O poder de resposta: a Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais Marina Eduarda Armstrong de Oliveira Geografia/UFPR ([email protected]) Renato Alves Ribeiro Jr. Geografia/UFPR ([email protected]) Otávio Gomes Rocha Geografia/UFPR ([email protected]) Thiago Vinícius de Almeida da Silva Geografia/UFPR ([email protected]) Jorge Ramón Montenegro Gómez Geografia/UFPR ([email protected]) Introdução O objetivo deste trabalho de pesquisa é compreender como a Cartografia – um instrumento de poder, dominação e controle social, e que traz consigo um discurso que não é isento de parcialidade –, ao ser apropriada por Povos e Comunidades Tradicionais, é ressignificada, passando de servir e disseminar os interesses de uma elite no poder, para impulsionar o exercício de auto-localização e de auto-afirmação das camadas populares da sociedade que, então, passam a caminhar em direção à visibilidade social perante sociedade e Estado. Para o cumprimento desse objetivo, inicialmente traremos à discussão o uso tradicional dado à Cartografia, para depois caracterizarmos a Cartografia Social enquanto prática inovadora e que reconfigura e ressignifica a prática cartográfica, o que dá margem à comparação entre estas duas “modalidades”. Para situar essa discussão dentro de um contexto específico, exemplificaremos a apropriação desta ferramenta pelos Povos e Comunidades Tradicionais através do exemplo dos Faxinalenses da Região Metropolitana de Curitiba, dos Cipozeiros de Garuva/SC e Guaratuba/PR e dos Pescadores Artesanais de Superagüi/PR. Cartografia Tradicional versus Cartografia Social Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 1 Tradicionalmente, a Cartografia sempre foi uma ferramenta monopolizada pelo Estado e organizações internacionais de controle (Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio, Organização das Nações Unidas, etc.), utilizada como estratégia de dominação, afirmação de poder e controle social (LACOSTE, 1997). O mapa torna visível o que é interessante que se veja, e invisível o que não se quer mostrar. Uma vez que o mapa carrega consigo um discurso longe de ser imparcial e, além disso, serve às elites, passa a disseminar os interesses das mesmas que acabam por ser apropriados e compulsoriamente reproduzidos pelo restante da sociedade. O mapa se configura até nos nossos dias como um instrumento da verdade inquestionável. O poder/saber que o mapa encerra, revela um ponto de partida que todos deveríamos compartilhar. No entanto, como uma alternativa de representação territorial apoderada pelos Povos e Comunidades Tradicionais, a Cartografia Social – que vem se consolidando desde 2005 – passa a ser um instrumento de resgate e reforço de identidade e também uma força motriz para sua organização política e sustento de suas ações reivindicativas. A Cartografia Social, mais do que um produto cartográfico, é um processo protagonizado pelas próprias comunidades, visto que elas é que a realizam. Já ao grupo de pesquisadores que participam do processo oferecendo suporte, cabem apenas as funções mais técnicas. No final, a soma de ambos permite o mapeamento dos conflitos que ameaçam as comunidades, e também a explicitação das práticas tradicionais que constituem sua identidade, o que caracteriza a delimitação do território que tradicionalmente ocupam (ALMEIDA, 2006). O protagonismo das comunidades no processo da Cartografia é um fator de extrema relevância, pois elas é que são detentoras do conhecimento acerca da região e da comunidade a ser mapeada, tendo em vista a identidade coletiva do grupo social, bem como dos conflitos e práticas a serem registrados na cartografia, e isso resulta num retrato mais fiel da comunidade, trazendo o olhar de quem realmente compreende aquela realidade. Os Povos e Comunidades Tradicionais fazendo Cartografia Social Os Povos e Comunidades Tradicionais possuem condições sociais, culturais e econômicas que os distinguem de outros setores da coletividade nacional e estão regidos Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 2 parcialmente por seus próprios costumes e tradições, em conformidade com a Convenção OIT 169 sobre Povos Indígenas e Tribais (Decreto n.º 5.051/04). Estes grupos sociais têm como característica marcante uma forte relação de interdependência com a natureza e um vínculo afetivo intenso com o lugar onde vivem, o que implica em conservação, proteção e até mesmo potencialização da diversidade biológica. Este manejo tradicional dos recursos é reconhecido por diversos Tratados Internacionais assinados pelo Brasil, como a OIT 169 já citada, a Convenção sobre Diversidade Biológica (Decreto n.º 5.059/05), o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para Agricultura e Alimentação/TIRFAA (Decreto n.º 6.476/08) e a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (Decreto n.º 5.753/06), que incentivam o estímulo e a proteção destes costumes. Os Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil surgem como Novos Movimentos Sociais, com a emersão de “um novo sujeito coletivo e difuso em busca de diferenciação, em luta contra as discriminações, crítico do processo de modernidade hegemônica e em busca do direito à diferença” (SOUZA, 2007). Nesse contexto, o direito de viver à sua própria maneira, no território que tradicionalmente ocupam é o cerne da luta. Os Faxinalenses Faxinalenses são os agentes sociais em razão dos quais existe o sistema faxinal. É importante que, antes de mais nada, o termo “faxinal” seja compreendido. Segundo José Gusso Neto, do Faxinal Santa Anita (Turvo-PR), faxinal é uma área que o povo vivem na comunidade, onde se dizem em comum, onde a criação é comum, e é aonde se acha mais a união do povo, então pra mim faxinal é onde ele procura fazer sua propriedade ali nesse lugar e manter sua criação em uso comum, ter diversidade de mato, tudo... então pra mim o faxinal é onde tem uma vida mais comunitária (NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL, 2008). O pesquisador Luis Almeida Tavares, na sua tese de doutorado, define faxinal como Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 3 Formação social tipicamente camponesa, silvo-agro-pastoril, com tradição secular de terras de uso comum, independente da propriedade ser privada ou não, que constrói, mantém e reconstrói seu território em uma combinação de três elementos inseparáveis (...) 1. Te rras de uso comum no criadouro comunitário ou comum – terras de criar e viver (...) 2. Ce rcas das Te rras de uso comum no criadouro comunitário ou comum – delimitam o criadouro das terras agrícolas (...) 3. Te rras agrícolas – majoritariamente de propriedade privada e posses individuais (2008, p. 572-573, grifos do autor). Focando o grupo de faxinalenses aos quais acompanhamos nas oficinas de Cartografia Social, os Faxinalenses da Região Metropolitana de Curitiba (RMC), podemos dizer que se encontram num momento inicial da Cartografia, onde este instrumento é utilizado para o resgate e a consolidação da identidade coletiva Faxinalense, ou seja, para o auto-reconhecimento enquanto grupo diferenciado e com um modo de reprodução econômica, social e cultural alternativos. Nesse momento é percebido que o grupo, uma vez diferenciado, possui demandas específicas de políticas públicas que ajudem a manter sua forma de vida e seu território, mas também apontam para uma inserção não homogeneizada no conjunto da sociedade. Porém, este modo de vida se depara com uma série de conflitos, visto que muitas vezes é uma ilha de diversidade biológica e terras comunais,em meio à expansão voraz da lógica capitalista. Por exemplo, nos Faxinais da RMC, um dos conflitos mais habituais consiste na perda de território pela compra de terrenos por chacareiros que não compreendem a dinâmica tradicional do grupo e cercam a propriedade comprometendo os costumes Faxinalenses. Além disso, existe, entre os faxinais de modo geral, a perda de território devido à expansão do agronegócio (soja, pinus, eucalipto, etc.), que também traz consigo uma série de problemas ambientais como a contaminação do solo, lençóis freáticos e nascentes de rios devido ao uso de agrotóxicos. Assim, em muitas situações, os faxinais acabam sucumbindo às exigências capitalistas, e esse modo tradicional de vida desaparece. Os Cipozeiros As famílias de Cipozeiros, territorializadas em torno da Mata Atlântica das serras litorâneas do Paraná e Santa Catarina, se dedicam direta ou indiretamente ao artesanato com Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 4 fibras vegetais e/ou à sua coleta na floresta. A principal fibra nativa é o cipó imbé, utilizado há gerações para artesanato de cestas e balaios diversos, chapéus e luminárias, entre outros artigos decorativos e utilitários (NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL, 2007). Este grupo social atualmente está realizando um mapeamento social (que propicia uma estimativa populacional, proporcionando uma visão da totalidade da identidade), localizando as Comunidades – que, cada vez em maior número, se reconhecem na identidade de Cipozeiros e Cipozeiras – no Paraná e Santa Catarina. A Cartografia Social, ainda sem a finalização do processo, tem sido de grande importância, contribuindo para a auto-definição da identidade e servindo como veículo para sair da “invisibilidade”. Os Cipozeiros têm se deparado com a negação de seu acesso à floresta, pois a região passa por disputas territoriais principalmente pela criação de espaços protegidos, pela construção de infra-estruturas, empreendimentos industriais, especulação imobiliária e implantação de monoculturas, principalmente pinus. Isso contribui para a redução de seu território e interfere em seu modo tradicional de vida e reprodução econômica e sócio-cultural, levando-os a adquirir o cipó-imbé de outras formas, como através da comercialização feita por extratores que não conhecem o manejo tradicional e correto da retirada do mesmo, acarretando a degradação ambiental e atribuindo aos Cipozeiros, que não são responsáveis por isto, o ônus de destruidores da natureza, quando tradicionalmente vêm fazendo um extrativismo de baixa intensidade que ajudou a manter a mata existente. A expansão do capital não respeita os limites da natureza, tampouco reconhece o território tradicional. O Estado também não apóia nem subsidia, e ainda se mune de uma ideologia conservacionista (sobre a qual trataremos adiante), aplicando legislações incompatíveis com a realidade destas comunidades. Os Pescadores Artesanais A Cartografia Social é uma ferramenta multifuncional, que progressivamente faz parte da dinâmica das Comunidades, e um dos desdobramentos que ela tem de fato é o desdobramento jurídico, como é o caso dos Pescadores Artesanais da Ilha de Superagüi. Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 5 Para a comunidade de Pescadores Artesanais da Ilha de Superagüi, pertencente ao município de Guaraqueçaba/PR, ser pescador artesanal é mais do que uma atividade econômica que envolve pesca, mas um modo de vida constituído também por outras atividades em terra. De acordo com a lei n.º 11.959/09, classifica-se como pesca artesanal a atividade comercial “quando praticada diretamente por pescador profissional, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações de pequeno porte” (Art. 8º §I, a.). Esta Comunidade enfrenta uma série de conflitos, dos quais destacaremos a violação de seu território tradicional – terrestre e pesqueiro – devido à restrição do acesso aos recursos naturais pela imposição de uma legislação incompatível com suas demandas. Em terra, têm sido privados de seu território – onde vinham praticando agricultura de subsistência, com cultivo rotativo, além de coleta de materiais (madeira, plantas decorativas e ervas medicinais) e criação de animais – desde que o Decreto n.º 97.688/89 criou o Parque Nacional do Superagüi, que trouxe consigo uma série de restrições que impedem a continuidade do modo de vida tradicional da Comunidade. No mar, também têm sido privados de seu território pesqueiro e ainda têm sido submetidos à concorrência desleal com a pesca industrial (dotada de um arsenal tecnológico amplo e grandes embarcações, além de praticar pesca diuturna por vários dias consecutivos) desde o surgimento da IN/MMA n.º 29/2004, que proíbe a pesca de arrasto pelos sistemas de portas, parelhas e pesca de cerco a menos de uma milha náutica (1.852 m) da costa. A aplicação desta legislação aos pescadores artesanais demonstra a falta de reconhecimento e apoio do Estado à Pesca Artesanal e o não cumprimento do previsto nos Tratados internacionais supra-citados. Então, no início de 2010, foi lançado o fascículo “Pescadores Artesanais da Vila de Superagüi (Guaraqueçaba/PR), que passou a ser utilizado como um instrumento político e jurídico, uma vez que agora conhecem a totalidade dos conflitos e, portanto, tentam reverter sua situação utilizando a legislação a seu favor. Este tipo de conflito ocorre devido a uma ideologia conservacionista, segundo a qual supostamente o homem é necessariamente destruidor da natureza, o que acarreta a Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 6 criação de espaços protegidos, onde a presença humana não é permitida (DIEGUES, 2001). Porém, isso não é compatível à realidade dos Povos e Comunidades Tradicionais, que possuem uma relação diferenciada com o meio em que vivem que é transmitida de geração em geração. Considerações Finais O que pudemos observar, no acompanhamento das oficinas de Cartografia Social realizadas junto a esses Povos e Comunidades Tradicionais, é sua marginalização, relegando-os a um segundo plano no exercício de seus direitos, pois não têm sido levados em consideração, no que diz respeito a seu modo de vida tradicional e suas necessidades. Assim, as políticas públicas que os contemplam são elaboradas sem sua participação, As políticas públicas que os contemplam são elaboradas sem sua participação e chegam desfocadas e em muitos casos acarretam conflitos que ameaçam sua sobrevivência. Diante deste descaso do Estado, eles têm buscado alternativas que proporcionem a manutenção de seus territórios e o fortalecimento de sua identidade, o que encontram na discussão conjunta dos problemas que os afetam, na organização política da comunidade, na reivindicação dos seus direitos no âmbito da Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e na realização de sua auto-cartografia através da Cartografia Social. Referências ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Quilombolas, Quebradeiras de Coco Babaçu, Indígenas, Ciganos, Faxinaleses e Ribeirinhos: movimentos sociais e a nova tradição. Revista Proposta (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 29, n. 107/108, p. 25-38, 2006. DIEGUES, Antonio Carlos Sant'ana . O Mito Moderno da Natureza Intocada. 3. ed. São Paulo: HUCITEC e NUPAUB, 2001. v. 1. LACOSTE, Yves. A geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. 4. ed. Campinas: Papirus, 1997. NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL. Fascículo 2. Faxinalenses no Setor Centro-Paraná. Guarapuava-PR, 2008. NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL. Fascículo 9. Cipozeiros de Garuva, Santa Catarina. Florianópolis, 2007. NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL. Fascículo 16. Pescadores Artesanais da Vila de Superagüi, série Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil. Guaraqueçaba/PR, 2010. Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 7 SOUZA, Marcelo Lopes de . "Território" da divergência (e da confusão): Em torno das imprecisas fronteiras de um conceito fundamental. In: SAQUET, Marcos Aurélio; SOUZA, Roberto Martins de. Da invisibilidade para a existência coletiva: Redefinindo fronteiras étnicas e territoriais mediados pela construção da identidade coletiva de Povos Faxinalenses. In: Seminário Nacional Movimentos Sociais, Participação e Democracia. Florianópolis, UFSC: 2007. TAVARES, Luis Almeida. Campesinato e os faxinais do Paraná: terras de uso comum. 2008. 751 f. Tese (Doutorado) – Curso de Pós-Graduação em Geografia Humana, Departamento de Geografia, FFLCH, USP, São Paulo, 2008. Legislação Consultada: Decreto n.º 97.688 de 25 de abril de 1989, que cria o Parque Nacional do Superagüi. Decreto n.º 2.519/98. Promulga a Convenção sobre a Diversidade Biológica, publicado no Diário Oficial da União em 16 de março de 1998. Decreto n.º 5051 – Convenção OIT 169 sobre Povos Indígenas e Tribais. Publicado no Diário Oficial da União em 19 de abril de 2004. Instrução Normativa do Ministério do Meio Ambiente n.º 29 de 06 de dezembro de 2004, que institui a milha náutica. Decreto n.º 5.753, de 12 de abril de 2006. Promulga a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, adotada em Paris, em 17 de outubro de 2003, e assinada em 3 de novembro de 2003. Decreto Federal n.º 6040/2007 da Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. Publicado no Diário Oficial da União em 08 de fevereiro de 2007. Decreto n.º 6.476, de 05 de junho de 2008. Promulga o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura, publicado no Diário Oficial da União em 05/06/2008. Lei n.º 11.959 de 29 de junho de 2009 (art. 8º §I, a). Dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca, regula as atividades pesqueiras, revoga a Lei no 7.679, de 23 de novembro de 1988, e dispositivos do Decreto-Lei no 221, de 28 de fevereiro de 1967, e dá outras providências. Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 8