II Concurso Literário "Envelecimento e Saúde"

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Uma boa saúde dá mais vida aos anos
II concurso literário
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textos
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I Prémio
Reminiscências
PAULA MACIEL
Nenhum lugar está mais cheio de recordações do que este. Vejo-a, sentada, ali, na nossa
varanda, naquela velha cadeira de baloiço, entre memórias doces e afáveis momentos,
um ou outro mais ardente, um ou outro mais cruel. Vejo-a, ali, sob a sombra da buganvília,
saboreando a inocente alegria de ver o tempo correr. De vez em quando pinta no rosto
um sorriso espontâneo de quem ousa contemplar o mundo.
Vejo-a, ainda hoje, atenta ao murmúrio do mar, aos gritos das crianças, às minhas lamentações. Vejo-a a aconchegar o casaco consumido pela vida, de uma forma tão natural,
mas apressada pelo vento áspero e inquieto que insiste em penetrar no seu corpo frágil. O
cheiro que o vento lhe traz é um apontamento de saudade efémera, incapaz de descrever,
perdendo-se, mais uma vez, na infinita fantasia da sua escassa memória. Fecha os olhos
e sente o sabor da terra, o calor do sol na fronte enrugada, o doce dos morangos acabados de colher, o acre dos kiwis e a gulodice com que sempre brincou.
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Numa tarde calma, vejo-a como foi. Pedaço dela em mim, pedaço dela em nós; lutadora,
destemida, meiga e protetora, profundamente Mulher!
Numa tarde calma, vejo-a. Vejo-a como hoje já não a posso ver.
Numa tarde calma, sente de perto o seu passado, num presente que para ela está ausente. Numa tarde assim, ainda procura a ordem das coisas, a nuvem que passa, o azul do
céu, o orvalho numa flor, o amparo de um filho, o melhor de si, um detalhe. Mas não um
detalhe qualquer, simplesmente a vida completa.
A inconsistência da sua memória revela-se, dia a dia, com medos, emocionando-se aos
poucos, como soluços de criança, na vaga recordação de quem foi um dia. Perde-se em
si, perde-se em nós e definha no esquecimento de si mesma. Um olhar vazio, perdido no
nada de um espírito que tanto foi.
Trago na memória, estas lembranças todas, de um tempo que passou, mas quero mantêlo presente em mim. Ganhar forças, formar um exército e lutar contra o tenebroso cavaleiro do vazio.
II Prémio
Um Pouco de Si em Mim
RUI FONTES SANTOS
Envolto nos lençóis dormia. Lá fora a chuva caía de forma precisa e homogénea, primeiro
numa ameaça fugaz, depois com pujança replicando nas telhas gastas do telhado.
Nessa manhã daquele inverno rigoroso, o dia começava paulatinamente a irromper sobre
a noite, abrindo-se de forma lenta e penosa, com a claridade a conseguir desabrochar
por entre as nuvens cinzentas que cobriam o céu. Timidamente, por entre as frinchas de
uma persiana estragada, a luz da estrela central do sistema solar imanava uma luminância
branda e pouco vigorante, passeando com dificuldade pelo quarto, atingindo-lhe a cara,
despertando-o do sono profundo de mais uma noite de estudo.
O despertador tocou às sete em ponto, levantou-se e arranjou-se no quarto de banho
do corredor que partilhava com o avô. Eram quase oito horas quando o foi acordar. Chamou-o com o cuidado e com a delicadeza de quem toca numa flor, neste caso um cravo
vermelho e aveludado.
- Avô, são horas de se ir arranjar – disse-lhe, quase sussurrando.
- Arranjar-me? Que horas são?
- São oito horas. Vá-se levantando e pode ir já para o quarto de banho que eu já estou
pronto. Vou preparar o pequeno-almoço, está bem?
- Está bem – e virou-se com preguiça para o outro lado à procura do sono interrompido.
- Vá, não se vire. Vai chegar atrasado.
- Nesta idade eu já não chego atrasado a lado nenhum.
- Vou fingir que não ouvi, porque deve ser do sono. Podemos sempre chegar atrasados.
O avô levantou-se a custo, ficou uns minutos sentado na beira da cama a olhar para o
espelho. Tocou na sua face, sentiu a pele fina e macia, percorreu as rugas – que ganhou
com cada experiência de vida – com suavidade, numa espécie de carícia, até que num
impulso ganhou coragem e foi para o quarto de banho, enquanto o neto preparava o
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Um Pouco de Si em Mim
RUI FONTES SANTOS
pequeno-almoço. Esta semana estavam sozinhos. Os pais do jovem tinham ido passar
uns dias de férias para o campo repousar do ritmo frenético que levavam no dia-a-dia. Faziam-no duas a três vezes por ano, uma vez que não tinham possibilidades de ir de férias
na época alta. O neto e o avô estavam já habituados a essa rotina, em boa verdade era o
próprio avô que muitas vezes os incentivava a irem para a aldeia. O pequeno-almoço tinha
que ser reforçado para que o avô aguentasse a manhã na Universidade Sénior. Depois da
morte da avó, a família tentou de tudo para que o avô se mantivesse ocupado e ativo.
Nesse momento, as suas grandes aventuras eram a Universidade Sénior pela manhã e, à
tarde, a ginástica que a câmara municipal proporcionava. Desde que começou a frequentar estas duas atividades, notou-se um novo estado de espírito concomitante com uma
nova frescura física. O homem cabisbaixo dera lugar a uma nova etapa de vida, a uma
nova experiência, a uma nova amizade com o seu neto.
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O pequeno-almoço reforçado não era mais do que um pequeno-almoço normal, mas o
neto fazia questão de o preparar cuidadosamente e com a variedade que lhe era permitida, primeiro, para garantir que o avô o tomava e, segundo, que não abusaria das gorduras e do açúcar. Após a refeição, ambos tinham como destino a universidade – o neto
tinha entrado na Faculdade de Economia da Universidade do Porto, estava no segundo
ano e conseguia ter boas notas. No seu Volkswagen Polo de 1997, comprado com o
dinheiro que ganhou a trabalhar nas férias, seguiam viagem numa discussão sobre que
estação de rádio deviam ouvir, o avô queria notícias e o neto música. O avô argumentava
que saber as novidades do dia ajudava na instrução das pessoas. O neto perdia na ausência de argumentos válidos e cedia com deferência. As duas universidades não eram
muito longe, não obstante havia por parte do neto um esforço suplementar na conciliação
dos horários, pois também tinha aulas de tarde e ainda que ir buscar o avô.
No caminho para casa havia sempre uma conversa animada, mais parecida com um
monólogo, pois o avô debitava com grande entusiasmo o que havia aprendido e o neto
deixava que a conversa tivesse só um sentido, por um lado, porque sabia que desta forma o avô exercitava a mente, por outro, gostava de olhar para ele e vê-lo novamente feliz.
No entanto, naquele dia, o avô estava calado, qualquer coisa lhe havia retirado a habitual
alegria, o olhar triste acentuava as linhas da vida marcadas na sua pele. O neto deixou
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RUI FONTES SANTOS
passar uns minutos até que decidiu interpelá-lo:
- Então avô, o gato comeu-lhe a língua?
- Não, ela está aqui, mas não quer falar.
- Vá lá! Diga-me o que se passou, pode ser que consiga ajudar.
- Coisas de velhos.
- Velhos são os trapos. Diga-me, por favor, o que aconteceu. Não gosto de o ver assim.
- Sabes, nem todos têm a minha sorte. Hoje soube que um amigo, que vive sozinho e não
tem ninguém que o ajude, anda a faltar às aulas porque os filhos lhe dizem que a Universidade Sénior é para entreter velhos! Quanto à ginástica, dizem para deixar essas coisas
para os netos e que fique em casa. Nem se dignam a visitá-lo!
- Avô, não se trata de sorte ou azar, trata-se de bom senso. Lembro-me que a avó uma
vez me disse uma frase – numa altura em que atirei uma pedra pequena para assustar
um gato – que retenho para sempre: “não faças aos outros aquilo que não gostavas que
te fizessem a ti”. Para além disso, há uma responsabilidade social entre todos, pareceme demasiado grotesco que se abandone uma pessoa quando ela mais precisa. Não é
necessário sermos sequer família! Hoje vamos a casa do seu amigo, para que vá consigo
à ginástica. Deixo-vos no parque junto ao pavilhão que é abrigado e, assim, colocam a
conversa em dia.
O neto falou num impulso de revolta interior, tentando a todo o custo absorvê-la para
que o avô não se enervasse. No regresso a casa, onde o almoço estava já adiantado de
véspera, o neto começou a contar os minutos para tudo o que teria de fazer antes da primeira aula da tarde. Teria de ir buscar o amigo do avô e levá-los ao parque. Chegados a
casa, o neto apressou-se a colocar a roupa do avô para a ginástica e foi terminar o almoço. Hoje tinha preparação física, por isso, preparou uma massa de carne, sempre ouvira
dizer que era o que os atletas comiam antes das provas. A refeição ficou pronta enquanto
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Um Pouco de Si em Mim
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o avô trocou de roupa. Comeram primeiro uma sopa e depois o prato principal. No final,
o neto enganava o avô e dizia que o café tinha acabado e que só tinha cevada. O seu
coração já não era novo e, por isso, era preciso cautela – o neto geria a situação de modo
natural e verosímil.
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A casa do amigo ficava perto do pavilhão, o neto podia deixá-lo e ainda vinha a tempo
de vir buscá-lo depois da ginástica. O carro parou em frente da casa do amigo, era geminada, pequena e muito mal tratada por fora. O neto perguntou duas vezes ao avô se
era mesmo aquela morada que mais parecia uma casa abandonada. Confirmou que sim,
que nunca havia entrado, mas que já o tinha vindo trazer quando o amigo andava mais
doente. Bateram à porta. Esperaram uns minutos até que o amigo a viesse abrir. A porta
de madeira está degradada e, a cada uso do batente, mais um pedaço de tinta caía como
um floco de neve. O amigo continuava sem responder, o avô repetia a cada cinco segundos que o amigo ouvia mal, o neto começou a ficar preocupado.
- Há quanto tempo não o vê? Tem a certeza que é neste local? Parece abandonada!
- É aqui, tenho a certeza. A verdade é que não o vejo há mais de uma semana.
O neto, cada vez mais preocupado, batia na porta ainda com mais força, mais tinta a cair
no chão, chegou mesmo a tentar espreitar pelas janelas, mas as persianas há muito que
não eram abertas e a sujidade tornava impossível a tarefa. O cérebro do neto fervilhava,
começou a raciocinar, o homem era um idoso, a família não queria saber dele, era doente,
a casa não era aberta há imenso tempo, há semanas que não aparecia na universidade
e na ginástica… das duas uma, ou a família se tornou consciente, ou o homem estava
lá dentro e não conseguia abrir a porta. Perante estas duas hipóteses, o neto não teve
pena da porta velha e desleixada que se desfazia e deitou-a abaixo com um pontapé. O
ar pesado saiu com a mesma força do pontapé, o cheiro era nauseabundo e irrespirável.
O neto pediu ao avô para ficar lá fora e entrou com o braço a tapar as narinas à procura
do amigo. A casa estava suja, o pó cobria cada peça, não obstante haver uma arrumação
generalizada das coisas, o amigo parecia organizado e com experiência da vida em solidão. A casa era pequena, escura, apenas com a mobília essencial, não havia muito por
onde procurar. No vazio da sala e da cozinha, restavam o quarto de banho e o quarto. À
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entrada do quarto, o neto viu o corpo do amigo deitado na cama, parecia que dormitava, a pele estava pálida. O coração do neto palpitou, chamou-o duas vezes, até que em
desespero colocou os seus dedos para verificar a pulsação…que batia ao ritmo da sua
fraqueza.
O INEM chegou em cinco minutos e o diagnóstico foi peremptório, a fraqueza era generalizada e iria precisar de ir imediatamente para o hospital. O neto assentiu e segui-os no
carro. O avô estava apático com a situação. Havia um silêncio ensurdecedor no ar. O neto
rompeu com aquele estado:
- O avô está bem? Precisa de alguma coisa? Fale comigo!
- Como é que isto pôde acontecer?! Eu devia ter vindo mais cedo. Ele também não me
ligou, caramba!
- Avô, não se martirize. A culpa não é sua. Pense que foi o avô que o salvou.
- Não, não. Foste tu. Insististe em que viéssemos buscá-lo e não te limitaste a deixar-me
ali à porta. Preocupaste-te com uma pessoa que nem conhecias. Tenho orgulho em ti…
Esperaram no hospital durante umas horas, até que uma médica veio falar com eles. O
amigo estava muito fraco devido à ausência ou ao pobre regime alimentar dos últimos
dias. Estava desidratado e foi mesmo preciso uma transfusão de sangue. A médica falava
com um ar sério e condenador. No final, disse que dentro de um ou dois dias o podíamos
levar para casa.
- Sra. Dra., estamos muito contentes em saber que o nosso amigo vai recuperar e que
chegámos a tempo. Quanto a levá-lo para casa, creio que o hospital deveria contactar os
familiares do paciente e informá-los do que se passou e do que poderia ter acontecido.
- Peço desculpa, pensei que fossem os familiares…
O neto e o avô foram ver o amigo que se encontrava a dormir. Ficaram de passar pelo
hospital no dia seguinte. No carro, o neto perguntou ao avô se queria ouvir as notícias. O
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avô abanou com a cabeça. Disse ao neto que ouvisse a sua música.
- Os teus amigos são todos como tu? – o avô quebrou o silêncio.
O neto percebendo o medo nos olhos húmidos e inchados do avô rematou.
- O avô nunca se esqueça que eu só existo porque há um pouco de si em mim.
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I Men
As janelas
Joana Teles Sarmento
I.
A última vez que se lembrava de estar deitado numa cama vendo o tempo passar devagar, devia ter uns sete ou oito anos. Um problema de fígado lançara-o para a imobilidade do leito onde, prisioneiro de todas as vontades menos a sua, se manteve por longos
meses.
A janela do seu quarto de então era ornada inferiormente por um bonito varandim de ferro
onde se distribuíam, num espaço rectangular, quatro perfeitas figuras circulares que por
serem brancas se confundiam com o céu do meio-dia. Dessa janela única ele via passar
os dias e as noites. Viu o Outono, que avançava rápido quando adoeceu, e o seu sol
de ouro avermelhado ainda com força bastante para aquecer os troncos e emprestar às
folhas as cores que mudavam. Ouviu o vento que cantava fino e soprava amiúde agitando
as folhas que se soltavam e partiam bailando lentas pelo céu, e ouviu depois o vento forte
que rugia violento durante dois ou três dias sem parar e despia as árvores dos seus ornamentos deixando-as como um pobre sem agasalho. Mas logo cessava o vento e voltava a
calma silenciosa.
Do que mais gostava era das árvores caladas e fortes com seus ramos nus, estendidos
para o céu, tão delgados nas extremidades que pareciam cabelos soltos. Podia ver ao
longe uma árvore inteira mas via muitos mais ramos e raminhos perto da janela que se
intricavam e confundiam uns com os outros: os do rododendro com os da cerejeira, os do
carvalho com a japoneira de folha perene. Sim, misturavam-se todos os ramos das árvores do jardim na porção inferior da sua janela parecendo os cabelinhos das crianças enriçados no final de um dia de brincadeiras. No Inverno tudo ficou nu e só muito ocasionalmente um pássaro que não sabia identificar pousava nos ramos. Depois veio o frio de um
azul brando e claro que parecia aumentar todos os sons – o das empregadas a trabalhar
nos pátios e o que faziam quando saíam para comprar pão e fechavam as portas com
força. Era um frio límpido, de cortar a respiração, onde tudo se via e ouvia melhor que no
mais claro dia de Verão. Chegou a chuva, ora miúda, ora em grossas pingas, salpicando a
janela de gotas que escorriam ininterruptas distorcendo as imagens, como a das nuvens
que em vez de parecerem bocados de algodão fofo como de costume se passavam a
assemelhar a pequenos seixos do mar de superfície polida e brilhante.
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As janelas
Joana Teles Sarmento
Nesses dias de Inverno rigoroso em que a chuva não parava durante semanas, sempre
caindo escorreita e húmida, ele cansava-se da sua janela e voltava-se para o interior do
quarto onde havia imensas coisas novas. Toda a família tinha vindo visitá-lo e oferecido
um brinquedo ou um livro que pudesse animá-lo e ajudar a passar o tempo. A um canto estava a estação de encaixes que a Tia Beatriz, o primo Jorge e a prima Clarinda lhe
tinham trazido, era a estação de comboios mais bonita da família dissera-lhe a tia e os
primos concordaram; o Jorginho amuado com toda a atenção dada ao primo teimava
que também queria ficar doente para ter uma estação de comboios como aquela. O avô
trouxera-lhe uma harmónica como a que tocava e tanto o encantava. O irmão João, estimulado pela mãe e pelo pai, viera entregar-lhe o carrinho preferido dos dois irmãos: “para
o Toninho brincar enquanto estiver a sarar”. Mas o melhor presente havia sido o da mãe
que todas as semanas lhe levava um exemplar novinho em folha das aventuras do Barba
Negra, um intrépido pirata que corria os mares do Norte em busca de tesouros e glória.
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Uma vez por semana, antes de adormecer, a mãe contava-lhe outras histórias de que
também gostava muito, mesmo muito, como a do príncipe que quis conhecer o mundo e
se fez pobre, a da tartaruga persistente que ganhou uma corrida a uma lebre descuidada,
a de um menino da altura de um dedo que conseguiu o que queria apesar da sua pequenez. Estas histórias reconfortavam-no e com as palavras no coração adormecia a sonhar.
Lembrava-se também que todos aqueles cuidados e atenções que todos amavelmente
lhe tinham prestado lhe haviam parecido a princípio um pouco exagerados, depois naturais e justificados e, por fim, merecidos e insuficientes. Como passadas algumas semanas
desdenhara a estação de comboios troçando da predilecção do primo por ela, como não
quisera tocar mais com a harmónica do avô por achar o som enfadonho e repetitivo e
como se zangava com a mãe cada vez que esta tentava suavizar-lhe o desconforto e o
tédio com uma história!
Tinha agora sessenta e seis anos e encontrava-se, decorridas seis décadas, novamente
deitado numa cama, imóvel, vendo o tempo passar. Uma pneumonia extensa lançara-o
para o leito branco em que se deitava e onde aportavam agora algumas recordações da
sua vida, como as ondas do mar ao leito brilhante da praia. O pior já passara dissera-lhe
o médico, tinha passado uma má semana, quase ausente de si, preso à vida por um fio
mas a Vida levara a melhor e estava agora a recuperar de uma enfermidade que diminuía
As janelas
Joana Teles Sarmento
de dia para dia. “Mas são ainda algumas semanas de cuidados e vigilância, Dr. Simões,
antes de podermos cantar vitória”. E assim, novamente prisioneiro de outras vontades que
não a sua, António tentava descobrir um pedaço do mundo de um canto isolado numa
enfermaria de um hospital.
Desta vez não houvera família, nem presentes nem presenças. Mentia, a mulher (ex-mulher) e os dois filhos tinham vindo visitá-lo no fim-de-semana e soubera que tinham andado preocupados com a sua saúde na semana de que nada se lembrava. Mas agora que
sabiam que estava melhor e a recuperar cada um tinha retornado à sua vida, sem mais
delongas, sem palavras ou gestos.
Estava deitado numa enfermaria branca com oito camas brancas, onde se deitavam oito
homens doentes. Um deles estava amarelo de icterícia e contrastava muito com o ambiente envolvente. Foi transferido para outro serviço pouco tempo depois, pelo que a enfermaria rapidamente retomou o tom que devia ter. António reparara que duas vezes por
semana vinham barbeiros aparar os bigodes e fazer as barbas o que conferia ao quarto e
aos doentes um ar muito asséptico e como eram todos velhos até os cabelos condiziam.
Destoava uma pequena cruz de madeira escura com Cristo Nosso Senhor pregado e de
cabeça caída; a cruz pendia toscamente inclinada para o lado da porta numa posição
desconexa e ainda mais dolorosa. António achava que o abandono naquele quarto era
como o daquela cruz mal colocada ¬– total.
II.
De manhã cedo realizava-se a visita clínica onde o médico assistente de cada doente se
inteirava do seu estado, dos seus progressos e intercorrências e o informava de novos
exames e plano. Este era o momento de maior ansiedade do dia para os oito homens; todos os gestos e palavras, todos os olhares para o lado e cochichos importavam. António
tinha aprendido a não fazer muitas perguntas, a ser paciente, a esperar, pois as respostas
do jovem médico pouco variavam de dia para dia. No global o caso estava a evoluir como
esperado e ele só esperava que o esperado fosse bom. Depois seguiam-se as rotinas
com as tomas de medicamentos, os banhos e, muitas vezes, as malfadadas colheitas
para as análises.
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As janelas
Joana Teles Sarmento
As refeições eram tomadas na cama pois ainda se encontrava fraco e o ar não lhe chegava a todos os cantos dos pulmões fazendo-o ficar ofegante com esforços pequenos.
O período mais animado era o da tarde quando chegavam as famílias com as roupas coloridas e os cabelos de cores variadas, barbas e bigodes fartos e vozeirões de gente sã.
Só quem habitava no quarto reparava como contrastava aquela gente barulhenta e saudável com os inquilinos brancos e pálidos que vinham visitar.
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Apesar de já ali estar há algumas semanas não havia conhecido nenhum dos seus companheiros de infortúnio e se ouvira as suas vozes fora enquanto respondiam às perguntas
do Sr. Doutor, dos enfermeiros ou auxiliares. A televisão ligava-se ao fim da manhã, depois
de toda a actividade clínica e mantinha-se durante todo o dia como um barulho de fundo
que preenchia o espaço e simultaneamente separava os homens; ele tinha aprendido a
relevá-lo para segundo plano para, pelo menos, se ouvir a si mesmo.
Quisera a sorte que a cama disponível aquando da sua chegada fosse a terceira da enfermaria, bem junto a uma grande janela. Fora olhando para ela que se lembrara da outra janela, a da sua infância, que o acompanhara numa outra doença prolongada. Eram
duas janelas bem diferentes. A primeira, alta e rectangular com um parapeito de madeira
onde se sentavam os tios e os primos quando o vinham visitar, era ornada pelo varandim
branco que lhe dava leveza e elegância e tinha duas portadas fortes que davam segurança. A janela do quarto do hospital era enorme, muito maior que a cama onde se deitava,
tinha caixilhos de ferro pintados em tom de bege e não abria de par em par como a de
casa dos seus pais mas antes deixava descair brevemente para dentro uma janela menor
permitindo uma abertura de um palmo por onde o ar circulava sossegadamente. A cobrila havia um estore igualmente enorme que regulava ora a entrada da luz do sol ora a dos
candeeiros da noite.
O que se via através das janelas também em nada se assemelhava. Da janela do hospital,
que pouco ocultava, ele podia ver todo o restante edifício e terreno circundante, com as
inúmeras janelinhas onde se adivinhavam interiores brancos e doentes, perdão, pacientes
esperando, que é outro modo de dizer, sendo pacientes. No parque do hospital, mesmo
defronte do edifício principal, cedo de manhã começava a corrida: dos carros chegando
As janelas
Joana Teles Sarmento
e procurando lugar para parar, da gente variada caminhando em passada rápida para a
entrada do hospital cruzando-se com outros que saíam mais lentamente e de ombros
mais baixos. Poucos chegavam aos pares ou em grupo e estes eram sobretudo estudantes que riam mais que os outros e também caminhavam de forma diferente, mais cantada.
Depois das oito e meia tudo acalmava fora e, em proporção, aumentava a agitação dentro.
Toda esta gente que entra e sai do hospital diariamente não mora aqui, esta não é a sua
casa, é apenas uma ferramenta do seu trabalho, como a serra de um carpinteiro ou o
pincel de um pintor. Ele sim vivia ali naquelas semanas e era mais dele o hospital que de
todos os que entravam e saíam e tinham outro lar. Só os que permaneciam sempre, os
doentes, conheciam todas as rotinas, quando entravam uns e chegavam outros, quem
dava de comer e quem dava banho, quem cuidava da medicação, quem aparecia para
falar sem outro motivo que não esse. O hospital era dos doentes e assim também dele.
Esta ideia viera-lhe primeiro ao espírito quando, ao cabo de duas ou três semanas de ali
estar, teve a sensação, durante uma visita matutina do corpo clínico, de estar a receber os
médicos e os enfermeiros no seu quarto, que era como que a sua pequena casa. A partir
desta altura começou a sentir certa estranheza que se abeirassem dele sem qualquer cortesia pelo seu espaço o que só reforçou a ideia de que o hospital era o lugar dos doentes
e não dos médicos, enfermeiros, etc.
III.
Num fim-de-semana, era o seu quarto, a enfermeira-chefe informou-o de que duas pessoas estavam ali para o visitar. Eram o filho mais velho e a esposa deste.
Entraram devagar no quarto avançando desajeitados pela linha de camas até à sua,
perto da janela. Havia um certo constrangimento como acontece quando se participa
pela primeira vez em algum acontecimento a que não se está habituado. Ficaram os três
especados em pé durante um bocado até que a esposa do filho quebrou o silêncio para
perguntar ao Dr. Simões como tinha passado as últimas semanas. O filho logo prontamente acompanhou, sim, como tinha estado o paizinho, que estava com melhor cara e
já se levantava da cama. António assentiu com a cabeça, era verdade que estava melhor,
em breve, a correr como estava, poderia retornar a casa, dissera-lhe o doutor.
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As janelas
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Ao que retornaria?, foi a pergunta que lhe atravessou rápida e incomodamente a mente,
pela enésima vez naquela semana. Tê-la pensado com o filho diante de si, aumentou-lhe
a ansiedade e confusão.
O filho chamou-o de novo à conversa perguntando o que tinha dito o médico. António
apressou-se a explicar as informações do médico, que não se preocupassem, que ia sair
ileso desta. Punha na voz um tom jovial e as costas bem direitas enquanto falava com o
filho acanhado e sombrio; a mulher deste igualmente desajeitada parecia ansiosa por sair
dali. O filho, porém, tardava, inventava mais frases comuns e ia-se deixando ficar como se
esperasse alguma coisa diferente daquilo. Se calhar, esperava uma mudança de atitude
do pai que quase perdera sem contar, num rasgo de intimidade que nunca fora o seu, ou,
talvez esperasse surgir o ânimo para ele próprio mudar e deixar de lado as frases repetidas.
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O filho tinha o mesmo nome que o seu – António José – e não podia haver, no entanto,
duas pessoas mais diferentes. O filho era acanhado, tímido, só a custo se fizera notar no
último ano da faculdade, o suficiente para arranjar lugar numa empresa de advogados
do trabalho, de onde nunca saíra, ainda que outras oportunidades tentadoras tivessem
surgido. Era leal, muito trabalhador e organizado, não gostava de arriscar e para tudo se
preparava muito bem. A mulher, Helena, professora de Língua Portuguesa numa escola
pública de um bairro nobre da cidade, era elegante e discreta, de uma calma que sempre
lhe parecera estranha, como as águas de um rio que corre brando junto às margens mas
turbulento por baixo. A nora parecia-lhe um longo rio que corria sinuoso banhando fecundamente as margens e as culturas mas transportando no ventre a vontade de transbordar,
de irromper o seu curso previsível e invadir os campos, molhar as crianças e colher os
velhos. Era uma impressão que ele não sabia de onde lhe vinha e que não se baseava em
nada de concreto que esta tivesse feito no curso da sua vida bastante convencional.
O lanche chegou enquanto conversavam ainda os três. Helena sugeriu que se retirassem
um pouco enquanto serviam os outros doentes, até calhava bem disse, pois tinha de fazer
um telefonema.
As janelas
Joana Teles Sarmento
Enquanto lanchava António aproveitou para rememorar os acontecimentos recentes. Não
percebia porque tardavam em abalar os dois. Voltou-lhe à ideia a pergunta que ainda há
pouco lhe atravessara o espírito e um frio húmido fê-lo sentir gelado. Pensou que o filho
e a nora talvez quisessem saber sobre o seu estado de saúde para perceberem se lhes
iria ser pedido que cuidassem dele. Quanto a isso podiam estar sossegados, estava tudo
a evoluir muito bem e tinha a certeza de que poderia voltar à sua vida prévia. Voltou-lhe à
ideia a pergunta incómoda de há pouco. Sim, a que retornaria quando saísse dali? O que
lhe dava ânimo para recuperar a saúde e continuar?
Lembrou-se do apartamento onde quase apenas dormia, pausa obrigatória e triste dos
seus dias, repartidos entre escritório, tribunal (agora pouco) e faculdade onde ainda leccionava uma cadeira opcional. Fora com muito custo, muito trabalho e alguma sorte que
conseguira tudo o que tinha e tempos houve em que se sentira um homem afortunadíssimo, no seu íntimo certo de ser motivo de invejas e ciúmes. Nem todas as suas vitórias
foram limpas, usou quando foi preciso de influência e trocas amigáveis de favores, estes
eram, aliás, recursos comuns no seu meio e no seu tempo. O problema era que a febre de alcançar uma coisa nova, algum novo estatuto desvanecia após certo tempo da
conquista e a rotina dos dias passava a pesar-lhe novamente. Só um novo desafio lhe
dava renovada motivação e não se poupava nas estratégias para o levar a bom porto.
Havia sido assim na faculdade disputando simultaneamente um lugar de prestígio entre
os melhores alunos do ano e como boémio folgazão nas inúmeras e variadas noites da
academia. Havia sido assim depois, com a entrada para o escritório de advogados mais
reputado da sua cidade, com a conquista na arena do tribunal de fama de gladiador
jurídico, e também com a ânsia, mais tardiamente descoberta, de passar a outros toda a
sua mestria, todo o seu saber, enfim todo o seu eu para que, deslumbrados, quisessem
não recriar mas antes imitar. No rescaldo de todas as suas conquistas tinha ficado o tédio
e um orgulho baboso que reconhecia ver também em alguns outros velhos. Tinha vivido
convencido do seu poder e influência durante muitos anos de vigor mas a juventude de
agora fazia com facilidade muito do que conseguira fazer a custo e o seu nome respeitado
ia caindo distraidamente no esquecimento. Os seus alunos não o admiravam antes o ouviam com interesse técnico, não desejavam ouvir as suas histórias e experiências queriam
o conhecimento que possuía para que, possuindo-o também, pudessem construir a sua
história à sua medida. Quisera lutar contra este curso dos acontecimentos durante algum
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As janelas
Joana Teles Sarmento
tempo tentando inovar o discurso, mudar as abordagens com os seus alunos mas o ritmo
do mundo batia de um modo que lhe era estranho e as tentativas só lhe evidenciaram a
fragilidade. Quanto à família, nem queria pensar, estava só e distante. Que velho fraco e
inútil se tornara.
Era a doença que o fazia tão duro consigo mesmo. Não estava habituado a falar de si
para si desta maneira. E, no entanto, apesar de todo este estado de confusão e desânimo, sentia uma vontade inexplicável de ser gentil, de escutar as pessoas dizendo-lhes
que podiam falar-lhe como se ele não pudesse fazer mal a uma mosca. Assim talvez
pudesse entendê-las. Era absurdo! Como podia o seu pudor sexagenário e varonil admitir
esta nova atitude, como crescera esta semente, porque brotava no seu campo?
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IV.
Olhava o filho enquanto este lhe perguntava se os companheiros de quarto o deixavam
descansar em paz. Parecia ainda nervoso como se esperasse que algo acontecesse. A
seu lado, Helena calma como o rio olhava com atenção o marido como se estivesse disposta a saltar caso alguma coisa corresse mal. Havia um fio de tensão de ela para o marido e deste para ele próprio, António. Porque tinham eles vindo? Porque estavam ali sentados cinco semanas depois do seu internamento e passado todo o perigo? Porque não se
afastavam o filho e a mulher uma vez cumpridas as obrigações socialmente correctas?
Da janela vinha um vento brando suavemente fresco, de início da Primavera. O parque de
estacionamento estava vazio e só pessoas em grupos, famílias o atravessavam com flores
e sacos nas mãos. Havia silêncio na tarde.
Olhou o filho que calado o observava e suportava o mesmo silêncio. Por fim, este levantou-se e preparou-se para se despedir. Então, muito suavemente, António inclinou-se para
a frente e pousou a mão no joelho do filho. Disse-lhe: ainda bem que vieste, queria muito
ver-te.
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II Mençã
José
SERAFIM GUIMARÃES
No dia da alta, aproximei-me da sua cama com alguns papéis na mão.
“Senhor José, vamos dar-lhe alta hoje. Já falei com a sua filha a explicar tudo. Os seus
rins não estão a funcionar bem e por isso o senhor vai ficar na minha consulta externa.
Está aqui a marcação e estão aqui as receitas. E fica com esta cópia da nota de alta, para
levar ao seu médico de família. Talvez venha a precisar de fazer hemodiálise.”
“Vou ter que fazer hemo…? O que é isso?”
“Hemodiálise. É um tratamento que substitui os rins quando eles deixarem de funcionar.
Há uma máquina que limpa o sangue. Mas não se preocupe, depois falamos nisso.”
Olhou-me fixamente. “Sabe, Senhor Doutor,” começou, “tenho 89 anos e já fiz a minha
vida. Já não espero viver mais tempo. Os meus filhos estão criados, já conheci os meus
netos.” Parou para se assoar. “Já ouvi falar desses tratamentos: temos que ir a uma clínica três vezes por semana e ficar lá quatro horas. Picam-nos os braços e às vezes saímos
enjoados e vomitamos. Eu não quero fazer esses tratamentos.”
Ainda era interno e insisti vigorosamente. “Mas olhe que não é sempre assim, Senhor
José, e se não fizer, quando precisar, morre!”
“Não faz mal. Já lhe expliquei que estou à espera de morrer. A minha mulher está lá em
cima à minha espera.” Apontou, olhando, para o tecto da enfermaria.
“Vamos fazer o seguinte,” recomecei. “Por agora fica na minha consulta. A diálise não é
para já.”
Passadas umas semanas veio à consulta. As coisas estavam piores. Expliquei-lhe a situação. Era preciso prepará-lo.
“Nem pensar! Já lhe disse que não quero fazer diálise.” A filha que sempre o acompanhava ainda o tentou demover. Permaneceu irredutível. “Se tiver que morrer, morro.”
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José
SERAFIM GUIMARÃES
As consultas sucederam-se com a periodicidade definida. A cada uma verificava-se um
agravamento da função renal. Porém, as regras estavam estabelecidas e não mais se
falou de hemodiálise. Escrevi um relatório resumido das suas doenças e das suas opções,
para que o acompanhasse em caso de necessidade.
Um dia, uns três ou quatro meses depois, num dia em que eu estava de serviço, na urgência velha do Santo António, o Senhor José apareceu com falta de ar. Quando mostrou
o relatório a um colega de outra especialidade, ele ficou claramente aliviado por eu estar
mesmo ali ao lado.
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“Senhor … Doutor, … fa … ça-me … qual… quer coisa”, implorava, visivelmente em dificuldade respiratória. Estava inchado (com edema, como dizemos nós, médicos, neste palavreado que é, também, o nosso ganha-pão, como dizia um professor meu). E também
tinha crepitações, uns barulhos que se ouvem à auscultação pulmonar, que traduzem a
existência de líquido nos pulmões. Em suma, tinha parado de urinar e a acumulação dos
líquidos levou àquele estado, a que nós chamamos anasarca.
“Senhor José”, comecei, “a única solução que tenho, neste momento para o seu problema”, respirei fundo, “é fazermos diálise”.
Não tinha, obviamente, a menor intenção de me submeter, eu próprio, ao tratamento.
Usar os verbos no plural ajuda a disfarçar o empurrão que é, na verdade, sentenciar um
homem a fazer aquilo que ele não quer. A alternativa é polémica: dar-lhe uma injecção de
morfina e esperar que morra sem sofrimento. Um edema agudo do pulmão corresponde
ao preenchimento dos alvéolos pulmonares com água em vez de ar e a sensação é de estar a afogar, uma maneira terrível de se morrer.
Ainda negou terminantemente. “Não quero isso!”
E arfava.
José
SERAFIM GUIMARÃES
Respirei fundo. Era como se com a minha inspiração tentasse meter o ar dentro dos seus
pulmões. “Lembra-se de eu lhe ter explicado que havia de precisar de diálise? Que quando chegasse a altura, se não a fizesse, morreria? Pois hoje é esse dia. Não tenho mais
nada para lhe oferecer a não ser esse tratamento. Não há nenhum medicamento que lhe
tire essa falta de ar, pois os seus rins deixaram de funcionar e não respondem.”
O Senhor José capitulou. “Bem, se não há alternativa, faça-me lá essa coisa da diálise.” O
seu espírito pragmático de contabilista veio à tona.
Não pude evitar sentir uma enorme sensação de vitória. Guardei-a para mim, que o momento não era para comemorações. Virei-me para a enfermeira e solicitei-lhe transporte
imediato para o serviço de nefrologia, dois pisos acima.
A colocação do cateter e a sessão de hemodiálise decorreram sem acidentes. Uma hora
depois já não tinha falta de ar. Ao contrário do que se estava à espera, aceitou com facilidade continuar a fazer diálise. Logo que teve alta, passou a fazê-la em regime de ambulatório.
Passadas duas semanas, quando passava visita à sala, onde vários doentes faziam tratamento, o Senhor José viu-me e chamou-me, visivelmente contente:
“Queria agradecer-lhe, Senhor Doutor.”
“Não é preciso, não fiz mais que a minha obrigação,” retorqui. Estava muita gente a ouvir
a conversa e na altura ainda lidava mal com apreciações públicas à minha conduta profissional, mesmo que fossem elogiosas.
“Não, Senhor Doutor”, insistia, “queria agradecer-lhe porque esta semana tive fome”, falava, entusiasmado, “e este domingo fui almoçar fora com os meus filhos e comi cabrito! Já
não me lembrava de ter comido cabrito!” Começava a falar para o doente da máquina ao
lado. “Que bem que me soube!”
Afastei-me satisfeito e continuei a visita. Afinal a minha insistência não se tratava de obsti-
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José
SERAFIM GUIMARÃES
nação terapêutica, o “encarniçamento” médico de que somos tantas vezes acusados.
O Senhor José morreu cerca de dois meses depois. Uma pneumonia adveio e foi-lhe fatal.
Os seus noventa anos, entretanto completados, não aguentaram.
Aprendi, como aprendo com quase todos os doentes, que é preciso respeitar o ritmo
de cada um deles. A frustração de não conseguir aplicar o que aprendemos, não pode
impelir-nos a impor a nossa à sua vontade.
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Por outro lado que fique claro que a idade per si não é critério de exclusão de nenhum tratamento, mesmo os mais complexos e caros, como este. O Senhor José aceitou viver os
seus três últimos meses de vida em diálise quando entendeu que isso era essencial, não
para evitar a morte, mas para não sofrer. Precisou de chegar ao extremo do edema agudo
do pulmão para perceber isso, mas ainda foi a tempo de apreciar um belo cabrito.
Foi, até agora, o doente mais velho a quem iniciei hemodiálise.
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s
o
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III Menç
Nada ficou por fazer
FENANDO MIGUEL SANTOS
Desde pequeno sonhei
Conhecer de tudo um pouco
E desta forma, qual louco,
Vitalidade encontrei
No teatro e no desporto
Em doses descomunais
Me deixavam absorto
Partido em partes iguais.
Se num fingia sinais
Noutro era eu mais e mais
Esta face no espelho
Que hoje me mostra já velho
Por certo não se ilustra
Pelo que a vida nos frustra
Dizia o povo amiúde
Que nada se faz sem vontade
Que nada se faz sem saúde
Venci vales e montanhas
É uma face feliz
Com as rugas de um petiz
De uma bela vida feita
Que ser sábio vem na idade
Os amores e as saudades
As diversas artimanhas
De todas estas idades
E distingui as verdades
De incomparáveis façanhas
A que a maioria enjeita
Mas que se torna perfeita
Para quem a bem aceita
Sonhei ser um escritor
E nas páginas fiz mundo
Escritas com o fervor
Do eterno olhar profundo
Conheci doença e morte
Ao praticar enfermagem
A debilidade e a sorte
A coragem e o desnorte
Ou o futuro sem sorte
De quem já só vê miragem
Fiz do toque terapia
Da massagem relaxante
Que pratiquei com mestria
De um brio delirante
Da formação fiz querer
Sendo dada ou recebida
Porque quem sonha fazer
Tem sempre de aprender
Ou corre o risco de ver
A hora certa perdida
Foi na música que vi
Sobre as teclas do piano
E dois amores conheci
Ao meu lado ano após ano
E ambos os consumi
Com voragem de insano
Até não haver tutano
Nas pautas todas que li
Na boémia me perdi
Sempre me reencontrei
E se excessos cometi
Foi porque eu os desejei
Aqueles onde aprendi
Que foi lá onde senti
Que mais sábio me tornei
Sorri, chorei
Ganhei, perdi
A isso se chama viver
E por tanto mundo ver
Acabei por perceber
Que no belo envelhecer
Nada ficou por fazer
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Gabinete de Comunicação e Marca · Centro Hospitalar de São João · 2012
Centro Hospitalar de São João
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