Forma e Função

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Forma e Função
Danilo Arruda Furtado
I Convite
II Ambientação
III Visão de mundo
IV Evolução morfofuncional do Universo
V Heterocronia
VI Um exemplo de evolução heterocrônica
VII Homologia e homoplasia
VIII Alometria
XIX Referências
1
I Convite
Todos nós temos a impressão de que forma e função são, de
certo modo, complementares, e no campo da biologia percebe-se isto de
modo muito evidente. Basta que contemplemos a nós mesmos, ou o
ambiente que nos rodeia.
É a forma da sua mão que segura este livro. É a forma de cada
letra ou palavra que simboliza seu significado, sua função. Cada forma
em nosso Universo, seja um átomo, uma molécula, um organismo, uma
comunidade, um bioma, uma galáxia, possui uma função, ainda que seja,
somente, a de ser/estar.
Nesta unidade serão apresentados argumentos que sustentam
uma interpretação integrativa (sistêmica), na qual forma e função são
aspectos complementares. Esta concepção difere de outras que concebem
a forma e a função como sendo manifestações distintas e independentes.
Procuraremos confrontar também a idéia de que forma e função são
aspectos que se manifestam por todo o Universo com a visão que
considera a forma e função na biologia como conceitos distintos de forma
e função em outras áreas do saber. Muito embora possa haver uma
multiplicidade de interpretações acerca do que se entende por forma e
função, procuraremos nesta unidade apresentar argumentos em favor do
conceito
que
considera
forma
e
função
como
manifestações
interdependentes e recíprocas em todas as escalas da natureza
(microcósmica e macrocósmica) Os argumentos em favor desta
interpretação estarão acompanhados de alguns exemplos morfofuncionais
encontrados
em
diferentes
escalas
espaço-temporais
(níveis
de
organização).
Aproveite, reflita, medite. Desenvolve tua visão do mundo
(cosmovisão).
II Ambientação
Seria interessante familiarizarmo-nos com o tema da forma e da
função tentando responder mentalmente perguntas a seguir:
2
1- O que é forma e o que é função?
2- Quando e como se originam novas formas e novas funções?
3- Como se relacionam a forma e a função nas diferentes
escalas espaço-temporais?
Por favor, não se precipite. Procure, realmente, formular
respostas às perguntas acima. Não tenha pressa, não receie, você
conseguirá, tenho certeza. Leia-as novamente e então, viaje...
Veja que não foi difícil pensar em algo. Agora que construímos
algo em mente será proveitoso conhecermos outras respostas possíveis.
Um começo simples é comparar nossas concepções às definições
encontradas no bom e velho dicionário da língua portuguesa:
1- Forma: limites exteriores da matéria de que é constituído um
corpo, e que conferem a este um feitio, uma configuração, um aspecto
particular.
2- Morfologia: tratado das formas que a matéria pode tomar; o
estudo das formas.
3- Estrutura: conjunto formado, natural ou artificialmente, pela
reunião de partes ou elementos, em determinada ordem ou organização.
4- Função: Ação própria ou natural de uma forma ou de uma
estrutura. Notem que a função é aqui definida como sendo uma
propriedade que emana das partes (formas) ou do conjunto das partes
(estrutura). Mas podem haver interpretações alternativas.
5- Fisiologia: parte da biologia que investiga as funções
orgânicas, processos ou atividades vitais, como o crescimento, a nutrição
ou a respiração.
Refletindo sobre estes conceitos, procure identificar as funções
das partes que lhe compõe o corpo. Olhe o mundo ao seu redor. Perceba
que ele é composto por uma incalculável diversidade de formas, e que
cada forma possui uma função correspondente, mesmo que seja
3
simplesmente a de existir. Repare que toda forma ocupa um espaçotempo, desempenhando, assim, funções características e peculiares. Algo
muito semelhante ao verbo ser/estar, ou seja, aquilo que está em algum
lugar (forma), é, necessariamente, algo (função). A função é a interação
entre as formas do ser. A interação depende de estar, isto é, de quais seres
estão interagindo.
Essa percepção poderia levar-nos a desconfiar que a função de
cada estrutura emerge de sua forma. Mas será sempre a forma a
determinar a função? Possivelmente não. As funções também podem
determinar, moldar ou transformar. Assim, podemos identificar três
possibilidades: 1) da forma emerge a função; 2) da função emerge a
forma; ou 3) tanto a forma quanto a função emergem de suas relações
interdependentes.
Forma
e
função
são,
portanto,
aspectos
complementares e interdependentes de uma mesma coisa: algo que seja
ao mesmo tempo morfológico e funcional.
Aprofundando nossa análise, verificamos que apesar de serem
conceitos diferentes, não podemos considerar separadamente a forma de
sua função sem prejuízo para sua compreensão. Podemos, todavia,
conceber o mundo sob um ponto de vista morfofuncional. Isto é, onde a
forma e a função são aspectos complementares e indissociáveis: uma
unidade morfofuncional. Procure assimilar esse importante conceito. 1
Mas como as formas e as funções se manifestam em nosso
Universo?
As formas e suas funções interagem em todos os níveis de
organização do Universo e essa inter-relação é sempre recíproca, isto é, a
forma modifica a função, que modifica a forma, que modifica a função, e
assim por diante... Das interações entre as formas e as funções surgem
novas formas e novas funções, que também passam a se inter-relacionar,
gerando novamente outras formas e funções, e assim sucessivamente.
Note que as formas e funções se modificam com o tempo! A própria
evolução do Universo se manifesta por intermédio dessa relação
recíproca e entre as formas e suas funções!
4
Estamos diante, meus amigos, de um ponto central do
conhecimento humano. Suponha que as coisas no Universo sejam elas
materiais, mentais ou morais, se manifestam por meio das relações
recíprocas entre a forma e a função. Seria o Universo, morfofuncional?
Fecha o livro, por favor. Contemple o Cosmos...
III Visão de mundo (Capítulo retirado)
IV Evolução morfofuncional do Universo
A
seguir,
exemplificaremos
algumas
inter-relações
morfofuncionais em níveis da organização distintos.

Partículas e Galáxias
Vejamos primeiramente, a forma e a função na escala
subatômica. Existem 4 forças fundamentais na natureza: gravitacional,
eletromagnética, fraca e nuclear forte. Todas as forças da Natureza
pretendem ser descritas por uma única teoria: a teoria da unificação.
Segundo essa teoria, as forças poderiam ser combinadas em um estado
onde as energias fossem altíssimas. Inicialmente as forças universais
eram indistintas, havendo simetria entre elas. Somente após a energia
diminuir a ponto de Unificação é que as forças começaram a se
diferenciar, tendo sua simetria quebrada. (Weinberg, 1987).7
Primeiro separam-se a força gravitacional das demais, que
continuam unificadas em uma grande força. Em seguida, diferencia-se a
força nuclear forte da força eletrofraca. Essa quebra de simetria possibilita
a formação da matéria, na forma dos pares quarks/antiquarks e dos pares
léptons/antiléptons - na medida em que o Universo se expande e resfria a
energia se condensa em matéria.8
(figura 2) Quando, por exemplo,
colidem dois fótons de altíssima energia (raios-gama), um par
elétron/pósitron é produzido.
Todas
as
partículas
elementares
possuem
antipartículas
complementares, que possuem a mesma massa e carga elétrica contrária.
5
Quando a matéria e a antimatéria entram em contato elas se aniquilam
instantaneamente, convertendo suas massas em energia (aniquilação). Se
o número de partículas e antipartículas fosse igual, o resultado seria a
aniquilação de toda a matéria. Todavia existe uma assimetria no
Universo: mais matéria do que antimatéria.
Os quarks que sobreviveram à aniquilação se juntaram para
formar os Bárions (Prótons e Nêutrons), compostos por 3 quarks e os
Mésons (Píons e Káons), formados por somente 2 quarks. A função
manifestada por cada partícula sub-atômica depende de sua estrutura.
Com a expansão e esfriamento do Universo, os prótons e nêutrons se
combinam para formar os núcleos atômicos. Este processo é chamado de
Nucleossíntese e ocorreu quando o Universo tinha apenas 30 segundos de
existência.
Com um minuto após o Big bang, os núcleos atômicos (prótons
e nêutrons) e os elétrons se combinam para formar os primeiros átomos.
Foram eles, o átomo de hidrogênio, o elemento mais abundante,
perfazendo 74% da matéria do Universo e o átomo de hélio, compondo
24% da matéria. Formaram-se também, em bem menor número, átomos
de lítio, e hidrogênio pesado (deutério e trítio). Este processo de
combinação entre bárions e léptons é chamado de Recombinação.9
Com a recombinação, o estado da matéria no Universo se
transforma de plasma para a forma de um gás neutro de hidrogênio e
hélio. Antes desse momento, o espaço era muito denso e opaco, pois
todas as partículas do Universo, inclusive os fótons, colidiam
freqüentemente, desviando sua trajetória. Esta curta trajetória é
denominada: caminho livre médio. Com a recombinação, o caminho livre
médio dos fótons aumenta consideravelmente, pois passa a ser do
tamanho do próprio Universo, tornando-o transparente. Essa é a chamada
época do último espalhamento ou do desacoplamento dos fótons.
Durante a Recombinação, formam-se regiões onde a densidade
de matéria é maior. São essas flutuações na densidade da matéria que irão
determinar a formação dos superaglomerados de matéria e das futuras
6
galáxias. As flutuações na densidade de matéria após a recombinação
geram um padrão heterogêneo na quantidade de radiação cósmica de
fundo. A flutuação na radiação cósmica de fundo é o evento observável
mais antigo do Universo, já que a opacidade do Universo de plasma
ionizado de antes da recombinação impede observações diretas. A
distribuição assimétrica das subpartículas, os movimentos de rotação e de
translação bem como a ação das forças universais levaram à aglomeração
da matéria em torno de regiões atratoras, formando assim os
superaglomerados de matéria. Com a aglomeração da matéria e a
formação das galáxias em certas regiões surgiram os superaglomerados
de matéria.10 (figura 3)
Figura 3. (slide 10) Formação das galáxias e aglomerados de
galáxias.
Nos superaglomerados de matéria formaram-se inúmeros
vórtices gravitacionais, isto é, buracos negros super massivos em torno
dos quais a matéria passou a ser atraída. Formaram-se, assim, as galáxias,
cujo centro é composto por um desses buracos negros11 (Silk, 1988; para
revisão veja: The ilustrated encyclopedia of the universe, 2001).
As propriedades funcionais das partículas subatômicas (função)
e sua distribuição espacial (forma) governaram a gênese do Universo
como o conhecemos. Também a forma dos super-aglomerados de matéria
e das galáxias que os constituem contribuíram para o desenvolvimento de
suas propriedades funcionais. Desde os primórdios a evolução do
Universo decorre, fundamentalmente, da inter-relação morfofuncional
entre seus constituintes.

Átomos e Estrelas
Os átomos de hidrogênio, hélio, lítio, deutério e trítio, formados
durante a era da recombinação, se juntaram por força da gravidade
formando os aglomerados de matéria, as galáxias, e em uma escala
menor, as primeiras estrelas.
Átomos e estrelas; e um imenso intervalo de tempo de
existência: 13,7 bilhões de anos. Durante todos esses bilhões de anos,
7
incontáveis estrelas “nasceram, cresceram, morreram e se reproduziram”.
Nascem e crescem pela condensação da matéria das nebulosas que se
encontram espalhadas no interior das galáxias. Durante sua existência, de
cerca de bilhões de anos, as estrelas forjam em suas entranhas, por
intermédio da fusão nuclear, a diversidade de átomos que podemos
agrupar na tabela periódica.12
As estrelas se mantém em equilíbrio dinâmico. Um jogo de
forças entre a implosão da estrela, determinada pela força da gravidade, e
a sua explosão, derivada da enorme energia liberada pela fusão dos
átomos nas entranhas estelares. A morte da estrela chega quando
consomem todo seu combustível, isto é, quando param de realizar a fusão
nuclear e quando seu núcleo se torna muito denso e estável, formado por
átomos de ferro. Seu destino depende de sua massa: grandes estrelas
implodem, sucumbindo finalmente ao seu enorme peso, formando uma
estrela de nêutrons ou um pequeno buraco negro; estrelas menores
explodem na forma de supernovas, espalhando pelo espaço a pletora de
átomos que criou.
Essa semeadura átomos pode, porventura, levar à condensação
da matéria em uma nova estrela ou mesmo em um sistema planetário,
como por exemplo, o da nossa estrela, o Sol, cujo séquito de planetas e
asteróides integra um grande sistema orbital, cujos componentes pulsam
ondas de eletromagnetismo e de gravidade.13
Essas ondas eletromagnéticas e gravitacionais são muito
importantes, pois estabelecem os movimentos de rotação e translação dos
corpos celestes. As ondas que aqui chegam determinam tempo na Terra.
A gravidade e o eletromagnetismo são ondas de duplo sentido:
manifestam-se tanto no sentido do próprio corpo, quanto no sentido do
outro corpo.
Os corpos celestes que orbitam a Terra (e vice-versa) compõe
vinte ondas (ou seriam 18?) eletromagnéticas e gravitacionais; já os seis
braços da galáxia, outras doze ondas; enquanto o buraco-negro central,
mais uma, pois a gravidade e o eletromagnetismo fluem somente no
8
sentido do seu centro. Assim, os ciclos de tempo na Terra se estabelecem
pela permuta das 13 ondas eletromagnéticas e gravitacionais advindas da
galáxia, com as 20 ondas geradas pelos corpos celestes do sistema solar.
O eletromagnetismo do Sol determina os meses de 28 dias, enquanto o
par orbital Terra-Lua estabelece os dias e as semanas. Repare que a
própria estrutura espacial do sistema solar determina quais são suas
funções temporais.14

Moléculas e Planetas
A
formação
dos
sistemas
planetários
e
dos
planetas
propriamente ditos se opera pela ação da força gravitacional e rotacional
às quais estão submetidas a matéria. A formação dos planetas se dá pelo
fenômeno da acreação, que é a aglutinação da matéria em um corpo
celeste. O tamanho do planeta depende das condições iniciais do sistema
planetário: sua massa inicial e sua distância da proto-estrela que está se
formando no centro do sistema.
Todavia, algo muito importante começa a acontecer na formação
dos sistemas planetários. As condições de temperatura não são tão
severas como nos arredores da proto-estrela, o que possibilita uma
interação morfofuncional entre os átomos mais estável. Estabelecem-se
as ligações químicas entre os átomos, levando à formação de uma
diversidade de pequenas moléculas. Surgem algumas moléculas simples
e pequenas. Algumas gasosas, outras líquidas e outras sólidas. A título
de exemplo, podemos citar os elementos hidrogênio, o metano, o dióxido
de carbono, a amônia e a água. É possível que moléculas maiores, como
aminoácidos, carboidratos, lipídeos e ácidos nucléicos, também possam
ser sintetizadas durante a formação de sistemas planetários, quer na
superfície dos planetas ou em suas entranhas, quer na superfície de
meteoros, meteoritos, cometas ou asteróides, que naqueles primórdios,
bombardeavam incessante e impiedosamente os planetas contribuindo
para sua formação.
Meteoros meteoritos e cometas. Milhões de blocos de matéria
colidindo e se agregando na formação dos planetas, combinando
9
morfofuncionalmente
átomos
e
moléculas,
originando
sistemas
planetários como o nosso sistema solar.15 (figura 4)
Figura 4. (slide 15) Formação do sistema solar.

Vida e Biosfera
...E foi neste pequeno planeta aqui que algo raro e maravilhoso
aconteceu! Originou-se, da geoquímica da Terra, porventura também
semeada por moléculas orgânicas dos meteoros e dos asteróides.
Formou-se aqui uma rica composição de moléculas orgânicas e
inorgânicas, um oceânico coalhado de moléculas, cujas formas, ao
interagir funcionalmente, possibilitaram o surgimento (emergência) da
vida. Desde sua origem, a aproximadamente 3,8 bilhões de anos vida
evolui em uma espantosa diversidade e abundância de seres, com
características estruturais e funcionais conspícuas.16
Com as interações morfofuncionais estabelecidas entre os
átomos e as moléculas; com a sustentabilidade (autopoiese) do sistema e
com
o
estabelecimento
da
auto-replicação
das
moléculas
e
macromoléculas que constituíam a vida, estes seres coacervados
proliferaram e permaneceram. E o planeta se locupletou de vida! Da
organização morfofuncional de inumeráveis átomos e moléculas a vida
emergiu, formando concomitantemente a Biosfera! Sistemas ecológicos
mantenedores da vida. E com o tempo de evolução da vida surgiram
novos e mais complexos níveis de organização.16
E como se originou a organização da matéria viva? Sem
determinadas funções vitais a vida não pode acontecer. Os coacervados
foram os primeiros seres vivos. Eram seres microscópicos constituídos
por determinadas estruturas moleculares capazes de desempenhar as
funções vitais: A proteção era dada pela bicamada lipoprotéica; a
sensibilidade ao ambiente pelas proteínas transmembrana; o transporte e
o movimento pela água e pelas proteínas transportadoras; a respiração
pelas vias catabólicas, como a glicólise; a nutrição pelas vias anabólicas e
catabólicas. Por nutrição aqui, entende-se a obtenção de moléculas que
10
possam ser quebradas dentro da célula, como, por exemplo, pela
glicólise., que levam em última instância à síntese de proteínas; a
sustentação pelas formas de suas moléculas e a reprodução por
cissiparidade.17 (figura 5).
Figura 5. (slides 17 + 18) Coacervados e os atributos vitais.
Os coacervados eram vesículas de gordura (bicamadas lipídicas
semi-permeáveis) em
cujo
interior se encontram
moléculas
e
macromoléculas organizadas em um sistema morfofuncional cooperativo
e integrado, capaz de manter um metabolismo vital. Os coacervados eram
vesículas lipoprotéicas capazes de armazenar e utilizar a energia na
forma da molécula de glicose e de ATP. Eram “saquinhos de gordura”
em cuja superfície e em seu interior se encontravam diversas formas de
proteínas, cuja atividade morfofuncional estava atrelada a uma
organização metabólica formada por vias bioquímicas. Essas vias
bioquímicas eram muito simples nos coacervados, e uma das primeiras
vias a ter sido selecionada pela natureza foi a glicólise. Essa seleção
ocorreu naturalmente, pois a glicólise é a via bioquímica responsável por
transportar a energia presente nas ligações químicas da molécula de
glicose para a ligação trifosfato da molécula de ATP.
Os coacervados, portanto, eram capazes de catabolizar (quebrar)
açúcares, armazenando a energia resultante dessa quebra na forma de
nucleotídeos de adenosina trifosfato, o ATP, a “moeda” energética
utilizada para ceder energia aos processos anabólicos de síntese dos seus
próprios constituintes, cuja estrutura passou, com o tempo, a ser
codificada na forma de macromoléculas auto-replicantes de ácidos
nucléicos.
Essas vesículas coacervadas podiam facilmente fusionar umas às
outras, misturando seu conteúdo bioquímico. Também podiam se dividir
por fissão, multiplicando o número de seres, que se dispersavam pelo
planeta. Era o primórdio da reprodução, geradora da abundância, da
riqueza e da diversidade da vida. O que se seguiu desde então, foi a
evolução dos coacervados em seres cada vez mais complexos.18 Os
11
coacervados
transformaram-se
nos
procariotos
heterotróficos
anaeróbicos, dependentes, assim como seus ancestrais, da nutrição via
carboidratos
e
outras
moléculas
que
obtinham
do
ambiente
(fermentação)19. As pressões de seleção natural pela obtenção eficaz e
eficiente do alimento provedor da energia essencial para a manutenção
dos processos metabólicos possibilitou o sucesso adaptativo daqueles
seres que haviam desenvolvido a capacidade de produzir seu próprio
alimento. Estes eram procariotos autotróficos, que faziam, e ainda hoje
usam a energia da luz solar, para quebrar a molécula de água e permitir a
fixação de da molécula de dióxido de carbono, sintetizando carboidratos,
ou seja seu próprio alimento. Os seres fotossintetizantes sintetizam seu
próprio alimento a partir da energia eletromagnética oriunda do sol.20 Os
quimiossintetizantes também produzem seu próprio alimento, e eles são
muito antigos. O interessante é que existem muitas bactérias
fotossintetizantes cujo pigmento não é a clorofila, e todos esses
fotossintetizantes são anaeróbicos. Já os quimiossintetizantes são
aeróbicos. Então, parece que a questão por trás de qual grupo de
organismos se tornou dominante, ao longo do tempo, tem a ver com a
eficiência na forma de obtenção de energia. Os organismos aeróbicos,
autotróficos ou heterotróficos, são mais eficientes na obtenção de energia
do que os anaeróbicos.
Também evoluíram outros seres, no que diz respeito
principalmente à sua complexidade interna. Foram os protoeucariotos,
cujo
maior
tamanho,
o
desenvolvimento
de
organelas
e
de
compartimentos intracelulares, e a maior eficiência na decomposição de
nutrientes possibilitou-os a ocupação de um novo nicho ecológico: o de
predadores dos seres procarióticos e dos coacervados de menor tamanho.
Estabeleceram-se as primeiras interações ecológicas. Estava montada a
base da teia trófica dos ecossistemas: decompositores, produtores e
consumidores. Foram os representantes do Reino Monera, seres
unicelulares e procariotos, que deram inicio à maravilha da ecologia!
Os procariotos
autotróficos,
ao realizar a fotossíntese,
convertiam gás carbônico e água em moléculas de glicose e de oxigênio
12
(O2). Ocorre que o oxigênio reage facilmente com os radicais livres das
moléculas
de
proteína,
o
que
muitas
vezes
resultava
em
comprometimento ou inativação de suas propriedades funcionais. O
oxigênio era, portanto, muito tóxico para todos aqueles seres procariotos
anaeróbicos, que dependiam da via glicolítica para o seu sustento, e isso
incluía tanto os procariotos, pequenos, quanto os protoeucariotos,
maiores.21
As interações ecológicas que se estabeleceram entre os
protoeucariotos e os procariotos eram de natureza competitiva.22 Isto é,
os protoeucariotos consumiam os procariotos, acumulando dentro de si
os nutrientes, principalmente na forma de moléculas de glicogênio (via
bioquímica da neoglicogênese). Custava aos procariotos menores obter a
glicose, a matéria prima para a produção do ATP, e a glicose eram mais
facilmente encontrada em grandes concentrações no interior dos
protoeucariotos. Assim, em contrapartida, os procariotos infectavam os
protoeucariotos, já que além destes serem como que um “reservatório” de
nutrientes, também podiam ter sua estrutura morfofuncional utilizada
pelos procariotos para otimizar a sua própria reprodução.22
Neste contexto surgiram pequenos procariotos aeróbicos que
utilizavam o oxigênio como aceptor dos elétrons de sua cadeia
fosforilativa. Esses seres, que possuíam uma dupla bicamada lipídica,
produziam ATP a partir da geração de um gradiente de prótons entre o
espaço intra-membranas e seu interior.23 Em verdade, podiam produzir
muitos ATPs, bem mais do que necessitavam. E de modo muito mais
eficiente que seus competidores, os seres anaeróbicos.
Com o acúmulo O2 na atmosfera instaurou-se a primeira grande
extinção em massa, a dos seres anaeróbicos, cuja base da produção de
Saiba mais
ATP dá-se pela fermentação.24 Com estas pressões de seleção natural,
Como você viu
no M3U11,
simbiose é uma
relação
mutuamente
vantajosa entre
dois ou mais
organismos
vivos de
espécies
diferentes. Na
13
simbiose os dois
organismos
agem ativamente
desenvolveram-se novas interações ecológicas. Algo muito bonito
ocorreu em seguida com a evolução dos seres procariotos.
Interações mais harmônicas e estabeleceram entre os procariotos
aeróbicos e os protoeucariotos: o mutualismo, ou simbiose, onde os
procariotos aeróbicos passaram a viver em harmonia no interior dos
protoeucariotos. Desta endossimbiose surgiram os eucariotos. Em um
destes eventos de endossimbiose os protoeucariotos puderam oferecer a
proteção e a glicose em abundância para os procariotos aeróbicos, que
em contrapartida metabolizavam o oxigênio nocivo e produziam ATP em
demasia. A endossimbiose voltou a ocorrer na natureza quando uma
linhagem de eucariotos se associou à procariotos autotróficos
fotossintetizantes, originando, assim, os eucariotos autotróficos.25
Notem
nestes
exemplos
a
existência
de
sistemas
morfofuncionais operando tanto no exterior como no interior dos seres
unicelulares! São as trocas recíprocas entre o ser e o não-ser; entre os
seres vivos e seu ambiente! Estabeleceu-se um sistema ecológico autosustentável, capaz de manter a vida em equilíbrio dinâmico na fronteira
entre a ordem e o caos! (GLEICK, 1990; GELL-MANN, 1994; DE
DUVE, 1997).26
As propriedades biofísicas (funções) das proteínas e das outras
macromoléculas derivam de suas estruturas (formas). Não obstante,
também a forma de cada proteína pode ser afetada pelas propriedades
morfofuncionais das outras moléculas com as quais interage.27 (figura 6).
Figura 6. (slides 27 + 30) Forma e função no nível molecular.
A enzima é um exemplo típico. A morfologia da enzima
apresenta um sítio complementar à forma da sua molécula-substrato, a
qual se acopla estruturalmente e funcionalmente (ligações químicas),
catalisando a reação, que pode ser exotérmica, quando libera energia, ou
endotérmica quando a absorve. 28
Do metabolismo celular, isto é, o catabolismo e o anabolismo
que a célula realiza, emerge morfofisiologia de diversas e distintas
moléculas e macromoléculas. O metabolismo celular emerge da
diversidade morfológica das proteínas assim como a síntese e a
degradação das proteínas que constituem a célula são coordenadas pelo
metabolismo. É a forma-função atuando reciprocamente no nível
molecular, possibilitando a manutenção da vida!29
14
Mas quais são as formas e funções vitais?

Células e Populações
Desde a origem da vida até os dias de hoje, qualquer célula, seja
ela procariótica, eucariótica ou integrante dos organismos multicelulares,
somente pode se manter viva caso desempenhe certas funções vitais.
Assim como tudo no universo, tais funções emanam de alguma estrutura.
As funções básicas da vida são, portanto, desempenhadas por
componentes distintos e característicos da célula (DE DUVE, 1997).
Vejamos, então, quais as funções vitais e suas estruturas
morfofuncionais necessárias ao seu desempenho:
1) Uma célula deve ser capaz de separar o seu conteúdo interior
(organelas, moléculas e íons) do meio exterior, valendo-se, para isto, de
uma membrana plasmática semi-permeável (bicamada lipídica), que lhe
confere o atributo vital da proteção.30
2 e 3) Uma célula, no entanto, não pode se isolar completamente
do seu meio externo, ela também necessita ser sensível ao ambiente, para
que se realizem adequadamente a nutrição (absorção),
excreção de
substâncias que seriam tóxicas a ela caso se acumulassem em seu interior
e
o
movimento.
As
proteínas
transmembrana,
canais
iônicos,
transportadores, carreadores, receptores, e outros tipos de proteínas,
conferem à membrana plasmática uma permeabilidade seletiva,
proporcionando as funções vitais da sensibilidade ao ambiente e da
nutrição. A nutrição elaborou-se nos eucariotos sem parede celular por
meio do movimento de endomembranas: endocitose e exocitose.31 a 33
4) Uma célula precisa manter a homeostase do seu metabolismo,
Saiba mais
regulando, para tanto, o funcionamento da via bioquímica da respiração
celular. Toda célula precisa de energia para se manter viva, o que faz da
respiração uma função vital.34 e 35 (figura 7).
Lembre-se
que
a
respiração,
ao
contrário
do
que
frequentemente imaginamos não é o inspirar ar e expirá-lo para nossos
pulmões. A respiração ocorre no interior de cada célula e é a via
metabólica de quebra do açúcar para obtenção de energia. Como nesta
Metabolismo
(do grego
metabolismos,
que significa
"mudança",
troca) é o
conjunto de
transformações
que as
substâncias
químicas sofrem
no interior dos
15
organismos
vivos.
via metabólica o oxigênio é o aceptor final de elétrons, nós pulmonados
(e todos os outros organismos aeróbicos) precisamos transportar, de
alguma forma, o oxigênio que está no ambiente externo aos nossos
corpos, para o interior das nossas células (cada uma delas). No caso dos
organismos pulmonados, o oxigênio é inspirado até os pulmões e
distribuído para todas as células de nosso corpo através da circulação
sanguínea. E é também o sangue que leva para os pulmões o dióxido de
carbono que é tóxico para nós e que é eliminado na expiração.
Figura 7. (slide 35) Forma e função no nível celular.
5 e 6) Para se manter em um estado de equilíbrio dinâmico a
célula também precisa movimentar seus componentes internos (moléculas
e organelas) e posicioná-los em regiões específicas. O movimento não
direcionado advém da água (movimento browniano), pois tanto a osmose
da água quanto a difusão de solutos gera movimento interno. Moléculas
específicas, como proteínas ou ácidos nucléicos, podem servir de
carreadores, e auxiliar no transporte de certas moléculas para regiões
específicas da célula. O transporte ativo, por sua vez, é dependente de
energia. Uma elaboração do movimento interno é o movimento da célula
como um todo, seja por meio de flagelos (também chamados de
undulipódios nos eucariotos, para diferenciar dos flagelos de eucariotos),
cílios, pseudópodos ou de proteínas contráteis. Nos eucariotos a forma da
célula e a posição de seus componentes estruturais é determinada pela
organização de proteínas de citoesqueleto, como a actina, os filamentos
intermediários ou a tubulina. A organização estrutural dos componentes
celulares e a forma de seus componentes permitem o desempenho das
funções vitais de sustentação e de mobilidade.36 e 37
7) A célula deve ser capaz de se reproduzir, pois a variabilidade
morfofuncional gerada no processo da reprodução possibilita a ação dos
mecanismos evolutivos sobre os indivíduos da população. As estruturas
moleculares envolvidas no processo de divisão celular possibilitam o
desempenho da função vital da reprodução.38 Perceba que qualquer tipo
de célula, para permanecer viva, mantendo sua estrutura morfofuncional,
precisa desempenhar todas as funções vitais. Cada função vital é realizada
16
Atenção
por um conjunto específico e organizado de estruturas (moléculas ou
organelas) atuando em sinergia.
Durante os primeiros três bilhões de anos de vida na Terra, a
natureza selecionou, nos seres unicelulares, uma estrutura celular e um
metabolismo eficaz e cada vez mais eficiente. As transformações
evolutivas nos seres unicelulares manifestam-se na compartimentalização
das tarefas vitais da célula. Surgiram as organelas e estruturas celulares
especializadas; capazes de organizar as tarefas vitais da célula de modo
mais eficiente.39 e 40 (figura 8).
Figura 8. (slides 39 + 40) Forma e função no nível de organelas.
Evoluíram e se diversificaram as vias bioquímicas, o
metabolismo, o controle da expressão gênica, os compartimentos
celulares e endomembranas e, em última instância, o fenótipo celular.
Formaram-se as populações e sua dinâmica morfofuncional se
estabeleceu.41
O resultado dessa evolução foi uma incrível diversidade e uma
incalculável quantidade de seres unicelulares vivendo no planeta por
quase três bilhões de anos ininterruptos.42
Multicelularidade e Comunidades
Nos seres multicelulares, a diferenciação celular em tipos
morfofisiológicos distintos, e o conseqüente desenvolvimento dos tecidos,
órgãos e sistemas, permite a cada tipo celular a especialização no
desempenho funcional de uma ou mais funções vitais.43
A organização tissular, orgânica e sistêmica, otimiza o
desempenho das funções celulares, que passam a ocorrer de modo mais
eficiente e/ou com um menor custo energético para se desenvolver e para
se manter. A multicelularidade pode ser compreendida, de certa maneira,
como um tipo de “simbiose” que se estabelece entre populações de
células distintas do organismo, mais especializadas no desempenho de
certas tarefas vitais. Essa concepção dos organismos, seus sistemas,
órgãos e tecidos, implica em reconhecer que as interações estabelecidas
17
entre as células do corpo são, de certa forma, análogas às interações
ecológicas que se estabelecem em uma população de uma espécie (no
caso de células de um mesmo tecido ou órgão) ou em uma comunidade
ecológica (no caso das interações entre órgãos e tecidos distintos).
Atividade complementar: Enumere quais analogias você poderia
perceber entre as relações existentes em populações de organismos e
aquelas entre células de um mesmo tecido. Você concorda que seja
possível estabelecer este tipo de analogia? Tente discutir os pontos fortes
e fracos deste argumento. Tente o mesmo pensando em termos das
interações entre espécies de uma comunidade ecológica. Será que
poderíamos imaginar, em relação à biosfera como um todo, que cada ser
vivo é análogo a uma célula de um organismo pluricelular? Você
concorda? Discorda? Que argumentos você pode apresentar, a favor e
contra esta concepção?
Nos organismos, os tecidos, os órgãos e os sistemas são
especializados em desempenhar, com maior eficiência e especificidade,
algum ou alguns dos atributos vitais. Isto significa que cada tipo celular
possui estruturas (formas) que desempenham uma fisiologia (função)
específica. A morfofisiologia dos tecidos, dos órgãos e dos sistemas deve
necessariamente continuar a desempenhar as funções vitais para que o
organismo sobreviva.44(figura 9).
Figura 9. (slides 43 + 44) Forma e função no nível de tecido, de
órgão e de sistema.
O sistema respiratório, por exemplo, está relacionado com a
manutenção da homeostase do metabolismo celular. O ritmo metabólico
se modifica com as alterações na concentração de ATP disponível. A
respiração celular é a conversão da energia presente nas ligações
químicas na molécula de glicose em energia, armazenável em moléculas
de ATP para que possa ser utilizada nos processos metabólicos da célula.
A formação de moléculas de ATP depende da oxigenação das células,
pois, como já vimos, o oxigênio é o aceptor final dos elétrons da cadeia
18
fosforilativa da respiração celular. Ao receber os elétrons, cada uma das
duas moléculas do oxigênio molecular se liga a duas moléculas de
hidrogênio, formando, ao final da reação, duas moléculas de água. O
sistema respiratório se encarrega da captação do oxigênio da atmosfera e
da excreção do gás carbônico, que, como sabemos é um dos produtos da
respiração celular, cujo excesso a célula rejeita por se tornar nocivo.
O sistema tegumentar e o sistema imune se encarregam da
função vital da proteção. A diversidade morfológica do revestimento
externo dos seres vivos possibilita o desempenho de funções variadas,
como por exemplo, a proteção contra predação e contra patógenos a
proteção contra a desidratação, a regulação da temperatura corpórea, a
secreção de substâncias repelentes e/ou atrativas, bem como a captura de
alimento (por exemplo, boca, dentes, probócides, etc). Atividade
complementar – Pesquise de que maneira e em que grupos de
organismos, o sistema tegumentar, está envolvido na proteção contra
desidratação, regulação da temperatura e produção de substâncias
repelentes.
O sistema nervoso, e também o sistema imune são
especializados na função vital de sensibilidade ao ambiente. Células
receptoras sensoriais transduzem o sinal físico ou químico do ambiente
em uma atividade eletrofisiológica das células, que conduzem então a
informação entre seus neurônios interconectados, integrando-a e
(orientando-a ?) a pelo menos dois destinos: aos centros de seleção das
informações que deverão ser memorizadas (hipocampo, por exemplo) e
aos motoneurônios que irão coordenar a atividade do aparelho locomotor.
Assim sendo, podemos identificar uma natureza sensório-integrativamotora no sistema nervoso. A sensibilidade ao ambiente, portanto,
possibilita a coordenação do movimento, do comportamento e portanto
do desempenho ecológico do organismo, isto é, seu comportamento e
suas interações com outros seres vivos e com o ambiente..
O sistema digestivo e o sistema excretor desempenham, com
mais eficiência, a tarefa de nutrição e de excreção. A transformação, a
quebra do alimento em unidades menores e a absorção dos nutrientes se
19
efetua no sistema digestivo. A absorção do alimento pelos intestinos
transfere os nutrientes para a corrente sanguínea. Não só os nutrientes
mas também o refugo do metabolismo é conduzido pelo sistema
circulatório. O refugo metabólico na circulação passa pelos rins e destes
para o restante do sistema excretor, onde é processado e finalmente
excretado.
O aparelho locomotor, composto pelos sistemas muscular,
esquelético e articular, atuam em sinergia para efetivar a sustentação e o
movimento do corpo. É a morfofisiologia integrada desses sistemas que
efetiva o comportamento.
O sistema circulatório e o sistema linfático, por sua vez,
otimizam o movimento da matéria e do aporte de energia pelo interior do
corpo. Conduzem o oxigênio e os nutrientes para as células, recebendo
em troca o refugo de seu metabolismo, que é então destinado aos órgãos
do sistema excretor È bom lembrar que o sistema circulatório também
conduz os macrófagos, relacionados ao sistema de defesa do organismo,
rapidamente, para qualquer parte do corpo.
Já o sistema reprodutor, é claro, se encarrega da função vital da
reprodução. Como veremos logo a seguir, foi justamente essa a primeira
função vital a se especializar com o aparecimento da diferenciação
celular nos organismos multicelulares que primeiro surgiram na Terra
(colônias).
A especialização nas tarefas vitais revela-se vantajosa sob o
ponto de vista evolutivo, pois está implicada à economia de energia
expansiva45, que é a energia necessária para o desenvolvimento do
organismo e para a sua reprodução (VAN VALEN, 1976). A energia
economizada pode, porventura, ser realocada tanto para a reprodução de
mais descendentes, quanto para o crescimento exuberante (aumento em
tamanho) do corpo ou de parte dele ou ainda, promovendo o
Saiba mais
desenvolvimento de corpos com formas diferentes e muitas vezes mais
Fitness é uma
palavra de
origem inglesa
que denota a
capacidade dos
indivíduos em
deixar
20
descendentes
em comparação
com outros
complexas.
Cada
tipo
celular
tem
seu
padrão
morfofuncional
característico, sejam eles seres unicelulares ou células de um organismo.
Essas características não são “invenções” totalmente novas e originais. A
natureza está constantemente reorganizando e remodelando as estruturas
preexistentes46, ou seja, gerando novas possibilidades de interação
entre as formas e permitindo a emergência de novas funções
(GOULD, 1977, 2002; DAVIDSON, 2001). Esse potencial de cooptar
caracteres para que passem a desempenhar novas funções em um novo
contexto foi amplamente explorado durante a evolução dos seres
multicelulares. Assim, as pressões de seleção natural sobre o desempenho
das funções vitais da célula passaram a atuar também sobre a
morfofisiologia dos tecidos, órgãos e sistemas, bem como do organismo
como um todo.
Reflexão
A vida multicelular, portanto, deslocou o alvo da seleção natural,
que passou a atuar não somente sobre a célula, mas sobre o organismo
como um todo. Nos organismos multicelulares, a fisiologia dos tecidos,
dos órgãos e dos sistemas emerge da organização interativa entre os
diferentes tipos morfológicos de células que os compõe. De modo
complementar, a fisiologia manifestada é capaz de transformar a
morfologia das células, modificando tanto a quantidade quanto a
diversidade de seus constituintes, controlando o ciclo celular, a
proliferação e também a morte natural das células. Ou seja, a gênese
morfofuncional dos tecidos, órgãos e sistemas deriva de três eventos: a
diferenciação fenotípica; a velocidade de proliferação celular (ciclo
celular); e a morte celular programada.
A vida unicelular apareceu muito cedo na história do planeta
Terra, há cerca de 3,8 bilhões de anos. A vida multicelular, por sua vez,
só veio a ocorrer há aproximadamente 700 milhões de anos
(NARBONNE et al., 1997; CONWAY-MORRIS, 1998; JENSEN et al.,
1998).
É provável que a multicelularidade47 tenha se originado a partir
de microrganismos unicelulares coloniais, mas também é possível ter
evoluído com a associação de seres unicelulares distintos. Mas como? As
proteínas de adesão, presentes nas membranas das células, e o
conseqüente desenvolvimento de uma matriz extracelular foram
21
selecionados pela natureza, permitindo que as células permanecessem
aderidas após a divisão celular. (figura 10).
Figura 10. (slide 47) Forma e função no nível de tecido. O
aparecimento da multicelularidade.
O coletivismo celular proporcionou alguns benefícios, vejamos:
1) a diferenciação celular. Células geneticamente idênticas de
um mesmo organismo expressam diferencialmente seus genes, permitindo
assim a especialização em certas tarefas vitais. Mutações nos programas
genéticos de desenvolvimento das células precursoras resultam em
modificações no fenótipo celular final;
2) a associação e a cooperação na aquisição e distribuição dos
nutrientes;
3) a diversidade biológica, fruto de modificações na regulação
dos programas de desenvolvimento morfofisiológico dos tecidos, órgãos e
sistemas do organismo;
4) as implicações evolutivas resultantes do fato de que todas as
células do organismo descendem de uma única célula progenitora. Em
primeiro lugar, apenas as mutações que afetam as células progenitoras são
relevantes para o destino evolutivo dos organismos. Isto é verdadeiro
apenas para os organismos não modulares e aqueles que não apresentam
crescimento vegetativo. Em plantas, mutações somáticas podem sim, ser
herdadas. Depende de em que célula ela ocorre e que tecido é gerado a
partir desta célula. Se for o tecido responsável pela produção de uma flor,
então a mutação somática pode sim ser herdada. O mesmo vale para
animais modulares. Veja a unidade de organismos modulares neste
mesmo Módulo. Como o programa genético de desenvolvimento,
responsável pela organização dos tecidos do corpo, está presente no
genoma de cada célula progenitora, as mutações que afetam os genes
reguladores dessas células participam efetivamente da evolução e da
diversificação das formas e funções dos seres e de suas estruturas
internas. Em segundo lugar, a seleção natural passa a atuar, não somente
sobre as células, mas também, e principalmente, sobre o organismo como
Saiba mais
Totipotência
é
a
capacidade de
uma
única
célula,
o
22
zigoto,
por
exemplo, de
originar todas
um todo! Assim sendo, a evolução dos seres multicelulares acontece
dentro
dos
limites
estabelecidos
pelo
programa
genético
do
desenvolvimento preexistente e pelas contingências históricas, isto é,
depende dos genes herdados, do controle do desenvolvimento e do
contexto ambiental em que se encontra o ser. Percebemos, aqui, a íntima
relação entre a evolução e o desenvolvimento. Essa relação é concebida
como algo integrado e interdependente: evo-devo (GOULD e
ELDREDGE,
1977;
GOULD,
1977,
2002;
DE
DUVE,
1997;
DAVIDSON, 2001).
Nos seres coloniais, a reprodução foi a primeira propriedade
vital a ser especializada por um tipo celular específico: a célula
totipotente. Exemplos atuais dessa antiga forma de vida são as algas
verdes do gênero Volvox, que possuem células somáticas, cujas filhas são
sempre células somáticas, e células totipotentes, especializadas na
reprodução, pois podem originar ambos os tipos celulares (KIRK, 2001).
Inicialmente, dois tipos de células resultam da proliferação
celular, células somáticas e células reprodutivas, contudo, ambas
possuíam o mesmo número de cromossomos. Isso significa que a
reprodução
era
assexuada
por
partenogênese.
Nos
animais,
o
aparecimento das células reprodutivas com metade dos cromossomos
implicou, por sua vez, na separação dos sexos, ou seja, na reprodução
sexuada. A maioria das algas, fungos e plantas não funcionam assim. A
meiose é um tipo de divisão celular associada à redução do número de
cromossomos, à recombinação e, portanto ao aumento e manutenção de
novas combinações de genes em populações de organismos. Mas, não
necessariamente associada à reprodução sexuada. Nos organismos
haplobiontes haplontes e nos diplobiontes a meiose ocorre na formação de
esporos, não de gametas. Os esporos nunca se fusionam com outros
esporos e, assim, não produzem células diplóides. Portanto não há
fecundação, não há sexo. Contudo, os esporos germinam e formam
organismos multicelulares haplóides. Quando você vê um musgo (ou
aquilo que a gente reconhece como musgo) o que a gente vê é um
organismo pluricelular, macroscópico haplóide. Este indivíduo haplóide
23
produz gametas por mitose (todos os gametas são idênticos entre si. É a
dispersão dos esporos (que são geneticamente diferentes) e a distribuição
dos indivíduos haplóides na população que garantem a variabilidade
genética da população.) Feita esta distinção, nos seres com reprodução
sexuada, formaram-se os gametas femininos, que possuem a estrutura
necessária para iniciar o desenvolvimento do organismo, e os gametas
masculinos, capazes de desencadear o desenvolvimento. A reprodução
sexuada se efetua por intermédio da fecundação, ou seja, a união do
gameta masculino com o feminino, gerando uma célula totipotente, cujo
fenótipo é chamado de zigoto. Todo organismo animal se desenvolve a
partir desta única célula, o zigoto (exceto os fungos – haplobiontes
haplontes – boa parte das algas – haplobiontes haplontes ou diplobiontes
– e todos os organismos haplóides do ciclo de vida diplobionte,
característico de todas as plantas).
Durante o desenvolvimento, o fenótipo das células que ainda não
atingiram o estágio de maturação, as chamadas células precursoras ou
células-tronco, diferenciam-se várias vezes.48 A diferenciação ocorre por
meio de modificações na expressão gênica em resposta às mudanças no
metabolismo celular, induzidas por fatores intrínsecos e extrínsecos.
Modificações metabólicas alteram a expressão gênica e,
conseqüentemente, o programa genético do desenvolvimento da célula,
que passa a assumir formas e funções distintas, até assumir um fenótipo
estável, o chamado fenótipo terminal. As células precursoras assumem
diversos fenótipos transitórios até assumirem características morfológicas
e funcionais do fenótipo final. Exemplos de fenótipos terminais são as
células já diferenciadas do corpo, como os miócitos cardíacos (células do
músculo cardíaco), os adipócitos (células adiposas) ou os neurônios. No
caso do sistema nervoso, os neurônios se diferenciam a partir da
modificação fenotípica das células precursoras chamadas de neuroblastos.
Modificações no programa genético do desenvolvimento geram
variedade
morfofisiológica
nos
indivíduos
de
uma
população,
influenciando diretamente o curso da evolução das espécies!49 A
alterações evolutivas na regulação da expressão gênica podem derivar,
24
por exemplo, de mutações pontuais que codificam certos aminoácidos dos
domínios dos fatores de transcrição, que passam a interagir com outros
segmentos do DNA; ou mais freqüentemente, dos rearranjos de
fragmentos de DNA, através de translocações, inserções, duplicações,
deleções, transposições fusões e fissões (DAVIDSON, 2001; GOULD,
2002).
As modificações nos sistemas de regulação da expressão gênica
de células precursoras podem desviar o desenvolvimento fenotípico antes
que se atinja o fenótipo terminal, ou estender o programa de diferenciação
terminal, desenvolvendo um novo fenótipo celular. Essas modificações
espaço-temporais no programa genético do desenvolvimento são
chamadas de heterocronia, que estudaremos mais adiante.

Seres vivos e Ecologia.
Os seres vivos interagem com seu ambiente. As interações
ecológicas se estabelecem entre os seres de uma mesma espécie
(interações
intraespecíficas),
entre
(interespecíficas) e também com
seres
de
o meio
diferentes
espécies
abiótico. Uma das
conseqüências dessas interações é a seleção natural dos organismos mais
bem adaptados. A seleção natural depende de três processos (Darwin,
1859; Dobzhansky, 1968; Gould e Eldredge, 1977; Mayr, 1998): (1) a
variabilidade de indivíduos em uma população, cujos códigos genéticos
são distintos; (2) a herança dos caracteres dos progenitores; e (3) o
sucesso diferencial das progênies dos diferentes indivíduos, efetivado
pelas proporções de descendentes também aptos nas sucessivas gerações.
Os diferentes resultados de sucesso da prole selecionam indivíduos com
diferenças genéticas, direcionando a evolução da população. Esse
movimento gera especiação, se por ventura uma população sofrer algum
tipo de isolamento reprodutivo em relação a outras populações, ou se
ocorrerem fenômenos de vicariância ou dispersão (Rosen, 1978). Muito
desse
sucesso
diferencial
resulta
das
adaptações
e
interações
morfofuncionais, comportamentais e ecológicas que os indivíduos
realizam com o seu meio ambiente. A seleção natural dos organismos
25
bem adaptados possibilita que as estruturas morfofisiológicas e os genes
permaneçam no tempo.
Vejamos agora um exemplo mais específico. No suceder das
gerações, submetido às pressões da seleção natural, e demais mecanismos
evolutivos, o tecido nervoso tem seu desenvolvimento modificado em
sua
organização
morfofisiológica,
possibilitando
o
desempenho
fisiológico e comportamental adequado à sobrevivência dos indivíduos
portadores de tais modificações e à conseqüente perpetuação de
populações de determinadas linhagens Tais modificações evolutivas na
estrutura do sistema nervoso se efetuam, no nível molecular, através da
preservação das mutações vantajosas nas regiões promotoras e estruturais
dos genes que codificam proteínas estruturais, enzimas e fatores de
transcrição, que participam tanto dos programas genéticos de
desenvolvimento das células precursoras, quanto do fenótipo maduro,
isto é claro, caso o indivíduo portador dessa mutação sobreviva até a vida
adulta e deixe descendentes que também sejam portadores dessa
mutação. Mais ainda, para que a mutação possa se fixar na população ou
os portadores dessa mutação têm maior capacidade de se reproduzir do
que os demais ou, a população é pequena o suficiente para que essa
mutação possa ser fixada por deriva gênica, isto é, ao acaso. Todavia,
além da determinação genética, a morfologia e a fisiologia do sistema
nervoso dos indivíduos também são influenciadas pelo meio-ambiente,
interno ou externo. Essa potencialidade dos neurônios é definida pelo
termo plasticidade. Embora a plasticidade resultante se esgote no
indivíduo, uma vez que não é transmitida às gerações posteriores, pois
não está codificado nos genes, o potencial plástico do sistema nervoso é
uma característica hereditária (Furtado, 2003; Rocha et al., 2003).

Por outro lado, o potencial que se manifesta no desenvolvimento
inicialmente exuberante dos componentes do sistema nervoso
(células e conexões em quantidade extranumerária), seguido de
eventos regressivos (diminuição do número de células e
conexões) determinados pelo ambiente, permite que o sistema
nervoso se ajuste tanto às variáveis que o meio ambiente
26
apresenta, quanto às alterações evolutivas em outros tecidos do
corpo, como as ocorridas em músculos, ossos, vísceras ou
receptores
sensoriais.
Em
outras
palavras,
muitas
das
modificações ocorridas ao longo da evolução do desenvolvimento
do sistema nervoso estão atreladas às modificações ocorridas em
outras estruturas corporais. Algo semelhante a uma coevolução,
mas só que manifesta em partes de um mesmo organismo. É
plausível supor que esta plasticidade, que o sistema nervoso de
organismos complexos possui, contribua para a manifestação
individual dos comportamentos estereotipados, bem como para a
capacidade de aprendizado e memorização de novos e complexos
comportamentos. Presume-se que a ontogenia (desenvolvimento)
do sistema nervoso depende de mecanismos genéticos e também
das interações que as células realizam com o ambiente
contingente, isto é, de influências epigenéticas.

Homem e humanidade
O Homem é o mais claro exemplo de que as variações
comportamentais expõem diferencialmente os indivíduos de uma
população à diferentes pressões de seleção natural. Basta que observemos
a história evolutiva dos hominídeos para percebermos o quanto o
comportamento e também o desenvolvimento da cultura e da tecnologia
contribuíram para o sucesso adaptativo de nossa espécie. A humanidade
possibilitou a emergência novos níveis de organização, tanto de natureza
material quanto de natureza mental. Desenvolvemos as aldeias, as
cidades, os estados e, depois, as nações; organizamos-nos, no início de
nossa evolução em famílias e clãs, depois em tribos, povos, e finalmente,
em sociedades modernas. Podemos identificar facilmente o resultado da
imensa complexidade morfofuncional de nossa vida diária e em nossa
estrutura sócio-cultural.

Universo morfofuncional
27
Como justificado anteriormente, toda forma possui a função de
ser-estar, pois isto, simplesmente causa efeito. Não há aqui uma
conotação teleológica da função. O serve para é uma interpretação
antropocêntrica, embora, muitas vezes, na natureza, uma estrutura
morfofuncional acabe servindo para alguma coisa, mas isso sempre de
maneira relativa à com o que ou quem se está associando tal função.
Conforme vimos, o Universo manifesta-se pela emergência e
evolução de propriedades morfofuncionais nas diferentes escalas do
espaço-tempo, desde sua gênese. Passando da organização subatômica
inicial da matéria até a emergência da vida no caldo coacervado, o
Universo evoluiu. Organizou-se de modo cada vez mais complexo,
mantendo-se em equilíbrio, sobrevivendo, permanecendo no tempo,
como ainda hoje fazem a enguia, as estrelas, os observadores e os
observatórios astronômicos (Cortázar, 1972).
É a ordenação do espaço e sua permanência no tempo que
potencia e alimenta a tendência oposta à desordem entrópica. A evolução
gerou uma diversidade incrível de seres vivos com adaptações e ecologia
particulares,
onde
os
animais
se
comportam
e
interagem
morfofuncionalmente. Qualquer interação ecológica é uma modificação
do espaço e do tempo. A modificação do espaço, a morte de uma presa,
no caso da predação, por exemplo é a morfologia da interação ecológica
da predação. O mesmo raciocínio pode ser extendido para qualquer das
demais interações.) com a natureza, como o fazem as enguias em seu
movimento ondulatório, pois durante os anos de sua vida, e à milhões de
anos, em um movimento instantâneo, capturam a presa e sobrevivem...
Suponho ser também algo semelhante a este diálogo, que é escrito. Para
que distantes possamos, eu e você, admirar que haja vida nos seres vivos!
E que ela está verdadeiramente viva! Desde sua aurora!
Mas antes de prosseguir pergunte-se sobre o que você entendeu
Reflexão
até agora. Por favor, não insista em prosseguir, repasse mentalmente as
principais idéias expostas até aqui e certifique-se que as compreendeu.
Caso você ainda não se sinta seguro (a), não vacile, reveja o conteúdo
28
para assimilá-las plenamente, pois elas são indispensáveis para a
compreensão do que vem a seguir...
V Heterocronia
Vimos que a forma e sua funcionalidade são interdependentes, e
que se manifestam em todos os níveis de organização do Universo.
Vimos também que a evolução do Cosmos resulta das relações recíprocas
entre forma e função, que geram diversidade e complexidade.
Mas como se manifestam as relações entre forma e função nos
seres vivos?
A resposta é simples: tais relações se manifestam no
desenvolvimento e na evolução dos seres!
A idéia de evolução, ou filogenia, e de desenvolvimento, ou
ontogenia, são semelhantes, porém, com uma diferença substancial. O
desenvolvimento se refere ao tempo relativo à vida dos organismos,
enquanto a evolução se refere a um tempo supra-individual, que
inclui a vida de gerações de indivíduos.
Compreendida essa diferença, repare algo muito interessante e
surpreendente! Após a divisão celular, as células desenvolvem um
fenótipo Os tecidos e os órgãos, sejam eles de plantas ou de animais têm
um desenvolvimento e um crescimento. Os organismos também crescem
e se desenvolvem. Os indivíduos aprendem e ensinam. As populações
aumentam e diminuem. As comunidades se sucedem. Os ecossistemas e
biomas evoluem. Os sistemas solares se formam e as galáxias se
desenvolvem. Todas as coisas no Universo estão em desenvolvimento
e em evolução!50 Nós inclusive, agora e sempre!(figura 11 ou tabela 1).
Reflexão
Figura 11. ou Tabela 1. (slide 50) A atuação da evolução nos
diferentes níveis de organização do Universo.
Conforme exposto, o desenvolvimento e a evolução manifestamse espaço-temporalmente. No tempo, a manifestação do desenvolvimento
e da evolução refere-se à sucessão e à duração dos eventos. No espaço,
revela-se por meio das modificações no tamanho e/ou na forma das
29
estruturas. A combinação desses parâmetros nos permite classificar o
desenvolvimento do organismo, ou de suas estruturas, em diferentes tipos.
Em relação ao espaço, o desenvolvimento pode ocorrer de modo
progressivo ou regressivo. Em relação ao tempo, o desenvolvimento dos
caracteres ou dos indivíduos pode ser retardado ou acelerado. A
combinação
dessas
quatro
possibilidades
resulta
no
tipo
de
desenvolvimento observado. Essa mesma classificação também pode ser
adotada para se categorizar a evolução.
Para identificarmos o tipo de evolução, é preciso que sejam
comparadas as características morfológicas e/ou fisiológicas atuais com
aquelas do ancestral. As modificações evolutivas ocorridas pela mudança
nos padrões de desenvolvimento são as chamadas heterocronias. As
heterocronias promovem diferenças morfofisiológicas nos indivíduos
(hetero), em virtude de modificações no ritmo de desenvolvimento
(cronos). São seis as possibilidades de evolução heterocrônica.51
e 52
(figura 12).
Figura 12. (slides 51 + 52 + 53). Heterocronia.
Dos seis tipos de mutações heterocrônicas, duas delas se
caracterizam por um retardo no desenvolvimento, outras duas por uma
aceleração no desenvolvimento, enquanto as duas restantes manifestam
um desenvolvimento simultaneamente acelerado e retardado no que se
refere ora à forma, ora ao tamanho do caractere em questão.53 e 54
Em resumo, a heterocronia no desenvolvimento possibilita que
distintas partes do corpo ou os órgãos reprodutivos possam se
desenvolver
(aceleração),
em
seja
diferentes
mais
velocidades,
lentamente
seja
(retardo),
mais
em
rapidamente
relação
ao
Atenção
desenvolvimento de seu ancestral. (HAECKEL, 1866; VON BAER,
1828, apud GOULD, 1977; NORTHCUTT, 1990; DAVIDSON, 2001).
Mas como as formas e os tamanhos das partes dos corpos podem
ter seu desenvolvimento alterado?
30
O
desenvolvimento
estabelecimento
de
do
territórios
corpo
ocorre
por
morfogenéticos.
meio
Cada
do
território
morfogenético possui o potencial de desenvolver uma parte específica do
corpo55 (figura 13). Isso ocorre por conta do comprometimento fenotípico
que cada célula precursora tem em se diferenciar em outra(s) célula(s)
com
morfofisiologias
específicas.
Esse
comprometimento
na
diferenciação celular resulta na formação dos diferentes tecidos, órgãos e
sistemas.
Figura 13. (slides 55 + 56 + 69) Territórios morfogenéticos.
O comprometimento fenotípico é estabelecido pelo programa
genético do desenvolvimento. Cada indivíduo, de cada espécie manifesta
um programa genético do desenvolvimento diferente. A evolução
Atenção
ocorre com as modificações na duração dos eventos do desenvolvimento;
as modificações na intensidade (velocidade, quantidade, concentração)
em que eles ocorrem; ou ainda com as alterações na seqüência em que os
Saiba mais:
Territórios
morfogenéticos
são regiões
morfofuncionais
do embrião que
têm o potencial
de desenvolver
partes
específicas do
corpo.
Modificações na
especificação
dos territórios
morfogenéticos
alteram o
desenvolvimento
do corpo,
promovendo a
evolução.
eventos de diferenciação ocorrem.
Quanto
mais
precoce
for o desvio
no
programa
do
desenvolvimento, maiores são as chances de os organismos apresentarem
diferenças morfofisiológicas significativas. Nos seres sexuados, a
evolução ocorre por meio de mutações nas células da linhagem
reprodutiva do ancestral que modificam (heterocronia) o controle do
programa genético de desenvolvimento dos descendentes56
Alterações no programa genético do desenvolvimento podem
ocorrer de modo independente em diferentes regiões do embrião, isto é,
em
diferentes
territórios
morfogenéticos.
Essas
alterações
independentes resultam em crescimento diferencial das partes do corpo
(heterocronia). Se as alterações podem ser mensuradas, consequentemente
pode-se medir também a taxa de crescimento de determinadas estruturas
comparando suas medidas com as do corpo (alometria). Essas taxas de
crescimento
alométrico
podem
ser
obtidas
tanto
durante
o
desenvolvimento, comparando-se diferentes idades de uma mesma
espécie, quanto na evolução, comparando a espécie com seus ancestrais.
31
Mais adiante retomaremos a discussão sobre a alometria. Por ora vamonos ater ao tema da heterocronia.
A alteração do padrão de desenvolvimento conduz a alterações
morfofisiológicas
no
corpo
dos
indivíduos,
Atenção
submetendo-os,
conseqüentemente, a distintas pressões de seleção natural.
Vejam que a evolução e o desenvolvimento são eventos
morfofuncionais muito semelhantes. Mais do que isso, a evolução e o
desenvolvimento são fenômenos interdependentes.57 (figura 14).Mas qual
é essa relação de interdependência entre a evolução e o desenvolvimento?
A resposta é simples: a evolução (filogenia) resulta das modificações
morfofuncionais no programa do desenvolvimento (ontogenia) sofridas ao
longo das gerações. Ou seja, a filogenia resulta da evolução do
desenvolvimento! 58
Figura 14. (slide 57) Evolução do programa genético do
desenvolvimento
gera
a
diversidade
morfofisiológica
nos
seres
multicelulares.
Essa evolução do desenvolvimento também é conhecida pela sua
abreviação: evo-devo. Se compararmos o desenvolvimento das diferentes
espécies, a primeira impressão é que a ontogenia recapitula a filogenia,
mas não se trata de uma recapitulação propriamente dita como veremos
mais adiante nesta unidade.
Você já se perguntou por que um determinado órgão do corpo
tem a morfologia e a fisiologia que tem? Ou por que quanto mais
Reflexão
aparentados são os organismos do ponto de vista filogenético, mais
parecidos são sua anatomia e seu desempenho comportamental? Ou
ainda, como puderam ter surgido novos tecidos, novos órgãos e sistemas
durante o processo evolutivo? São questionamentos que têm tudo a ver
com a heterocronia no desenvolvimento.
Mas por ora é melhor que voltemos ao desenvolvimento
heterocrônico. Os seis tipos de heterocronia, podem resultar da mudança
na intensidade (aumento, diminuição ou supressão) da expressão de certos
genes reguladores, ou ainda, da expressão de novos genes reguladores, o
32
que possibilita o desenvolvimento de um fenótipo terminal diferente.52
Qualquer tipo celular, qualquer tecido, órgão ou sistema, teve
necessariamente, uma origem evolutiva!
Os três principais fatores que contribuem para a histogênese e a
organogênese dos seres multicelulares são: a proliferação celular, a
diferenciação fenotípica e a morte celular programada (apoptose) (VON
BAER, 1828, apud GOULD 1977; GOULD, 1977, 2002; DAVID, 2001;
ZELDITCH e FINK, 1996).
Assim sendo, a evolução morfofisiológica dos tecidos, órgãos e
sistemas, depende de modificações nos padrões de desenvolvimento
desses mesmos três fatores: 1) modificações na velocidade de proliferação
celular; 2) desvios no programa genético do desenvolvimento das células
precursoras que resultam no desenvolvimento de um novo tipo celular;
e/ou 3) modificações na indução espaço-temporal de morte celular
programada. Lembre-se que as modificações heterocrônicas podem se
manifestar em territórios morfogenéticos específicos, possibilitando que
partes específicas do corpo tenham regulado seu desenvolvimento de
modo relativamente independente.
Repare a semelhança entre desenvolvimento e evolução.
A
forma, o tamanho e as funções das células, dos tecidos, dos órgãos e dos
sistemas estão sujeitos a alterações em seus padrões de desenvolvimento.
Podemos concluir que a grande parte da evolução da diversidade
morfofisiológica/comportamental/ecológica que os seres multicelulares
apresentam, e apresentaram nestes quase oitocentos milhões de anos de
existência, resultam da evolução da heterocronia do desenvolvimento.
Um exemplo claro é a modificação heterocrônica sofrida na proporção
entre o tamanho da mandíbula e o tamanho do crânio (e cérebro) ao logo
da evolução da cabeça dos hominídeos.
Agora note algo surpreendente: a heterocronia também ocorre,
de certo modo, na escala da célula!50 Depois que a célula nasce tem início
o ciclo celular, um desenvolvimento morfofuncional que se estabelece até
o fim do ciclo, quando ocorre uma nova mitose ou a morte da célula.
33
Cada tipo de célula tem um ciclo celular padronizado e esse
ciclo pode ser entendido como o desenvolvimento da célula. O fenótipo
que a célula desenvolve depende do ritmo de modificações na quantidade
e/ou tipos de proteínas presentes no início do ciclo celular e depende da
interação com o seu meio ambiente. O surgimento de novos fenótipos
celulares pode ocorrer pela supressão/modificação na quantidade de genes
expressos pela célula e/ou pela expressão de genes diferentes. Esse padrão
“heterocrônico” da expressão das proteínas que determinam o fenótipo
celular permite-nos fazer uma analogia com a evolução por heterocronia
que ocorre com os tecidos, órgãos e sistemas dos organismos. Vejamos
isto um pouco mais a fundo, concentrando-nos em identificar os padrões
morfofuncionais envolvidos.
A associação entre as proteínas fatores de transcrição e seus
sítios complementares específicos na espiral genética orquestram os
padrões de expressão gênica, e esse padrões se modificam durante o ciclo
celular59. A quantidade e os tipos de fatores de transcrição que se
encontram associados às regiões reguladoras e promotoras da transcrição
no DNA, determinam não só a expressão dos genes60, como também sua
intensidade61-64. Essa composição morfofuncional enovela e desenovela o
cromossomo, permitindo a separação das fitas de DNA pelo complexo
RNA-polimerase, e consequentemente sua transcrição em uma sequência
de nucleotídeos que formam a fita de ácido ribonucléico, o RNA
mensageiro.
Estabelece-se, um movimento de forças atômicas e mecânicas à
medida que as moléculas se associam morfofuncionalmente, milhares,
simultaneamente, o tempo todo, em em sítios específicos em regiões
reguladoras do DNA, como em um frenesi de rapidez milesimal capaz de
gerar uma miríade de ácidos nucléicos, mensageiros codificantes da
estrutura das proteínas que constituem a célula. Transcritos os RNAs, as
proteínas e as enzimas contribuem para a homeostase metabólica da
célula.
Assim, a cada momento do ciclo celular, determina-se o
desenvolvimento das características morfofuncionais da célula. As
34
características morfofuncionais das células precursoras determinam, por
sua vez, o destino fenotípico das gerações de suas células filhas e, por
conseguinte, o desenvolvimento morfofisiológico de todo o organismo.6568
A expressão gênica, você se lembra, é coordenada pela atividade
de fatores de transcrição que regulam a expressão de outros fatores de
transcrição, em uma cascata de regulação que culmina na expressão de
um grande conjunto de genes que determinam o fenótipo da célula. Os
genes que regulam a expressão de outros genes reguladores do
desenvolvimento são chamados de genes homeóticos69 (figura 13), e
existem muitas famílias deles (CARROLL, 1995; DE ROSA et al., 1999;
GREER et al., 2000; KAPPEN, 2000; MILLER et al., 2000;
MANZANARES et al., 2000; DAVIDSON, 2001). Você ouviu falar
desses genes homeóticos na unidade “Desenvolvimento e Crescimento”.
Estes genes são os mesmos do kit de ferramentas discutido naquela
unidade.
Mutações, permutas ou translocações nas regiões reguladoras
dos genes homeóticos ou nos domínios protéicos de associação com o
DNA, podem influenciar o desenvolvimento morfológico do animal. Uma
vez que esses genes são expressos muito cedo na ontogênese é possível
que as mutações possam resultar em conseqüências funestas70, mas por
outro lado, podem resultar em inovações benéficas para os animais,
sendo, portanto, passíveis de serem selecionados positivamente.71 (figura
15).
Figura 15. (slides 70 + 71). Modificações no programa genético do
desenvolvimento.
Atividade complementar
Pratique
A) Cite ao menos um exemplo no reino animal para cada um dos
seis tipos de heterocronia.
35
B) Faça o mesmo exercício, agora com exemplos de tecidos,
órgãos ou sistemas. Se preferir, resolva-os na forma de tabela.
VI Um exemplo de evolução heterocrônica
Durante a evolução houve uma tendência a uma maior
complexidade dos tecidos, órgãos, sistemas e aparelhos. Por exemplo, no
sistema nervoso se observa um aumento da massa encefálica em relação
à massa corporal, quando comparados peixes, anfíbios, répteis, aves e
mamíferos. Vejamos esta evolução mais a fundo.
Será que a Marella era menos complexa que os artrópodos
atuais? Acho que não podemos dizer isto da evolução.
Por outro lado, os organismos que conhecemos hoje em dia,
como pertencentes ao Reino Monera (cianobactérias, por ex), têm uma
história evolutiva mais antiga que a nossa (independente do nível
hierárquico ao qual estejamos nos referindo: animal, mamífero,
hominídeo), entretanto, são organismos tão atuais e, portanto, tão
evoluídos quanto nós. A biosfera, até hoje é dominada pelas bactérias.
Este é um grupo tão bem sucedido que existe desde há 2,8 bilhões de
anos e continua a dominar a Terra em termos de número de espécies e
mesmo de grupos chave. Sem cianobactérias não haveria vida, mas elas
existiriam sem nós.
Nadar com auxílio de um cílio ou flagelo é possível apenas se o
organismo for muito pequeno. Neste caso este mecanismo é eficiente. Se
você tivesse uma célula do tamanho de um peixe (ou com a mesma
massa corpórea) o sistema teria de ser outro. Você já imaginou o
tamanho e a espessura do flagelo para movimentar, na água, uma euglena
de 30 cm de comprimento com a mesma eficiência e velocidade relativa
de deslocamento que sua parenta (real) microscópica?
O cérebro aumentou porque nos tornamos mais complexos ou
porque nos tornamos maiores e organismos maiores acabam sendo mais
36
complexos para serem mais eficientes? E uma vez maiores outras
funções puderam se estabelecer com o tempo!?
Nossos pulmões são como são para poder empacotar uma
enorme superfície de contato com o ar atmosférico para sermos capazes
de sustentar nossa massa corpórea. Se fossemos do tamanho de besouros
não precisaríamos de pulmões. Poderíamos carrear o oxigênio por
difusão com eficiência.
Durante o desenvolvimento, o tubo neural sofre uma série de
especificações morfogenéticas nos eixos antero-posterior, dorso-ventral e
interno-externo. Essas mudanças nos padrões de expressão gênica no
epitélio germinativo concorrem para a definição do fenótipo das distintas
populações celulares do sistema nervoso. Tal fenômeno continua a
ocorrer, em certas ocasiões, também nos locais onde determinadas
células
iniciam
sua
diferenciação.
São
populações
de
células
desempenhando um metabolismo capaz de influenciar o destino
fenotípico
de
suas
circunstantes,
especificando
territórios
morfogenéticos, influenciando a proliferação e a também diferenciação
celular.
A ontogenia do sistema nervoso se manifesta inicialmente,
formando conjuntos exuberantes de neurônios interconectados . Durante
a especificação do neuroepitélio, o plano antero-posterior do tubo neural
se diferencia nas distintas populações de células do prosencéfalo, do
mesencéfalo, do rombencéfalo e da medula.72
O prosencéfalo, prosseguindo seu desenvolvimento, se segmenta
em dois grandes territórios morfogenéticos, à frente o telencéfalo e atrás
o diencéfalo. Concomitantemente, o rombencéfalo se divide nas
populações do metencéfalo e do mielencéfalo. No plano dorso-ventral
três regiões morfofuncionais podem ser identificadas ao longo de toda a
longitude do sistema nervoso: a região dorsal, de natureza sensorial, a
Saiba mais
Durante o
desenvolvimento
embrionário, o
encéfalo é
originário a partir
de uma vesícula
única que se divide
em três partes: o
prosencéfalo (ou
encéfalo anterior),
o mesencéfalo (ou
encéfalo médio) e
o rombencéfalo
(ou encéfalo
posterior).
Para relembrar
sobre o Sistema
Nervoso Central e
suas funções
volte a Unidade 9
do Módulo 3.
região intermediária, de natureza integrativa e a região ventral, de
natureza motora.
37
Em todos os cordados, o mielencéfalo e metencéfalo
(rombencéfalo) contêm os centros moduladores de funções vitais básicas,
como a respiração, nutrição, circulação, reprodução, locomoção etc.
Essas regiões estão presentes nos cordados vivos e, provavelmente,
também nos mais antigos ancestrais.
O restante do cérebro, excetuando o sistema olfativo, são
aquisições evolutivas dos vertebrados, como sugere o estudo do sistema
nervoso dos anfioxos (Holland e Holland, 1999). Foi justamente nessas
novas estruturas que mais modificações evolutivas continuaram a
aparecer, em conseqüência, principalmente, do desenvolvimento
heterocrônico do sistema nervoso, cuja velocidade de crescimento das
estruturas pôde ser modificada diferencialmente. Na filogênese dos
vertebrados houve uma tendência de crescimento e de aumento de
complexidade morfofuncional, proporcionada pelo prolongamento do
período de desenvolvimento. Embora esse prolongamento signifique
também um aumento na energia investida na proliferação, as
potencialidades de desenvolvimento do corpo e de seus tecidos são, em
contrapartida, também incrementadas.
No plano antero-posterior, podem ser identificadas no sistema
nervoso dezessete regiões, ao serem caracterizadas de acordo com a
foram e a função que apresentam, ainda que as funções desempenhadas
não lhes sejam exclusivas. Trata-se de divisões classificadas segundo as
generalidades nas formas e nas funções destas grandes regiões. Se
observadas minuciosamente, tais divisões apresentam uma miríade de
sub-regiões morfofuncionais. Todavia, tanto o número de células e áreas
quanto a complexidade dos circuitos morfofuncionais variam muito mais
entre os animais pertencentes a diferentes classes ou ordens (grandes
táxons) do que entre animais de uma mesma família ou gênero (pequenos
táxons).
VII Homologia e homoplasia
38
O termo homologia, introduzido por Owen em 1843, portanto
antes do livro Origem das espécies, de Charles Darwin (1859), referia-se
à idéia de semelhança de um mesmo órgão em diferentes animais, sob
uma variedade de formas e funções. Desde então, várias definições de
homologia foram apresentadas e discutidas: (Simpson, 1944; Campbell e
Hodos, 1970; Mayr, 1988; Striedter, 1998; Striedter e Northcutt, 1991;
Striedter, 2002) e todas elas salientam que, para serem homólogos, as
estruturas que se comparam devem estar, de alguma forma, presentes na
condição ancestral.
Assim, um caráter presente em dois ou mais táxons é homólogo
se esse caractere é também encontrado no ancestral comum desses
táxons. Respeitada a condição de ancestralidade comum, os caracteres
que se compara são considerados homólogos, ainda que sejam muito
diferentes (Striedter e Northcutt, 1991; Striedter, 1998, 2002).
Identificam-se alguns tipos de homologia (figura 26): 1- a
homologia
transformacional,
que
implica
a
conservação
da
característica ancestral em apenas um dos táxons descendentes, enquanto
no (s) outro (s) táxon (s) o caractere se transforma em uma forma
diferente -; e 2- a homologia estática, que implica a conservação do
caráter nas distintas linhagens. Os caracteres homólogos são chamados
plesiomórficos, caso os caracteres do ancestral tenham sido conservados
nas linhagens subseqüentes; ou apomórficos (sinapomórficos), caso
sejam caracteres derivados.73 a 75
Figura 16. (slides 73 + 74 + 75). Homologias e homoplasias.
Dependendo do contexto, além desse conceito de homologia
filogenética, outros dois conceitos podem ser adotados: 1- a homologia
seriada, que significa a correspondência entre estruturas que ocupam
posições espaciais distintas em uma sequência de estruturas
semelhantes, como exemplo, as diferenças entre as vértebras cervicais e
lombares ao longo da coluna vertebral de um mamífero; 2- a homologia
sexual, que é a correspondência entre estruturas do macho e da
fêmea, que se desenvolvem a partir de primórdios embrionários
39
idênticos. O ovário é homólogo sexual dos testículos, e o clitóris é um
homólogo sexual do pênis. A homoplasia, por sua vez, é o termo que
define caracteres semelhantes em sua forma ou função, sem que tenham
derivado de um ancestral comum (caracteres análogos). Três tipos de
homoplasia são reconhecidos: 1- a homoplasia paralela (paralelismo),
que nomeia a evolução independente de caracteres semelhantes a partir
de um mesmo caráter ancestral distante; 2- a homoplasia convergente
(convergência), que define a evolução independente de caracteres
semelhantes a partir de diferentes caracteres ancestrais, envolvendo
adaptação a condições ecológicas similares; 3- a homoplasia casual
(similaridade casual), onde caracteres semelhantes evoluem de forma
independente, sem relação de ancestralidade e sem envolver adaptações a
condições ecológicas similares.76
Uma vez
que
as
modificações
evolutivas
advém
das
modificações no programa genético do desenvolvimento, não só os
caracteres manifestados pelos organismos adultos, mas principalmente as
etapas do desenvolvimento ontogenético devem ser comparadas para
uma apreciação mais verossímil das condições de homologias e
homoplasias entre os caracteres.
O estudo da ontogenia é uma ferramenta poderosa na
caracterização da evolução dos tecidos do corpo, porque a grande
maioria, senão todas as mudanças morfofuncionais que se evidenciam
nos seres, resultam de modificações nos padrões genéticos do
desenvolvimento (Duboule, 1994; Mayr, 1998; Davidson, 2001; Gould,
2002).
Uma mutação no programa genético de desenvolvimento desvia a
morfogênese do organismo em algum momento específico do
desenvolvimento. O desenvolvimento, até então, recapitula o padrão de
desenvolvimento que ocorria com seu ancestral (von Baer, 1828, apud
Gould, 1977). Por esse motivo, parece apropriado reconhecer homologia
entre estruturas de dois organismos caso elas se desenvolvam em
territórios morfogenéticos comuns. Esse tipo de homologia é chamada de
homologia de campo (field homology), (Puelles e Medina, 2002).
40
A modificação ou a conservação do programas genéticos de
desenvolvimento se reflete na proliferação, na diferenciação e na morte
celular. Modificações na proliferação tendem a alterar o tamanho da
estrutura. Mudanças nos padrões de diferenciação celular, por sua vez,
tendem a alterar a forma do caractere, enquanto a morte celular pode
modificar tanto a forma quanto o tamanho da estrutura.
Portanto, são homólogas as estruturas de diferentes organismos
que possuem a mesma origem ontogenética e filogenética. Estruturas
homólogas podem ou não manifestar as mesmas funções.
A análise cladística moderna infere as características dos corpos
dos animais ancestrais através da identificação de caracteres presentes
dentro e entre os grupos filogenéticos atuais, usando o grau de
semelhança e a parcimônia na tentativa de distinguir caracteres ancestrais
homólogos de caracteres semelhantes homoplásicos (Willey, 1981,
Butler,1994a, 1994b; Kaas, 2002).
Mas como podemos discernir se os caracteres comparados são
homólogos ou homoplásicos?
Vejamos as possibilidades com um exemplo. Várias evidências
podem ser utilizadas na busca por homologias e homoplasias no sistema
nervoso dos animais. As evidências podem ser reconhecidas em
diferentes níveis da organização biológica, por exemplo: na ecologia e no
comportamento do organismo, na morfofisiologia das regiões do cérebro
e das células, no programa de expressão gênica, na estrutura do genoma e
na atividade das macromoléculas orgânicas.
É possível individualizar alguns critérios de homologias
estruturais e funcionais, nos distintos níveis de organização biológica,
comparando-se: (1) as seqüências de nucleotídeos do DNA; (2) os
padrões de expressão gênica durante o desenvolvimento e no organismo
já maduro; (3) a diversidade de proteínas específicas e macromoléculas
características de determinadas populações celulares, ou seja, a
comparação do fenótipo molecular; (4) a atividade dessas proteínas e do
metabolismo celular; (5) o fenótipo celular, isto é, a posição do corpo
41
celular, a morfologia da célula e o padrão de estabelecimento e
distribuição de suas conexões; (6) a topografia, a morfologia e a
fisiologia das regiões, áreas e núcleos do cérebro em desenvolvimento e
do cérebro amadurecido; (7) a topologia, ou anatomia macroscópica do
cérebro; (8) o comportamento dos animais e (9) a ecologia dos seres. Não
obstante, para uma apreciação criteriosa das relações de homologia,
deve-se, sempre que possível, tomar vários ou todos esses critérios em
conjunto.
Além dos referidos critérios de homologia, derivados da análise
comparativa dos diversos tipos de sistema nervoso nos animais atuais,
também contribuem para a imaginação da organização dos cérebros dos
animais extintos, a reconstituição do corpo dos animais a partir do
registro fóssil, o estudo paleontológico das filogenias e o estudo da
paleoecologia. A observação da morfologia das caixas cranianas e as
relações entre área ou volume que as regiões de diferentes modalidades
sensoriais apresentam, bem como o provável desempenho ecológico dos
animais ancestrais, podem ser obtidas a partir da análise de fósseis.
O fenótipo bioquímico e estrutural (morfofuncional), as
interações que estabelecem, e os territórios morfogenéticos onde nascem
as células são considerados excelentes critérios de homologia entre tipos
celulares, porque se baseiam na conservação dos genes que controlam o
desenvolvimento de estruturas que desempenhavam funções importantes
no organismo ancestral, e que freqüentemente, tendem a continuar
desempenhando nas gerações subseqüentes.
VIII Alometria
Já
vimos
durante
o
desenvolvimento,
as
modificações
morfofuncionais ocorridas com o corpo e suas partes resultam de
alterações no programa de desenvolvimento. Vimos também que a
descendência comum e a heterocronia determinam as relações de
homologia e homoplasia entre caracteres de diferentes organismos.
Agora veremos como podemos quantificar a taxa de modificação
42
morfofisiológica ocorrida no desenvolvimento do organismo ou durante
sua história evolutiva.
As modificações morfofisiológicas (forma, tamanho, peso,
atividade, velocidade, temperatura...) podem ser quantificadas por
intermédio de uma relação alométrica, isto é uma comparação entre as
propriedades mensuráveis das partes em comparação com o corpo todo.
A alometria é a mensuração do crescimento relativo de uma parte em
relação ao organismo por inteiro, ou a algum outro padrão. Essa medida
pode ser utilizada na interpretação da evolução da forma, do tamanho e,
conseqüentemente, de suas funções. As alterações no tamanho ou a
mudança na forma são adaptativas, tanto do ponto de vista ontogenético,
como do filogenético (Hildebrand & Goslow, 2006).
Se duas estruturas corporais crescem a taxas distintas, então,
conforme o tamanho é alterado as proporções corpóreas também o são. A
alometria pode ser aplicada tanto ao estudo da ontogenia como da
filogenia, pois ela deriva do desenvolvimento heterocrônico.
Um exemplo de alometria no desenvolvimento é a mudança na
proporção do tamanho do crânio e da mandíbula nos humanos. Quando
comparados bebês e adultos humano, nota-se claramente que a proporção
entre o crânio (grande) e a mandíbula (pequena) dos bebês se inverte com
o desenvolvimento. Todavia, quando esses mesmos caracteres são
comparados do ponto de vista evolutivo, percebe-se o contrário. Na
evolução dos hominídeos, houve um pronunciado aumento no tamanho
relativo do crânio em relação ao tamanho da mandíbula. Mostrando que
do ponto de vista evolutivo, a cabeça dos hominídeos tendeu a manter
seu aspecto juvenil na fase adulta. Esse tipo de heterocronia é chamada
de neotenia.
Mas como podemos medir a taxa de crescimento? A medida da
alometria se baseia na correlação entre duas variáveis. O coeficiente
alométrico (a) refere-se à diferença de crescimento entre duas
características mesuráveis de um organismo, sendo uma delas a variável
independente (x) e outra a variável dependente (y). Na escolha da
43
variável independente deve-se dar preferência às características que
melhor expressam a totalidade do organismo. Já a variável dependente é
aquela que se pretende estudar.
A medida da alometria pode ser quantificada aplicando-se a
fórmula:
a = y / x.b
Onde: a é o coeficiente alométrico; x é a medida de uma
característica; b é uma constante; y é a outra característica.
Ao se estudar o desenvolvimento ou a evolução do tamanho ou
do peso de alguma parte do corpo, é comum utilizar o tamanho ou o peso
do corpo como variáveis independentes.
Podemos, por exemplo, avaliar o crescimento relativo do peso
ou do volume do cérebro durante o desenvolvimento do organismo bem
como a evolução do desenvolvimento, isto é, sua história evolutiva;
Também podemos estudar o crescimento das plantas, avaliando, por
exemplo, a proporção entre a biomassa subterrânea e a biomassa aérea de
uma planta. É possível medir o coeficiente alométrico durante o
desenvolvimento ou na evolução, de praticamente qualquer parte do
organismo, seja um tecido, um órgão ou todo um sistema.
Vejamos agora um exemplo bem específico de comparação
entre as taxas alométricas de diferentes espécies.77 (figura 17).
Figura 17. (slides 77). Alometria.
Na figura 17, as seis linhas de regressão representam equações
alométricas para seis populações distintas quanto à idade ou a
ancestralidade. Essas linhas representam neste exemplo, as relações
alométricas entre o crescimento das patas e da coluna de seis espécies ou
populações de uma espécie. Observe atentamente a figura e tenho certeza
que irá compreender este exemplo.
As espécies A e C possuem a mesma relação alométrica (mesma
inclinação de reta) em relação ao tamanho corporal e ao comprimento
44
relativo do membro. Porém, na espécie C os membros e a coluna crescem
em uma taxa equivalente, enquanto na espécie A, os membros têm uma
taxa de crescimento maior que a da coluna. A análise dessa situação
indica que asa espécies A e C são mais distintas do que aparentam.
O mesmo pode ser verificado com a comparação das espécies D
e E. Ambos são maiores que A e C, mas apresentam as mesmas
proporções. Todavia, a espécie C difere mais da espécie E do que da
espécie D, uma vez que, tanto C quanto E diferem não somente na taxa
de crescimento corporal como também na taxa de crescimento relativo
dos membros e da coluna.
Na espécie B os membros crescem mais rapidamente que a
coluna, enquanto a espécie F a coluna cresce proporcionalmente mais
rápido que os membros.
As
modificações
heterocrônicas
no
programa
de
desenvolvimento resultam nas diferentes taxas de crescimento.
Assim, podemos concluir que as modificações heterocrônicas no
programa de desenvolvimento modificam as taxas de crescimento das
partes do corpo resultando em modificações morfofuncionais nos
fenótipos. Essa variabilidade é um componente indispensável para a
evolução das espécies.
XIX Agradecimento
Agradeço tua companhia. Agora continua... Desenvolve tua
visão de mundo...
X Referências e sugestão de leitura
Senhores editores a lista de referências ainda está incompleta.
Winthers, PC. Comparative Animal Physiology. Copyright. 1992.
Hildebrand, M; Goslow, G. Análise e estrutura dos vertebrados. 2ed.
São Paulo Editora Atheneu. 2006.
45
Randall, DJ; Burggren, W; French, K. Animal Physiology. Mechanisms
and adaptations – Eckert. 4ed. Copyright. 1998.
Schmidt-Nielsen K. Fisiologia Animal. Adaptação e meio ambiente.
5ed. Santos Livraria Editora. 1996.
Para saber mais sobre a aplicação do método alométrico na
correlação entre forma, tamanho e proporcionalidade, visite os
endereços eletrônicos:
http://oficina.cienciaviva.pt/~pw011/jazidas/alometria_teropodes_osteolo
gico.html, para ler o artigo: Crescimento alométrico para teropodes,
inferido a partir do seu registro osteológico.
http://oficina.cienciaviva.pt/~pw011/jazidas/grallator_anchisauripus_eub
rontes_crescimento_alometrico.html, para ler o artigo: Grallator,
anchisauripus, eubrontes - crescimento alométrico, isométrico ou
outra situação?
46
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