crises, massas e sociologia

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Publicado em Encontros com a Sociologia 95. UFF, Cadernos do ICHF n.2, novembro/96, pp. 93-106.
CRISES, MASSAS E SOCIOLOGIA
Selene Herculano
[email protected]
www.professores.uff.br/seleneherculano
"The concept of society and culture, which are at the very foundation of the
academic social sciences, are in part based upon a reaction to an historical defeat:
man's failure to possess the social world that he created (...) The objectivity of the
social sciences is not the expresssion of a dispassionate and detached view of the
social world, it is, rather, an ambivalent effort to accomodate to alienation and to
express a muted resentement of it." (Gouldner, 1970:53)*
As Ciências Sociais apresentam amplas reflexões acerca das crises genéricas e
específicas vivenciadas pela sociedade contemporânea: crises factuais diversas - econômicas,
políticas etc.; crises de valores, de legitimação, de motivação e de racionalidade, segundo
Habermas (1980). Para Weffort (1991:9), a crise latino-americana tem se manifestado de
forma mais aguda no Estado: crise de governabilidade, de obsolescência econômica do Estado,
crise do Estado-Nação.
Dentre elas a Sociologia é, segundo Habermas, a ciência das crises por excelência, por
estudar sobretudo os aspectos anômicos da dissolução dos sistemas sociais tradicionais e o
desenvolvimento dos sistemas modernos, uma vez que a Sociologia originou-se enfocando os
problemas que a política e a economia deixaram de lado ao se tornarem ciências: as
mudanças na integração social no seio da estrutura das velhas sociedades européias quando do
surgimento do sistema de estados nacionais e da diferenciação de uma economia regulada pelo
mercado. (HABERMAS, 1984: 4). Na atualidade, a Sociologia teria a incumbência de refletir
sobre as crises sistêmicas (econômicas e de racionalidade, transferidas ao sistema político) e
de identidade (de legitimação e de motivação) do capitalismo avançado.
"Ou o sistema econômico não produz a quantidade necessária de valores de consumo,
ou o sistema administrativo não produz a quantidade necessária de divisões racionais, ou o
sistema de legitimação não fornece a quantidade necessária de motiv ações generalizadas, ou
* " Os conceitos de sociedade e cultura, que fundamentam as ciências sociais acadêmicas, estão baseados em parte em uma
reação a uma derrota histórica: o fracasso humano em dominar o mundo social que criou (...) A objetividade das ciências
sociais não é a expressão desapaixonada e desapegada do mundo social; é mais um esforço ambivalente para se acomodar à
alienação e expressar um ressentimento mudo em relação a ela".
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o sistema sócio-cultural não gera quantidade necessária de significado motivador de ação".
(HABERMAS, 1980: 67)
Ao examinar as crises sociais, a Sociologia também examina a si própria, seus
paradigmas e sua efetiva capacidade de examinar e entender a sociedade, seus pontos de
inflexão e de ruptura. Um dos pontos desta análise diz respeito ao sujeito das transformações
sociais: estuda-se não apenas a participação política, o exercício de uma cidadania plena, o
formato e funcionamento de uma
militância aguerrida que nos salvaria do colapso, mas
também sua contra face, o outro lado, isto é, os não-sujeitos, a indiferença política, as
massas inertes e/ou indiferentes. Há na Sociologia contemporânea uma tentativa algo
angustiada de detectar novos sujeitos históricos e, por outro lado, o conformar-se com a falta
de sentido e de motivação. Pode-se até chegar ao ponto de especular, como o fez Baudrillard
(1985), se, afinal, existe ou não a sociedade. Há uma tentativa de identificação de novos
agentes sociais, principalmente na atualidade, depois da derrocada do socialismo soviético. A
virada do milênio é vivenciada como um ponto de inflexão na história.
A Sociologia busca novos paradigmas: para os sociólogos ambientalistas, a Sociologia
precisaria mudar do paradigma HEP (human exemptionalist paradigm) para o paradigma NEP
(nature environment paradigm), incorporando à natureza (Catton & Dunlap; 1991); para o
sociólogo alemão Ulrich Beck (1992), a sociedade contemporânea não deve ser mais tipificada
como sociedade industrial e sim como sociedade de risco; já estamos na pós-modernidade, diz
boa parte da Sociologia francesa da atualidade.
Para Gouldner (1970), esta crise no pensamento sociológico deve-se em parte à
contradição entre um mundo social criado pelos seres humanos e o desespero destes seres
humanos, alienados e subordinados à sociedade que criaram e sobre a qual não têm controle.
A falta de controle sobre o mundo aparece também na reflexão do historiador
Hobsbawm acerca do barbárie contemporânea. Segundo o autor, há um colapso e um
acelerado processo de barbarização em curso desde os anos 80 e 90, que ele atribui ao fato de
"as lideranças não saberem o que fazer com um mundo que escapa ao seu controle (e ao
nosso) e de não saberem que desde 1950 a transformação explosiva da sociedade e da
economia tem produzido um colapso sem precedentes e a ruptura das regras que governam o
comportamento em sociedades humanas." (HOBSBAWM, 1995:19)
A crise da Sociologia é identificada por Touraine (1984:10), pela cisão e oposição entre
o ator social e a sociedade: o ator passaria a rejeitar as regras da vida social, seja isolando-se,
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seja retirando-se para o seio de pequenos grupos de consciência e convivência, buscando
assim a sua identidade. Desta maneira, a Sociologia, que se baseava nas representações da
vida social tais como "sociedade", "evolução", "papel", teria perdido seu sentido e seus
personagens - proletariado, burguesia, nação - teriam passado a aparecer como meras
construções ideológicas. A Sociologia, portanto, segundo Touraine, nada mais seria que uma
ideologia da modernidade, uma imagem de si mesma que um tipo particular de sociedade teria
criado.
Se o otimismo dos meios de comunicação vem a cada dia insistindo nas mudanças
formidáveis que as inovações tecnológicas provocam, principalmente a rede internet,
responsável por uma democratização e universalização das informações que nos levarão a um
mundo melhor, a análise sociológica examina a ambiguidade e desterritorialização que a
transnacionalização da rede internet traz com sua cultura cibernética e a constituição de uma
elite mundial formada por executivos das corporações trans, multi e internacionais; por
investidores financeiros; diplomatas; funcionários de agências multilaterais; acadêmicos;
ativistas políticos globais. (RIBEIRO, 1995)
A Sociologia se vê em um dilema: 1) terá o mundo social empírico realmente se
transformado e não nos apercebemos disto porque insistimos em examiná-lo com um quadro
de referência teórico ultrapassado,
ou 2) será o mundo o mesmo, sendo tais supostas
alterações apenas variações sobre o mesmo? Neste último caso, a análise seria igualmente
inadequada, uma vez que, mudando nossas lentes teóricas para enfocar uma realidade que não
se alterou substantivamente, perdemos nosso foco.
Dividimos o pensamento sociológico em três blocos, a partir da relação entre o sujeito
político face à inércia das massas 1 :
a) a Sociologia positivista,
b) a Sociologia crítico-racionalista e
c) a Sociologia pós-moderna-irracionalista.
a) A Sociologia positivista
A Sociologia positivista, de raízes Comtianas2 , executa uma engenharia social, o
exame positivista dos fatos, o estudo de suas correlações, a descoberta de regularidades entre
1 Habermas (1984) também vê 3 blocos, assim definidos: empiricismo lógico, crítico, construtivismo.
2 Augusto Comte.
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os fenômenos, enunciação de leis etc... Dentro daquele mote de "saber para prever, prever
para prover", a Sociologia positivista busca não apenas ganhar entendimento sobre o
funcionamento da sociedade, mas garantir o futuro social, mantendo a ordem e administrando
uma mudança evolutiva, gradual, mecânica e previsível. De acordo com Durkheim (1963:41),
o conhecimento do social refere-se ao estudo do seu lado instituído: os códigos, as estatísticas,
os provérbios, os monumentos, as roupagens e as artes, numa palavra, os fatos sociais oriundos
de hábitos coletivos, que significam as cristalizações da vida social já consolidada. Quanto ao
outro lado, "as correntes livres da vida social", o lado instituinte da sociedade, esse "não é o
lado pelo qual o estudioso pode abordar o estudo da rea lidade social" acrescentou
Durkheim, embora seja suscetível de cristalizar-se.
Gramsci (1978:108) criticou a Sociologia positivista como sendo uma tentativa de
descrever e classificar esquematicamente os fatos históricos e políticos segundo o modelo das
ciências naturais, buscando extrair leis de evolução da sociedade humana. Tal Sociologia, dizia
ele, só tem sentido quando as multidões estão passivas, pois quando elas saem da sua
passividade e tomam a ação política, as leis de tendências gerais e as leis dos grandes
números, que fundamentam a sociologia positivista, são destruídas.
Para Gramsci, embora todos os homens sejam filósofos (no sentido de construírem
uma visão de mundo e uma explicação, inda que do senso comum, para a sua realidade), a
Sociologia positivista seria a "filosofia dos não-filósofos". Porque o filósofo real é o ser político,
aquele que vê o homem como síntese de relações e, compreendendo que a natureza humana é
a história, faz a unidade da ciência e da vida (Gramsci, 1978: 41-47)
Apesar destas críticas,
a Sociologia positivista têm vigência e aplicabilidade, na
medida em que a sociedade continua composta por um somatório de "não-filósofos", de seres
alienados, coisificados e indiferentes, previsíveis, que compõem uma massa de manobra
docemente tangível para cá e para lá, seja pelos grupos dominantes e exploradores, seja pelas
vanguardas das esquerdas. A indústria cultural e o marketing político têm sido utilizados de
forma muito competente pelos grupos dominantes e hegemônicos como táticas de controle e de
persuasão de corações e mentes gerais. Similarmente, as vanguardas socialistas (que se
autointitulam "sociedade civil organizada" ou "movimentos populares organizados", este
"filósofo-democrático" para usar o conceito de Gramsci) tentam, com menos sucesso, colocar
a massa na rua quando tal presença plebiscitária reforça como pano de fundo, como coristas,
as lutas políticas que os heróis históricos protagonizam em busca da construção de uma
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sociedade melhor. Assim, o positivismo sociológico parece estar presente não apenas na
Sociologia que busca a ordem, mas também entre muitos integrantes da "sociedade civil
organizada", que se sentem e são percebidos como vanguarda heróica e como intelectuais
orgânicos no sacerdócio da missão de articuladores e organizadores das forças populares.
Este positivismo de esquerda vê o mundo social separado em dois grupos: uma minoria
de intelectuais orgânicos, que interpretam, organizam e falam em nome de algo chamado povo;
uma maioria de seres atomizados, inconscientes, que formam a massa que, nos momentos
táticos, é chamada a participar, a tomar as ruas, boicotar, fazendo seu papel de povo em ação.
Segundo alguns analistas, o mal está em que não há uma história de participação popular: para
Coutinho, por exemplo, no Brasil, teríamos tido até agora transformações políticas e
modernização econômico-social realizadas por frações das classes dominantes, através de uma
chamada "via prussiana", ou seja, sem a participação das massas populares:
"via prussiana" (Lenin, Lukács) ou revolução-restauração (Gramsci), através da "conciliação
entre frações das classes dominantes, de medidas aplicadas de cima para baixo... Estas
transformações pelo alto tiveram como causa e efeito principais a permanente tentativa de
marginalizar as massas populares não só de uma participação ativa na vida social em geral,
mas sobretudo no processo de formação das grandes decisões políticas,... o que levou à
construção das superestruturas adequadas à dominação de uma restrita oliga rquia...e à
geração de uma grande debilidade histórica da democracia no Brasil".(COUTINHO, 1980: 3233)
Nem sempre, porém, a massa é analisada como estando à margem da sociedade
política: segundo Weffort, os populismos da América Latina integraram as massas à sociedade,
embora de uma forma submissa, atribuindo-lhe o que o autor define como "meia cidadania,
quase cidadania, cidadania incompleta":
"No mundo das oligarquias latino-americanas, as massas não tinham cidadania política, mas
tinham pelo menos lugar social definido. Sem dúvida, uma posição de dependência social e de
exploração econômica, mas em todo o caso um lugar que as tornava parte - aliás, parte
fundamental - da sociedade. No mundo dos populismos latino- americanos, que também é o
mundo da intensificação da urbanização e do crescimento das indústrias, as massas tiveram
reconhecida uma espécie de meia-cidadania, na melhor das hipóteses de quase cidadania. Foi
quase sempre uma cidadania incompleta que lhes abriu mais vezes a possibilidade de uma
presença como masses de manoeuvre do que uma intervenção autônoma no processo político
...Talvez tenham estado integradas mais por submissão do que por participação."(Weffort,
1991:31)
b) A Sociologia crítico-racionalista
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A segunda Sociologia, histórica, crítica e racionalista, tem sua vertente no marxismo
de Gramsci e de Althusser e na Sociologia Weberiana: da confluência dessas duas vertentes Marx e Weber - saiu o pessimismo frankfurtiano de Adorno e de Horkheimer. O fundamento
marxista reside no pressuposto moderno, otimista e iluminista de Kant e de Hegel, de que a
história humana tem um sentido, a realização da razão, move-se na direção do horizonte final
da liberdade, e o ser humano é o construtor desta história. O fundamento Weberiano, por outro
lado, embora apresente a modernidade como um paradigma, acaba dela descrendo,
visualizando-a enquanto um cárcere de ferro, cujo desenlace o autor não sabe se viria a
desembocar na retomada de valores éticos e em um pujante renascimento de antigas idéias e
ideais ou "na luta convulsa de todos contra todos" (WEBER,1979:259). Para o pessimista
Adorno, como para os frankfurtianos em geral, herdeiros de Weber, o vir-a-ser histórico
acaba por não se cumprir, pois novas formas de dominação surgem e da racionalidade resta
apenas uma razão instrumental e enlouquecida. Habermas, embora egresso da Escola de
Frankfurt, procura criar uma concepção mais otimista, com a possibilidade de um horizonte
feliz através do resgate do projeto iluminista moderno perdido em algum ponto: o caminho até
ele é a reconstituição da esfera civil pública via agir comunicativo.
A verdade e a razão não são um a prioripara Habermoas, mas são construídas pelo
diálogo, emergem do diálogo e moram na praça pública, no mundo da comunicação discursiva.
Esta racionalidade comunicativa, construída no diálogo, diz respeito à esfera do mundo vivido.
Tal mundo vivido contrapõe-se ao mundo social que, enquanto sistema, sempre tenta colonizar
o primeiro. A sociedade então é vista como uma unidade dialética, composta pelo sistema
social e pelo mundo vivido, cotidiano. Em outras palavras, pelo instituído vis à vis do instituinte.
Racionalizar, para Habermas, significa cancelar as relações de coerção, superar as
comunicações sistematicamente distorcidas e encontrar o que chama de "intersubjetividade de
concordância" (1990:34). Assim, as estruturas da racionalidade não estariam dadas apenas
pelas tecnologias, estratégias, organizações, mas estariam dependentes de novas estruturas
normativas, de um agir comunicativo.
Na ação comunicativa, os participantes seguem seus planos em acôrdo mútuo, sobre
a base de uma definição comum da situação; a ação social parte, portanto, da negociação da
definição da situação (HABERMAS, 1987: 140). A ação comunicativa se contrapõe à ação
estratégica: a primeira se orienta para o entendimento mútuo, a segunda para o sucesso.
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"Na medida em que os atores estão exclusivamente orientados para o
sucesso, isto é, para as consequências do seu agir, eles tentam alcançar os objetivos
de sua ação influindo externamente, por meio de armas ou bens, ameaças ou
seduções, sobre a definição da situação ou sobre as decisões ou motivos de seus
adversários. A coordenação das ações de sujeitos que se relacionam dessa maneira,
isto é, estrategicamente, depende da maneira como se entrosam os cálculos de
ganho egocêntricos. O grau de cooperação e estabilidade resulta então das faixas de
interesses dos participantes. Ao contrário, falo em agir comunicativo quando os
atores tratam de harmonizar internamente seus planos de ação e de só perseguir suas
respectivas metas sob a condição de um acordo existente ou a se negociar sobre a
situação e as consequências esperadas... o modelo estratégico da ação pode se
satisfazer com a descrição de estruturas do agir imediatamente orientado para o
sucesso, ao passo que o modelo do agir orientado para o entendimento mútuo tem
que especificar condições para um acordo alcançado comunicativamente sob as
quais Alter pode anexar suas ações às do Ego ".(Habermas, 1989:164,165)
Na ação estratégica os atores se comunicam não com o objetivo de chegar a um
consenso, a um entendimento último, mas para alcançar poder ou influência sobre o outro e/ou
através do outro. Enquanto a ação comunicativa é simétrica, horizontal, a ação estratégica é
assimétrica e vertical. O agir estratégico é racional com relação a fins e o agir comunicativo
só pode ser racionalizado em seu aspecto prático-moral, necessitando, portanto, do
cancelamento das relações de coerção. A ação comunicativa, onde se dá a construção da
razão dialógica, só é possível num dialógo entre iguais, no qual a estrutura de dominação que
permeia a situação de diálogo seja desmontada. Portanto, como assinalam Freitag & Rouanet
(1980:19), há pré-requisitos para a construção da razão dialógica: que o diálogo entre pares não
seja distorcido por uma relação de poder; que haja uma competência na fala, competência
cognitiva e participativa.
Na esfera do mundo vivido estão, segundo Habermas, os chamados alternativos, os
verdes, as mulheres, etc..., que procuram vias alternativas de participação e de reconstrução
do mundo. Tais alternativos seriam os agentes daquilo que Habermas denomina um
"reformismo radical" e vivenciariam novas crises, que estariam além da contradição entre
forças produtivas e relações de produção. Habermas modifica e amplia o sujeito revolucionário
marxista, que não mais seria o proletariado fabril. O processo de mudança também se altera:
não mais é pensado o plano de preparação para o dia "D" de tomada do palácio de governo.
Torna- se um processo cotidiano. Essa visão de Habermas do reformismo radical guarda
semelhanças com a leitura de Carlos Nelson Coutinho sobre Gramsci, sintetizada no conceito
de reformismo revolucionário:
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"Um Reformismo que tem como objetivo explícito aprofundar a democracia e superar o
capitalismo é um reformismo revolucionário... esse reformismo radical é o novo nome da
revolução". Coutinho (1992:46)
A sociedade moderna tem sido qualificada de diversas formas: "sociedade industrial",
"sociedade de consumo", "sociedade de massa". O qualificativo "industrial" vem do positivismo
de Saint-Simon (1760 - 1825) e de Comte (1798 - 1857) e tinha então uma valoração
apreciativa; o qualificativo "de massa" também tinha uma característica positiva como uma de
suas leituras, na medida em que "sociedade de massa" e "democracia de massa" expressavam,
segundo o fordismo, os pontos cardeais de uma sociedade cujo povo teria acesso amplo ao
mercado de consumidores e de produtores e ao voto universal como base da vida política. (Na
proposta do socialismo democrático, democracia de massas seria aquela que recuperaria a
democracia direta, via assembléias, como uma forma de compensar a forma farsesca da
democracia burguesa). Na História Econômica conservadora, "sociedade de massas" seria o
horizonte buscado pelas sociedade arcaicas, tradicionais, perseguindo sua modernização
(Lembremo- nos de Rostow, que em sua obra Etapas do Desenvolvimento Econômico,
analisava como "sociedades tradicionais ou arcaicas" poderiam iniciar um processo de take off
e se tornarem "sociedades de massas").
Consumo e massa, contudo, tornaram-se epítetos negativos através de seu registro no
que denominamos segundo bloco da sociologia, o crítico-histórico. Uma de suas matrizes está
em Weber, quando este critica a democracia de massas, plebiscitária, irracional, emocional, de
uma massa não organizada, presente sempre que os parlamentos sejam impotentes e não
existam partidos racionalmente organizados (1977, vol II, p. 1117).A crítica ao consumismo e à
dessublimação repressiva, temática de Herbert Marcuse, estão neste campo, somadas às
críticas a uma esfera pública esvaziada, decadente e à crítica a uma sociedade de massas,
através da qual se lamenta a realidade de uma vida embotante, uniforme, de gado humano
tangido, seja por governos explicitamente totalitários, seja por uma indústria cultural
exploratória e manipulatória. A crítica à sociedade de massa tanto pode ser expressão
nostálgica de uma sociedade aristocrática que findou, como em Ortega y Gasset:
"O característico do momento é que a alma vulgar, sabendo -se vulgar, tem o
denôdo de afirmar o direito de vulgaridade e o impõe por toda a parte. Como se diz na América
do Norte: ser diferente é indecente. A massa atropela tudo que é diferente, egrégio, individual,
qualificado e seleto. Quem não seja como todo o mundo, quem não pense como todo o
mundo, corre o risco de ser eliminado..(...) todo o mundo é a massa". (ORTEGA Y GASSET,
1962:67)
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quanto pode ser a crítica a novas formas de dominação burguesa, a qual, via mass media e via
mercado, dominam uma massa inconsciente, impedindo sua organização e o surgimento dos
agentes históricos transformadores. Está representada pelos teóricos da Escola de Frankfurt,
como Marcuse, que fizeram a crítica à sociedade totalitária:
"A produção e a distribuição em massa reivindicam o indivíduo inteiro e a
psicologia industrial deixou de há muito de limitar-se à fábrica" (Marcuse, 1967:27)
Assim Marcuse aludia a uma sociedade que provia uma falta de liberdade confortável,
na qual, submetida a necessidades falsas, repressivas, a massa experimentava "euforia na
infelicidade".
Os dois primeiros blocos do pensamento sociológico - o positivista e o crítico (Gramsci;
Althusser; Habermas) - compartilham duas características: em primeiro lugar, a noção da
sociedade como uma totalidade lógica e como uma realidade; em segundo lugar, a dimensão de
futuro. A sociedade humana tem futuro, move-se para o melhor, seja pelo progresso positivista,
seja pela via revolucionária extemporânea, seja pelo reformismo radical de uma politização da
vida cotidiana.
c) A Sociologia pós -moderna
O terceiro bloco, a Sociologia pós-moderna, tem fundamentos em Nietzsche e se
expressa em Baudrillard, Maffesoli, Guattari, Foucault, Deleuze etc. Não há sociedade, há o
socius, não há futuro nem ação lógica e sim o buraco negro da massa indiferente. Em não
havendo mais sociedade, nem há mais a própria Sociologia. Configura-se assim o perigo
entrevisto por Touraine: aprisiona-se o ator na recusa do social, em nome do não-social.
(Touraine, 1984:16)
Na perspectiva da Sociologia pós-moderna, não há o que lamentar na sociedade de
massas, a expressão não tem significado negativo: ela apenas designa algo plural e aleatório,
livre de ter ou buscar sentido e finalidade.
"...une forme singulière de l'histoire des hommes, ou de la fin de la histoire, où se condense
une variété de contacts, de relations, d'informations, d'innovations et de reproductions entre
leas acteurs sociaux...(qui) peuvent profiter des multiples alternatives offertes par les
contradictions et les fissurations des systèmes centraux" (Zylberberg, 1986:33)
“O social morreu, não existe mais. Hoje só existe a socialidade do contato. O que salva a
sociedade é o mau uso das riquezas, a imoralidade, seus vícios e desregramentos que a fazem
mudar. Não existe sujeito coletivo, existe a massa, livre de obrigações simbólicas. A massa
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não quer sentido, mas espetáculo e signo. A massa não é enganada nem mistific ada : é
indiferente. Não há "povo", "classe" etc... O único referencial é a maioria silenciosa ...O poder
fomentou a apatia e a passividade, na sua fase burocrática e centralista. Hoje procura a
participação... e a inércia que provocou se tornou o signo de sua própria morte. Informação,
estatística, produzem mais massa. Buraco negro. O sentido continua a ser produzido, mas não
há mais demanda" (Baudrillard, 1985:56)
"O Todo não é dado, a sociedade não é uma totalidade unificada, mas
deslocamentos e metamorfoses de energia que não cessam de decompor e recompor sub conjuntos (J.F.Lyotard, 1976: 108-109)
E ainda:
"Em face do imperialismo dos reformadores de todo gênero (...) permanece a passividade
deste corpo mole da massa que auto-regula harmônicamente (...) a pluralidade dos elementos
que a compõem"(...) Não se nega a moral oficial, ela não é contestada, até mesmo os discursos
daqueles que têm por função defendê-la e exprimí-la são ouvidos, mas um silêncio polido lhe é
contraposto, ou seja, uma não-resposta firme a suas várias exigências de participação. Existe
uma passividade ativa muito mais subversiva do que qualquer ataque frontal" (Maffesoli,
1984:105 e 35)
Para Maffesoli, o que se chama de crise não seria outra coisa senão o fim das
grandes estruturas econômicas, políticas ou ideológicas. Como muitos de nós estaríamos ainda
obnubilados pelas grandes entidades da modernidade - a História, a Política, a Economia, o
Indivíduo - não conseguiríamos ver que o social estaria sendo substituído por algo mais
interessante,
a "socialidade eletiva", pela qual personas se agrupam em tribos de
compartilhamento de afetos, vivendo sua "proxemia" (contrato de hospitalidade). Maffesoli
propõe como novo paradigma sociológico o novo tribalismo, caracterizado pela fluidez, pelos
ajuntamentos pontuais e pela dispersão.
Como que em resposta prévia e crítica a Maffesoli, o eurocomunista Pietro Ingrao, em
1980, escrevia:
"Permaneço convencido de que massas enormes, antes subalternas (...). ganharam
nestes anos 70 espaço e poder com uma aceleração sem precedentes na história...Só
avaliações míopes podem ignorar o que o associar-se em partidos, sindicatos,
movimentos organizados de luta deu à consciência de milhões de mulheres, homens,
jovens...houve uma ampliação de algumas formas essenciais de democracia, entendida
pelo menos como presença ativa das massas." (Ingrao, 1980:31)
As Massas nas três Sociologias
São as massas perigosas? Para a Sociologia positivista tradicional não o seriam, pois a
regularidade e previsibilidade do comportamento das massas eram encaradas como algo
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essencial ao bom funcionamento social; para o lado positivista presente em setores do
marxismo as massas seriam perigosas, pois atrapalhariam a ação dos heróis históricos, do
partido messiânico, da vanguarda redentora.
Na
perspectiva
da
sociologia
crítica,
o
exame
da
relação
entre
o
intelectual/herói/agente/sujeito e a massa desinformada, passiva, guarda algumas sutilezas.
Para os teóricos da Escola de Frankfurt não há o que fazer, a não ser denunciar. Apesar de
Marcuse, um de seus luminares, ter sido a musa inspiradora da revolta de maio-68, que colocou
uma massa de jovens e de trabalhadores revoltados nas ruas de Paris, a Escola de Frankfurt
caracteriza-se pelo pessimismo: segundo Horkheimer & Adorno, o ideal kantiano do
esclarecimento, da emancipação e da maioridade se perdeu, conspurcado por uma indústria
cultural de massa, que constrói uma nova espécie de barbárie. O aumento da produtividade
econômica, as técnicas e as ciências, bem como o aumento das riquezas teriam gerado, em
proporção direta, mais impotência e dirigibilidade da massa humana. "O industrialismo coisifica
as almas", "o esclarecimento se converte na total mistificação das massas" (1985: 40 e 51).
"Agora que uma parte mínima do tempo de trabalho à disposição dos donos da sociedade é
suficiente para assegurar a subsistência daqueles que ainda se fazem necessários para o
manejo das máquinas, o resto supérfluo, a massa imensa da população, é adestrado como uma
guarda suplementar do sistema, a serviço de seus planos grandiosos para o presente e o
futuro. Eles são sustentados como um exército dos desempregados. Rebaixados ao nível de
simples objetos do sistema administrativo, (...) sua degradação reflete para eles a necess idade
objetiva contra a qual se crêem impotentes.(...) Nenhum indivíduo é capaz de penetrar a
floresta de cliques e instituições que, dos mais altos níveis de comando da economia até as
últimas gangues profissionais, zelam pela permanência ilimitada do statu quo. Perante um líder
sindical, para não falar do diretor da fábrica, o proletário que por acaso se faça notar não
passará de um número a mais. (...) O poder do sistema sobre os homens cresce na medida em
que os subtrai ao poder da natureza." (Horkheimer & Adorno, 1985: 49)
Em meio a tal embotamento, os cientistas sociais parecem aflitos na busca de novos
sujeitos históricos. Gorz (1980), por exemplo, deu adeus ao proletariado. Segundo Gorz, Marx
se equivocou, pois o desenvolvimento das forças produtivas não trouxe o socialismo: ao
contrário, foi funcional para o capitalismo e produziu uma classe operária que não é capaz de
se tornar senhora dos meios de produção e cujos interesses conscientes não discordam de uma
racionalidade capitalista. Tal proletariado seria incapaz de se tornar sujeito de poder. O que
existiria hoje seria um neo-proletariado sem status e sem classe, ocupante de empregos
precários, prestes a serem abolidos pela automação. Uma tecnologia de rápida e constante
evolução, desconectada dos conhecimentos que se aprendem nas escolas e faculdades, torna
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este neo-proletariado superqualificado para o emprego que encontra. Este neo-proletariado
seria o não-trabalhador, provisòriamente empregado numa tarefa indiferente: fazer nãoimporta-o-quê e que não-importa-quem pode fazer em seu lugar (Gorz, 1980:108). Para
Gorz, a cultura do trabalho está destruída e só uma não-classe, dos não-produtores, poderia vir
a ser capaz do ato fundador de romper com a racionalidade produtivista.
Claus Offe (1989), cujo enfoque sociológico tem uma matriz frankfurtiana, falava-nos
de um primeiro mundo administrado pelo welfare state (o Estado previdenciário ou de bemestar), no qual o trabalho e sua ética não mais seriam centrais na sociedade, onde uma nova
classe de serviços desafiaria e questionaria os critérios de uma racionalidade voltada para o
trabalho. Sua análise é de 1985, de lá para cá as benesses do welfare state refluíram em nome
do neoliberalismo, mas, ainda assim, seu texto esboça uma visão sobre as possibilidades e as
motivações que fariam de outras categorias sociais que não o trabalhador um agente de
mudança e não uma massa passiva e bem apascentada.
Habermas, como vimos anteriormente, apesar de ser um frankfurtiano, é um otimista e
substitui estes agentes transformadores: segundo ele, não é mais a classe trabalhadora, mas os
novos movimentos sociais, de alta escolaridade, que questionariam os valores e a própria
irracionalidade do sistema social. A ideologia do êxito teria perdido espaço, a escolarização terse-ia desconectado do sucesso ocupacional, a vida ter-se-ia tornado cada vez mais
dependente de uma infra-estrutura de Estado .
As sociais-democracias européias têm uma predominância de segmentos médios, com
boa escolaridade. Habermas (1980) se desvencilha do cacoete marxista de enxergá-los como
conservadores, reacionários, que só se mobilizariam quando ameaçados de proletarização. As
crises já não são meramente econômicas, são sistêmicas, incorporando crises
de
racionalidade, de legitimação e motivacionais . Nas sociedades de capitalismo avançado, onde
cada vez mais e mais membros teriam à sua disposição qualificações universalistas, ampliarse-ia o espectro do ativismo, por parte de jovens radicais, estudantes, pacifistas, feministas e do
absenteísmo, por parte de hippies, do messianismo religioso, subculturas da droga etc.. Em
lugar de uma massa de homens médios, passivos, adaptados ao privatismo civil e familiar,
teríamos uma ampliação das categorias questionadoras. Existiria, segundo Habermas,
interesses generalizáveis, embora estejam suprimidos de um discurso simulado entre grupos
diferenciados. O papel da teoria crítica da sociedade seria o de discerní-los. Essa ampliação do
sujeito de contestação em uma sociedade com largo acesso à educação e cultura permite-nos
inferir que a relação entre intelectual/herói e massa inconsciente e ignorante, a ser usada e
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guiada, não se aplica. Em lugar das figuras hegelianas do herói e da vítima, ali seria mais fácil
emergir o cidadão hegeliano, agente da ação comunicativa.
A perspectiva crítica habermasiana não pressupõe sujeitos históricos privilegiados, nem
técnicos do social, nem heróis ou intelectuais orgânicos que levariam a massa ao paraíso;
Habermas fala para o cidadão comum, para os movimentos sociais reais, para uma massa que
se tornaria um coletivo de cidadãos, em ação comunicativa. Só que a ação comunicativa
pressupõe a expansão da educação e da cultura e um patamar mínimo de igualdade, enquanto,
na realidade, o mundo vem se tornando crescentemente desigual. A tal ponto que o tema
sociológico que ganhou dimensão foi o da exclusão social. Touraine e Boaventura Santos
mencionam o paradoxo da participação pela exclusão: é assumindo sua identidade de excluídos
que determinados agentes encontram brechas de visibilidade para fazer suas denúncias e
reivindicações. Mas até que ponto denúncias e reivindicações configuram formas substantivas
de participação nas decisões dos destinos da coletividade?
Para a Sociologia pós-moderna, as massas não são o gado humano fácilmente
administrável pela burguesia e elites do poder. Não há mais o social, a sociedade, o conjunto, o
todo, e, portanto, tudo se torna imprevisível. As massas são celebradas, seja no seu aspecto
dionisíaco (Maffesoli), seja no seu aspecto impenetrável, de buraco negro (Baudrillard),
justamente porque seriam imprevisíveis. Para a
Sociologia pós-moderna, a temática do
confronto, da contradição dialética entre o sujeito histórico/intelectual/herói e a massa não se
coloca: o intelectual, que desvendaria a verdade aos que ainda não a teriam visto, não seria
necessário, pois
"...as massas não têm necessidade deles para saberem, elas sabem
perfeitamente,
claramente, muito melhor do que eles, e dizem-no muito bem. Mas existe um sistema de
poder que barra, interdita, invalida esse discurso e esse saber. (...) Eles próprios, intelectuais,
fazem parte deste sistema de poder.(Foucault & Deleuze, 1976:16)
"Para nós o intelectual teórico deixou de ser um sujeito, uma con sciência representante
ou representativa. Aqueles que agem e lutam deixaram de ser representados, mesmo por um
partido, um sindicato, que se arrogariam, por sua vez, o direito de serem a sua consciência.
Quem fala e quem age? É sempre uma multiplicidade, mesmo na pessoa que fala ou que age.
Somos todos grupúsculos. Já não há representação, há apenas ação, ação de teoria, ação de
prática em relações de transição ou de rede" (Deleuze, 1976:14-15)
Para esses autores, os que agem e lutam deixaram de ser representados. Não haveria
mais organizações intermediárias, partidos ou sindicatos, se arrogando o direito de serem a sua
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consciência. Não há mais representação, mas fala e ação direta de pequenos grupos. Todos
aqueles sobre os quais a microfísica dos poderes é exercida seriam agentes, seja a partir de
sua atividade ou de sua passividade. (FOUCAULT & DELEUZE, 1976: 26)
Se as massas são perigosas, as ciências humanas, entre elas a Sociologia, também o
seriam, sempre que se tornassem uma reflexão político-filosófica e um convite para a ação.
Para Foucault (1987:365), as ciências humanas, excluídas do triedro das ciências empíricas
(Biologia, Economia e Linguagem), situam-se nos seus interstícios e por isso são consideradas
precárias, perigosas e em perigo, dada à sua familiaridade com a Filosofia. Segundo Foucault,
se quisermos considerar a Sociologia, a Psicologia e a Linguística como sendo ciências
empíricas, elas deveriam ser denominadas 'ciências desumanas', uma vez que seu objeto, o
homem, 'que aparece no começo do século XIX', tornou-se des-historizado. O empirismo, o
mecanicismo e o organicismo que caracterizam a ciência moderna podem ser incorporados à
Sociologia, no nosso caso, apenas se esta tiver por objeto o homem alienado, este desesperado
que Gouldner descreveu, que não é senhor de sua ação e do seu destino.
Em resumo: a perspectiva positivista, presente tanto na direita, desejosa de manter o
statu quo, quanto na esquerda prometéica, que busca transformações, faz da Sociologia u,a
saber útil, a ser desempenhado tanto pelo engenheiro-social quanto pelo intelectual-orgânicoheróico, aquele que vai transformar a vítima e o indivíduo - seres fechados em suas
particularidades - em cidadão.
Já na perspectiva pós-moderna, seja na sua variante orgiástica dionisíaca de Maffesoli,
seja na variante da indiferença rebelde de Guattari, nem a Sociologia teria muito o que dizer,
nem haveria qualquer vínculo entre os supostos sujeitos históricos modernos e a massa. Nesta
perspectiva, as massas são louvadas: em vez de serem um gado passivo, elas são
imprevisíveis. A maioria silenciosa, de cujo seio irrompem hoje manifestações marcadas pelo
barbarismo anônimo, segundo o lamento de Hobsbawm, é definida por Baudrillard como o
buraco negro que assumiu o lugar do sujeito coletivo então reconhecido nos partidos, sindicatos,
etc. Nas massas residiriam a vontade de potência, a energia vital nietzschiana, que desdenha e
não se submete aos ideais iluministas modernos que teriam sido reduzidos até agora ao de
sempre, a vontade de poder, de submeter os demais.
Fim das Massas?
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Se na perspectiva pós-moderna francesa inspirada em Nietzsche as massas são
celebradas como uma espécie de sujeito histórico torto, em outras análises pós-modernas de
escopo liberal prenuncia-se o seu desaparecimento. Alvin Toffler (1990) é um dos sociólogos
que interpretaram os rumos melhores para os quais as mudanças apontariam, esboçando como
seria o mundo do início do século XXI. Segundo este autor, as sociedades estariam se
desmassificando e, finda a era industrial, o mundo estaria adentrando na era da informação, do
surgimento de um novo sistema de criação de riqueza baseado não mais nos músculos, mas na
mente. Nesta nova "economia do conhecimento", o saber teria passado de mero adjunto da
força e da riqueza (até então únicas fontes de poder social) para se tornar a própria essência
do poder.
Nesta nova sociedade, baseada na economia imaterial, os trabalhadores não seriam
facilmente intercambiáveis como na era industrial, o desemprego seria mais qualitativo que
quantitativo e as decisões seriam cada vez mais invisíveis, via redes automatizadas e
inteligentes. Teria terminado a democracia de massas, substituída por uma "democracia de
mosaicos" nas quais "minorias pivotantes", mutantes e velozes, provocam mudanças em um
"sistema mundial furiosamente instável". Neste mundo caleidoscópico, de economia simbólica,
infotáticas, etc.. a mão de obra barata não teria mais vez e as nações que não detivessem as
informações e o conhecimento ficariam na lata de lixo da história. Nelas, "minorias pivotantes"
se fazem notícia e "ameaçam com seu obscurantismo e sua ecoteologia extremista" (Toffler,
1990:394-399).
Dito de outra forma: em uma sociedade que não é mais de massas, na qual o poder é
dos que conhecem o conhecimento e detém as informações sempre cambiantes e
caleidoscópicas, onde tudo é tão instável, o desemprego qualitativo face a tantas mutações
vertiginosas, não há lugar para as massas, para a leva de trabalhadores baratos e
desinformados. O que será feito destas massas? Elas não são mais necessárias, este novo
poder não precisa mais delas, não são massa de manobra nem de legitimação, não são mais
mercado de consumo quantitativo. Como desaparecerão?
Toffler critica o "santo frenesi hippie e ecológico" como sendo anti-iluminista,
regressionista e neo-religioso, significando um retorno às trevas. Define-os como antidemocratas, fundamentalistas e fascistas. O que significaria este "santo frenesi"? Uma
tentativa, ainda que inconsciente, de resistência das massas? Nos anos 60, hippismo e
religiosidade eram características dos drop-outs que queriam fugir à massificação
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apascentada de uma sociedade industrial. Hoje, que a massa é miserável e não mais tem papel
a cumprir na nova "softeconomia simbólica", o que significa a disseminação desses ideários?
Muitos ambientalistas não gostam das massas, vêem nelas a bomba populacional; alguns ecosocialistas também não: embora as usem, as deploram, pois elas impedem a "verdadeira
democracia que implode o capitalismo". Os novos poderosos desta nova era do conhecimento
não mais precisam delas. Como irá ser reduzida esta massa tão atrapalhadora? Dizimação
através de guerras étnicas, banditismo urbano e nível crescente de miséria parecem ser a
resposta.
Em resumo: a transição do moderno ao nebuloso pós-moderno parece colocar as
massas como protagonistas nas telas midiáticas, seja como vítimas da economia do
conhecimento, seja como atores majoritários e desorientados de uma peça sem script em um
mundo à deriva, que alguns sociólogos chamam de sociedade de riscos (GIDDENS, 1991;
BECK, 1992). A Sociologia, que as tem desdenhado, vê-se igualmente às tontas, pois, tendo
montado um instrumental para analisar preferencialmente a ação de categorias e grupos
sociais nítidos, não sabe ainda como estudá-las e oscila entre o positivismo de guiá-las, o
pessimismo iluminista de lamentá-las e a imaturidade irracionalista de celebrá-las.
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