de instrumentos de origem brasileira (a exceção do cavaquinho), mas daqueles que foram
representativos na construção dos gêneros musicais abordados.
51
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
apenas o samba, foi escrita para a formação clássica de Big Band. As peças escolhidas
foram: uma adaptação do arranjo original de Pixinguinha (Alfredo Rocha Vianna 18971973) para o clássico “Pelo Telefone”, de Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos 18901974) e Mauro de Almeida (1882-1956), escrito para a coleção da gravadora Sinter na
década de 1950; um arranjo original de “Feitiço da Vila” de Noel de Medeiros Rosa (19101937); e para Big Band, uma composição intitulada “Nenê”, em homenagem ao baterista
Realcino Lima.52 No primeiro caso, uma das questões que permearam a pesquisa foi: como
interpretar arranjos históricos sem, necessariamente realizar interpretações historicamente
orientadas? Além disso, ao se tomar uma interpretação como base, como ela pode servir de
base para as próximas etapas? De fato, embora a disposição lógica do trabalho se dê nessa
direção há, muitas vezes, não uma reprodução das características dadas, mas processos de
inovação e introdução de elementos às vezes estranhos ao gênero, entretanto, sempre
tentando não descaracterizá-lo.
Por fim, pretende-se descrever brevemente os ambientes através dos quais as
músicas executadas pelo projeto circularam, quais foram os contextos sociais nos quais se
desenrolaram as apresentações e qual os perfis dos músicos que se dispuseram a participar
do projeto e do público que recepciona esse tipo de produção.
Pequena análise e descrição musical das obras
3.1 Pelo Telefone (Donga e Mário de Almeida)
A gravação de Pelo Telefone em 1917 se converteu, segundo ZAN (1997, 27) em
um símbolo do nascimento do samba moderno. Ela trouxe o gênero do campo que da
cultura popular para a cultura de massa segundo a clássica divisão da cultura em níveis
que, em última análise, remonta a Mário de Andrade. O fato de ela trazer um advento
tecnológico, não parece ser o mais relevante para SANDRONI (2003). É fato que muitos
sambas carnavalescos, a partir de então, comentam fatos do cotidiano e as “novidades” do
mundo moderno e industrial. Ainda assim, o samba contou com duas versões de letra: uma
oficial, outra “oficiosa” que logo se fez conhecida também. Donga teria registrado a
52
Baterista que integrou o Quarteto Novo após a saída de Airto Moreira. Tocou com Hermeto Pascoal,
Egberto Gismonti, Elis Regina e Milton Nascimento durante a década de 1970. Na década posterior iniciou
carreira de compositor de música instrumental tendo lançado diversos álbuns solo e atuado em grupos como
o grupo Pau Brasil.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
música em seu nome fazendo a inversão da letra, que seria de Mauro de Almeida e de mais
outro coautor, Didi da Gracinda. Segundo ZAN (Idem, Ibidem), Didi seria o autor da
primeira parte do samba.
A alusão ao “telefone”, constante nas duas versões, refere-se a um incidente
ocorrido no quadro da campanha contra o jogo na cidade (...). O texto, lido
rapidamente, deixa no ar uma dúvida: o chefe da polícia ordenava a alguém que
telefonasse ao delegado do distrito onde se fazia a jogatina, (...), ou será que
sugeria que se telefonasse aos diretores dos clubes, para que estes “arrumassem a
casa” antes da chegada das autoridades? Foi a última hipótese que caiu na boca
do povo, visto que era notaria a complacência em relação ao jogo que, como foi
dito, era praticado nos “clubes chiques”. O próprio telefone, em 1916, se não era
mais uma novidade no Rio de Janeiro, era ainda algo “chique”, na medida em
que só uma parcela ínfima da população tinha acesso a ele. (SANDRONI, 2003,
121)
A formação básica para esses arranjos é: flauta (em alguns casos flautim); clarinete;
2 trompetes; eufônio; tuba e seção rítmico-harmônica, formada por percussão, cavaquinho
e violão. Como se sabe, não se escrevia para esses últimos instrumentos na época, ficando
a cargo da oralidade a interpretação a partir de conhecimentos tácitos sobre os gêneros
abordados característicos da música popular. Mas a edição (VIANNA, 2014) realizou, a
partir da comparação dos instrumentos, uma parte de cifra para os instrumentos
harmônicos e como guia para percussão. Para o Ensemble Brasileiro foi realizada a
seguinte adaptação: flauta, clarinete 2º trompete idem ao original, 1º trompete executado
pelo saxofone soprano com reforço de 8ª executado pelo saxofone tenor (os dois realizando
a mesma partitura), eufônio executado pelo trombone e tuba pelo contrabaixo. Acordeom,
violão e bateria seguem a guia de harmonia. Entretanto, a tonalidade aqui difere no fato de
haver a participação vocal que conduziu a uma mudança na tonalidade original do arranjo
(de Si bemol maior para Sol). O arranjo é tocado integralmente duas vezes e, pela sua
estrutura calcada na repetição do refrão - característico do samba de roda - optou-se por, a
cada uma delas, usar as diferentes versões da letra. O acompanhamento escrito aponta,
basicamente, para o uso de duas figuras básicas que findam por corroborar com a ideia
básica de SANDRONI de dois paradigmas básicos do samba: o do tresillo e do Estácio.
Isso porque as figuras escritas, de certa formam, travam a seção rítmico-harmônica de
realizar outras figuras e, nesse caso, os padrões de acompanhamento estão submetidos ao
tresillo. Observe abaixo:
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Fig.1 “Pelo Telefone”. Fórmulas de acompanhamento e tresillo.
O fato de Pixinguinha, nessa formação, escrever o acompanhamento, como que
dentro da tradição das bandas de coreto mencionando anteriormente, aponta para uma
concordância com o estilo de samba que se propôs a arranjar. Ou seja, apesar do arranjo
pertencer a uma época na qual o paradigma do Estácio já estava estabelecido, o arranjador,
até por ser um membro daquilo que já se chamava por “velha guarda”, escreve o arranjo
em estilo antigo, por assim dizer. A bateria, na gravação realizada, conduz a introdução
com o estilo de samba de prato, mas a partir das entradas da voz enfatiza o tresillo através
do chimbal; somente ao final (“...olha a rolinha”) é que se atenta ao estilo “samba
batucado” que, a rigor, seria o estilo historicamente “correto” de se realizar o arranjo.
3.2 “Feitiço da Vila” (Noel Rosa)
O arranjo aqui realizado para a formação proposta parte já da aceitação do
paradigma do Estácio como dada. Embora o embate entre Noel e Wilson Batista tenha
balizado parte da poiesis da canção, como aponta SANDRONI (2003, 169-170), do ponto
de vista musical o paradigma ficou estabelecido, ainda que, no plano da letra, Noel se
coloca em oposição à figura do malandro como figura de identidade do samba propondo,
assim, um “feitiço decente”.
O samba é aqui diretamente identificado a um feitiço. Esta palavra é usada no
Brasil também para designar as oferendas deixadas nas encruzilhadas com
finalidades mágicas, geralmente no quadro das religiões afro-brasileiras. (...) A
alusão ao “nome de princesa” refere-se à princesa Isabel, (...), a qual assinou o
decreto que extinguiu a escravidão no país em 1888. “Feitiço da Vila” postula
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
pois uma relação, através do nome, entre Vila e Princesa Isabel. (...) O que fica
implícito é que o que a Vila faz com o samba é de algum modo equivalente ao
que a Princesa fez com os negros abolindo a escravidão. (...) Sem vela, farofa ou
vintém, é feitiço em estado puro, feitiço sutilíssimo, dificultando até as aos
virtuais enfeitiçados porem-se em guarda contra ele. O que é este feitiço senão a
própria música? (SANDRONI, 2003, 171)
ZAN (1997, 49) aponta como uma das causas das disputas as diferentes
proveniências sócio-econômicas dos sambistas da Estácio em relação aos da Vila Isabel.
Noel Rosa, saído do Bando de Tangarás, no qual também contava a figura de Braguinha e
Almirante, é também apontado por ZAN como outro autor responsável pela depuração do
samba moderno e, nesse sentido, apesar do conteúdo poético antagônico, o pesquisador
aponta Sinhô e os compositores da Estácio de Sá como os mais importantes
influenciadores de Noel (1997, 54).
Sua atuação como espécie de agente mediador entre o cotidiano cruel dos morros
e da malandragem e o mundo dos setores médios da sociedade carioca deu a sua
obra um caráter que talvez fosse insuficiente defini-lo como híbrido. Parece mais
correto dizer que Noel produziu uma nova síntese no samba articulando a uma só
tempo a ideia de “autenticidade” e sofisticação. (ZAN, 1997, 55)
O arranjo proposto é instrumental e, do ponto de vista musical, procura distribuir os
elementos da canção de modo a evitar repetições literais.
Introd.: Trompete e acordeom conduzem a melodia.
1º Chorus (Exposição)
A: violão trombone (melodia) e tamborim;
A’:melodia
em
bloco
(clarinete+alto+tenor+trombone)
x
contracanto
(trompete+flauta+acordeom);
B: antecedente: trêmulo (Flauta+clarinete+acordeon) X melodia (tenor+trompete) e
dobra de trombone+baixo; consequente: Bloco de madeiras com reforço do acordeom;
2º Chorus (Variação)
A: segue o bloco com variação melódica, retirada da flauta e introdução do
trombone e condução melódica através do saxofone alto com reforço de acordeão e
alteração da fórmula do acompanhamento do violão;
A’: modulação ½ tom acima (de Re para Mi bemol maior); contraponto entre flauta
e trompete com surdina; o acompanhamento rítmico passa a ser realizado pelo acordeom e
violão realiza figura conjunta com o contrabaixo;
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B: antecedente: melodia conduzida em uníssonos e oitavas com harmonizações nas
resoluções; pedal agudo em oitavas entre flauta e trompete; levada de partido alto
enfatizando pedal na nota dominante; consequente: variação melódica em tutti ou, no
jargão das Big Bands, um shout.
Reexposição
A: última aparição melódica realizada através do trompete com contracanto de
saxofone tenor (mesmo de A’).
Coda: repetição da frase consequente em bloco de madeiras com acompanhamento
em levada de partido alto polarizando o pedal na tônica (Mi bemol); os três últimos
compassos fazem a última menção melódica sob as harmonias da subdominante e
subdominante menor e acorde final (Eb add.9).
Grosso modo, os arranjos realizados por Pixinguinha no box citado apresentam
repetições através dos ritornelos. A observação e análise de arranjos para Big Band
encontrados em obras como as de STURM (1994) e WRIGTH (1982) apontam para o fato
de, no gênero jazzístico, o arranjador evitar repetições literais. Entretanto, nesse arranjo, as
características brasileiras rítmicas e, em parte harmônicas, foram preservadas no sentido de
se buscar uma não descaracterização do arranjo. No que tange a harmonia, ressalto a
opção por extensões “brandas” como a 6ª maior no lugar da 7ª maior para acordes de I e IV
grau na tentativa de não descaracterizar o gênero.
3.3 “Nenê” (Paulo Tiné)
Nessa composição, além do samba, há a utilização de outros ritmos afro-brasileiros
como o “ijexá”53, e o maracatú, além de trechos mais expressivos sem o uso de ritmos
característicos. A relação entre a estrutura formal e as regiões tonais da peça “Nenê” se dá
seguinte maneira:
“Termo que designa uma nação nagô e também um toque afro-bântico [sic.] de grande influência na
formação dos candomblés baianos”. ANDRADE, 1989, 262.
53
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A
A’
B
C
C’ A” (impro Trb.) A3 (Impro Sax) -
shout
Dó Maior Mib M. Dó M. Si menor....
B”
A4
C”
Fá M.
Dó M
Coda
Mib M. Dó M. Lá m. Dó M.
Quadro 1: Nenê – estrutura do arranjo.
Basicamente a peça está estruturada na forma rondó, o que remete a uma relação de
afinidade com o choro, mas com variações realizadas a cada repetição de A. De uma
maneira geral não há o uso de blocos aplicados à melodia. Entretanto, há o uso do chamado
comping em instrumentos de sopro, fato que remete à mencionada relação da Big Band
com a Banda tradicional, algo semelhante ao que ocorreu nos arranjos de Pixinguinha no
box citado. Observe o trecho abaixo, a melodia está sendo realizada na região grave pelo
contrabaixo e trombone 3 e 4.
Fig.2 Nenê: acompanhamento de madeiras
A melodia da seção B está baseada em arpejos de acordes quartais (por
sobreposição de intervalos de quarta) e notas repetidas. Por isso foram aplicadas a
instrumentos de embocadura livre como os trompetes, trombones e flauta, os quais
realizam tal articulação com mais naturalidade. O trecho abaixo corresponde aos
compassos 12-14 e ao solo de 1º trompete acompanhado pelo naipe de trombone. Nesse
trecho a seção rítmico-harmônica realiza em convenção os mesmos acordes:
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Fig.3 Nenê: início de B
A seção C é caracterizada por um relaxamento da intensidade rítmica que
caracterizava a peça até então. A melodia se torna menos movimentada e em C’ e há a
introdução do intervalo de 6ª abaixo agregado à melodia e de um contracanto aos
trombones em 3ª. O final dessa seção realiza uma modulação para a 1ª seção de
improvisação, executada pelo 2º trombone sobre a harmonia da seção A”, transposta uma
4ª acima da tonalidade original.
A 2ª improvisação retorna à primeira região tonal. Apesar de esta ser a região da
tonalidade de Dó Maior, esse acorde não ocorre em posição fundamental (sem inversão),
deixando a resolução em suspenso. Observe a sequência de acordes que compõem tal
seção:
//: Gsus7(9) /
C7M/G / D/G / G7(11+) / Gsus7(9) / C7M/G / D/G /
Gm7 /
Gb7(11+) / F7M / B7(alt) / Em7 / A7(11+) / Ab7M / % / Am7 /
Ab7(11+) ://
Quadro 2: Nenê – harmonia de A.
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Sobre essa harmonia, na segunda repetição, se dá o pano de fundo no etilo do shout
no naipe de metais. Esse se dá pela sobreposição das técnicas das tríades na camada
superior no naipe de trompetes, estando o 4º trompete oitava abaixo do primeiro, e clusters
e 4way-close no naipe de trombones, estando o 1º trombone realizando a melodia,
juntamente com os trompetes 1 e 4.
Fig.4 Nenê: shout no naipe de metais.
Após o final do solo de saxofone alto, acontece o retorno direto para a seção
B”. A última seção A4 se dá de maneira variada e o último C” ocorre um tom abaixo dos
primeiros e, além disso, com outro contracanto. Por fim, a Coda, realiza duas vezes o
refrão melódico de A, executados pelo 1º trombone e contrabaixo com outra harmonização
para realizar a cadência -II7M(4+) / I7M(4+) com um último arpejo se remetendo à
melodia “quartal” da seção B, finalizando em tutti.
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Fig.5 Nenê: Finale em Tutti.
Os pontos nos quais especificamente o samba é efetivamente executado são nas
frases consequentes de A, tanto nas seções de exposição quanto nas de improvisação.
Nesses pontos o estilo de samba executado pela bateria foi o de samba de prato, estilo que,
como demonstrou BARSALINI (2014), tornou-se célebre através do baterista Edson dos
Santos Machado (1934-1990), em contraposição ao samba batucado de Luciano Perrone
(1908-2001).
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Considerações extramusicais
Farei aqui algumas breves considerações sobre os contextos nos quais as
apresentações do grupo se desenrolaram durante o projeto e também um breve perfil sobre
os músicos que dele participaram54. No período de agosto de 2014 até agora foram
realizadas, além das gravações das peças de referências, seis apresentações, três delas no
espaço Central das Artes, que se localiza no bairro das Perdizes em São Paulo, e cinco
delas ligadas ao Movimento Elefantes, o qual comentarei a seguir.
O Movimento Elefantes é um coletivo de bandas de sopro, muito embora, nesse
contexto social não haja um rigor em relação à denominação. Se, do ponto de vista
musicológico, se pode objetar da expressão, pois “banda” deveria se referir ao universo das
bandas militares ou civis que envolvem os naipes de madeira, metal e percussão, há nesse
terreno cultural uma acepção mais genérica de banda devido à influência da expressão Big
Band no contexto cultural urbano. Supõe-se que essa expressão (Big Band) seja mais
recente, advinda possivelmente da década de 1970, a qual teve os primeiros músicos
advindos da Berklee School of Music, famosa faculdade em Boston-USA. No Brasil, até
então, a expressão utilizada para essa formação era simplesmente “orquestra”, como se
pode verificar a partir da antológica e importante “Orquestra Tabajara” que, além de ter
abrigado artistas como Moacir Santos, K-Ximbinho, Jackson do Pandeiro e o próprio
Hemeto Pascoal55, se tratava de uma formação clássica de Big Band (5 saxofones, 4
trompetes, 4 trombones e seção rítmico/harmônica – guitarra, piano, baixo e bateria).
Nesse sentido, o Movimento Elefantes é um coletivo de Big Bands paulistas que abriga
também os chamados Combos, formações menores que envolvem saxofones, metais e as
chamadas cozinhas (seções rítmico-harmônicas). Além de ocupar espaços culturais
urbanos com apresentações musicais, também realizou um DVD em 2009 e um CD em
2010, cujas cópias eram distribuídas ao final das apresentações e se sugeria que as pessoas
copiassem e passassem adiante sobre o título de “DVDê” e “CDê”. Destaco algumas dos
principais grupos que passaram e outros que ainda permanece no movimento: Sound
Scape; Reteté; Jazzco; Projeto Coisa Fina; Projeto Meretrio; Speaking Jazz; Comboio;
Banda Savana, Banda Urbana, Heartbreakers, entre outras. Algumas delas de relativa
54
Pode-se objetar a respeito da peça Nenê ter sido realizada noutro projeto de pesquisa. Entretanto, o
contexto de difusão foi exatamente o mesmo das peças anteriores.
55
Ver MOURA, Fernando & VICENTE, Antônio. Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo. São Paulo: Ed. 34,
2001.
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relevância no meio musical paulistano, outras menos. No meu caso estive ligado ao
movimento primeiramente através da Big Band da Santa, ligada à Faculdade Santa
Marcelina e, em um segundo momento, através do mencionado Ensemble Brasileiro.
Ressalta-se também o fato do movimento ter ganhou um prêmio de economia criativa
através da iniciativa do “pague quanto vale”, durante o período em que atuou no Teatro da
Vila (2011-2014), localizado no bairro da Vila Madalena, onde o público poderia pagar o
quanto quisesse ou até não pagar. Outra premiação obtida foi o prêmio FUNARTE 2012,
através do coletivo TDV (Teatro da Vila), que contava com outros coletivos além dos
Elefantes ligados à roda de samba; violões e atrações circenses.
Os membros do grupo são, na maioria, músicos profissionais: dos dez integrantes
(eu excluso), apenas dois possuem curso superior incompleto, sete possuem curso superior
completo e um é mestre em artes. Ressalta-se que todos os cursos mencionados são em
música, ainda que possa variar entre as modalidades de composição, licenciatura e
instrumento. Além disso, a exceção do mencionado mestre, todos, em algum momento,
foram meus alunos e todos passaram pelas experiências das Big Bands “acadêmicas” que
coordenei antes de montar o Ensemble.56
Em relação ao público que frequentou as apresentações citadas ele é, na maioria,
composto por aficionados em música instrumental e, muitas vezes músicos membros de
outras bandas do coletivo. De uma forma geral há um intercâmbio muito intenso entre as
bandas e, além disso, muitos parentes e amigos dos músicos costumam frequentas os
shows. Alguns espaços proporcionaram um aumento nesse espectro quase comunitário do
público como a apresentação no Centro Cultural Banco do Brasil, no Largo da Batata e,
principalmente aquele realizado no Centro de Convenções Rebouças, pois se tratou de um
evento de premiação para RH de empresas paulistanas. Claro está que o repertório não foi
constituído apenas das peças em questão, mas também de outras dentro dos gêneros
populares instrumentais da música brasileira57. Nesse sentido, em locais mais voltados para
o público geral, houve uma maior apreciação das músicas mais consagradas em
detrimentos às autorais, que possuem seções de improvisação ou especulações musicais
56
Por acadêmicas, nesse contexto, entendo grupos institucionais ligados a escolas e faculdades de música
onde lecionei como a FAAM (Faculdades Alcântara Machado, ligada à antiga FMU), FASM (Faculdade de
Artes Santa Marcelina) e EMESP (Escola de Música do Estado de São Paulo), anteriores à minha entrada na
UNICAMP.
57
Apresentei a comunicação “Processos Criativos em Arranjos e Composições para Jazz Band/Orquestra
Típica.” no XII congresso da IASPM-AL em Havana, Cuba. Nessa comunicação foi abordado o gênero
Choro presente UFRJ
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nos arranjos. Também ressalto o fato de, devido às intervenções vocais na apresentação,
com músicas com letras (Pelo Telefone, por exemplo), aproximou o público leigo, mas,
por outro lado, afasta o “especialista”. Entretanto o samba, em todos os ambientes é bem
recebido, seja como uma manifestação já estabelecida (público leigo), seja como um dado
de afirmação de identidade cultural (público especialista).
Referências
ANDRADE, Mário. Dicionário Musical Brasileiro. Coordenação: Oneyda Alvarenga,
1982-84, Flávia Camargo Toni, 1984-89. – Belo Horizonte: Itatiaia, [Brasília-DF];
Ministério da Cultura; São Paulo: Instituto dos Estudos Brasileiros da Universidade de São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1989.
CHADA, Sonia. O uso de fontes audiovisuais na Etnomusicologia: dois relatos de
pesquisa. Anais do 2º Encontro Regional Norte de História da Mídia. Disponível em
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:zb8eCihH7AAJ:www.ufrgs.br/alc
ar/encontros-nacionais-1/encontros-regionais/norte/2o-encontro-2012/artigos/o-uso-defontes-audiovisuais-na-etnomusicologia-dois-relatos-depesquisa/at_download/file+&cd=4&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em 16/05/2016.
BARSALINI, Leandro. Estilos de Samba na Bateria. Tese de doutorado. Campinas,
UNICAMP, 2014.
SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro,
1917/1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Ed. UFRJ, 2001.
SZENDY, Peter. Listen: A History of Ours Ears. Trad. Charlotte Mandell. EBOOK:
Fordham University Press, 2008.
SOARES, Astréia. Outras Conversas Sobre os Jeitos do Brasil: o nacionalismo na música
popular. São Paulo: Annablume Fumec, 2002.
STURM, Fred. Changes Over Time: The Evolution of Jazz Arranging. Advance Music,
1996.
ZAN, José Roberto. Do Fundo de Quinta à Vanguarda: contribuições para uma História
Social da Música Popular Brasileira. Tese de Doutorado. Campinas: UNICAMP, 1996.
WRIGHT, Rayburn. Inside Score. New York: Kendor Mucis Inc., 1982.
- Partitura publicada
VIANNA, Alfredo Rocha. O Carnaval de Pixinguinha. São Paulo: IMS/SESC/Imprensa
Oficial-SP, 2014. Partitura. Org. Bia Paes Leme, Marcílio Lopes e Paulo Aragão.
- Áudio
Pelo
Telefone.
Alfredo
Rocha
Vianna
(Pixinguinha).
Disponível
http://ims.com.br/ims/explore/artista/pixinguinha/audios Acesso em 20/05/2016.
em:
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Ouvir-Dançar-Escrever: a “dança” [raqṣ]58 como “audição” [samâ’]59 na
cosmopoesia de Rumi
[primeiro diálogo com Leandra Yunis]
Giselle Guilhon Antunes Camargo*
Universidade Federal do Pará
Vem, entra na alma da alma da alma do samâ’
Vem, para teu cipreste interior no jardim do samâ’ 60
Vem, vem, tu que és a alma da alma da alma do giro!
Vem, cipreste mais alto do jardim florido do giro. 61
Prelúdio: dança, poesia e experiência mística
Em meados de 2013, ao nascer do Sol, em Santa Maria de Belém do Grão Pará,
escrevi um e-mail ao professor Faustino Teixeira, do Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, manifestando
meu desejo de realizar, em 2014, uma pesquisa de pós-doutorado no PPCIR, sob sua
supervisão. A ideia era investigar a natureza da experiência mística compartilhada entre
* Doutora em Artes Cênicas (UFBA/2006). Pós-Doutora em Antropologia Social (UFSC/2007). Professora
da Universidade Federal do Pará, atuando no Curso de Licenciatura em Dança e no Programa de PósGraduação em Artes (PPGArtes) da UFPA. Coordena o Grupo e Projeto de Pesquisa CIRANDA – Círculo
Antropológico da Dança e o Projeto de Pesquisa Etnografando Etnografias: mapeamento das pesquisas em
Antropologia da Dança realizadas no Brasil entre 1988 e 2018, com ênfase na produção da/na Amazônia.
Autora dos livros Sama: etnografia de uma dança sufi (2002), Mukabele: ritual dervixe (2010) e Rumi e
Shams (notas biográficas) (2015). Organizadora da coleção Antropologia da Dança I (2013), II (2015), III
(2015) e IV (2016).
58
Raqṣ: Termo genérico utilizado pelos árabes para designar a forma expressiva que corresponde ao que
denominamos “dança”, no Ocidente. A raiz triliteral rqs ou rqd, encontra-se em outras línguas semíticas.
59
Samâ’: O termo é um masdar (nome verbal) do tipo sam’ e sim’, proveniente da raiz árabe s.m.’, que
significa ouvir, fazer ouvir, palavra ouvida, rememoração, ato de escutar um som produzido por um
instrumento musical ou por outro objeto qualquer. Metaforicamente, o termo significa música, dança, canção,
melodia, estado (hâl), êxtase (wajd), reunião íntima, rememoração. Em persa, para distinguir o ato de ouvir e
de escutar daquele de ouvir uma canção, utiliza-se a forma samâ’ [audição] para o primeiro e sima’ [escuta]
para o segundo. (Cf. YAZICI, 2004 [2003; 1964]) No limite, “o samâ’ [audição] pode ser definido como
dança (raqṣ), uma vez que provoca o movimento do corpo através do wajd (êxtase)” (GHAZÂLÎ (10581111) apud YAZICI, 2004 [2003; 1964], p. 8-9)
60
Extrato do Gazal 1295, n. 1, do Dīvān-e Shams-e Tabrīzī, de Rumi, contido no Kulliāt-i Shams yā Dīwān-i
Kabīr, da edição crítica em persa de Badî‘ Al-Zamân Furûzanfar. Teheran: Amir Kabîr, 1957. [Tradução:
Leandra YUNIS, 2016. [Tese de Doutorado (em andamento) em Estudos Árabes (USP) submetida à
Qualificação]
61
Ibidem. [Tradução: José Jorge de CARVALHO. Poemas Místicos – Divan de Shams de Tabriz. São
Paulo: Attar Editorial, 1996, p. 146.]
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Rumi (1207-1273) e Shams (1185-1248), esses dois “oceanos” da mística islâmica, que se
inspiraram mutuamente, inundando o ambiente sufi de sua época com dança, música e
poesia. O projeto que encaminhei efetivamente ao PPCIR, “Buscadores do Mistério: amor,
poesia e experiência mística entre Rumi e Shams”, alterado depois para “Rumi e Shams:
dança, poesia e experiência mística no Sufismo do século XIII”, resultou em uma
minibiografia – entremeada com citações e poesias de Rumi e Shams, retraduzidas a partir
de traduções do persa ao francês e ao inglês –, publicada pela Fonte Editorial, de São
Paulo, em 2015, sob o título Rumi e Shams (notas biográficas). Faustino me sugeriu, à
época, que eu concluísse o pós-doutoramento com essa publicação, mas eu não estava,
ainda, satisfeita, de modo que lhe pedi que adiássemos um pouco a conclusão – até que eu
escrevesse (e publicasse) pelo menos mais um artigo. O ano de 2015 transcorreu sem que
eu tivesse qualquer inspiração que me mobilizasse a retomar o tema. Somente em 2016,
quando recebi o convite para participar, na USP, da banca de qualificação (Doutorado em
Estudos Árabes) de Leandra Elena Yunis, voltei a me reconectar com o universo de minha
pesquisa. O presente texto tem por intenção revelar a trama desse primeiro diálogo. O
segundo será tecido em 2017, após a defesa da tese de Leandra.
Audição 1: da dança ao movimento anímico-intelectivo à poesia que dança
A tese de doutorado, intitulada A dança no gazal de Rumi: por uma samatradução,
da historiadora, dançarina e tradutora Leandra Elena Yunis, submetida, parcialmente
(capítulos I, III, IV e VI), para fins de Qualificação, à minha apreciação, foi desenvolvida
no Programa de Pós-graduação em Estudos Árabes e Judaicos, do Departamento de Letras
Orientais da Universidade de São Paulo. Tecida na fronteira transdisciplinar da Dança com
a História e a Literatura, propõe-se a investigar a noção de dança na poesia do místico
persa Jalaluddin Rumi (1207-1273), traduzida diretamente do farsi ao português,
contextualizando-a no ambiente místico, filosófico e teológico do Islã medieval.
Nas leituras preliminares dos poemas de Rumi, sobretudo nas traduções inglesas
(NICHOLSON, 1940; ARBERRY, 1968, 1961; BARKS, 1995; LEWIS, 2008a)
e
francesas (MEYEROVITCH e MOKRIM 1973), Yunis identificou certas “incongruências”
nas traduções dos termos samâ’ [audição] e raqṣ [dança]. Do seu ponto de vista, a
utilização imprecisa dessas categorias complicou o entendimento da noção de dança na
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
poesia de Rumi, fora de seu contexto, “interferindo na interpretação histórica da posição
teologal de Rumi a respeito da audição [samâ’] sufi e da dança [raqṣ] devocional”. Assim
sendo, optou por apresentar, na tese, apenas traduções diretas.
O árduo e, ao mesmo tempo, delicado trabalho de seleção e tradução resultou na
reunião de 15 poemas líricos (rubais e gazais) e 70 dísticos do Masnavi, com versos que se
referem à audição [samâ’] e à dança [raqṣ] – e ao movimento espiritual. Tais poemas e
dísticos foram vertidos das principais obras de Rumi: 1) Dīvān-e Shams-e Tabrīzī, contido
no Dīvān-e Kābir, a partir da edição crítica em persa de Badi Alzaman Foruzanfar; e 2)
Masnawī-ye ma‘nawī, da versão bilíngue de Reynold Alleyne Nicholson, cotejada com as
correções e ampliações de Arthur Arberry e, em alguns casos, com as traduções de
Franklin Lewis, Afzal Iqbal, Annemarie Schimmel, Coleman Barks e Eva de VitrayMeyerovich & Mohammed Mokri.
Em sua pesquisa anterior, intitulada Êxtase, poesia e dança em Rumi e Hafiz,
desenvolvida em nível de mestrado, Leandra Yunis interpretou a imagem da dança em
Rumi [e também em Hafiz] à luz da teoria da metáfora viva [e metafísica] de Paul Ricouer,
considerando-a, ainda, por ser movimento, um estímulo extático relevante para a
performance do Samâ’ [audição musical acompanhada de giros, característica da Ordem
Mevlevi]. Nesse primeiro estudo, Yunis constatou que “a metáfora da dança leva o ouvinte
a sentir o movimento que, sendo imaginado, estimula o córtex motor através do córtex prémotor, induzindo o corpo a respostas motoras e reações fisiológicas concretas”. Essas
reações participariam, segundo a pesquisadora, da formulação do sentido não verbal do
discurso poético, conforme a teoria cognitiva da metaforização corporal, podendo ser
explicado, para fins de compreensão da imagem da dança na poesia de Rumi, nos seguintes
termos:
A metáfora da dança, referindo-se ao movimento corporal e ao movimento
metafórico em si, teria uma metaforicidade ambivalente e funcionaria como
metáfora metafísica que se estabelece pela interface dialógica entre discursos
filosóficos e religiosos de âmbito comum, conforme pudemos atestar entre a
tradição avéstica e a islâmica [referindo-se à pesquisa de mestrado] e, na
presente pesquisa [referindo-se à pesquisa de doutorado], com as tradições
judaicocristã e, hipoteticamente, o budismo afegão. (YUNIS, 2016)
A pesquisa sofreu, entretanto, um redirecionamento importante no que diz respeito
ao “tratamento” da imagem da dança [metáfora da dança] em Rumi: antes [no mestrado],
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Yunis estava considerando a dança em seu aspecto cinético [movimento] e extracinético
[significação cultural]; agora [no doutorado] passou a adotar o binômio aristotélico kínesis
(κίνησις) [comportamento coreográfico e/ou extático que se exprime exteriormente (ẓāhir)]
e metabolé (μεταβολή) [movimento anímico-intelectivo que se dá no trânsito de um a outro
estado (hāl) ou estação (maqām) no interior (bāṭin) do místico]. Esse segundo binômio
revelou-se bem mais eficaz do que o primeiro para a compreensão do modelo cosmológico
que inspira, orienta e habita as imagens dançantes da poesia de Rumi. E é justamente nessa
matéria – da indicação e descrição de modelos cosmológicos e/ou hermenêuticas
espirituais operantes no imaginário de Rumi – que minhas hipóteses se diferenciam, em
alguns pontos, das de Yunis. Mas antes de confrontarmos essas hipóteses, a fim de que
possamos melhor compreender o sentido da dança [raqṣ], da audição [samâ’] e do
movimento anímico-intelectivo [metábole] na poesia de Rumi, a partir das traduções de
Leandra Yunis, sugiro que levantemos algumas questões.
Audição 2: metáfora da metáfora da metáfora da metáfora
Qual a especificidade da percepção de Rumi acerca da dança [imagem percebida]?
Como e em que medida essa percepção orienta sua criação poética [imagem criada ou
imaginada]? Em que consiste a singularidade desse approach, que explique seu interesse
privilegiado pela dança? De que modo ele opera a transmutação da percepção imagética da
dança [forma expressiva cinestésica de uma corporeidade dançante] em imagem [poética]
dançante? Ou, noutros termos, como se efetua a conversão da dança [imagem percebida,
aparentemente estável e puramente espacial] em imagem dançante [imagem criada ou
imaginada, temporalizada e fugaz], e desta em imagem poética dançante [poesia que
dança]? Como se dá o processo de criação [imaginação criativa ou imageante] dessas
imagens dançantes em Rumi? Que elementos do imaginário islâmico medieval e, mais
especificamente, do Sufismo persa, veem-se refletidos nas imagens poéticas dançantes de
Rumi?
É o próprio Rumi quem metaforiza [poeticamente] a imaginação (ẖayāl), que cria,
por sua vez, as imagens dançantes que metaforizam [poeticamente] a dança, incitando e
exaltando a ação de imaginar e dançar: “No altar do coração tem dias que a imaginação
dança” (Rubai 717, Tradução I, n. 1) ou “A imaginação dança, em oração avança” (Rubai
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717, Tradução II, n. 1) ou “Dançando imagens o coração acorda” (Rubai 717, Tradução III,
n. 1) ou, ainda, “Rezando, às vezes, a mente dança” (Rubai 717, Samatradução, n. 1) // “No
véu do coração imagino tua dança” (Rubai 1342, Tradução I, n. 2) ou “Imagino-te dançar
sob o véu do coração, [no tom do coração]” (Rubai 1342, Tradução II, n. 2) ou, ainda, “Em
meu coração te imagino dançar” (Rubai 1342, Samatradução, n. 2). (Traduções e
Samatraduções: YUNIS, 2016)
Em sua análise do Rubai 1342 (Tradução II, n. 2), no que tange ao entendimento da
categoria imaginação, Yunis interpreta a imaginação (ẖayāl) que dança ao tom do coração
(qalb) – “Imagino-te dançar sob o véu do coração, [no tom do coração]” – como
“vibração” das verdades a serem desvendadas, provenientes da criação divina. Essa
ressonância [relação de correspondência com a divindade] se dá através da dança. Depois
conclui: “É na imaginação que reside a relação íntima e impenetrável entre criatura e
Criador, pela dança interior que conecta a palavra [formas inteligíveis de canções e versos]
ao indizível [mundo intangível dos tons do coração], não em termos de cínese, mas de
metábole, pela transmutação dos estados anímicos e intelectivos. ” (Ver YUNIS, 2016)
Faz-se necessária uma rápida, porém essencial, intelecção aqui: não é exatamente
na imaginação que reside a relação entre criatura e Criador, em Rumi, mas “sob o véu do
coração”, no “véu do coração”, na “casa do coração”, na “tábua do coração”, no “altar do
coração” – metáforas que Rumi utiliza para se referir ao coração sutil (qalb) [órgão da
percepção suprassensível] – onde “imagino-te dançar”. Não é, portanto, a imaginação que
me faz “imaginar-te dançar sob o véu do coração”, mas a “escuta [samâ’] do coração”, o
“tom do coração”. São eles que me fazem, ao inverso, imaginar, criativamente, a dança que
tu danças no coração. Faz, então, sentido afirmar que “A imaginação que dança ao tom do
coração é a criação divina que vibra ali”. Ao usar as metáforas “alma que borda”, “nota
que colore”, “pena que corre [risca] e tinta [pinta]”, “tom do coração”, “tonalidades que
tocam [marcam] o coração”, Rumi não está sendo, ainda que pareça contraditório,
metafórico, mas literal. Chamou-me a atenção um brevíssimo comentário feito pela autora
em sua Revisão Bibliográfica, inserida no Capítulo I, intitulado “Introdução”, acerca da
dicotomia símbolo/referencial, em Rumi:
Afzal Iqbal, o primeiro autor a sistematizar uma biografia crítica de Rumi em
língua inglesa, destaca que a dança, os músicos e as referências ao ritual são
concretos em Rumi, como corroboram Franklin Lewis e William Chittick, não
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obstante outros tradutores e estudiosos biográficos, como Annemarie Schimmel
e Eva de Vitray-Meyerovitch, enfatizarem o seu valor simbólico. Em nossa
investigação literária e histórica verificamos que a rede metafórica da dança
ultrapassa a dicotomia símbolo-referencial e aponta para uma dimensão até agora
pouco explorada. (YUNIS, 2016) [negritos meus]
Analogamente, para que possamos compreender tal literalidade, no que tange às
tonalidades que tocam, marcam, riscam, colorem e iluminam o coração sutil (qalb), nos
poemas dançantes de Rumi, precisamos travar contato com a hermenêutica espiritual que
alimentou, à época – esta tem sido minha insistente hipótese –, a imaginação criativa do
poeta. Trata-se da fisiologia dos órgãos sutis da percepção [“fisiologia do homem de luz”]
e da doutrina dos fotismos luminosos, descritas no Tafsir (literalmente, “exegese”), de
Najmuddin Razi (?-1256), contemporâneo de Rumi, discípulo direto de Najmuddin Kubra
(1145-1221), eminente mestre sufi da Ásia Central, que fora mestre de Bahauddin Walad,
pai de Rumi e mestre de Baba Kemal que, por sua vez, fora mestre de Shamsuddin de
Tabriz, principal mestre de Rumi. Sua obra ficou inacabada e foi continuada por
Alaoddawleh Semnani (1261-1336), Sheikh pertencente a uma nobre família de Semnan,
cidade situada a uns 200 km a leste de Teheran.
Partindo do pressuposto de que as partes que constituem o ser humano são
fragmentos de suas homólogas cósmicas, Kubra recorreu à imagem de sua predileção, a
pedra preciosa, para formular uma hermenêutica espiritual (fisiologia dos órgãos sutis da
percepção), na qual a “pedra” – metáfora para cada órgão ou centro sutil (latifa) – está
associada a uma metafísica da luz que se reflete no Infinito:
Cada pedra preciosa (ou seja, cada um dos elementos do homem de luz) que está
em ti, provoca em ti um estado místico ou uma visualização no Céu que lhe
corresponde [...]. [...] Cada vez que ascende de ti uma luz, desce em direção a ti
uma luz, e cada vez que teus raios de luz ascendem, descem, igualmente, em tua
direção, raios de luz que lhes correspondem. [...] Se essas energias tiverem a
mesma qualidade, encontrar-se-ão a meio-caminho (entre o Céu e a Terra). Mas
quando a substância de luz que habita em ti, crescer será ela o Todo, em relação
à sua homogênea, no Céu. Então será a substância de luz, no Céu, que suspirará
por ti, pois será a tua substância que lhe exercerá atração e ela descerá em tua
direção. Esse é o segredo do caminho místico. (KUBRA apud CORBIN, 1971, p.
84 apud CAMARGO, 2010, p. 148-149) [Tradução: Giselle Guilhon]
Audição 3: liberando a energia espiritual
Sobre o processo de criação poética na mística, Yunis (2016) destaca os estudos
mais recentes de Leonard Lewisohn (1997, 2014) e Patrick Laude (2005), baseados na
premissa lançada por Seyed Hossein Nasr de que “a ciência poética no islã medieval
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funcionaria como um modus operandi da natureza e consistiria na perfeita receptividade
das ressonâncias anímicas e espirituais da mensagem divina através do âmbito corpóreo”
(NASR apud LAUDE, 2005, p. 51 apud YUNIS, 2016):
Segundo o preceito, a escrita [poesia] e a expressão corporal [dança], ao serem
regidas ambas pelos mesmos princípios cósmicos, se concretizariam como
signos, representações microcósmicas e arquetípicas sob as quais a realidade
sutil e a verdade inefável se ocultam, abrindo a fresta para a dimensão interior e
inconsútil. (Ver ADONIS, 2008, p. 202 apud YUNIS, 2016)
Mais adiante, Yunis (2016) reforça a premissa de que não há cisão entre o ‘eu’ e a
natureza no pensamento islâmico medieval. Do mesmo modo, eu diria, que não há cisão
entre os átomos e o Cosmos, que podem ser vistos, respectivamente, como metáforas do
‘eu interior’ e da Natureza. Do infinitamente pequeno ao infinitamente grande – átomos,
corpos, planetas, sóis, galáxias –, tudo está em correspondência e harmonia cósmica, na
poesia de Rumi. O que está em cima e o que está embaixo. O que está dentro e o que está
fora. Olhemos (e escutemos) esse espelhamento nos extratos samatranscritos por Leandra
Yunis (2016): “O Amor Divino, dançarino se faz nas alturas; / tal como o disco, de cheio
em minguante, da lua.” (Masnavi I, 1346) // “Por que danço sob o Sol? Todo átomo dança
memorável” (Gazal 621, 1) // “Os átomos dançam / Por Ele as esferas e o céu dançam”
(Rubai 515, 1) // “Sol, lua, estrelas dançam em rotações, / e nós, no eixo dançante” (Gazal
196, 2) // “Os corpos dançam e as almas, mais ainda. / A Alma gira nelas; elas em si, mais
ainda” (Masnavi I, 1347) // “Uma alma como cem universos dança” (Rubai 717, Tradução
I, 1). Assim sendo, citando uma vez mais Patrick Laude, reitera Yunis: “o corpo reflete de
forma direta e espontânea a beleza divina atribuída a toda criação, diferente[mente] da
alma que, em sua múltipla interface de função mediadora, pode obliterar-se na matéria”
(LAUDE, 2005, p. 52-57 apud YUNIS, 2016) Em consonância com esse princípio
medieval da correspondência harmônica entre natureza e linguagem [dança, música,
poesia...], Yunis conclui que “a dança pode ser considerada um mecanismo especial de
inspiração poética, já que a função cósmica do corpo é justamente refletir os movimentos
da alma” que, por sua vez, acrescentemos, refletem os movimentos cósmicos: “A alma não
é oculta ao corpo ou o corpo à alma” (Masnavi I, 8) // “Do palmeado das folhas não tens
noção / pois o corpo não tem a escuta do coração” (Masnavi III, 100) “Dança ali, onde teu
eu se rompe” (Masnavi III, 95).
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3252 Luz do espírito o miolo, a casca esfera celeste.
Uma se faz visível; o outro enigma veste.
3253 O corpo é manifesto; o espírito, encoberto:
o corpo tal manga, o espírito, mão decerto.
3254 Mais que o espírito, o intelecto é encoberto.
Mas a percepção dá passo ao espírito, mais perto.
3255 Sabes pelo movimento que ali há vida.
Não sabes que é de intelecto preenchida.
3256 A cabeça é que regula o movimento,
faz do cobre ouro, no ato do conhecimento.
3257 Com a habilidade em tuas mãos
compreendes o intelecto em ação.
(RUMI, Masnavi: 3252-3257.
Samatradução: Leandra YUNIS)
Yunis (2016) afirma ter selecionado esse trecho do Masnavi, [que inclui mais
alguns dísticos que não transcrevi aqui], porque, de seu ponto de vista, ele sintetiza a noção
de gnose mística do autor, ao mesmo tempo em que revela sua cosmovisão de corpo, alma,
espírito, intelecto, intelecto universal e espírito divino, orientando-se hierarquicamente no
sentido exterior-interior, sendo o íntimo do coração o lócus do encontro (wujūd) [wajd]
com as realidades espirituais superiores. Segundo sua compreensão, tal sistema diverge
relativamente daquele desenhado por Al-GHAZÂLÎ (1058-1111) – corpo, alma, intelecto,
espírito e éter – “de onde Rumi, provavelmente, teria absorvido certa influência aviceniana
e diverge, sobretudo e de modo mais surpreendente, das noções apresentadas pelos demais
mestres sufis que atribuem à alma uma conotação sempre [nem sempre] negativa,
associada aos impulsos negativos e aos defeitos morais”. Encontra mais similaridade entre
a cosmovisão de Rumi e a Teologia de Aristóteles, com o que considera “uma sutil
variação” da noção de alma:
[...] se na teoria plotiniana a alma é ambivalente, simultaneamente múltipla e
una, receptiva e sujeita à decadência [frente aos] estímulos da matéria e[,] ao
mesmo tempo[,] capaz de conhecer e de elevar-se num movimento similar ao do
ato intelectivo, em Rumi a alma está ligada de forma positiva à imaginação e sua
gnose ocorre em associação ao espírito e não ao intelecto.
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O intelecto parcial ou individual deriva, por sua vez, do Intelecto Universal de
modo similar ao que vemos na obra plotiniana; porém, Rumi parece
compreendê-lo no sentido de uma faculdade instrumental, desiderativa e
estimativa, tal como as que Avicena atribui também aos animais.
Não obstante, espírito (rūḥ) em Rumi apresenta as mesmas características da
dimensão una e intelectiva da alma plotiniana e, por vezes, seu sentido é
intercambiável com o de alma. Trata-se, a nosso ver, de uma síntese entre as
noções teologais neoplatônica e gazaliana, construída em parte a partir da
assimilação semântica do falso cognato do termo persa jān [alma, espírito] com o
termo árabe unificação (jamᶜ), o que permitiu a retomada do traço conceitual
grego. Assim, o espírito [rūḥ] seria a alma em sua dimensão unitiva, espiritual e
superior, enquanto a alma [naf] representaria a pulsão anímica inferior e
múltipla. A diferença entre Rumi e os demais autores místicos é que ele não
distingue o termo nafs, arabizado do grego nous (νους), do termo persa jān, de
modo que para o poeta a alma [naf], em sua dimensão espiritual ou mundana é
uma e única dimensão e não têm a conotação negativa dos textos islâmicos.
(YUNIS, 2016)
Mais adiante, na mesma sessão dos Comentários, Yunis introduz uma citação de
Makki (?-996), citado por Hujwiri (990-1077), que se aproxima, à primeira vista, da
cosmovisão de Najmuddin Kubra (1145-1221) e de seus discípulos Najmuddin Razi (?1256) e Alaoddawleh Semnani (1261-1336), já mencionados. Para fins de comparação,
reproduzo dois extratos que descrevem, respectivamente, as duas cosmovisões:
Deus [...] aprisionou o coração [qalb] no espírito [ruh] e o espírito na alma [naf]
e a alma no corpo; então misturou o intelecto (ᶜaql) com eles e enviou-lhes
profetas e deu comandos, daí cada qual começou a buscar sua estação de origem.
Deus ordenou que orassem. O corpo sinalizou a si mesmo a orar, a alma [naf]
obteve o amor, o espírito [ruh] chegou próximo a Deus e o coração [qalb]
encontrou paz na união com Ele. (MAKKI apud HUJWIRI, 1911, p. 309 apud
YUNIS, 2016)
Quando a natureza esotérica que designa os gênios e as faculdades se torna pura,
contempla-se nela o que lhe é homólogo no Macrocosmo. O mesmo é verdadeiro
para a alma (naf), o intelecto (‘aql), o coração (qalb), o espírito (ruh), a
transconsciência (sirr), o arcano ou centro intuicional (khafi), o lugar interior
onde se desvelam os atributos divinos que embriagam – onde se diz: “eu sou teus
ouvidos”, “eu sou os teus olhos” [...] – até a consciência profunda (haqq).
(HAMADÂNÎ apud CORBIN, 1971, p. 80) [Tradução: Giselle Guilhon]
Audição 4: dançando com os átomos e as estrelas
Se partirmos do pressuposto de que a poesia [incluindo a música e a dança] e a
história são meios de organizar ideias e informações culturais, exprimindo, em
configurações diversas, distintas formas de experiência humana [ouvir, dançar, escrever]
através do tempo – uma no ser [corpo/alma/coração/intelecto/espírito/consciência/intuição]
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e outra no ambiente [contexto/cultura/sociedade] de existência desse ser –, a poesia pode
ser vista como um produto histórico ou mesmo transhistórico, da ação humana:
[...] cada [ser] constrói uma [poética] própria que, no entanto, é relativa ao
conjunto de conhecimentos disponibilizados em cada circunstância histórica e
aos padrões associativos que o [ser] desenvolve para estabelecer as suas
correlações com o mundo – outros [seres], outras [poéticas], outros
conhecimentos. (BRITTO, 2008, p. 30)
Como qualquer outra produção humana, a poesia [incluindo a música e a dança] se
modifica ao longo do tempo, articulando-se ao mundo como um sistema cultural, através
de trocas informativas de caráter contaminatório. Inteiramente diferente da noção de
“transferência” de características, contida na ideia de “influência”, a ideia de
“contaminação” refere-se ao caráter residual da interatividade processada entre múltiplos
agentes. Um relacionamento gerador de efeitos não planejados que se propagam ao longo
do tempo (Cf. BRITTO, 2008, p. 30):
O sentido de historicidade da [poesia] é destilado deste seu modo de existir – que
envolve uma complexa rede de implicações temáticas, cuja compreensão lógica e
sua sistematização narrativa dependem de um aparato teórico de equivalente
complexidade. (BRITTO, 2008, p. 30-31)
A pesquisadora Leandra Yunis demonstra estar consciente dessa complexidade,
fato que se confirma através do amplo quadro de referências místico-filosóficas que
apresenta em sua tese, com a clara intenção de revelar o ambiente intelectual com o qual
Rumi esteve, direta ou indiretamente, em contato e, ao mesmo tempo, dar sustentação às
suas hipóteses intuitivas [formuladas nas traduções e samatraduções] e intelectivas
[formuladas nos “comentários” às referidas traduções] sobre a natureza das imagens
poéticas em Rumi. Referências provenientes tanto da Teologia Corânica, vertida pelos
sufis em forma de exegese espiritual intuitiva, baseada na experiência interior da palavra
sagrada, quanto da Falsafa (Filosofia Árabe Islâmica), que abarcou, indistintamente, por
desconhecimento do grego, a herança aristotélica e platônica, apropriando-se do
pensamento grego por meio de retraduções do persa, siríaco, sânscrito e hebraico. Ressalta
que “entre os filósofos persas, o pensamento grego fora acomodado em um ambiente que
amalgamava maniqueísmo, mazdaísmo e zoroastrismo a um neoplatonismo anterior trazido
do século VI por filósofos gregos refugiados na corte de Anushiwar da perseguição de
Justiniano”. (Cf. BELO, “Introdução” d’A Teologia de Aristóteles [tradução: Catarina
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Belo], 2010, p. 13-24 apud YUNIS, 2016 [nota de rodapé]) Não deixa de mencionar
também a importância da Casa da Sabedoria (Bayt Al Hikma), na Bagdá do século VIII,
universidade estatal cujo projeto tradutório, dirigido por Al Kindi, reunia todos os textos
disponíveis das mais antigas e importantes civilizações, entre os quais a Teologia Mística
de Pseudo Dionísio-Aeropagita, Corpus Hermeticum de Hermes Trimegistos e A Teologia
de Aristóteles, que reúne excertos de textos plotinianos traduzidos pelo cristão sírio AlHimsi (século IX) e editados por Al-kindi (801-873). Mais tarde, no século XIII, a
universidade e sua biblioteca seriam destruídas pelos mongóis e seu acervo (mais de 400
mil manuscritos) transferido para Maragha, cidade persa situada na província iraniana do
Azerbajão Central. (Cf. YUNIS, 2016) Para que percebamos mais concretamente a
reverberação dessas contaminações – mazdaísta, hermética, neoplatônica (via Falsafa),
corânica, sufi – na cosmopoesia de Rumi, citarei, abaixo, alguns extratos poéticos, a partir
das traduções e samatraduções de Yunis (2016), os quais iluminam, inversamente, tais
sistemas místicos, filosóficos, teologais. Vamos ao primeiro extrato:
7 Dança feito Rei-Sol, não fogo de palha;
Vem-me às mãos o graal, meu ídolo dançante
(RUMI, Gazal 189 / Tradução: YUNIS)
Yunis introduziu o epíteto Sol para preservar a referência a Ahura-Mazda, divindade persa
protomonoteísta e pré-islâmica associada ao fogo e celebrada na primavera com danças em
torno de fogueiras ascendidas com “madeira da faia”, expressão que substituiu por “fogo
de palha” com a finalidade de opor a importância espiritual do rei à obsolescência da
matéria: “O mazdaísmo utilizava vinho e dança de forma ritual para acessar níveis
diferenciados de consciência, mas o ídolo dançante aqui alude ao amado arquetípico;
Rumi, porém, aproveita a simbologia da hierofania ígnea e seus universais atributos de
sabedoria/calor” (YUNIS, 2016). Vejamos esse segundo agrupamento de versos:
2 O esplendor da Sua face cai feito chuva em cada átomo
Nessa volúpia, cada átomo procria mais centenas de átomos
(RUMI, Gazal 621 / Tradução: YUNIS)
2 No calor / se faz nuvem / Volúpia em gotas / se multiplica
(RUMI, Gazal 621 / Samatradução: YUNIS)
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Nesses versos, Rumi dialoga claramente com a teoria cosmológica da emanação, de
Al-Farabi (872-950), filósofo árabe que atualizou o neoplatonismo presente na metafísica
de Aristóteles, criando um sistema metafísico de grande complexidade. Pela exposição do
Ser Primeiro – que guarda semelhanças com o Uno de Plotino –, explicou seus atributos e
o modo pelo qual a aparente multiplicidade das coisas existentes no mundo derivou d’Ele.
Numa formulação bastante original, de um ponto de vista islâmico ortodoxo, a metafísica
da criação de Al-Farabi fez com que o Ser Primeiro, em sua unidade absoluta, emanasse de
si a multiplicidade dos seres – cosmologia que foi adotada, posteriormente, por Ibn Sina
[Avicena]. (Ver ATTIE FILHO, 2002, p. 200). Passemos ao terceiro conjunto de versos:
1 Desperta dia! Os átomos dançam
Por Ele as esferas e o céu dançam
(RUMI, Rubai 515 / Tradução: YUNIS)
6 Ainda que o céu se sobreponha à sétima esfera celestial
Além dali ainda há degraus para o samâ’
(RUMI, Gazal 1295 / Tradução: YUNIS) ou
6 Sobe além / da sétima esfera / celestial /
degrau por degrau / atinge / a audição mística
(RUMI, Gazal 1295 / Samatradução: YUNIS)
A emanação segue uma hierarquia que se inicia pelo ser mais próximo e mais
perfeito em relação ao Ser Primeiro, e segue em escala descendente até o ser menos
perfeito. A existência dos seres a partir do Primeiro se faz por emanação desse Ser [“Sua
face cai feito chuva em cada átomo”] à medida que Ele dá origem às outras coisas [“cada
átomo procria mais centenas de átomos”] de modo que toda existência emana
necessariamente de Sua existência: “Do Primeiro procede o ser segundo, que também é
uma substância absolutamente incorpórea e não está em uma matéria. Ele intelige sua
essência e intelige o Primeiro e isso que ele intelige de sua essência não é outra coisa senão
sua essência. Enquanto ele intelige algo do Primeiro resulta necessariamente dele o ser de
um terceiro.” [E assim sucessivamente.] (AL-FARABI apud ATTIE FILHO, 2002, p. 209).
Al-Farabi continua sua descrição cosmológica que alia o princípio plotiniano da emanação
ao sistema geocêntrico de Ptolomeu:
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O processo repete seguidamente o esquema precedente: cada nova inteligência
conhece sua própria essência e conhece algo do Primeiro, resultando, em cada
etapa, uma nova inteligência, uma esfera correspondente a cada um dos planetas
e uma alma que move essa esfera. Tal processo, seguindo em fases sucessivas,
emana ou “cria” dez inteligências sucessivas que correspondem às seguintes
esferas dos planetas com suas respectivas almas que as movem:
[PRIMEIRA INTELIGÊNCIA]
segunda inteligência: primeiro céu;
terceira inteligência: esfera das estrelas fixas;
quarta inteligência: esfera de Saturno;
quinta inteligência: esfera de Júpiter;
sexta inteligência: esfera de Marte;
sétima inteligência: esfera do Sol;
oitava inteligência: esfera de Vênus;
nona inteligência: esfera de Mercúrio;
décima inteligência: esfera da Lua;
[mundo sublunar: Terra]
A emanação segue ritmada até a décima inteligência e é descrita como uma
superposição incorpórea de cada uma delas em sequência necessária, compondo
um sistema de esferas desde o Ser Primeiro até a esfera da Lua, tendo a Terra
como centro. (AL-FARABI apud ATTIE FILHO, 2002, p. 209)
Segundo Yunis, “se o samâ’ pode ser sintetizado coreograficamente pelo ‘giro’,
isso se deve à noção pitagórica da rotação circular das esferas celestiais cuja mimetização
corporal [produz] o conhecimento das realidades ocultas” (YUNIS, 2016): “Os corpos
dançam e as almas, mais ainda. / A Alma gira nelas; elas em si, mais ainda.” (Masnavi I:
1347) E chegamos ao quarto verso:
2 Sol, lua, estrelas dançam em rotações,
nós no eixo dançante
(RUMI, Gazal 196, Tradução: YUNIS)
Aqui podemos intuir uma contaminação das ideias de Hermes Trimegistos (100300 a. C.), contidas no Corpus Hermeticum, acerca do movimento giratório. Em seu
diálogo com Asclépios, Trimegistos afirma que todo móvel é movido não em qualquer
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coisa que se move, mas em qualquer coisa em repouso, assim como o motor, que está em
repouso, pois não pode ser movido com aquilo que move. Daí se conclui que todo
movimento é feito numa imobilidade, como o movimento dos planetas, que consiste em
girar em torno dos mesmos eixos: “[E] o movimento circular não é nada mais que o
movimento em torno de um mesmo centro firmemente contido por uma imobilidade. Com
efeito, o movimento em torno de um mesmo centro exclui a possibilidade de um
movimento do eixo.” (TRIMEGISTOS [100-300 d. C.] apud CAMARGO, 2002, 57)
Conforme Yunis, pela imagem da dança esférica que aparece no 2º verso [“Sol, lua,
estrelas dançam em rotações, / nós no eixo dançante”] se indica o aspecto cinético do giro
no sentido da mímesis e da conexão objetiva com a rotação dos astros:
O que distingue a dança do centro/eixo dançante da dança exterior?
Provavelmente a conexão interior com o sentido e significado do movimento
cósmico. Conforme a noção pitagórica e platônica difundida na mística persa,
quando os astros giram em torno do próprio eixo desenhando o perímetro das
órbitas, a alma recebe esse estímulo através de uma espécie de reverberação
circular ou espiralada e dança então impulsionada pela vibração das esferas
superiores. Esse giro é [a] expressão cinética do processo metabólico, não do
movimento coreográfico exterior. (YUNIS, 2016)
Último Prelúdio: quando a dança se torna audição e vice-versa
Duncan Macdonald (1901, p. 236), em sua tradução do Kitâb âdâb al-samâ’ wa alwajd (O Livro dos Usos Corretos da Audição e do Transe), de Abu Hamid Muhammad AlGhazâlî (1058-1111), traduz a palavra samâ’, ora por listening to music and singing, ora
por hearing to music and singing, ora por listening, ora por hearing, ou, ainda,
simplesmente, por music ou singing. Entretanto, em seu artigo Samâ’, que está na
Encyclopédie de l’Islam (MACDONALD, 1908), lê-se que a palavra “tem um sentido
particular no Sufismo, onde significa escutar a música, os cantos, os salmos ou a recitação
rítmica, a fim de chegar à emoção religiosa e ao êxtase (wajd), designando, também, os
cantos e a música vocal e instrumental que escutamos com este propósito.” James Robson
(1938), na sua tradução inglesa do tratado sobre o samâ’ de Majd al-Dîn Ahmad al-Tûsî,
irmão de Al-Ghazâlî, traduz a palavra por audition. Henry George Farmer (1929, p. 140)
traduz o samâ’, genericamente, por listening to music, chegando também a traduzir,
simplesmente, por music. John Spencer Trimingham (1971) traduz por spiritual concert.
Louis Massignon (1922, p. 85) traduz samâ’ por concert spirituel ou oratorio, palavras que
foram utilizadas, mais tarde, por Mohammad Mokri (1961, p. 1014-1015) e Eva de Vitray131
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Meyerovitch (1972). Henry Corbin (1964, p. 260), por sua vez, a traduz por audition
musicale, expressão compartilhada, mais recentemente, por Jean-Louis Michon (1994),
que utiliza também audition spirituelle. Marijan Molé (1963), no seu longo artigo sobre a
dança extática do Islã, utiliza constantemente a palavra samâ’ sem jamais traduzi-la.
Gilbert Rouget (1990 [1980])62 em seu livro A Música e o Transe e Jean During (1988) em
Música e Êxtase concordam em traduzi-la por audition, embora traduzam wajd
diferentemente: Rouget por transe e During por extase. Porém, acrescenta Rouget, como a
relação entre o samâ’ (audição) e o transe (wajd) é muito estreita, no limite da palavra,
samâ’ significa, ainda, “estado de transe” 63:
Nós podemos, com efeito, dizer entrer en samâ’ [entrar em samâ’] ou être saisi
par le samâ’ [ser possuído pelo samâ’], ou, ainda, être en samâ’ [estar em estado
de samâ’]. No sentido prático [corporal], [...] o termo equivale à “dança
extática”. [...] No limite, ainda, samâ’ significa “música”, ou qualquer coisa
equivalente, porque nós podemos dizer entendre le samâ’ [ouvir o samâ’] – o
que é, aliás, inopinado e contrário à lógica mesmo da palavra, porque isto
equivale a dizer entendre l’audition [ouvir a audição]. Assim, repito, uma vez
que o samâ’ deriva da raiz s.m.’. (entendre ou écouter) [ouvir ou escutar] –
designando, no seu sentido primeiro e geral, o ato de ouvir ou escutar, sem
referência a um fenômeno sonoro particular – digamos, [então], audition
[audição]. Dito desta maneira, nos textos sufis que nos interessam, o verbo
entendre (s.m.’.) [ouvir], em suas diversas formas, comporta sempre um objeto
implícito, que é ou a poesia, ou o Alcorão, ou a música (não qualquer música
mas certo tipo de música, apenas). (ROUGET, 1990 [1980], p. 451-452)
[Tradução: Giselle Guilhon]
E aqui retornamos ao nosso ponto de partida: se o samâ’ é audição [espiritual,
poética, musical] na cosmopoesia de Rumi, é também êxtase [wajd], é também dança
62
Rouget adverte, todavia, que no contexto no qual Al-Ghazâlî e os sufis, em geral, utilizam a palavra, a
categoria Samâ’ é intraduzível. Por duas razões: “A primeira é que ela designa uma coisa muito particular,
que não corresponde a nenhuma outra cerimônia que não pertença ao Sufismo e que é esta cerimônia, feita de
oração, de música e de dança, reunindo os dervixes com o propósito de adorar a Deus através da prática do
transe [wajd]. Esta cerimônia se chama Samâ’ e, tomada neste sentido, a palavra está no mesmo patamar que,
por exemplo, Islã: não há equivalente em Francês. A Segunda é que o livro de Ghazâlî é, antes de tudo, uma
empreitada para justificar o Samâ’ e que este repousa sobre a ambiguidade da palavra, ou, antes, sobre o fato
de que ela tem dois sentidos, um sentido muito particular, que é este que nós queremos explicar, e um sentido
geral, que é aquele da audition [poesia e música]” (ROUGET, G. La musique et la transe. Esquisse d’une
théorie générale des relations de la musique et de la possession. Paris: Gallimard, 1990, p. 450 [Tradução:
Giselle Guilhon]). Como During persuasivamente argumenta: “Se a atitude do ouvinte do Samâ’ não for
considerada inteiramente única na cultura oriental, pelo menos o rito deveria ser considerado uma conquista
original” (DURING, 1988, p. 15).
63
Relação esta que encontra fundamento nas palavras de Al-Ghazâlî: “Saiba que o Sama [...] faz frutificar
um estado no coração que é chamado transe (wajd)” (MACDONALD, 1908, p. 200 apud ROUGET, G.,
1990, p. 451)
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
[raqṣ], é também música [samâ’]. Ao atingirmos esse grau de escuta [musical, poética,
espiritual], a música se torna dança e a dança se torna música. E assim – cinética e
metabolicamente –, podemos ouvir o samâ’ [música] como dança e dançar o samâ’ [dança]
como música. À medida que o corpo vai entrando em movimento, provocado pelo
movimento dos órgãos suprassensíveis, ativados, por sua vez, pela intensidade (menor ou
maior) do êxtase [wajd] produzido pela experiência da audição [samâ’] – musical, poética,
espiritual –, vai aumentando, também, a possibilidade daquele que se encontra em êxtase
manifestar exteriormente seus estados místicos (hâl). Rumi o expressou lindamente por
meio da Poesia.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Etnocorpografando sons e gestos na Amazônia
Miguel Santa Brigida
Universidade Federal do Pará – [email protected]
Resumo: Imerso como artista-etno-pesquisador na construção epistêmica da Etnocenologia e no
acompanhamento das pesquisas em Etnomusicologia na Amazônia, cujas produções vem engendrando
contornos singulares para a pesquisa em Artes na região norte, o artigo apresenta as construções e reflexões
etnocientíficas a partir do LABETNO - Laboratório de Etnomusicologia e do TAMBOR - Grupo de Pesquisa
em Carnaval e Etnocenologia, ambos integrados ao PPGARTES/ICA/UFPA. Considerando este panorama,
apontamos para novas proposições metodológicas a partir da intersecção do corpus teórico dessas duas
etnociências.
Palavras-Chave: Etnomusicologia. Etnocenologia. Metodologia.
A construção epistemológica das etnociências na Amazônia, notadamente da
Etnomusicologia e Etnocenologia, vem engendrando um singular campo de construção de
conhecimento na pesquisa em Artes por meio do Instituto de Ciências das Artes (ICA),
Escola de Teatro e Dança (ETDUFPA), Escola de Música (EMUFPA) e do Programa de
Pós-Graduação em Artes (PPGARTES), liderados pelo LABETNO – Laboratório de
Etnomusicologia coordenado pelas professoras Dr.ª Lilian Cohen e Dr.ª Sônia Chada e do
TAMBOR – Grupo de Pesquisa em Carnaval e Etnocenologia (CNPq-2008) coordenado
pelo professor Dr. Miguel Santa Brigida. Estes dois grupos de pesquisa vêm edificando e
adensando as proposições e reflexões epistêmicas dessas duas etnociências nas diversas
pesquisas realizadas na pós-graduação, nos seminários e grupos de estudo, destacando
nesta investida de construção de conhecimento a atuação do LABETNO que abriga o
Grupo de Pesquisa e Identidade na Amazônia (GPMIA), o Grupo de Estudos sobre Música
no Pará (GEMPA) e tem como principal objetivo fomentar e produzir conhecimento sobre
as diversas práticas musicais na Amazônia. O Laboratório promove sistematicamente Ciclo
de Palestras, Jornadas de Pesquisas, ampliando o espaço de debates e socialização de
pesquisas em Etnomusicologia.
No campo da Etnocenologia, o TAMBOR estuda o carnaval brasileiro em sua
diversidade de práticas espetaculares, com ênfase no carnaval das escolas de samba,
alargando igualmente os estudos das carnavalizações para múltiplos fenômenos das
culturas populares brasileiras, notadamente os fenômenos etnocenológicos amazônicos.
Abriga também o Grupo de Estudos em Etnocenologia (GETNO), que sistematiza e
socializa os estudos desta linha etnocientífica, além da realização de seminários e Giras de
Artistas-Pesquisadores, ofertando espaço de intersecção com a comunidade artística e
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
acadêmica sobre os estudos etnocenológicos. O grupo promove bienalmente, desde 2012, o
Encontro Paraense de Etnocenologia, que em 2016 realizou sua terceira edição com o tema
Espetacularidades Etnocenológicas – Alteridades, Estéticas e Poéticas, reunindo
pesquisadores, professores e a comunidade artística interessados na investigação de
práticas espetaculares brasileiras com ênfase na Amazônia. Este evento agrega vários
grupos de pesquisa da região e do país e mantém parceria com a UFBA, UNB, UNIRIO,
UEPA e IFPA, articulando a produção do conhecimento na Etnocenologia e promovendo o
intercâmbio local, nacional e internacional.
Este panorama de construção etnocientífica na Amazônia abriga em seu
fundamento epistêmico a germinação da Etnologia enquanto ciência interessada nas
reflexões sobre a variabilidade humana no espaço e no tempo, que gerou no século XIX o
surgimento da Etnomusicologia, inaugurando uma nova abordagem para os fenômenos
musicais propondo, a partir de Alan Merrian em sua obra Antropology of Music de 1964,
um novo paradigma para os estudos da música privilegiando a ênfase na cultura e no
relativismo cultural. Com a evolução dessa etnociência, a proposição inicial de Merrian
promoveu o estabelecimento de uma musicologia geral consagrando a esses estudos uma
dimensão fundamental de humanidade.
A Etnocenologia surgiu no século XX, em Paris no ano de 1995 a partir da
Universidade Paris 8 Saint-Denis, UNESCO, Maison des Cultures du Monde presidida
pelo sociólogo Jean Duvignaud, instituições articuladas para a realização do Colóquio de
Fundação do Centro Internacional de Etnocenologia, tendo como principal propositor JeanMarie Pradier, autor do Manifesto da Etnocenologia. No Brasil a configuração desta nova
disciplina evidenciou que:
Na última década do século XX o mundo acadêmico e artístico testemunhou o
aparecimento da etnocenologia, disciplina que transformou a criação, fruição e
reflexão das artes cênicas já consagradas, das festas, dos rituais e de outros
correlatos. Lançada na Universidade Paris VIII em 1995, liderada por JeanMarie Pradier, esta nova vertente das etnociências, chegou ao Brasil em 1997
pela UFBA, através do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC),
inaugurando um novo paradigma teórico-metodológico e promovendo um
singular avanço da pesquisa artística no ambiente universitário brasileiro, por
meio de um dos principais propositores e pensadores, o Prof. Dr. Armindo Bião,
criador do referido programa e da ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa
em Artes Cênicas.
Desde sua inserção no universo da pesquisa em Artes Cênicas na academia da
Amazônia, a etnocenologia – enquanto Etnociência das Artes e Formas de
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Espetáculo – vem engendrando um singular corpus teórico e metodológico,
revelado nos projetos, objetos e fenômenos de pesquisa por ela acolhidos, que
sublinham uma importante contribuição na construção epistemológica e na
afirmação da autonomia do pensamento dos artistas-pesquisadores brasileiros.
(SANTA BRIGIDA, 2015, p. 14)
Imerso como artista-pesquisador-professor no encantado universo destas duas
etnociências, nossa reflexão compartilhada no II Encontro Regional Norte da Associação
Brasileira de Etnomusicologia e no II Colóquio Amazônico de Etnomusicologia com o
tema
“Etnomusicologia
na
Contemporaneidade:
diálogos
disciplinares
e
interdisciplinares”, buscou contribuir com o construto metodológico que esta
interdisplinaridade vem edificando e alavancando na pesquisa em artes no norte do país –
especialmente no estudo e compreensão das práticas musicais e espetaculares de matrizes
afro-brasileiras e indígenas – em observância a vitalidade da dimensão política dessas
etnociências, comprometidas com o combate ao etnocentrismo e eurocentrismo ainda
observados na academia brasileira.
Nas proposições iniciais da Etnocenologia apresentadas por Jean-Marie Pradier fica
evidenciada a inspiração na Etnomusicologia quando afirma que “o etnocenólogo examina
com uma certa inveja o percurso, já velho de um século, de uma disciplina que hoje soube
colocar em evidência conceitos e métodos de estudos complementares” (PRADIER, 1998,
p. 15), reconhecendo a dimensão interdisciplinar da Etnomusicologia, porém já sinalizava
a investida transdisciplinar futura da Etnocenologia, que ao celebrar em 2015 vinte anos de
seu lançamento, grifou esta trandisciplinaridade como signo-marca de sua proposição
metodológica, confirmada nas conferências, mesas redondas e debates realizados no I
Encontro Nacional de Etnocenologia, realizado em abril de 2016 em Salvador, que reuniu
artistas
e pesquisadores
nacionais
e internacionais
e apresentou como
tema
“Etnocenologia: O estado da Arte” que refletiu sobre o campo de saber promovido no
Brasil nesses vinte anos.
Em sua anunciação lexical esta nova disciplina apresentou como principal pilar
epistemológico as PCHEOS (Práticas e Comportamentos Humanos Espetaculares
Organizados), legatário do fulcro epistêmico da Etnomusicologia anunciado um século
antes nos SCHEOS (Sons dos Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados). Ao
reconhecer e alargar os estudos da música para além das produções e práticas musicais que
já estavam reconhecidas, estabelecidas, legitimadas e consagradas, notadamente
no
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
continente europeu, a Etnomusicologia ampliou os paradigmas investigativos vigentes para
a compreensão de outras práticas, categorias e modalidades musicais da diversidade de
grupos étnicos do mundo todo, privilegiando para além da música, os sons do
comportamento humano. Nessa inspiração etnocientífica e multicultural, a Etnocenologia
igualmente investiga as práticas espetaculares para além das linguagens cênicas já
consagradas no teatro, dança, circo, ópera, dentre diversos correlatos, alargando a
dimensão do espetacular para outras práticas, não só extracotidianas como cotidianas,
contemplando em seu principal pilar epistemológico três subconjuntos: as Artes do
Espetáculo, os Ritos Espetaculares e os Papéis Sociais do Cotidiano (BIÃO, 2009, p. 9091).
Ao refletirmos sobre a intersdisciplinaridade dessas duas
etnociências
recorreremos a algumas proposições apresentadas por Alan Merrian em seus estudos
etnomusicais com ênfase nas dimensões culturais, das quais destacamos três aspectos: 1Corpus de cantos e sua relação com a música; 2- Os tipos de música tal qual são definidos
pelos interessados; 3- As aprendizagens.
Por correspondência análoga a esta tríplice proposição, elencamos igualmente três
aspectos configurados por Jean-Marie Pradier para a Etnocenologia: 1- A dimensão
corporal em sua inteireza física, simbólica, espiritual e social do fenômeno considerado; 2O estudo dos tipos de práticas espetaculares tal como são definidos pelos autóctones (do
mais global ao mais analítico); 3- A aprendizagem dos performers e dos participantes e/ou
espectadores. Esta tríade de fundamentos etnocenológicos trazem como centro de sua
construção epistêmica o corpo, na qual:
A perspectiva etnocenológica se opõe ao pensamento dualista segundo o qual se
concebe a existência de atividades simbólicas sem corpo e atividades corporais
sem implicação cognitiva e psíquica. Do mesmo modo, o objetivo da
etnocenologia não é o de propor somente um inventário e uma descrição de
formas, mas também o de determinar o que se produz quando o evento
espetacular acontece. O pressuposto monista é o corpo/pensamento: não há corpo
sem pensamento, nem pensamento sem corpo. O pensamento é uma forma
dilatada no espaço. O corpo é pensamento. (PRADIER, 1998, p. 10).
Nossa atuação na pesquisa e travessia etnocenológica em mais de uma década na
constituição da autonomia do pensamento de artistas-pesquisadores propõe um
aprofundamento na relação com o corpo, derivativa das proposições de Pradier. Em
primeira instância, na defesa do pensamento monista, Pradier grafa esta relação na forma
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Corpo/Pensamento. Nesta perspectiva, propomos a grafia Corpo-Pensamento na miragem
de uma maior indissociabilidade e pensamento imperativo no avanço híbrido da operação
etnocenológica fundada na relação corpo-fenômeno e corpo-pesquisador.
A partir das proposições de Bião para o horizonte metodológico da Etnocenologia,
o pesquisador propôs a necessária e imprescindível articulação entre Objeto-TrajetoSujeito-Projeto, no qual Objeto contempla o campo da pesquisa, o fenômeno espetacular
de interesse, o Trajeto são as técnicas e princípios que buscam permitir o conhecimento do
objeto por parte do sujeito, bem como a história que reúne o sujeito e a sua opção pelo
objeto, Sujeito é o próprio pesquisador e Projeto é a proposta construída pelo pesquisador,
que explica o objeto de estudo pretendido, o trajeto que levou o sujeito a se interessar por
ele e sua perspectiva de aproximação e pesquisa. (BIÃO, 2009, p. 39-40).
Derivando essa articulação apresentada por Bião acrescentamos o conteúdo do
Afeto64 e redimensionamos a abordagem do corpo em três grandezas: 1- O Corpo da
pesquisa; 2- O Corpo na pesquisa; 3- Quando o meu Corpo é a pesquisa. Esta tríade
resultante aponta para os seguintes aspectos: 1- O corpo da pesquisa no que concerne aos
aspectos teóricos transdisciplinares elencados da Etnocenologia, amalgamados pelo
pesquisador enquanto estrutura do pensamento e do fluxo argumentativo na construção de
um corpo epistêmico; 2- Refere-se ao incondicional envolvimento do corpo do pesquisador
imerso no fenômeno espetacular eleito, não permitindo distanciamentos e sim, a vivência
profunda no plano interno, destacando a emoção e cognição para a geração de
conhecimento; 3- Quando o próprio corpo do pesquisador e sua prática espetacular é o
fenômeno investigado.
Este aspecto do envolvimento emocional no plano interno do fenômeno, constituise um dos principais aspectos singulares da metodologia etnocenológica. A relação entre
emoção e cognição aponta para uma nova postura do pesquisador, fora dos fluxos
paradigmáticos vigentes, afinando-se às proposições das epistemologias não cartesianas,
imprenscidíveis para a pesquisa em artes. Evidencia-se também a dimensão metodológica
enquanto postura ética e política, em um movimento integral do pesquisador dionisíaco
proposto pela Sociologia da Orgia de Maffessoli “que inaugura linhas originais
de
64
Proposição de nossa autoria acrescentada para a articulação metodológica apresentada por Bião. Ver o
artigo A Etnocenologia na Amazônia: Trajetos-Projetos-Objetos-Afetos. Repertório: teatro & dança - Ano18,
n.25 (2015.2) - Salvador: UFBA/PPGAC.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
indagação. Chega a ser banal a pergunta: que seria da ciência sem o aspecto aventuroso da
mente, sem uma iniciativa propriamente dionisíaca?” (MAFFESOLI, 1998, p. 48).
Ao considerarmos esta travessura e travessia da Etnocenologia interessada na
investigação das espetacularidades tradicionais e contemporâneas dos fenômenos
brasileiros em suas polissemias e polifonias, destacamos na Amazônia a dominância de
pesquisas nas práticas espetaculares das culturas de matrizes africanas, afro-brasileiras,
afro-indigenas e indígenas das quais destacamos mais uma tríade pela perspectiva do corpo
na dimensão metodológica: 1- O Saber Incorporado; 2- A Experiência Encarnada; 3- A
Sabedoria dos Praticantes. Conexas respectivamente: 1- Aos saberes que o pesquisador já
traz em seu corpo enquanto Trajeto Antropológico na conceituação de Gilbert Durand; 2A experiência do corpo imerso no fenômeno e a resultante da vivência no campo na
indissociabilidade campo-corpo; 3- Proposição de nossa autoria que refere-se a valoração
máxima do enunciado: quem sabe é quem faz, vive e sente65.
Quando discorremos sobre o diálogo interdisciplinar de nossa experiência como
etnocenólogos no acompanhamento da produção da Etnomusicologia na Amazônia,
acreditamos tornar-se imprescindível uma maior articulação não só com o corpus teórico já
definidos desde a nascente etnocenológica, mas fundamentalmente com a dimensão
relacional dessas teorias enquanto metodologia de análise. Nessa direção, apontamos uma
outra grandeza para a Etnomusicologia, caracterizada pela imersão do corpo nas dimensões
aqui refletidas para métodos de campo nos estudos desta disciplina. Esta proposição
considerou as diversas questões, debates e socializações de pesquisas, nossa participação
em diversas bancas de mestrado, além de coorientações nas quais observamos ainda muito
timidamente a imersão do corpo pelos etnomusicólogos enquanto construtores de
conhecimento, afinados com os fenômenos etnomusicais, seminando novas posturas e
inaugurando novas metodologias que acreditamos assinarão com novos tons, ritmos e
harmonia um redimensionamento nas pesquisas da Etnomusicologia na Amazônia.
Ao refletirmos sobre esta intersecção epistemológica e metodológica do corpo
etnocenológico em articulação com o corpo etnomusicológico no centro de um novo fluxo
investigativo podemos grafar: Etno + Corpo + Logia = a diversidade cultural das práticas
Título derivado de nossa conferência “Quem sabe é quem faz, vive e sente: saber incorporado, experiência
encarnada e a sabedoria dos praticantes na construção epistemológica da etnocenologia”, proferida no I
Encontro Nacional de Etnocenologia realizado em abril de 2016 em Salvador.
65
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
musicais amazônicas + o corpo imerso no fenômeno + a construção epistêmica da
Etnomusicologia na Amazônia. É o corpo do artista-etno-pesquisador66 integrado à essas
duas etnociências na geração seminal de novas posturas metodológicas interrelacionando
novas culturas, novos paradigmas epistemológicos para as etnoreflexões das artes na
Amazônia.
Pradier anunciou a Etnocenologia como a Carne do Espírito. Maturemos a
Etnomusicologia na Amazônia como corpos cujas carnes são espíritos, músicas, sons,
movimentos e gestos.
Referências
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SANTA BRIGIDA, Miguel de. A Etnocenologia na Amazônia: Trajetos-Projetos-ObjetosAfetos. Repertório: teatro & dança - Ano18, n.25 (2015.2)- Salvador:UFBA/PPGAC.
66
Conceito poposto pelo pesquisador Rafael Cabral em seus estudos etnocenológicos sob nossa orientação.É
de sua autoria também proposição de corpografismo a partir de sua pesuisa “Amerindios Mex: um estudo da
preparação corporal de atores a partir da representação mítica de grafismos dos animais sagrados dos
mebengokre da aldeia Apexti” .
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
PALESTRA DE MESTRE NEGO RAY
Transcrição: Paulo Roberto da Costa Barra (Bolsista Pibic/CNPq – UEPA)
Supervisão: Prof. Dr. Paulo Murilo Guerreiro do Amaral (UEPA)
Boa noite a todos! Quero agradecer a organização, pelo convite. Meu nome é
Raimundo Silva. Sou lá do Espaço Cultural Coisas de Negro. E... lá nós temos uma prática
denominada roda de carimbó, que acontece há dezesseis anos, né. E, segundo uma
pesquisa feita pelo Mova-ci (Movimento de Vanguarda da Cultura de Icoaraci), essas rodas
de carimbó aconteciam desde os anos 50, ali no quilômetro 23 da Augusto Montenegro,
ali, na Casa Esperança de um cidadão lá, que reunia pessoas vindos da região do salgado
pra essa prática de carimbó. Eu, quando jovem, tive a oportunidade de ver ali, na sétima
rua de Icoaraci, o Mestre Verequete. Eu, na idade de 12 anos, fui brincante do boi-bumbá
pingo de ouro, ali no Distrito. Vim e participei muitas vezes de concursos que eram
realizados aqui no museu. Tive oportunidade de participar da inauguração da Primeiro de
Dezembro, na época, nos concursos de boi-bumbá. E, ao término dos ensaios, nós
passávamos por trás da casa do Verequete; e eles, tocando aqueles tambores lá que me
deixavam extremamente fascinado. Talvez por isso que eu esteja falando disso agora,
porque assimilava disso quando jovem. E dentro do Coisas de Negro, quando a gente
começou, não era comum ter essas rodas de carimbo. Geralmente acontecia nos períodos
das quadra junina, e coisa pra turista ver. E, quando agente começou a fazer, tocamos para
quatro pessoas, mais ou menos. Não era comum as pessoas virem pra esses lugares pras
rodas de carimbó. Inclusive, nessa época, os trios elétricos dentro de Belém era um coisa,
assim, assustadora, né. Até parece que agente estava em outro Estado, como na Bahia, por
exemplo, assim, na questão dos trios elétricos. Mas, mesmo assim, a gente continuou a
fazer aquelas rodas de carimbó. Então não era muito comum ver, assim, é, pessoas de
grupos, de um mesmo grupo, dentro do espaço. É, não é? Não tinha essa prática de tá se
reunindo. E o Coisas de Negro veio e, justamente, quebrou essa questão. E, hoje em dia, a
gente ver várias pessoas dentro do Coisas de Negro, é, vivenciado essa roda de carimbó. Lá
no Coisas de Negro nós temos umas oficinas já. Eu iniciei algumas umas oficinas que eu
utilizo o instrumento e faço o repasse através da tradução oral. E eu utilizo também uma
percussão corporal, né, usando palmas e a mão batendo o próprio corpo, que depois eu vou
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
demostrar para vocês como é que isso é feito. E, no decorrer dessas oficinas, eu peço para
aquelas pessoas que venham para o instrumento, é..., demostrar aquilo que foi colocado
através da rítmica, né, através do corpo todo, né. E, dentro do Coisas de Negro, também, a
gente tem a questão da construção dos instrumentos, né. Eu desenvolvi a construção de
alguns instrumentos: os curimbós, as maracas, o reco-reco... E, recentemente, eu conclui
um curso de luthier lá na Fundação Curro- Velho, que já determinou que eu construísse
uns instrumentos em uma qualidade bem melhor: violão, cavaquinho, banjo, né... Tem essa
qualidade. E, dentro do Coisas de Negro eu tive a oportunidade de conhecer pessoas, de
quando criança, que eu andando ali pelo quilômetro 23, como eu já falei, eu via os
tambores lá, pegando sol, que eu nem sabia de quem eram aqueles tambores. Depois, no
decorrer da realização dessas rodas de carimbó, eu comecei a ter contato com os Mestres,
que é a Dona Maria de Nazaré do Ó e seu João Ribeiro. Eles, que são os detentores do
grupo lá, chamado Águia Negra, e tem o grupo para-folclórico Vai Andar. Então, a partir
do momento que a gente começou a fazer essas rodas, a gente começou a ter contato com
os mestres, né. Eu vivenciei, quando jovem, desde criança, e agora, a partir desses
dezesseis anos pra cá, a gente teve a oportunidade de tá vivenciando com esses mestres:
João Ribeiro, Maria de Nazaré do Ó, senhor Pedro Coutinho – que é um dos remanescentes
do grupo Uirapuru, do Verequete; assim como o seu Pedro, que já faleceu; o seu Agostinho
Guarda, também que fazia parte dessas rodas de carimbó ali do quilômetro 23. Então, o
Coisas de Negro veio pra juntar essas pessoas. E a gente fica muito feliz em poder tá aqui,
falando disso, para um grupo de pessoas bem especiais, né. Eu sou um autodidata, e isso é
muito importante. O que eu faço no instrumento é coisa assim, de puro sentimento, né. Eu
consigo transpor isso para o instrumento, apesar de ser um tambor de tocar carimbó. Mas
eu desenvolvi umas outras levadas, tendo o curimbó como base. Desde elementos do
samba de cacete, eu acabei de desenvolver uma outra maneira de se tocar o samba. Eu dei
mais um molho para o samba, que depois eu vou demostrar pra vocês. E com relação à
prática, eu vou fazer aqui alguns movimentos, aqui, bater as palmas, e espero que vocês
possam repetir. E depois eu vou pedir que uns dois voluntários venham traspor essa
questão aqui para o tambor, tá bom? Esses movimentos, lá, que a gente faz, ele tem uma
levada que eu chamo de “andada”, né, que foi uma coisa que eu criei, que eu utilizo as
mãos, depois uso o corpo, depois eu peço para que eles façam a levada no tambor. Ela é
assim: [mestre Nego Ray começa a demonstração]. Muito obrigado pelos voluntários! Uma
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coisa assim... Hoje, o que a gente observa é, com relação a nossa proposta de fazer as rodas
de carimbo: muitos jovens passaram a gostar mais dessa questão do carimbo, né. Hoje em
dia, a gente ver muitos jovens, nos seus trabalhos de conclusão de curso, tendo o carimbó
como tema, né, que nos procuram constantemente para obtenção de informações. E, pra
gente, é de suma importância dar continuidade a essas tradições, né, nas questões
populares. E o tambor era uma das primeiras formas de comunicação que existe entre os
povos, né. É... O som que você consegue emitir no tambor, você consegue atingir as
camadas, a psique, no sentido mais profundo. Um domingo desses, nós fomos tocar dentro
de um terreiro, terreiro de umbanda, mesmo, né. E, em determinado momento, a gente
tocou “Chama Verequete”. E tinha duas pessoas que (...) não faziam parte do terreiro, mas
estavam lá participando daquela festa. Que, quando a gente tocou, a energia foi tão grande,
que aquelas pessoas sentiram a questão da energia do tambor e chegaram a “balançar”, né.
Aí, as pessoas responsáveis pelo terreiro, acolheram elas, levaram para um local mais
adequado, e conseguiram trazê-las para o estado que antes elas estavam. Então, essa
questão dessa relação do tambor, ela tá para humanidade, assim como a humanidade estar
para essas questões né. Desde que o mundo é o mundo, que, o som é motivo de interesse
muito grande das pessoas, né. Na Roma antiga, os guizos eram vendidos a peso de ouro,
né, por causa daquele som, que ele tem característico. Ele tem uma característica muito
grande, aquele som, aquele som agudo, ele atinge uma camada de um por cento da cabeça
da gente, que é muito forte, muito poderosa, né. Os antigos usavam aquilo para se fazer as
projeções astrais, né, aquelas coisas. Eu vivi uma experiência, uma certa vez, mas foi
muito rápida, né. Eu cheguei a sair de forma muito rápida, mas voltei também, muito
rápido, né, é aquela questão, fazendo essas experiências. Então, essa questão do som é de
suma importância na vida de cada ser humano. Eu vou demostrar, agora, é, uma levada...
na verdade, um elemento que é muito utilizado no samba de cacete lá na região de Cametá,
né. Eles usam um mecanismo usando o calcanhar para fazer umas variações rítmicas, né;
pra dar um... E acabei que eu, pegando esse mecanismo, acabei criando uma outra variante
do samba com um pouco mais de swing, que eu vou demostrar para vocês [mestre Nego
Ray começa a demonstração]. Muito obrigado! E, com relação à prática das composições,
geralmente eu (...) vivencio uma determinada situação e acabo que capturo com o olhar e
transformo em poesia. E, depois, eu vou para o instrumento e pratico, e vejo em qual ela se
adequa melhor, a levada, né. Então, geralmente surge tudo junto: a letra
e,
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consequentemente, a música; e eu vou para o instrumento, e me dou o privilegio de
escolher em qual levada ela fica melhor. Pode ser um carimbó, pode ser uma levada mais
pop. E eu vou citar aqui uma poesia que eu fiz, que eu compus pra filha de um amigo meu,
Silvio Barbosa, que está bem ali. Que ela nasceu no dia 07 de janeiro e... estava lá em casa,
e adentrei no jardim que eu tenho lá, um pé de açucena. E, naquele momento que eu
adentrei ali, naquele, eu senti um cheiro muito forte. Ela floriu pela primeira vez. Inebriado
que eu fiquei por aquele perfume, eu observei, ela tinha florido pela primeira vez. E a
esposa dele tava para dar à luz a uma criança, né, e... eu acabei que eu associei, né, ela não
tinha nascido. Mas aí, pela atmosfera, eu acabei que, comecei a pensar, e veio os primeiros
versos da poesia, e ficou assim:
[cantando] Meu pé de açucena meu flor,
Isso é um grande sinal
A Luci acabou de nascer
Pereceu no meu quintal
Eita, sopro de vida muito especial
Que veio do Silvio à Marisa
Pra brincar no meu quintal (2x)
Hoje ela já dentro, de vez em quando, do Coisas de Negro, a mãe dela leva ela junto
com o Silvio. Ela já entra, sabe? Já faz a correria, já brinca. É motivo de muita satisfação
poder fazer essas coisas e contar essas coisas para vocês. Sintam-se privilegiados de
estarem vivenciando, algo assim, de muita importância dentro da música do Estado, né.
Hoje o carimbó se tornou patrimônio cultural, brasileiro, e o Coisas de Negro serviu muito
de referência pra isso, muito mesmo, né. E a gente tem dois intercâmbios, já, agora, com o
pessoal do interior. Veio o Sereia, Gilmar. Domingo passado teve o grupo Uirapuru. Esse
domingo, lá, vai estar a Marcela Martins, que é lá da cidade de Soure, vai estar se
apresentando lá. E, no outro domingo, dia 03, a Nazaré Pereira vai estar fazendo um show
lá – aproveito até divulgando já, por ocasião dessa questão, lá. E eu fico muito feliz em
poder estar aqui. Depois, o carimbó de Icoaraci vai tocar um pouco. E eu fico muito grato
pela presença de todos e pela fala que eu acabei de fazer, tá bom? Muito Obrigado!
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COMUNICAÇÕES ORAIS
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SESSÃO 1
Coordenação: Edson Santos Silva
Banda de música da Polícia Militar no Oeste Paraense
Andréa Reni Mendes Mardock
Universidade do Estado do Pará - [email protected]
Anderson Levy Mardock Corrêa
Polícia Militar do Pará – [email protected]
Resumo: A Banda de Música da Polícia Militar do Estado do Pará na região oeste do estado, mais
especificamente na região do Baixo Amazonas no município de Santarém, se dá numa perspectiva histórica e
social. O projeto será mais indicativo para se pensar musicalização em diversos ambientes, tais como:
Escolar, Hospitalar, Comunidade e Eventos Civis e Militares, e desta forma contribuir com ações para o
desenvolvimento musical de crianças e adolescentes, oferecer ambiente musical em escolas e hospitais e
abrilhantar eventos civis e militares com belas harmonias e melodias. A contribuição social, é um projeto
voltado para o ensino do uso de instrumentos, os integrantes da banda, apresentam crianças e adolescentes
como sujeitos, e a música como instrumento do desenvolvimento intelectual, e trás a tona uma questão social
na medida em que envolve sujeitos sociais (crianças e adolescentes), bem como dá oportunidade aos mesmos
de desenvolverem dimensões socioeducativas, com interação através da música e consequentemente a
influência dela em seu cotidiano. A Banda da Polícia Militar em Santarém vem desenvolvendo suas
atividades desde a década de 70, atualmente atende quatro projetos: “Construindo Sonhos”, com Crianças e
Adolescentes; “Banda Itinerante nas Escolas”, Alunos, Professores e Funcionários; “Banda Itinerante nos
Hospitais”, Pacientes e Acompanhantes e “Banda de Música em eventos Militares e Civis”. Portanto, é
notória a sociedade santarena durante essas quatro décadas, a contribuição da Banda, abrilhantando eventos e
aproximando a Polícia da Comunidade.
Palavras-chave: Banda de Música. Polícia Militar. Projetos.
1. APRESENTAÇÃO67
A Banda de Música da Polícia Militar do Pará foi fundada no ano de 1981, com o
propósito de abrilhantar as solenidades militares e eventos civis da sociedade santarena.
Em princípio sua formação com 23 integrantes era composta de 11 militares e 12 civis. Sua
Dados coletados na Seção de Pessoal no 3º Batalhão de Polícia Militar – BPM, através do Boletim Geral –
BG e Boletim Interno – BI.
67
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primeira formação estava sob a responsabilidade do sargento Zaranza, o qual era
responsável pela seleção dos integrantes civis e militares para sua composição.
A instrumentação que compunha a banda pertencia aos próprios músicos, pois
naquela ocasião a Polícia Militar não dispunha de instrumentos que pudessem atender as
necessidades de formação da banda.
Inicialmente o repertório foi formado com ajuda dos músicos civis, pois os mesmos
pertenciam a Banda Municipal de Santarém, dessa forma, era mais prático adotar o próprio
repertório popular que a Banda Municipal executava em suas apresentações. Entretanto,
nas solenidades militares, executava-se um repertório específico para os eventos, baseado
no mesmo que a Banda Central da Polícia Militar.
Atualmente a Banda, está composta com 13 integrantes, dos quais 04 dos sargentos
são formados no Curso de Licenciatura Plena em Música pela Universidade do Estado do
Pará (UEPA) e 01 soldado encontra-se em processo de formação no mesmo curso.
A Banda de Música hoje apresenta duas formações em sua estrutura de trabalho. A
formação tradicional no qual se apresenta nas solenidades cívico militares que acontecem
no decorrer do ano, bem como, uma formação diferente para os moldes de uma banda
militar, que é composta de instrumentos de sopro complementada com instrumentos
eletrônicos os quais mudam sua característica de formação, proporcionando a Banda de
Músicaoutras alternativas de apresentação junto a sociedade.
2. CAMINHOS PERCORRIDOS68
A música produz influência na vida de todos nós, seja jovem, criança ou adulto
indistintamente. A Banda da Polícia Militar em Santarém que ativamente participa de
eventos sociais em diversos momentos como eventos esportivos, recepção das autoridades
governamentais, nos mais variados eventos religiosos, missas, cultos, desfiles cívicos
militares e natalinos, bailes, nas festas escolares Municipaise Estaduais.
Com isso a Banda da Polícia Militar em Santarém vem sendo o cartão de “boas
vindas” e de aproximação entre polícia e comunidade, transformando a população em
parceira da cultura e da segurança pública.
68
Idem.
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Segundo Carvalho p.4 “Em 1678 na Inglaterra surge o termo Banda Militar que
eram chamados de músicos nas tropas. Em 1762, quase cem anos depois, na França se
constitui a primeira orquestra militar”. Napoleão escrevendo a seu ministro de Guerra em
1813 disse: “Passei em revista a vários regimentos que não tinham banda. Isto é
intolerável! Apresse-se em enviá-las”. Hoje podemos dizer que a Banda de Música da
Polícia militar em Santarém alimenta a sociedade com boa música e bons músicos.
Com a criação da 1ª Companhia Independente de Polícia em 1970, o número de
policiais em Santarém aumentou consideravelmente, e nas comemorações da semana da
Pátria com participação ativa nos desfiles, fazendo assim a Polícia Militar em Santarém seu
primeiro desfile com uma pequena banda de fanfarra composta de seis militares,
distribuídos: duas Caixas de Guerra, um Bombo e três Surdos. Militares que já tinham
prática de bandas nas escolas foram escolhidos para participarem da banda de fanfarra. O
que se segue nos anos vindouros mesmo sem uma banda formal, visto que a banda de
fanfarra só era reunida para os eventos e desfiles comemorativos.
O que se segue nos próximos anos da década de 70 é que a Companhia
Independente da Polícia Militar – CIPM, não tinha uma banda de música para as
comemorações internas, eram convidadas algumas bandas de fanfarras das escolas da rede
estadual de ensino, para abrilhantarem e assim aproximar a comunidade da Polícia Militar
e a participarem juntamente com os militares dos desfiles comemorativos.
A partir de 1978 houve um aumento no quantitativo de Policiais Militares da
Companhia, Militares formados em Santarém, pois até então os policiais destacados eram
oriundos de Belém, com esse avanço no quantitativo de militares a banda da fanfarra da
PM no desfile de 7 de setembro já se tem um número bem significativo, visto a fanfarra de
1971, composta por 15 militares.
Na década de 80 houve a necessidade de expansão, dado o aumento da área de
jurisdição e o crescimento demográfico, ficando assim a CIPM pequena para atender a
demanda da Região do Baixo Amazonas. Dessa forma, pela necessidade de conformidade
com a Portaria nº 001/80-AJG, de 02 de abril de 1980, a 1ª Companhia Independente de
Polícia Militar tomou a denominação de 3º Batalhão de Polícia Militar – Batalhão Tapajós.
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Pelo Decreto nº 2.110 de 01 de fevereiro de 1982 foi definitivamente consagrado a
denominação de 3º BPM, sob o comando do Cel PM Pedro Alves de Sousa.69
Devido às comemorações, formaturas, promoções e condecorações que fazem parte
do calendário militar, houve a necessidade do batalhão ter sua própria Banda de Música,
para recepcionar autoridades na cidade de Santarém, pois o 3º BPM era responsável por
fazer a Guarda de Honra de tais autoridades.
Desde então a Banda de Música passou por grandes transformações do período de
sua criação até hoje. Mas o maior avanço foram nos últimos 4 anos. Hoje o atual regente é
o 1º Sgt BRINDEIRO, que juntamente com os componentes da Banda, inovaram e
investiram em instrumentos e equipamentos para melhor desenvolverem suas atividades.
Uma das grandes conquistas foi à mudança de local de instalação que saíram do 3º BPM,
que é um Batalhão Operacional (que atua em todas as frentes de serviço Policial Militar) e
está adido ao CPR-I que é um comando estratégico.
A fim de contribuirmos com a sociedade santarena, através da segurança pública e
os dons trazidos com os militares, nos quais referenciamos os musicais e ainda
compreendermos o contexto atual das instituições onde serão executados os projetos,
traçamos os seguintes objetivos:
Geral:
Contribuir através dos projetos da Banda de Música da Polícia Militar, com ações
para o desenvolvimento musical de crianças e adolescentes, oferecer ambiente musical em
escolas e hospitais e abrilhantar eventos civis e militares com belas harmonias e melodias.
Específicos:

Proporcionar às crianças e adolescentes um espaço de educação e cidadania
na comunidade, em prol do desenvolvimento da sensibilidade e criatividade humana por
meio do contato com a linguagem artístico-musical;

Despertar o interesse pela música nas escolas;
69
Dados coletados para o Projeto da Banda de Música, 1º Comandante do 3º Batalhão de Polícia Militar em
Santarém.
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
Promover benefícios tanto para pacientes como a equipe de profissionais e
acompanhantes em ambientes hospitalares, através da música;

Oferecer a sociedade santarena um bom repertório através da Banda de
Música da Polícia Militar, em eventos civis e militares.
3. PROJETO CONSTRUINDO SONHOS
O ensino da Música, como componente curricular na Educação de um modo geral e
Educação Profissional, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN) LEI Nº 11.769, de 18 de agosto de 2008, artigo 26, parágrafo 6º, o qual
assevera “a música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente
curricular de que trata o § 2o deste artigo” BRASIL, (2008).
O Projeto de Musicalização “Construindo Sonhos” surge da necessidade de
oferecer às crianças e adolescentes uma atividade que possibilite a integração sócio
cultural, pois é certo que a Música assim como as demais artes, fazem parte do dia-a-dia na
vida das crianças e adolescentes.
Porintermédio do Projeto de Musicalização “Construindo Sonhos” espera-se que o
amor e apreço pela Música irradiem do ambiente militar, para casa de cada integrante, com
isso espera-se alcançar os seguintes objetivos.

Desenvolver a percepção auditiva e a memória musical;

Conhecer usos e funções da Música através dos instrumentos;

Criar oportunidades de cultura e lazer para os estudantes, diminuindo seu
tempo ocioso.
O desenvolvimento do Projeto consiste em 03 etapas distintas e sequenciais. A
primeira se refere ao convite a alguns Militares para atuarem como professores no ensino
musical e o preparo da estruturação de “Ensino de Música”. Paralelamente ocorrerá a
segunda Etapa, viabilizando a preparação do local em que funcionará o Projeto de
Musicalização “Construindo Sonhos”. Essas duas primeiras etapas servirão de
encaminhamento para inserção da Música junto à comunidade.
A música proposta para ser executada no projeto tem como base a Educação
Musical e em futuro próximo Profissionalizante de Técnico Musical, abordando em
diferentes graus os seguintes assuntos: Iniciação Musical, Flauta Doce, Canto, Instrumento
e Fanfarra.
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Portanto o Projeto de Musicalização “Construindo Sonhos” desenvolver-se-á em
todas as fases, desde seu início com os contatos e sensibilização dos parceiros, até a
execução propriamente dita, que ocorre dentro da sala do projeto, e que conforme
esperamos chegar a outros locais de nossa comunidade, principalmente, no ambiente
familiar dos alunos.
4. BANDA DE MÚSICA ITINERANTE
O Ensino da música no ambiente comunitário representa uma ótima oportunidade
de ampliar a visão e a audição das crianças e dos jovens, música é arte, manifestação, meio
de comunicação, uma das formas de linguagem que exerce um poder mágico sobre as
pessoas, neste sentido a cultura musical integral, que é mais que um agregado de certas
habilidades mais ou menos cultivadas, configura-se no ser humano desde a infância como
parte integrante de uma personalidade harmoniosa, e este poder que a música oferece
podem integrar sócio afetivamente as mais variadas diferenças existentes em nosso meio,
quer seja, na sala de aula, em casa, no trabalho, na comunidade ou nas instituições
religiosas.
Para Jean Piaget o desenvolvimento humano dá-se através de estágios, considera
que a maneira de raciocínio e forma de aprender da criança são constituídos através da
interação com o meio físico e social. Neste sentido, a criança passa por estágios para
chegar a um pleno desenvolvimento cognitivo, afetivo e neurológico. “Os estímulos são o
alimento das inteligências. Sem esses estímulos a criança cresce com limitações e seu
desenvolvimento cerebral fica extremamente comprometido”.(Antunes, 1998. p.18).
O normal seria que a criança chegasse à vida musical pelo canto, pelas evoluções
rítmicas e pela utilização do material auditivo, porém, é bom para sua educação
musical, que pratique, em um momento dado, um instrumento. A técnica
instrumental, realizada em um sentido musical e vivo, pode ser fonte de alegria.
RODRIGUES (p.108).
A educação musical aliada à prática instrumental executada pelas bandas de música
atrai naturalmente a atenção de qualquer criança, proporcionando-lhes possibilidades de
aumentar seu potencial de criação e criticidade, proporcionando sua socialização.

Desta forma traçamos os seguintes objetivos:

Proporcionar o conhecimento sobre a banda de música;
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
Melhorar a interatividade entre a Polícia Militar e a sociedade;

Propiciar vivência musical integrada;

Divulgar o trabalho musical executado pela Banda de música.
É direcionado para a sociedade em geral, com foco principal nas atividades músico
culturais e sociais nas instituições públicas educacionais, com apresentações musicais para
todas as faixas etárias.
5. BANDA ITINERANTE EM HOSPITAIS
Na perspectiva de intervenção da ação social na área da saúde, por meio da música
como instrumento de humanização hospitalar, mediante apresentações musicais para a
apreciação da arte. Entende-se que essa ação permitirá a inserção da música no espaço
hospitalar,
propiciando
bem-estar
aos
pacientes,
aos
familiares
e
à
equipe
multiprofissional, contribuindo para melhorias e qualidade de vida aos usuários desses
espaços.
Proporcionando um momento musical, para: aliviar o estresse, aliviar a angústia da
espera, aliviar a dor, colaborar nos procedimentos e um maior envolvimento da família;
pelas oportunidades individuais que cria, através das melodias; pela qualidade das relações
interpessoais que possibilita; pela atuação como agente polarizador de vários recursos e
serviços; pelas emoçõesgratificantes que gera e pelos sentimentose valores positivos que
desperta, para além da compensação do sofrimento causado pela doença, (ABEM 2012, p.
183).
Desta forma traçamos os seguintes objetivos:

Promover através da música um ambiente agradável para pacientes,
equipesmultiprofissionais e acompanhantes, nos hospitais públicos, tornando-odesta forma
mais acolhedor e humano.

Levar a arte com a música instrumental;

Possibilitar através da música um ambiente de descontração e alegria,
integrando Equipe de profissionais, pacientes e acompanhantes;

Proporcionar uma pausa na difícil rotina dos profissionais da saúde e uma
oportunidade aos pacientes, familiares e amigos de esquecer, ainda que por instantes, os
problemas de saúde que os levaram até o local;
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Com duração de uma hora, as apresentações são realizadas sempre em local de
amplo e fácil acesso e grande movimentação. Após a apresentação principal, a banda
divide-se em grupos, que circulam por andares, corredores e quartos, alcançando os
pacientes que não têm condições de se locomover, sempre de acordo com as orientações de
cada hospital. No repertório das apresentações, serão apresentadas composições de autores
nacionais e internacionais.
Referências
ANTUNES, Celso. Jogos para a estimulação das múltiplas inteligências. Petrópolis.
Editora: Vozes, 1998.
BRASIL, Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei
11.769 de 18 de agosto de 2008, Art. 26, parágrafo 6º. Brasília. Ministério da
Educação/Secretaria de Educação Especial.
CARVALHO, V.M. de. História e Tradição da Música Militar. Disponível em:
<http://www.ufjf.edu.br/defesa.htm>. Acesso em: 08 set. 2015, 10:15:27.
Música e saúde: A humanização hospitalar como objetivo da educação musical. Revista da
ABEM/Londrina/v.20/n.29/171-18/jul.dez 2012 p.183.
PIAGET, J.; INHELDER, B. A Psicologia da Criança. Rio de Janeiro: Difel, 1978. [La
Psychologie de L Enfant, 1966].
RODRIGUES, Helena Guimarães. Bases Psicológicas da Educação Musical. Realizado no
primeiro encontro João XXIII-P. Alegre. (p. 108).
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Jurunas: da perspectiva de seis representantes da música local.
Bárbara Lobato Batista
UFPA – [email protected]
Ediel Rocha de Sousa
UFPA – [email protected]
Erica Caroline Paixão
UFPA – [email protected]
Lana Luisa Aragão
UFPA – [email protected]
Nathália Lobato da Silva
UFPA – [email protected]
Pedro Miranda dos Santos Junior
UFPA – [email protected]
Sonia Chada
UFPA – sonchada2gmail.com
Resumo: O presente artigo é um trabalho de conclusão disciplinar que teve como foco a prática musical de
um dos bairros de Belém. O objetivo foi o de investigar, classificar e fornecer informações sobre as práticas e
a produção musical do bairro do Jurunas. O bairro se localiza nos arredores do centro de Belém, sendo muito
populoso e muito expressivo culturalmente, tendo como características marcantes o tecnomelody e o
tecnobrega. A pesquisa apresenta resultados sobre a produção musical do bairro, a partir do ponto de vista de
seis artistas locais. Os entrevistados são representantes de contextos e gêneros musicais distintos - carimbó,
tecnomelody, MPB e Samba. Os resultados apontam as diferentes concepções que os artistas têm a respeito
da influência de sua música no bairro, e questões sobre problemas sociais e música para consumo. É nítida a
preocupação de alguns artistas em relação à hegemonia musical existente no bairro e, assim, se preocupam
em desenvolver mecanismos para que possam ser difundidos outros gêneros musicais, visando a comunidade.
Palavras-chave: Jurunas. Produção musical. Representantes locais.
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1. Introdução
Belém é uma cidade conhecida por ter uma população hospitaleira, acolhedora e
festeira. Fazem parte da cultura paraense, entre outras manifestações, o carimbó, a
guitarrada, o tecnobrega e as aparelhagens que trazem alegria para sua gente. Cada bairro
da cidade tem um toque especial. Talvez seja o açaí, o pato no tucupi ou o tacacá que
apimentem a relação entre a cidade e seus moradores, inspirando-os em suas expressões
culturais.
Um dos bairros mais expressivos culturalmente é o bairro do Jurunas. Localizado
na zona sul de Belém, o Jurunas recebeu esse nome devido ao antigo nome de uma
travessa chamada Jurunas, na época conhecida como “boca” do Jurunas. Com nome de
origem indígena, o bairro possui várias ruas que também recebem nome de tribos indígenas
como Tupinambás, Tamoios e Mundurucus.
Segundo o censo de 2010, o Bairro do Jurunas possui 64.478 habitantes,
sendo
30.380 homens e 34.098 mulheres (IBGE, 2010). É um bairro com muitas disparidades
econômicas. Algumas zonas são desenvolvidas economicamente, contendo prédios e
estabelecimentos comerciais, e outras áreas carecem de infraestrutura e saneamento básico.
O estado do Pará é culturalmente muito rico, com várias manifestações envolvendo
dança, música e religião. A música, de alguma forma, está presente nessas manifestações.
Pesquisas sobre a música no Pará têm sido desenvolvidas, porém, diante da diversidade
musical existente no Estado, ainda não temos uma visão geral do cenário musical paraense.
Com o intuito de colaborar com as pesquisas acerca da música no Pará, esta pesquisa foi
desenvolvida escolhendo o bairro do Jurunas, por ser um dos bairros mais expressivos
culturalmente de Belém. Apesar de ser um bairro conhecido como polo do
desenvolvimento do tecnobrega, do tecnomeody e das festas de aparelhagens, este trabalho
não tem como foco apenas estes estilos, e sim a produção e o fazer musical dos gêneros
musicais com os quais tivemos contato no referido bairro.
Diante das características sociais do Bairro do Jurunas, propusemos desenvolver
uma pesquisa seguindo o caminho teórico da Etnomusicologia, sobre o cenário musical do
bairro, investigando a produção musical existente no bairro a partir do ponto de vista de
seis artistas locais, considerando o contexto social em que as práticas estão inseridas e
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
buscando entender de que forma o contexto social influencia a cultura, em especial a
música, considerando a prática musical como:
Um processo de significado social, capaz de gerar estruturas que vão além de
seus aspectos meramente sonoros, embora estes também tenham um papel
importante na sua constituição, sendo de extrema importância neste contexto.
(...) A execução, com seus diferentes elementos (participantes, interpretação,
comunicação corporal, elementos acústicos, texto e significados diversos) seria
uma maneira de viver experiências no grupo (CHADA, 2007, p. 139).
A fim de gerar material de pesquisa, registramos a entrevista com seis
representantes da música local em forma de documentário. Os entrevistados foram:
Helinho, Rubão Andrade, Ziza Padilha, Cleide Moraes, Suanny Batidão e Dona Josenilda.
2. Análise dos dados
A primeira pergunta feita aos entrevistados foi desenvolvida a fim de coletar dados
sobre a maneira com que o contexto social em que o compositor está inserido influencia a
sua produção musical. A partir da análise dos dados obtidos, percebemos que para a
maioria dos artistas entrevistados o contexto social em que eles estão imersos é o que mais
influencia as suas produções musicais.
A entrevistada Josenilda, gerente responsável pelo grupo de carimbó Uirapuru,
conta que as situações vivenciadas no dia-a-dia influenciavam diretamente as composições
do mestre Verequete. Como exemplo, certo dia ela conta que uma moça de cabelos longos,
que lhe chamou a atenção, foi inspiração para uma de suas composições. De acordo com o
verificado por Blacking (2000), quando afirma que as criações musicais são reflexos de
eventos culturais, sociais, psicológicos e musicais ocorridos na vida do compositor.
O entrevistado Helinho, intérprete e secretário da escola de samba “Rancho não
posso me amofiná”, explicou desde o processo de escolha do tema até a escolha do samba
enredo: o processo começa com uma pesquisa que dura de 30 a 45 dias, feita pela comissão
do Rancho para escolher um determinado tema. É elaborada uma sinopse que é passada
para um grupo de compositores específicos que dispõem de 60 dias para elaborar o samba.
Então, é organizado um festival para que as composições sejam apresentadas e os diretores
possam escolher qual o samba que irá para a avenida. Antes a escolha do samba enredo era
feita por professores da UFPA. Entretanto, os diretores perceberam que nem sempre a
composição escolhida era a que mais agradava à população e aos
integrantes da escola de
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samba, já que os professores analisavam os sambas a partir de uma visão técnica. Hoje os
sambas são escolhidos por diretores do Rancho, considerando a aceitação das composições
pela comunidade.
Podemos perceber que a preferência do grupo social contribuiu para que houvesse
uma mudança no repertório musical da escola de samba. Este fato se torna compreensivo a
partir do momento que entendemos que a música está em constante mudança, em uma
associação com a realidade da sociedade na qual a música é consumida. Nettl (2006)
defende, quando analisa as mudanças musicais que ocorreram em um grupo de aborígenes
australianos: “Para alguma coisa ser a música "deles", ela não depende somente do estilo
musical,
mas
também
de
uma
associação
específica
com
sua
sociedade,
independentemente de como a música soa”.
Ao fazer a segunda pergunta, percebemos respostas mais divergentes, tanto no
entendimento do que seria influenciar musicalmente o bairro quanto a percepção de cada
artista a respeito do seu trabalho em relação à comunidade.
No que se refere ao aspecto social, Helinho, Rubão (violonista, toca na noite
belenense) e Ziza (músico, violonista, produtor cultural) entendem que existe uma
necessidade de políticas públicas que atendam a essa carência de educação musical
presente no bairro, reconhecendo que esta seria uma ferramenta para resgatar crianças e
adolescentes de uma realidade de violência e drogas, além de servir como uma forma de
propagação de estilos musicais pouco difundidos na comunidade jurunense. Segundo
Helinho, o Rancho, mesmo sendo uma grande referência no bairro, atinge no máximo 10%
da população local, o que nos leva a concluir que os demais artistas que tem seu trabalho
mais independente, tendem a ser menos propagados. Partindo dessa necessidade social e
artística, alguns artistas do bairro, inclusive, Rubão e Ziza, decidiram se reunir, por meio
de uma associação, a CARAMUJU, que tem o intuito de reunir os artistas locais de
diversos estilos, a fim de propagar novos estilos musicais para crianças e adolescentes
através da educação e apresentações musicais.
Para Suanny (cantora, representante do melody) e Cleide Moraes (cantora,
representante do brega e das serestas), a música faz parte do dia-a-dia das pessoas, seja no
lazer ou até mesmo no trabalho, proporcionando um momento de prazer. Um fato que
chamou bastante atenção foi quando ao responder esta pergunta, Dona Josenilda expôs a
falta de interesse por parte do governo e também da população sobre o grupo Uirapuru,
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
devido à falta de investimento na música de autoria do mestre Verequete, o que acaba
interferindo na propagação de sua música, inclusive no bairro do Jurunas.
A terceira pergunta foi desenvolvida para que pudéssemos descobrir outros artistas
do bairro. A partir das respostas pudemos perceber que alguns dos artistas entrevistados
são bastante envolvidos com a cultura musical do seu bairro, pois citaram outros artistas,
bandas, grupos e projetos sociais e reconheceram que o Jurunas é um bairro diversificado e
rico culturalmente. Três dos entrevistados disseram não conhecer movimentos culturais no
bairro do Jurunas. Todos citaram a escola de samba “Rancho não posso me amofiná”,
mostrando o quanto o “Rancho” é um ícone cultural importante no bairro.
A partir da análise das respostas dadas para a quarta pergunta, constatamos que
todos os entrevistados demonstram orgulho e satisfação em serem considerados
representantes da cultura do seu bairro. Apesar das dificuldades que passaram e passam
para divulgar e desenvolver seu trabalho conseguem viver da música. O amor à música e o
acreditar no que fazem é o que gera a força propulsora para continuarem a desenvolver
seus trabalhos musicais. Serem reconhecidos como representantes da cultura do seu bairro
é um dos fatos que geram o sentimento de orgulho, e de que todas as dificuldades
superadas valeram à pena.
A quinta pergunta tem como objetivo entender como o artista se enxerga na
sociedade, como eles interpretam o que é considerado um profissional da música:
As distinções entre a complexidade superficial dos diversos estilos e técnicas
musicais não nos diz nada de relevante sobre os propósitos expressivos e o poder
da música, ou sobre a organização intelectual que a sua criação importa. A
música tem por demais a ver com sentimentos e experiências humanas em
sociedade, e seus padrões são, com muita freqüência, o produto de explosões
surpreendentes de cerebrações inconscientes, para que se sujeite ela a regras
arbitrárias, tais como as dum jogo (BLACKING, 2000, p. 42).
Tivemos certa dificuldade para que essa pergunta fosse compreendida.
Reconhecemos que seria melhor se tivéssemos elaborado mais adequadamente a pergunta,
o que nos fez por muitas vezes ter que explicar o que queríamos saber. Percebemos da
parte de dois entrevistados - Helinho e Suany, a preocupação em atender à nossa
expectativa por sermos estudantes de música da UFPA. Concluímos assim, pois a resposta
inicial foi de que músicos para eles são aquelas pessoas que procuram estudar música
formalmente. Mas, logo em seguida, afirmaram que músicos são aquelas pessoas que têm
afinidade com o fazer musical e o fazem independente de terem estudo formal ou
não.
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Suany chega a comentar que os músicos do tecnomelody não costumam estudar música
formalmente.
Para Rubão e Cleide Moraes, músico é aquele que, apesar das dificuldades que
existem no ramo da música, não desiste e faz da música o seu sustento. Para o Ziza
Padilha, músico é aquele que sonha e estuda música, independente do seu desenvolvimento
técnico, teórico e prático. Dona Josenilda, em sua resposta, mencionou grupos e
compositores do carimbó. E, que o ato de tocar já caracteriza um músico.
Breves considerações
O contato com os fundamentos da etnomusicologia, através da
disciplina
Introdução à Etnomusicologia, ofertada para alunos do curso de Licenciatura em Música
da UFPA, e a experiência que tivemos em campo durante esta pesquisa, nos fez refletir
sobre a diversidade musical existente em nosso Estado e, a importância de cada uma dessas
expressões musicais para as pessoas que as criam, praticam e consomem. Concluímos que
as experiências vividas só vem a acrescentar à nossa formação profissional, pois, nós,
estudantes do curso de licenciatura em música e em potencial futuros professores, devemos
também conscientizar nossos alunos acerca dessa diversidade e sua importância. Cada
artista produz música direcionada para um público, ambiente e com objetivos específicos.
Sendo, para a pesquisa, dispensável qualquer tipo de julgamento e/ou comparação entre os
gêneros.
Alguns artistas entrevistados criticaram a hegemonia da música de massa e
afirmaram ter a necessidade de desenvolver mecanismos difusores de outros gêneros
musicais no bairro. Dona Josenilda, também se queixa da falta de apoio de órgãos públicos
ao grupo de carimbó Uirapuru. A maioria dos entrevistados manifestou um sentimento de
frustração em relação à realidade do bairro, que tem um alto índice de violência e
criminalidade. Também lamentaram a falta de projetos sociais que pudessem proporcionar
o contato com as artes, em especial a música, funcionando como um mecanismo para
afastar as crianças e os jovens do mundo do crime.
Acreditamos ser possível aulas de música ministradas por educadores conscientes,
nas escolas do bairro do Jurunas. Educadores que em suas aulas desenvolvessem atividades
relacionadas a vários gêneros musicais, proporcionando aos alunos o contato com a
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
diversidade musical presente no bairro e no Estado paraense, minimizando as distâncias e
diferenças.
Referências
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CHADA, Sonia. A Prática Musical no Culto ao Caboclo nos Candomblés Baianos. In: III
SIMPÓSIO DE COGNIÇÃO E ARTES MUSICAIS, 2007, Salvador. Anais... Salvador:
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NETTL, B. O estudo comparativo da mudança musical: estudos de caso de quatro culturas.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Fundamentos do Boi de Toquinho: brinquedo de encantado.
Luiz Antônio de Albuquerque Lins Filho
Faculdade Integrada Brasil Amazônia – [email protected]
Luana Bagarrão Guedes
Faculdade Integrada Brasil Amazônia - [email protected]
Resumo: Este trabalho busca identificar os fundamentos do brinquedo de rua “boi de Toquinho”,
reconhecendo a importância dessa brincadeira e dialogando de forma comparativa com as outras brincadeiras
de boi bumbá ocorridas em Belém, apontando semelhanças e distinções entre esses bumbas e o boi de
Toquinho.
Palavras-chave: Boi-bumbá. Tambor de Mina. Cultura Popular.
1. Introdutórios ao brinquedo
Para entendermos os fundamentos do boi de Toquinho, faz-se necessário primeiro
compreender o começo do boi “Orgulho de Codó” de seu Dominguinhos de Légua, pois o
boi de Toquinho tem seus desdobramentos iniciais na festa desse boi em São Luis do
Maranhão. Para isso, analisamos o depoimento do encantado Dominguinhos, coletada em
nossa pesquisa de campo e de seu Leandro (cavalo70 de seu Dominguinhos) em entrevista
dada ao pesquisador Gérson Lindoso (2006), que havia feito pesquisa sobre o boi Orgulho
de Codó, e dessas duas fontes fizemos análise para compreender esse começo do Boi de
Toquinho em Belém. Com auxílio do dossiê do complexo do bumbá meu boi do IPHAN,
que mostra que são os encantados que regem a brincadeira dessa vertente de boi (IPHAN,
2011, p. 86) do começo ao fim.
Reafirmado por seu Dominguinhos de Légua da família de codoenses na croa71 de
seu Leandro quando nos conta a trajetória que começa as brincadeiras do boi “Orgulho de
Codó”.
O meu boi quando ganhei...porque meu filho ele professor e ele foi não sei o que
uma faculdade, participar não sei de que, e tava muita gente de fora né. Então
como era lá em São Luís o pessoal deram de lembrança uns boizinho na vara né,
uns boizinho na vara. E seu leandro meu filho chegou no meu ponto no meu altar
que tenho em minha casa né... que é a casa de seu leandro, e botou o boizinho
pendurado no pescoço de são joão. quando baixei nele eu olhei o boi e disseram,
70
Cavalo é o termo usado pelas entidades aos filhos de santo ao qual se encorporam
71
Termo usado pelos mineiros para designar “cabeça”, ou melhor, pessoa em qual o encantando está
encorporado.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
as serventes as clientes - olha, aquele boizinho é pra ti (entrevista:
Dominguinhos, na cabeça de seu Leandro, Idem; Ibden).
Desse começo podemos fazer um espelhamento no texto de Gérson Lindoso sobre o
boi Orgulho de Codó no momento de uma entrevista com seu Leandro, onde aparece a
seguinte versão:
Segundo o próprio Leandro (entrevista maio 2006) o boi de encantado lá teve
início, a partir do pedido de seu Dominguinhos Légua, pois na casa não tinha boi
de encantado e também, devido ele ter sido presenteado por uma cliente dele
com um boizinho na vareta, que logo foi identificado pelos outros filhos de santo
do terreiro como o boi daquele encantado (LINDOSO, 2006, p.14).
Percebemos as semelhanças nos depoimentos feitos em períodos diferentes,
importante atentar que seu Dominguinhos é o encantado e guia de seu Leandro. É com
base neles que entendemos sobre os fundamentos do boi de encantado e pudemos associálos ao momento da observação e análise do ritual do boi de Toquinho.
Esses fundamentos do boi, expressão utilizada referindo-se aos elementos que
compõem o boi de encantado, e aqui trazemos o boi de Toquinho em observação, consiste
basicamente nas etapas que são: o batismo do boi; esconder o boi; busca da Joia; busca do
Mourão e fuga ou morte do boi.
Importante ressaltar que esse roteiro, após a festa do batismo, ocorrem em único dia
apenas, no caso observado do boi de Toquinho. Começando na madrugada, com o fim do
toque do tambor, até a noite seguinte com a fuga do boi. E das razões desse roteiro ser feito
dessa maneira, temos a explicação dada pelo encantado seu Dominguinhos de Légua:
Do boi só é num dia, não pode ficar muitos dias. Boi de encantado. Agora boi
mesmo que lá sai de lá nas brincadeiras de são João, eles brincam o ano todo né.
O nosso não porque a gente não como tá muitos dias aqui no “mundo de
pecado”, pra tá fazendo, pra tá batucando não, o nosso tudo acontece só num dia
nesse dia o foge, é laçado é pegado a prenda. (entrevista: Dominguinhos, na
cabeça de seu Leandro, Idem; Ibden).
Percebemos semelhanças na observação feita em pesquisa de campo em todo o
folguedo do boi de Toquinho com o relato acima. Diferente dos bois de comédia de
Icoaraci, por exemplo, pois o “[...] mês de Junho, durante as festas juninas, é seu tempo, e
suas apresentações duram até agosto ou setembro. ” (FIGUEIRADO & TAVARES, 2006,
p. 90)
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
2. Fundamentos e suas etapas
Começando pelo batismo que é um ritual religioso que ocorre no mês de Junho em
apenas um dia, dentro da casa de tambor de mina, no caso de boi de Toquinho, esse
batismo ocorre na casa de Mãe Cléa, onde seu encantado chamado “Ceará” que também é
um dos padrinhos do boi de Toquinho.
O ritual segue dentro de um padrão descrito por seu Dominguinhos constatado na
pesquisa, onde ele conta que:
Isso só em junho mesmo. Batizou, esconde.[...] Chama quatro padrinho quatro
madrinha cada um batiza ele. cobre ele com a barra da saia e guarda nos
assentamentos da casa. Pra sai só em setembro (o boi do seu dominguinhos) o
meu batiza junho só sai em setembro. Porque ele (boi de toquinho) é igual ao
nosso. é um brinquedo particular num pode tá amostra todo tempo não. Porque
aquilo ali é um talismã né. é uma coisa sagrada né, batizou ele fica na casa.
(entrevista: Dominguinhos, na cabeça de seu Leandro, Idem; Ibden).
O batismo para os brincantes do boi de Toquinho compõem um dos momentos
rituais do terreiro. Buscando identificar essa etapa na modalidade de boi de comédia para
nossa análise comparativa, pesquisamos o trabalho de Dias Júnior que narra o enredo na
seguinte forma:
Seu enredo é basicamente o mesmo em quase toda a região norte, conta a história
de um boi de raça, que é mandado buscar pelo senhor da fazenda para servir
como reprodutor do rebanho e, desse modo, ser o boi estimado do fazendeiro. O
animal receberia um tratamento muito melhor que aquele dado aos escravos:
qualquer mau trato ao boi representaria castigos severos aos cativos e ao
vaqueiro e, por isso, a postura de vingança de Pai Francisco ao apanhar o boi
preferido do Senhor. Pai Francisco era um preto velho que vivia na área de
pastagem do animal. Uma vez que sua esposa Catirina, grávida, sentira o desejo
de comer a língua do boi, ele desafiava ao “Amo”, que também era capataz da
fazenda, ao atirar no boi de estimação do Senhor para retirar-lhe um tassálio. Em
algumas encenações o desfecho se dá com a morte do boi num final glorioso e
satírico, de êxtase do preto velho que vinga todos os seus antepassados (DIAS
JUNIOR, 2009, p. 90).
E também buscamos nos relatos do amo de boi Jorge Raimundo Pereira de Souza
essa análise, quando narra o enredo de sua comédia:
é um aniversário de uma fazenda da filha do fazendeiro, ai fazendo pega convida
toda... ai diz que vai ter um aniversário... e vai ferra o boi... o melhor boi da
fazenda dele... começa o processo... chama o ferrador, passa pro administrador, o
administrador para pros vaqueiros e os vaqueiros levam pro campo e quando
acontece de alguém roubar o boi do fazendeiro. Que no caso é Catirina,
Cazumbá, Pai Francisco, depois eles levam o boi e quando boi fica doente. Eles
resolvem chamar o feiticeiro pra tirar...chamar o feiticeiro pra curar o boi... ai
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
vem os compadres deles pra fazer aquela festa ai chama o ferrador. (Jorge
Raimundo Pereira de Souza em entrevista concedida em 06 de Jun. 2013).
Nas duas narrativas acima não consta nenhuma menção ao “batismo ou batizado do
boi” dentro da modalidade de boi de comédia recorrente entre os bumbas da região de
Icoaraci. Verificando que essa peculiaridade, o batismo, é apenas do boi de terreiro.
A etapa seguinte consiste no momento em que se esconde o boi. No caso do boi de
Toquinho ocorreu na madrugada de domingo antes do tambor72 terminar, em meio aos
cânticos o boi é levado pelos encantados para residência de um filho de santo da casa de
mãe Rosângela. Lá o boi fica até o amanhecer quando saí para a próxima etapa.
Pegar as “joias do boi”, esse momento consiste na busca de presentes como: bolos,
dinheiro, brinquedos, dentre outras coisas doados por pessoas que são admiradoras da
brincadeira do boi e previamente avisam para o boi ir buscar segundo nos conta a
encantada Dona Leonor na crôa de Chistofer (entrevista concedida em 21 out. 2013). Essa
etapa ocorre pela manhã posterior a fuga do boi e decorre durante todo o dia, confirmamos
também que são os encantados que saem com o boi para buscar as “joias”. Aqui podemos
visualizar um dos presentes (joias) dado ao boi de Toquinho no momento da busca da joia
na imagem abaixo.
Ilustração 1: um bolo - presente dado ao boi de Toquinho.
Fonte: Luis Filho, 2012
72
Denominação dada pelos integrantes do tambor de mina ao ritual religioso do tambor de mina
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Isso ocorre por toda manhã até o momento que o boi chega no terreiro e começa o
toque para o “guarnicê ou guarnecer”73 para buscar o Mourão74 e da “cobertura do boi”
com o “manto de pastilha” que são duas outras etapas do folguedo.
O manto de pastilhas trata-se de uma espécie de manto feito de pastilhas de doces e
bombons que serve para cobrir o boi de Toquinho no momento que ele sai do terreiro e vai
para casa pegar o mourão e logo após coberto com esse manto de pastilha são cantadas
músicas do boi para homenageá-lo para em seguir sair o cortejo com o mourão.
O mourão é outro elemento que constitui uma parte específica do folguedo do boi
de Toquinho. É um mastro feito de uma árvore desfolhada, geralmente coberto de fitas
coloridas, frutas e brinquedos e sobre suas representações para os brincantes da casa de
mina, ele está associado a fartura como nos explica Pai Aírton:
O boi se amarra o Mourão pra matar né, aí é que tá, por isso que é feito mourão,
tudinho, e a parte que se enfeita se coloca [...] os brinquedos, pastilhas, essas
coisas porque é fartura, trás a fartura a prosperidade (pai Aírton, entrevista
concedida em 18 de out. 2012)
As representações simbólicas desse mourão para os participantes do boi de
Toquinho é de caráter religioso como é dito por mãe Rosângela quando diz que o mourão
“representa prosperidade, fartura, a cura”.(entrevista: Rosângela, 18 out. 2012) e essa ideia
é reafirmada pelo encantado Dominguinhos de Légua quando conta que o “mourão
simboliza a fartura, a riqueza, árvore, esperança, crescimento nesse ritual do boi”
(entrevista: Dominguinhos, 21 out. 2012). Esse elemento do mastro não foi encontrado nos
folguedos de Icoaraci nem pelos relatos coletados e nem pelo trabalho de Figueiredo e
Tavares (2006).
73
74
Referente ao “objetivo de reunir, preparar e concentrar os brincantes” (IPHAN, 2011, p.168)
Mastro adornado com frutas e fitas coloridas, feito de um tronco de árvore de médio porte.
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Ilustração 2: Mourão sendo levado pelos encantados nas ruas do conjunto Pedro Teixeira
Fonte: Lins Filho, 2012
Os encantados são encarregados de levar o mourão até a casa de pai Huevy como
mostra a imagem acima, onde é enterrado e se apreende a etapa final do boi de Toquinho e
no seu final o mourão é dividido em partes e dado como amuleto para os presentes.
Apesar de perceber nos trabalhos de Lindoso (2006) e o dossiê do IPHAN (2011)
que nos mostram que dentro do roteiro do boi de encantado, a última etapa é descrita como
“a morte do boi”. No boi de Toquinho, em seus três anos de existência, ainda não ocorreu
essa morte dentro da encenação, nas três vezes de seu folguedo o desfecho final se deu
através da fuga. Reafirmado pela fala da encantada Leonor que nos conta que:
dos três anos toquinho chora qui só pro boizinho dele não morrer. Luta, luta qui
só pro boi dele não morrer. Chorar que eu digo é chorar né, dentro do
ritual.[...]ele luta que só pa boi dele não morrer. E ate agora o boi dele ainda não
morreu. Só fica ferido. (Dona Leonor, na cabeça de Christofer, em entrevista
concedida no dia 21 de outubro 2012).
Percebendo essa distinção comparado aos bois de comédia, em que o desfecho final
se dá através da ferração do boi, como nos conta Jorge Raimundo Pereira de Souza quando
cita alguns bumbas da região. “É tudo boi de ferração que eu conheço é que o Resolvido,
Não Duvido [...] o flor do campo.” (entrevista concedida por Jorge Raimundo Pereira de
Souza em 06 de jun. 2013).
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Ao compreendermos as etapas que constituem o boi de Toquinho através da
observação de campo com o auxílio dos trabalhos citados acima e dos relatos dos
entrevistados. Pudemos fazer uma análise comparativa ao trabalho de Bruno de Menezes
(1993) quando narra no capítulo chamado “sinopse da estória do bumbá” e “A causa de ser
morto o boi” as distinções são bastante claras, desde o cortejo como vimos a cima até o
sentido religioso existente no boi de encantado e que não é identificado no boi de comédia
da região de Icoaraci.
Vicente Salles (2004) fala que o boi bumbá, que antecedeu as criações dos
chamados “currais”, era uma brincadeira feita no improviso, e seu roteiro foi criado a partir
desse confinamento nos currais, diferente do boi de toquinho que possui um roteiro e sai às
ruas.
Podemos concluir através das caracteristicas entre o boi de Toquinho e boi bumbá
brincado em Icoaraci, levantadas pela pesquisa, que estes são dinstintos, tanto no formato
do folguedo quanto em suas representações simbólicas, para seus participantes. E também
percebermos o começo desse folguedo do boi de Toquinho em Belém.
Referências
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Entrevista concedida por Pai Aírton em 18 de outubro de 2012
Entrevista concedida por Dominguinhos de Légua, na crôa de Leandro em 21 de outubro
de 2012
Entrevista concedida por Dona Leonor de Légua na crôa de Christofer em 21 de outubro
de 2012
Entrevista concedida por Jorge Raimundo Pereira de Souza em 06 de junho de 2013
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Cordão de Peixe Bacu: estudo de uma prática musical em Icoaraci –Pará.
Luany Guilherme Ferreira
Universidade do Estado do Pará
Prof.ª Dr.ª Lívia Alexandra Negrão Braga
Universidade do Estado do Pará - [email protected]
Resumo: Este trabalho apresenta uma análise musical do Cordão de Peixe Bacu do distrito de Icoaraci e o
meio de transmissão dos saberes artístico–populares usados por Mestre Paulo para os participantes desse
cordão. Trata-se de um estudo de campo em um delimitado espaço-tempo para etnografar o processo de
educação musical do referido cordão. Dissertarei sobre a história do movimento dos Cordões e o surgimento
do Cordão de Peixe Bacu. Arguirei sobre o contato de Mestre Paulo com os folguedos juninos, descreverei o
perfil dos brincantes do cordão de Peixe Bacu e registrarei as músicas do cordão em questão no sistema de
notação musical tradicional ocidental. Esta pesquisa aponta para o ensinamento da música em ambiente não
escolar, bem como para a relevância do cordão no ambiente em que está inserido.
Palavras-chaves: Prática Musical. Cordão de Bicho. Educação Musical.
O objetivo deste artigo é descrever a prática musical Cordão de Peixe Bacu,
analisar o método de ensino de educação musical utilizado, a importância de este fazer
musical espontâneo e a transcrição das músicas compostas pelo próprio guardião do
Cordão: o Mestre Paulo.
O Cordão de Bicho antecessor do Cordão de Pássaro é uma manifestação
genuinamente paraense proveniente do interior do Estado do Pará, o primeiro registro foi
numa publicação do naturalista inglês Henry Walter Bates no ano de 1850 (SILVA, 2003).
Esta prática está intimamente ligada às festividades dos santos juninos mais populares: São
João, Santo Antônio, São Pedro e São Marçal. É um tipo de teatro popular que engloba
danças imitativas de aves ou animais, com execução musical e uma rígida construção de
figurino.
O Cordão apresenta similaridade com a brincadeira de Boi-Bumbá por ambos terem
como motivo em comum a morte e ressurreição do protagonista; esta manifestação possui
influências do hoje extinto Teatro Nazareno, do auto das pastorinhas, da comédia junina,
também apresenta fortes contribuições das matrizes negra, indígena e europeia na sua
formação (FIGUEREDO; TAVARES, 2006).
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
A principal característica do Cordão de Bicho é o perfil protagonista que
obrigatoriamente deve ser um animal de natureza real ou imaginária, como: Tem-tem,
Onça Pintada, Dragão, Camarão, entre outros.
Em algumas pesquisas é possível encontrar duas categorias de pássaros: I. Cordão
de Pássaro e Bicho e II. Pássaro Melodrama Fantasia (LOUREIRO, 1995).
Os cordões possuem texto mais simples, com cenas curtas de comédias, matutagem
e pajelança. O que caracteriza é a formação dos brincantes em cena, particularidade deste
folguedo.
Os Cordões de Pássaros observados durante a pesquisa têm como característica
comum a manutenção em cena da maioria dos brincantes, dispostos em um
semicírculo ou em meia lua, no centro do qual se desenvolvem as seções das
cenas. Os brincantes se dirigem ao centro do palco na hora da representação e em
seguida retornam à posição original do semicírculo (SILVA, 2003, p. 07).
Pássaro Melodrama Fantasia diferencia-se por ter um enredo mais dramático,
envolvendo ódio, amor, traição, vingança, adultério, morte; trabalha mais a fundo o
infortúnio da mente humana. Além de usar vestimentas mais luxuosas, palco, camarim
para a troca de roupa e cortinas para as mudanças e finalização de cenas.
O enredo deste teatro popular basicamente baseia-se na perseguição e morte do
animal provocada pelo caçador, o assassino é capturado pelos índios e levado ao dono do
Bicho que o mandar trazer a vida de seu anima de volta, o infrator procura o personagem
com poderes mágicos, geralmente o Pajé, para ressuscitar o animal.
A estrutura da música é normalmente organizada em canção entrada, anúncio
personagens, música de danças, e despedida.
1. Música de entrada: são consideradas aquelas que antecedem a parte
dramáticas. Geralmente, fazem parte destas, uma abertura musical ou canto de
apresentação e hino do grupo.
2. Música da parte dramática: são aquelas que compõe o enredo (música dos
personagens) ou aquelas que servem de entreato (música do balé ou quadro
especial).
3. Música de despedida: apresentação das despedidas e agradecimentos finais do
grupo. (SILVA, 2009: p. 11).
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
O Cordão de Peixe Bacu
O Cordão de Peixe Bacu foi fundado no ano de 1998, na Vila Itália localizado no
distrito de Icoaraci em Belém- Pará, pelo seu residente Paulo Roberto Oliveira da Silva e
sua família. A finalidade da criação do cordão era oferecer entretenimento de qualidade às
crianças de sua comunidade que viviam ociosas, espreitando conversas entre membros de
gangue que moravam neste lugar, estes ouviam e admiravam as atitudes dos mais velhos.
O pessoal da gangue chegava e falava tudo o que acontecia a noite, aí os
menorzinhos ficavam tudo olhando prestando atenção e aquilo dali, da janela de
casa, me incomodava muito (Paulo Roberto, 51 anos, Mestre do Cordão do peixe
Bacu, dia 08 de março de 2015).
Temendo que os pequenos tomassem atitudes semelhantes aos membros de
gangues, Mestre Paulo trabalhou para a criação do Cordão, construiu todo o enredo e as
músicas.
As organizações populares também devem ser aqui citadas como exemplo de
iniciativas no campo de formação profissional e educacional em ambientes
diversos à escola tal como a conhecemos. Consistem em pessoas que se
organizam para suprir a carência de produtos e serviços dos quais a população
necessita, mas que o Estado não consegue ou não se empenha no suprimento
dessas necessidades (PINHEIRO, 2008: p. 06).
Paulo convidou seus dois filhos para compor o corpo musical do Cordão, também
chamou as crianças da vila para representarem os personagens, a sua esposa Maria Rita
Ferreira ficou com o encargo de figurinista, ela utiliza materiais reciclados para a
composição dos adereços. Grande parte desses materiais é coletada nas margens do Rio
Maguari, são encontrados: canudinhos, caixas de papelão, isopores e garrafas plásticas.
Em 1998 Mestre Paulo havia composto dez músicas para o cordão, todas inspiradas
nos principais personagens, que são: São João, São Pedro, Santo Antônio, o Pescador, o
Boto, o Barco, o Siri, o Camarão, a Tarrafa e o próprio Bacu.
Aí eu fiz ele em 98, só que olha aí, eu fiz ele, juntei uns parentes e o pessoal da
comunidade era só pra gente brincar um dia, nós ensaiamos mais ou menos umas
três semanas, eu compus umas músicas, eu saia em carnaval, eu gosto de
carnaval, então sempre com aquele adereço e nesse ano que nós saímos no
carnaval nossa ala tava representando o Boto, então o Boto que era um chapéu na
cabeça a mulher pegou, trabalhou e fez um Bacu de isopor, no outro dia os
moleques ficaram me pedindo pra sair de novo, aí não paramos mais (Paulo
Roberto, 51 anos, Mestre do Cordão de Peixe Bacu, 08 de março de 2015).
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Logo após a primeira apresentação dentro da comunidade de pescadores, cumprida
com sucesso, houve inúmeros pedidos dos brincantes para continuar saindo nas ruas de
Icoaraci e mostrar o Cordão de Peixe Bacu.
De lá para cá o Cordão desfilou em terreiros juninos, casas de família, museu
Emílio Goeldi, teatro Margarida Schivasappa, Estação das Docas, Curro Velho, entre
outros lugares. Uma das exigências de Mestre Paulo para levar o Cordão é que seja servido
aos brincantes mingau de milho, comida tradicional do período junino.
A escolha do protagonista do Cordão, Peixe Bacu, deve-se ao fato dele ser um
animal presente no cotidiano dos moradores de Icoaraci, é um peixe abundante e de baixo
valor comercial, por isso é desprestigiado pelos pescadores.
O local do surgimento do Cordão, a Vila Itália, existe há aproximadamente 60 anos
e encontra-se no Distrito de Icoaraci no bairro da Campina. A Vila fica localizada em uma
zona portuária entre os muros da empresa Pesqueira Maguari, companhia extrativista de
grande poste. O assento foi ocupado por pessoas oriundas do interior do Estado do Pará, a
maioria tinha como ofício a pesca, mas com o aumento da poluição do rio causada pelos
antigos curtumes da região, sobreviver da pescaria se tornou algo cada vez mais
insustentável.
Mestre Paulo Roberto
Paulo Roberto Oliveira da Silva nascido em 1964 em Belém, estudou somente até a
4ª série do ensino fundamental e logo iniciou o ofício de açougueiro –que aprendeu com
seu pai – o primeiro contato com os folguedos junino aconteceu aos 09 anos na antiga
Campina Grande, hoje chamado de COHAB em Icoaraci. Mestre Paulo participou do
extinto Cordão de Pássaro Tangará da estrada do Outeiro somente no ano de 1973.
Na época em que tinha 15 anos frequentou uma quadrilha junina onde ficou até os
16 anos, deste então não participou de mais nenhum folguedo.
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Figura 1 Mestre Paulo Roberto no momento do ensaio do
Cordão de Peixe Bacu em maio de 2015.
Fonte: Arquivo pessoal.
Paulo nunca frequentou escola de música, sequer tocava um instrumento, mas já
produzia suas canções;
Antes de inventar o Bacu, eu já tinha uma ideia de montar umas músicas, eu
ficava em casa só ouvindo aí pegava a caneta e fazia umas letras de uns sambas
aqui pra nós brincar aqui na Itália (Paulo Roberto, 51 anos, Mestre do Cordão de
Peixe Bacu, 31 de maio de 2015).
Após o Peixe Bacu mestre Paulo aprendeu a tocar alguns instrumentos percussivos,
canta e compõe todas as músicas do Cordão e as renova quase todo ano.
Perfil dos Brincantes
O Cordão do Bacu trabalha com crianças entre a faixa etária de 02 a 11 anos de
idade que sejam moradores da Vila Itália ou das proximidades. Não é necessário pagar
para participar, apenas ter disponibilidade para participar dos ensaios e das apresentações e
não é exigência ter conhecimento prévio de música.
As crianças são filhos de operários, profissionais liberais e desempregados,
possuem baixa renda, e parte delas moram em apartamentos cedidos pelo governo federal
através do programa PAC (Programa de aceleração do crescimento) e recebem o Bolsa
Família – Programa do governo federal de assistência familiar. Alguns residem em
palafitas com seus familiares na Vila Itália, outros em casas próximas dessa Vila.
A quantidade de brincantes varia entre 10 a 13 crianças presentes por ensaio, em
conversa informal, Mestre Paulo declarou se sentir triste com a reação de alguns moradores
evangélicos da comunidade. Eles negam a participação de seus filhos no cordão por
acreditarem ser uma prática alusiva a adoração a um ser maligno. Paulo complementou
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dizendo que antes de haver o “boom” das igrejas evangélicas, o número de crianças
participando do cordão variava entre 30 a 40 brincantes.
No Bacu há crianças que participam do cordão há mais de 3 anos, como é o caso
dos irmãos Igor Moraes e Isac Matias, eles são mais hábeis no palco e também mais
sensíveis à música.
Algumas crianças que participam do cordão são estudantes de instituições públicas
de ensino em Icoaraci, outras são muito novas para iniciar seus estudos, porém nenhuma
delas apresenta, durante os ensaios, dificuldades em aprender as letras das músicas e as
coreografias, pelo contrário, as músicas são rapidamente internalizadas.
Metodologia de Mestre Paulo
O método de ensinamento musical praticado pelo Mestre Paulo acontece através da
repetição das canções, não é ensinado nenhum instrumento aos brincantes, eles utilizam a
voz em coro uníssono, exceto nas canções dos personagens que seu intérprete canta em
solo. Não é ensinado nenhum tipo de notação musical, as melodias e os arranjos são
memorizados no decorrer dos ensaios. Para alguns que já sabem ler é entregue a letra das
canções e para aqueles que não se sentem seguros para cantar a canção de seu personagem,
Mestre Paulo oferece assistência individual, ele usa seu único dia de folga, o domingo,
para junto com o brincante cantar a música repetidas vezes até que a mesma seja
internalizada.
Mestre Paulo, também, monta a coreografia das músicas, que são criadas a partir
das características dos personagens, por exemplo, o movimento natural do Siri é captado e
expressado corporalmente pelo intérprete na Canção do Siri. A forma de ensinamento da
dança é semelhante na música, através da observação e imitação, os movimentos
executados por Mestre Paulo são repetidos pelo brincante.
O sistema de aprendizagem em países do ocidente é eminentemente teórico. Na
Índia, em contrapartida, a improvisação tem origem na memorização de
combinações harmônicas. Mesmo os que criam suas próprias canções têm a
influência desse modelo. Os músicos indianos também são avaliados pela
capacidade de conciliar prática instrumental, prática ritual e estudo (BRAGA,
2011: p. 36).
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Estrutura Musical do Cordão de Peixe Bacu
A estrutura usada pelo Cordão de Peixe Bacu se divide em três sessões: canção de
entrada, canção dos personagens e canção de despedida.
As melodias são acompanhadas apenas por instrumentos percussivos: um curimbó
que determina o andamento da música, um par de maracas e uma meia-lua que são
responsáveis pela subdivisão e condução rítmica. Os ritmos usados são:o carimbó, a toada,
o xote e a marchinha, este último o mais utilizado.
As músicas são divididas em dois temas e em algumas é repetida a frase final, são
tonais e usualmente estão em modo menor e são cantadas em registro grave correspondente
a tessitura vocal do compositor, para as crianças que cantam e estão em processo de
formação, algumas frases musicais tornam-se difíceis de serem entoadas.
Tabela 1 Estrutura musical do Cordão de Peixe Bacu em 2015.
Canção de Entrada
Boa Noite
Canção dos Personagens
O Barco
O Pescador
A Sereia
A Canoinha
O Siri
Carimbó
O Boto
O Maçariquinho
Canção de despedida:
O Camarão
Adeus, adeus
Transcrição musical
Para o processo de transcrição utilizei um aplicativo de celular de captação de sons
para a gravação das músicas do Cordão coletado durante os ensaios e também uma
filmadora digital, os aparelhos eram fixados, aproximadamente, a 2 metros de distância da
fonte. Devido à baixa qualidade dos equipamentos de captação sonora, alguns sons e
palavras foram difíceis de ser identificadas, foi necessária uma escuta mais minuciosa.
Analisando detalhadamente as gravações colhidas percebi que a mesma música era
interpretada a cada dia de uma maneira diferente, havia pequenas variações na rítmica,
mudanças na afinação, no andamento e na letra: “Qualquer notação é uma representação e,
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assim sendo, será um recorte do objeto de estudo que para fazer sentido necessita de uma
série de convenções e significados aprendidos e retransmitidos culturalmente” (MENDES,
p. 210: 2015).
No processo de notação musical utilizei o programa de edição de partituras
MuseScore 2.0 Beta 2®, as melodias e as células rítmicas foram montadas por meio da
percepção auditiva e reprodução em instrumentos melódicos.
Figura 1 Partitura "O Pescador", compositor Mestre Paulo Roberto,
transcrição Luany Ferreira
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Figura 2 Partitura "A Canoinha", compositor Paulo Roberto, transcrição Luany Ferreira
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Resistência e identidade cultural
O Cordão de Peixe Bacu representa de forma autêntica a cultura dos moradores de
Icoaraci, o mesmo resiste fora do seio do poder público e de ajuda de empreiteiras, ele
sobrevive dentre os palcos populares de ruas, vielas e alamedas e ganha prestígio e
admiração pelas poucas pessoas que o conhecem. Em seu próprio ambiente de origem o
cordão não possui um grande número de pessoas atingidas, ele compete com a indústria da
cultura de massa que esmagadoramente alcança um público maior.
Dentre tantas dificuldades enfrentadas para manter o Cordão, sem dúvida, a falta de
dinheiro é a mais pertinente, Mestre Paulo é quem custeia os lanches distribuídos
diariamente nos ensaios, a contratação de transporte para locomoção dos brincantes em
dias de apresentação e materiais para a confecção de adereços.
O ensino da prática dos cordões oriundos de saberes populares oferecidos em
ambientes escolares e não escolares permitirá a difusão, prolongamento e a perpetuação da
tradição deste folguedo junino, contribuirá para a afirmação da identidade cultural e
proporcionará ampla visão da realidade vivida por caboclos da região.
Referências
Braga, Lívia Alexandra Negrão. Identidades musicais no Curso de Licenciatura em Música
da Universidade do Estado do Pará: uma composição em acordes dissonantes. Tese
(Doutorado) - Universidade Federal do Pará. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Belém, 2011.
FIGUEIREDO, Silvio; TAVARES, Auda. Mestres da Cultura. Belém: EDUFPA, 2006.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Belém:
CEJUP, 1995.
MENDES, Adriano Caçula. Desafio da notação musical para músicas de tradição oral. In:
ENABET: Encontro Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia - Redes
Trânsito e Resistência, VII. 2015, Florianópolis, Anais. PPGAS/UFSC: 2015. p. 206 – 220
PINHEIRO, Andrea Lopes. Escola, educação, ambientes não escolares. In: Revista
Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery, n. 4, 2008. Disponível em:
http://re.granbery.edu.br/artigos/MTMy.pdf > acesso em: 27/11/2015.
SILVA, Rosa Maria Mota da. A Música do Pássaro Junino Tucano e Cordão de Pássaro
Tangará de Belém do Pará 2003. 199 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de
Comunicação e Arte – ECA. Universidade de São Paulo. São Paulo; 2003.
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. O Cordão de Pássaro Corrupião: Uma prática musical bragantina. 213 f. Tese
(Doutorado em Música) – Escola de Música da Universidade Federal da Bahia.
Universidade Federal da Bahia. Belém – 2012.
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O Coral Edgard Moraes aliando tradição e inovação no frevo-de-bloco: o
álbum Cantos e Encantos.
Alice E. da Silva Alves
Universidade Federal de Pernambuco – [email protected]
Carlos Sandroni
Universidade Federal de Pernambuco – [email protected]
Resumo: O Coral Edgard Moraes tem seu núcleo principal formado só por mulheres, fundado na cidade do
Recife em 1987, filhas e netas do compositor Edgard Moraes, um dos expoentes máximos do frevo. O grupo
busca aliar o lirismo e a poesia tão presentes no frevo-de-bloco e exaltados por seus compositores com as
sonoridades não tradicionais do frevo. A partir disso, o presente artigo busca fazer uma análise geral de como
o grupo trabalha essa concepção musical em seu último álbum, Canto e Encantos, lançado para a
comemoração aos seus 25 anos. A obra traz inovações musicais muito aplicadas à questões timbrísticas, de
orquestração e harmonia, mas mantendo ainda o saudosismo da canção no frevo-de-bloco. A intenção é
entender, sem aprofundamento em termos harmônicos, a criação musical do álbum. Serão abordados os
autores SILVA, 1998; BEZERRA e SILVA, 2006; VILA NOVA, 2007. A entrevista realizada com Marco
César, diretor musical do álbum, foi o mote principal.
Palavras-chave: Frevo-de-bloco. Coral Edgard Moraes. Inovações Musicais.
Introdução
O frevo-de-bloco tem sua origem nos blocos líricos e retoma uma estrutura que se
aproxima do que foram os ranchos carnavalescos do Rio de Janeiro no final do século XIX.
Com forte inspiração no presépio familiar, “pleno de formosas pastorinhas a dançar e
cantar, diante da lapinha e quando das procissões na noite da festa dos Santos Reis,
louvando o nascimento do menino Jesus”. (DANTAS SILVA, 1998, p. 24).
O cortejo é aberto a partir do flabelo (cartaz que leva o nome da agremiação e o
ano da fundação), seguido por um conjunto majoritariamente de mulheres responsável pela
parte cantada do frevo-de-bloco e pela orquestra de pau e corda. Nessa há um
predomínio dos naipes de cordas dedilhadas e das madeiras acompanhados pela percussão.
Pode haver também instrumentos do naipe de metais. A novidade de estrutura para festejar
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o carnaval, trouxe a possibilidade das mulheres participarem desse nas ruas, sua
organização propiciava um afastamento da massa popular.
O frevo-de-bloco tem origem a partir da reuniões familiares dos bairros
recifenses do centro, com São José, Santo Antônio e Boa Vista. Trata-se, desde a
sua origem, de um gênero musical vinculado às camadas médias e altas da
sociedade. De fato, Bezerra e Silva (2006), assinalam que os blocos ‘nasceram
sob o signo da ordem e do apoio de intelectuais, da polícia e foram aplaudidos
como contraponto ao carnaval dito ‘perigoso’ dos clubes pedestres e maracatus’.
(VILA NOVA, 2007, p.79).
O Coral Edgard Moraes tem sua criação em 1987 formada pelas filhas e netas do
compositor Edgard Moraes, que foi um dos maiores nomes da música pernambucana e do
frevo. Antes disso, o grupo integrou o Bloco das Ilusões por treze anos. O Coral busca aliar
o lirismo e a poesia tão presentes no frevo-de-bloco às sonoridades não tradicionais a esse.
Em sua formação mais recente, é composto por Ana Chacon, Inajá Moraes, Iraçaíra
Moraes, Isis Moraes, Maria Chacon, Marta Lopes, Valéria Moraes e Wanessa Moraes.
Coral Edgard Moraes.
Fonte:
https://www.facebook.com/coraledgardmoraesoficial/photo
s/. Foto: Marco Brito.
Assim, o objetivo desse trabalho é fazer uma análise mais geral de como o grupo
trabalha essa inovação, a partir de seu último álbum Canto e Encantos, lançado em
comemoração aos seus 25 anos. A intenção é entender como esses processos aplicados à
questões timbrísticas e à orquestração dos arranjos acontecem. O caráter saudosista
tradicional da canção é mantido. O estudo foi desenvolvido a partir de um viés
etnomusicológico, de caráter etnográfico. A entrevista realizada com Marco César foi o
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mote principal. Bandolinista, compositor e arranjador. Ele é um dos grandes nomes do
choro nacional. É também um dos maiores formadores de músicos na cidade do Recife.
É importante observar que são elas, as mulheres do Coral Edgard Moraes, que mais
incentivam as experimentações e que detém a palavra final nos processos de concepção de
suas obras. Há um protagonismo feminino que foge totalmente do original processo de
participação das mulheres no frevo-de-bloco.
Marco César.
Fonte :
https://www.facebook.com/marcocesar.brito
Foto: Marco Brito.
Desconstruindo processos da tradição do frevo-de-bloco
O álbum Cantos e Encantos, em seu encarte, é assim apresentado por seu diretor
musical, Marco César:
Imaginar o FREVO tocado só aos modos momescos é limitar demais a grandeza
cultural que ele expressa e representa. Com a filosofia de inovar nos timbres,
harmonias e linguagens, imaginamos um registro de formato universal que
mexesse com os mais aguçados ouvidos críticos, acostumados aos sons das
grandes obras. Tudo começa com o talento inigualável do Maestro Spok, da
produtora Valéria Moraes e dos companheiros músicos, compositores e
arranjadores que abraçaram a causa nobre do fazer artístico [...] (2012)
O ponto inicial foi entender o que é imutável no frevo-de-bloco para não
descaracterizá-lo. Marco César explica que “é a rítmica do frevo” cantarolando a seguinte
célula rítmica:
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E continua:
É importante ter, não quer dizer que ele (sic) tenha que estar o tempo todo,
assim, porque a gente sabe que tem o básico e tem as variações. E as variações
também são muitas vezes de acordo com o arranjo. (Depoimento pessoal, 2016).
Capa do CD Cantos e Encantos.
São 16 faixas, em quase todas a base instrumental é baixo, na maioria das vezes
acústico, violão de 7 cordas, cavaco e bandolim. “A filosofia desse disco é fazer com que
as pessoas cheguem em casa, depois do trabalho, sentem e em vez de ouvir só um Caetano,
Gil vá ouvir a música popular brasileira pernambucana, vá ouvir um frevo-de-bloco
sofisticado. ” (Depoimento pessoal, 2016)
1. Edgariando (Edgard Moraes)
Arranjo: Spok
Voz solo de Valéria Moraes. Espécie de tributo a Edgard Moraes, é um medley de
três músicas dele: A dor de uma saudade, Alegre Bando e Valores do Passado.
Um aspecto importante, referente à identidade genérica do frevo-de-bloco, é a
sua caracterização como uma música feita para o canto feminino, em conjunto. O
frevo-de-bloco pode ser definido num plano discursivo constituído
fundamentalmente pelo seu caráter coletivo, simbolicamente representado nas
vozes que entoam as canções – o coro feminino acompanhado pela orquestra – e
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na própria formação do bloco, enquanto desfilantes fantasiados (diferenciandose, por exemplo, do passista, que, em termos de representatividade simbólica,
destaca-se individualmente pela indumentária colorida e pela utilização da
sombrinha para garantir o equilíbrio na execução da dança do frevo). (VILA
NOVA, 2006, p. 80-81)
É a música abre-alas e serve bem ao propósito de inovação. Não há a presença do
apito inicial e do acorde em uníssono, o que são muito tradicionais no frevo-de-bloco.
Geralmente, após o apito do maestro, que dá a chamada para o início da música, segue o
acorde em uníssono feito pela orquestra, no tom da canção. O saxofone faz o solo inicial
seguido pelo bandolim, pela flauta que introduzem a voz de Valéria em um rallentando
que vai puxar o andamento acelerado, a estrutura de coro e a orquestração já tradicionais.
Soma-se a tudo isso, o uso do baixo acústico, do trompete e do trombone que não são
instrumentos comuns para a orquestra de pau e corda. Traz também a participação do coro
do Bloco da Saudade, que foi responsável pela revitalização na década de 1970 dos blocos
líricos.
No alvoroço das ruas, nos dias de Carnaval, o diretor da orquestra dá o sinal de
alerta aos músicos e ao coral com o apito – todos ficam atentos. A orquestra
ataca o acorde inicial, o surdo, com uma única pancada forte, serve de guia para
o andamento da composição a ser tocada. A introdução, feita em uníssono por
todos, tem um caráter animado, impulsivo, lembrando de perto o espírito do
frevo que, em seguida, irá contrastar com a linha melódica cantada, mais sóbria,
quase sempre em tom menor. (MADUREIRA, Antônio José, 1980) .
2. Sou de Pernambuco (Raul Moraes)
Arranjo: Maestro Edson Rodrigues
A canção de Raul Moraes, irmão de Edgard Moraes, traz como característica forte a
valorização da cultura pernambucana. O arranjador foi escolhido por ter convivido com
Edgard e fazer referência à tradição do frevo. Assim, sua música já volta com o apito e
com o acorde em uníssono de abertura - geralmente no tom da canção, no início e no fim
dela – e com o protagonismo das cordas dedilhadas e das vozes em coro.
3. Frevo Chorado (Getúlio Cavalcanti)
Arranjo: Edmilson Capelupi
Apresenta características de uma música de câmara, mais intimista, possui um
arranjo mais fraseado, menos em uníssono. A intenção, segundo Marco César, não é
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restringir o disco “ao mesmo som, à mesma batida, ao mesmo timbre. Então uma frase de
cavaquinho que você faça ou uma frase de violão que você faça já dá um diferencial
grande para quem tá simplesmente sentado escutando”. O arranjador é um dos nomes
referência do choro em São Paulo e traz essa influência de certa forma em seu arranjo.
A flauta entra segurando a melodia com as cordas em tremolo dando a base. A
seguir, a rítmica marcante do frevo-de-bloco reaparece, mas o fraseado da flauta e das
cordas trançado remete mais à tradição chorona. Na canção não há o apito inicial e o
acorde em uníssono.
4. Encanto dos blocos (Luiz Guimarães e Alvacir Raposo)
Arranjo: Maestro Duda
Faixa executada somente pelo Coral Edgard Moraes e pela SpokFrevo Orquestra. E
o maior diferencial é a presença do naipe de metais do grupo convidado e também sua
ligação mais aproximada com o frevo-de-rua. Assim, algumas adaptações na estruturação,
como o uso de um andamento mais rápido do que o habitual, foram necessárias.
5. Recife Espelho d’Água (Louro Castro e Moacir Oliveira Neto)
Arranjo: Paulo Arruda
Os maiores detalhes timbrísticos são o violoncelo e a bandola. E também, mais uma
vez, uma voz feminina faz solo, dessa vez Inajá, dona Naná, filha de Edgard Moraes. O
arranjo assim assume um caráter intimista para a música, o coro só aparece em partes de
tutti, em momentos mais expressivos.
A introdução mais camerística, com o solo do violoncelo acompanhado do violão
de 7 cordas, foge completamente do que se espera para o gênero. O arranjo se adensa com
a entrada dos outros instrumentos, bandolins e bandolas em tremolo, clarineta, flauta em
uma dinâmica de crescendo e diminuendo que termina dando vez à entrada da voz solo e
da rítmica do frevo-de-bloco.
6. Regressando de Aurora (Maurício Cavalcanti e Marcelo Varella)
Arranjo: Marco César
Tem como convidada a Orquestra Retratos do Nordeste que tem a formação
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tradicional para o conjunto choro em cordas dedilhadas (bandolim, bandolas,
bandoloncelos e violas). “Na história do frevo, não se teve gravações nesses moldes, com
esses instrumentos tratados como orquestra. Teve sim, todo mundo tocando em uníssono,
fazendo acorde, mas não como frase erudita, é uma orquestra de câmara” (Marco César,
depoimento pessoal, 2016) São fraseados que valorizam sua sonoridade, mas que se
adaptam à linguagem do frevo-de-bloco.
7. Saudade que dói (Samuel Valente)
Arranjo: Nilson Lopes
Bom, se fôssemos Tiradentes, seríamos enforcados em praça pública,
antigamente, se a gente tocasse com guitarra, com acordeon e com bateria. É um
crime, mas só que houve uma concepção de arranjo, de Nilson Lopes, que é um
jovem arranjador daqui de Pernambuco e que faz um trabalho, assim, de muita
categoria, de muita escolha, de acorde, de arranjo e de muita modernidade. E
sem deturpar a identidade [...] sem tirar o espírito do frevo (Marco César,
depoimento pessoal, 2016)
Tem como convidado o Spok Quinteto que traz bateria, baixo, guitarra, acordeon e
sax. Esse arranjo tem mesmo a inovação de timbres que não faz parte da tradição, mas
mantém ainda muito forte a rítmica e o fraseado do frevo-de-bloco.
8. Mais que uma cantiga (Cláudio Almeida e Humberto Vieira)
Arranjo: Fernando Rangel
Traz as presenças do flugelhorn, do trombone e dos saxofones soprano e tenor. O
arranjo tem influência do subgênero dixieland do jazz estadunidense, surgido na década de
1910 em New Orleans. Existem umas linhas de improviso que remetem a essa sonoridade.
De todas as canções do disco, considero ser a que mais quebra com a rítmica tradicional do
frevo-de-bloco, dando um ar por vezes jazzístico, por vezes amaxixado. Entretanto,
termina com o acorde final clássico em uníssono.
9. Pirilampos (Diógenes Souza)
Arranjo: Marco César
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O Quinteto de Cordas da Paraíba (dois violinos, viola, violoncelo e contrabaixo),
abre a canção. Como convidado dá uma característica de “música de câmara pura”, de
“música erudita tradicional” à canção, segundo Marco César. Há também a voz solo de
Valéria. O uso do violino não é algo novo para o frevo-de-bloco, sempre fazendo solo em
uníssono com a melodia, a linguagem que esse assume nessa canção sim: solo em
contracanto, acompanhamento e improvisação escrita. Outro ponto forte defendido pelo
diretor musical é a “timbragem de frente” das cordas friccionadas e não da orquestra de
pau e corda.
10. Vinganças de Arlequim (Edgard Moraes e Caio Costa Lima)
Arranjo: Ademir Araújo
Formação tradicionalíssima. Desde o apito inicial e final até o acorde final em
uníssono. O que traz diferente apenas é a presença do trompete e do trombone.
11. Recife Urgente (Luiz Paulo Galvão e Paulo Gama)
Arranjo: Nilson Lopes
Traz a SpokFrevo Orquestra como convidada. Melodia rebuscada para decorar,
para cantar, para afinar. Há uma linha melódica das vozes, com uma extensão de agudos
inclusive, que realmente não faz parte do repertório comum ao frevo-de-bloco.
Esse sim, é um frevo extremamente difícil, para os cantores, porque não é um
frevo que vai estar na boca do povo, a gente teve consciência disso. È um frevo
que só determinadas pessoas, em determinados ambientes, em determinadas
gravações ou projetos vai estar presente. (Marco César, depoimento pessoal,
2016)
12. Mar de ilusões (Tadeu Junior)
Arranjo: Rodrigo Samico e Rafael Marques
Como convidado, o grupo de choro Arabiando que traz a viola de 10 cordas e a
bateria e só se fez inserir alguns instrumentos: flauta e sax tenor. Há uma linha de
improvisos do bandolim, uns tremolos que flutuam mesmo entre a linguagem do frevo-debloco e do choro e umas frases de sax que remetem ao jazz. Ao fim da canção existe um
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contraponto da voz solo de Valéria, da flauta e do pandeiro que dão uma delicadeza, que
enxugam o arranjo em um rallentando que remetem mais uma linguagem chorona.
13. Recife Cem Edgard (Fernando Azevedo)
Arranjo: Marcos FM
Arranjo tradicional, mas que traz o baixo elétrico.
14. Meu principado (Luciano Magno e João Aragão)
Arranjo: Luciano Magno
Com baixo acústico, piano, guitarra, violão base, sax tenor e bandolim, só que esse
fazendo fraseado de guitarra solo. Isso e a voz solo são as marcas de diferenciação da
canção. A guitarra elétrica, dá mais um suporte de base.
15.
Pares de Flores (Bozó 7 cordas e Eriberto Sarmento)
Arranjo: Bozó 7 cordas
Traz o piano e o violoncelo. O baixo acústico não faz só o pizzicato marcante no
frevo-bloco, faz solo também. Marco César ressalta que há também a conotação da bossanova, do samba gênero esse que faz parte do que o arranjador costuma ouvir. Há mesmo
um desenho melódico e harmônico da base instrumental para o coro que remete à leveza
dos arranjos da bossa-nova, do samba-canção.
16.
Regressando (Bráulio de Castro e Fátima de Castro)
Arranjo: Nilson Lopes
Vem em seu arranjo com a trompa e com o fagote, instrumentos sinfônicos. Tem a
participação do Quinteto de Sopros Arrecife (flauta, oboé, clarinete, trompa e fagote).
Além do baixo elétrico. O tratamento do arranjo é mais jazzístico, com o uso de muito
contraponto. O predomínio do naipe das madeiras é a marca mais interessante do arranjo.
A rítmica do frevo-de-bloco é mantida mais fortemente pela percussão.
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Considerações Finais
A trajetória do Coral Edgard Moraes transitando por esse meio de música de
tradição popular, mas com essa busca por um processo de profissionalização, de ir ao
palco, só faz atentar que processos arraigados, ditos intocáveis pelos mais tradicionais no
frevo-de-bloco podem ser revisitados, repensados. Buscar inovações não necessariamente
significa que vá se perder a essência, pode significar apenas dar vida nova, enxergar as
diversas possibilidades musicais que existem para o frevo-de-bloco.
Quando se engessa muito as coisas, sobretudo em artes, a tendência é que morra a
criatividade, o espírito de liberdade. Como acredita Seeger (2008, p. 238), “o fato de que
sempre existirá uma próxima vez, aponta para o que podemos chamar de tradição. O fato
de que a próxima vez não será nunca igual à vez anterior produz o que podemos chamar de
mudança”.
Referências
BEZERRA, Amilcar Almeida. SILVA, Lucas Victor. Evoluções: histórias de bloco e de
saudade. Recife: Bagaço, 2006.
BRITO, Marco César. Entrevista concedida a Alice Alves. Recife, 19 de abril de 2016.
CORAL EDGARD MORAES. Cantos e Encantos. Recife: Editora CEPE, 2012. 1 CD. 16
faixas.
MADUREIRA, Antônio José. Vem Escutar, Nossa Linda Canção. Fonte:
http://www.blocodasaudade.org.br/#!artigo03/c38b. Acesso em: 15 de abril de 2016) .
SEEGER, Anthony. Etnografia da Música. Tradução de Giovanni Cirino. Cadernos de
campo. São Paulo, n.17, p.237-260, 2008
SILVA, Leonardo Dantas. Blocos carnavalescos do Recife: origens e repertório. Recife:
Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria do Trabalho e Ação Social, Fundo de
Amparo ao Trabalhador – FAT, 1998.
VILA NOVA, Julio Cesar. F. Panorama de folião - o carnaval de Pernambuco na voz dos
blocos líricos. Recife: Fundação de Cultura cidade do Recife, 2007. v. 1. 167p.
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SESSÃO 2
Coordenação: Tainá Mª magalhães Façanha
Cidade e cultura musical: a Feira Pixinguinha em Belém do Pará (1980).
Nélio Ribeiro Moreira
(FAV/ICA/UFPA - [email protected]
RESUMO: Este artigo aborda a cena da canção popular em Belém do Pará nos primeiros anos da década de
1980 por meio de um evento particular, a Feira Pixinguinha. Trata-se de verificar de que maneira a realização
desse evento foi fator contributivo para a formação de uma cultura musical na cidade, entendendo-a em
condição de fronteira. O objetivo proceder a uma leitura das representações que foram construídas
historicamente para traçar um quadro analítico-descritivo das práticas sociais e culturais havidas naquela
configuração social.
Palavras-chaves: Feira Pixinguinha; cultura musical; cena da canção popular; antropologia histórica.
A Feira Pixinguinha foi um evento musical idealizado pelo músico Maurício
Tapajós e que estava atrelado ao Projeto Pixinguinha, este uma idealização da Sociedade
Musical Brasileira, a SOMBRÁS, entidade criada pelos músicos JardsMacalé e Sérgio
Ricardo. Inspirado na série de shows Seis e Meia, o Projeto Pixinguinha, criado em 1977,
tinha como objetivo proceder a ocupação do Teatro João Caetano, na cidade do Rio de
Janeiro, com espetáculos às 18h30 e ingressos a preços populares.75 O objetivo era
“valorizar, difundir e formar plateia para a música popular brasileira e para o trabalho de
artistas fora da evidência do mercado” e para alcançar esse propósito seria promovida “a
circulação de espetáculos musicais pelo país” (ALMEIDA, 2009, p. 12). A fórmula era a
seguinte: apresentar um artista de renome nacional e um expoente da canção local. Até
1983 o patrocínio do evento cabia apenas à FUNARTE e alguma parte subsidiada pelo
meio empresarial. A partir daquele ano, a Petrobrás passou a patrocinar o Projeto
Pixinguinha (Idem. Ibidem).
75
Disponível em: http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/pixinguinha/o-pai-do-projetopixinguinha/. Acesso em: 10 set. 2013.
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Este trabalho lida com o primeiro grande evento de música na cidade na época e
que teve significativa ressonância na cultura musical76 da cidade na época que foi a Feira
Pixinguinha de Belém. Esse pode ser lido comoinstrumento de uma política cultural cujo
objetivo era a integração da produção musical da região amazônica ao cenário musical do
Brasil no intuito de mostrar ao país os valores musicais da região.77 É essa a idéia que está
expressa nos jornais e no texto do álbumque foi lançado em maio de 1980, onde estão as
doze canções “selecionadas” na Feira, resultado do evento.78
Além de expor para o Brasil a cultura musical de “áreas isoladas culturalmente” 79,
a Feira Pixinguinha pretendia promover uma animação cultural a nível regional.80 A cidade
de Belém do Pará foi a segunda cidade a receber esse evento. A primeira versão do Projeto
ocorreu em Brasília, em junho de 1979. Aliás, a ocorrência da Feira Pixinguinha em
Brasília acabou por colocar a questão da possível existência de uma “MPB candanga”.
Logo após o evento foi lançado um debate acerca de uma música de caráter local,
“brasiliense”, haja vista que, ainda que não tivesse uma matriz original que legitimasse a
ligação afetiva dos artistas com o seu lugar, a música de Brasília era resultado da junção de
várias culturas musicais o que, de certa forma, resultou em um “posicionamento
candangal”81: avaliar o ethos dessa produção, o que teria conformado uma música com as
características dadas por elementos constituintes de umacidade projetada. Como se vê, a
Feira Pixinguinha deu o mote para que também emergisse um debate sobre caráter da MPB
produzida em Brasília.
Então, ponto inicial de partida da “missão” de inclusão da produção musical de
várias regiões do país ao corpus da música popular brasileira foi a Capital Federal, ela
76
Entenda-se por cultura musical a reunião de indivíduos atuantes na cena artística compõe uma cultura
dentro da sociedade envolvente – o que pode ser tomado como uma subcultura -, haja vista que esses atuaram
no sentido de estabelecer processos de interação instigados pela necessidade de dar uma resposta para
problemas que lhes eram comuns. Assim, quando um grupo de pessoas tem de maneira relativa uma vida
comum, em um pequeno grau de isolamento em relação a outras pessoas da sociedade circundante, a mesma
posição na sociedade e problemas comuns, ali está uma cultura (HUGHES, apud. BECKER, 2008).
77
FUNARTE. Feira Pixinguinha. (LP). Belém, 1980.
78
“Feira Pixinguinha, sempre um sucesso”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 19 de janeiro de 1980, p. 12.
Caderno Cidade.
79
FUNARTE. Feira Pixinguinha. (LP). Belém, 1980.
80
Efetivamente, a Feira Pixinguinha, ainda que tivesse um modelo de festival e que tivesse havido ali uma
“seleção”, tal como nos moldes dos “festivais da canção” dos anos 1960 e 1970, não era necessariamente um
certame. Tratava-se mais de uma mostra de música, definição esta que, contudo, não aparece nos jornais da
época.
81
“MPB candanga. Eixo Rio - São Paulo versus Eixão Monumental, a luta dos novos.” Jornal CB Hoje.
Brasília, 21 de junho de 1979. Caderno Variedades. p. 21. Candango é como ficaram conhecidos os homens
de vários lugares do país que se deslocaram para trabalhar na construção da cidade.
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própria uma cidade que foi construída com o intuito político-ideológico de ser um lugar
mediano no espaço nacional que funcionasse como meio de integração de regiões ainda
não totalmente incorporadas ao território nacional. Assim, do centro do Brasil se iniciaria a
incursão à periferia do Brasil na busca por “revelar ao país os valores da música popular de
cada região ou pelo menos dos grandes centros”. 82Vejamos o seguinte trecho de um jornal
local do período:
Belém é a segunda metrópole para a realização da Feira Pixinguinha,
representando o que há de melhor na música da Amazônia através das vinte
composições que foram classificadas no Rio de Janeiro [...].83 (Grifos meus).
O trecho citado fala em exposição do melhor da música da Amazônia numa
perspectiva discursiva reducionista que abarca toda a região amazônica ao estado do Pará
e, mais precisamente, à cidade de Belém do Pará. Assim, avento que a realização nessa
cidade da segunda versão do projeto Feira Pixinguinha se deveu ao fato de: 1) Belém do
Pará ser uma cidade amazônica na qual a produção musical era fato reconhecidamente
destacado, pois rememora à década anterior episódios que delimitaram essa visão sobre a
produção musical da região; 2) ser a cidade amazônica de maior expressão regional
naquele contexto, “o modelo mais bem acabado de uma cidade da Amazônia”, como está
expresso em um jornal da época – aliás, idéia essa expressa no recorrente uso do termo
“metrópole da Amazônia”, um discurso construído sobre a idéia de um passado áureo que
remete à época da economia da borracha
84
; 3) como conseqüência da sua condição
amazônica, que associa os ambientes urbano e natural, ter se forjado na cidade uma
perspectiva estética musical que é portadora de uma peculiaridade que se reflete na
temática do cancioneiro local.
Devido a isso, proponho ler a Feira Pixinguinha como um instrumento
“missionário”, haja vista que teve como objetivo a incorporação das cenas musicais
regionais/locais no circuito nacional da música popular brasileira moderna. A prática de
reunião de artistas locais em vista de urdir meios para o estabelecimento de uma cena
“Feira Pixinguinha, sempre um sucesso”. Jornal O Estado do Pará, Belém, 19 de janeiro de 1980, p. 12.
Caderno Cidade.
83
Idem. Ibidem. O júri que escolheu as músicas no Rio de Janeiro era composto por: Sueli Costa,
JardsMacalé, Érico de Freitas, Chico Chaves e Cláudio Jorge.
84
Sobre as transformações processadas no espaço urbano de Belém no final do século XIX e início do XX
ver: SARGES, 2002.
82
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musical regional mais coesa foi a sua conseqüência imediata. Isso pôde ser visto nas
versões desse evento em Brasília e Belém.85
A questão do regionalismo era tema presente nas leituras dos artistas que
participaram da Feira Pixinguinha de Brasília. E assim foi em Belém. A propósito, na cena
musical dessa cidade a questão do “uso” do tema do regional teve uma repercussão mais
impactante. Isso se deu porque se em Brasília a música local era resultante das imbricações
das mais variadas tradições culturais em contato e amálgama, em Belém era imperativo o
ambiente, a retomada do uso de um ethos amazônico que já havia se consolidado na
produção de artistas de anos anteriores e que acabou por conformar uma “MPB de feições
regionais” (COSTA, 2008) 86.
As 20 músicas que foram apresentadas na Feira Pixinguinha foram retiradas de um
universo de 81 que haviam sido inscritas. Os compositores das canções participantes eram
oriundos de várias partes da região. Todavia, o quadro de “finalistas” dessa mostra musical
foi formado por artistas atuantes em Belém. Quanto ao critério de escolha que definiu as
canções finalistas, este tinha sido efetivado em uma dinâmica que considerava,
primeiramente, a construção musical, e, em seguida, a letra. A performance dos intérpretes
e a execução dos arranjos das cançõestambém foram quesitos observados pelos avaliadores
e premiados pelos organizadores.
No dia 18 de janeiro de 1980, no Teatro da Paz, às 18h30m de uma sexta-feira,
tinha início a Feira Pixinguinha. Ali foram apresentadas dez canções. A comissão de júri
que teve a responsabilidade de julgar as canções ali apresentadas era formada pelos
músicos Maurício Tapajós, Danilo Caymmi, Antonio Adolfo e Carlinhos Vergueiro – que
também se apresentaram para o público durante a mostra, “cantando ou tocando uma ou
duas músicas”87 - e mais os paraenses Arnaldo Cohen, Guiães de Barros e Waldemar
Henrique.
No sábado, dia 19, ocorreu a segunda fase de apresentações na Feira Pixinguinha.
Neste dia de apresentação, duas novas músicas foram incluídas em substituição às duas que
haviam sido desclassificadas. A justificativa do júri – de que já haviam sido apresentadas
85
A terceira e última versão da Feira Pixinguinha ocorreu em Salvador, na Bahia, em fevereiro de 1980. É
desconhecido o motivo do fim do projeto.
86
Essa perspectiva de um regionalismo militante por parte de artistas da música tem em sua formulação e
atuação mais consistente e longeva a atuação do Maestro Waldemar Henrique. Ver: MOREIRA, 2011.
87
“Feira Pixinguinha, sempre um sucesso”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 19 de janeiro de 1980. Caderno
Cidade. p. 12.
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no ano de 1979 em outros eventos: a primeira, no Festival de Música do SESI e a segunda,
no Festival da Lanchonete Um88, respectivamente - ensejaram argumentos de um dos mais
importantes artistas do meio musical na época, Antonio Carlos Maranhão89. Para ele, a
alegação dos organizadores de que as canções foram desclassificadas porque já haviam
sido apresentadas em outros eventos não se justificava, pois na sua visão a Feira
Pixinguinha não era um festival, tal como aqueles eventos dos quais as músicas haviam
participado – ou seja, uma competição no sentido estrito.
Essa situação acabou por gerar uma reclamação incisiva por parte do compositor.
Segundo ele, o que ocorreu foi uma “deduragem”, o que iria atrapalhar o projeto em curso
de estabelecimento da cena. Vale citar sua argumentação:
É inadmissível que quem não entrou na Feira Pixinguinha fique dando uma de
policial, de dedo duro, derrubando um e outro. Isso não é comportamento de
quem faz música, porque quem faz respeita o trabalho dos outros. O que eu acho
é que existe pessoas que não entraram na Feira e ficam dando notas em jornais
derrubando os outros que estão participando.90
Para o músico, as atitudes por ele apontadas teriam uma repercussão negativa ainda
maior porque ocorreram no contexto de início de um processo de afirmação da cena
musical da canção na cidade, haja vista que, tomando como referência o que disse
Maranhão, foi no final dos anos de 1970 que se apresentou um campo de possibilidades
constituído por elementos satisfatórios para o estabelecimento de uma interação entre os
artistas locais. Foi ali que “o pessoal da música [da cena da canção] começou a se reunir
[...], portanto, não deveria haver essa ‘deduragem’ por parte das “patrulhas ideológicas”91.
A conseqüência mais direta é que isso acabaria por abalar o sentimento de solidariedade
entre músicos. Para Maranhão, era preciso superar essas perspectivas individualistas e agir
em prol da formação de uma consciência de classe.
Participar do evento era um objetivo dos músicos precisamente porque para os doze
finalistas participariam da gravação de um disco. Na época havia uma concentração do
“Duas desclassificações na Feira”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 17 de janeiro de 1980. Caderno
Cidade. p. 12.
89
Antonio Carlos Maranhão é o nome artístico de Antonio Carlos Ferreira Carvalho. Nasceu no Maranhão,
em 1948. Veio para Belém no início dos anos 1970, onde teve contato com os músicos da cidade, como Nego
Nelson e Carlos Henry, notáveis na cena da época. Engenheiro Agrônomo de formação, também estudou
música. Nos anos 1980 participou de vários festivais de música e ativamente do circuito de “lugares da
canção” da cidade, o que o tornou figura emblemática na cena (OLIVEIRA, 2000; SALLES, 2007).
90
“Duas desclassificações na Feira”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 17 de janeiro de 1980. Caderno
Cidade. p. 12.
91
Idem. Ibidem.
88
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mercado musical no eixo Rio - São Paulo – havia mesmo uma “concentração tecnológica”
de recursos de gravação e divulgação –, o que era um obstáculo para os fazedores de
música da região. Poucos gravavam. Pode-se destacar na época, como exemplo, Amazon
River,92 segundo long play de Paulo André Barata, de 1980, Prato de Casa93, um disco
compacto gravado pelo cantor e compositor Pedrinho Cavallero, e o disco Gerações,94 do
cantor e compositor Carlos Henry, ambos de 1981, e todos gravados na cidade do Rio de
Janeiro. Certamente por ser conhecedor dessa situação acerca da gravação, o músico Altino
Pimenta, um dos músicos participantes viu a Feira Pixinguinha como achance para os
músicos locais, haja vista que o disco com as canções escolhidas era “uma boa
oportunidade para despertar novos valores”. 95
O fato é que ainda não havia na realidade local uma estrutura profissional de
aparato instrumental e tecnológico, e nem profissionalismo por parte dos artistas locais.
Era tudo muito incipiente. Daí que a gravação do disco da Feira Pixinguinha tenha ficado
registrado na memória como “um sufoco, pois éramos muito inexperientes”, segundo
relatou o guitarrista José LuisManeschy.96
A melhor canção da Feira Pixinguinha de Belém do Pará foi “Encadeado”,
composição do músico Albery Jr., que foi quem também levou o prêmio de melhor
compositor. O melhor letrista foi Antonio Carlos Maranhão, o melhor intérprete foi Walter
Bandeira e o melhor arranjador foi o guitarrista José LuisManeschy. Uma questão a ser
destacada da Feira Pixinguinha era justamente a perspectiva de que esse evento pudesse ser
gerador do fortalecimento da produção e propagação de música na cidade, tal como
preconizavam Antonio Carlos Maranhão na senda da própria proposta do evento. Assim, a
reportagem que cobriu o evento final destacou que, apesar da ocorrência de fatos
inusitados, o que se viu foi um “clima de absoluta cordialidade” entre os
participantes/concorrentes no momento do evento. Vale a citação do texto que destaca essa
“solidariedade”.
[Um] clima de absoluta cordialidade entre os concorrentes, uns ajudando os
outros, todos convencidos de que o apoio mútuo é indispensável para que esta
92
BARATA, Paulo André. Amazon River. (LP). Rio de Janeiro, Continental, 1980.
CAVALLERO, Pedrinho. Prato de Casa. (LP). Rio de Janeiro, Sonoviso, 1981.
94
HENRY, Carlos. Gerações. (LP). Rio de Janeiro, Chantecler, 1981.
95
“Feira Pixinguinha, sempre um sucesso”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 19 de janeiro de 1980. Caderno
Cidade. p. 12.
96
Entrevista com o violonista e guitarrista José LuisManeschy, realizada em 17 de janeiro de 2014.
93
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chance dada ao compositor local seja de uma validade real. A partir de amanhã,
com a gravação do disco, um novo tempo começa e as perspectivas são as
melhores possíveis. O futuro sabe melhor, e é em busca dele que os valores
revelados pela Feira Pixinguinha passam a trabalhar. 97
As gravações para o disco resultado da Feira Pixinguinha começaram a partir do dia
28 de janeiro. Contudo, apenas 11 faixas, de antemão, seriam gravadas, haja vista que
Antonio Carlos Maranhãohavia desistido de gravar “Sonhos de valsa”. No entanto, ele
retrocedeu e acabou por entrar no disco. Pode-se depreender que naquela configuração
social, na rede de sociabilidade ali tecida as relações estavam pautadas por demonstrações
de força na cena por parte dos seus integrantes, comum em qualquer forma de interação
social. Notemos isso pela forma como Gondim fala das desavenças que ali haviam como
tendo sido provocadas por “fofocas” e “ciumadas” que havia no meio musical e, ao se
referir ao retorno de Maranhão para compor o disco, diz que o compositor “choramingou
um retorno”.98
Ainda sobre o processo de gravação, outra “baixa” na gravação foi a ausência do
conjunto de Álvaro Ribeiro 99 que havia acompanhado o cantor Walter Bandeira durante as
apresentações no evento. Foi convidado, então, outro conjunto bastante destacado no
cenário local, o do pianista e compositor Guilherme Coutinho. Contudo, a participação
desse conjunto para gravar com Walter Bandeira não foi acatada pela organização do
evento. Resultado: a gravação de “Nas garras da paixão”, interpretada por Walter
Bandeira, foi realizada no formato voz e violão, sendo o violonista que o acompanhou o
músico Nego Nelson. Sobre essa situação escreveu Gondim: “fez-se uma Feira
[Pixinguinha] tida e havida como a melhor do Brasil e o Brasil não vai saber disso, porque
o disco não poderá reproduzir o que se passou por aqui.” 100
Sobre esse episódio, relata o violonista Nego Nelson:
Essa música [Nas Garras da Paixão] é uma música do Kzam [Gama]. Quem
tocou fui eu. Eu cheguei lá e eles estavam gravando, lá no teatro, no Teatro da
Paz foi onde gravaram as músicas do festival, da Feira Pixinguinha. O espaço
tinha uma acústica muito boa, e lá estava toda a aparelhagem vinda do Rio [de
“Encadeado foi a grande vencedora”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 20 e 21 de janeiro de 1980.
Idem. Ibidem.
99
Álvaro Ribeiro era pianista e compositor. Nascido em Portugal em 1931, se radicou em Belém. Estudou
piano em Belém e em Portugal para onde voltou com 19 anos de idade. Trabalhou na Rádio Marajoara nos
anos 50 e depois após uma temporada nos EUA, retornou à Belém onde formou um trio jazzístico que se
apresentava nos bailes da cidade na década de 1960. Tocou com grandes nomes da música popular paraense,
entre eles Fafá de Belém e Leila Pinheiro. Cf. SALLES, 2007.
100
. Jornal O Estado do Pará. Belém, 26 de janeiro de 1980. (Coluna Gerais, p. 2).
97
98
198
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Janeiro]. Eu cheguei lá tava uma confusão, tava uma discussão lá, o Álvaro
[Ribeiro] se pegando com o Walter [Bandeira], aí eu cheguei pra gravar uma
música que eu nem lembro qual era. Aí o Álvaro disse assim: “olha, não vou
acompanhar [o cantor Walter Bandeira], a gente tá brigado”, e foi embora. Aí eu
disse: “me dá a partitura”. A gente deu uma ensaiada e gravamos, gravamos a
música eu e Walter, assim meio que na marra. O Kzam diz que ta até errado,
[que] tá horrível. Que nada, eu acho que tá bacana.101
Assim, das canções apresentadas apenas “Deuses da Mata” foi registrada tal como
foi apresentada durante o evento, o que motivou a seguinte declaração do mediador
cultural CléodonGondim: “essa é a [canção] que vai melhor demonstrar a capacidade da
música popular paraense [...], pois o compositor havia trabalhado com o mesmo grupo de
músicos”. 102
Mas no dia 22 de maio de 1980 ocorreu no Teatro da Paz o lançamento do disco
com as gravações das músicas selecionadas na Feira Pixinguinha que havia sido realizada
em Belém do Pará em janeiro.103 No dia anterior ao lançamento do referido disco, a Rádio
FM Rauland104 tocou todo o disco em um momento da sua programação,
um
acontecimento marcante para a música paraense, segundo registrou Cléodon Gondim. O
fato de ter executado o disco em sua programação “no mesmo pé de igualdade com as
celebridades nacionais e internacionais”
105
foi algo emblemático para a história da canção
popular paraense, segundo o articulista, pois isso significavao marco de início para que o
resto do país conhecesse a produção musical da região. Nas palavras de Gondim:
Afinal, podemos estar conscientes que se faz música (e boa) nesta cidade. O
disco não pode ser melhor do que é tecnicamente. Como um Éden, é um
excelente princípio para nossa turma de cá, que ainda não teve chance ou não
quis sair daqui para se fazer ouvir. O disco está aí e poderá correr o mundo,
fazendo a cabeça de muita gente. E que o faça da melhor maneira possível,
principalmente dos próprios artistas que nele estão, compenetrando-os com suas
obrigações para com este povo e com a própria arte fazendo-os crescer e
expandir.106
101
Entrevista realizada com o violonista Nego Nelson, em 19 de setembro de 2013.
Jornal O Estado do Pará. Belém, 26 de janeiro de 1980. (Coluna Gerais, p. 2).
103
“Feira Pixinguinha”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 22 de maio de 1980. p. 4.
104
A Rádio Rauland FM era parte integrante do grupo Rauland Belém Som Ltda., e que tinha ainda um
estúdio de gravação. Foi fundada no ano de 1975. Nos anos 1980 tornou-se a RJ Produções. Essa rádio foi
responsável pelo lançamento de cantores locais que atuavam no ramo de músicas de gênero popular
consumidos pela população da periferia da cidade, como o brega, o carimbó, o bolero e o merengue. Entre os
principais artistas que a rádio executava em sua programação na época estavam Pinduca, Cupijó, Orlando
Pereira, Emanuel Vagner e Francis Dalva (COSTA, 2013, p. 218).
105
“Feira Pixinguinha”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 22 de maio de 1980. p. 4.
106
Idem. Ibidem.
102
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Como mostra o trecho, havia uma “necessidade” de se mostrar a produção reunida
naquele disco de música popular como comprovação da profícua produção de canção
popular na cidade. Sendo assim, era de extrema importância a sua execução em uma rádio
local que já executava e divulgava músicas de cantores e compositores locais - todavia de
outros gêneros musicais -, o que poderíamos chamar de mundo da música popular massiva,
como bregas, boleros, merengues e carimbós.
Outra questão levantada por Antonio Carlos Maranhão foi acerca da eficácia da
proposta de premiação para os participantes do evento da FUNARTE: a gravação em LP
das músicas selecionadas como meio de divulgação da produção musical popular paraense.
No seu ponto de vista, as rádios eram subsidiadas para promover determinados artistas, o
que impedia a veiculação da produção do cancioneiro local. Considerando essa situação,
para Maranhão a gravação resultante da Feira Pixinguinha poderia não alçar o objetivo de
divulgação contido na proposta inicial. O artista pauta sua argumentação na experiência
com o festival “Três Canções para Belém”, que ocorreu em outubro de 1977: a premiação
para os vencedores foi a gravação de um disco com as canções premiadas, mas ninguém
ouviu o disco, haja vista que as emissoras de Belém são dirigidas pelo que as gravadoras
determinavam. Embasado nessa argumentação, Maranhão expõe sua visão sobre as
chances reais do evento: o que os compositores e músicos locais participantes deveriam
aproveitar da Feira Pixinguinha era a possibilidade que ela dava de integrar os
compositores de Belém com os compositores de outras regiões do Brasil. Assim, poderia
haver um entrelaçamento mais efetivo, de maneira que os artistas locais (compositores,
músicos, cantores) pudessem participar de eventos “no sul maravilha”.107
Por fim, o que este artigo apresentouvai no sentido de ratificar o argumento de que
a Feira Pixinguinha, quando motivou a reunião dos músicos atuantes naquela cena,
promoveu a constituição de um cenário da canção local como algo mais consistente, o que
certamente teve como elemento legitimador o discurso dos organizadores e dos músicos
que atuaram como jurados. Acerca dessa intenção de ratificação do “sucesso” do evento,
vale citar a seguinte passagem, de autoria de Mauricio Tapajós:
A Feira Pixinguinha do Pará/80 mostrou diversos compositores já em fase de
amadurecimento e dois intérpretes ao nível dos bons profissionais do país. O
107
Idem. Ibidem.
200
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
resultado geral foi muito superior ao de todos os festivais a que tenho assistido
ultimamente, incluindo os [de] televisão.108
Estabelecendo o nexo com esse contexto, tal processo acabou por marcar uma nova
orientação na produção e difusão da MPB. Portanto, o que foi apontado indica que foi a
partir da realização da Feira Pixinguinha que se estabeleceude maneira mais solidificada,
no meio musical belemense, a perspectiva de uma inserção mais profunda da música
popular feita na região Amazônica, precisamente de Belém do Pará, no cenário musical
nacional. Assim, a própria Feira Pixinguinha foi um marco importante no projeto de
redimensionamento da canção popular local naquele campo de possibilidades.
Referências
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estrada. (Dissertação de Mestrado). Fundação Getúlio Vargas, Programa de PósGraduação em História Política e Bens Culturais – Mestrado Profissional em Bens
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Pará. Belém: [s.n.], 2007.
COSTA, Tony Leão da.Música do Norte: intelectuais, artistas populares, tradição e
modernidade na formação da “MPB” no Pará (anos 1960-1970) (Dissertação de Mestrado)
Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de
Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Belém, 2008.
HANNERZ, Ulf. “Fluxos, fronteiras, híbridos:
transnacional”. In: Mana. N. 3, vol. 1, 1997, pp. 7-39.
palavras-chave da antropologia
JANOTTI JR., Jeder. “Entrevista - Will Straw e a importância da ideia de cenas musicais
nos estudos de música e comunicação”. Revista da Associação Nacional dos Programas de
Pós-Graduação em Comunicação - E-compós, Brasília, v.15, n.2, maio/ago. 2012.
MOREIRA, Nélio Ribeiro. “Identidade amazônica e música regionalista na primeira
metade do século XX: Waldemar Henrique e a perspectiva primitivista do Modernismo
Brasileiro.” Revista Estudos Amazônicos. Vol. VI, nº 2 (2011), pp. 139-165.
. A música e a cidade: práticas sociais e culturais na cena da canção
popular em Belém do Pará na década de 1980. (Dissertação de Mestrado) Universidade
Federal do Pará. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Belém, 2014.
NAPOLITANO, Marcos. “MPB: a trilha sonora da abertura política (1975-1982)”. Estudos
Avançados 24 (69), 2010. pp. 389-402.
108
Cf. FUNARTE, 1980. Encarte. Pode-se dizer que, no processo de cobertura jornalística, os periódicos
locais atuaram como articuladores dessa legitimação, haja vista o destaque dado ao evento.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
OLIVEIRA, Alfredo. Ritmos e cantares. Belém: Secult, 2000.
SALLES, Vicente. Músicas e músicos do Pará. Belém: SECULT, 2007.
STRAW, Will. “Systems of articulation, logics of change: communities and scenes in
popular Music”.Cultural Studies, vol. 5, n. 3, p. 368-388, 1991.
VELHO, Gilberto. Arte e Sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1977.
. Um antropólogo na cidade. Ensaios de antropologia urbana.
Janeiro: Zahar, 2013.
Rio de
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
O fenômeno da Lambada: reflexões sobre processos de expansão,
desterritorialização e mudança cultural/musical.
Francinaldo Gomes Paz Júnior
[email protected]
Resumo: A partir de uma abordagem etnomusicológica, este artigo visa discutir sobre o processo de
expansão da Lambada para além dos limites da região amazônica, seu trânsito pelo Nordeste, sua
disseminação internacional através do grupo franco-brasileiro Kaoma e os processos de mudança
cultural/musical sofridos pelo gênero. Ainda, busca apontar fatores que teriam contribuído para que a
Lambada fosse impulsionada e ganhasse popularidade no contexto regional, nacional e global. Utilizando-se
de fontes documentais, em especial de textos jornalísticos que abordam a Lambada nos últimos 40 anos aproximadamente (a partir de 1970) - e, lançando mão de narrativas de atores sociais vinculados direta e/ou
indiretamente à história e à cena musical paraense, reflito sobre os contextos musicais relacionados ao gênero
musical e o fenômeno que envolve a Lambada nas décadas de 70 e 80. No que diz respeito aos processos de
mudança cultural (NETTL, 2005; 2006), tomo como base de reflexão a relação entre a tradição/modernidade
e mudanças culturais e musicais que se encontram presentes na Lambada. Nesse sentido, o estudo traz à tona
informações referentes à trajetória de artistas e grupos musicais que se fizeram representativos pelo visível
esforço de disseminar a lambada no cenário regional, nacional e mundial, tornando o gênero um fenômeno
musical global. Ademais, destaca as principais mudanças experimentadas pela Lambada entre os dias de hoje
e a década de 1980.
Palavras-chave: Lambada. Mudança cultural/musical. Música (paraense; do Pará).
1. Introdução
Este artigo visa discutir sobre o processo de expansão da Lambada para além dos
limites da região amazônica, seu trânsito pelo Nordeste, sua disseminação internacional e
os processos de mudança cultural/musical sofridos pelo gênero. Ainda, busca apontar
fatores que teriam contribuído para que a Lambada fosse impulsionada e ganhasse
popularidade no contexto regional, nacional e global.
Utilizando de fontes documentais, em especial de textos jornalísticos que abordam
a Lambada nos últimos 40 anos - aproximadamente (a partir de 1970) - e, lançando mão de
narrativas de atores sociais vinculados direta e/ou indiretamente à história e à cena musical
paraense, reflito sobre os contextos musicais relacionados ao gênero musical e o fenômeno
que envolve a Lambada nas décadas de 70 e 80.
No que diz respeito aos processos de mudança cultural (NETTL, 2005; 2006),
tomo como base de reflexão a relação entre a tradição/modernidade e mudanças culturais e
musicais que se encontram presentes na Lambada. Nesse sentido, o estudo traz à tona
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
informações referentes à trajetória de artistas e grupos musicais que se fizeram
representativos pelo visível esforço de disseminar a Lambada no cenário regional, nacional
e mundial, tornando o gênero um fenômeno global. Ademais, destaca as principais
mudanças experimentadas entre os dias de hoje e a década de 1980.
Enquanto gênero musical, a Lambada pode ser definida como:
(...) uma música de pulso rápido, sincopado e caracterizado pela onipresença de
riffs (de guitarra ou saxofone), característicos da maioria das músicas afrourbanas, das Antilhas (por exemplo, zouk), e pan-africanas (por exemplo, rumba
zairense). Por outro lado, a lambada é uma dança de par que se caracteriza por
uma coreografia particularmente sensual, onde o contato estreito e permanente
entre os corpos levemente vestidos dos dançarinos se cadencia através de
movimentos de quadril sugestivos. Desta maneira, é o aspecto da dança que dá à
lambada uma conotação particularmente erótica e que excede em muito a de
outras “danças latinas” globalizadas (cúmbia, salsa, merengue) (MCGOWAN e
PESSANHA, 1999 apud GARCÍA, 2006: p.3). 109
Apesar de as discussões em torno da origem da Lambada e da definição do termo
evidenciarem que há pouco consenso sobre quem a teria criado, quando e onde (LAMEN,
2011a), sabe-se que sua ascensão em meados da década de 1980 e 1990 se deveu, em
grande parte, a um processo de propagação do ritmo para além dos limites amazônicos.
A Lambada, nesse sentido, se expandiu progressivamente no interior da Amazônia
e em cidades do Nordeste brasileiro como Recife, Salvador e Fortaleza. Chegou até
grandes metrópoles do Centro-Sul do Brasil, a exemplos do Rio de Janeiro e de São Paulo,
e se estabeleceu em casas de shows denominadas “lambaterias” (GARCÍA, 2006).
Internacionalmente, a Lambada se fez conhecida por meio do grupo Kaoma, que fez
sucesso durante as décadas de 1980 e 1990, disseminando o gênero especialmente na
Europa.
Nesse processo de desterritorialização, o trânsito pelo Nordeste brasileiro da
lambada e de outros sons com sotaque caribenho, principalmente na Bahia, fomentou uma
interlocução entre o sucesso regional do gênero e sua exportação para a Europa. Vale
destacar que,
109 No
original: “(...) una música de pulso rápido, sincopado y caracterizado por la omnipresencia de riffs (de
guitarra o saxofón), característicos de la mayoría de las músicas afro-urbanas, antillanas (ej. zouk), y panafricanas (ej. rumbacongolesa). Por otro lado, la lambada es una danza de pareja que se caracteriza por una
coreografia particularmente sensual, en donde el contacto corporal estrecho y permanente entre los bailarines
ligeramente vestidos se cadencia a través de sugestivos movimientos de cadera. De esta manera, es el aspecto
de la danza que otorga a la lambada una connotación particularmente erótica y que sobrepasa con creces
aquella de otras "danzas latinas" globalizadas (cumbia, salsa, merengue)”.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
(...) não foi a partir do contato direto, seja aqui, seja lá, que a música e a dança de
origem e/ou referência caribenhas alcançaram a cidade de Salvador. (...) A
música do Caribe chegou à Bahia através do vinil, da fita cassete e das ondas do
rádio [processo similar à sua chegada no Pará e especialmente em Belém]
(MOURA, 2010: p. 346).
2. Banda Warilou
(Fig. 1) - Pôster fotográfico do Disco "Tudo Isso é amor" (Acervo Pessoal).
Um dos mais célebres conjuntos musicais que se fizeram notar durante a fase áurea
da Lambada em Belém foi a banda Warilou, criada em 1990 pelo produtor musical Manoel
Cordeiro. O grupo teria nascido na esteira de um processo histórico de estruturação da
indústria musical regional, iniciado em meados dos anos de 1970 e 1980, e paralelamente
da ação cultural popular de protagonistas que incorporaram aos seus respectivos saberes e
fazeres (incluindo a criação musical) referenciais de urbanidade, hibridismo e
cosmopolitismo peculiares da Lambada e de outros gêneros musicais caribenhos e latinoamericanos.
Na segunda metade da década de 1970, o surgimento de uma indústria musical
regional foi fomentada pelo estabelecimento e consolidação de gravadoras locais, o que
possibilitou a emergência de artistas regionais, a exemplo de Manoel Cordeiro, Alípio
Martins, Frankito Lopes, Teddy Max e Pinduca, bem como também a disseminação de
suas respectivas produções discográficas (CUNHA, 2013). A esse respeito Manoel
Cordeiro afirma que: “a música paraense começou a vigorar quando chegaram os estúdios
aqui em Belém, porque até então gravar um disco era difícil, tinha que ir para Rio, São
Paulo ou pra Recife” (CORDEIRO, 2014a).
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
De acordo com que sugere a própria capa do primeiro LP do Warilou, o grupo
incorpora influências de diferentes gêneros musicais, a exemplo da Soca, do Zouk e do
Cacicó [ver figura 2]. Além destes, há ainda, nesta produção, uma evidente incorporação
estilística de elementos da Lambada, da Guitarrada e do Carimbó.
(Fig. 2) – Capa do primeiro LP da Banda Warilou (Acervo Pessoal).
Em decorrência do sucesso do disco, o Warilou despontou no cenário paraense e
nacional, tendo entre os seus maiores sucessos as músicas “Warilou” e “Tudo isso por
amor”. Ademais, a banda Warilou desvelou artistas – a exemplo de Manoel Cordeiro – que
agregaram e ressignificaram, no tempo-espaço de suas trajetórias, referenciais provenientes
de influências híbridas e cosmopolitas de gêneros regionais, como a Guitarrada e o
Carimbó, e de gêneros latino-americanos, que foram trazidos de países vizinhos à
Amazônia, como a Soca, a Cúmbia e o Merengue. Ainda, demonstraram como essas
músicas foram incorporadas, de modo que, “da levada de Guitarra do Carimbó misturada
com os metais e a batida do Merengue [nascesse] a Lambada” (CORDEIRO, 2014a).
3. O fenômeno Beto Barbosa
Entre vários artistas e grupos musicais que se popularizaram na Amazônia, no
Brasil e/ou em outros países, ganhou destaque o cantor Beto Barbosa, nascido em Belém e
conhecido como o “Rei da Lambada”. O cantor iniciou sua carreira, enquanto artista de
lambada, a partir de um convite feito por Jesus Couto (representante da gravadora
Continental) e Wilson Júnior, entre 1984 e 1885, enquanto cantava em uma casa de
karaokê (MORAES, 1991). Em uma entrevista concedida ao Jornal O Liberal, Beto
Barbosa relata que sua carreira teve início “(...) em Belém, quando começou aquela onda
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
de Karaokê (...). Um dia no Family House, eu encontrei o diretor da minha atual gravadora,
ele gostou do meu desempenho, da minha desenvoltura e resolveu me contratar”
(BARBOSA, 1989).
Apesar de ter lançado o seu primeiro LP em 1985, foi somente quatro anos depois,
com o arrebatador sucesso midiático do hit intitulado “Adocica”110 que a carreira do artista
despontou no cenário musical nacional. A música alcançou a vendagem de um milhão e
meio de cópias e ficou entre as cinco músicas mais tocadas no Rio de Janeiro e São Paulo.
Na região Norte e Nordeste “Adocica” chegou a alcançar primeiro lugar de execução nas
rádios.111
O sucesso midiático de Beto Barbosa resultou, durante a década de 80 e início de
90, em premiações ao cantor de cinco Discos de Ouro, quatro de Platina, quatro de Platina
Dupla e dois de Diamantes, tendo alcançado o primeiro lugar no ranking dos artistas que
mais venderam discos no Brasil. Além das gravações de LP’s, as músicas também
obtiveram ampla divulgação ao serem integradas à trilha sonora de novelas da Rede Globo
de Televisão, a exemplo das músicas “Primavera faz Verão”, “Meu Mundo é Você”
(MORAES, 1991), e “Preta”, que “estourou” nacionalmente na novela Rainha da Sucata.
Esse período foi marcado também por turnês realizadas em território nacional. Beto
Barbosa chegou a realizar 50 shows por mês.
Entre outros aspectos, a popularidade meteórica de Beto Barbosa e o sucesso da
Lambada para além dos limites da região amazônica corroboram mudanças culturais
significativas para o gênero musical no espaço de tempo entre os dias de hoje e meados dos
anos 1980. Um deles foi o desaparecimento progressivo de uma lambada mais
internacionalizada, por sua vez coincidindo com o desaparecimento de Beto Barbosa da
cena musical de Belém do Pará, bem como o da própria Lambada, que ao longo das
décadas de 1980 e 1990 experimentou contundente visibilidade regional, nacional e
internacional. O outro foi a retomada da Lambada instrumental ou Guitarrada, a partir de
2003, com os “Mestres da Guitarrada”.
110
Em sociedade tudo se sabe. O Liberal. Belém, 26 nov. 1989. Caderno Cidades, p.12
Botando a galera para dançar. O Liberal. Belém, 31 ago. 1997, s.p.
111 Beto Barbosa rompe fronteiras. O Liberal. Belém, 23 out. 1989. Caderno Dois, p.2.
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4. O grupo Kaoma e a Lambada Internacional
No final da década de 1980 a Lambada experimentou um período de ascensão no
cenário musical nacional e ultrapassou as fronteiras brasileiras. Internacionalmente, o caso
mais emblemático é o do grupo musical Kaoma, um dos principais responsáveis pela
difusão planetária do gênero.
A banda originou-se depois que os franceses Oliver Lorsac e Jean Karakos tiveram
contato com a Lambada em uma viagem à cidade de Porto Seguro, em 1988. Nesse
período, a Lambada marcava impiosa presença na cena do carnaval baiano, sendo o ritmo
mais dançado nas festas de verão naquele período (MOURA, 2010).
A música marcante e a dança com forte apelação erótica112 fez com que Lorsac e
Karakos se interessassem pelo gênero, tendo adquirido os direitos autorais de
aproximadamente 400 títulos de Lambada no Brasil,113 dentre os quais composições de
Beto Barbosa.114 Os franceses patentearam ainda o termo “Lambada” para poder lançá-lo
mundialmente como modelo de dança tropical.
De volta à França, Lorsac e Karakos “(...) criam um grupo musical internacional
que batizam de ‘kaoma’ [no âmbito do qual se destaca] particularmente a cantora brasileira
Loalwa Braz (...)”115 (GARCÍA, 2006: p. 3-4).
Em maio de 1989 o conjunto grava o seu primeiro LP denominado “Worldbeat”,
tendo como carro-chefe a música “Lambada”. A música era, na realidade, uma apropriação
da Lambada intitulada “Chorando se Foi”, interpretada pela cantora brasileira Márcia
Ferreira e originalmente composta pelos irmãos Ulysses e Gonzalo Hermosa.
112
Lambada, dança obscena ou erótica. O Liberal. Belém 22 out. 1989. Caderno Dois, p. 2.
Padres acham que a lambada desperta desejo. O Liberal. Belém, 20 dez. 1989. Caderno Dois, p.4
113
Europa sucumbe à sensualidade da lambada. O Liberal. Belém, 1 ago. 1989. Caderno dois, p. 2.
114
Beto Barbosa: De Belém para o mundo. O Liberal. Belém, 24 set. 1989. Caderno Dois, p. 1.
115
No original: “(...) crean um grupo musical internacional al que bautizan ‘Kaoma’ y dentro del cual se
destacan particularmente la cantante brasileña Loalwa Braz (...)”.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
(Fig. 5) – Capa do Disco “Worldbeat” (Acervo Pessoal).
Em curto espaço de tempo o grupo tornou-se extremamente popular na Europa. A
música “Lambada” alcançou as paradas de sucesso de vários países do Velho Mundo e
tomou conta do Continente.116 O movimento internacional da Lambada foi, porém, abalado
por um grande escândalo judicial. A apropriação ilegal da música “Llorando se Fue”
resultou em um processo na justiça francesa contra os produtores do conjunto Kaoma, o
que teria marcado o momento de declínio da Lambada internacional, que gradativamente
perdeu visibilidade na mídia a partir do início dos anos 1990. Paralelamente, no Brasil, a
Lambada também entraria em franca decadência, cedendo lugar para o axé music.
5. Mudança cultural/musical
Na contrapartida da popularidade de Beto Barbosa e da difusão translocal, nacional
e internacional da Lambada, faz-se importante avaliar os impactos, no nível de mudanças
culturais, ocasionados pelo gradativo declínio da Lambada cantada, a partir de 1990, e
também pelo desaparecimento de Beto Barbosa da cena musical, conforme já mencionado.
Ambas as situações parecem estar relacionadas ao fato de a Lambada ter incorporado, a
partir de então, elementos sonoros do Xote e do Baião nordestinos. Já no caso da
Guitarrada as mudanças decorrem do fato de que o gênero a princípio retomou uma
tradição musical antepassada, lançando-se, porém, em um desafio contemporâneo de
reviver o passado de um modo diferente, ao apresentar uma perspectiva de leitura híbrida.
116
Tribunal nega direitos sobre “La Lambada”. O Liberal. Belém, 17 out. 1989. Caderno Dois, p. 4.
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Em se tratando dos processos de “mudança musical”, o etnomusicólogo Bruno
Nettl (2005; 2006) destaca que, historicamente, muitos estudos culturais se basearam na
premissa de que era natural na música a estabilidade, a continuidade e a ausência de
mudanças, e que as modificações ocorriam somente em situações excepcionais.
Ademais, o pesquisador ressalta que, após os anos 1950, o estudo de mudanças
musicais se tornou um dos principais temas de investigação na área da etnomusicologia.
Segundo o autor, o termo “mudança musical” implica em:
(...) Mudanças e continuidades de estilo, repertório, tecnologia e aspectos dos
componentes sociais da música [que] são manipuladas por uma sociedade, a fim
de acomodar as necessidades tanto de mudança quanto de continuidade (NETTL,
2006: p. 16).
Outro aspecto apontado por Nettl diz respeito às mudanças nas obras musicais, que
só podem ser observadas através de sua existência em formas variadas.117 Além do que,
mudanças de repertório, estilo, conceitos e funções, devem vincular-se à ideia de que “(...)
como uma sociedade muda ou intercambia seu repertório depende de sua maneira de
identificar e definir a unidade principal de seu pensamento musical”.118
Analogamente às reflexões sobre mudança musical, importa observar a questão da
dicotomia entre a tradição e a modernidade. Quanto a isto,
as tensões entre modernidade e tradição permeiam as diversas modalidades de
expressão cultural e comunicacional há tempos. Diante de um modelo
sociocultural marcado pela velocidade espaço-temporal e pela fugacidade e
hibridez das formas identitárias, ser moderno é uma condição cada vez mais
volúvel, enquanto que ser tradicional é, muitas vezes, uma condição desvantajosa
(GABBAY, 2010: p. 1).
No âmbito da mudança musical, evidencia-se na Lambada uma cadeia de processos
de modernização de produção musical, novas propostas midiáticas com leituras híbridas,
atualização tecnológica e agenciamentos públicos, que geram tensões entre o que se
considera tradicional e moderno.
Partindo da afirmação de Nettl (2006: p. 16), segundo o qual muitas “(...)
sociedades mudaram suas músicas em resposta a mudanças culturais”, o primeiro grande
demarcador de modificações da Lambada foi resultado de uma mudança no contexto
117
118
(Idem, ibidem).
(Idem, ibidem: p. 26).
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cultural do gênero, com a criação do projeto “Mestres da Guitarrada” e o ressurgimento da
Lambada, sob o nome de Guitarrada.
No campo musical, o aspecto mais visível de mudança do gênero foi a introdução
do banjo executado por Mestre Curica no projeto “Mestres da Guitarrada”. Curica foi um
dos músicos do conjunto do Verequete, tendo participado da primeira gravação de carimbó
em vinil e produzido arranjos para Pinduca e Nazaré Pereira. Neste sentido, a participação
de Curica no “Mestres da Guitarrada” deu-se fortemente “(...) em razão de ter composto a
banda de Verequete e também por ser uma espécie de animador da banda e ter o elemento
do carimbó”.119
Outro aspecto de mudança se deu pela proposta do “Mestres da Guitarrada” em
produzir, no âmbito do CD duplo intitulado “Música Magneta”, uma leitura
contemporânea do gênero por meio do enlace da guitarrada, estilo musical considerado
tradicional, com objetos estético-musicais híbridos e diversificados.
Nesse sentido, o projeto foi inovador quanto às experiências estéticas, permitindo
mudanças culturais, estéticas e propriamente musicais, uma vez que,
a experiência estética, tal como qualquer outra experiência social, (...) possui
uma força situacional que permite sua reformulação e sua reinvenção, podendo
ser compreendida como um saber-em-ação, podendo se reinventar à medida que
são acionados (CARDOSO FILHO apud CASTRO, 2012, p. 442).
Contrariando os demarcadores de tradição, segundo o qual as performances de
gêneros tradicionais deveriam “continuar operando de um modo quase oposto a esse modo
urbano dos meios de tecnológicos (...)”120 o projeto “Mestres da Guitarrada” evidencia que,
assim como outros gêneros musicais ditos tradicionais, a Lambada (agora denominada
Guitarrada) se potencializa como expressão evocativa da memória coletiva popular, por um
lado incorporando na música traços de regionalidade e tradição, mas por outro valorizando
a inventividade e a atualização em seus processos criativos. Daí o porquê de se considerar
que a lambada, assim como a guitarrada, tem vivenciado hoje experiências de mudança
cultural e/ou musical.
Conforme narrativa de Vovô (Baterista do grupo “Mestres da Guitarrada”) citada por Costa (2013, p.
273).
120
(ibidem: p. 4)
119
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Mestre Severino grava um CD, mas o produtor é quem faz a música.
Kleber Moreira
PPGMUS-EMUFN – [email protected]
Agostinho Lima
PPPGMUS-EMUFRN – [email protected]
Resumo: Aqui fazemos uma explanação acerca do processo de gravação de um CD do Grupo de Coco de
Roda do Mestre Severino, atuante em Natal, Rio Grande do Norte. Nela fazemos um breve relato sobre
Mestre Severino e a criação de seu grupo. Abordamos a maneira peculiar como esse grupo foi criado e como
a gravação do CD está interferindo no processo de continuidade do grupo, buscando verificar como a
interferência de agentes culturais externos. Essa gravação terminou a poucos dias e, portanto, não há como
emitir conclusões mais profundas a respeito. Esse momento é parte uma pesquisa mais ampla onde se
investiga os processos de transmissão de conhecimento musical nesse grupo. Pesquisa que conjuga uma ação
etnográfica com uma atividade participante. Não são realizadas discussões com bases teóricas, mesmo que se
saiba onde as contribuições de diversos autores se encaixam e podem contribuir significativamente para a
melhor compreensão da realidade abordada. Com esse artigo objetivamos estimular a discussão sobre o
assunto, no congresso regional da ABET-Norte, e colher contribuições para a continuidade da própria
pesquisa.
Palavras-chave: Coco. Mestre Severino.Produção musical.
1. Introdução
Aqui abordamos o processo de gravação de um CD do Grupo de Coco de Roda do
Mestre Severino, atuante em Natal, Rio Grande do Norte. Terminada a poucos dias ela é
parte de outras ações como oficinas e apresentações. Esseé um momento de uma pesquisa
mais ampla onde se aborda o processo de transmissão de conhecimento musical nesse
grupo. Fazemos uma explanação sobre a condição atual do grupo e apresentamos dados
acerca dos estímulos externos para a criação e manutenção do grupo e sobre as
interferências de agentes culturais externos que impõem mudanças extremas à performance
atual do grupo e sua posterior apresentação para um público mais amplo. Não são
realizadas discussões com bases teóricas, embora saibamos onde as contribuições dos
teóricos se encaixam e podem contribuir significativamente para a melhor compreensão da
realidade abordada. Isso será realizado em um segundo momento.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
2. Mestre Severino e seu grupo de coco
Mestre Severino, Severino Bernardo Santiago, agora com oitenta anos de idade,
relata que conheceu a manifestação do coco de roda na infância, quando acompanha seu
pai nas brincadeiras na comunidade deles e em lugares próximos, na zona rural. Ele diz
que não brincava, visto que era muito pequeno e coco era brincadeira de adulto, pois tinha
nove anos quando seu pai faleceu. Entretanto, entende-se que de alguma maneira essa
criança brincava o coco, mesmo que não dançasse na roda, pois quando criou seu grupo em
2008 ele se lembrava de muitos detalhes da brincadeira.
Coco é manifestação de música e dança que possui muitas variações na região
Nordeste, conforme Ayala (2000). Mário de Andrade (2002) foi um de seus primeiros e
mais importantes estudiosos. No Rio Grande do Norte, temos o coco de roda, o de Zambê,
pesquisado por Lins (2009) e o Bambelô, estudados por Medeiros (1978) e Gurgel (1990,
1999).
A criação do grupo de Mestre Severino grupo ocorreu de maneira bem peculiar. Em
2007 ele participou do III Encontro Internacional de Mestres, em Limoeiro, no Ceará. À
época era brincante do grupo de coco “Bambelô Maçariquinho”, da Vila de Ponta Negra
em Natal, Rio Grande do Norte.
Ele narra que no momento da apresentação em Limoeiro houve certa confusão
porque um organizador do evento pediu para encerrar a brincadeira dizendo que eles não
estavam cantando coco, mas carimbó. Então, Mestre Severino diz que assumiu a função de
“tirador” das cantigas de coco e entoou uns cocos que eram cantados no grupo de seu pai.
Terminada a apresentação ele diz que o organizador do lhe considerou um mestre de coco.
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Figura 1 – Mestre Severino e Kleber Moreira. (Acervo do Grupo de Coco de Roda de
Mestre Severino)
É comum que os grupos de coco sejam criados quando os brincadores de coco
reconhecem alguém como mestre.Quando brincadores de outros grupos se juntam em redor
de um novo mestre. Quando um mestre morre, adoece e o membro mais experiente ou da
família é tornado mestre e posto no lugar.
O grupo de Mestre Severino foi criado a partir da iniciativa de algumas amantes e
estudiosas da cultura popular que decidiram criar um grupo e encontraram nele um mestre.
Eram estudantes e professoras universitárias e do ensino púbico estadual, músicos, atrizes,
e profissionais ligados à publicidade e ao cinema. Algumas delas tinham experiência em
grupos parafolclóricos. Não eram pessoas da mesma comunidade ou segmento
sociocultural do mestre, ou de outros grupos de coco.
A influência de agentes externos na formação tem implicações na estruturação do
grupo e na música e dança. As músicas e danças da brincadeira de coco de Mestre
Severino foram se consolidando a partir de estímulos à memória dele. Como não tinha um
repertório já tradicionalmente dado, elas solicitavam que ele lembrasse dos cocos que
ouvira durante a vida. Com não havia dançadores(as) antigas e conhecedoras das
particularidades da dança de coco de roda na região, essas moças foram criando seus
passos e coreografias, a partir do que viram e conheciam sobre a dança, isso tudo com certa
“supervisão” do mestre.
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Criado e continuado dessa maneira, o grupo de Mestre Severino apresenta mais
flexibilidade que outros grupos. O mestre o lidera, mas as decisões são tomadas
coletivamente. Atividades como o agendamento de apresentações em eventos, a elaboração
de projetos para leis de incentivo à cultura egravação de CDs são decididos inicialmente e
efetivados pelas próprias participantes, sem a intervenção direta do mestre.
O repertório musical também é impactado por esse tipo de do grupo é mais flexível
e instável. Na brincadeira do coco há muita improvisação na tirada de cocos
121
. Isso faz
com que o repertório varie mais que aquele da brincadeira do boi-de-reis, como observa
Lima (2008). Uma parte do repertório de um grupo coco já é dada por coquistasanteriores
ou contemporâneos. No caso do grupo de Mestre Severino, a música está sendo criada a
cada momento a partir do que ele se mestre se lembra, o que torna o repertório mais
maleável.
Na maioria dos grupos de coco a dança muda menos que a música. No grupo de
Mestre Severino, a ausência de dançadeiras mais experientes permite que as iniciantes
regulem seu próprio processo de criação de passos e coreografias. Isso é observado na
maior amplitude de movimentos corporais e mais “força” nos passos executados pelas
jovens dançadeiras, do que aqueles observados em dançadeiras mais idosas.
3. A gravação do CD e os impactos no grupo de Mestre Severino.
O grupo de Mestre Severino conta com sete participantes: seis mulheres e um
homem, além do próprio mestre. Em 2015 as integrantes do grupo elaboraram um projeto
que foi aprovado no edital “Bolsa Funarte de Fomento aos Artistas e Produtores
Negros”,lançado pelo Ministério da Cultura. No projeto foram propostas quatro ações:a
gravação de um CD; oficinas de coco de roda para crianças da comunidade de Alcaçuz;
quatro apresentações do grupo e distribuição de CDs nas escolas da rede pública da
Natal/RN.
O primeiro CD do grupo foi gravado em 2010, dois anos depois da sua criação. Isso
diferencia o grupo de Mestre Severino de outros grupos de coco. Há uma maior
preocupação das participantes no registro e divulgação das atividades do grupo, até na
internet. Esse tipo de ação se deve à facilidade das participantes de elabora um projeto; de
121
Tirar um coco é iniciar o canto de uma música.
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terem mais informações sobre formas de inserção e divulgação do grupo, e contatos com
outros segmentos e agentes culturais.
No processo de gravação, que terminou neste mês de abril de 2016, algumas
medidas foram tomadas pelas participantes do grupo, que chamam a atenção pela
peculiaridade do tipo de ação diferenciada das que, comumente, ocorrem em outros grupos
de coco. Decidiu-se fazer ensaios regulares, algo que não havia anteriormente por diversos
fatores, para a escolha e preparação do repertório que seria gravado. Resolveu-se fazer a
gravação em um estúdio e não na rua ou em algum lugar público que tivesse uma estrutura
mais próxima daquelas que os grupos de coco atuam, no cotidiano. Também foi escolhido
um produtor musical para dirigir o processo de gravação e um preparador vocal para as
cantadeiras.
Esse processo de gravação e de trabalho atual do grupo está sendo pesquisado, dado
que ele é um momento que deixa mais transparente todo o processo de influências e
participações de agentes culturais externos, desde a criação do grupo. Esse longo processo
tem conferido ao grupo de Mestre Severino algumas características especiais em relação a
outros grupos da região. A gravação do atual CD proporcionando mudanças, através das
interferências, que incidem diretamente sobre os processos de transmissão e construção de
conhecimento musical; sobre o que será reconhecido futuramente como música e grupo de
coco no Rio Grande do Norte; sobre a estrutura do grupo e sobre como esse grupo será,
futuramente, entendido dentro do âmbito das culturas populares.
Figura 2 – Ensaio do grupo de Mestre Severino (Acervo do Grupo de Coco de Roda de
Mestre Severino)
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Para facilitar a execução das músicas na gravação elas transcreveram as letras os
cocos. Isso difere completamente da forma de memorização da música nos grupos de
tradição oral. A colocação das músicas em letra de papel pode ser um bom recurso de
execução, mas pode, também, concorrer para estancar o processo de improvisação e
criação de novos cocos. As participantes dizem que a transcrição foi necessária devido ao
fato de o mestre mudar muito os cocos a cada momento e isso não facilitaria a gravação.
Masisso pode estandardizar o repertório.
Os primeiros ensaios para a gravação ocorreram na frente da casa do Mestre
Severino, no município de Alcaçuz. Os outros ensaios foram realizados em uma sala de
estúdio. Essa mudança de ambienteparece ter inibido o grupo, pois se observava certa
imprecisão do mestre na “tirada” dos cocos e canto de resposta das toadeiras. Alia-se a isso
o tempo rigorosamente medido de gravação, o que pressiona qualquer brincador
acostumado aos ensaios com tempo mais livre, onde se erra, para, volta, repete, tudo com
mais tranquilidade e a pressão dos minutos correndo. Talvez por sentirem que suas vozes
estavam sendo registradas, as cantadoras apresentaram pequenos problemas na execução.
O proprietário do estúdio que realizou a gravação, não é especialista em é um
músico de jazzsem especialidade em gravação de campo ou de grupos musicais que têm
outra face sonora, performática e estética. Ele interferiu, no intuito de obter uma melhor
uma boa sonoridade, no processo de captação do som dos tambores, alterando
sensivelmente o timbre de um deles. Pergunta-se: quem deve determinar o que é uma boa
sonoridade? O mestre, o grupo ou um técnico de som competente, mas com outro gosto
sonoro?
O produtor musical contratado, não parece ter experiência com grupos de coco. No
primeiro CD do grupo “Cocoimbolê”, não gravou o grupo junto, mas as vozes e
instrumentos separados, o que fere a performance desse tipo de grupo. Em um ensaio em
estúdio ele teceu considerações sobre a execução vocal, classificando-a como ruim. Fez tal
julgamento alegando que nas manifestações populares existiria uma forma certa de se
cantar, que o conjunto vocal não estava conseguindo. É muito vaga essa noção de “forma
certa de cantar”. Principalmente tratando-se das múltiplas maneiras de canto existentes nas
expressões musicais das culturas populares.
Também sugeriu que, para resolver o problema sonoro, a solução era substituir as
coquistas, que vêm desde a criação do grupo, e colocar instrumentos tiposaxofone, violão e
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
sanfona – o coco começava a querer virar samba de crioulo doido. Ele decidiu que iria
colocar uma sanfona, violão, uma rabeca e outros instrumentos de percussão, afora os
tradicionais tambores de pau furado usados no grupo. Decidiu, também, colocar cantoras
profissionais de MPB no lugar das coquistasdo grupo. O mais grave é que isso foi
assumido pelo grupo. e o CD foi gravado. Com a inserção dos instrumentos ocorreu uma
total descaracterização da formação instrumental do grupo. Os instrumentistas contratados
são bons, mas não é esse o terreiro deles. Em algumas faixas observa-se um caráter
jazzístico. Em outras faixas, observa-se que as cantoras profissionais deram uma
substância melódica diferente aos cocos cantados por Mestre Severino.
4. Algumas considerações.
Com a globalização e a world musicocorre certa pressão para a homogeneização
das músicas do mundo à maneira dos fazeresmusicaisdos países economicamente
dominantes, cujas culturas se derramam mundo abaixo, conforme Mendonça (2007). Mas,
conforme Ortiz (2003), essa própria pressão gerou um contramovimentoem que se busca a
afirmação das diferenças e diversidades das músicas do mundo, a partir de como cada
cultura local adentra e dialoga com o mundo moderno.
Importa discutir a maneira como o grupo foi criado porque demonstra que agentes
culturais externos a determinada comunidade ou segmento sociocultural podem contribuir
para a dinâmica das manifestações culturais tradicionais. A crise de alguns grupos
populares, em comunidades periféricas de centros urbanos, tem sido minorada ou resolvida
a partir da inserção de pessoas externas a eles. Em outros casos, a continuidade de
determinadas formas de expressão musical, como a música de rabequeiros, se tornou
possível, em Estados como a Paraíba e Rio Grande do Norte, quando essa música mudou
de contexto e de segmento social (LIMA, 2004).
A tradição não é fixa nem do passado, e a cultura popular não é estática nem é
única, mas algo em que se instaura na negociação constante de interesses culturais e sociais
como observam Abreu (2001) e Thompsom (1998). As cultura são circulares, mas
possuem certa autonomia e é possível observar diferenças entre elas como aponta
Gans(2014). As culturas se hibridam, como observam, Existe a hibridação cultural, como
afirmamCanclini (1989) e Vargas (2007) e as culturas se misturam em muitos casos.
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As ideias contidas nos textos desses autores devem servir de norte para que
entendamos que manifestações como o coco de roda têm suas dinâmicas, seus contornos
sociais e políticos musicais que precisam ser respeitados para que possam bem mudar.
Contribuições de agentes externos são sempre boas para a manutenção e continuidade da
tradição, mas isso nunca se dará através de interferências que desfigurem as manifestações,
suas músicas, seus modos de estar no mundo, como está ocorrendo com o coco de Mestre
Severino, na recente gravação do CD.
Uma coisa é certa, o coco de Mestre Severino não será o mesmo após o lançamento
desse CD. Não há certeza se fará sentido ele continuar como grupo tradicional se o registro
de suas músicas, que deve ser um espelho fiel da manifestação em determinado momento
de sua história, apresenta uma macumba pra turista ouvir.
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Categorias e práticas musicais em Caruaru (PE): o mundo do forró.
Philipe Moreira Sales Silva
Universidade Federal da Paraíba – [email protected]
Carlos Sandroni
Universidade Federal de Pernambuco – [email protected]
Resumo: Esse artigo traz os objetos relacionados ao projeto de pesquisa intitulado Categorias e práticas
musicais em Caruaru (PE): o mundo do forró. A pesquisa tem como objetivo geral a investigação da prática
do forró na cidade de Caruaru, procurando entender o processo musical da “Capital do Forró” e a sua relação
com o desenvolvimento cultural, econômico e político da cidade. Os processos de transformações na música
produzida em Caruaru e as suas consequências no mercado musical contribuíram diretamente no cenário do
forró e nas práticas dos grupos tradicionais, pois foi constatado que os músicos tradicionais, como tocadores
de pífanos e repentistas, entraram no mercado musical juntamente com cantores de forró e artistas midiáticos.
Os cantores de forró buscaram formação superior de música e os músicos com formação acadêmica
começaram a tocar pífanos em bandas tradicionais da cidade. Por outro lado, há uma insatisfação dos artistas
com o mercado musical em Caruaru devido à falta de diálogo com o poder público, levando a uma excessiva
concentração das atividades musicais no período junino.
Palavras-chave: Forró. Música em Caruaru. Categorias musicais.
Situado no agreste setentrional de Pernambuco, Caruaru é considerada a maior
cidade do agreste pernambucano e a quinta maior do estado. Seu desenvolvimento
econômico é resumido no quarteto: feiras, comércio, indústria e turismo (MARQUES,
2012). A indústria e o turismo têm suas tradições na produção artesanal e têm como
principal polo de produção o Alto do Moura. A feira popular, com todas as suas
variedades, foi reconhecida em 2006 como patrimônio histórico e artístico brasileiro
concedido pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O seu status
de “Capital do Forró” é resultado da tradicional festa junina promovida pela cidade e
também do número de artistas caruaruenses que fazem forró e que tiveram projeção no
cenário da música nacional.
Para a compreensão da construção do status de “Capital do Forró” alguns fatores
serão analisados. O primeiro deles expõe que a cidade de Caruaru (PE) vem sendo cantada
desde a metade do século XX por diversos artistas. Jackson do Pandeiro em 1955 gravou a
música de Zé Dantas “Forró em Caruaru” (Rojão) no seu primeiro disco lançado pela
Copacabana e no mesmo ano, em resposta a essa música, Luiz Gonzaga gravou o “Forró
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de Zé Tatu” (Rojão) de Zé Ramos e Jorge de Castro em 78 RPM pela RCA Victor. O que
se percebe, analisando as duas músicas, é que em meados da década de 1950 Caruaru já era
um centro de produção de forró e, que nessa época, ainda não se designava ao gênero, mas
aos bailes que reuniam a população para dançar. Durante a comemoração do centenário da
cidade em 1957, Luiz Gonzaga gravou um compacto em 78 RPM pela RCA Victor
(DREYFUS, 2000) com duas músicas em ritmo de baião: “A feira de Caruaru” (Onildo
Almeida) e “Capital do Agreste” (Onildo Almeida/Nelson Barbalho). Na década de 1970
foi projetada, em nível nacional, a Banda de Pífanos Zabumba Caruaru liderada pela
família Biano. Como lembra Pedrasse (2002), o contrato com a gravadora CBS e os
acordos feitos com a prefeitura de Caruaru para a viabilização das gravações fizeram com
que fosse exigida a inclusão no disco de várias músicas que falassem da cidade, fato que
mostra a expansão da música produzida em Caruaru para todo o cenário nacional.
Especificamente no ano de 1980, o Trio Nordestino gravou o LP Corte o Bolo pela
Copacabana. No disco a música “Capital do Forró”, de Jorge de Altinho, vira destaque e, a
partir de então, Caruaru passa a ser conhecida como “Capital do Forró”. O segundo fator
que marcou Caruaru como centro principal da produção do forró foi o cenário histórico de
encontros de cantores, instrumentistas e compositores de Caruaru e regiões próximas que
constituíram suas obras em torno desse universo do forró em que a cidade está inserida.
Esses artistas contribuíram para o desenvolvimento do forró em Caruaru e deixaram um
grande legado para as futuras gerações de forrozeiros.
Procurando o entendimento da prática musical no mundo do forró, a devida
pesquisa reuniu diversos aspectos do desenvolvimento musical em Caruaru. Foi necessária
uma abordagem das manifestações musicais que se enquadram em determinadas categorias
musicais. Para isso, se fez um estudo etnográfico da festividade junina na cidade e,
durante essas observações, toda uma conjuntura de fatores foram apresentados. Dentre
elas: os polos culturais e as atrações realizadas durante os trinta dias de festividade, os
movimentos de artistas e as reinvindicações de melhorias na estrutura do São João por
parte dos músicos. Essas pesquisas de campo proporcionaram uma compreensão da prática
musical em Caruaru e as consequências na cadeia produtiva do forró devido às mudanças
de categorizações musicais.
No âmbito do desenvolvimento da música em Caruaru na contemporaneidade é
notório o processo de mudanças. Elas modificaram o conceito de se fazer música na cidade
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
devido à globalização, ao acesso a formação musical e ao processo de descentralização da
mídia. As categorias musicais como “música popular”, “música folclórica” ou
“tradicional” e “música erudita” sofreram mudanças ao longo dos anos, ou seja, os grupos
tradicionais como coquistas, tocadores de pífanos, repentistas passaram a competir no
mercado profissional que era associado à música popular, os músicos populares passaram a
frequentar os centros acadêmicos como universidades e conservatórios e os músicos
eruditos passaram a incorporar elementos da música popular em suas obras e a acompanhar
artistas da música tradicional e popular. As primeiras mudanças de categorização
começaram na década de 1950 quando “Oneyda Alvarenga vai propor que se adote a
divisão entre ‘folclore’ e ‘popular’ com a definição que prevaleceu na segunda metade do
século XX” (SANDRONI, 2003, p. 4), a partir de então, as musicas anônimas
desenvolvidas no ambiente rural foram designadas como músicas folclóricas e as músicas
autorais desenvolvidas nos centros urbanos como música popular. A distinção entre as
categorias, a partir de então, “[...] deixa de ser valorativa e passa ao plano das categorias
analíticas [...]” (SANDRONI, 2003, p. 5). Só a partir da década de 1990 é que essas
categorizações passam a ser questionadas. Essas mudanças categóricas têm resultados nas
práticas musicais desenvolvidas principalmente nas festas populares da cidade,
especificamente na festa junina onde o forró é o gênero mais evidente nesse contexto.
O trabalho referente à etnografia dos festejos juninos em Caruaru contemplou todos
os espaços onde as manifestações musicais são praticadas. Esses espaços são divididos
entre as imediações centrais, onde acontecem as principais atividades dos festejos, e as
imediações periféricas, onde se concentram alguns polos e as festas das comidas gigantes.
Até o início da década de 1990, o São João de Caruaru era descentralizado, as festividades
eram nas ruas dos bairros e organizadas pelas próprias comunidades. Com o passar dos
anos, o poder público junto com as empresas do entretenimento resolveram criar um
modelo de São João centralizado com atrações cada vez mais midiáticas. Nessa festa
junina centralizada pode-se perceber uma variedade musical dentro de categorias que se
transformaram ao longo desses anos no cenário caruaruense. O foco principal da festa fica
nas imediações do centro comercial entre o pátio de eventos Luiz Lua Gonzaga e a antiga
estação ferroviária. Nessas imediações são disponibilizados o palco principal com maior
estrutura (onde se apresentam os artistas em evidência na mídia nacional e alguns artistas
consagrados da música caruaruense) e os palcos com estruturas menores (onde
se
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
apresentam os artistas que não estão em evidências na grande mídia, grupos tradicionais e
boa parte dos artistas caruaruenses). Esses palcos menores, conhecidos como polos
culturais, são locados na antiga estação ferroviária e próximo ao palco principal no Pátio
de Eventos Luiz Lua Gonzaga. Nas imediações periféricas encontram-se alguns palcos
também chamados de polos culturais, onde se apresentam trios pé-de-serra, bandas de
pífanos, grupos tradicionais como mazurcas e brincantes de bumba-meu-boi. Outras
manifestações nas imediações periféricas são as comidas gigantes. Dentro dos principais
bairros da cidade grupos de pessoas realizam as famosas comidas gigantes onde são
preparados diversos tipos de comidas típicas em desmedidos tamanhos como pé-demoleque, pamonha, pipoca, cuscuz. Dentro dessas festividades, os diferentes grupos
musicais, cantores e trios pé-de-serra se apresentam para animar os participantes da festa.
Por serem festas alternadas, realizadas em um único dia, os artistas se apresentam em um
trio elétrico ou em uma estrutura de palco simples. Essas manifestações da comida gigante
são resquícios que sobraram do antigo São João descentralizado e que a cada ano vem
perdendo força para a região central da festividade.
A cadeia produtiva de Caruaru gira em torno do São João, mas afinal de contas, o
que os artistas fazem para manter a produção musical dentro de um mercado fora do
período junino? A busca a essa resposta não pode ser concreta se não houver um
mapeamento de atividades musicais na cidade. Fora desse período, Caruaru produz poucos
festivais e eventos organizados pelo poder público. Esses eventos são restritos ao período
da semana santa (Caruaru Parada Obrigatória), comemoração ao aniversário da cidade e
poucas iniciativas da FUNDARPE em promoção de festivais como é o caso do Festival
Pernambuco Nação Cultural. Isso contribui para uma estagnação na cadeia produtiva
musical da cidade, pois o movimento econômico do forró depende desses períodos para a
realização das atividades dos músicos que fazem forró.
Para entender o processo de construção da prática musical do forró em Caruaru será
necessário um aprofundamento sobre o gênero baião que deu uma abertura ao que
chamamos de gênero forró. O baião foi o marco para que a música nordestina ganhasse
uma projeção a nível nacional. Luiz Gonzaga, junto com o advogado e músico cearense
Humberto Teixeira e, posteriormente, com o médico pernambucano Zé Dantas,
constituíram uma nova identidade musical no cenário da música brasileira nas décadas de
1940/50. Com relação ao baião, “[...] antes de se tornar gênero musical,
associado
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
inicialmente de forma particular à sanfona ou acordeão, o baião também passeou pelas
feiras nos braços dos rabequistas e violeiros” (VIEIRA, 2000, p. 41). Sobre a origem
etimológica do baião, Guerra-Peixe (2007, p. 119) diz que: “[...] a palavra ‘baião’ deriva de
‘baiano’ ou vice-versa [...]”. Na Enciclopédia da Música Popular Brasileira – Erudita,
folclórica e popular o termo baião conhecido também como baiano “[...] é a dança viva,
assinalada da Bahia, Sergipe, Paraíba, Maranhão, Rio Grande do Norte, Ceará e
Pernambuco [...] ‘O baião é a dança e a música ao mesmo tempo’. ” (MARCONDES,
1977, p. 62). O baião, idealizado e divulgado por Luiz Gonzaga, se insere no processo de
produção cultural no Brasil como gênero de forma organizada e planejada; “[...] a idéia
(sic) de Luiz Gonzaga era fazer uma grande campanha para lançar a música do Nordeste
nos grandes centros urbanos. [...] ao contrário de outros gêneros musicais no Brasil [...],
que surgiram de repente, sem nenhuma programação, no caso do baião houve um real
planejamento [...]” (DREYFUS, 2000, p. 112).
Uma das grandes maneiras de a música de Luiz Gonzaga se propagar,
principalmente na região sul, era as associações que o baião fazia com outro gênero
dominante. Segundo Vieira (2000, p.78):
O baião se associou ao samba não somente por essa via mais direta, ou seja, da
gravação num mesmo disco. Às vezes, essas associações se davam também por outros
mecanismos, por exemplo, quando um artista prestigiado e plenamente identificado com o
samba produzia um baião.
O baião acabou se tornando uma espécie de gênero abrangente onde outros tipos de
gêneros como o xote, xaxado, rastapé e forró interagiam com ele. “A palavra terminou por
contrair um sentido genérico, sendo, pois, freqüentemente (sic) utilizada para denominar
todo um conjunto. [...] os gêneros satélites passaram a ocupar o campo musical brasileiro,
tendo como principal porta-voz Luiz Gonzaga, por vezes ‘confundido’ com o próprio
baião” (VIEIRA, 2000, p. 48).
Com o passar dos anos, o gênero forró acabou tornando-se genérico aos demais
gêneros satélites. Segundo Ferreira (2009, p. 19): “[...] o termo forró só adquire significado
de gênero musical a partir de 1970 – antes era apenas sinônimo de baile e festa”. Ainda
sobre o surgimento do forró como gênero, Dreyfus (2000, p.275) complementa:
[...] no final da década de 70, a palavra forró – nas zonas urbanas – adquiriu um
segundo sentido, exatamente como sucedera no início do século com a palavra
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samba. O forró, que significa originalmente “baile”, passou a designar também o
ritmo sobre o qual se dançava no baile. [...] a moda do forró oferecia ao público
urbano mais uma opção de dança.
É nesse contexto de forró não só como dança, mas, também, como gênero musical
que a cadeia produtiva do cenário da música caruaruense se insere. É na linguagem oral
dos rádios e a irradiação instantânea das programações locais (Lopes, 2010) que o forró se
movimenta e se torna um meio produtivo concebendo a cidade de Caruaru o título de
“Capital do Forró”.
O processo de evolução da cadeia produtiva, as mudanças de categorização e a
indústria do entretenimento causaram um grande impacto na prática musical em Caruaru
nesse século XXI. No início da década de 1990 uma nova forma de se fazer forró surgiu no
Nordeste, principalmente na região do Ceará, onde apareceram diversas bandas de forró
com uma linguagem voltada aos jovens. Esse movimento musical com aspectos
cosmopolitas, ao qual chamamos de “forró eletrônico”, confrontou com os artistas que se
caracterizam por fazer o “forró autêntico”, surgindo assim, uma espécie de bipolaridade do
forró. Os empresários da indústria do forró eletrônico fizeram estratégias justamente no
declínio da indústria fonográfica. Eles se opuseram às gravadoras multinacionais que se
utilizavam da mídia para as vendagens de discos e investiam nas rádios e TVs para a
promoção de vendagens de shows.
Outro ponto importante é o conceito sobre o estereótipo a que o forró está
associado: ao imaginário rural do sertão nordestino, ao flagelo da seca e às duras condições
de vida do trabalhador. Com relação à nova temática abordada no forró eletrônico e a sua
grande aceitação por parte do público jovem, Trotta (2009, p. 11) escreve: “[...] este
referencial estereotipado não corresponde à situação atual do jovem urbano dos estados do
Nordeste, que, não raro, recusa sua filiação pura e simples a este imaginário”. Esse novo
conceito de nordeste desassociado aos estereótipos criados na primeira metade do século
XX sobre a região vem crescendo desde a década de 1990. “Na música, o surgimento de
cenas culturais que decididamente ignoravam as representações agrárias e sertanejas em
suas elaborações estéticas começa um longo processo, ainda em curso, de modificação
deste imaginário, sempre envolto em inúmeros e violentos conflitos culturais” (TROTTA,
2008, p. 12).
Todos esses enfoques sobre o “mundo do forró” e sobre a cadeia de produção
musical
trouxeram
contribuições
de
extrema
importância,
pois
refletem-se
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
indiscutivelmente na prática musical desenvolvida na cidade e nas controvérsias referentes
à produção musical em Caruaru. Essa discussão referente à nova perspectiva de mercado
com a globalização, a descentralização da mídia e a criação de novos meios tecnológicos
de divulgação e produção musical foi desencadeado no cenário da música da “capital do
forró” e resultou numa significativa mudança na cadeia produtiva do forró.
Referências:
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5ª ed.
São Paulo: Cortez, 2011.
ARAÚJO, Maria Inês de. João do Pife e Banda Dois Irmãos. Caruaru: Graficom, 2012.
CROOK, Larry. Zabumba music from Caruaru, Pernambuco: musical style, gender, and
the interpenetration of rural and urban worlds. Austin, 1991. Tese (Doutorado em
Etnomusicologia). Universidade do Texas, Austin, 1991.
DREYFUS, Dominique. Vida de viajante: a saga de Luiz Gonzaga. 2ª ed. 1ª reimpressão.
São Paulo: Editora 34, 2000.
GUERRA-PEIXE, César. Estudos de folclore e música popular urbana. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2007.
LOPES, Ibrantina Guedes de Carvalho. Sociedade dos forrozeiros e ai! Entre a memória e
a mídia. Recife, 2010. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Centro de Artes e
Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010.
MARCONDES, Marco Antônio (org.). Enciclopédia da música brasileira: erudita,
folclórica, popular. São Paulo: Art Editora, 1977.
MARQUES, Josabel Barreto. Caruaru, Ontem Hoje: De Fazenda a Capital. Recife: Ed.
Do autor, 2012.
PEDRASSE, Carlos Eduardo. Banda de Pífano de Caruaru: uma análise musical.
Campinas, 2002. Dissertação (Mestrado em Artes). Instituto de Artes, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2002.
RAMALHO, Elba Braga. Luiz Gonzaga: síntese poética e musical do sertão. São Paulo:
Terceira Margem, 2000.
SANDRONI, Carlos. Adeus à MPB. Em Decantando a República, Rio de Janeiro, vol. 1,
p. 23-35, 2003.
TROTTA, Felipe. O forró de Aviões a circulação cultural de um fenômeno da indústria do
entretenimento. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em
Comunicação. São Paulo, p. 1-13, 2008.
. O forró eletrônico no Nordeste: um estudo de caso. Revista In texto, Porto Alegre,
vol.1, p. 102-116, 2009.
. A reinvenção musical do Nordeste. Operação Forrock, Recife, p. 1-43, 2010.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
VIEIRA, Sulamita. O sertão em movimento: a dinâmica da produção cultural. São Paulo:
Annablume, 2000.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Considerações sobre a descendência da música armorial na
contemporaneidade: mudança e continuidade.
Marília Paula dos Santos
Universidade Federal da Paraíba – UFPB – [email protected]
Carlos Sandroni
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE – [email protected]
Resumo: O presente trabalho é parte de uma pesquisa de mestrado que se encontra em sua fase inicial e que
propõe uma análise sobre a descendência da música armorial na contemporaneidade. Partiremos da discussão
sobre o que foi o Movimento Armorial, quais suas características e como se deu a disseminação de sua
música. Pretendemos fazer uma relação entre a música produzida nas primeiras décadas do Movimento com
as da atualidade. A partir disto buscaremos entender como se expressa a ‘identidade musical nordestina’,
procurando perceber se há em sua constituição propostas armoriais e/ou elementos que indiquem algum tipo
de continuidade deste pensamento. Para tanto selecionaremos para analisarmos alguns grupos/artistas como
Antônio Madureira, oQuadro, SaGRAMA, Antônio Nóbrega e outros mais .
Palavras-chave: Música Armorial. Identidade Sonora. Música em Pernambuco
1. Introdução
O Movimento Armorial, iniciado em 1970, teve impacto significativo na cultura, e
especialmente na música, da região Nordeste do Brasil. Seu criador, o escritor Ariano
Suassuna (1927 –2014), paraibano que residiu no estado de Pernambuco a maior parte de
sua vida, exerceu grande influência na cena cultural do Nordeste. Esta influência é sentida
até hoje, quando artistas continuam realizando trabalhos com atributos relacionados ao que
ele propôs. De fato, um grupo significativo de compositores e intérpretes tem realizado, na
atualidade, uma música, que além de continuar sendo considerada como representação
sonora do Nordeste, é chamada por muitos de “Armorial”.
Esta nomenclatura em relação a estas peças criadas e executadas na
contemporaneidade tem causado um conflito de ideias, de forma que muitos são os que
discordam entre si sobre a definição de uma música armorial e até mesmo de sua
existência. Apesar de haver bastantes trabalhos e um grande interesse sobre a música
armorial e suas diversas manifestações artísticas, percebemos que, no campo musical, as
pesquisas estão, de modo geral, mais voltadas a artistas ou grupos específicos, ou ainda, a
peças e suas interpretações. Como as de Nóbrega (2007), que trata de características
estético-formais; Costa (2011), que a partir da análise da obra de Antonio Carlos Nóbrega
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
faz um aparato geral do que seria a música armorial; Ventura (2007), o qual traz a relação
do espaço com a paisagem sonora; Silva (2014), que realiza uma pesquisa mais
musicológica, relacionada a aspectos técnicos de uma peça de Guerra-Peixe, entre outros
mais.
Esta pesquisa, que se encontra em sua fase inicial, pretende pensar sobre os
fenômenos de mudança e continuidade, fazendo uma relação da produção atual de uma
música que é classificada por muitos como armorial, sendo vista, inclusive, como
representação sonora do Nordeste, com aquela produzida pelo Movimento Armorial na
época de seu lançamento e apogeu. Como não há uma data clara de finalização do
Movimento Armorial, até porque o próprio Suassuna continuou com trabalhos nesta linha
até o ano de seu falecimento, no caso de não haver nenhuma suposição ou esclarecimento
sobre o assunto, definiremos, no futuro, um momento marcante para delimitar melhor do
espaço temporal deste trabalho.
Com isto, buscaremos ainda entender, na cena musical atual, sobretudo no estado
de Pernambuco, as influências deixadas pelo Movimento, seus reflexos, como foram
absorvidos e modificados. Pretendemos, no decorrer da pesquisa, levar em conta trabalhos
de grupos e artistas da região.
2. O Movimento Armorial: acontecimentos históricos, suas músicas e algumas
considerações
O Movimento Armorial teve sua estreia oficial em 18 de outubro de 1970, com um
concerto da Orquestra Armorial de Câmara do Conservatório Pernambucano de Música, na
Igreja de São Pedro dos Clérigos, em Recife, Pernambuco. O repertório seguia os ideais do
Movimento, sendo integrado na primeira parte por peças do Barroco brasileiro, compostas
por Luís Álvares Pinto [1719 – 1789] e José Lima [1907 – 1985], e na segunda parte por
composições de Capiba [1904 – 1997], Guerra-Peixe [1914 – 1993], Jarbas Maciel [1933],
Clóvis Pereira [1932] e Cussy de Almeida [1936 – 2010] (MORAES, 2000).
A resistência cultural é um aspecto muito presente no pensamento armorial. É
perceptível, tanto na elaboração da sua arte, quanto nas suas pesquisas, a resistência às
influências estrangeiras e ao cosmopolitismo. A imagem de passado, de arte artesanal, era
também relacionada à pobreza e ao atraso. O armorial entendia a identidade nacional como
a mistura de três principais povos: os negros, os brancos e os ameríndios, que davam
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
origem ao que é chamado de brasileiro (MORAES, 2000). O que Ariano Suassuna faz é
elaborar uma confluência espaço-cultural de inúmeras coisas - símbolos, imagens, dogmas,
conceitos, fórmulas, emblemas - encontradas em outras sociedades, em outros lugares, para
criar a imagem da cultura nacional do Brasil (VENTURA, 2007: 59).
O Movimento Armorial englobava todas as formas de arte, mas a música foi a que
mais se sobressaiu. Este destaque se deu, dentre outros motivos, pela política então vigente
no Brasil. Ventura explica que para o governo militar da época, a música armorial seria
uma ótima maneira de promover uma “arte nacional”, devido ao fato de ser baseada nas
raízes de uma cultura brasileira, ao mesmo tempo que, por não ter letra, não poderia tornarse veículo contra o Regime Militar (VENTURA, 2007).
Nas primeiras décadas do século XX, intelectuais e artistas debatiam sobre o papel
e a importância da cultura e da música rurais para a construção de uma música nacional,
pois elas eram vistas como partes autênticas da tradição folclórica do Brasil (MORAES,
2000). A música armorial se acomoda a este discurso regionalista da década de 1920,
contribuindo para a construção de um imaginário espacial e sonoro do Nordeste
(VENTURA, 2007: 30). Neste período, como aponta Albuquerque Jr., o Nordeste surge
enquanto região epistemológica. Mais do que repensar a música e as artes, a “invenção” do
Nordeste questiona o pensamento naturista que colocava o nordestino num lugar de
inferioridade, de segunda classe (ALBUQUERQUE JR., 1994).
O imaginário sonoro nordestino já vinha sendo construído também pela figura de
Luiz Gonzaga pois, segundo Ventura, a nova maneira de perceber e “criar” o Nordeste
trazida pelo compositor foi, em parte, absorvida pelo Armorial. Além do mais, elementos
utilizados na música de Luiz Gonzaga, como o baião, estão fortemente presentes na
construção da Música Armorial (VENTURA, 2007).
As primeiras experiências musicais se deram a partir da formação de um quinteto.
Todavia, Cussy de Almeida criou no Conservatório Pernambucano de Música uma
orquestra de cordas e os membros desse primeiro quinteto passaram a fazer parte dela.
Apesar disto, Ariano Suassuna e Cussy de Almeida discordavam em alguns critérios de
estética e textura musical em relação ao que seria uma música armorial. Para o primeiro,
era importante a presença de instrumentos populares, do uso “do povo”, enquanto que para
o segundo, isto atrapalhava, sobretudo no que dizia respeito à afinação. Por conta destas e
de outras discordâncias, o escritor fundou um segundo quinteto, que ficou conhecido como
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
o Quinteto Armorial. Este fazia um trabalho mais “artesanal” e tinha temas “mais”
nordestinos. Utilizava instrumentos como rabeca, marimbau, pífano e viola sertaneja. Sua
estreia ocorreu no dia 26 de novembro de 1971, na Igreja Rosário dos Pretos em Recife
com um programa dividido em três partes: música barroca europeia, música barroca
brasileira e música armorial (MORAES, 2000).
É notável que este tipo de construção musical está totalmente ligado ao seu meio,
seja ele político, social, cultural, econômico, etc e, consequentemente, o influencia. Algo
que é muito pertinente é o fato de mesmo depois de o movimento ter deixado de ser tão
ativo e apesar do falecimento de Ariano Suassuna, há ainda músicas sendo compostas e
interpretadas sendo classificadas como armoriais, seja muitas vezes por quem a
produz/executa, seja por ouvintes. Ao tratar da continuidade da música armorial notamos
que há um fator muito importante, o de identidade nacional/regional que utiliza a música
como um dos fatores de afirmação da mesma, criando no imaginário coletivo de uma
cultura o pertencimento de uma sonoridade como dela, como representativa do seu espaço,
que vai muito além da extensão territorial geográfica.
Askew, ao abordar a identidade nacional, explica que o conceito de nacionalismo
surge a partir de uma série de relações continuadamente negociadas entre pessoas que
compartilham os mesmos espaços geográfico, político e ideológico (ASKEW, 2002: 10).
Neste mesmo sentido podemos pensar a questão da identidade regional e, mais
especificamente, da identidade musical regional. Fronteiras não devem ser pensadas apenas
como lugares de culturas visivelmente muito diferentes nem somente como lugares físicos.
Quando uma música, ou características musicais são tomadas como pertencentes a uma
cultura, esta se torna uma maneira de afirmação de lugar. Fronteiras são ambientes de
fortes diferenças culturais e também são espaços nos quais as identidades já existentes
tendem a se fortificar ainda mais. Desta maneira, compreendemos a necessidade de
pernambucanos e, de um modo mais amplo, nordestinos, quererem mostrar que eles têm
uma música, uma sonoridade específica que os representa. E isto acaba gerando uma
questão muito forte, que é a da ideologia.
Chauí ao tratar de ideologia em seu sentido marxista, explica que elas representam
as relações sociais, sendo construídas a partir de uma práxis. Em seguida, esta gera um
ideal que passa a comandar as ações (CHAUÍ, 1980). De modo que, ao selecionar
elementos já existentes, musicais e culturais, o Movimento Armorial chamou a atenção
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
para determinadas sonoridades como pertencentes primordialmente ao Brasil, que
consequentemente, por motivos que não vamos discutir nesse momento, passaram a ser
vistas como identitárias do Nordeste. Consequentemente esta sonoridade acabou
transformando-se numa maneira de se afirmar como nordestino, de modo que atualmente é
comum ver grupos e artistas realizando performances com influências, como eles mesmos
afirmam, dos armoriais.
Neste sentido surgem algumas problemáticas em relação ao que seria uma música
armorial e sobre sua existência na sociedade contemporânea. O armorial era inspirado na
cultura popular, de modo que os compositores/pesquisadores construíram esta música a
partir de características estéticas já existentes. Deste modo, pode-se afirmar que toda
música realizada dentro destes moldes seria armorial? Esta imagem sonora nordestina se
fixou de uma maneira que até hoje as idealizações de Suassuna, assim como as sonoridades
que ele acreditava que eram a base para a música que queria produzir no movimento
armorial, estão em vigor. Entretanto, parece que pensar estas práticas ideologicamente tem
sido conflitante quanto a sua classificação como armorial, ao ponto de muitos chegarem a
afirmar que sequer há música deste tipo nos dias de hoje. Isto talvez se deva ao fato de a
definição de música armorial ser muito abrangente, no sentido de ter inspiração, ter sua
essência em práticas populares que já existiam e também por suas criação e prática ter
transcendido o próprio Movimento.
Partindo deste ponto, faz-se importante entender o meio sociocultural no qual esta
manifestação musical tem sido produzida. E para compreender este ambiente, é preciso
entender o ser humano que o compõe, sua cultura, seu meio. Para tanto, serão utilizados,
entre outros, autores como Hall (2005) e Bauman (2005). Ambos tratam da identidade na
pós-modernidade, expondo como diversas identidades surgem e desaparecem rapidamente,
como as mesmas se misturam. Falam como as sociedades se apropriam de determinadas
ações e práticas como pertencentes a elas.
Se levarmos em consideração a colocação de Hall que “as transformações
associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e
nas estruturas” (HALL, 2005: 25), é totalmente compreensível este desencontro de ideias e
todas as transformações que ocorreram na prática desta música que compõe o que estamos
chamando aqui de campo armorial.
Vejamos o que Bauman fala sobre as identidades:
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As “identidades” flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras
infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta
constante para defender as primeiras em relação às últimas. Há uma ampla
probabilidade de desentendimento, e o resultado da negociação permanece
eternamente pendente. (BAUMAN, 2005:19).
Quando o ser humano classifica determinadas práticas ou se identifica com elas, ele
cria identidades para os outros e para si. Além do mais, as suas práticas ideológicas
acabam modificando as práticas e vice-versa. Ao permear a cena musical pernambucana,
esta relação de música espaço/Nordeste/Pernambuco é bastante presente no que refere ao
armorial e a alguns grupos e artistas.
Neste sentido já foram realizadas algumas conversas informais com muitas pessoas
que estiveram e estão envolvidas com toda a “efervescência” do armorial e com um tipo de
música que é visto como representação sonora nordestina. Vamos relatar aqui um pouco
desta relação com o grupo SaGRAMA, que depois de ter realizado a trilha sonora do filme
O Auto da compadecida, baseado na obra de mesmo nome de Ariano Suassuna, ficou
bastante conhecido e passou a ser frequentemente relacionado ao armorial.
O SaGRAMA é um grupo instrumental tendo sido formado em meados dos anos de
1990, a partir da iniciativa do músico, compositor, ex-integrante do Quarteto Romançal –
grupo armorial com intuito de fazer músicas baseadas nas raízes da cultura popular – e
professor do Conservatório Pernambucano de Música, Sérgio Campelo. O grupo tem uma
formação instrumental fixa: duas flautas transversais, um clarinete, um violão, uma viola
sertaneja, um contrabaixo acústico e variados instrumentos de percussão. Dependendo da
necessidade dos arranjos, são incrementados outros instrumentos.
O grupo ainda fez parte de muitos outros eventos artísticos, como a realização de
trilhas sonoras, tanto para peças teatrais, quanto para espetáculos de danças, para curtas
metragens e até mesmo para vídeos e CD-ROMs educativos. O filme O Brasil Império na
TV, uma realização da Fundação Joaquim Nabuco, teve sua trilha sonora composta e
gravada pelo SaGRAMA, assim como a peça de teatro Fernando e Isaura, uma adaptação
do romance homônimo de Ariano Suassuna realizada por Carlos Carvalho (ANDRADE,
2011). Como é possível observar, há uma relação da música do SaGRAMA com a imagem
do armorial de Ariano Suassuna. Logo, é comum ver em reportagens este conjunto musical
sendo retratado como um ícone desta música.
Sobre isto, Campelo coloca que o grupo se sente um pouco incomodado, pois eles
fazem sim música armorial, mas da mesma forma também tocam músicas de outras
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
naturezas. Explica que música armorial são músicas que já existiam antes mesmo do
movimento, chamadas por ele de músicas nordestinas com influências mouras, indígenas e
árabes. Através de artistas pontuais, continua, Ariano Suassuna criou um estilo, uma linha
de música com o intuito de elevar a música e a cultura populares, que ficou muito forte
(CAMPELO, 2015).
Há na cena pernambucana muitos outros grupos que são classificados como
armoriais como oQuadro e Rosa Armorial, além de diversos artistas. Já se ouve falar
novamente de uma Orquestra de Câmara Armorial no Conservatório Pernambucano de
Música. É comum ver músicos se intitularem armoriais, ou dizerem que realizam este tipo
de música. Mas o que seria exatamente o armorial, a sua música? Um estilo? Um gênero?
Um modo musical de viver a vida artística ou até mesmo uma maneira de se afirmar como
músico/artista nordestino, pernambucano? No decorrer da pesquisa pretendemos ter
contato mais direto com um maior número de grupos, com mais artistas, inclusive aqueles
que foram importantes para a construção da música armorial em seu início como Antônio
Madureira e Antônio de Nóbrega, por exemplo, para buscarmos ampliar nossas
observações e termos uma compreensão melhor de toda influência que pode haver desta
música no Nordeste e no estado de Pernambuco, principalmente.
Referências
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. O engenho anti-moderno: a invenção do
nordeste e outras artes. 507f. Tese de doutorado em História. Uniiversidade Estadual de
Campinas. Campinas, 1994
ANDRADE, Maria do Carmo. SaGRAMA. In Fundação Joaquim Nabuco. Biblioteca
Blanche Knopf. 2011. Acesso em: 04 de agosto de 2014. Disponível em
http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article
&id=870:sagrama&catid=53:letra-s&Itemid=1
ASKEW, Kelly Michelle. Arts of governance. In
. Performing the nation: Swahili
music and cultural politics in Tanzania. Chicago: Chicago Press, 2002, p. 1 – 26.
BAUMAN, Zygmund. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar,
2005.
CAMPELO, Sérgio. Entrevista à autora, dia 12, fevereiro, 2015.
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia?. São Paulo: Brasiliense, 1980.
COSTA, Luís Adriano Mendes. Movimento armorial: o erudito e o popular na obra de
Antonio Carlos Nóbrega. 157f. Dissertação de mestrado em literatura e interculturalidade.
Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2011.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade.. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
MORAES, Maria Thereza Didier de. Emblemas da sagração armorial: Ariano Suassuna e
o movimento armorial 1970/76. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2000. 218 p.
NÓBREGA, Ariana Perazzo da. A música no movimento armorial. Anais da Anppom,
2007.
SILVA, Débora Borges da. O movimento armorial e os aspectos técnico-interpretativos do
concertino para violino e orquestra de câmara de César Guerra-Peixe. 63f. Dissertação de
mestrado em práticas interpretativas – violino. Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2014.
VENTURA, Leonardo Carneiro. Música dos espaços: paisagem sonora do nordeste no
movimento armorial. Natal/RN, 2007. 200f. Dissertação de mestrado em história.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
SESSÃO 3
Coordenação: Ricardo Smith
A prática do Carimbó no Espaço Cultural Coisas de Negro: por uma
etnomusicologia colaborativa.
Carina Malaquias de Lima
UFPA – [email protected]
Liliam Barros Cohen
PPGARTES - UFPA- [email protected]
Resumo: Trata-se de uma pesquisa Etnomusicológica colaborativa que faz parte do projeto Arte em Toda
parte. Esta pesquisa descreverá a trajetória de vida e a pratica musical do Mestre Negoray, compositor de
carimbó, músico e proprietário do Espaço Cultural Coisas de Negro, localizado no distrito de Icoaraci Belém, Pa. Em Icoaraci No Coisas de Negro há mistura de culturas, no qual fica evidente na prática musical,
quando os instrumentos tradicionais utilizados no carimbó se misturam com instrumentos utilizados nos
ritmos modernos. O Carimbó é uma prática de nossa região, que tem sido estudada por muitos pesquisadores
e este trabalho busca compreender esta prática musical que acontece no Coisas de Negro. O objetivo desta
pesquisa é documentar a trajetória de vida do mestre, o trabalho realizado por ele, e a prática musical, para
sua autobiografia. A partir disto, foram feitas entrevistas e coletas de materiais, para a produção de seu livro,
além de gravações de vídeo e áudio que podem ser consultados no Laboratório de Etnomusicologia da Ufpa
(LabEtno). A pesquisa com a elaboração do texto para o livro está completa. Este material contribui como
mais uma fonte de conhecimento de o nossa cultura para a comunidade.
Palavras-chave: Etnomusicologia colaborativa; Prática musical; Mestre Nego Ray
1. Introdução
A Etnomusicologia colaborativa é um trabalho de pesquisa que atende a
comunidade de acordo com a sua necessidade. Há no Brasil várias pesquisas desenvolvidas
como o trabalho de Cambria (2004), que desenvolveu uma pesquisa etnomusicológica
participativa no Rio de Janeiro. No qual observou-se a importância da pesquisa ser
trabalhada em conjunto da ação, teoria e prática. O artigo de Tygel (2005) trata-se de uma
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
reflexão crítica das metodologias usadas em projetos de pesquisa, abordando a coleta de
dados para produção de acervos musicais, valorizando a cultura e a prática musical da
comunidade parceira do projeto. O artigo de Nogueira (2008), fala dos pontos sobre
conceitos e possibilidades ressaltando a prática compartilhada de pesquisa. A pesquisa por
ser compartilhada, gera uma nova visão. Uma prática que poderia ser esquecida, mas com
os trabalhos desenvolvidos, começam a ficar em evidencia, despertando a curiosidade e
atraindo novas pessoas.
“A etnomusicologia permitiu que se construísse aos poucos uma visão diferente de
música” (LUHNING, 2014, p.14)). Ou seja, a Etnomusicologia busca estudar a prática
musical da comunidade, produzindo conhecimentos culturais do local/região a partir de um
olhar interdisciplinar e contextual. Através destes projetos, são construídos acervos
musicais, livros, alguns deles tem a produção de DVD. São materiais que ajudam a manter
a cultura daquele local/região viva, evidenciando suas práticas.
Utilizando como meio de conhecimento da etnomusicologia colaborativa,
desenvolveu-se um trabalho junto ao mestre de carimbó Nego Ray, proprietário do Espaço
Cultural Coisas de Negro. Local onde acontece a manifestação do carimbó todos os
domingos. Buscou-se coletar material para a produção de seu livro “Andanças e
Cheganças”.
2. Breve Histórico do Espaço Cultural Coisas de Negro
A vida do mestre Nego Ray sempre esteve ligada as manifestações culturais, com
isso surgiu o Espaço Cultural Coisas de Negro local onde se predomina pratica do
Carimbó. Através da pesquisa desenvolveu-se uma etnografia da prática musical e da
história do mestre Negoray.
O Espaço Cultural Coisas de Negro surgiu no dia 11 de abril de 1992, está
localizado no distrito de Icoaraci, na Av. Lopo de Castro, 1082. É uma organização não
governamental, que se mantém através do público que frequenta o espaço. O nome Coisas
de Negro surgiu a partir de uma experiência vivida pelo proprietário do local, mestre Nego
Ray.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Fotografia 01 – Espaço Cultural Coisas de Negro
Fonte: Carina Lima
O Espaço Cultural Coisas de Negro é referência na manifestação cultural do
carimbó, todos os domingos acontece a roda de carimbó. “No dia 19 de janeiro no ano de
2000 nós começamos a fazer essa roda aqui no Coisas de Negro” (Mestre Nego Ray,2015)
A roda de carimbó do “Coisas de Negro”, já nasceu misturada a várias propostas
musicais que tinham todas em comum a identificação como setores
marginalizados da sociedade: antes da roda, o espaço tocava hip-hop e reggae, e
não deixou de tocar para dar lugar ao carimbó. Como se sabe, hip-hop e reggae
não são estilos musicais típicos do Pará. Mas a presença dos ritmos não causou
constrangimento ao carimbó, porque reggae e hip-hop também são “coisas de
negro” (NEVES et all, 2007, P. 8)
Fotografia 02 – Roda de Carimbó no Espaço Cultural Coisas de Negro
Fonte: Carina Lima
Cada lugar e/ou pessoa tem uma forma diferente de fazer música, devido a sua
história vivida. Isso faz com que a música seja diversificada, chamando a atenção das
pessoas. “A definição de música como um sistema de comunicação enfatiza suas origens e
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
destinações humanas e sugere que a etnografia não somente é possível, mas é uma
abordagem privilegiada no estudo da música.” (SEEGER 2008, p. 239). O Carimbó não
apenas uma música, mas sim forma de vida em sociedade.
A prática musical como um processo de significado social, capaz de gerar
estruturas que vão além de seus aspectos meramente sonoros, embora estes
também tenham um papel importante na sua constituição é de extrema
importância neste contexto. A execução, com seus diferentes elementos
(participantes, interpretações, comunicação corporal, elementos acústicos, texto e
significados diversos) seria uma maneira de viver experiências no grupo.
(CHADA, 2007, p. 5)
3. Metodologia
A pesquisa foi desenvolvida por entrevistas realizadas com o mestre Nego Ray, no
Espaço Cultural Coisas de Negro, buscou-se ao máximo obter conhecimento sobre a vida
dele e o surgimento do Espaço. As entrevistas foram todas realizadas no Espaço Cultural
Coisas de Negro.
Fotografia 03 – Mestre Nego Ray
Fonte: Carina Lima
Durante todo o ano de 2015, foram coletados materiais de extrema importância
sobre o mestre, além de realizações audiovisual, e fotografias, que encontra-se disponível
no Laboratório de Etnomusicologia da Ufpa (LabEtno)
Para elaboração do textos das entrevista, foram realizados levantamento
bibliografia sobre história oral, como o texto de Verena Alberti (2013) “Manual de História
Oral” explica o processo de como gravar e fazer uma entrevista, procurando saber mais
sobre o mesmo, para melhor desenvolvimento em campo. E o artigo de Júlia Matos e
Adriana Senna (2011) “História Oral como Fonte: problemas e métodos” que fala sobre
a
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
questão do que seria uma história oral. Relatos de vida do entrevistado, lembranças que
serão passadas para o papel, como escrever a transcrição para uma agradável leitura. Todo
esse processo foi realizado em conjunto com o mestre Ray.
Para que as composições do mestre Nego Ray pudessem ser expostas no livro,
precisou fazer os registro em cartório. Foram todas registradas na Universidade Federal do
Pará – UFPA.
4. Resultados
O projeto desenvolvido através da Etnomusicologia colaborativa, reuniu materiais
que proporcionaram maior conhecimento sobre a vida do mestre Nego Ray, o Espaço
Cultural Coisas de Negro e as atividades desenvolvidas no local. Gerando novos
conhecimentos sobre uma prática musical paraense executada pelo Mestre Nego Ray que
ocorre dentro e fora do Espaço Cultural Coisas de Negro.
5. Considerações finais
O projeto foi de extrema relevância para a comunidade, no caso, o Mestre Nego
Ray. Pois atendeu devidamente as expectativas do mesmo, para a organização do seu livro.
O livro está dividido em três capítulos. Contendo lembranças que ficaram marcadas na
vida do mestre Nego Ray.
Projetos como estes desenvolvidos junto à comunidade, enriquece o conhecimento
do pesquisador e da comunidade, evidenciando suas práticas e levando este conhecimento
a outras pessoas.
Referências
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Edição 3, FGV. 2013. Disponível em:
<http://arpa.ucv.cl/articulos/manualdehistoriaoral.pdf> Acesso em: 04/05/2015
CAMBRIA, Vicenzo. Etnomusicologia Aplicada e “Pesquisa ação participativa”.
Reflexões Teóricas Iniciais para uma Experiência de Pesquisa Comunitária no Rio de
Janeiro. In: V Congresso Latino-Americano da Associação Internacional para o Estudo da
Música Popular. Anais... 2004 P. 1-9.
CHADA, Sonia. A Prática Musical no Culto ao Cabloco nos Candomblés Baianos. In. III
Simpósio de Cognição e Artes Musicais, 2007, Salvador. Anais... Salvador: EDUFBA,
2007, p.137-144.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
LUNING, Angela. Temas emergentes da Etnomusicologia brasileira e seus compromissos
sociais. In: Música em perspectiva. V.7, n. 2, dezembro 2014. P.7-25
MATOS, Júlia; SENNA, Adriana. História Oral como fonte: problemas e métodos. In:
História, Rio Grande, 2(1): 95 – 108, 2011.
NEVES, Alan; FAUSTO, Antônio; CAMPOS, Fernanda; LOPES, Timóteo; MALCHER,
Maria. Coisas de negro: raízes na tradição, asas na experimentação. In: VI Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Norte, 20 a 22 de junho de 2007,
Belém/Pa. Anais... GT 5. Belém: 2007, P. 1-15.
NOGUEIRA, Júlia. Etnomusicologia participativa: alguns pontos sobre conceitos e
possibilidades. In: XVIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
(ANPPOM). Salvador. Anais... Salvador, 2008. P 240-244.
SEEGER, Anthony. Etnografia da música. In: Caderno de Campo. P. 237 – 259. São
Paulo, nº 17. 2008.
TYGEL, Júlia. Etnomusicologia Aplicada: Uma reflexão crítica sobre as metodologias de
dois projetos de pesquisa e ação. In: ANPPOM – Décimo Quinto Congresso. 2005. P 731738.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
O acervo de TCC’s da UEPA.
Bárbara Lobato Batista
PIBIC/UFPA - [email protected]
Sonia Chada
PPGARTES/UFPA - [email protected]
Resumo: O acervo de TCCs da UEPA é um subprojeto de Práticas Musicais no Pará, executado através do
PIBIC/UFPA. Está vinculado ao Grupo de Estudos sobre a Música no Pará e ao Laboratório de
Etnomusicologia da UFPA. Investigar, analisar e classificar as práticas musicais já abordadas em Trabalhos
de Conclusão de Curso da Licenciatura em Música, da Universidade do Estado do Pará é o objetivo principal
desta pesquisa. Foi realizada a seleção e coleta dos documentos disponíveis neste acervo e, posteriormente,
foram analisados, classificados e organizados. Atualmente os documentos integram os acervos do LabEtno, à
disposição dos interessados.
Palavras-chave: Música no Pará. Práticas Musicais no Pará. Pesquisa em Música no Pará.
1. Práticas Musicais no Pará
Prática Musicais no Pará é o projeto principal do Grupo de Estudos sobre a Música
no Pará – GEMPA, vinculado ao Laboratório de Etnomusicologia da UFPA – LabEtno. A
proposta é contínua e abriga vários subprojetos e ações, orientados e/ou coordenados pela
professora Sonia Chada. Visa investigar as diversas práticas musicais existentes no Estado
do Pará, à luz da Etnomusicologia, seguindo, especialmente, os caminhos propostos por
Blacking (2000), Nettl (2005 e 2006) e Seeger (2004) para o estudo de música e,
considerando, conforme o caso, as relações entre música e cultura, música e religião,
música e educação, música e contextos urbanos, música e tradição oral, entre outros.
Prática musical é definida aqui como:
um processo de significado social, capaz de gerar estruturas que vão além de
seus aspectos meramente sonoros, embora estes também tenham um papel
importante na sua constituição (...). A execução, com seus diferentes elementos
(participantes, interpretação, comunicação corporal, elementos acústicos, texto e
significados diversos) seria uma maneira de viver experiências no grupo. Assim,
suas origens principais têm uma raiz social dada dentro das forças em ação
dentro do grupo, mais do que criadas no próprio âmago da atividade musical.
Isto é, a sociedade como um todo é que definirá o que é música. A definição do
que é música toma um caráter especialmente ideológico. A música será então um
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
equilíbrio entre um "campo" de possibilidades dadas socialmente e uma ação
individual, ou subjetiva (CHADA, 2007, p. 13).
Pela importância e abrangência, o tema requer além de estudos historiográficos
acurados, um maior esforço para sua compreensão. Os dados hoje disponíveis sobre o que
se denomina “cultura musical paraense”, embora esforços estejam sendo realizados, estão
longe de representar o universo musical diversificado produzido no Estado do Pará.
Partindo do suporte dado pelo pensamento etnomusicológico e pelos estudos culturais, o
projeto propõe investigar as diversas práticas musicais existentes nesse contexto. Não
obstante, para além deste limite, vai-se além do que Alberto Ikeda (1998) chama de
musicografia, ou seja, a mera descrição dos objetos musicais. Aqui o estudo de música é
pensado como muito mais do que o estudo puramente do som musical. Assim, por meio de
análises interpretativas, busca-se compreender como essas diversas práticas musicais se
coadunam no contexto sociocultural paraense, conformando uma identidade plural.
2. Plano de trabalho
Práticas Musicais no Pará: o acervo de TCCs da UEPA é um subprojeto do Projeto
Práticas Musicais no Pará, executado através do Programa Institucional de Iniciação
Científica da UFPA – PIBIC. O objetivo deste subprojeto é investigar, analisar e classificar
as práticas musicais já abordadas em Trabalhos de Conclusão de Curso da Licenciatura em
Música, da Universidade do Estado do Pará - UEPA. Os específicos: captar e registrar
aspectos do saber musical contido nas diversas práticas musicais já abordadas em TCCs do
Curso de Licenciatura em Música da UEPA, cadastrar as informações coletadas
contribuindo com o banco de dados sobre práticas musicais paraenses do LabEtno e sobre
os mestres e grupos a elas relacionados e, contribuir para o desenvolvimento de estudos
sobre a cultura musical paraense. Este subprojeto teve seu inicio em setembro de 2015.
O acervo que vem sendo constituído e ampliado pelo LabEtno tem gerado hipóteses
e informações sobre valores da cultura paraense, manifestações musicais ainda não
referenciadas, de termos, expressões, gêneros musicais relevantes, de produções de
músicos e agentes sociais que perfazem o contexto das manifestações, informações que
podem ser utilizadas por outros pesquisadores e podem servir de base para futuros estudos
sobre a música no Pará.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
O desenvolvimento das atividades se fixam em três eixos articulados: o primeiro
consta das atividades do GEMPA; no segundo, o bolsista atua na coleta de dados, análise,
organização e classificação dos dados referentes às práticas musicais paraenses já
referendadas nos TCCs do Curso de Licenciatura em Música da UEPA; o terceiro eixo
refere-se à produção intelectual do bolsista, incluindo publicações e relatórios de pesquisa,
assim como apresentação dos resultados em eventos da área. Como parte das atividades
intelectuais, o bolsista foi encarregado de fazer leituras da bibliografia especializada,
relacionadas ao seu plano de trabalho. Estas o habilitam a tabular os dados coletados em
campo, na sistematização destes dados e na análise do material coletado.
3. Resultados
Em 1989 foi criado o Curso de Educação Artística com Habilitação em Música, na
Faculdade de Educação do Pará, hoje, Universidade Estadual do Pará – UEPA e,
posteriormente, foi criado o curso de Licenciatura em Música da UEPA. Assim, parte dos
trabalhos de conclusão de curso foi defendida no Curso de Educação Artística com
Habilitação em Música e, outra parte, no Curso de Licenciatura em Música.
A organização e arquivamento dos TCCs do Curso de Licenciatura em Música é
feita da seguinte maneira: Os TCCs com nota máxima são depositados na biblioteca da
universidade e, os demais, com conceito abaixo de excelente, são devolvidos para os
alunos, procedimento esse que gera uma perda significativa de material para pesquisa, já
que não há uma relação disponível para consulta englobando todos os TCCs defendidos no
curso. Diante desse fato, não há como quantificar os trabalhos já defendidos neste curso.
Todavia, os funcionários da coordenação do curso arquivam, desde o ano de 2011, todos os
TCCs defendidos, inclusive os que não alcançaram a nota máxima. Assim, conseguimos
relacionar apenas 34 trabalhos que abordam práticas musicais no Pará neste contexto.
Como o acervo de TCCs da biblioteca é apenas liberado para consulta na própria
biblioteca, não podendo ser emprestado, um scanner portátil foi utilizado para a cópia
desses trabalhos. Os TCCs arquivados pela coordenação do curso, que estão em CDs ou
impressos, puderam ser facilmente copiados ou escaneados, para posterior análise.
Os 34 TCCs coletados fazem referência a práticas musicais de apenas 11
municípios paraenses:
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
TABELA 1: Municípios contemplados em TCCs da UEPA
Quantidade de
TCC’S
19
04
03
02
02
01
01
01
01
Localidade
Belém
Marapanim
Bragança
Soure
Vigia
Barcarena
Cametá
Ourém
Capanema
São Caetano de
Odivelas
Santarém
01
01
A maior incidência de trabalhos foi na cidade de Belém. Entre as pesquisas
realizadas nesta cidade, quatro estão relacionadas a bairros: dois sobre prática musical no
Bairro do Guamá, um no Bairro do Umarizal e um no Bairro do Tenoné. Se considerarmos
que
o
Estado
do
Pará
possui
144
municípios
(Cf.<http://www.pa.gov.br/O_Para/opara.asp>), os trabalhos de conclusão do referido
curso nos fornecem informação sobre práticas musicais em apenas onze (11) municípios.
Aproximadamente 7,6 % dos municípios paraenses foram contemplados nos trabalhos de
conclusão de curso da Licenciatura em Música da UEPA. Desses, dois municípios se
localizam na mesorregião de Belém (Belém e Barcarena), sete na mesorregião nordeste
(Bragança, Cametá, Capanema, Marapanim, Ourém, São Caetano de Odivelas, Vigia), um
na mesorregião Marajó (Soure) e um na mesorregião do baixo Amazonas (Santarém). As
mesorregiões sudeste e sudoeste não foram contempladas nesses trabalhos. Vejamos o
mapa a seguir:
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Figura. 1: Mapa do Estado do Pará.
Fonte: Guia Internet Brazil. Disponível em: <http://www.guianet.com.br/pa/mapapa.htm>.
As práticas musicais abordadas nesses trabalhos foram as constantes na tabela
abaixo:
TABELA 2: Práticas musicais abordadas em TCCs da UEPA
Prática Musical
Carimbó
Personalidade Paraense
Bandas de Música
Música Religiosa
Boi Bumbá
Capoeira
Choro
Xote Bragantino
Auto das Pastorinhas (Releitura)
Batuque
Brega
Boi de Mascaras
Eco Marajoara (Releitura)
Desfeitera
Guitarrada/Lambada
Jazz
Lundu Marajoara
Maçarico
Quantidade de TCC’S
08
07
03
03
02
02
02
02
01
01
01
01
01
01
01
01
01
01
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Marujada
Música Indígena
Pretinhas D’angola
Retumbão
Samba do Cacete
Siriá
01
01
01
01
01
01
Vejamos na tabela abaixo os grupos musicais encontrados nos TCCs da UEPA:
TABELA 3: Grupos encontrados em TCCs da UEPA.
Prática
Musical
Carimbó
Capoeira
Bandas de
música
Boi-bumbá
Música
religiosa
Auto das
pastorinhas
(Releitura)
Lambada/Gu
itarra
Boi de
mascarás
Nome dos grupos
Os Boioaras (Mestre Venâncio)
Nativos de Marudá
Associação de Capoeira Senzala Pará (Mestre Walcy)
Grupo Vitória Régia (Mestre Ferro de Pé)
Arte Ginga Brasil (Mestre Docinho)
Berimbal de Ouro (Mestre Abil)
Quilombo dos Palmares (Mestre Bimba)
Associação de Capoeira Luta Nossa Pará (Mestre
Chaguinha)
Banda do Corpo da Polícia
Banda do Arsenal de Marinha
Banda de Música dos Bombeiros
Banda da Aeronáutica
Banda de Música do Lauro Sodré
Banda de Música do CEFET/PA
Flor de Todo Ano
Garantido
Arraial do Pavulagem
Boi Malhadinho
Coral da Igreja Evangélica Assembleia de Deus
Coro Cênico da Unama
Mestres da Guitarrada
Boi Ribanceira
Boi Beiçudo
Boi Faceiro
Boi Tinga
Boi Resolvido
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Technobrega
Bode Montês
Aparelhagens:
SuperPopSom
Crocodilo
Ciclone
Rubi
Os nomes de representantes dessas práticas musicais estão expostos na tabela a
seguir:
TABELA 4: Representantes das práticas musicais contidas nos TCCs da UEPA.
Prática Musical
Carimbó
Capoeira
Personalidades paraenses
Nomes de representantes
Mestre Duvalino.
Mestre Favacho
Mestre Lucindo (Lucindo Rabelo da
Costa)
Mestre Pelé (Domingos da Silva)
Mestre Pinduca (Aurino Quirino
Gonçalves)
Mestre Tatá (Otávio Fonseca)
Mestre Venâncio
Mestre Verequete (Augusto Gomes
Rodrigues)
Nazaré Pereira
Mestre Bimba (Manuel dos Reis
Machado)
Mestre Pastinha (Vicente Ferreira
Pastinha)
Mestre Waldemar (Waldemar da Paixão)
Mestre Bezerra (Antônio Bezerra dos
Santos)
Mestre Romão (Júlio Romão)
Mestre Walcy
Mestre Ferro do Pé
Mestre Docinho
Mestre Abil
Mestre Bimba
Mestre Chaguinha
Tó Teixeira
Helena nobre e Ulisses nobre
Raimundo Pinto de Almeida
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Filinésio Soares
Nego Nelson (Nelson Batista Ferreita)
Elienay de Carvalho
Adamor do Bandolim
Choro
Adamor do Bandolim
Yuri Guedelha
Nego Nelson
Gilson Borges Rodrigues
Technobrega
Gaby Amarantes
DJ Gilmar Santos
Dj Elison
Guitarra/Lambada
Beto Barbosa
Pio Lobato
Minni Paulo
Ziza Padilha (Emerson Coelho)
Tynnôko Costa (Antônio Carlos Vieira
Costa)
Jazz
O único TCC relacionado à música indígena discorre sobre as músicas da tribo
Kayapó.
O processo de digitalização e cópia destes TCCs já foi finalizado. Após isso o
material coletado foi analisado, classificado e organizado para a geração de informações
para o relatório final da pesquisa. Atualmente esses documentos integraram os acervos do
LabEtno, à disposição dos interessados.
4. Conclusões
A quantidade de TCCs disponíveis no acervo do Curso de Licenciatura em Música
da UEPA é menor do que o esperado. Contudo, o material coletado é importante pela sua
qualidade e pelos vários dados que disponibiliza. Os trabalhos de conclusão trazem
informações preciosas sobre a diversidade e a riqueza de manifestações musicais existentes
no Estado paraense, informações sobre mestres e grupos relacionados a essas práticas
musicais, grande parte ainda não abordada em pesquisas sobre a música no Pará. O acervo
que vem sendo constituído e ampliado tem gerado hipóteses e informações sobre valores
fundamentais da cultura paraense, manifestações etnomusicológicas até aqui não
completamente referenciadas, de termos musicais êmicos relevantes, de
expressões
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
musicais paraenses, de gêneros musicais, de produções de músicos e agentes sociais que
perfazem o contexto das manifestações, de instituições importantes na vida musical
paraense, utilizáveis por pesquisadores, músicos, estudantes de música e o público em
geral, inclusive de outras áreas de conhecimento, servindo de base para futuros estudos
sobre a música no Pará.
Referências
BLACKING, John. How musical is man? 6a ed. Seattle: University of Washington, 2000.
CHADA, Sonia. A Prática Musical no Culto ao Caboclo nos Candomblés Baianos. In: III
Simpósio de Cognição e Artes Musicais, 2007, Salvador. Anais... Salvador: EDUFBA,
2007. Pp. 137-144.
IKEDA, Alberto. Pesquisa em música popular urbana no Brasil: entre o intrínseco e o
extrínseco. Atas do III Congresso Latino-americano da Associação Internacional para o
Estudo da Música Popular. Disponível em<http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html>.
NETTL, B. The Study of Ethnomusicology: thirty-one issues and concepts. Urbana e
Chicago: University of Illinois Press, 2005.
. O estudo comparativo da mudança musical: estudos de caso de quatro
culturas.In: Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 10, vol. 17 (1), 2006.
SEEGER, Anthony. Etnografia da música. Giovanni Cirino (Trad.). In Sinais diacríticos:
música, sons e significados, Revista do Núcleo de Estudos de Som e Música em
Antropologia da FFLCH/USP, n. 1, 2004.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Mapeando cenas e cenários musicais no bairro do Guamá, em Belém-PA.
Jucélia Estumano Henderson
Universidade Federal do Pará - [email protected]
Sonia Chada
Universidade Federal do Pará - [email protected]
Resumo: Este trabalho apresenta resultados de um levantamento preliminar realizado no bairro do Guamá,
da cidade de Belém-PA, efetuado por alunos da disciplina Introdução à Etnomusicologia, do curso de
Licenciatura Plena em Música da UFPA, em 2013. A proposta da disciplina, ação do Projeto Práticas
Musicais no Pará, vinculado ao Laboratório de Etnomusicologia da UFPA, proporciona aos alunos
fundamentos teóricos sobre a área da Etnomusicologia, a experiência de realização de um trabalho de campo,
reflexões sobre a diversidade de práticas musicais existentes na cidade belenense, ampliando a formação dos
futuros licenciandos em música.
Palavras-chave: Mapeamento musical. Práticas musicais. Educação musical.
1. Considerações iniciais
O relato que ora segue diz respeito à experiência vivenciada com a turma de 2013
da disciplina de Introdução à Etnomusicologia, do Curso de Licenciatura Plena em Música,
da Universidade Federal do Pará. O desenvolvimento da disciplina foi dividido em dois
momentos: primeiro os alunos receberam a fundamentação teórica em sala de aula, a partir
da discussão de textos e vídeos sobre temas diversos; no segundo momento, os alunos
realizaram incursões em campo para levantamento de dados, sendo o bairro do Guamá o
local escolhido, por ser este o bairro onde se localiza a universidade em questão. O
objetivo deste trabalho foi proporcionar aos alunos fundamentos teóricos da disciplina
Introdução à Etnomusicologia, para o reconhecimento e compreensão de práticas musicais
diversas e sua inserção no ensino de música, assim como observar cenas e cenários
musicais no bairro do Guamá, buscando proporcionar, além da ligação vivencial do
trabalho de campo, a compreensão do cotidiano sonoro que os cerca.
2. Sobre a disciplina Introdução à Etnomusicologia
Introdução à Etnomusicologia é disciplina obrigatória do curso de Licenciatura
Música da UFPA, ofertada no quarto semestre do curso. As turmas são compostas por
cerca de 30
alunos. A disciplina apresenta carga horária de 68 horas semestrais, das quais
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
17 horas são destinadas a atividades práticas ou laboratoriais e 51 horas são destinadas a
seminários e aulas teóricas. Desde a implementação da nova grade curricular do curso, em
2008, esta disciplina, juntamente com a disciplina Sociologia da Música, tem sido um
espaço de oportunização de contato com outros saberes musicais e de pesquisa e reflexão,
bem como vivências de práticas musicais não vinculadas às práticas musicais ocidentais. O
conteúdo programático da disciplina tem discutido conceitos básicos sobre o histórico da
disciplina; a etnomusicologia no Brasil e no Pará, música e sua relação com a cultura e
sociedade, métodos de trabalho de campo, transcrição e análise, disciplinaridade e
interdisciplinaridade na etnomusicologia, etnomusicologia aplicada, sistemas culturais e
sistemas musicais, questões éticas e de propriedade intelectual na etnomusicologia,
mudança cultural e mudança musical, tópicos em música indígena e, tópicos em música
afrodescendente. Os autores utilizados para essa finalidade foram Bastos (1999), Blacking
(1973), Merriam (1964), Nettl (1983) e (2003), Piedade (1998 e 2000); Seeger
(1980 e
1997); Queiroz (2005, 2006 e 2013) e Lago (2010). A partir dessas leituras foi possível
subsidiar o lado prático da mesma.
3. Resultados de um exercício
Como mencionado anteriormente, um dos exercícios propostos no âmbito da
disciplina foi a observação de cenas e cenários musicais no bairro do Guamá. A tarefa
central era sair às ruas e perceber onde a música poderia ser encontrada. Os passos
sugeridos foram: a) escolher um lugar para realizar a observação; b) fazer um registro
escrito do que foi observado (o registro deveria conter: o lugar onde a música acontece; o
que as pessoas fazem com a música; o que se pode aprender com a cena); c) que reflexões
emergiram a partir da observação das cenas observadas.
A turma saiu a campo para realizar coletivamente o exercício de observar a
realidade e as cenas musicais do bairro do Guamá, procurando descrever a cena observada
em um diário de campo. Ao final da disciplina os alunos deveriam entregar um artigo com
a organização de suas observações em campo, correlacionando às bibliografias discutidas
em sala de aula, assim como expor tal experiência.
Sobre o que aprenderam com a experiência de observar onde a música se faz
presente naquele bairro, os alunos Carlos Santos, Brenda e Kemuel apresentaram um mapa
com o trajeto percorrido por eles no bairro do Guamá:
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Mapa 1: Percursso percorrido pelo grupo no bairro do Guamá
E os seguintes comentários:
(...) escolhemos caminhar pela Avenida José Bonifácio e Rua Paes de Souza (...).
Quanto mais saíamos da área do comércio, mais silêncio e tranquilidade eram
encontrados, ambientados em um clima bem residencial. Em boa parte de nossa
caminhada passamos sem escutar músicas tocando, apenas sons de carros que
passavam. (...). Na esquina da Rua Paes de Souza com a Tv. 14 de Abril foi o
momento em que escutamos um carro tocando Melody (...) Na esquina desta
mesma travessa encontramos uma escola estadual de ensino fundamental,
chamada Profª. Ruth Rosita de Nazaré Gonzales. Nesta escola há uma banda de
fanfarra (...). Nós estranhamos bastante o silêncio, pois pensávamos que
ouviríamos bem mais músicas. (...). Subindo a Rua Silva e Souza, dobrando à
direita da Rua Barão de Mamoré, por este percurso escutei um forró gospel bem
baixinho. Nessa rua encontramos a Escola Estadual de Ensino Fundamental
Barão de Mamoré, uma escola grande que apresentava banda de fanfarra (...) o
que pude constatar foi uma paisagem sonora muito agradável, onde os sons da
natureza se fazem presente, o som das folhas das árvores, dos pássaros, as vozes
das crianças brincando, um clima bastante agradável de presenciar. (SANTOS,
2013: p.2).
Na citação acima está contido o relato desses alunos a partir das cenas observadas.
A seguir, excerto de algumas entrevistas realizadas pelos mesmos:
Com o propósito de entrevistar os moradores e cobrir uma maior área, iniciamos
as pesquisas pela Rua Silva Castro, subindo em direção à Tv. 14 de Abril, lá
encontramos uma casa onde funcionava um bar e um lava-jato. Entrevistei um
rapaz que morava na casa (...) perguntei que tipo de música mais se ouvia no bar,
ele falou baile da saudade e pagode. Perguntei a ele sobre sua preferência
musical e ele me respondeu que era o pagode. (...). Quase em frente ao bar pude
entrevistar a moradora (...) que me informou que gosta de todos os estilos, menos
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
pagode, relatou que o gênero musical mais escutado pelos vizinhos é o Melody e
não sabe de grupos de produção musical que atuam na área. (...). Subindo a 14 de
Abril, próximo à Rua Paes de Souza, entrevistamos o Sr. Fabiano de Cristo. Ele
relatou que não tem o hábito de ficar escutando música, pois nem rádio possui e
nem sai de sua residência, devido ser deficiente das pernas. A música que ele
escuta é de uma igreja Assembleia de Deus que fica próximo à sua casa. (...). Na
Tv. Caripunas com a Tv. 14 de Abril, encontramos uma mercearia, onde
entrevistei o senhor Manoel Ricardo. Ele relatou escutar rádio o dia todo e escuta
um pouco de tudo, preferindo um pouco mais o pagode. (...). Na Tv. 14 de Abril
com Passagem Silva Castro entrevistei a senhora Denyze que afirmou gostar de
todos os tipos de música e que adora dançar. (...) Na Rua Paes de Souza, eu
encontrei a Casa de Santo Antônio, onde entrevistei Márcio Pereira, porteiro do
local e que relatou ali ser um lugar de pouca movimentação musical devido estar
na rua do cemitério. (SANTOS, 2013: p.3).
As considerações desses alunos sobre essa experiência foram as seguintes:
Por meio da pesquisa de campo, que foi uma grande experiência e aprendizado
sobre o Bairro do Guamá pudemos mudar nossa opinião sobre o bairro, pois
notamos que sua paisagem sonora é de grande diversidade, de gosto diferente
entre um morador e outro. Apesar de na área percorrida encontrarmos mais
residências, pudemos notar que há respeito sonoro entre os moradores na hora de
escutarem suas músicas. (...). Há no bairro uma grande diversidade de gêneros e
gostos musicais apresentando uma paisagem musical bem diferente daquela que
pensávamos encontrar. (SANTOS, 2013: p.4).
Os alunos Daniel Pinho Sant’Ana, Jonatas Araújo Batista de Abreu, Elioenai
Andrade da Luz e Walter Soares de Oliveira Junior também apresentaram o mapa
percorrido por eles no bairro do Guamá, onde conseguiram mapear outros cenários
musicais:
Durante a pesquisa realizada no bairro do Guamá (...) catalogamos alguns
lugares como igrejas, uma associação carnavalesca, um terreiro de mina e um
curral de boi-bumbá. O que foi uma surpresa, pois pensamos que fôssemos
encontrar o brega como gênero musical primordial no gosto dos moradores
guamaenses (...). Na Avenida José Bonifácio encontramos duas igrejas e
entrando na Passagem Pedreirinha nos impressionamos com a diversidade
cultural concentrada nesta rua: duas Igrejas, duas Associações carnavalescas e
um Terreiro de mina. (SANT’ANA. ABREU. LUZ e OLIVEIRA JUNIOR.
2013: p.4).
Os alunos, além de apresentarem as suas percepções acima, também elaboraram um
questionário com 07 (sete) perguntas, juntamente com as entrevistas que foram de grande
importância para nortear a produção do trabalho de pesquisa nos lugares dantes citados
(igrejas, terreiro de mina e o Boi Bumbá Malhadinho).
Sobre a pesquisa ocorrida nas quatro igrejas do bairro: Igreja Universal do Reino de
Deus, Assembleia de Deus Tradicional, Assembleia de Deus do Avivamento Pentecostal
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Brasa Viva e Congregação Cristã do Brasil, os alunos disseram que todas as igrejas usam a
música com um sentido “espiritual, de louvor e adoração a Deus”, e que apesar de serem
todas evangélicas, possuem características, costumes e maneiras diferentes de utilizarem a
música nos seus cultos. Por exemplo:
Na Igreja Universal do Reino de Deus foi encontrado um grupo denominado
FORÇA JOVEM, dentro desse grupo funciona um coral chamado CORAL
CANTA PARÁ, o qual é usado como inclusão social para a comunidade do
bairro, nos cultos oficiais da igreja acontecem participações de cantores solos
que utilizam o recurso do playback na execução de hinos mais atuais. (...) não
possui tradição musical, sua principal temática são programações de forte apelo
emocional, tendo os pregadores como os únicos protagonistas frente ao grupo.
(...) A prática musical nessa igreja possui apenas um pequeno papel de
coadjuvante (...). A Igreja Assembleia de Deus Tradicional, que tem Belém do
Pará como berço de seu surgimento, além de valorizar de forma bastante
expressiva a prática musical, possui uma liturgia com uma organização muito
clara, que define de forma muito objetiva sua prática cultural musical. A igreja
em questão possui coral, banda base com bateria, teclado, guitarra, violão, baixo
e vocais e se ocupa em executar músicas gospel estilo pop que se destacam nos
veículos de comunicação, e oferecem projetos musicais para a comunidade do
Guamá. (...). A igreja Assembleia de Deus do Avivamento Pentecostal Brasa
Viva, vertente da Assembleia de Deus tradicional, também trabalha com grupo
coral (...) que faz apresentações em festas de casamentos comunitários e festas de
aniversário da igreja. Esse coral é de extrema importância para a Igreja, pois,
segundo o relato dos próprios membros, através da adoração e meditação, ele faz
a ligação deles com a pessoa de Deus. (...). A Congregação Cristã do Brasil, (...)
se diferencia das demais igrejas em quase tudo, funcionando com um padrão
musical único praticado em todas as igrejas pertencentes a sua denominação.
Eles não utilizam amplificação e nenhum tipo de tecnologia sonora. A igreja
utiliza uma orquestra composta por instrumentos de sopro e cordas friccionadas
que ficam à disposição da igreja durante o culto. (...) utilizam hinos tradicionais a
quatro vozes e bem antigos, muitos, oriundos da época da reforma protestante. A
igreja possui um hinário próprio com mais de quinhentos hinos, sendo o único
livro de música usado por eles. (SANT’ANA. ABREU. LUZ e OLIVEIRA
JUNIOR. 2013: p.3).
Além de perceber as igrejas, os alunos também notaram outros cenários musicais
como o Boi-bumbá Malhadinho que acontece na quadra junina, o Terreiro de Mina Dois
Irmãos e a Associação Carnavalesca Bole-Bole. Sobre o Boi-bumbá malhadinho os alunos
discorrem:
O Boi-bumbá Malhadinho se apresenta no período de junho a agosto, durante a
quadra Junina. No bairro do Guamá ocorrem práticas culturais provenientes das
brincadeiras juninas, onde o Boi-bumbá Malhadinho é convidado a dançar em
festas de aniversários e sair nas ruas do bairro para a brincadeira. (SANT’ANA.
ABREU. LUZ e OLIVEIRA JUNIOR. 2013: p.5).
Sobre o Terreiro de Mina Dois Irmãos e a Associação Carnavalesca:
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
(...) O Terreiro de Mina Dois Irmãos, localizado na Passagem Pedreirinha (...).
No local do prédio ocorrem práticas religiosas afrodescendentes perpetradas pela
senhora Luíza Winja da Costa Ribeiro (Mãe Lulu). A reza acontece à noite ao
som de tambores, agogôs e cantos. (...) A associação carnavalesca Bole-bole foi
fundada em 2 de fevereiro de 1984, começou como bloco carnavalesco
conquistando 6 títulos, 2 no grupo especial das Escolas de Samba de Belém, lá,
funcionam projetos sociais com oficinas de percussão nos ritmos samba e
carimbó, originado do Baixo Tocantins, resgatando crianças e adolescentes da
rua. A Escola de Samba Bole-Bole desenvolve atividades culturais, sendo
referência na Passagem Pedreirinha. As oficinas e ensaios ligados ao projeto
Xequerê iniciou-se nas dependências da Escola de Samba Bole-Bole assim como
os ensaios e oficinas musicais ligados ao projeto cultural Boi Bumbá Malhadinho
do Guamá. (...) A Associação carnavalesca Bole-Bole (...). Localizada na
Pedreirinha, o Bole-bole é uma escola de samba com várias práticas musicais,
projetos sociais e conta com aproximadamente 2 mil participantes. (SANT’ANA.
ABREU. LUZ e OLIVEIRA JUNIOR. 2013: p.2).
A seguir as considerações desses alunos:
Ao final de nossa pesquisa ficamos surpresos e profundamente encantados com
os resultados obtidos, pois a princípio tínhamos uma visão um tanto
preconceituosa sobre a música no bairro do Guamá. A diversidade musical
encontrada no trecho de ruas que andamos é consideravelmente diversificada e
marcante. Por fim, entendemos a importância da etnomusicologia por possuir em
seu centro de ação o estudo da música em diferentes contextos culturais.
(SANT’ANA. ABREU. LUZ e OLIVEIRA JUNIOR. 2013: p.7).
Outro grupo, formado pelas alunas Anderlene Maria Lima Figueiredo, Brenda
Nazaré Trindade e Carina Malaquias de Lima, relatou que nas ruas visitadas durante a
pesquisa havia casas onde se percebia nitidamente atividade sonora, constatando situações
de respeito e desrespeito pelo consumo e/ou prática musical do outro. Observou-se também
que havia uma grande diversidade no modo como é distribuída a prática musical na área
pesquisada, conforme mostra o quadro 1 elaborado pelas alunas:
Quadro 1: Cenários e Cenas Musicais
Nome de rua/passagem/avenida
R. Paes de Souza
Tv. Quatorze de Abril
Pass. Silva Castro
Al. Mamoré
R. Barão de Igarapé Miri
Pass. Paulo Cícero
Práticas Musicais
Banda Fanfarra (E. E. E. F. M. Profª Ruth
Rosita de Nazaré Gonzales; Atividades musicais
“Casa de St° Antônio – Centro 3ª Idade”).
Igreja Evangélica “Assembleia de Deus”).
Igreja Evangélica “Quadrangular”; 3 Bares
– não identificados.
Banda Fanfarra e Grupos de Capoeira e
Carimbó. E. E. E. F. M. Barão de Igarapé Miri.
Ministério de Música (Primeira Igreja
Batista do Guamá).
Grupo de Boi-Bumbá (Grupo Folclórico
Juventude Curumim Tabatinga).
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Durante a pesquisa de campo, o que mais chamou a atenção dessas alunas foi o
grupo Boi Juventude Curumim Tabatinga, com sede na Rua Paulo Cícero. Segundo elas, o
boi é uma manifestação popular, considerada a mais antiga na cidade de Belém, e existem
vários desses grupos no bairro do Guamá, como por exemplo: Estrela Dalva (54 anos);
Flor do Guamá (38 anos); Malhadinho (38 anos); Flor de Todo Ano (31 anos); Flor da
Juventude (13 anos); Encanto da Juventude; Rei do Campo e Veludinho, que pertencem ao
mesmo dono, e Boi Juventude Curumim Tabatinga. Em entrevista realizada com o
responsável pelo grupo, as alunas mencionam:
Entrevistamos João de Castro, também conhecido na comunidade como “João do
Boi”, responsável pelo Grupo Folclórico Juventude Curumim Tabatinga. Ele nos
relatou sobre seu primeiro contato com grupos de boi, aos oito anos de idade, e
forneceu dados sobre o grupo que é composto de 68 brincantes e possui uma
diretoria. Para a confecção de suas fantasias e a construção dos seus adereços,
são utilizados materiais recicláveis que todos os anos são renovados. Os próprios
integrantes confeccionam também seus instrumentos musicais, reaproveitando
materiais recicláveis. A parte instrumental que acompanha suas melodias é
composta de instrumentos de percussão. Os mais usados são: barrica, xequexeque e pandeiro. (...) O bumba-meu-boi ou boi-bumbá preserva a cultura
popular, isto através de pessoas, que em grupo se dispõem a resgatar essa
história. (TRINDADE. FIGUEIREDO e LIMA. 2013: p.4).
As considerações dessas alunas são apresentadas a seguir:
O bairro do Guamá (...) possui suas peculiaridades. Concentra grande número de
grupos folclóricos, dentre eles, um de manifestação bem antiga, os grupos de
bumba-meu-boi. Estes, além de manter viva a tradição e cultura, também
repassam à sociedade uma consciência ambiental ao se utilizarem de material
reciclável para a construção de seus ornamentos e instrumentos musicais, além
de proporcionar uma vivência entre a comunidade, estabelecendo harmonia e
respeito mútuo. (TRINDADE. FIGUEIREDO e LIMA. 2013: p.4).
4. Breves considerações
Um dos aspectos interessantes para a área de ensino de música é a sua relação com
a cultura, sempre em processo dinâmico de estabilidade e mudança. A música, por estar
conectada a diversos aspectos - etnicidade, ideologia, religião, entre outros, pode aumentar
essa compreensão do mundo. Ela pode ajudar a compreender quem somos e, assim, nos
comunicar com os outros (SOUZA, 2007, p. 19).
A disciplina Introdução à Etnomusicologia busca oferecer suporte crítico,
metodológico e teórico para a compreensão das relações entre música e sociedade e as
relações entre música e os diversos domínios da cultura. Tais atividades curriculares
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
buscam oportunizar reflexões, vivências e produção de conhecimento acerca das mais
diversas práticas musicais existentes no Estado paraense. Possibilita aos alunos a
percepção de que há várias maneiras de pensar, sentir e fazer música, que, com certeza, o
auxiliarão como futuros professores de música.
A proposta é que o ensino de música inclua a diversidade musical existente e aguce
o os olhares não somente para uma música específica, mas para a totalidade de músicas.
Talvez, assim, possa ser possível formar professores de música criativos e conscientes,
compreensivos e tolerantes em relação à diversidade de práticas musicais que constituem o
panorama musical atual, com mentalidade aberta para as diferenças existentes. Temos
aprendido muito uns com os outros e ainda temos muito a aprender (NETTL, 2010).
Referências:
BASTOS, Rafael José de Menezes. A musicológica Kamayurá: para uma antropologia da
comunicação no Alto Xingu. 2. ed. Florianópolis: UFSC, 1999.
BLACKING, John. How Musical is Man? Seattle: University of Washington Press, 1973.
LAGO, Jorgete. A prática do boi bumbá em Belém: uma breve apresentação. Caderno de
colóquio, v.10, nº1 Belém, 2010.
MERRIAM, Alan P. The Anthropology of Music. Evanston, Ill: Northwestern University
Press, 1964.
NETTL, Bruno. The Study of Ethnomusicology: Twenty-nine Issues and Concepts.
Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1983.
NETTL, Bruno. Music Education and Ethnomusicology: A (usually) Harmonious
Relationship. MinAd: Israel Studies in Musicology Online, v. 8, n. 1/2, 2010.
PIEDADE, Acácio Tadeu de C. Música Yepâ Masa: Por uma antropologia da música no
Alto Rio Negro. 1998. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina.
. Música e Sociedade Tukano: sobre dois gêneros musicais Ye`pâ-masa. In:
LUCAS, Maria Elizabeth; BASTOS, Rafael Menezes (orgs.). Pesquisas Recentes em
Estudos Musicais no Mercosul. Porto Alegre: UFRGS, 2000 p. 11-26. (Série Estudos, 4).
QUEIROS, Luiz. Pesquisa em etnomusicolgia: implicações metodológicas de um trabalho
de campo realizado no universo musical dos Ternos de Catopês de Montes Claros. Em
Pauta n. 26, Porto Alegre, 2005.
. Pesquisa Quantitativa e Pesquisa Qualitativa: Perspectivas para o campo da
etnomusicologia. Claves n. 2, Bahia, 2006
. Ética na pesquisa em música: definições e implicações da contemporaneidade.
Belo Horizonte, 2013.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
SANTOS, Carlos Henrique Cascaes dos. Paisagem Musical do bairro do Guamá. Artigo
apresentado à disciplina Introdução à Etnomusicologia. Belém, 2013. Trabalho não
publicado.
SANT’ANA, Daniel Pinho. ABREU, Jonatas Araújo Batista de. LUZ, Elioenai Andrade
da. OLIVEIRA JUNIOR, Walter Soares de. Diversidade cultural no bairro do Guamá.
Artigo apresentado à disciplina Introdução à Etnomusicologia. Belém, 2013. Trabalho não
publicado.
SEEGER, Anthony. Os índios e Nós: Estudo Sobre Sociedades Tribais Brasileiras. Rio de
Janeiro: Campus, 1980.
. Cantando as canções dos estrangeiros: índios brasileiros e música de derivação
portuguesa no século XX”. In: CASTELO-BRANCO, Salwa El-Shawan (coord.) Portugal
e o Mundo: o encontro de culturas na música. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997.
SOUZA, Jusamara. Cultura e diversidade na América Latina: o lugar da educação musical.
Revista da ABEM, n. 18, p. 15-20, 2007.
TRINDADE, Brenda Nazaré. FIGUEIREDO, Anderlene Maria Lima. LIMA, Carina
Malaquias de. Práticas Musicais no Guamá: os grupos de boi. Artigo apresentado à
disciplina Introdução à Etnomusicologia. Belém, 2013. Trabalho não publicado.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Olhar e escutar com atenção: transmissão e assimilação do saber nas
práticas musicais do povo Ka'apor.
Hugo Maximino Camarinha
UEPA – MPEG - [email protected]
Claudia Leonor López Garcés
MPEG - [email protected]
Resumo: Neste trabalho procuramos discorrer sobre os métodos particulares entre a transmissão e a
apreensão musical dos Ka'apor, povo falante de língua do tronco Tupi, família Tupi-guarani, que vive no
estado do Maranhão, na Terra Indígena Alto Turiaçu. Trabalhos sobre transmissão musical em contextos
socioculturais específicos, debatidos em disciplinas como antropologia, etnomusicologia e educação,
serviram para a melhor compreensão dos cenários da aprendizagem musical deste povo. A posterior seleção
de elementos etnográficos no relato da experiência de campo, correlatos aos aspectos da transmissão musical
foram no sentido de evidenciar os modos de aprender musicalmente entre os Ka'apor. No caso dos aspectos
educativos do contexto musical, pensamos a consequência de seus atributos no sentido da criação e da
perpetuação cultural. A transmissão e apreensão musical protegem a cultura, de modo que, ao ser transmitida,
a tradição permanece e se fortifica.
Palavras-chave: Transmissão de saber. Povo Ka'apor. Etnomusicologia.
1. Introdução e metodologia
Neste trabalho procuramos discorrer sobre os métodos particulares sobre
transmissão e apreensão musical entre o povo Ka'apor. Intento resultante de indagações
que surgiram no transcurso da pesquisa122 – e que tiveram em parte, réplica preliminar em
consequência de algumas observações e relatos feitos em campo, nomeadamente, durante
nossas visitas às aldeias Xié e Paracuí na Terra Indígena Alto Turiaçu – mediante o
contato com as manifestações musicais, objeto de nossa investigação.
De que forma é feita a transmissão musical aos mais jovens indígenas, referente a
todos os eventos onde a cultura musical Ka'apor é aplicada, sobretudo aquela executada
nas práticas rituais deste povo? Procuramos colocar as reflexões a partir deste
questionamento norteador, com base no relato da experiência de campo, através do
método etnográfico, considerando aspectos relacionados diretamente com a transmissão de
conhecimentos no interior do cenário musical Ka'apor.
Projeto: Música e Xamanismo Ka’apor. Uma abordagem etnomusicológica da medicina
ameríndia. Tabalho de pesquisa desenvolvido no ambito do Programa Institucional PIBIC, do
Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG (2015/2016)
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
O universo das práticas musicais deste povo está inserido e é desenvolvido, em
grande parte, no ato ritual. Contudo, deve-se ditinguir entre a práxis musical que apresenta
finalidade terapêutica e a que se desenvolve com fim propiciatório. Por sua vez, essas
práticas não emergem, mas só se desenvolvem segundo padrões específicos
de
transmissão de conhecimentos.
As práticas de aprendizagem musical fora do âmbito escolar, em contextos
socioculturais específicos, são tema debatido academicamente e transita entre disciplinas
das áreas de antropologia, etnomusicologia e educação. Nesse sentido buscamos nessas
fontes, alguns subsídios que achamos pertinentes para descorrer sobre os modos de passar
e adquirir conhecimento musical entre os Ka'apor.
2. Transmissão musical e a abordagem etnomusicológica
Em seu livro “The Anthropology of Music”, Merriam (1964, p. 145 -146) afirma
que "cada cultura molda o processo de aprendizagem para lidar com as suas próprias ideias
e valores"; postulou que "a forma mais simples e indiferenciada de aprendizagem de
música ocorre através da imitação" segundo o autor a imitação é um recurso importante no
aprendizado musical e afirmou que esse pode ser um procedimento inicial nesse processo.
Tal assertiva (MERRIAM, 1964, p. 147, 305), parece ter sido firmada muito
por
influência de algumas etnografias sobre música, por exemplo, sobre os povos indígenas
norte-americanos e os modos de aprender entre as crianças Venda da África do Sul,
respetivamente:
[A] aprendizagem de canções acontece, no canto para as danças, os jovens
"sentam com os cantores junto ao tambor e aprendem as canções dessa maneira."
Eles estão autorizados a bater sobre o tambor com o outros, e cantam baixinho
até aprender as melodias (DENSMORE 1930, p. 654 apud MERRIAM, 1964, p.
147). (tradução do autor)
Sobre a aprendizagem musical das crianças Venda, Blacking afirma:
[…] as crianças Venda têm todas as oportunidades para imitar as canções e
danças de adultos, [...] Os seus esforços para imitar os adultos e crianças mais
velhas são encorajados e admirados ao invés de abafados, [...] embora as
melodias estejam lá para ser imitadas, crianças pequenas fazem pouca ou
nenhuma tentativa de cantar, e estão em primeiro lugar somente dispostas a
imitar o movimento motor (BLACKING, 1957, p. 02 apud MERRIAM, 1964, p.
305). (tradução do autor)
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Como aponta Queiroz em sua tese (2005), referências teóricas provenientes dos
estudos etnomusicológicos propiciam a compreensão dos vários cenários onde acontece a
aprendizagem musical. Esses estudos enfatizam a necessidade de compreendermos
corretamente as bases desses sistemas musicais, por exemplo, Nettl afirma: "I do belive
that the way in which a society teaches its music is a matter of enourmous importance for
understanding that music [...]." (NETTL, 1992, p. 3 apud QUEIROZ, 2005, p. 122)
Menezes Bastos (1999, p. 214-220) observou entre os Kamayurá (grupo tupiguarani), momentos para escutar o “Maraka'ỳp – legítimo proprietário da música […]”.
Quando a música na posse deste não é negociável (relação econômica) ela é transmitida. A
transmissão musical Kamayurá é “linear” e “paralela” (divisão por gêneros, onde os
homens seguem o estilo musical “de seu pai e irmãos do pai” e as mulheres seguem a “de
sua mãe e irmãs da mãe”) e se divide no campo “formal” (isolada ou coletivamente) e
“participacional” (no ritual) .
Olhar e ouvir são fundamentais para a assimilação do aprendizado musical do
Catopês, manifestação expressiva do universo do Congado (Queiroz 2005, p.129). A
transmissão musical acontece coletivamente, se aprende com o ato de praticar,
experimentar, prestar atenção e imitar os que têm domínio nas práticas musicais. Esses
momentos de aprendizagem musical ocorrem durante as performances (QUEIROZ, 2014,
p. 6).
Apesar de alguns destes contextos culturais se mostrarem diferentes do foco de
nossa pesquisa, entendemos que a maior parte dos processos de transmissão acima citados
são os mesmos usados na transmissão musical entre os Ka'apor, posto que, no contexto
ritual ou entre as performances isoladas, como veremos, também se fazem presentes alguns
desses aspetos.
3. Modos de aprendizagem musical entre os Ka'apor
3.1 Assimilar e praticar com a performance do tambor
Numa de nossas visitas ao território Ka'apor, depois da habitual reunião com a
comunidade, a título de encerramento, tivemos o privilégio de assistir à performance
rítmica por meio do tambor. O filho do cacique foi quem tomou a iniciativa. Um indígena
adulto que domina as técnicas performáticas relativas à prática de tal instrumento e que,
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
nesse contexto, para os neófitos da aldeia, serviu de referência. Em seguida pudemos
presenciar várias crianças Ka'apor querendo também pôr em evidencia o resultado de seu
progresso no aprendizado do instrumento. Aquele se tornou efetivamente, um momento
para “praticar e experimentar, prestar atenção e imitar” (QUEIROZ, 2014, p. 6) e como
referido, expor seus ganhos na prática instrumental. Cada criança, por sua vez e
aleatoriamente, atravessava uma parte da ramada tocando e pulando sempre na intenção da
execução mais próxima da performance “matriz”, perpetrada pelo indígena adulto, mestre
na performance do tambor. Logicamente, os jovens adolescentes, por fatores como,
agilidade e mais tempo de prática, concretizavam com mais propriedade que as crianças.
Por mais que a performance do tambor apresente características complexas na sua
execução, as crianças, mesmo longe de atingir o grau de execução dos mais velhos, nunca
desistiram. Pelo contrário, estimuladas pelo desempenho destes últimos, observando com
muita atenção cada detalhe de suas ações percussivas, foram as crianças as que mais tempo
despenderam na prática do tambor durante aquele final de manhã.
Esta síntese da transmissão e apreensão musical na performance do tambor foi
pontual, aconteceu fora do contexto ritual. Já as manifestações musicais nesse contexto,
entre os Ka'apor (onde os aspectos performáticos têm outra dimensão), se convertem, em
paralelo com outros propósitos, no principal cenário da aprendizagem. Em tais eventos
acontece aquilo que Ingold chamou de “educação da atenção” onde os neófitos procuram
“sintonizar o movimento da sua própria atenção ao movimento da ação do outro"
(INGOLD, 2001, p.144 apud MEDAETS, 2011, p. 12).
3.2 Transmissão e apreensão musical na Festa do Cauim
Uma vez por ano, durante a lua cheia de Outubro acontece a festa do cauim Ka'apor
(akaju kawĩ ta’yn muherha). Trata-se de um acontecimento segmentado ritualisticamente
que reúne: a nominação das crianças, o menarca (ritual de passagem das moças), os
casamentos, a posse dos novos caciques (LÓPEZ GARCÉS et al., 2014, p. 9). A bebida
ritual desta festa é o suco de caju fermentado (akaju rukwer), preparado no período que
antecede a celebração e repartida nessa ocasião. Mulheres e homens separadamente entoam
cânticos nas danças de forma circular (em sentido anti-horário), e em momentos
predominantemente assumidos pelos pajés, onde todos tomam cauim. Este é o principal
evento cerimonial deste povo e que se converte também, num enorme palco para a
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
transmissão e apreensão musical. Todos os aspetos performáticos são presenciados pelos
mais novos, no entanto, os modos de transmissão e apreensão musical na contextura ritual
não são evidentes, mas estão sim implícitos nele. Albuquerque, (2010) considera as
beberagens dos antigos índios Tupinambá, como manifestações socioeducativas.
Relativamente a tais práticas rituais, a autora nos diz:
[...], encerram dimensões simbólicas e educativas, configurando-se como
estratégias de entendimento das formas como homens e mulheres ordenam o
mundo e lhe atribuem sentido. Durante as beberagens, sob o poder de cuias e
cuias de cauim, discursos eram proferidos em altos brados, rememorando a força
e a valentia dos guerreiros. Nelas, toda a cultura se expressava na forma de
discursos, do canto, da dança, da ostentação de instrumentos e ornamentos
plumários e corporais. As beberagens revestiam-se, portanto, de um sentido
essencialmente estético e pedagógico, posto que transmitiam a memória coletiva,
incutiam valores, perpetuavam a tradição, além de promoverem a resistência
indígena aos ditames da colonização. [...] Contudo, a despeito dos preconceitos e
das perseguições sofridas, tais práticas de consumo de bebidas fermentadas
sobreviveram no tempo, estando presentes, ainda hoje, no século XXI, entre
inúmeros grupos indígenas brasileiros, entre eles, os falantes das línguas tupiguarani […]. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 70,71).
Severiano (2014), sobre a transmissão musical no contexto ritual Tupinambá aponta
o contexto das celebrações como “o momento onde um conjunto de saberes era transmitido
às gerações mais novas pelas mais velhas, sendo um locus de circulação e apropriação de
saberes, dentre eles os saberes musicais” (2014, p. 137). E acrescenta:
[...] A música funcionaria como um passeurs culturels, mediando tempos e
espaços diversos e contribuindo na elaboração e circulação de representações e
do imaginário. Constato que a música era muito presente nos rituais e eventos
cotidianos dos Tupinambá, tendo grande contribuição para a constituição e
organização desta sociedade. Verifica-se que a educação musical entre os
Tupinambá ocorria nas práticas socioculturais (SEVERIANO, 2014, p. 137,141).
Por serem remanescentes dos Tupinambá, os Ka'apor (RIBEIRO; NEPOMUCENO,
2010, p. 80), conservam elementos da expressão cultural dos primeiros, presentes “ainda
hoje” na celebração do cauim. Esse é um fenômeno que provem e muito se deve ao
universo da transmissão. Contributo importante para que a cultura se perpetue (com as suas
devidas (re)significações), subsista e perpasse de geração em geração e se mantenha
presente hoje.
Olhar, escutar com atenção é o principal exercício das crianças, que perambulando
na área da cerimonia e mediante suas perceções, vão apreendendo aspetos do
ciclo
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
cerimonial do cauim. As crianças de colo, nas tipóias junto a suas mães, integram e vão se
familiarizando com as várias etapas do ritual sendo o ponto culminante de sua participação
(mesmo que passivamente), a fase da nominação. Os jovens mancebos depois de
assimilarem previamente os cantos, através do testemunho de performances pontuais dos
cantadores da aldeia e as vivências rituais passadas, vão integrando o desempenho musical
dos adultos durante a ritualística. Por vezes, por não terem domínio do repertório musical,
os mais jovens imitam os mais velhos e paulatinamente aperfeiçoam suas técnicas na
performance durante a festa. O Pajé também é amplamente observado em sua intervenções
durante a cerimonia, em parte por ter domínio no repertório relativo à cantoria.
3.3 O aspirante a pajé e o aprendizado do legado xamânico (apontamentos
preliminares123)
No xamanismo deste povo, mais propriamente nos processos de formação do jovem
aspirante à arte da pajelança, a transmissão musical é crucial, pois é por meio da música
que sucede a mediação fronteiriça entre os agentes de doença e cura. Nesse contexto, não
se pode conceber a ausência musical, pois desse modo tal evento não ocorreria. Se espera
do aprendiz ter por meta o domínio das práticas (musicais) xamanísticas, isto é, com o
tempo, erigir certos aspectos, por meio da música, que levem enfermos à obtenção de cura.
Nem todos são aptos a percorrer esse caminho. Aqueles que demonstram indícios
específicos para tal, são normalmente considerados pelo pajé (ou por agente não-humano),
possíveis candidatos ao desenvolvimento de tais conhecimentos. Inicialmente o aprendiz
assiste aos rituais, olha e escuta com atenção as ações musicais e os movimentos do pajé,
pode passar por jejuns, retiros, dietas específicas e, de forma progressiva, mediante a sua
inserção e domínio de tais técnicas, vai assumindo protagonismo no ritual de cura. Nessa
conjuntura, é parte preponderante do processo de aprendizagem a vontade de querer “ser”
do aprendiz.
Os processos de transmissão aqui abordados nos remetem ao que em antropologia e
etnomusicologia se conhece como "observação participante", um dos artifícios do método
etnográfico. A "observação participante" é também um processo de apreensão
de
123 Este
trabalho tangencia uma inserção mais criteriosa relativa ao aprendizado xamanístico, justamente por
não ser o foco de nossa abordagem neste artigo e principalmente porque (segundo os dados coletados), o
tema exige uma descrição densa e detalhada que por razões de espaço não podemos aqui alcançar. Não
obstante, esse tema será tratado futuramente.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
conhecimento, pelo menos, seria esse seu objetivo. A diferença está, obviamente, no
receptor. Uma falta, um lapso, um desacerto na clareza da observação, proveniente de uma
perspetiva contaminada de conceitos e métodos, versus a nitidez perceptiva de uma criança
indígena na apreensão do saber. Quanto à eficácia na apreensão de tal conhecimento, a
partir dos distintos pontos de vista, parece estar em vantagem aquela que é a antítese do
olhar inquieto do pesquisador participante, a do neófito indígena.
Considerações finais
Os processos de transmissão e apreensão de conhecimento numa determinada
cultura poderiam ser objeto que antecede qualquer outro objetivo de estudo nas longas
incursões em campo, uma vez que dessa forma, o "observador (pesquisador) participante"
faria suas posteriores considerações com base em observações perpetradas com mais
proximidade a tais processos de transmissão. Em nossa opinião, tal procedimento
privilegiaria uma construção de conhecimento mais fidedigna, pelo menos mais próxima
da forma de apreensão do saber daquela determinada cultura.
Ingold (2015, p. 7) em artigo recente, fazendo-se valer de metáforas ao estilo
Geertziano, nos apresenta um “dédalo” e um “labirinto” análogos a dois sentidos distintos
de educação (respectivamente: a formal e a educação pela experiência, no caminhar). Os
modos de transmissão musical Ka'apor se assemelham então ao “labirinto”, onde para o
aprendiz “sua ação deve estar acoplada de modo próximo e retido com sua percepção [...]
prestar atenção onde pisa, e também ouvir e sentir. [...] o conhecimento é relativo ao seu
ambiente cultural.” (INGOLD, 2015, p. 7, 8).
Entre os Ka'apor, os processos de aprendizagem musical acontecem nas
experiências de performances isoladas e coletivas e principalmente no ritual, onde os
elementos musicais (e análogos) são evidentes. “É através da experiência continuada, em
primeiro lugar como observador ativo [...], em seguida como praticante cada vez mais
experimentado" (MEDAETS, 2011, p. 10). Os jovens, convidados a integrar os rituais,
para chegar ao nível performance musical pretendida, vão gradualmente alcançando tal
intento “através da imitação124” (MERRIAM, 1964, p. 146) daqueles que demonstram
domínio performático. Momento de atenção para a prática dos elementos
musicais
124 Entre
os Kamayurá no “plano didático-pedagógico” a imitação das ações dos mais velhos pelas crianças e
jovens é constante (Bastos, 1999, p. 218).
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aprendidos previamente até a integração plena no ritual. Relatamos uma dessas
performances isoladas com o tambor, onde as crianças protagonizaram momentos
elementares do processo de transmissão/assimilação como: observar e escutar com
atenção, imitar, praticar, explorar, experimentar, exercitar, demonstrar e brincar. No aqui
abordado, percebemos a Festa do Cauim como o ápice para o aprendizado coletivo das
crianças e dos jovens, onde se mostram concentrados nos aspetos musicais e na cadeia
intersemiótica125 da performance ritual. Ao aproximarmo-nos de alusões à expressividade
cultural Tupinambá, em particular de suas beberagens e identificar que os Ka'apor
conservam ainda hoje traços culturais desse povo, podemos entender que esse fato resulta
em parte de processos de transmissão de conhecimento que ocasionaram e ocasionam, que
esses elementos perpassem e perdurem de geração em geração e estejam presentes hoje na
ritualística Ka'apor. Verificamos que o xamanismo deste povo tem um de seus alicerces na
transmissão musical, onde perante indícios específicos do jovem e o transcorrer entre
aspirar ser ou ser designado, o neófito é inserido numa formação que, entre outras, o leve a
ter domínio nos aspetos musicais da medicina tradicional, para chegar a assumir ,um dia, o
lugar de pajé.
Se as práticas rituais, a exemplo do xamanismo, se vão desvanecendo, pode muito
bem tal situação ser atribuída ao fato da transmissão desses saberes ter cada vez menos
facilitadores, menos mestres da cultura xamânica, fato que pode gerar falta de interesse dos
mais novos no aprendizado dessas práticas. Sem referências visuais e auditivas do
xamanismo, os aspirantes a desenvolver tais saberes ficam limitados ao desinteresse e
disponíveis a outros apelos.
Margarete Arroyo (2000, p.15), observa as práticas de ensino e aprendizagem de
música como “reprodutoras e produtoras de significados, [que lhe] conferem […] um papel
de criador de cultura". No caso dos aspetos educativos do contexto musical que aqui
abordamos, pensamos a consequência de seus atributos dessa mesma forma, mas não só no
sentido da criação como aponta a autora, mas também no sentido da perpetuação cultural.
A transmissão e apreensão musical mantem, salvaguarda e protege a cultura no sentido em
125
O aprendizado não é exclusivamente musical abrange também a cadeia intersemiótica do ritual (Menezes
Bastos, 1999, p. 214-220). O mesmo autor (2012) sobre os Kamayurá “[…] estabelece a música como um
sistema pivot que intermedia, no ritual, as artes verbais (poética, mito) com aquelas plástico-visuais
(grafismo, iconografia, sistema de adereços) e com as coreológicas (dança, teatro)” (2012, p.14).
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
que ao transmitir, passar, conduzir transferir a memória musical comum ao povo, grupo ou
coletivo, a tradição permanece e se fortifica.
Assim como Montardo (2009, p. 272) verificou, entre os Guarani, a “música
desempenha um papel fundamental na formação da pessoa”. Com base em nossas
preposições, postulamos também no mesmo sentido, relativamente à importância da
música na formação da pessoa Ka'apor.
Referências:
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Educativos no Brasil Colonial. Revista Cocar v. 4, n. 7, p. 49–62, 2010. Acesso em: 4 abr.
2016.
BASTOS, Rafael José de Menezes. Audição do Mundo Apùap II – Conversando com
“Animais”, “Espíritos” e outros Seres. Ouvindo o Aparentemente Inaudível. Antropologia
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BASTOS, Rafael José de Menezes. Capítulo 4: Sociomusicologias Kamayurá. A
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LÓPEZ GARCÉS, Claudia et al. Textos - Exposição “Ka’apor Akaju kawĩ yta muheryha ”
“A Festa do cauim do povo Ka’apor". [S.l.]: MPEG. , 2014
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MEDAETS, Chantal. “Tu Garante?” Reflexões Sobre a Infância e as Práticas de
Transmissão e Aprendizagem na Região do Baixo-Tapajós. XI Congresso Luso Afro
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
MEDAETS, Chantal Vitória. Práticas de Transmissão e Aprendizagem no Baixo Tapajós:
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Amazonas, EDUA, 2014. Pp. 132–140.
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Os Tupinambá no Brasil colonial: saber-fazer instrumentos musicais.
Rafael Severiano
UFPA – [email protected]
Liliam Barros
UFPA – [email protected]
Resumo: Neste texto, pretendemos apresentar e discutir aspectos da confecção e uso de alguns dos
instrumentos musicais dos Tupinambá no Brasil colonial descritos em fontes históricas. Duarte (2014) fala
sobre um saber-fazer instrumentos musicas nas sociedades indígenas. Assumindo tal perspectiva, a pergunta
que guiou este texto foi: como seriam os aspectos desse saber-fazer instrumentos musicais entre os
Tupinambá? O objetivo geral é o de investigar e descrever o saber-fazer instrumentos musicais entre os
Tupinambá no Brasil colonial, a partir de fontes históricas. Realizamos diálogos com outros estudos
etnomusicológicos sobre outras sociedades indígenas, a fim de enriquecer a discussão. As conclusões
evidenciam que, entre os Tupinambá, a transmissão dos conhecimentos necessários à confecção dos
instrumentos musicais era transmitida dos mais velhos aos mais novos, processo iniciado ainda na infância.
Palavras-chave: Tupinambá. Instrumentos musicais. Saber-fazer.
1. Introdução
Entre as sociedades indígenas das terras baixas da América do Sul (TBAS), os
saberes musicais, estariam para além dos sons, envolveriam também conhecimentos para a
confecção dos instrumentos musicais.
Rodrigues aponta que
fazer música, cantar, tocar instrumentos musicais, assim como confeccioná-los,
são processos aprendidos dentro de um grupo social e cultural, daí a
compreensão de que podemos entender os processos de ensino-aprendizagem
envolvidos na confecção de instrumentos musicais (2015, p. 174).
Duarte (2014), ao tratar do conhecimento indígena para a confecção de
instrumentos musicais, fala de um “saber-fazer” (ibid., p. 41), que seria transmitido de
geração para geração, por um longo processo de aprendizado que se inicia bem cedo, ainda
durante a infância.
As fontes históricas sobre os Tupinambá apontam como os diversos saberes eram
transmitidos pelas gerações mais velhas às gerações mais novas, processo iniciado ainda na
infância e que se estendia até a vida adulta.
De acordo com Fernandes, os adultos envolviam os mais jovens em “suas
atividades ou estimulavam a reprodução de situações análogas entre as crianças,
promovendo dessa forma sua iniciação antecipada nas atitudes, nos comportamentos e nos
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
valores incorporados à herança sociocultural” (1976, p.73). Segundo Fernandes, “o pai se
tornava o modêlo do filho, e seu mestre por excelência adestrando-o e preparando-o para a
vida de adulto” (1989, p. 227). E, “como os pais em relação aos filhos, as mães tornavamse ao mesmo tempo mestras e modelos das filhas” (idem).
Abbeville relatou que os Tupinambá “são muito engenhosos e ativos na fabricação
de tudo o que precisam para a caça, a pesca ou a guerra. [...] sabem fazer os instrumentos
de que se servem habitualmente” (ABBEVILLE apud FERNANDES, 2009, p.68).
Podemos supor que os instrumentos musicais estariam contemplados nesta fabricação que
Abbeville fala (idem).
Assumindo que haveria um saber-fazer instrumentos musicais entre os Tupinambá,
a pergunta que norteia este texto é sobre como seriam os aspectos de tal saber-fazer.
O objetivo geral deste texto é investigar e descrever o saber-fazer instrumentos
musicais entre os Tupinambá no Brasil colonial.
2. Os instrumentos musicais
O maracá, instrumento musical classificado como idiofone, era fabricado do fruto
de uma árvore, com tamanho e forma a de um ovo de avestruz, ao qual furavam,
esvaziavam e colocavam dentro pedrinhas, grão de milho ou semelhantes, atravessando-o
pelo centro com um pau (LÉRY, 1961). Eram ornamentados com pinturas, penas, plumas e
outros adereços (idem).
Segundo Duarte (2014), o maracá – chocalho globular – é encontrado em quase
todas as sociedades indígenas das TBAS, com formatos e funções que variam de acordo do
grupo. Soma-se a esses formatos e funções diversas variações de nome.
Os materiais utilizados na confecção do mbaraka,126 “chocalho de mãos” Guarani,
é semelhante ao utilizado pelos Tupinambá: “é feito de porongo (lagenaria) com sementes
iva’ü (preta, de pequenas dimensões) dentro e com cabo de madeira” (MONTARDO,
2002, p. 168 e 169).
126
Entre os grupos Guarani, mbaraka pode ser utilizado para designar outros instrumentos musicais
(MONTARDO, op. cit.).
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Figura 1: Maracá tupinambá
Fonte: STADEN, 1930, p. 153.
Thévet (1978 [1557]) descreve uma árvore chamada cohyne (Crescentia
cujeste).
Era com o fruto desta árvore (fig. 2) que os Tupinambá confeccionavam o maracá.
Figura 2: Árvore cohyne
Fonte: THÉVET, 1558, p. 105.
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Figura 3: Crescentia cujeste. Família Bignoniaceae
Fonte: Imagem da internet.127
O maracá era utilizado em diversos contextos sociais, era executado por um só
indivíduo e também por diversos indivíduos em grandes ajuntamentos; em eventos que
antecediam (fig. 4)128 e precediam as guerras, inclusive durante estas; nas cerimônias que
envolviam o preparo dos prisioneiros para o ritual antropofágico e nos eventos que
envolviam este ritual; enfim, nos momentos de cantos e/ou dança, havia a execução do
maracá.
Somente os homens podiam executá-los, e cada indivíduo possuía o seu. As fontes
não relatam a partir de qual idade era permitido aos homens portar e executar o maracá.
Acreditamos que seria somente após o casamento, pois era só após este marco que o
homem de fato era considerado um adulto, isto a partir dos 25 anos, aproximadamente.
O maracá possuía forte ligação com o mundo sobrenatural: através dele os espíritos
dos ancestrais e divindades comunicavam aos xamãs profecias sobre de diversos
acontecimentos. Era através do sopro do petum (fig. 4)129 dos grandes pajés que os
maracás recebiam este caráter profético.
127
www.plantsofasia.com/index/crescentia_cujete/0-573
Cerimônia que precedia as expedições guerreiras relatadas por Léry (op. cit.) e Staden (op. cit.).
129 Há três indivíduos ao centro. Os dois das extremidades estão soprando petum.
128
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Figura 4: Pajés e guerreiros tupinambá
/Fonte: DE BRY apud MÉTRAUX, op. cit., p. 86.
Izikowitz (1935) menciona o caráter sagrado do maracá, apontando como os
Tupinambá tinham esse instrumento como refúgio de um espírito, e como acreditavam que
o seu som era a voz de um espírito. Segundo Izikowitz, o maracá não era sagrado até a
aplicação de um medicamento (idem), o petum, soprado pelos grandes pajés.
Para Veiga (2004), os cronistas consideraram, confusamente, que os Tupinambás
seriam um povo idólatra, por acreditarem que cultuava o maracá como um ídolo. Segundo
Veiga (op. cit.), o caráter sagrado do instrumento não pode ser negado. Entretanto, não se
pode confundir essa virtude com culto (idem).
Figura 5: Chocalho de cabaça Tembé, Tupi-guarani
Fonte: IZIKOWITZ, op. cit., p. 102.
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O uaí é descrito nas fontes como guizo ou chocalho de pés. Era confeccionado a
partir do fruto de determinada árvore, fruto este semelhante a uma castanha d’água.
Esvaziavam os frutos, os preenchiam com pequenas pedras ou grãos, e uniam diversos
deles a um fio de algodão que era, então, atado aos tornozelos. O som desse instrumento,
segundo os cronistas, era semelhante a sinos.
Figura 6: Confecção de uaí
Fonte: THÉVET, 1558, p. 66v.
Entre os Kamayurá, o idiofone yaku’iakãmit`y é semelhante ao uaí Tupinambá: um
chocalho em corda. O yaku’iakãmit`y é confeccionado com castanhas de pequi em forma
de terço (MENEZES BASTOS, 1999).
Figura 7: Yaku’iakãmit`y, Chocalho de pés kamayurá
Fonte: MENEZES BASTOS, 1999, p. 165.
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Para Veiga (op. cit.), o uaí, em certas cerimônias, estabeleceria comunicação com o
mundo sobrenatural.
Segundo Izikowitz (op. cit.), os chocalhos de tinir [jingle rattles], que são
confeccionados a partir de conchas de frutas, são mais comuns na América do Sul, em
especial no rio Amazonas. Esses chocalhos são confeccionados a partir dos frutos de uma
árvore chamada thevetia (idem). Izikowitz (op. cit.) aponta que tais chocalhos também
ocorrem na parte oriental do Brasil e na costa, entre os Tupinambá.
Figura 8: Jingle rattles of fruit shell. Etnia Parintintin
Fonte: IZIKOWITZ, op. cit., p. 51.
É bem provável que o uaí fosse confeccionado com os frutos da thevetia, ou árvore
da mesma família. A imagem de Thévet (op. cit., loc. cit.) permite essa suposição, pois a
árvore da imagem é semelhante à thevetia. E há ainda um outro fato: os frutos da árvore de
onde se confeccionavam o uaí eram venenosos, como os da thevetia.
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Figura 9: Thevetia peruviana. Família das apocynaceae
Fonte: Imagem da internet.130
O matapu era uma grande concha, com uma boca, que os Tupinambá perfuravam e
queimavam no ápice, e que soava mais alto do que uma buzina (SAMPAIO apud VEIGA,
op. cit.).
Figura 10: Cassis tuberosa
Fonte: Imagem da internet.131
130
http://www.amigadasflores.blogspot.com.br/2008_05_15_archive.html
131 www.gastropods.com
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É provável que o matapu tupinambá fosse um zunidor, pois o fato dele ser usado no
pescoço sugere que fosse preso por uma corda, permitindo assim que fosse girado
produzindo esse som tão forte quanto uma buzina.
Entre os Mehinako, o zunidor matapu é um dos espíritos-donos das plantações, o
qual é alvo de importantes rituais de três dias (DUARTE, op. cit., nosso grifo). Entre os
Wauja, a família das flautas sagradas inclui um zunidor matapu (PIEDADE, 2004, nosso
grifo). Observamos o nome do zunidor mehinaki e wauja, semelhante ao matapu relatado
por Staden (op. cit.).
Assim, não seria surpreendente se o matapu tupinambá fosse realmente um zunidor,
assim como o matapu dos Wauja e dos Mehinako.
3. O saber-fazer instrumentos musicais
Na figura 2 é possível identificar três indivíduos: um homem colhendo os frutos,
uma criança auxiliando este homem, e uma mulher realizando uma etapa diferente com o
fruto, provavelmente preparando-o para a confecção do maracá.
Entre os Araweté, o aray e o fumo são os principais emblemas do xamã
(VIVEIROS DE CASTRO, 1986). Segundo Viveiros de Castro (ibid.), esse instrumento
corresponderia ao maracá dos Tupinambá. O processo de confecção da estrutura interna do
aray é realizado pelas mulheres e o processo de acabamento pelos homens (idem).
No caso dos Tupinambá, talvez houvesse trabalhos femininos e masculinos na
confecção do maracá. A imagem sugere dois processos, o homem colhendo e a mulher
realizando outra atividade com o fruto. É possível dizer ainda que a criança está auxiliando
o homem, provavelmente seu pai, na colheita dos frutos para posterior confecção do
maracá.
Na figura 6, é possível identificar três indivíduos: um adulto, portando um maracá
e com uaí nas pernas; um segundo adulto unindo os frutos da árvore em uma linha,
provavelmente de algodão; o terceiro indivíduo, nitidamente uma criança do sexo
masculino, está auxiliando o segundo adulto na confecção do instrumento. A criança
aparenta estar com os braços flexionados segurando um uaí parcialmente confeccionado.
A criança, nas imagens 2 e 6, seria um Kunumy, entre sete e quinze anos,
aproximadamente, pois era nesta fase que os indivíduos do sexo masculino acompanhavam
os pais, aprendendo os conhecimentos necessários à vida social.
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4. Conclusão
As análises aqui feitas demonstrariam um “saber-fazer” entre os Tupinambá: a
transmissão dos conhecimentos necessários à confecção dos instrumentos musicais pelos
mais velhos aos mais novos, transmissão iniciada na infância, assim como proposto por
Duarte (op. cit., loc. cit.), Não compreendi este parágrafo. Soa-me truncado.
Ao falar da importância dos objetos musicais dos Apinayé, bem como da
transmissão do conhecimento em relação à sua confecção de como confeccioná-los,
Rodrigues aponta de que modo estes artefatos “fazem parte da manutenção social e
sobrenatural e do fortalecimento cultural deste povo” (op. cit., p. 194).
A partir da leitura das fontes sobre os Tupinambá que revelam alguns aspectos do
saber-fazer os instrumentos musicais, fica claro que entre Apinayé (RODRIGUES, op. cit.,
loc. cit.), assim como entre os Tupinambá os instrumentos musicais faziam parte da
manutenção social e sobrenatural, bem como do fortalecimento cultural deste povo.
Referências
DALLANHOL, Kátia Maria Bianchini. Jeroky e Jerojy: por uma antropologia da música
entre os Mbyá-Guarani do Morro dos Cavalos. 153f. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social). Departamento de Antropologia, Universidade Federal de Santa
Cantaria, Florianópolis, 2002.
DUARTE, Edir Lobato. Instrumentos musicais indígenas: a arte e a coleção etnográfica
Curt Nimuendaju do Museu Paraense Emílio Goeldi. Belém: Fundação Carlos Gomes:
Museu Paraense Emílio Goeldi: Imprensa Oficial do Estado, 2014.
FERNANDES, Florestan. A organização dos Tupinambá. São Paulo: HUICITEC, 1989.
. Aspectos da educação na sociedade Tupinambá. In: SCHADEN, Egon
(Org.). Leituras de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia editorial nacional, 1976. p.
63-86.
IZIKOWITZ, Karl Gustave. Musical and other sound instruments of the South America
Indians. Gotenburgo: Elander Boktryckeri Aktiebolag, 1935.
LÉRY, Jean. Viagem à terra do Brasil. Tradução integral e notas de Sérgio Milliet segundo
a edição de Paul Gaffárel, com o Colóquio na língua brasílica e notas tupinológicas de
Plínio Ayrosa. Biblioteca Do Exército - Editora, 1961.
MENEZES BASTOS, Rafael José de. A musicológica Kamayurá: para uma antropologia
da comunicação no Alto Xingú. 2ª ed. Florianópolis: UFSC, 1999.
MÉTRAUX, Alfred. A religião dos Tupinambás. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1979.
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MONTARDO, Deise Lucy Oliveira. Através do mbaraka: música, dança e xamanismo
Guarani. 277f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
PIEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. O canto do kawoká: música, cosmologia e filosofia
entre os Wauja do alto Xingu. 254f. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Cantarina, Santa Catarina, 2004.
RODRIGUES, Walace. O processo de ensino-aprendizagem Apinayé através da confecção
de seus instrumentos musicais. 240f. Tese (Doutorado em Humanidades). Faculdade de
Ciências Humanas, Universidade de Leiden, Leiden, Holanda, 2015.
STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. Versão do texto de Marpurgo de 1557 por Alberto
Löforen. Revista e anotada por Theodoro Sampaio. Rio de Janeiro: Officina Industrial
Graphica, 1930.
STEIN, Marília Raquel Albornoz. Kyringüé mboraí: os cantos das crianças e a cosmosônica Mbyá-Guarani. Tese (Doutorado em Música). 309f. Programa de Pós-Graduação
em Música, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
THÉVET, André. Les singularitez de la France antarctique. Paris: Chez les Heritiers de
Maurice de la Porte, 1558.
. As singularidades da França antártica. Tradução de Eugênio Amado. Belo
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VEIGA, Manuel Vicente Ribeiro. Toward a Brazilian Ethnomusicology: Amerindian
phases. University of California, Los Angeles. In: BLANCO, Pablo Sotuyo (org.) et. al.
Por uma etnomusicologia brasileira: festschrift Manuel Veiga. Universidade Federal da
Bahia. Programa de Pós-Graduação em Música. Bahia, 2004.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1986.
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SESSÃO 4
Coordenação: Jucélia Henderson
A engenharia de som e a autoria da obra fonográfica em música popular.
Ricardo Smith
UFPA- [email protected]
Sonia Chada
[email protected]
Resumo: O presente artigo problematiza questões a respeito da autoria e de classificação do fonograma como
uma forma autônoma de expressão musical, levando em conta a atuação dos procedimentos da engenharia de
som e a maneira como os mesmos contribuem para o resultado estético do produto em questão.
Palavras-chave: Engenharia de som. Produto fonográfico. Música popular.
1. A Arte da Gravação
A motivação inicial deste artigo partiu da reflexão do autor acerca de suas
atividades como compositor, músico e produtor musical em estúdio de gravação;
observando as complexas relações entre essas funções quanto ao resultado final da obra
fonográfica. Entende-se por fonograma toda fixação de sons de uma execução ou
interpretação ou de outros sons, de ou de uma representação de sons que não seja uma
fixação incluída em uma obra audiovisual (cf.inciso IX do art. 5º da Lei 9.610/98 – Lei
Autoral). Este projeto tem como propósito, observar a atuação da “engenharia de som”,
termo referido aqui, a técnica aplicada nos métodos de gravação, edição e manipulação do
som, em relação à produção musical da indústria “fonográfica”, destinada aos grandes
meios de comunicação.
Para um melhor entendimento do assunto em questão, precisamos primeiramente
compreender a “obra” fonográfica como uma expressão de arte autônoma e não uma mera
reprodução (cópia) de uma performance musical:
A partir do final do século XIX, a invenção e o desenvolvimento de novos meios
e instrumentos de reprodução, transmissão e produção de sons passam a alterar
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profundamente a percepção sonora (incluindo-se a musical), que desde então
deixa de estar intrinsecamente ligada ao aqui-e-agora dos eventos sonoros. Estas
grandes transformações – tanto tecnológicas quanto perceptivas – podem ser
unificadas através de uma característica comum: a escuta mediada por altofalantes. (FREIRE, 2004, p.46).
Vários autores se manifestaram quanto a difusão da música por meio de aparelhos.
Pierre Schaeffer discorre amplamente sobre o assunto, declarando que essa reprodução
causa distorções e mutilações na maneira como os sons são percebidos, ficando muito
aquém da manifestação original, afirmando que “é impossível ao cinema e ao rádio, não
mudar alguma coisa no objeto que se incumbem não só de imitar, mas de
transmitir”.(SCHAEFFER,
2010,p.63).
Walter
Benjamin
(1955),
contesta
a
reprodutibilidade da obra de arte em função da sua autenticidade, a ausência do elemento
“aqui e agora” da obra de arte, a destruição de sua “aura”, uma figura singular, composta
de elementos espaciais e temporais. O fato da gravação musical não ser aceita como arte
para alguns autores, devido a sua incapacidade de reproduzir todas as nuances de uma
performance ao vivo, pode nos levar a conclusão de que não seria essa a cópia, a repetição
da prática musical tradicional, sua função, e sim, se fazer valer como instrumento de uma
expressão totalmente nova.
Essa técnica, traz consigo todo o tipo de deformações e limitações. Não se
conseguiu ainda extrair dela nem possibilidade nem forma, tudo o que ela
parecia prometer revela-se decepcionante: ela deveria renovar tudo; só é capaz
de uma imitação lamentável. (SCHAEFFER, 2010, p.53).
É claro que essa renovação, citada por Schaeffer, chegou, na forma de sua música
concreta, através de seus conceitos de acusmática1, e escuta reduzida.
Através do conhecimento dessas tecnologias (engenharia áudio visual)
foi
permitido a consolidação do rádio e do cinema como os grandes meios de comunicação, a
disseminação da “indústria cultural”, transformando a arte em produto, sujeita às leis de
mercado (ADORNO, HORKHEIMER, 1995, p.63), preparando o terreno para o que veio a
se tornar a “música popular”. Vale ressaltar também, a diferença entre música ao vivo e
gravada (fonograma). A primeira acontece no tempo e no espaço a partir da interação entre
um músico, seu instrumento, o ambiente e o ouvinte, uma vez que, o gestual, a intenção do
movimento, se faz presente na performance ao vivo. A segunda é a execução através do
alto-falante de uma “imagem sonora” capturada (gravada) a partir de uma execução ao
vivo, logo, a arte da produção fonográfica consiste justamente nos processos de captura e
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manipulação do som, resultando no que se pode chamar de obra fonográfica. Para Macedo
(2007), os processos de produção em estúdio sofreram diversas modificações ao longo da
história da indústria fonográfica, estando intimamente ligado ao desenvolvimento das
tecnologias de produção e reprodução do som, um exemplo disso são os primeiros
gravadores de som que não permitiam muita interferência da técnica em relação ao
material gravado.
Com o surgimento da fita magnética, o processo de gravação foi se tornando
cada vez mais dependente de operações realizadas após o registro do som. Em
primeiro lugar, permitiu que se fizessem edições de gravações realizadas em
diferentes momentos, selecionando os melhores trechos de cada take, para
montar a versão definitiva. O próximo passo foi dado pelo surgimento do
overdub – ou overdubbing –, técnica que possibilita “gravar um novo material,
ao mesmo tempo que se ouve (sem apagar) o material já gravado. Em seguida
vieram os gravadores multipistas, ou multitrack, que permitem que cada
instrumento seja gravado independentemente. Esta técnica ofereceu uma grande
flexibilidade ao processo de produção, possibilitando que várias decisões, antes
tomadas durante a gravação, pudessem ser adiadas para outras fases do processo:
a edição, a mixagem e a masterização. (MACEDO, 2007, p. 11)
Nesta óptica, o registro fonográfico existe em virtude da tecnologia. O som que se
ouve saindo dos alto-falantes é um ponto de vista, um “enquadramento” proporcionado
pelo microfone, em relação à execução que deu origem a gravação. Partindo desse material
pode-se alterar seus parâmetros sonoros. Cabe à engenharia de som definir o aspecto, a
sonoridade geral da obra através de procedimentos como: edição; corte, seleção e até
ajustes de tempo e afinação das partes gravadas com o objetivo de montar uma versão
definitiva, equalização; realce e/ou supressão de determinadas frequências, compressão;
controle da dinâmica, reverberação; ambiência. Interessante observar que de alguma
maneira essa manipulação do som gravado, se assemelha as práticas de um compositor de
música concreta, ou eletroacústica.
Tanto a arte da composição quanto a da engenharia de som estão sujeitas a
criatividade e a reflexões analíticas em suas respectivas funções. Se à primeira cabe a
elaboração das melodias, ritmo, harmonia, poema, ou seja, do “conteúdo” apresentado no
referido produto, à segunda compete a organização, o controle de cada elemento da peça
musical, a equalização ideal dos instrumentos, elegendo hierarquias de timbre, de
intensidade, até de espaço, dentro da limitada “tela” bidimensional proporcionada pelos
alto-falantes. É da engenharia de som, a responsabilidade da “impressão estética” do
produto fonográfico, que transmitirá a marca sonora da obra logo nos primeiros momentos
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de audição, despertando o interesse do ouvinte (um consumidor em potencial), agregando o
sentido do conteúdo.
Entendendo o produto fonográfico como obra, na qual, muitos de seus atributos
advêm da manipulação da engenharia de som, o uso dessas técnicas torna-se um
instrumento pelo qual se pode interagir com a imagem sonora de uma composição, cabe a
reflexão quanto à possibilidade daquele que se vale desse instrumento, seja produtor e/ou
engenheiro de som, assumir o status de interprete em relação a obra. Ainda, cabe expor que
a manipulação do material sonoro sugerindo o caráter de seu conteúdo, lhe atribuindo até
“qualidade”, é o objetivo da obra fonográfica, e, ocorre em um nível tão abrangente, por
parte da engenharia de som, que à esta poderia se creditar a coautoria da obra em questão.
2. Autoria
Se faz de grande relevância, visto que, a abordagem principal questiona os
conceitos em relação à própria definição de obra fonográfica, incluindo sua dissociação,
quanto à performance ao vivo.
(...) já não pode haver mais dúvidas de que as pré-condições para o
desenvolvimento de um gênero artístico independente de igual estatura estão
presentes aqui – um gênero que irá muito além de uma “reprodução” mais ou
menos perfeita de conquistas artísticas anteriores (...). (WEILL apud IAZZETA,
2009, p. 18)
Gravação e concerto são coisas diferentes, que jamais devem se misturar.
(PFEIFFER apud KATZ, 2005, p. 07). A reflexão sobre a autoria da obra fonográfica
conduz diretamente à questão da propriedade intelectual da obra. Uma vez se entendendo
que a engenharia de som, como atividade artística, chega a níveis comparados aos de
autoria e interpretação em relação à obra fonográfica.
A primeira grande mudança trazida pela gravação elétrica foi que “a máquina de
gravação podia agora ser retirada do mesmo espaço ocupado pelos executantes,
criando assim o design do estúdio de gravação moderno, com sua sala de
controle separada, que se tornou o domínio do engenheiro”. Mas o principal foi
que “não demorou muito para que se tornasse possível usar vários microfones e
mixá-los durante a gravação, compensando assim, como então se dizia, os
desequilíbrios.” Assim surgiu “a ideia de reprodução do som como criação de
uma imagem, uma forma de projeção como o cinema: em outras palavras, uma
forma de ilusão”. (CHANAN. 1995, p. 26).
Ainda sobre os procedimentos pertinentes à engenharia de som:
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Os procedimentos técnicos de gravação propiciaram o surgimento de uma nova
modalidade de reprodução musical, que poderia ser caracterizada como
transmissão (ou tradição) aural. Nela não só os ouvintes passam a ter um contato
direto e quase exclusivo com gravações, como também as obras musicais passam
a portar uma arca sonora específica, definida em estúdio. Nessa situação, o
trabalho de intérpretes, arranjadores e técnicos é mais valorizado e tem mais
visibilidade que o do próprio compositor. (FREIRE, 2004, p. 17).
Os procedimentos da engenharia de som foram se transformando com a evolução
das tecnologias de gravação. Proporcionando uma intervenção cada vez mais radical no
processamento dos sinais gravados.
A adoção de gravadores com fita magnética pelos estúdios de gravação no final
dos anos 1940 forneceu novas ferramentas para a “construção” de uma
performance musical. Com a fita abriram-se as possibilidades de corte e
montagem de trechos de diferentes execuções de uma mesma obra,
procedimentos que passaram a contribuir para a construção de uma execução
musical perfeita. Segundo Glenn Gould, “a grande maioria das gravações atuais
consiste em uma coleção de segmentos de fita com durações variáveis a partir de
um vigésimo de segundo”. Esta prática altera substancialmente a execução
musical voltada para a gravação, que passa a se concentrar não mais na obra
completa, e sim em seus trechos. Mas mudanças significativas na prática
instrumental já podem ser detectadas mesmo antes da utilização de gravadores
com fitas. (FREIRE, 2004, p 86)
Cabe àqueles artistas empenhados na arte de combinar os sons - que
invariavelmente se fazem valer de meios fonográficos em virtude da divulgação de suas
produções, e que por ventura não se depararam conscientemente com as questões relativas
à engenharia de som- reflexões no tocante à esses procedimentos em relação ao resultado
estético final de seu trabalho. Já a partir do final da década de 1920 estas questões estão
presentes dentro das escolas de música; começa-se também a pensar em uma música
"radiofônica", que alimente diretamente o aparelho emissor (...). (FREIRE, 2004, p. 92)
Compositores descobriram novas fontes de inspiração musical através das
gravações; eles descobriram o drama timbrístico, possibilidades rítmicas, e
contrapontística, passando a tratar o som gravado como matéria-prima e os
equipamentos de reprodução como instrumentos musicais; e através de
gravações, alcançaram ouvintes inacessíveis. Finalmente, a própria noção de
beleza musical e do que constitui uma vida musical se alteraram com a presença
de gravação. (KATZ, 2005, p.53).
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Referências
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Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (primeira
versão, 1935). Walter Benjamin: Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política, pp.
165-196. São Paulo: Brasiliense, 1985. Ensaio escrito originalmente em alemão. Tradução
de Sérgio Paulo Rouanet.
BURGESS, Richard J. A Arte de Produzir Música. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002.
CHANAN, Michael. Repeated Takes: a short history of recording and ist effects on music.
London: Verso, 1995, p. 26
FREIRE (Garcia), Sérgio. Alto-, alter-, auto-falantes. Concertos eletroacústicos e o ao vivo
musical. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). São Paulo: PUC/SP, 2004.
IAZZETTA, Fernando. Música e Mediação Tecnológica. São Paulo: Perspectiva, 2009.
MACEDO, Frederico. O processo de produção musical na indústria fonográfica: questões
técnicas e musicais envolvidas no processo de produção musical em estúdio. Música e
Tecnologia. Rio de Janeiro, v. 11, n. 94, set. 2007.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo:
Cultrix, 1969.
RATTON, Miguel. Dicionário de áudio e tecnologia musical. Rio de Janeiro: Editora
Música e Tecnologia, 2004.
SCHAEFFER, Pierre. [1966] Tratado de los objetos musicais: ensaio interdisciplinar.
Madrid: Alianza, 1988. [version abreviada
SCHAEFFER, Pierre. Ensaio sobre o rádio e o cinema: Estética e técnica das artes-relé
1941-1942. Tradução de Carlos Palombini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
SCHAFER, Murray [1986]. O Ouvido Pensante.Trad. Marisa Trench Fonterrada. São
Paulo: UNESP, 1991.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Universo de si: o canto e a fotografia como fontes de identidade.
Yvana Crizanto
Universidade Federal do Pará - [email protected]
Resumo: Os sons e imagens do próprio corpo, mesmo aquelas já esquecidas, fazem parte do que somos. Um
passeio pela própria identidade é a Experimentação de Canto e Fotografia – Universo de Si, um encontro e os
seus diálogos com o ser. Como você vê a si mesmo? O que canta no chuveiro? Como fotografa? Como é seu
café da manhã? Como fazer fotografia sem uma câmera? Como é a música para você? De onde vem a luz?
Trata-se de uma experiência em construção por meio de oficina experimental realizada em espaço de arte
independente de Belém - o Casulo Cultural - reunindo fotógrafos, jornalistas, educadores e artistas
interessados na busca de possibilidades expressivas que habitam entre a imagem e o som. Os encontros
ocorrem semanalmente, nos meses de abril e maio deste ano, para uma vivência com o canto e fotografia sob
a perspectiva da identidade. Temas como paisagens sonoras e autorretrato, além de técnicas de canto e
fotografia, são utilizados em dinâmicas, conversas teóricas e práticas das duas expressões de forma a motivar
um diálogo com a individualidade. Durante o processo surgem poesias, músicas, imagens, gravações de
áudio que, de alguma forma, representam a identidade de cada um, como forma de compartilhar o seu ser
com os outros. Um mostra criativa está prevista para o final da experimentação, para trocas com o público.
Palavras-chave: Canto. Fotografia. Identidade.
Objetivos
Esta proposta tem como objetivo geral uma reflexão sobre a própria identidade, a
partir das expressões do canto e da fotografia. Como objetivos específicos promover a
difusão da criação artística como forma de reflexão sobre identidade, colocar em pauta o
saber teórico produzido de forma independente como forma de contribuição à produção
acadêmica nas universidades e promover processos criativos livres.
Metodologia
A oficina experimental realiza encontros semanais, com foco em dinâmicas e
conceitos das expressões em estudo, o canto e a fotografia. Trata-se de uma vivência
coletiva abordando produções individuais, resultados de reflexões acerca da identidade.
Para a experimentação foram convidadas a artista visual e professora de Artes Visuais
Renata Aguiar, e a professora de canto Angela Rika, como forma de abordar técnicas de
canto e fotografia junto às dinâmicas de descoberta de identidade.
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O plano de trabalho:
2.1. Reflexão/Provocação
Trata-se da fase de reconhecimento de si mesmo e do outro, por meio de dinâmicas
de contato, de gravações de áudio e experimentações de imagem. Cantar e ouvir a si
mesmo, se auto-fotografar, relatar experiências e impactos na própria perspectiva. Para esta
fase foram previstos: dinâmicas de apresentação, diálogo sobre “Paisagem Sonora” e “A
fotografia como revelação de si mesmo (Autoretrato)”, dinâmicas sobre “Luz”, “A voz
executa o trabalho do Ser Humano - Diagnóstico de tipos de vozes”, “Cantar com voz,
corpo e alma”, exercícios de respiração diafragmática. De prática individual houve
gravações de paisagens sonoras e do próprio canto, e produção de autorretrato.
2.2 Produção artística
Vivências dinâmicas são seguidas de momentos de livre criação artística do canto e
da imagem, em momentos individuais e coletivos, de modo a construir juntos a mostra
criativa que encerra a experimentação com pesquisa de repertório, construção de ideias,
curadoria de imagens.
2. 3. Compartilhamento
Uma mostra criativa será realizada ao final da oficina de experimentação de modo a
compartilhar o processo criativo e os resultados. Para isso será realizada uma performance
do grupo, assim como uma exibição multissensorial de todo o material produzido durante a
vivência, em canto e fotografia.
A música, o corpo, a imagem: elementos de identidade
Os sons e imagens do próprio corpo, mesmo aquelas já esquecidas, fazem parte do
que somos. Um passeio pela própria identidade é a Experimentação de Canto e Fotografia,
uma experiência em andamento, que propõe um encontro e os seus diálogos com o ser, o
universo de si mesmo. Voltado para a descoberta da voz e do olhar, a iniciativa se propõe a
utilizar de recursos técnicos, mas também intuitivos e de visão subjetiva. Isso tem movido
a proponente nas suas vivências mais recentes com a música e a fotografia, mas também
em diálogos mais remotos, como com a infância em que cantava e registrava o mundo sem
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compromissos estéticos. A oficina é uma aventura de expressão, que está sendo registrada
em áudios e imagens, para uma posterior experiência sensorial.
A experimentação do som x imagem é uma proposta alinhada ao nosso tempo em
que as culturas digitais superlativam a imagem, e possibilitam uma onda de informações
constantes e instantâneas. Com o aparato de dispositivos móveis que mantem a todos
conectados sempre, o indivíduo é levado a confrontar-se cada vez menos com a voz, com o
contato direto, com os sons espalhados no ambiente, com a luz que não se vê de olhos
abertos. Assim, a experimentação coloca em paralelos o som e imagem, duas expressões de
naturezas diversas:
A audição não é como a visão. O que é visto pode ser abolido pelas pálpebras,
pode ser impedido pelo paravento ou pelo reposteiro, pode se tornar
imediatamente inacessível pela muralha. O que é orelha não conhece nem
pálpebras, nem paraventos, nem reposteiro, nem muralhas. Indelimitável, dele
ninguém pode se proteger. (QUIGNARD, 1996, p. 65.)
3.1. A identidade e o som: multiplicidade e vibração
A experiência das relações, do compartilhamento, do enfrentamento, de ver-se
como ser complexo integrado apresentam-se nesta proposta como ambiente favorável à
expressão individual: um contexto plural e multidisciplinar proporcionado pelo canto e a
fotografia. O fato de estar exteriormente “protegido pelas formas sociais (...), não implica
que esteja protegido da multiplicidade interior que o cinde intimamente e o impele a voltar
ao desvio que representa a identidade com o mundo exterior”. (JUNG, 1961, p. 408.). No
próprio corpo e no mundo externo existe o se chama de som.
Qualquer coisa que se mova, em nosso mundo, vibra o ar. Caso ela se mova de
modo a oscilar mais de dezesseis vezes por segundo esse movimento é ouvido
como som. O mundo então está cheio de sons. Ouça. Abertamente atento a tudo
que estiver vibrando, ouça. (SCHAFER, 1991, p.124.)
O despertar da voz no corpo e como expressão de si move diversas dinâmicas ao
longo da experimentação, como formas de provocar a audição destes sons, reconhecê-los,
relacioná-los e observar o impacto que causam na construção da própria identidade e
convívio social. Quais seriam os primeiros ruídos e imagens que registramos conscientes e
quais emoções trazem consigo. Em seu “pequeno tratado”, Pascoal Quignard (1996) se
refere a ”panos” que envolvem antigas vozes apagadas, esquecidas, inaudíveis até para si
mesmo: o canto, o som e a fala.
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Nós envolvemos de panos uma nudez sonora extremamente ferida, infantil, que
permanece sem expressão no fundo de nós mesmos. (...) Com o auxílio desses
panos, do mesmo modo que tentamos subtrair aos ouvidos alheios a maioria dos
ruídos do nosso corpo, subtraímos ao nosso próprio ouvido alguns sons e alguns
gemidos mais antigos. (QUIGNARD, 1996, p. 9.)
O exercício de respiração, no canto, é um retorno às origens. É despertar para os
sons de nós mesmos. A hora marcada, o trânsito, os alertas no celular, os prazos, o frisson
da vida moderna, mas também nossos costumes e influências a partir do ambiente que nos
circunda, transformam nossa respiração e aquele ritmo inicial. Antes embalada pelo
diafragma, transferimos nossa respiração essencialmente para peito, os pulmões, e
passamos a respirar na ansiedade, no tempo que não para. É comum ao iniciar exercícios
sentir uma tontura, um esforço para retornar à nossa respiração natural. A música que
vamos construindo ao longo da vida traz muito de nossas relações, do entorno social e
cultural, da mesma forma como habilidades e o gosto musical de uma banda são uma
convenção da sua própria sociedade.
A música não está sujeita a regras arbitrárias como os jogos: tem muito a
fazer com sentimentos humanos e experiências na sociedade, muito
frequentemente padrões são gerados pelas explosões surpreendentes de atividade
mental inconsciente. Muitos dos processos musicais essenciais, senão todos,
estão na constituição do corpo humano e em padrões de interação entre corpos
humanos na sociedade. Consequentemente, toda a música é, estrutural e
funcionalmente, música popular.132 (BLACKING, 2006, p.25)
A imagem e o som: paisagens sonoras e transdisciplinaridades
A sonoridade do ambiente e do próprio corpo cria paisagens. Fechando os olhos é
possível perceber sons com outra perspectiva. A oficina experimental está dispondo de
dinâmicas que interpõem a percepção do que se vê a partir do que se ouve. Muito dessas
técnicas foi inspirado em vivências na Associação Fotoativa, na oficina De Olhos
Vendados e no grupo de trabalho Fototaxia, em busca do Elo Perdido, este último voltado
para educadores e multiplicadores desse conhecimento.
A luz como elemento vital e objeto de estudo propicia leituras e abordagens
transversais que potencializam a implementação de práticas pedagógicas
transdisciplinares, que contribuem na formação de pessoas
mais
sensíveis, estimuladas a perceber o meio e que possam buscar soluções aos
problemas do cotidiano com criatividade. (SITE FOTOATIVA.ORG, 2016)
132 Tradução
de Yvana Crizanto
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Assim, o desafio de conectar as expressões de canto e fotografia se encontrou na
identidade de si, no estado natural do ser humano, ser criativo e potência de energia.
Quanto mais eu me envolvo com educação musical, mais percebo a inaturalidade
básica das formas de arte existentes, cada uma utilizando um conjunto de
receptores sensitivos, com a exclusão de todos os outros. As fantásticas
exigências feitas para se alcançar a virtuosidade, em qualquer forma de arte, têm
resultado em realizações abstratas, às quais podemos aplicar o tema “inatural”,
uma vez que não correspondem à vida, tal como a experimentamos nessa Terra.
Beethoven não perdeu a audição, como comumente se supõe – perdeu a visão.
São os pintores cujos trabalhos povoam os espaços silenciosos dos museus, que
perderam a audição. (SCHAFER, 1991, p.290.)
Em uma infinidade de receptores sensitivos abertos ao artista, porque não se
permitir ao “inatural”? Pluralidade. Sinestesia. Quando somos crianças, bem coloca
Schafer, arte é vida e vida é arte. Porém, quando essas crianças vão à escola passam a
tratar expressões artísticas conhecidas como em porções: música pelas manhãs, e pintura às
terças pela tarde. O pensamento aqui então passa a ser arte é arte, vida é vida. Até que
ponto estamos limitando possibilidades de sentidos em nós mesmo? Na nossa vida e
criação artística? Nossa arte-vida e vida-arte.
4. Resultados parciais
4.1. Primeiro encontro
Dinâmicas de apresentação que valorizaram os sentidos da audição e tato. De olhos
vendados o grupo contou histórias sobre objetos de afeto e experimentou reconhecer o
outro pelo toque. “Sem a fala e a visão, tivemos de tocar o outro, respeitando seus limites”,
afirmou o antropólogo Rafael Salles.
Imagem 2 – Dinâmica de reconhecimento do outro pelo tato
Fotografia: Yvana Crizanto (2016)
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O encontro tratou, em segundo momento, de paisagens sonoras, construídas a partir
de imagens construídas a partir do que se ouve. “Gravei o vendedor de tapioca que passa
todos os dias às cinco da tarde, diz Shamara Fragoso, jornalista e fotógrafa. O grupo
compôs pinturas utilizando a técnica pincel de luz, a partir do tema “sua paisagem sonora”.
Imagem 3: Pinturas em pincel de luz durante a oficina.
Fotografia: Yvana Crizanto (2016)
4.2. Segundo encontro
Quem somos? O que faz parte de nós? Como nos vemos no espelho? E como nos
veem? Para iniciar nossos diálogos sobre a identidade, o nosso segundo encontro teve
como pauta as nossas construções pessoais. Em um diálogo sobre autorretrato, o grupo foi
convidado a produzí-lo, individualmente durante a semana, para posteriormente
compartilhar com todos. A proposta foi superar limites para mostrar-se: quem sou eu?
“Conhecer-se, explorar-se, sair da sua zona de conforto e encontrar o outro, confrontar-se
com o inesperado. O incômodo pela exposição de si foi recompensada pela explosão de
sensações e autoconhecimento”, afirma a advogada e cantora, Ellen Cruz. Assim, algumas
imagens foram produzidas e produzidas e foram objetos de conversas do próximo
encontro. Aqui algumas delas:
Imagem 4: Autorretrato de Nathália Lobato (2016)
Imagem 5: Autorretrato de Helton Lobão (2016)
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4.3. Terceiro encontro
Deitados no chão, nos barulhos do próprio corpo, ouvimos e sentimos nossa
respiração. Sentindo o diafragma, sentido a barriga subir e descer, em doses profundas de
ar. Um retornou às origens do respirar, de quando nascemos e ganhamos um ritmo que
toma outras formas ao longo da vida: cada um tem um ritmo só seu ao nascer.
Os sons que a criança ouve não nascem no instante do seu nascimento. Muito
tempo antes que ela possa ser seu emissor, ela começa obedecendo à sonata
materna. (…) A polirritmia física, cardíaca, depois gritante e respiratória, depois
esfaimada e chorosa, depois motriz e balbuciante, depois linguística é tanto mais
adquirida quanto parece ser espontânea. QUIGNARD, 1999, p.64.
O antes também diz muito de nós mesmos, quando conhecemos o mundo sonoro
sem a capacidade de expressão de retorno, sem apreensão ou qualquer retorno verbal.
Respirando, o grupo deu o ponto de partida para o conhecimento da própria voz e mais, o
ouvir o outro, cantar em conjunto.
Imagem 6: Exercício de respirar e sentir a respiração do outro.
Fotografia: Yvana Crizanto (2016)
4.4. Quarto encontro
Os participantes foram convidados a contar ao outro, divididos em pares, qual a
canção de seu afeto, aquela que traz relações com sentimentos e que fazem parte de si.
Dessa forma, o grupo experimentou ouvir na boca do outro o canto de sua canção de afeto.
“Eram canções de ninar que cantava para meus filhos, momentos especiais que tenho
vivido nos últimos anos”, afirma a professora de Arte, Walquiria Guedes, participante da
oficina.
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Imagem 5: Troca de canções de afeto em dinâmica
Fotografias: Yvana Crizanto e Angela Rika (2016)
No quarto encontro também houve a apresentação de uma composição musical feita
pela estudante de graduação em Música, Nathália Lobato, homônimo à oficina
experimental:
Acho engraçado o homem descobrir outras galáxias/ Sabe que tem vida em marte e
pisou na lua/ Mas existe um universo tão imenso a descobrir/ E a distância daqui pra lá/
Basta os olhos fechar/ O universo de si/ O universo de mim/ Um universo/ Ao inverso
tentamos nos descobrir/ Mas a reverso é o caminho/ Escrevo em versos sobre esse mundo/
Que como astronauta estou a descobrir/ O universo de si/ O universo de mim/ O universo
5. Considerações finais
Este projeto é um convite a perder-se no complexo da própria identidade. Quando
se fala da alma humana e seus reflexos no universo concebido pelo que é possível ver pelos
raios de luz ou a vibração do ar, depara-se com o complexo e os limites do conhecimento a
seu respeito.
Também dizem que vivemos no mundo da complexidade e na sociedade do
conhecimento, mas raramente essas afirmações são desdobradas e multiplicadas
em análise que privilegiem as relações onde, quero crer, se estabelecem a
complexidade. Paradoxalmente, quanto mais falamos de complexidade e de
conhecimento (pelo menos nos muros da universidade), mais nos fechamos nos
escaninhos disciplinares, de época, de linguagem, de autor etc. Dessa maneira,
panoramas são reduzidos e a indiferença pelo horizonte impede, inclusive a
adequada percepção do território onde se habita. (MEDEIROS, 2012, p. 13)
Dessa forma, o saber acadêmico não deve ser a única referência, sobretudo quando
o assunto em pauta é arte. O estudo Universo de si: o canto e a fotografia como fontes de
identidade” tem sido linha paralela à experimentação, como forma de contribuição à
produção teórica sobre o assunto. Uma iniciativa independente que pretende interações as
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mais diversas com as universidades – participação em eventos acadêmicos, publicações,
etc. Essas contribuições são mais próximas da área de Etnomusicologia, a qual pretende-se
aprofundar conceitos e experimentações no sentido de mergulhar cada vez no universo da
própria identidade, a partir do que se ouve e vê. Além de mostra criativa com performance
musical-imagética, esta oficina poderá resultar ainda em uma versão compacta, possível de
realizar-se em escolas e comunidades, levando a arte e o saber acadêmico à esfera da
sociedade, de forma direta e próxima. Todo o processo é compartilhado via internet, aberto
ao público, em www.universodesi.wordpress.com
Referências:
BLACKING, John. Hay musica en el hombre? Edición Española. Madri: Alianza
Editorial, 2006.
FOTOATIVA.ORG. Disponível em: http://www.fotoativa.org.br/?page_id=3858. Fotoaxia
em busca do Elo Perdido. Acesso em: 01 mai. Fotoaxia em busca do Elo Perdido.
Veiculado em: 2014.
JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos e Reflexões. Edição Especial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2012.
LOBATO, Nathália. Disponível em: https://nathylobato.wordpress.com/. Universo de Si.
Acesso em: 01 mai. Universo de Si. Veiculado em: 20 abr 2016.
MEDEIROS, Afonso. A arte em seu labirinto. Belém: IAP, 2012.
QUIGNARD, Pascal. Ódio à música. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999.
SCHAFER, Murray. Ouvido Pensante. Edição brasileira. São Paulo : Fundação Editora da
Unesp, 1991.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Música Smart: um estudo etnográfico sobre a escuta musical em
dispositivos móveis
José Ruy Henderson Filho
UEPA – [email protected]
Resumo: Os avanços tecnológicos têm mudado significativamente as formas como as pessoas ouvem e se
relacionam com a música. A partir da criação do fonógrafo, em 1877, por Thomas Edison, quando foi
possível, pela primeira vez, apreciar músicas sem estar presente fisicamente no mesmo espaço que os
executantes, essa relação vem se modificando drasticamente. Desde os cilindros de cera até o armazenamento
virtual de áudio/música, passaram-se muitas outras formas de registro musical, como o disco de vinil, a fita
cassete, os CD´s e os leitores de mp3. Nos dias atuais, com a proliferação e popularização dos smartphones,
como se dá essa relação? Esta pesquisa visa compreender as mudanças ocasionadas pelo uso de smartphones
nas formas como as pessoas ouvem e se relacionam com a música.
Palavras-chave: música, tecnocultura, smartphone
1. Introdução
Este trabalho apresenta um projeto de pesquisa intitulado “Música Smart: um
estudo etnográfico sobre a escuta musical em dispositivos móveis”, que tem como objetivo
compreender como esses dispositivos são utilizados no processo de escuta musical de
jovens estudantes de música.
A pesquisa tem como base os estudos relacionados à Música e Tecnocultura, bem
como à Etnografia da Música (SEEGER, 2008). Para Andrew Ross (apud LYSLOFF e
GAY 2003, p. 2), tecnocultura “refere-se a comunidades e formas de prática cultural que
surgiram em consequência das mudanças na mídia e nas tecnologias da informação, formas
essas caracterizadas pela adaptação tecnológica, evasão, subversão ou resistência”. De uma
perspectiva etnomusicológica pode-se pensar a tecnocultura como um agente modificador
e modelador de práticas musicais contemporâneas. No entanto, Lysloff (2003, p. 238) vai
mais além, ao ver a tecnologia “não apenas como a intrusão do hardware científico sobre a
experiência ‘autêntica’, mas como um fenômeno cultural que permeia e informa quase
todos os aspectos da existência humana – inclusive formas de conhecimento e práticas
musicais”.
Segundo Caroso (2009), a Etnomusicologia passou a se interessar pela relação
música e tecnocultura ainda em 1995, quando a Society for Ethnomusicology (SEM)
apresentou, em seu encontro anual, uma pré-conferência com o tema “Music
and
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Technoculture”133. Com os avanços tecnológicos, associados ao aumento significativo e
constante das velocidades de acesso à Internet, dados audiovisuais com qualidade
tornaram-se possíveis, o que provocou a propagação de práticas musicais em comunidades
virtuais. Alguns autores (LANGE 2001; STEPNO 1998; KIBBY 2000; REILY 2003) já
vêm discutindo as modificações que ocorrem nas práticas musicais ocasionadas pelos
meios virtuais. No entanto, no Brasil, e mais especificamente no Pará, esse é um mundo
ainda pouco estudado, mas profícuo à pesquisa etnomusicológica.
Desde o final do século XIX, com a criação do primeiro dispositivo de gravação de
áudio (o fonógrafo), cada um dos que lhe sucederam vem mudando significativamente os
modos de escuta e fazer musical. Com a popularização dos smartphones, que são telefones
móveis com diferentes funções integradas, um novo cenário se configura. A cada dia,
novos aplicativos são desenvolvidos e disponibilizados aos usuários que buscam tirar
proveito de seus recursos, seja para entretenimento, estudo ou trabalho. A música não fica
de fora desse cenário. Há no mercado uma quantidade significativa de aplicativos
dedicados à área musical, de gravação, de reprodução, de treinamento auditivo, rítmico, de
edição de partituras, jogos, entre outros. A função de telefone passou a ser coadjuvante no
universo de funções que um dispositivo carrega. Os aplicativos de mensagens instantâneas,
que também permitem o envio de áudio, já superam em muito as ligações efetuadas pelo
usuário na função telefone. Compreender como o processo de escuta musical ocorre nesse
contexto tecnocultural é o interesse central desta pesquisa. A pesquisa encontra-se ainda
em fase inical de seu desenvolvimento, sendo apresentado aqui uma exploração inicial do
tema e suas perspectivas metodológicas.
O texto encontra-se dividido em três partes, sendo a primeira dedicada a um breve
panorama sobre a evolução dos dispositivos de gravação e reprodução sonora, desde a
criação do fonógrafo até o smartphone. Na sequencia, é apresentado o conceito de “música
smart”, termo utilizado para expressar a música que se escuta e se produz em dispositivos
móveis. A seguir, são apresentados os percursos metodológicos da pesquisa e, em seguida,
as considerações finais, onde são discutidas as possíveis contribuições da pesquisa.
133 Ver
em http://www.ethnomusicology.org/?page=Conf_Past
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
2. Do fonógrafo ao smartphone: o ouvinte e sua relação com a música
Os avanços tecnológicos têm mudado significativamente as formas como as
pessoas ouvem e se relacionam com a música. Desde a criação do fonógrafo, em 1877, por
Thomas Edison, quando foi possível, pela primeira vez, ouvir música sem estar presente
fisicamente no mesmo espaço em que os executantes estivessem, essa relação vem se
modificando drasticamente. Segundo Iazzetta (1997), a partir do fonógrafo, a “música
podia ser reproduzida em épocas e contextos totalmente diferentes daquele onde ela fora
gravada originalmente, eliminando assim aquilo que chamamos de condição de
performance”. Desde os cilindros de cera até o armazenamento virtual de áudio/música,
passaram-se muitas outras formas de registro musical, como o disco de vinil, a fita cassete,
os CD´s e os leitores de mp3.
De acordo com Gomes (2014), ao realizar uma análise cronológica do processo de
transformação dos meios de gravação e reprodução sonora desde a invenção do fonógrafo
até o MP3,
(...) fica evidente o modo como os avanços científicos e tecnológicos
impactaram e continuam impactando a música em todos os seus
aspectos e dimensões, gerando modelos estéticos e econômicos que
são continuamente reconstruídos ao longo do tempo (GOMES, 2014, p.
81).
O desenvolvimento das chamadas tecnologias móveis, destacando-se aqui os
smartphones, é um novo estágio desse processo evolutivo. Até durante a era dos discos de
vinil, a escuta de gravações musicais se restringia a espaços fixos, que dispunham de toca
discos, com pequena possibilidade de deslocamento de um local para outro utilizando-se as
vitrolas portáteis. Foi, no entanto, a partir dos toca-fitas portáteis (Walkman), lançados em
1979, que a música passou a acompanhar o ouvinte aonde quer que ele fosse. Desde então,
surgiram diferentes tecnologias que foram substituindo a fita cassete. Cinco anos após o
lançamento do toca-fitas portátil, surge o primeiro CD-Player portátil (Diskman). Mas foi
com o surgimento do formato de compressão digital de áudio, denominado mp3, que a
tecnologia móvel pode realmente expandir as possibilidades de escuta musical em
movimento, em qualquer lugar. Com o mp3 player, criado em 1998, as mídias físicas como
fita cassete e CD foram colocadas em desuso, principalmente na escuta musical móvel.
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Com o mp3, inicialmente criado com a intenção de comprimir o áudio para
possibilitar a transmissão pelas redes de dados limitadas em velocidade, e com a redução
gradual dos preços dos dispositivos reprodutores, iniciou-se um processo revolucionário na
escuta musical. Já em 1999, com o lançamento do primeiro celular com suporte ao formato
de áudio mp3, dá-se início ao processo de desenvolvimento de tecnologias móveis,
integrando diferentes funções e sendo colocadas à disposição do usuário. Com um celular
em mãos, era possível fazer/receber ligações e também ouvir música.
Também no final da década de 1990, começam a ser desenvolvidos os primeiros
smartphones (telefones inteligentes), e conforme foram evoluindo, em características e
funções, cada vez mais a música foi ganhando espaço nesse universo. Com a popularização
crescente desses aparelhos entre as diferentes camadas da sociedade, chama-nos atenção o
modo como as pessoas vêm fazendo uso dessas tecnologias para ouvir música.
É comum presenciarmos cenas do cotidiano em que as pessoas estejam com fones
de ouvido: caminhando, em uma viagem de ônibus, de avião, na sala de espera de clínicas
e hospitais, na sala de aula, e em muitos outros espaços e momentos. O que essas pessoas
escutam? Como escutam? Que tipos de músicas? Qual a função dessa escuta? Estas
questões orientam a pesquisa e definem os caminhos metodológicos a serem percorridos.
3. Música Smart
Smart é um adjetivo em inglês e cuja tradução para o português significa inteligente
ou esperto. O termo vem sendo associado a tudo aquilo que apresenta funções avançadas,
geralmente associadas a novas tecnologias e possibilidades de comunicação em rede. Com
base neste conceito, podemos encontrar as chamadas smart home, smart car, smart school,
entre tantas outras. Mas é o smartphone o conceito com o qual estamos mais
familiarizados, pois ele se encontra, cada vez mais presente, em nosso cotidiano.
O smartphone apresenta funções integradas em um mesmo aparelho, contemplando
computador, reprodutor de mídias, câmera fotográfica e de vídeo, localizador geográfico,
jogos, e é claro, o celular. A integração dessas diferentes funções em um único aparelho,
aliada ao custo de aquisição cada vez mais acessível à população, constituem motivos que
favoreceram a popularização dos smartphones.
Diante desse cenário smart, e o trazendo para o universo da música, podemos
perceber, em muitas situações, pessoas com seus fones de ouvido conectados a
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
smartphones. Mas, como é a relação do ouvinte com a música nesse contexto? Esta
pesquisa pretende desvendar as formas de ouvir e se relacionar com a música, delimitando
a pesquisa inicialmente aos estudantes da graduação em música, especialmente os
licenciandos. A pesquisa visa compreender o que esses estudantes escutam e quais os
gêneros e as funções dessa escuta. Ou seja, escutam com finalidade de aprendizagem?
Como estratégia para obter maior concentração? Como entretenimento?
A escuta musical, muitas vezes, pode estar associada à imagem, por meio de vídeos
que reproduzem performances musicais, disponíveis em sites de compartilhamento de
vídeos ou em aplicativos de dispositivos móveis para compartilhamento/reprodução de
vídeos e/ou músicas.
O conceito de música smart adotado neste trabalho faz referência a essa música que
se ouve e se produz por meio de dispositivos móveis; música que acompanha o ouvinte, e
até mesmo o músico executante ou o compositor, seja para onde for. Os recursos
tecnológicos digitais vêm proporicionando instrumentos digitais cada vez mais eficazes
para produção e reprodução musical móveis, marcando uma nova era da música.
É essa música, presente nos dispositivos, que interessa a esta pesquisa, por sua vez
focada no ouvinte e nos seus modos de escuta. Compreender esse universo, seus
significados, suas particularidades, implica num processo de diálogo com os atores nesse
cenário.
4. Percursos metodológicos
A pesquisa tem como foco um grupo de estudantes de um curso de graduação em
música que utilizam dispositivos móveis (smartphones) para ouvir e fazer música. O grupo
é constituído de alunos de duas turmas em meio de curso (5º/6º semestres)134. Tal escolha
partiu de um contato prévio com tais alunos, por ocasião de disciplina ministrada durante o
ano 2º semestre de 2015, e levando-se em conta, por parte dos alunos, a expressiva
utilização de smartphones com finalidade de reprodução de músicas.
Esta pesquisa faz uso da observação participante e da entrevista semi-estruturada. A
observação participante consiste na interação, descrição e interpretação dos fatos
observados. Com base nesta técnica, o pesquisador necessita de convivência direta com a
134 O
curso de licenciatura ao qual os alunos participantes da pesquisa estão vinculados possui um total de 8
semestres.
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“comunidade”, em favor de desenvolver a capacidade de alteridade e buscar conhecer e
entender, de maneira mais aprofundada possível, o contexto em que está inserido, as
relações hierárquicas de poder e a estrutura social e política. Consiste também de coleta de
material teórico com o objetivo de fundamentar a discussão sobre os achados da coleta de
dados empíricos.
As entrevistas serão realizadas concomitantemente às observações, uma vez que
buscar-se-á conhecer as formas por meio das quais os estudantes utilizam os dispositivos
móveis para suas atividades musicais, com ênfase na escuta. Ao dialogar com os
entrevistados, os mesmos discorrerão sobre o processo de escuta musical em seu
dispositivo, demonstrando e fazendo uso de aplicativos, sites entre outros recursos
possíveis. As entrevistas serão gravadas e transcritas, de modo a subsidiarem a
compreensão e a descrição, durante as entrevistas e observações, de todos os eventos. Por
conseguinte, serão também aproveitadas na escritura de relatórios de pesquisa e demais
textos escritos decorrentes desta investigação.
Consideracoes finais
Como já mencionado, a pesquisa encontra-se em fase inicial de desenvolvimento,
em que se realiza a exploração inicial do tema, definindo suas bases conceituais. Embora
não apresente ainda os dados a que se propõe investigar, este artigo se propôs a refletir
sobre os caminhos a serem percorridos, incluindo a definição de "música smart", que
fundamenta o trabalho em sua dimensão mais ampla. A partir desta exploração preliminar
será possível delinear o referencial teórico, que servirá de anteparo, por sua vez, à análise
dos dados coletados.
Referências
CAROSO, L. Por uma etnomusicologia no ciberespaço: extratextualidade, virtualidade e
materialidade. In: IV Congreso de la CiberSociedad, 2009. Anais... acessado em
10/04/2016. Disponível em: http://www.cibersociedad.net/congres2009/es/coms/por-umaetnomusicologia-no-ciberespaso-extratextualidade-virtualidade-e-materialidade/612/.
GOMES, Rodrigo M. Do Fonógrafo ao MP3: Algumas Reflexões sobre Música e
Tecnologia. Revista Brasileira de Estudos da Canção. Natal, n.5, jan-jun 2014. pp. 77-82.
Disponível em: www.rbec.ect.ufrn.br.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
IAZZETTA, Fernando . O Fonógrafo, o Computador e a Música na Universidade
Brasileira. In: X Encontro Nacional da ANPPOM, 1997, Goiânia, GO. Anais... Goiania:
ANPPOM, 1997. v. 1. p. 161-165.
KIBBY, Marjorie. 2000. Home on the Page: A Virtual Place of Music Community.
Popular Music 19, no. 1, pp. 91-100. http://www.jstor.org/stable/853713.
LANGE, Barbara. Hypermedia and Ethnomusicology. Ethnomusicology 45, no. 1, 2001,
pp. 132-149. Acesso em: 12/04/2016, disponível em: http://www.jstor.org/stable/852637.
LYSLOFF, René. Musical Community on the Internet: An On-line Ethnography. Cultural
Anthropology 18, no. 2, 2003, pp. 233-263.
LYSLOFF, René, e Leslie GAY. Introduction: Ethnomusicology in the Twenty-first
Century. In: René LYSLOFF e Leslie GAY, Music and Technoculture. Middletown:
Wesleyan University Press, 2003, pp. 1-22.
MOREL, Leo. Música e tecnologia: Um novo tempo, apesar dos perigos. Rio de Janeiro:
Azougue Editorial, 2010.
REILY, Suzel. Ethnomusicology and the Internet. Yearbook for Traditional Music 35,
2003,
pp.
187-192.
Acesso
em:
12/04/2016,
disponível
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http://www.jstor.org/stable/4149330.
STEPNO, Bob. You be the ethnomusicologist: Life in a virtual community of computermediated
Folk.
1998.
Acesso
em:
12/04/2016,
disponível
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http://www.stepno.com/unc/folktalk.html.
SEEGER, Anthony. Etnografia da música. Cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-348,
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TRIVINHO, E. 2007. Cibercultura e existência em tempo real. Contribuição para a crítica
do modus operandi de reprodução cultual da civilização midiática avançada. E-Compós, 9.
Acessado em: 10/04/2016, disponível em: http://www.compos.org.br/seer/index.php/ecompos/issue/view/9.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
A hierarquia como método: equidade na produção da música de
concerto, um relato etnográfico.
Hudson Cláudio Neres Lima
PPGM- UFRJ - [email protected]
José Alberto Salgado
Resumo: A pesquisa utiliza o método etnográfico para investigar a produção das temporadas de espetáculos
destinados à difusão da música de concerto e fundamentar a abertura de possíveis questões sobre suas
práticas, aplicação e relação entre os músicos de orquestra, mantenedores e a plateia. A metodologia é
composta por levantamento bibliográfico, que registra as práticas da música de concerto sob a perspectiva da
Antropologia e da Etnomusicologia, assim como através o olhar do pesquisador nativo, que documenta o
exercício das comissões artísticas e do público freqüentador dos espaços, nos quais estas manifestações são
exercidas. No diário de campo o contato direto com os membros de diversas orquestras sinfônicas da cidade
do Rio de Janeiro, foram observados discursos ligados ao mundo sinfônico na escuta do público ouvinte,
incluindo mantenedores. Colabora como ferramentas para a investigação em campo os conceitos de
"Mundos Artísticos" e "Tipos Sociais" de Howard S. Becker (1977), de “lugar” e “espaço” de Michel de
Certeau (1984), e as contribuições de Pierre Bourdieu (1989) em "As Formas de Capital" e o conceito de
biopoder, de Michael Focault (1970) em “História da Sexualidade vol. I. Este artigo pretende mostrar o
caminho teórico e metodológico percorrido na elaboração da investigação sobre as representações da música
de concerto e da difusão do trabalho através da experiência de profissionais que trabalham em instituições
públicas e privadas, naquilo que esta experiência abriu de possibilidade de um diálogo entre os diversos
espaços de interação, incluindo os virtuais. A trajetória profissional do pesquisador adquire relevância para
um pensamento reflexivo sobre os resultados parcialmente obtidos.
Palavras-chave: Etnografia. Música de concerto.Equidade
Introdução
Esta pesquisa pretende mostrar o caminho teórico e metodológico percorrido na
elaboração de uma investigação sobre representações da música de concerto, difusão do
trabalho, mantenedores e plateia, através da experiência de profissionais que trabalham em
instituições públicas e privadas, naquilo que esta experiência abriu de possibilidade de para
um diálogo entre a Etnomusicologia e a Antropologia a partir da trajetória profissional do
pesquisador. Pesquisar é uma forma de buscar conhecimentos, resolver problemas ou abrir
novas indagações. Vários são os caminhos possíveis quando se procura aquilo que se
pretende conhecer, o que implica diferentes pressupostos teóricos e
metodológicos.
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Portanto, compartilhar e explicitar as trilhas que o pesquisador percorreu até chegar aos
resultados, sempre provisórios, é parte fundamental desse processo investigativo.
O que é Música? A pergunta era irrelevante para um sujeito que no ano de 1997
trazia em suas mãos o sangue à mostra e os calos entre os dedos frutos das horas
exaustivas sobre as cordas de um violoncelo, instrumento à época disponibilizado por
empréstimo através de uma instituição pública. “Alegria, formosa centelha divina, filha do
Elíseo, Ébrios de fogo entramos em teu santuário celeste! Tua magia volta a unir o que o
costume rigorosamente dividiu.” (SCHILLER Friedrich, 1824) esta era a tradução mais fiel
do texto alemão escrito por Friedrich Schiller escutado pelas certezas que compreendia a
música de concerto alemã como o modelo mais importante para traduzir o que significava
a Música.
Marginal - pertencente ou relativo à margem - talvez fosse a palavra mais
apropriada a quem, através do seu percurso particular e sua singularidade, encontrasse o
exótico de um campo no qual a pluralidade de gêneros e manifestações era proibida. Um
efeito claro da humilhação é a morte da subjetividade. Homogeneizar era uma Lei na qual
todos os sujeitos deveriam estar inseridos, uma massa. Como os versos dos MC's Vinicius
e Andinho “Massa funkeira não me leve a mal, vem com paz e amor curtir o festival (...)
vamos todos fazer do mundo um lugar onde a paz e o amor possa reinar” (Ibdem,1994).
A gênese da pesquisa
Nas imediações do complexo da Pedreira, região da zona norte carioca, onde vigora
um coletivo de favelas cuja existência se faz através de poderes paralelos ao Estado, ouvese nas margens um micro rádio de pilhas sintonizado na única estação de rádio que à época
difundia Música de concerto. Soava daquele aparelho um "Óde alegria", "An Die Freude",
no dial do Rádio a sintonia na Rádio Mec. Misturavam-se as mais diversas polifonias de
uma zona periférica da cidade, coro e orquestra agrupavam-se na composição mais
complexa de sirenes, pagode e tiros; a escuta atenta treinava-se para ignorar o cotidiano, a
violência era apenas parte do cenário diário que incluía o aviltamento dos transportes
coletivos, os asfaltos mal pavimentados e o teatro distante. O programa acaba e no mesmo
dial Beethoven, muito generosamente, cede lugar a um Dvoràk, o violoncelista russo
Mistislav Rostropovich executa seu concerto em Si menor. Ao ouvinte não restava mais
dúvidas, seria um alemão forjado ou um russo cover, mas seria violoncelista.
Sua
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nacionalidade era apenas o detalhe supérfluo da qual a gênese já o fazia estrangeiro.
Inadequado. "Massa não me leve a mal", serei erudito e tocarei em uma Orquestra
Sinfônica.
Em 1997 a internet ainda engatinhava no Brasil, o acesso era escasso em seu
território, as informações eram recebidas com morosidade. Violoncelos não eram vendidos
na Rua da Carioca (famosa Rua do Centro da cidade do Rio de Janeiro, conhecida pelo
número abundante de lojas que comercializam instrumentos musicais). Nesse mesmo ano,
1997, o predestinado músico, ingressa em uma escola pública de formação técnica para
músicos: Escola de Música Villa-Lobos. Na instituição, após um semestre de formação
exclusivamente teórica, ingressa em uma fila na qual o destino era uma secretária efusiva
que anotava o instrumento escolhido pelos alunos para que pudessem cursá-lo no semestre
seguinte. Ao ser arguido, o músico regurgita a resposta mais passional que poderia dar:
violoncelo (mesmo após segundos de dúvida sobre a viola, pois monetariamente possuía
um valor menor, mais acessível).
Primeira aula. Os alunos procuram seus professores de instrumento pelos
corredores da instituição. O estudante é recebido por uma jovem senhora, olhos azuis e
vigor nas ações. A professora toma-lhe as mãos negras e observa atentamente: a anatomia
seria o destino. Segundos depois é ouvida uma sentença: "é, dá para tocar . Primeira aula
segunda-feira às 15h.” Sem o instrumento o estudante dependia do espaço, da instituição e
do instrumento por ela fornecido para ingressar nos primeiros passos. As aulas eram
coletivas e estudantes de classes sociais distintas reuniam-se ambiciosos por quaisquer
informações que pudessem dar-lhes a titulação "Músico". É relevante citar que nem todos
os alunos possuíam o mesmo tempo de aulas, pois este era distribuído diante do arbítrio do
docente, no qual o critério parecia escolher os mais qualificados para o exercício
profissional, critérios nos quais não dava prioridade ao empenho técnico na execução dos
instrumentos, mas o capital social acumulado, conceito cunhado por Pierre Bourdier em
“As Formas de Capital”. O uniforme de escola pública (que não era utilizado por todos)
garantia o acesso aos coletivos, que percorriam lotados pela Avenida Brasil, uma das
principais vias de acesso que liga a Zona Norte Carioca ao Centro. O desafio das aulas não
comportava apenas à predisposição ao aprendizado do instrumento, mas a capacidade de
cada sujeito portar um currículo familiar que lhe conferisse uma posição social condizente
com o lugar de futuro músico profissional.
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A professora de violoncelo, por ser regente, era a mesma que portava a chave para
ingresso na orquestra da instituição - uma pequena orquestra voltada para o ensino da
prática e leitura - seus integrantes eram os mais diversos, mas em sua maioria jovens em
busca de qualificação profissional. A instituição através de convênios promovia
intercâmbios, um deles dava como destino a França. Apenas alguns selecionados pela
instituição brasileira segundo critérios jamais esclarecidos pela comissão organizadora
geraram suspeitos de favorecimento. Música e preconceito não poderiam ser conceitos
consonantes, Música e violência pareciam conceitos desarmônicos. O percurso era longo,
era necessário alienar-se para seguir adiante no compromisso de não desafinar e o ritmo da
música nem sempre era condizente com o ritmo da vida.
Os instrumentos de cordas, vermelhos, fabricados na China sem a assinatura da
produção manufaturada de um luthier eram chamados ironicamente de "maçã do amor",
em alusão às frutas caramelizadas vendidas nas festas infantis. Esses instrumentos eram
muito mais baratos, porém só chegavam ao Rio de Janeiro através de encomendas em lojas
de outras cidades. Assim, muitos estudantes adquiriam suas principais ferramentas de
trabalho, os instrumentos considerados inapropriados iam parar nas oficinas dos
profissionais especializados na manutenção. No ano de 1998 a cidade possuía apenas 3
três, atualmente o número aumentou, são 4 quatro. Não há escola de lutheria para a
construção de violinos, violas, violoncelos e contrabaixos no Rio de Janeiro. Após ajustes
os instrumentos chineses faziam soar as cordas de uma relevante parcela da orquestra dos
estudantes brasileiros, que interpretavam repertório nacional, alemão, norte-americano e
russo. Os músicos com instrumentos de outras origens, que não chinesas, carregavam
dentro do seu case o capital necessário para afirmarem-se como os mais engajados, afinal
eram instrumentos mais caros, com a fabricação e assinatura de um luthier. O estudante,
com seu instrumento, estava seguro que possuía um material melhor que os industriais,
conquistando olhares mais confiáveis de possíveis contratantes.
A partir de 1999 surgem no Rio de Janeiro novas orquestras para jovens músicos
vinculadas a empresas que experimentavam projetos voltados para o ensino da prática
orquestral, na busca de um capital cultural, jovens se predispunham a participar desses
projetos sem remuneração ou por um valor monetário muito baixo. Esses cachês eram
chamados de "bolsa". Por falta de oportunidades no mercado de trabalho, as orquestras que
se formavam eram híbridas, com músicos qualificados tecnicamente (segundo as normas
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para o mercado profissional carioca), porém, assalariados, mesmo atuando em espaços nos
quais os músicos profissionais participavam e com as mesmas responsabilidades.
Música e leis trabalhistas deveriam ser consonantes. Certamente a música de
concerto carrega em sua história fatos relevantes de discriminação em nome da
performance. Poder avançar e sair das observações mais óbvias é contribuir
qualitativamente para que novas estruturas possam surgir e reforçar as práticas musicais
engajadas com as questões sociais e os problemas de uma cidade. Até a segunda metade do
século passado, músicos que possuíam a necessidade da utilização de óculos eram
impedidos de participar do processo seletivo de algumas orquestras europeias, mulheres
não podiam cobiçar o cargo de spalla ou maestrina. Nas orquestras brasileiras um capital
social relevante ainda é a formação no exterior, músicos que tenham estudado somente no
Brasil têm dificuldades em comprovar suas qualificações, mesmo estando aptos
tecnicamente para a função.
A presença de negros declarados nas orquestras profissionais ainda é escassa,
sobretudo no naipe das cordas, embora políticas de incentivo já apareçam em concursos de
orquestra pública. O instrumento utilizado também é um fator relevante no momento da
seleção, grifes famosas deixam em vantagem intérpretes que pleiteiam uma vaga. Exponho
essas considerações neste ensaio concluindo momentaneamente nesse percurso em 17 anos
de atuação em Orquestras Sinfônicas, Orquestras de cordas e de câmera e Grupos
camerísticos, que a música de concerto carrega exigências para a sua realização assim
como quaisquer outras atividades que convoquem um engajamento prioritário para sua
realização, mas compreendo a partir de uma análise particular que a Música de concerto
ainda está muito distante do poema de Schiller que afirma entre os compassos da nona
sinfonia de Beethoven "que a alegria volta a unir o que o costume rigorosamente dividiu”,
unir, promover a equidade com alegria e entusiasmo são os vetores que conduzem essa
pesquisa.
Cabe ressaltar, nesta investigação, que, para o etnógrafo, as tensões entre o familiar
e o estranho se fazem presentes durante todo o processo de pesquisa. O estranhamento,
imprescindível para o desenvolvimento do trabalho etnográfico, implica um ato de
pensamento reflexivo, no sentido de problematizar e estranhar categorias de pensamento,
práticas, representações, relações (TORNQUIST, 2007). É significativo o esforço do
pesquisador no processo de estranhamento do familiar, na assunção de uma perspectiva
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estritamente analítica (VELHO, 2003), processo esse que é difícil e doloroso, uma vez que
implica um descentramento do olhar que traz mudanças irreversíveis à forma de ver do
pesquisador.
Uma orquestra sinfônica é constituída por quatro grandes naipes, a saber, cordas,
sopros madeiras, sopros metais e percussão. Dentro dos naipes há grupos menores, como
por exemplo, o naipe das cordas que é composto por cinco naipes - primeiros violinos,
segundos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos - os outros naipes seguem formações
semelhantes com instrumentos separados por natureza diferentes de timbre e formato. Cada
pequeno naipe é dividido segundo modelos de hierarquia próprio a cada grupo de músicos.
As posições no espaço físico em que o instrumentista está localizado definem o poder e o
grau de decisão, como exemplo, músicos da primeira estante tem uma representação
política maior que os da segunda estante, e assim sucessivamente até chegar aos músicos
das extremidades. Em algumas orquestras há rodízios entre as estantes, havendo mais de
um líder, porém com maior raridade. No naipe da percussão é o instrumento executado
durante o concerto que definirá a liderança do naipe, o percussionista que executa o
tímpano será o dotado de maior prestígio.
Embora compreenda em sua estética uma homogeneidade, muitas vezes reforçada
por uma uniformização que engloba desde o vestuário utilizado aos movimentos dos arcos
ou respirações dos intérpretes, a Orquestra Sinfônica possui em seu corpo sujeitos que
divergem em opiniões, posicionamentos políticos e são oriundos de classes sociais
completamente distintas. Ao analisar essa instituição é imprescindível considerar que um
naipe não é um agente, mas um conjunto de agentes que interagem em busca de uma
produção em comum, que está em acordo com as decisões de outros colaboradores tais
como o maestro, comissão artística, publico ouvinte, mantenedores entre outros. Nesta
perspectiva, pode-se afirmar que um naipe não pode ser interpretado como um sujeito, e
sim como um grupo de sujeitos muitas vezes com objetivos divergentes, polifônicos. Ao
divulgar a pesquisa para músicos que atuam profissionalmente em sinfônicas obtive a
colaboração de uma parcela que levantou questões pertinentes as possibilidades de
investigação dos conflitos, embora outros não consideraram relevante por desconsiderar a
produção textual acadêmica importante para a prática profissional do músico.
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Hierarquia e relações de poder no espaço sinfônico
Relatar que um espaço social é estruturado significa considerar que as posições
deste não se equivalem, e não são harmônicas. Os conflitos só podem ser relatados
formalmente durante os ensaios através dos seus mediadores, os líderes de naipe, sujeitos
escolhidos através de concurso ou eleição; agentes aos quais são atribuídas
responsabilidades majoritariamente musicais, trata-se da responsabilidade de transmitir o
“saber fazer”, todos os executantes precisam fazer soar a mesma Música. Todos precisam
soar iguais, mesmo que em suas origens os instrumentos musicais possuam timbres
diferentes e a técnica dos executantes não tenham a mesma origem. A liderança de um
maestro só é possível através das lideranças nos naipes. A escolha dos lideres de naipe não
é baseada somente em uma qualificação técnica, mas também nas somam-se a isso
algumas habilidades a respeito de autoridade, na qual o escolhido possa ter de exercer uma
autoridade, posicionar seus objetivos com clareza diante dos demais é outro quesito
importante. Esse atributo é uma exigência sine qua non ao analisar o discurso dos grupos
relatados.
Vale esclarecer que estas considerações é uma construção entre os sujeitos
envolvidos no ritual, uma leitura coletiva, na qual o músico compreende uma visão do
próprio “saber fazer” que é influenciada por uma crítica que seus pares promovem sobre as
suas habilidades. Por isso, em algumas performances, um sujeito pode sair ofendido de
uma interação, esse evento ocorre porque o sujeito investiu ao longo de sua vida, muita
energia e tempo para construir um referencial técnico-artístico e quando alguém abala essa
construção laboriosa há uma percepção de ofensa.
Sobre esses líderes de naipe a pesquisa constata que são agentes responsáveis pelos
movimentos dos arcos dos demais músicos da fila, no caso dos instrumentos de cordas, o
momento da respiração no caso dos instrumentos de sopro ou mesmo a escolha dos
instrumentos na qual o músico se apresentará durante a execução de um concerto no caso
do naipe dos percussionistas, além de organizar possíveis "folgas" aos músicos que não
estejam escalados para um determinado repertório Assim, pode-se convocar o conceito de
biopoder em Focault para colaborar com a análise. O conceito de biopoder (e biopolítica)
foi cunhado originalmente por Michel Foucault, no primeiro volume de História da
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Sexualidade. Esta ideia complementou as reflexões sobre as práticas disciplinares, ambas
as técnicas de exercício de poder, particularmente a partir do século XVIII e XIX.
As disciplinas se voltavam para o indivíduo, e para o seu corpo, para a sua
normatização e adestramento através das diversas instituições modernas que esse indivíduo
atravessava durante a sua vida. Eram instituições que docilizavam os corpos e os tornavam
aptos à produção industrial vigente enquanto produção central nessa fase do capitalismo.
Segundo Foucault, as disciplinas centravam-se
“no corpo como máquina: na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas
forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em
sistemas de controle eficazes e econômicos”. O poder disciplinar age através da inscrição
desses corpos em espaços determinados, do controle do tempo sobre eles, da vigilância
contínua e permanente, e da produção de saber e conhecimento, por meio dessas práticas
de poder. (FOUCALT, 1988 pág. 151)
Conclusões
A pesquisa constatou através do recolhimento dos discursos durante os ensaios e as
apresentações que é possível categorizar enunciados recorrentes entre os músicos que
praticam a música de concerto. Tais enunciados apontam que a construção de uma
categorização é possível devido aos critérios estabelecidos nos atos de fala em encontros
formais ou informais, pude através da análise dos discursos constatar que o
reconhecimento dos pares ocupa um lugar central na qualificação técnica dos músicos,
frases proferidas em rotina de trabalho "toca bem","toca mal" inscrevem no mercado
profissional os que adquirem mais frentes de trabalho, chamado entre os populares urbanos
de "gigs" .
Essas avaliações tomam como referenciais aspectos objetivos e subjetivos, como
aspectos objetivos é possível apontar capacidade técnica de afinação dos instrumentos e a
disponibilidade do músico adequar-se aos tempos métricos durante a execução em
conformidade aos demais integrantes, como aspectos subjetivos podemos atribuir o
contexto da performance que agrada a maioria dos ouvintes ou mesmo capitais sociais
adquiridos no decorrer da trajetória do músico.
Algumas frases coletadas durantes os ensaios: “Aqui ninguém se mexe, apenas eu”,
maestro ao se dirigir à orquestra devido a um incômodo com relação aos movimentos
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corporais dos líderes de naipe; “para tocar bem, se inspirem em mim” maestro antes do
concerto dirigindo-se à orquestra; “meu instrumento não foi feito para tocar esse tipo de
música “ líder de naipe ao interpretar música contemporânea brasileira; “ toque bem pois
tem gente ao seu lado querendo pegar o seu lugar” maestro dirigindo-se a um líder de
naipe.
Por fim cito a Prof. Dra. Márcia Tiburi em uma publicação recente, “Filosofia
Prática” (2014): “Aquele que consegue sentir-se dentro e confortável nas circunstâncias
sociais, econômicas e imaginárias de nossa sociedade talvez tenha feito manobras radicais
de autoengano, ou nunca tenha pensado sobre o que significa viver” (TIBURI, 2014, pág.
144).
Referências
ARAÚJO, Samuel. “Entre muros, grades e blindados: trabalho acústico e práxis sonora na
sociedade pós-industrial”. El Oído Pensante, vol. 1, n. 1, 2013.
. A violência como conceito na pesquisa musical: reflexões sobre uma experiência
dialógica na Maré, Rio de Janeiro. Trans. Revista Transcultural de Música, n. 10, dic.
2006. Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=82201007>. Acesso em: 04
jul. 2014.
BECKER, Howard S. "Mundos artísticos e tipos sociais"
BECKER, Howard. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
BECKER, Howard. Art Worlds. Berkeley e Los Angeles: University of California Press,
1982.
BORDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Algumas propriededades do campo , Rio de
Janeiro: Ed. Marco Zero, 1983.
FOUCAULT,Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1988.
FREUD, S. Totem & Tabu (1913). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
TIBURI, Márcia. Filosofia Prática. Rio de Janeiro, São Paulo, Editora Record, 2014
TORNQUIST, C. S. Vicissitudes da subjetividade. In: BONETTI, A.; FLEISCHER, S.
Entre saias justas e jogos de cintura. Florianópolis; Santa Cruz do Sul: Mulheres;
EDUNISC, 2007.
VELHO, Gilberto. Arte e Sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1977, p. 9-26.
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SESSÃO 5
Coordenação: Dayse Puget
Pesquisa em música: metodologia em história oral.
Tainá Maria Magalhães Façanha
[email protected] – PPGArtes UFPA
Resumo: Este artigo é resultado de uma palestra ministrada no II ciclo de palestras do LabEtno UFPA.
Buscou-se apresentar uma abordagem metodológica com base na história oral, apresentando o pensamento
que norteia a pesquisa de onde emerge este artigo, assim como o detalhamento em etapas do
desenvolvimento da mesma. Por fim, este artigo almeja contribuir para diversas pesquisa em música que
tenham como base narrativas orais e que busquem compreender determinado contexto a partir de quem fala,
investigando os processos pelos quais esses depoimentos são construídos/formados.
Palavras-chave: Pesquisa em música. Metodologia em história oral. Formação da Subjetividade.
De onde emerge esta pesquisa
Este artigo surge de uma palestra que foi, por mim, ministrada no II Ciclo de
Palestras do Laboratório de Etnomusicologia (LabEtno) da Universidade Federal do Pará
(UFPA), desenvolvida a partir da metodologia de minha pesquisa de mestrado intitulada
‘Memórias de professores de Arte/Música: concepções, “estratégias” e objetivos na
educação musical em escolas estaduais de educação básica em Belém – Pa.’, cujo principal
objetivo é compreender o sentido do ensino da música nessas escolas e, especificamente,
analisar as concepções, “estratégias” e os objetivos de professores de ACte/Música nas
escolas de educação básica na Estadual no distrito de Belém – PA e relacioná-las
observando as abordagens de educação musical na educação básica.
Tendo como problemáticas iniciais a efetivação do ensino da música por meio da
lei nª 11.769/08 – que já tem sido um tema muito debatido na atualidade por
pesquisadores, como pode ser verificado nos periódicos e anais da Associação Brasileira
de Educação Musical – e as questões relacionadas a formação e atuação do professor de
música, além de outras discussões, acerca destes temas, que surgem e destaco nesta
pesquisa, ainda em fase inicial.
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O foco principal, entretanto, é o processo de formação do professor de música,
buscando por meio de suas memórias – aqui entendida “como fato, como algo que pode
incidir sobre a realidade e causar mudanças” (ALBERTI, 2004, p. 11) – desvelar os
aspectos que constituem suas concepções, suas escolhas metodológicas (“estratégias”) e
seus objetivos educacionais. Levando em conta que este professor é sujeito de um contexto
social e que, dialeticamente, compõe este contexto. Assim, para este artigo, é importante
que sejam definidos alguns pontos que delimitam a construção do caminho metodológico
da pesquisa descrita acima, para o entendimento da proposta que realizo neste texto.
Desta forma, inicialmente, na construção de minha pesquisa de mestrado, entendo
que o processo de formação do professor de música é fundamental para compreensão do
sentido do ensino da música no ambiente escolar e, que o mesmo determina a atuação do
professor. Defino aqui o processo de formação não apenas no período em que o professor
está no meio universitário/graduação, mas também os momentos que antecedem seu
ingresso na universidade e os momentos posteriores, na sua prática docente.
Ou seja, as experiências musicais de vida e a formação do seu gosto musical; o
ensino superior e a estrutura curricular na qual foi formado; e as experiências de sala de
aula dialogando com sua formação teórica, onde o mesmo irá exercer, na prática, o ato de
ensinar música. Guattari observa que esse processo de experiências institucionais, coletivas
e individuais do ser humano caracteriza a sua formação da subjetividade. Esta
subjetividade é aqui entendida como:
Pelo menos três tipos de problemas nos incitam a ampliar a definição da
subjetividade de modo a ultrapassar a oposição clássica entre o sujeito individual
e sociedade (pois entende que a mesma é diretamente ligada a essas duas
instâncias formativas) e, através disso, a rever os modelos de inconsciente que
existem atualmente: a irrupção de fatores subjetivos no primeiro plano da
atualidade histórica, o desenvolvimento maciço de produções maquínicas de
subjetividade e, em último lugar, o recente destaque de aspectos etológicos e
ecológicos relativos à subjetividade humana. (2012, p. 11-12 grifo meu)
Dialogando, mais especificamente, esta subjetividade do professor de música pode
ser relacionada com a teoria de saberes docentes, a partir dos estudiosos do tema como
Guattier (1998), Tardif e colaboradores (2002), Lee Schumman (1986 e 2004) e Pimenta
(2002) que generalizando, classificam em categorias de saberes da experiência, saberes da
formação, saberes disciplinares e saberes pedagógicos. Assim também, com o que
Esperidião (2012) apresenta como saberes pedagógicos musicais docentes:
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Mas como identificar essas experiencias de construção da subejtividade e desses
saberes?
História Oral como metodologia
Em um primeiro momento, entrevistas semi-estruturadas seriam de suficiente
eficácia para indentificar os objetivos já expostos, entretanto como aponta Esperidião
(2012):
[...]cada professor, durante suas trajetória pessoal e profissional, seleciona e
utiliza elementos diversos com os quais vai constituindo seus saberes,
atualizando-os de acordo com as exigências dos contextos nos quais atua.
Afirmam, ainda, que no discurso dos professores são percebidos muitos tipos de
“vozes” – distantes, prócximas ou anônimas – , representadas por pessoas
diferentes, materiais de trabalho ou experiências acumuladas. Essas “vozes”
também são consideradas tipos de saberes que podem ser apropriados pelos
docentes, conforme manifestado em suas falas, por meio de uma relação ativa
quando reproduzem, descartam, reformulam ou criam novos saberes
determinando suas práticas. (ESPERIDIÃO, 2012, p. 101 [grifo meu])
Sendo assim, esse discurso e essas “vozes” que são manifestadas através da fala do
professor, permitem emergir esses saberes adquiridos e formulados pelo profissional. Para
conhecer de maneira mais profunda e, de certa forma, próxima, esse discurso faz-se
necessária uma metodologia que traga essas experiências de vida e de formação mais
evidente, o que é muito bem explorado pela metodologia em história oral.
São essas experiências de vidas que irão determinar o que elegem e legitimam
como melhor modo de atuação, ressaltando então que não é possível atingir diretamente
esses fatos passados, mas é viável atingi-lo por meio das histórias, “quando queremos nos
apropriar de nossa vida, nós a narramos”. (DELORY-MOMBERGER 2008)
Portanto, uma maneira de identificar essas experiencias de construção da
subejtividade e desses saberes é por meio da análise e interpretação das narrativas dessses
professores. Evidenciando, portanto, a fala das pesssoas pesquisadas.
A entrevista em história oral
Meihy e Holanda (2014) ressaltam que “como método, a história oral se ergue
segundo alternativas que privilegiam as entervistas como atenção essencial dos estudos” ou
seja, as narrativas constituem ponto fundamental deste tipo de pequisa. As análises e
interpretações sempre derivam dos depoimentos dos entrevistados.
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Dessa forma, alguns pontos são cruciais para o desenvolvimento e validação da
pesquisa em história oral, aqui descrita em três etapas: fase pré-entrevista,
desenvolvimento das entrevistas e pós-entrevistas. Cada uma delas descritas logo a seguir.
a) Fase pré-entrevistas:
Para o densenvolviemento conciso da entrevista é necessário que se tenha bem
definido quais os objetivos do projeto, público estudado e contexto que se localiza o
projeto, sendo assim é primordial a definição do projeto para Meihy e Holanda:
[...] é o instrumento norteador que ajuda a planejar o trabalho de pesquisa,
delineando a proposta a ser desenvolvida, a justificativa/fundamentação, os
meios operacionais, a questão da forma e evidência dos objetivos por meio de
hipóteses de trabalho.
Posteriormente a elaboração do roteiro será o guia básico na realização das
entrevistas, sendo construido a partir dos objetivos elencados no projeto. Entretando, o
mesmo não será rígido e engessado de modo que as entrevistas sejam monôtonas e
retritivamente iguais a todos os entrevistados (caso haja), esse roteiro temático é o que vai
conduzir a entrevista, mas não tem por objetivo tirar a liberdade e conforto do
entrevistador e entrevistado. Lembrando que tudo deve ser bem planejado e que essa
liberdade diz respeito à fala e à confiança entre ambas às partes.
b) Fase do desnvolvimento das entrevistas:
Nesta fase de realização é importante devida atenção quanto à conduta do
entrevistador, levando em conta a postura ao se portar e, principalmente, o respeito a fala
dos entrevistados. Outro ponto é saber conduzir essas entrevistas de maneira que envolva
os entrevistados e os deixe confortavéis em dividir informações por vezes muito pessoais,
mostrando que se interessa e se importa com os depoimentos.
c) Fase pós-entrevista
Passagem do oral para o escrito:
I Transcrição: Fase que se configura em escrever, na íntegra, a entrevista. Todos
detalhes serão levados em consideração, dos barulhos no ambiente aos risos e falas
emocionadas.
II Textualização: retirada das perguntas, correção dos erros gramaticais, retirados
ruidos descritos na transcrição e organização da narrativa por temas. (MEIHY e
HOLANDA, 2014, p. 142)
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
III Transcriação: se constitui no texto “apresentado em sua versão final e depois de
autorizado [pelo colaborador] deve compor a série de outras entrevistas do mesmo projeto”
(idem, p. 143). A escrita é construída como uma narrativa na qual as ideias fluem para a
melhor compreensão do leitor.
Interpretação e Análise dos dados:
“A verdade não está no passado, mas há sempre uma verdade
sobre o passado” (HACKING, 2010, p. 249-250)
Essa fase não é necessária na pesquisa em história oral, mas como se trata de uma
pesquisa acadêmica, será posteriormnte definida qual abordagem teórica melhor atenderá
essa análise e interpretação dos dados. Como afirma o autor o objetivo aqui não se trata de
revelar uma verdade absoluta acerca dos objetivos aqui definidos e sim compreender esse
olhar do presente para um passado recente e como essa formação da subjetivdade contribui
para formação do professor de música.
Considerações
Essa pesquisa encontra-se na fase de campo, onde se objetiva realizar um
levantamento de dados sobre os professores de arte que compõem o quadro docente das
escolas envolvidas e acerca da estrutura dispostas para o ensino de música nas mesmas.
Em seguida serão contactados os professores para o desenvolvimento das entrevistas.
Por fim, buscou-se aqui apresntar uma metodológia que, para além da educação
musical especificamente, possa contribuir para desenvolviemto de pesquisas que tomem
como ponto de partidas as narrativas dos sujeitos envolvidos. Entendendo que os
depoimentos coletados não são apenas em gravações aleatórias, mas que devem ser
entendidos como fontes documentais, que juntos somarão várias vozes. Assim,
contribuindo com a compreensão de comportamentos e ideologias de grupos culturais a
partir de como eles narram suas impressões sobre si próprios, de contextos-históricos e
sociais diversificados e muitos outros aspectos que integram essa rede.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Referências:
ALBERTI, Verena. Ouvir, Contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2004.
DELORY-MOMBERGER, C. (2008). Biografia e educação: figuras do indivíduo-projeto.
Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus.
ESPERIDIÃO, Neide. Educação Musical e Formação de Professores: suíte e variações
sobre o tema. 1 ed. São Paulo. Globus, 2012
GAUTHIER, Clermont et al. Por uma Teoria da Pedagogia: pesquisas contemporâneas
sobre o saber docente. Ijuí, RS: UNIJUÍ, 1998.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Trd: Ana Lúcia de Oliveira e
Lúcia Cláudia Leão. Ed. 34, São Paulo, 1992.
MEIHY, José Carlos Sebe B. e HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer como
pensar. 2 ed. São Paulo. Contexto, 2014
PIMENTA, Selma Garrido, (org.). Formação de Professores: identidade e saberes da
docência. In. Saberes Pedagógicos e Atividade Docente. São Paulo: Cortez, 2002, pp. 1534.
SHULMAN, Lees. Those who Understand: Knowldege Growth in Teaching. Educational
research, v. 17, n. 1, p. 4-14, 1986.
TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Tradução de Francisco Pereira.
Petrópolis: Vozes, 2002.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
A Guitarrada e Mestre Vieira: dois casos de conversão semiótica.
Saulo Christ Caraveo
Escola G2 Muhsica - Email: [email protected]
Resumo: Este trabalho analisou a vida de Mestre Vieira e do gênero musical que o consagrou: a guitarrada.
Esta análise baseou-se na relação simbólica que envolve a região amazônica, um saber e prática musical
tipicamente paraense e seu criador. Neste sentido buscou-se encontrar o momento da concepção da
guitarrada e em que contexto Joaquim de Lima Vieira torna-se o conhecido Mestre Vieira, ou seja, o
momento da transformação simbólica de Vieira e sua guitarrada: a conversão semiótica. A respeito da
metodologia busquei, através da pesquisa bibliográfica, o levantamento de dados significativos em torno dos
conceitos de semiótica, em especial trabalhos acadêmicos envolvendo a Música, bem como artigos, teses,
monografias que pudessem elucidar e comprovar a conversão semiótica de Vieira e da guitarrada.
Palavras-chave: Guitarrada; Guitarra Elétrica; Mestre Vieira.
Introdução
A região amazônica em sua imensidão territorial, cultural, de típico saber cotidiano
e imaginário mítico nos revela uma força artístico-criativa que veio se fomentando ao
longo de sua história. Diante deste cenário podemos observar também a amplitude desta
criatividade na Música paraense.
Sua diversidade de gêneros musicais como o carimbó, siriá, lundu e a própria
formação da Música Popular Paraense (MPP) nos fazem refletir a respeito do valor
simbólico em torno dos atores envolvidos na construção desta cultura musical.
Neste trabalho destaquei a trajetória de Joaquim de Lima Vieira na MPP, o gênero
musical que o consagrou: a guitarrada. Localizei dados significativos que possam melhor
embasar a transformação da figura de Vieira como criador do gênero musical guitarrada
no sentido em que é considerado Mestre dos Mestres das guitarradas.
Apresentei também conceitos em torno da semiótica, de Charles Sanders Peirce e o
conceito de Conversão Semiótica de João de Jesus Paes Loureiro.
Foram três os problemas que alimentaram esta pesquisa: Qual a trajetória de Mestre
Vieira na Música Popular Paraense? Como se deu o processo de criação do gênero musical
Guitarrada? Como podemos entender a transformação semiótica em torno de Vieira e do
gênero musical Guitarrada?
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
A metodologia foi de pesquisa bibliográfica. A internet foi ferramenta fundamental
para a localização de outros trabalhos que pudessem proporcionar dados significativos em
torno desta proposta.
O trabalho foi organizado em três seções. A primeira nos mostra a história de
Joaquim de Lima Vieira no contexto da formação da MPP. Na segunda, pode-se verificar o
contexto histórico-social de criação do gênero Guitarrada. Na terceira apresentarei os
conceitos de Semiótica e de Conversão Semiótica. O trabalho conta ainda com
considerações finais, nas quais apresento as conclusões em torno da proposta do trabalho.
1.
Joaquim de Lima Vieira e a guitarra elétrica
Joaquim de Lima Vieira (1934), nascido em Barcarena, município ribeirinho do
Pará, mais conhecido como Mestre Vieira, hoje com 82 anos de idade, é considerado o
criador do gênero musical Guitarrada e o maior expoente do referido gênero.
É possível localizar outros artistas que se destacam na cena musical das guitarradas,
como relata Mesquita (2009, p.147),
Falar da guitarrada nos impõe quase que obrigatoriamente considerar a figura do
compositor e guitarrista paraense Mestre Vieira. É fato que o estilo da guitarrada
possui outros expoentes e praticantes notórios. Artistas como Solano, Aldo Sena,
Oséas, Marinho, André Amazonas, Chimbinha, Mário Gonçalves e, mais
recentemente Curica e Pio Lobato compõem o time dos praticantes da
guitarrada.
Ainda a respeito de Vieira, Fábio Fonseca de Castro135, em seu artigo As
Guitarradas Paraenses: Um olhar sobre a música, musicalidade e experiência Cultural136
(2012, p.433-434) diz “O marco referencial do gênero foi o álbum “Lambada das
quebradas”, de Joaquim Vieira (Mestre Vieira), gravado em 1976 nos estúdios Rauland,
em Belém, e lançado dois anos depois, pela Continental”.
Na juventude, Vieira tocou violão, cavaquinho, banjo, bandolim e sax, sua aptidão
musical possibilitou o aprendizado destes instrumentos, porém, foi com a guitarra elétrica
que Vieira escreveu seu nome na história da música paraense.
135
Professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação Comunicação, Cultura e Amazônia, da
Universidade Federal do Pará. Doutor em sociologia pela Universidade de Paris.
136
Trabalho originalmente apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação e Cultura do Século XXI
Encontro da Compôs, na Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, de 12 a 15 de junho de 2012.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
No fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com sua economia fragilizada, os
EUA propõe o intercâmbio cultural com países latino-americanos (política da boa
vizinhança) possibilitando a abertura do mercado (exportações e importações). Os produtos
envolvendo tecnologia musical chegaram significativamente ao Brasil. Assim podemos
destacar que
Esse momento da vida de Vieira corresponde exatamente ao final da década de
50, período do pós-guerra e do crescimento urbano-industrial do Brasil. A
modernização do país era uma meta a todo custo [...]. É aqui que a face da
cultura moderna do pós-guerra se mostra ao jovem Joaquim. A novidade da
música e do cinema americano fascina Vieira que neste momento vê pela
primeira vez aquele que se tornaria seu principal instrumento: a guitarra
(MESQUITA, 2009, p.152).
Segue um trecho da entrevista de Mestre Vieira cedida a Mesquita (2009, p.152).
“Eu fui no [sic] cinema Universal, lá no Largo São João em Belém. De tarde
meu irmão falou: “olha ta só música americana tocando.” Aí eu vi um cara com
uma guitarra, né! Aquele pedaço de pau tocando. Aí eu fiquei assim pensando:
“Pô um instrumento desses é um pedaço de pau”.137
A respeito do aprendizado da história através da oralidade, prática comum nas
regiões ribeirinhas do Pará, podemos destacar segundo Alberti (2005, p.165) que “Uma das
principais riquezas da história oral está em permitir o estudo das formas como as pessoas
ou grupos efetuaram e elaboraram experiências, incluindo situações de aprendizado e
decisões estratégicas” (SILVA, 2012, p.3).
Apesar da abertura entre os EUA e o Brasil as condições para as classes sociais
mais baixas continuaram difíceis. A primeira guitarra elétrica de Vieira não foi comprada
por ele e sim um presente de uma amiga.
Logo depois Vieira recebe de presente de uma amiga uma guitarra que, depois de
consertada por seu irmão, estava pronta para o uso. Não fosse a falta de cordas
apropriadas e dos amplificadores. Vieira conta que foi necessário colocar cordas
de violão e improvisar a parte da amplificação montando um amplificador à
pilha, que alimentava em baterias de automóvel. As dificuldades existiam, mas
não eram nada de tão grande que a criatividade e vontade de Vieira não desse
jeito (MESQUITA, 2009, p.152).
Sobre o acesso a tecnologia, Castro (2012, p.435) diz que
137
Entrevista realizada em 25-05-2009.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
No início dos anos 1970 chegou à guitarra e, de uma forma inventiva, não
convencional, à guitarra elétrica. Inventiva em função do fato de que, vivendo
numa vila sem energia elétrica, Barcarena, fabricou ele próprio, com autofalantes de rádios desmontados, alimentados por baterias de caminhão, um
amplificador caseiro.
A trajetória de Mestre Vieira está ligada a formação da MPP, é o que diz Mesquita
(2009, p.147-148),
O músico paraense conhecido como Mestre Vieira inicia sua trajetória musical
no período de formação da música popular paraense, no contexto de
modernidade da região amazônica nas décadas de 50 e 60. Sua musicalidade
transpassa vertentes e fontes musicais variadas desembocando em criações
instigantes que ainda não se tornaram centro de uma reflexão séria e
aprofundada. Influenciado pela música afro-latino-caribenha, pelo choro e pela
jovem guarda, notabiliza-se pelo criativo resultado artístico que consegue dar a
esta fusão.
Oliveira (2008) considera que a cultura se define como um lugar onde se articulam
os conflitos sociais e culturais, onde se atribuem diferentes sentidos às coisas do mundo
através do corpo, do imaginário, do simbólico, da participação, da interação, da poesia e no
cotidiano. Nela se constituem os sujeitos e a sua identidade.
Podemos dizer que Joaquim de Lima Vieira, ao unir sua musicalidade particular
com influências musicais externas, gera na Arte uma nova prática musical e cultural,
tornando-se um agente da cultura construído sua identidade e transformando a identidade
local.
Castro (2012, p.435) diz ainda que “Mestre Vieira ocupa uma posição, no
imaginário local, de mestre dos mestres da guitarrada”. E que “O instrumento constituiu
um grande impacto local, e foi reproduzido em toda a região, tornando seu criador bastante
conhecido”.
Neste sentido podemos considerar a guitarra elétrica como elemento fundamental
transformador, o qual tornou possível a mudança de valor simbólico em torno de Vieira, no
imaginário e cultura local.
2.
Guitarrada: um gênero musical
É possível reconhecer a diversidade de gêneros musicais paraenses e que a
formação desta música recebeu influência de culturas externas.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
A música afro-latino-caribenha em Belém, a capital do estado do Pará, ocupou
nossos esforços neste trabalho. Tivemos como objeto principal o estudo da
guitarrada e, consequentemente, como a inserção da música afro-latinocaribenha influenciou sua formação através da absorção criativa realizada pelo
músico e compositor Mestre Vieira. Tal estilo é conhecido por apresentar uma
suposta, e ainda não estudada, semelhança com a musicalidade afro-latinocaribenha (Mesquita, 2009, p. 1).
Neste aspecto as guitarradas surgem em meio a um contexto social, político e
cultural no qual é possível observar a influência musical de outras culturas. Este
movimento cultural sugere experiências sociais que vão marcar a identidade, regar novos
valores simbólicos e transformar o imaginário coletivo local.
Neste contexto, Castro (2012, p. 431) diz que
Qualquer sociedade possui experiências coletivas em torno da música, com
processos de sociabilidade e dinâmicas intersubjetivas próprias. Neste sentido, a
cena musical que envolve as guitarradas não se configura como um processo
social original e não deve, assim, ser compreendido. Porém, é possível observar
alguns elementos de diferenciação que lhe dão um caráter próprio, em relação,
num plano mais aberto, as outras cenas musicais contemporâneas e, num plano
mais fechado, a outras cenas culturais e musicais amazônicas.
O gênero musical guitarrada é concebido então, dentro de uma realidade local, com
características peculiares e valores culturais intrínsecos que serão recriados ou
transformados a partir de influências culturais externas. Neste momento surge uma nova
cultura, uma nova forma de compor, de fazer e de se pensar música, uma nova forma de se
tocar guitarra: a guitarrada.
3.
A Semiótica e a Conversão Semiótica
A Amazônia é um universo imensurável de símbolos, de rico folclore e de inúmeros
mitos os quais fazem parte da formação cultural e do imaginário coletivo da região.
Quando falamos em símbolos nos remetemos a sua representatividade, no
significado os quais estes símbolos (signos) são submetidos.
Para entendermos melhor o conceito de signo, Peirce (1839-1914), em sua teoria,
afirma que um signo “é algo que está no lugar de alguma coisa para alguém, em alguma
relação em alguma qualidade” (FERNANDES, 2011, p.168).
A ciência que estuda de maneira significativa os signos, levando em consideração
as variadas dimensões os quais estão submersos é chamada de semiótica.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
A Semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens
possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de
todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de
sentido (SANTAELLA, 2007, p.2).
E ainda
A teoria semiótica nos permite penetrar no próprio movimento interno das
mensagens, no modo como elas são engendradas, nos procedimentos e recursos
nela utilizados. Permite-nos captar seus vetores de referencialidade não apenas a
um contexto mais imediato, como também a um contexto estendido, “pois em
todo processo de signos ficam marcas deixadas pela história, pelo nível de
desenvolvimento das forças produtivas econômicas, pela técnica e pelo sujeito
que as produz” (SANTAELLA, 2005 Apud FERNADES, 2011, p.168).
A semiótica como estudo geral dos signos, é uma ciência concebida recentemente.
Assim podemos destacar que
Antes de tudo, cumpre alertar para uma distinção necessária: o século XX viu
nascer e está testemunhando o crescimento de duas ciências da linguagem. Uma
delas é a Linguística, ciência da linguagem verbal. A outra é a Semiótica, ciência
de toda e qualquer linguagem (SANTAELLA, 2007, p.1).
Neste sentido podemos dizer que a Música, se apropria de variadas formas de
linguagem, sugerindo vários campos para estudos e análises em torno da semiótica. Não
obstante a Música é parte integrante de qualquer cultura e nesta direção
Considerando-se que todo fenômeno de cultura só funciona culturalmente porque
é também um fenômeno de comunicação, e considerando-se que esses
fenômenos só comunicam porque se estruturam como linguagem, pode-se
concluir que todo e qualquer fato cultural, toda e qualquer atividade ou prática
social constituem-se como práticas significantes, isto é, práticas de produção de
linguagem e de sentido (SANTAELLA, 2007, p. 2).
Entendamos a ascensão da guitarrada como um fenômeno cultural que propõe um
nível de comunicação através da linguagem musical que cria e recria o valor simbólico e
do imaginário em torno de si.
Entendendo-se por fenômeno qualquer coisa que esteja de algum modo e em
qualquer sentido presente à mente, isto é, qualquer coisa que apareça, seja ela
externa [...], seja ela interna ou visceral [...], quer pertença a um sonho, ou uma
ideia geral e abstrata da ciência, a fenomenologia seria, segundo Peirce, a
descrição e análise das experiências que estão em aberto para todo homem, cada
dia e hora, em cada canto e esquina de nosso cotidiano (SANTAELLA, 2007, p.
7).
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João de Jesus Paes Loureiro (2007) propõe um novo conceito que diz respeito à
mudança de valor dos signos quando submetidos a diferentes perspectivas culturais: a
Conversão Semiótica.
Loureiro (2007, p.35 e 36) diz que “A conversão semiótica significa o quiasmo de
mudança de qualidade do signo, na significação de um objeto ou ação, no ato do percurso
de mudança de sua localização na cultura, no momento mesmo dessa transfiguração”.
Podemos dizer que Joaquim de Lima Vieira, a partir de sua própria realidade,
apropria-se de influências culturais externas, transformado-as, sugerindo desta forma novas
significações para sua vida.
Neste aspecto Loureiro (2007, p.11) afirma que
O homem vive a remodelar de significações a vida, a fazer emergir sentidos no
mundo em um processo de criação e reordenação continuada de símbolos
intercorrente com a cultura [...] O homem cria, renova, interfere, transforma,
reformula, sumariza ou alarga sua compreensão das coisas, suas idéias, por meio
do que vai dando sentido à sua existência.
Não devemos nos omitir da relevância das ideias e pensamentos transformadores de
Vieira e que nele podemos encontrar um caso metamórfico, que através da gênese da sua
arte transformou sua realidade, o imaginário e costumes locais e a si próprio.
Neste aspecto Loureiro diz que
A conversão semiótica resulta em um modo de compreender a realidade de
forma dinâmica e concernente a seu sistema processual de mudanças. Trata-se,
inicialmente, de uma forma de recepção compreensiva e, si depois, transforma-se
em condição explícita. Está vinculada intrinsecamente à práxis vivencial
transformadora do homem e de sua realidade (LOUREIRO, 2007, p. 16).
Tomamos como conclusão, neste sentido, que Mestre Vieira é um caso de
conversão semiótica, bem como o gênero musical criado por ele: a guitarrada.
Considerações finais
Neste trabalho pudemos verificar a trajetória de Joaquim de Lima Vieira no
contexto da formação da Música Popular Paraense e a influência afro-latino-caribenha
sofrida por ela. Vieira, nascido em uma ilha da região ribeirinha chamada Barcarena,
transformou sua arte em um gênero musical mais tarde reconhecido como guitarrada.
Verificou-se também que existem outros atores em torno da prática da guitarrada, porém,
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Vieira é considerado o criador e Mestre dos Mestres da Guitarrada: o Mestre Vieira. O
trabalho elucidou fatos em torno do gênero guitarrada como prática artística e de atividade
sociocultural, o que causou transformações significativas no cenário musical e no
imaginário coletivo local.
Levando em consideração a atmosfera simbólica criada em torno de Vieira e sua
obra, encontrei em Charles Sanders Peirce conceitos que melhor elucidassem a ideia de
signo e de semiótica a fim de respaldar a ideia principal desta pesquisa.
Através do conceito de conversão semiótica, criada por João de Jesus Paes
Loureiro, o qual diz respeito da mudança de significado do signo quando revelado em
variadas perspectivas, pude concluir que Joaquim de Lima Vieira é um caso de conversão
semiótica no momento em que é considerado e chamado de Mestre Vieira. Esta mudança
no valor simbólico não transforma tão somente na figura de Vieira, mas também a sua
realidade e o imaginário local. Esta transformação só é possível a partir do momento da
concepção do gênero musical atribuído a ele: a guitarrada. Neste sentido a própria
concepção da guitarrada configura um caso de conversão semiótica.
Referências
CASTRO, Fábio Fonseca. As Guitarradas Paraenses: Um olhar sobre a música,
musicalidade e experiência Cultural / Fábio Fonseca de Castro – 2012.
FERNANDES, J. D. C.. Introdução à semiótica. In: Ana Cristina De Sousa Aldrigue; Jan
Edson Rodrigues Leite. (Org.). Linguagens: Usos e Reflexões V. 8. 1ed. João Pessoa:
Editora da UFPB, 2011, v. 8, p. 1-185.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. A Conversão Semiótica: na arte e na cultura / João de
Jesus Paes Loureiro. – Edição Trilíngue – Belém: EDUFPA, 2007.
MESQUITA, Bernardo Thiago Paiva. A guitarra de Mestre Vieira: a presença da música
afro-latino-caribenha em Belém do Pará / Bernardo Thiago Paiva Mesquita.- 2009.
OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de (Org.) Cartografias Ribeirinhas: saberes e
representações sobre práticas sociais cotidianas de alfabetizandosamazônidas. 2. Ed.
Belém: Eduepa, 2008.
SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica? São Paulo: Brasiliense, 2007. (Coleções
primeiros passos;)
SILVA, Rosa Maria Mota da. O Cordão de pássaro corrupião: uma prática musical
Bragantina - Salvador: UFBA / Escola de Música, 2012.
Sites visitados
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Belém – 2016
Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Disponível
em
http://www.revistaeletronica.ufpa.br/index.php/ensaio_geral/article/viewFile/169/94.
Acessado em 08.04.2016 às 15:13.
Disponível em http://www.teatro.ufba.br/gipe/arquivos_pdf/anais.pdf/
Acessado em
08.04.2016 às 15:24.
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Pontos rituais: a religiosidade afro-brasileira nas composições de
Waldemar Henrique
Edson Santos da Silva
UFPA/ PPGARTES- [email protected]
Sonia Chada
UFPA/PPGARTES- [email protected]
RESUMO: O presente artigo apresenta um estudo sobre as sete músicas do compositor paraense Waldemar
Henrique (1905-1995), compostas no período de 1937 a 1965, que apresentam relação com as religiões afrobrasileiras, e que são classificadas pelo compositor como “Pontos Rituais”. O objetivo principal é
compreender de que forma e quais vertentes das religiões afro-brasileiras estão presentes nestas composições
e quais fatores motivaram o compositor a utilizar em sua obra temas relacionados aos orixás e à liturgia das
religiões afro-brasileiras.
Palavras-chave: Waldemar Henrique. Pontos Rituais. Religiosidade afro-brasileira.
A circulação de negros nas principais cidades brasileiras já era uma realidade desde
os primeiros séculos da colonização portuguesa, porém a população negra só começou a ter
maior liberdade de se locomover nas cidades e consequentemente maior possibilidade de
integração entre si, por volta da segunda metade do século XIX, quando negros libertos, e
mesmo alguns que ainda não gozavam de total liberdade, podiam agregar-se juntamente
com outros afrodescendentes em residências coletivas nos bairros urbanos, onde também
ganhavam o seu sustento e assim juntar-se com outros negros, com quem poderiam
compartilhar tradições e até mesmo falar a mesma língua, especialmente no caso daqueles
que chegaram em períodos próximos à abolição da escravatura no Brasil, que ocorreu ao
ano de 1888.
Neste período, segundo Reginaldo Prandi, “Criou-se no Brasil o que talvez seja a
reconstrução cultural mais bem acabada do negro no Brasil, capaz de preservar-se até os
dias de hoje: a religião afro-brasileira” (PRANDI, 2000:59). Estas religiões, que se
refizeram na Bahia e em outras localidades do país, foram responsáveis não apenas pela
reconstrução das crenças e dos cultos aos deuses africanos, mas de muitos outros aspectos
da cultura africana original, que acabaram espalhando-se pelo Brasil e até
mesmo
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
influenciando no surgimento de outras cultos, como a Umbanda no Rio de Janeiro e a
Pajelança na Amazônia.
Com a abolição da escravatura no final do século XIX e a consequente vinda de
grande contingente de negros na condição de escravos libertos para as principais cidades
em busca de trabalho, onde passaram a desenvolver atividades como artesãos, carregadores
e os mais diversos tipos de ocupações, e que também passaram a reunir-se em associações
com o objetivo de celebrar suas tradições, dentre elas suas crenças e costumes que
passaram a ser preservados. Assim, a cultura africana vai se diluindo na formação da
cultura nacional, abrangendo a língua, a culinária, a música e a religião entre outros
aspectos culturais.Porém, para Reginaldo Prandi,
Embora em muitos aspectos, sobretudo no campo das artes, possamos identificar
no final do século XIX e no início do século XX manifestações culturais
caracteristicamente negras, sua sobrevivência dependia de sua capacidade de ser
absorvida pela cultura branca. É o caso exemplar da música popular brasileira,
em que os ritmos e estruturas melódicas de origem africana sobreviveram na
medida em que passaram a interessar os compositores brancos ou consumidores
da cultura branca. Assim, o lundu negro abria caminho para o choro branco; a
música dos candomblés dos negros pobres fornecia matriz para o samba nacional
das classes médias. Em outras palavras, a preservação daquilo que é africano
requeria apagar ou disfarçar exatamente a origem e a marca negra, num processo
de branqueamento que atingiu todas as áreas, do qual a umbanda é o exemplo
emblemático (PRANDI, 2000:59).
Neste sentido, as práticas culturais e a cultura afro-brasileira passaram a ser objeto
de investigação de intelectuais e artistas que buscaram entender tanto a origem étnica dos
povos trazidos da África para o Brasil, como diversos aspectos da cultura dos mesmos,
dentre estes aspectos, uma atenção especial foi dada a religiosidade, como podemos
observar em obras como: “A raça africana e seus costumes na Bahia” (1916), de Manuel
Querino (18851-1923); “O negro brasileiro: etnografia religiosa” (1934), de Artur Ramos
(1903-1949); “Religiões negras” (1936) e “Candomblé da Bahia” (1948), de Edson
Carneiro (1912-1972); e “Notes sur le cultdes orisa et vodun” (1957), de Pierre Verger
(1902-1996). Alguns desses autores também abordaram aspectos ligados ao folclore e a
música, como Artur Ramos em seu livro “Folk-Clore negro no Brasil” (1935), entre outros.
Porém, um dos trabalhos mais significativos sobre a música e religiões afro-brasileiras no
século XX, foi o Livro “Música de feitiçaria no Brasil” (1933), de Mario de Andrade
(1893-1945).
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Muitos compositores brasileiros do início do século XX munidos das informações
disponibilizadas pelos intelectuais brasileiros, e mesmo europeus, em livros e artigos
publicados sobre as religiões negras e impulsionados pela curiosidade e interesse em
conhecer esta cultura que cada vez mais se tornara evidente, sobretudo na periferia das
grandes cidades, passaram a produzir músicas voltadas à temática das religiões de matriz
africana, que inclusive faziam referência aos orixás no tema de suas obras. Entre os
compositores brasileiros que abordaram esta temática podemos citar: Heitor Villa-Lobos
(1887-1959), que compõe em 1919 a série “Canções Típicas Brasileiras”, na qual consta a
canção “Xangô”; Luciano Gallet (1893-1931) que compõe “Canto de Xangô” em 1929;
José Siqueira (1907-1985), com a composição “O Rei é Oxalá”; Brasílio Itiberê (18961967) que escreveu a suíte para piano intitulada “Suíte Litúrgica Negra” (1937), com três
movimentos: “Xangô, Ogum e Protetor Exu”; e o paraense Jayme Ovalle (1894-1955) com
a composição “Xangô”, para citar apenas alguns.
Waldemar Henrique da Costa Pereira (1905-1995), compositor paraense que a
partir do ano de 1933 passa a residir no Rio de Janeiro e assim a acompanhar de perto as
principais tendências da música brasileira do início do século XX, também parece seguir
esta orientação, compondo obras direcionadas às religiões de matriz africana e que em seus
temas fazem referência aos orixás e personalidades da liturgia dos cultos afro-brasileiros,
como: “Min Orixá Xangô” (1934); “O que ôro não arruma” (1934) e “Mãe de terreiro”
(1936). Porém, o que mais chama atenção no conjunto de suas obras que estão voltadas às
religiões afro-brasileiras é o conjunto de sete composições que o musicólogo José Claver
Filho, em seu catálogo de obras do compositor paraense, registra como “Pontos Rituais”.
O que nos incentivou a elaborar as seguintes questões:Quais motivos levaram Waldemar
Henrique a utilizar elementos da religiosidade afro-brasileira em suas composições? Quais
vertentes das religiões afro-brasileiras são evidenciadas nestas composições?
Pontos Rituais
As composições que Waldemar Henrique classificou como “Pontos Rituais” são
sete, embora alguns autores tenham destacado apenas três destas composições. A
musicóloga Lenora Brito, em seu livro “Uma leitura da obra de Waldemar Henrique”
(1986), apresenta uma análise de três dos sete pontos rituais, que ela chama de “A trilogia
dos Pontos Rituais” (Sem-Seu, Abá-Logum e No jardim de Oeira); o musicólogo Vasco
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Mariz, em seu livro “Vida Musical” (1997) também destaca apenas as três composições
analisada por Lenora Brito; o que também se repete no livro “Música em questão” (1914),
onde o musicólogo Sérgio Bittencourt-Sampaio destaca entre as músicas que fazem
referência às religiões afro-brasileiras os “Três pontos Rituais: Sem-Seu (Candomblé de
Ilhéus), Abá-Logum (Louvação de Xangô) e No Jardim de Oeira (Ponto ritual de
Umbanda) (Valdemar Henrique)” (BITTENCOURT-SAMPAIO, 2014:180). O que pode
levar alguns leitores a compreender que as composições classificadas como pontos rituais
sejam três ao invés de sete, como nos apresenta Claver Filho em seu catálogo, como
podemos observar no quadro a seguir:
Quadro 1 – Quadro dos Pontos Rituais
TEMA
Yan-san (1937)
Abaluaiê (1948)
No jardim de Oeira (1948)
Sem Seu (1952)
Abá-Logum (1954)
Abaluaiê-cô (1960)
Canto de Obá (1965)
GÊNERO
Ponto Ritual
Ponto Ritual
Ponto Ritual
Ponto Ritual
Ponto Ritual
Ponto Ritual
Ponto Ritual
Fonte: Catálogo de Obras de Waldemar Henrique (CLAVER FILHO, 1978: 105-15).
Estas composições foram elaboradas para canto e piano. A primeira obra que
Waldemar Henrique compõe relacionada aos pontos rituais do Candomblé foi produzida
no ano de1937, neste ano o compositor paraense, em uma breve passagem pela Bahia, faz a
harmonização do ponto de candomblé Yan-san. É interessante perceber que neste mesmo
ano acontece na Bahia o “II Congresso Afro-brasileiro”, que teve a coordenação de Edson
Carneiro e a participação de vários pesquisadores das religiões afro-brasileiras, além da
divulgação de uma das principais obras sobre as religiões de matriz africana, o livro
“Religiões Negras” publicado no ano anterior (1936) e “Negros Bantos” (1937), todos de
autoria Edson Carneiro. A partir deste ano, Waldemar Henrique demonstra certo
entusiasmo pelo estudo das religiões afro-brasileiras, chegando a realizar uma excursão
para a Bahia no ano de 1939, onde realizou um recital no dia 14 de março, juntamente com
sua irmã Mara. Neste ano, Waldemar Henrique realizou fecundas pesquisas sobre o
folclore baiano. Sobre estas pesquisas, o compositor faz as seguintes considerações em
entrevista ao jornalista João Carlos Pereira:
Com isso nós andamos por todas aquelas “Menininhas do Gantois”, todas que
tinham por lá; o Joãozinho da Goméia e não sei quê, eu achei um espetáculo
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maravilhoso também aquelas coisas; e colhi uma quantidade enorme de
apontamentos, daqueles candomblés (PEREIRA, 1984:56).
Estas informações que a primeira vista pode parecer sem grande relevância para o
estudo da obra do compositor, são na realidade importantes direcionamentos para a melhor
compreensão das composições que Waldemar Henrique produz relacionadas às religiões
afro-brasileiras, pois nos revelam as relações que o compositor estabelece com pessoas e
com as nações de candomblé da Bahia. Não podemos esquecer as recomendações de
autores como Gilbert Durand, antropólogo francês que nos adverte sobre “a importância da
investigação do trajeto antropológico do artista ao analisarmos sua obra” (2001:41); as
ideias de Béhague, que postula que “o foco central da compreensão e do estudo da criação
de ser o compositor em suas múltiplas dimensões sociocultural, e estético-ideológicas”
(1992: 6). Neste sentido, não podemos esquecer a definição de Merriam (1964:7): “A
música é um produto do comportamento humano e possui estrutura, mas sua estrutura não
pode ter existência própria se divorciada do comportamento que a produz”.
Personalidades como Mãe Menininha e Joãozinho da Gomeia são ícones
importantes das nações do candomblé baiano.
Maria Escolástica da Conceição Nazaré (1894-1986), ou “Mãe Menininha dos
Gantois, como ficou conhecida, foi uma das Ialorixás mais importantes da Bahia e do
Brasil” (BARBOSA JUNIOR, 2011:13), foi também uma das lideres mais influentes do
Candomblé da nação queto.
João Alves de Torres Filho (1914-1971), mais conhecido como Joãozinho da
Gomeia, foi um polêmico sacerdote do Candomblé Angola que também transitava pelos
terreiros do Gantois, sob os cuidados de Mãe Menininha. A relação de Waldemar Henrique
com Joãozinho da Gomeia e sua importância como orientador do compositor paraense no
que se refere a religiosidade afro-brasileira são também evidenciadas no texto de sua
biografia: “O compositor realizou fecundas pesquisas folclóricas sob a orientação de
Carlos Chiaccio, dos irmãos José e Clarival Valladares, de Silva Campos e do Pai-de-santo
Joãozinho da Gomeia” (Claver Filho, 1978: 31). Da convivência e aprendizado que
Waldemar Henrique estabeleceu com estas pessoas nos terreiros das religiões afrobrasileiras da Bahia de outros estados brasileiros surgiram as canções que o compositor
classificou como Pontos rituais, sobre as quais apresentaremos algumas considerações a
seguir:
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Yan-San (1937)
O primeiro ponto ritual que Waldemar Henrique compôs, faz referência a Orixá
Yan-san ou Iansã, “Orixá guerreira, senhora dos ventos, das tempestades, dos trovões e dos
espíritos descarnados” (BARBOSA JR, 2014: 101), que segundo Reginaldo Prandi,
significa “Mãe de nove filhos” (PRANDI, 2001: 294). Esta composição é uma das obras
desaparecidas de Waldemar Henrique, foi composta no ano de 1937, porém, não foi
possível encontrar sua partitura, nem tão pouco seu registro em LP; CD’S ou outro tipo de
registro sonoro.
Abaluaiê (1948)
É o segundo ponto ritual composto por Waldemar Henrique.Para José Claver Filho,
“é um arranjo que entrelaça a melodia original de um ponto ritual de Candomblé de Ilhéus
(Bahia) a outros motivos folclóricos” (CLAVER FILHO, 1978: 36). Esta composição teve
sua primeira audição no dia 2 de setembro de 1948, no auditório da ABI- Associação
Brasileira de Imprensa, do Rio de Janeiro, em um evento em homenagem a esposa do
Jornalista Roberto Marinho, que foi de grande relevância para a projeção do compositor no
cenário nacional e internacional, sendo classificado pela imprensa carioca como um dos
três eventos mais importantes do Ano de 1948 (CLAVER FILHO, 1978: 36).
Esta composição pode ser consultada em sua versão original, localizada na Divisão
de Música e Arquivo Sonoro da Fundação Biblioteca Nacional sob o registro M784. 3H-I24, ou através de uma fotocópia, que se encontra na biblioteca do Instituto Estadual Carlos
Gomes. Nesta edição, que aparece como dedicada À Madeleine Grey138, constam as
seguintes informações:
Abaluaiê ou Obaluayê é grande orixá
Do Candomblé nagô.
Médico, por excelência, identifica-se com
S. Sebastião, S. Salvador e S. Roque
Seu traje: longo funil de palha
Cobrindo-lhe a cabeça e os hombros,
não deixando vêr sua fisionomia.
Sua dança: passos rápidos para um
lado e para outro; braço, em ângulo
obtuso, apontando.
Suas cores: preto e vermelho.
Seu alimento: galo, porco, bode,
Pipocas
Seu dia: 16 de agosto.
138
Jovem cantora que Waldemar Henrique conheceu em Paris.
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Ilustração de Capa:
Duas “ekédes” Invocando Abaluaiê.
No Jardim de Oeira (1948)
Trata-se da harmonização de ponto ritual de Umbanda do Rio de Janeiro
(CLAVER FILHO, 1978:109). Esta composição fez grande sucesso e também apresenta
um relevante número de gravações. A música está composta em duas partes (A e B), onde
na parte A os versos fazem referência as lembranças da infância do compositor em
Portugal e na parte (B), utilizando-se de sincopas acentuadas, de um andamento mais
animado, o compositor reforça o quadro da negritude que emana de um terreiro de
Umbanda.
Sem Seu (1952)
A quarta composição do gênero pontos rituais é uma harmonização de motivos de
candomblé de Ilhéus (Bahia), dedicada a Radamés Gnattali; Sem Seu “é entidade inferior
desconhecida que se materializa numa pedra” (CLAVER FILHO, 1978: 113). Nesta
composição, os versos trazem uma mistura de palavras da língua portuguesa e de línguas
africanas, que embora de difícil tradução, mostram evidente relação com o Candomblé
(Aruanda; Yemanjá; Ori) e outras que parecem sugerir a ideia de lugar (Congoricó ;
Maionguê e Bujanjo). A música inicia com quatro compassos executados na parte mais
grave do piano, com um caráter percussivo que lembra a batida dos tambores rituais, dando
à música um caráter misterioso e ritualístico.
Abá-Logum (1954)
Quinta composição de Waldemar Henrique neste gênero, apresenta um arranjo
realizado no ano de 1954, de dois temas folclóricos registrados por Capiba e Camargo
Guarnieri, respectivamente; dedicado a Edgar de Fabrie. “Abá-Logum é entidade festejada
nos Xangôs de Recife” (BRITO, 1986:39). Nesta composição que apresenta sua letra toda
em língua africana, a parte referente ao piano parece ter a intenção de reproduzir, os
motivos rítmicos dos tambores rituais, em um “ostinato” que está presente desde o início
da peça , até o 25º compasso e termina com um grande crescendo, que parece ser uma
fervorosa louvação de Xangô.
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Abaluaiê-Cô (1960)
Este ponto ritual encontra-se registrado no catálogo de Claver Filho (1978:105),
que o identifica como Tema de Candomblé da Bahia arranjado no ano de 1960. Porém,
esta composição não aparece na discografia do compositor, o que leva a crer que se trate de
mais uma obra do compositor que ainda está desaparecida.
Canto de Obá (1965)
Que é a ultima composição do gênero pontos rituais, faz referência ao Xangô do
Recife, esta composição teve sua partitura publicada recentemente pela Secretaria de
Cultura do Estado do Pará, no livro “Waldemar inédito e raro Henrique” (2005:25), que
teve a orientação de Lenora Brito. Nesta música o compositor faz referência à Orixá Obá,
divindade do rio Níger, irmã de Iansã, que é a terceira e mais velha das esposas de Xangô,
cultuada por alguns como um aspecto feminino de Xangô (BARBOSA JR, 2014:154).
Considerações Finais
As composições classificadas como Pontos Rituais demonstram o interesse e o
conhecimento de Waldemar Henrique das divindades e até mesmo da liturgia das religiões
afro-brasileiras como o Candomblé, o Xangô e a Umbanda. Nestas canções, o compositor
parece interessar–se mais pelos aspectos sonoros dos rituais das religiões afro-brasileiras,
deixando o aspecto ritual em segundo plano, embora tenha tratado destes temas de forma
digna e com o respeito que merece. Porém, Waldemar Henrique se declarado católico e
devoto de São José. O que também é curioso, pois percebermos que no conjunto de sua
obra não existem canções em homenagem aos santos católicos, à Virgem de Nazaré e tão
pouco ao Círio de Nazaré,a maior festa religiosa do Brasil e um dos maiores eventos
religiosos do mundo.
Referências
BARBOSA JÚNIOR, Ademir. O essencial do Candomblé. São Paulo: Universo do Livro,
2011.
BÉHAGUE, Gerard. Fundamento Sócio Cultural da Criação Musical.Art19 (ago), p.5-17,
1992.
BITTENCOURT-SAMPAIO, Sérgio. Música em questão. Rio de Janeiro: Mauad X, 2014.
BRITO, Maria Lenora Menezes. Uma leitura da música de Waldemar Henrique. Belém:
Conselho Estadual de Cultura, 1986.
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CLAVER FILHO, José. Waldemar Henrique: O canto da Amazônia. 2ª ed. Rio de Janeiro:
FUNARTE, 1978.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à
arquetipologia geral. Tradução de Hélder Godinho. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
MERRIAM, Alan P. the Anthropology of Music. Evans, Illinois: Northwestern University
Press, 1964.
PEREIRA, João Carlos. Encontro com Waldemar Henrique. Belém: Falangola, 1984.
PRANDI, Reginaldo. De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião. Revista
USP, nº 46, p.52-65, junho/agosto, 2000.
. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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A presença dos pontos de raiz da Umbanda e do Candomblé na M.P.B.
Dayse Maria Pamplona Puget
UFPA - [email protected]
Resumo: A Música Popular Brasileira conhecida pela sigla MPB se apresenta em uma variedade de gêneros
e subgêneros. Entre esses existem alguns provindos dos rituais da Umbanda e Candomblé que extrapolam o
ritual e conseguem atingir um público que, embora não tendo conhecimento das suas origens e significados,
os tocam, cantam e dançam em outros contextos. As músicas desses gêneros são conhecidas no ritual como
música “de raiz,” ou “pontos”. A abordagem deste trabalho de pesquisa se estabelece nos fundamentos da
Etnomusicologia, por se inserir em um contexto cultural. Esta pesquisa pretende: mostrar alguns textos de
algumas destas músicas, relacionando seus significados, a origem destas religiões e de alguns orixás com
seus símbolos. A metodologia se fundamentou em leituras sobre Etnomusicologia, Umbanda, Candomblé e
Música Popular Brasileira. Para conhecimento de algumas destas músicas fiz um levantamento destes
gêneros interpretados por intérpretes conhecidos na mídia. Concluí que existe a necessidade de maior
abrangência deste estudo em busca de mais subsídios deste segmento da Música Popular Brasileira..
Palavras-chave: Pontos Rituais. Religiosidade afro-brasileira. Música Popular Brasileira.
A música popular brasileira (MPB) se apresenta em uma diversidade de gêneros
que vem se constituindo ao longo do tempo. Os gêneros e estilos se distribuem em todo
território brasileiro havendo alguns que vieram a se constituis como característicos de
determinadas regiões, como o carimbo no Pará, o Axé na Bahia o Maracatú em
Pernambuco.
Dentre as músicas que fazem parte deste grande manancial em que se constitui a
MPB encontra-se a música do ritual, que ultrapassando os limites da religiosidade e dos
locais do culto, migram para música popular. Muitas delas se apresentam com outras
instrumentações e gêneros, mantendo vivo, porém, o texto.
Na manutenção do texto se revelam alguns vocábulos de significação própria ao
ritual, sendo deste modo talvez não compreendido em seus significados por aqueles que a
consomem. Um dos pontos a se considerar neste não entendimento se refere ao preconceito
conforme esta afirmação.
Uma das bases do preconceito (talvez a mais visível) é a ignorância. Literal e
etimologicamente, ignorar significa ‘não saber’. O que não conhecemos nos
provoca medo. Nos campos da Espiritualidade e da Religião não deveria haver
espaço para o medo, mas, sim, para o respeito e o diálogo, seja interna ou
externamente (BARBOSA JUNIOR, 2014, p.313).
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O fato é que estas músicas fazem parte do repertório da M.P.B. se inserindo no
contexto cultural e a partir desta inserção passa a fazer parte dos estudos e análises da
Etnomusicologia porquanto são construídas culturalmente.
A função da música na sociedade humana, o que a música faz em último caso, é
controlar o relacionamento da humanidade com o sobrenatural, intermediando
pessoas e outros seres, e dando-lhe suporte à integridade dos grupos sociais
individuais. Isso é feito expressando os valores centrais relevantes da cultura em
formas abstratas... Em cada cultura a música funciona para expressar, de uma
forma particular, uma série de valores particulares (NETTL, 1983, p.159).
A música do ritual como objeto de estudo da Etnomusicologia é analisada em seus
diversos elementos constitutivos; em relação ao repertório e composição é importante terse conhecimento que:
(...) músicas tradicionais do candomblé cujo estilo e repertórios têm funções
litúrgicas bem definidas, onde seria impensável substituir um canto tradicional
por uma nova composição, considerando a estreita relação estabelecida entre um
canto, uma melodia e sua letra e o efeito litúrgico desejado e esperado. Portanto,
em casos como este, o sentido da tradição é praticamente inalienável
(BÉHAGUE, 1992, p. 12).
As músicas que fazem parte dos rituais da Umbanda e Candomblé obedecem a
padrões diversos daqueles observados entre os compositores da MPB. As composições do
ritual são realizadas de modo inconsciente e muito embora pouco se saiba a cerca do
mecanismo do que poderia vir a ser composição inconsciente, ela “representa uma das
fontes mais poderosas de revelação ou criação musical...” (BÉHAGUE, 1992, p. 8).
É grande o número de músicas presentes na MPB que se pode incluir como
provindas dos rituais da Umbanda e do Candomblé. Prandi (2005)139 catalogou 761 letras
da MPB referente ao período de 1902 a 2000 que fazem referências a orixás e a elementos
diversos destes rituais.
É importante neste contexto, ressaltar a relação da música com o sobrenatural.
Se a função da música é controlar as relações de um grupo com o sobrenatural,
precisamos saber por que os membros de um grupo usam a música para exercer
tal controle e por que um gênero particular de música, enquanto distinto de todos
os outros, pode ser empregado para outros fins (NETTL, 1983, p.159).
139
Fonte:
Reginaldo
Prandi
(USP
http://www.fflch.usp.br/sociologia/prandi/orixampb.pdf
e
CNPQ).
Disponível
em:
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Estas manifestações contudo, não escapam ao conhecimento destas religiões visto
que são classificados em: pontos de raiz, que são aqueles que vêm da espiritualidade e
pontos terrenos, que são aqueles criados por encarnados e que posteriormente são
ratificados em suas apresentações à religião (BARBOSA JUNIOR, 2014).
Esta afirmação parece que enquadra o aparecimento dos pontos em outros
momentos que não o ritual. Entretanto, para encontrar as causas deste fenômeno, são
necessárias análises que ainda esbarram em dificuldades que segundo Nettl (1983) derivam
da “... separação entre busca por funções, que requerem muito pouca atenção à música, e a
busca pelas estruturas sonoras” (SEEGER, 2008, p. 250).
O aparecimento desses gêneros musicais no Brasil oriundo das práticas religiosas
dos negros escravos que através de várias gerações foram criados em diferentes
épocas e costumes através de dinâmicas das relações sociais, foram evoluindo
para se tornar entretenimento e formas lúdicas também dos brancos (SIQUEIRA,
2012).
No ritual as músicas são conhecidas como pontos. Os pontos apresentam diversas
funções “os pontos cantados impregnam o ambiente de determinadas energias enquanto o
libera de outras, representam imagens e traduzem sentimentos ligados a cada vibração...”
(BARBOSA JUNIOR, 2014, p.40).
Algum conhecimento a cerca das origens da Umbanda e do Candomblé é
necessário para que se possam compreender alguns significados. A Umbanda considerada
uma religião genuinamente brasileira, é instituída no Rio de Janeiro em 15 de Novembro
de 1908, mas segundo consenso de alguns teóricos não neste ano, mas em 1920 com uma
concepção de variada procedência, entre essas: a índia, a negra e a branca, é conhecida
como “Senhora da Luz Velada”.
(...) marcada pela busca de uma legitimação diante da sociedade e do Estado
brasileiro. Apresenta características próprias, suas canções, danças, oferendas,
trabalhos, representando um papel importante na vida religiosa das pessoas que a
praticam. É uma religião essencialmente urbana desde o seu surgimento
associado aos fenômenos de industrialização e urbanização, até os dias de hoje
(BORGES, 2006, p. 226).
A Umbanda é encontrada em todo território brasileiro e procura sua legitimação e
institucionalização dentro da sociedade. O termo procede de duas línguas africanas: o
umbundo e o quimbundo designando: arte de curandeiro, ciência médica, medicina
(BARBOSA JUNIOR, 2014).
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Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.
Esta religião apresenta uma adaptação ao contexto de onde se localiza,
apresentando ramificações segundo uma maior ou menor aproximação com os elementos
étnicos, branco e negro. A variação se daria em três vertentes principais, quais sejam: A
branca, a preta e a mista.
A Umbanda Branca caracteriza-se pela adoção da doutrina espírita kardecista e
pela negação das origens e influências negras. A Umbanda Mista caracteriza-se
pela mistura das vertentes branca e negras, isto é, apresenta elementos do
Kardecismo e do Catolicismo associados a algumas práticas emprestadas das
religiões afro brasileiras. E na Umbanda Preta predomina a associação com os
cultos afro-brasileiros... (SERRA, 2001, p. 221, apud BORGES, 2006, p. 226).
Esta matriz africana não é a única “é um sistema religioso formado de diversas
matrizes, com diversos elementos cada” (BARBOSA JUNIOR, 2014, p. 24). Estes
elementos seriam segundo este autor: o Africanismo; o Cristianismo; o Indianismo; o
Kardecismo; e o Orientalismo. Percebe-se desta forma que o ecletismo e o sincretismo são
elementos constitutivos desta religião,
Com relação ao Candomblé, suas origens no Brasil se iniciam nas senzalas, porém
muito antes os africanos que foram escravizados no Brasil já tinham suas crenças em sua
terra de origem.
O fato de na África Ocidental todos os atos do dia-a-dia regerem-se por vontade
natural, o que subordinava os homens a constantes encantamentos e sortilégios,
levou os africanos a desenvolverem um complexo ritual de vida que exigia, para
a praticamente cada ação desempenhada, uma invocação especial, através de
cantos ou danças. (TINHORÃO, 2008, p.123).
Este teórico afirma a esse respeito, que o canto e a dança não se faziam presentes só
nos ritos, mas em momentos que eram marcantes na vida deles “nascimento, puberdade,
casamento, morte... cataclismos, lutas de guerra, vitórias, caçadas, confraternizações... as
canções de trabalho.” (TINHORÃO, 2008, p. 123).
Para cultuar os Orixás que no Brasil eram tidos pela comunidade católica como
associados ao mal e ao Diabo, os africanos faziam seus cultos de uma forma velada,
passando a cultuar os diversos Orixás em um mesmo culto (BARBOSA JÚNIOR, 2014).
O uso da metáfora ocultava o sentido dos cantos e só era possível o seu
entendimento de uma forma hermética entre os componentes do grupo. Desta forma, seus
cultos, deram origem ao sincretismo, associando a cada santo da Igreja Católica, um Orixá
(TINHORÃO, 2008).
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A música, portanto é um dos elementos de extrema importância no ritual (também
conhecido como gira) da Umbanda e do Candomblé.
(...) os pontos cantados são alguns dos responsáveis pela manutenção da vibração
das giras e de outros trabalhos. Verdadeiros mantras, mobilizam forças da
natureza, atraem determinadas vibrações, Orixás, Guias, Entidades (BARBOSA
JÚNIOR, 2014, p.40).
No Candomblé como na Umbanda usam-se diversos instrumentos musicais
percussivos e cada casa utiliza os instrumentos conforme seu ritual140. Entretanto, o que se
percebe quando presentes na MPB, é que estes pontos podem ou não vir com
instrumentação percussiva e também com outros instrumentos que não os usados no ritual.
Referente a Oxum141, este ponto foi gravado por Maria Bethânia no CD Olho
D’Água em 1992. Cantado na tonalidade Si menor, ad libitum em ritmo 4/4, em gênero
funk lento tem instrumentação com voz, violão e efeitos percussivos.
Ponto de Oxum
Nhem, nhem, nhem
Nhem, nhem, ô xorodô
Nhem, nhem, nhem.
É o mar, é o mar
Fê, fê, Xororô
Xangô vivia em guerra
Conhecia toda terra
Tinha ao seu lado Iansã para lhe ajudar
Oxum era rainha
Na mão direita tinha O
seu espelho onde vivia
A se mirar
Os Orixás na Umbanda tem o significado de “divindade que habita a cabeça”
(BARBOSA JUNIOR, 2001, p. 42). Explicando mais pormenorizadamente: cada Orixá
relaciona-se a um elemento da natureza e também representa pontos de força;
Visto que o ser humano e seu corpo estão em estreita relação com o ambiente (o
corpo humano em funcionamento contém em si água, ar, componentes
associados à terra, além de calor, relacionado ao fogo), seu Orixá tratará de
cuidar para que essa relação seja a mais equilibrada possível (BARBOSA
JUNIOR, 2014, p. 42).
140
141
Fonte: https//o candomblé.wordpress.com/2009/23.instrumentos e ritmos-e rimos
Fonte:Gonçalves, You Tube. Filosofia Espiritualista
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Oxum é um Orixá feminino, da fertilidade e da feminilidade, relacionado às águas
doces, águas das cachoeiras, águas dos rios, das lagoas, de águas que não são de pântano e
em algumas situações, também às águas da beira. Sua feminilidade se apresenta através de
joias, perfumes, pulseiras, colares e também com espelhos.
Oxum é Orixá ligado à comunicação, presságios, sentimentos que inspiram o amor
união e a fraternidade. Seu sincretismo está associado a várias formas de Nossa Senhora.
Suas cores são o azul e o amarelo, seus símbolos são a cachoeira e o coração. Sua saudação
é Ora ye ye o! A ie ie u ! (Salve Mãe das Águas). Seu dia é comemorado em 12 de
Outubro (BARBOSA JUNIOR, 2014).
Outro ponto que faz sucesso na MPB é do Orixá Oxóssi. Gravado por Maria
Bethânia em 2002 no CD De A a Z, na tonalidade Ré Maior, compasso binário, gênero
baião, Instrumentação: voz, naipe de metais, efeitos percussivos.
Ponto de Oxóssi
Galo cantou
Tá chegando a hora
Oxalá tá me chamando
Caçador já vai embora
Esse Orixá é da caça e da fartura, tem como um dos objetivos o equilíbrio da
natureza através das ações do homem, evitando os males que agridem a natureza, agindo
com ela de forma harmônica. Rege a linha dos caboclos da Umbanda e desta forma “pode
aproximar-se mais do índio do que do negro africano” (BARBOSA JÚNIOR, 2014, p. 67).
O sincretismo de Oxóssi é São Sebastião, suas cores são verde e azul celeste claro,
seus símbolos são o arco e flecha, sua saudação é Okê Arô (Salve o Rei que fala mais alto)
seus pontos da natureza são as matas e seu dia é 20 de Janeiro (BARBOSA JUNIOR,
2014).
Os pontos que são cantados para Exus e Pombagiras aparecem também na MPB. O
“ponto” a seguir é para o Exu Tranca Rua ou Tranca Ruas142 que faz parte do trabalho do
compositor e cantor Martinho da Vila. Este se encontra no CD Festa de Umbanda. Foi
gravado na tonalidade Ré maior, compasso binário, gênero batuque, com voz, coro,
atabaques e efeitos.
142
Fonte: www.youtube.com/watch/v=wZINno-kdyY
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O Sino da Igrejinha
O sino da igrejinha faz Belém blem blom
O sino da igrejinha faz Belém blem blom
Deu meia noite o galo já cantou
Seu Tranca Rua que é o dono da Gira
Ô Corre Gira que Ogum mandou
Consideradas entidades “de esquerda”, estes espíritos tiveram vida difícil enquanto
estavam no corpo físico, relacionada à prostituição, cabarés e a outros locais similares. Na
espiritualidade agem na prática do bem e embora nas trevas executem a Lei, desta forma,
praticam a caridade (BARBOSA JUNIOR, 2014).
(...) é Orixá bastante controvertido e de difícil compreensão – o que certamente o
levou a ser identificado como o Diabo cristão. Responsável pelo transporte das
oferendas aos Orixás e também pela comunicação dos mesmos é, portanto, seu
intermediário. Como reza antigo provérbio, Sem Exu não se faz nada
(BARBOSA JUNIOR, 2014, p. 137).
As suas cores são o preto e o vermelho, seu símbolo é o tridente, seus pontos de
natureza são as encruzilhadas, sua saudação é Laroiê, Exu Exu, Mojubá. O sincretismo
relaciona-se a Santo Antonio de Pádua e seu dia é comemorado no dia deste santo, isto é,
13 de Junho (BARBOSA JUNIOR, 2014).
Com relação à Pombagira ou Pombogira, são Exus do sexo feminino. O texto da
música a seguir é para essas figuras femininas. Tem arranjo e interpretação de Martinho da
Vila no CD Festa de Candomblé, gravado na tonalidade Ré Maior, compasso binário,
gênero batuque, instrumentação: voz e coro, atabaques e efeitos.
Exus.
Exu laroy é Mojuba
Mojuba cojuba exu afonagera (laroy exu)
Oi sete, oi Sete Encruzilhada
Toma conta e presta conta
No romper da madrugada
Ninguém pode comigo eu posso com tudo
Lá na encruzilhada ela é Veludo
Pomba-gira Jamukangê iaiá
Pomba-gira Jamukangê iaiá
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Os “caboclos” fazem parte de uma linha da Umbanda “... formam verdadeiras
aldeias e tribos na Astral, representados simbolicamente pela cidade Jurema...”
(BARBOSA JUNIOR, 2014, p. 206).
Conclusão
Este trabalho se propõe a mostrar algumas músicas oriundas de “pontos” da
Umbanda e Candomblé que foram sendo incorporados ao repertório da Música Popular
Brasileira, a origem destas religiões e os significados dos Orixás a elas relacionados. Estas
músicas fazem parte do contexto cultural estando inseridas nos estudos da
Etnomusicologia.
Na metodologia fiz um levantamento bibliográfico em Etnomusicologia, em obras
sobre Umbanda e Candomblé e outras relacionadas à MPB. Para conhecer algumas destas
músicas fiz um levantamento discográfico que inclui intérpretes consagrados na MPB.
Constatei que esta vertente se apresenta em vários gêneros musicais, estruturas
variadas tanto em ritmo como também em melodia, harmonia, e instrumentação. Por fazer
parte do repertório da Música Popular Brasileira, estas músicas egressas de rituais se
apresentam como um campo fértil para análises mais abrangentes, não só no campo da
Etnomusicologia, mas também em outras áreas do conhecimento que se interagem com a
música.
Referências:
BARBOSA JÚNIOR, Ademir. O Livro Essencial de Umbanda. São Paulo, Ed. Universo dos Livros, 2014.
BEHÁGUE, Gerard. Fundamento Sócio Cultural da Criação Musical. Art 019, In Revista da Escola de
Música UFBA 5-17. Agosto 1992.
BORGES, Mackely Ribeiro. Umbanda e Candomblé: pontos de contato em Salvador Bahia. XVI Congresso
da Associação de Pesquisa e Pós Graduação em Música (ANPPOM) Brasília, 2006.
NETLL, Bruno. The Study of Etnonomusicology: twenty nine issues and concepts. Urbana of Illinois Press,
1983.
SEEGER, Anthony. Etnografia da música. In Cadernos de Campo: revista dos alunos de pós-graduação em
Antropologia Social da USP. Vol. 1, n.1 São Paulo, 2008.
SIQUEIRA, Magno Bissoli. Samba e identidade nacional: das origens à era Vargas. 1.ed.. São Paulo: Editora
UNESP, 2012.
TINHORÃO, José Ramos. Os Sons dos Negros no Brasil. Cantos, danças, folguedos: origens. São Paulo, Ed.
34, 2008.
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