SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO: O OLHAR SOCIOLÓGICO EM DISCURSOS TEXTUAIS DE ESTUDANTES RÖWER, Joana Elisa1 - UFSM FRANÇA, Haydée Maria da Silveira de Vargas2 - UFSM Grupo de Trabalho – Cultura, Currículo e Saber Agência Financiadora: FAPERGS/CAPES Resumo Este texto apresenta os resultados de uma pesquisa que tem como tema a sociologia no ensino médio. O problema central foi investigar em que medida o discurso sobre o desenvolvimento do olhar sociológico como finalidade do ensino de sociologia no ensino médio incide nos discursos produzidos pelos estudantes sobre a sua realidade. O objetivo foi o de identificar o lugar dos conhecimentos sociológicos na compreensão pelos jovens dos condicionantes sociais que influenciam as biografias individuais. Participaram 138 jovens de 14 a 18 anos, estudantes de 1º, 2º e 3º anos do ensino médio, matriculados em uma escola estadual de educação básica, localizada na periferia de um município de porte médio da região central do Rio Grande do Sul. Foi aplicado como instrumento de coleta de dados uma questão construída em base a definição de olhar sociológico apresentada pelo sociólogo Charles Wright Mills (1975) e problematizada pela Professora Ileizi Fiorelli Silva (2005). A análise foi realizada em base a Análise Textual Discursiva de Moraes e Galiazzi (2007). Os principais referenciais teóricos adotados foram Mills (1975), Berger (2011) e Baumann (2001, 2004, 2008). Na leitura dos textos surgiram as seguintes categorias de análise: individualização, reconhecimento/articulação e valorização dos aprendizados da família, dos amigos e da escola; que se interpenetraram. A interpretação realizada resultou na compreensão de que os conhecimentos sociológicos não são significativamente utilizados pelos estudantes na compreensão das suas biografias e dos condicionantes sociais das escolhas de vida, na medida em que, as influências na formação individual são sentidas, sobretudo, advindas da família e na relação com a construção de valores. Assim, é possível considerar que, no contexto estudado, o olhar sociológico é restrito ao não revelar a percepção de contextos sociais e históricos mais amplos na relação com a vida íntima. Palavras-chave: Sociologia. Ensino Médio. Olhar sociológico. 1 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria – RS/Brasil. Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Memória e Educação – CLIO/UFSM. E-mail: [email protected] 2 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria – RS/Brasil. Professora da Rede Estadual do Rio Grande do Sul – 8ª CRE. Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Memória e Educação – CLIO/UFSM. Email: [email protected] 7000 Introdução A introdução do ensino de sociologia na educação básica é um processo recente, mas que, conforme Silva (2005) consiste no acúmulo de conhecimento deste campo do saber. Assim, se a obrigatoriedade é recente as discussões sobre o objetivo e a funcionalidade do conhecimento sociológico pode ser problematizada desde os clássicos da Sociologia. Contudo, esta discussão não perpassa somente uma questão histórica, mas encontra-se relacionada com as condições, necessidades e os propósitos educacionais atuais. A retomada da obrigatoriedade do ensino de Sociologia no Ensino Médio, instituída como disciplina curricular a partir do Decreto Lei 11.684 de 02 de Junho de 2008 que revogou o inciso III § 1º do art. 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Lei 9.394 de 20 de Dezembro de 1996) colocou em pauta a discussão sobre os sentidos do ensino de sociologia na relação com a prática. A LDB de 1996 previa que ao final do Ensino Médio o educando deveria demonstrar “domínio dos conhecimentos de filosofia e de sociologia necessários para o exercício da cidadania”, o que abriu brechas para a interpretação que esses conteúdos poderiam ser trabalhados transversalmente. Contudo, o Decreto de 2008 incluiu o inciso IV no art. 36 da LDB dispondo sobre a obrigatoriedade do ensino de Filosofia e de Sociologia, diz o inciso: “serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio”. Assim, a Sociologia adquiriu especificidade, sobretudo a partir das Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – OCNEM’s (2006)3 apesar desta especificidade reconstruir-se na prática cotidiana e em contextos educacionais específicos. Talvez seja admissível dizer que a institucionalização da Sociologia traz em si a representação dos ideais contemporâneos de educação, ou seja, de construção do conhecimento, autonomia, problematização, reflexividade. Mas, talvez também seja plausível refletir sobre os possíveis riscos de engessamento de metodologias, da reprodução de conceitos e idéias mascaradas pela noção “naturalizada” da sociologia como criticidade. A leitura das Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, no Volume de Ciências Humanas e suas Tecnologias, relacionados aos “Conhecimentos de Sociologia” permite afirmar que a mesma ultrapassa a noção da Sociologia como produção de criticidade, 3 Documento apresentado pela Secretaria de Educação Básica – Diretoria de Concepções e Orientações Curriculares para a Educação Básica através da Coordenação Geral do Ensino Médio e, elaborado a partir das diretrizes indicadas nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, na perspectiva de desenvolver indicativos para ações didático-pedagógicas para as disciplinas que compõem o currículo do Ensino Médio. 7001 conscientização, cidadania aproximando-se da especificidade da compreensão sociológica e/ou antropológica, a saber, a desnaturalização e o estranhamento. Neste sentido, as OCNEM’s diferentemente do que propõem para as demais disciplinas curriculares das Ciências Humanas (Filosofia, Geografia e História) não seleciona conteúdos, mas apresenta uma análise de possíveis recortes programáticos, metodologias e recursos didáticos. O foco é o tripé conceitos-temas-teorias4 na relação com a realidade social e, dessa forma, com a necessidade da pesquisa sociológica. Conceitos-temas-teorias na relação com a realidade social leva a reflexão sobre as biografias individuais, haja vista, que não é possível estabelecer uma crítica social sem compreender as trajetórias pessoais e os condicionantes sociais que perpassam as escolhas de vida. Os próprios processos de desnaturalização e estranhamento que as OCNEM’s anunciam necessitam da compreensão das realidades específicas e individuais. É nessa relação entre indivíduo e sociedade, na compreensão dos indivíduos enquanto produtos e produtores do meio social que a definição do olhar sociológico ou de imaginação sociológica de Mills (1975, p. 12) se encontra, pois “a imaginação sociológica nos permite compreender a história e a biografia e as relações entre ambas dentro da sociedade”. Para Berger (2011, p. 65) “a consciência sociológica constitui não só uma interessante novidade histórica que se pode estudar com proveito, como também uma ação bastante real para o indivíduo que procura ordenar e dar sentido aos fatos de sua própria vida”. Estas definições são (re)significadas na prática cotidiana influenciando construções didáticas e metodológicas direcionadas as aulas de Sociologia. Silva (2005) problematiza o desenvolvimento do olhar sociológico como uma forma de atuação no ensino de Sociologia no Ensino Médio e coloca como uma possibilidade de introdução dos jovens à sociologia através desta relação entre biografias e história, entre indivíduo e sociedade. Dessa forma, que a questão em que medida o discurso sobre o desenvolvimento do olhar sociológico como finalidade do ensino de sociologia no ensino médio incide nos discursos produzidos pelos estudantes sobre a sua realidade, torna-se pertinente. É na identificação dos condicionantes sociais nos discursos das biografias individuais que é possível compreender o desenvolvimento do olhar, da imaginação sociológica, pois a Sociologia caracteriza-se como uma disciplina peculiar em que o contexto de vida do estudante é também objeto de análise e discussão. Assim, o objetivo foi o de identificar o 4 As teorias compreendem a dimensão explicativa/compreensiva, os conceitos a dimensão lingüística/discursiva e, os temas a dimensão empírica/concreta (OCNEM’s, 2006). 7002 lugar dos conhecimentos sociológicos na compreensão pelos jovens dos condicionantes sociais que influenciam as biografias individuais. Contudo, tem-se que a narração das histórias de vida, as histórias contadas não são as histórias vividas, na concepção de Bauman (2008, p. 15), mas são “estreitamente interconectadas e interdependentes”. Os indivíduos constroem e narram sua existência dentro de condições que modelam a vida e a narrativa. Na sociedade moderna a tendência é a da individualização em que não há o processo de reconhecimento, de articulação entre os fatores sociais mais amplos e as biografias individuais, características que podem ser percebida nas narrativas de vida. Bauman alerta que (2008, p. 64), a individualização é um destino, não uma escolha: na terra da liberdade individual de escolha, a opção de escapar a individualização e de se negar a participar no jogo individualizante não faz parte, de maneira alguma, da agenda. O fato de homens e mulheres não terem ninguém para culpar por suas frustrações e problemas não significa, agora não mais do que no passado, que eles possam se proteger contra a frustração usando suas próprias utilidades domésticas, ou furtar-se dos problemas. Aqui se estabelece uma contradição na medida em que, se a individualização é um destino enquanto histórias vividas e vidas contadas, a proposta da Sociologia no Ensino Médio como desenvolvimento do olhar sociológico que promove a relação entre biografias e contextos sociais vai de encontro aos processos de individualização ao desenvolver o reconhecimento, a reciprocidade e a articulação. Assim, é possível pensar no alcance da Sociologia enquanto disciplina curricular no ensino médio em um contexto de individualização. A principal hipótese desta pesquisa era então, de que as narrativas dos jovens do ensino médio seriam marcadas pela individualização em detrimento do reconhecimento e da articulação com os condicionantes sociais. Participaram deste estudo 138 jovens de 14 a 18 anos, estudantes de 1º, 2º e 3º anos do ensino médio, turno tarde, matriculados em uma escola estadual de educação básica, localizada na periferia de um município de porte médio da região central do Rio Grande do Sul. A escolha pelos jovens dos três anos do ensino médio deu-se na intenção de observar semelhanças e diferenças na construção das narrativas de vida, haja vista, que os estudantes dos 2º e 3º anos tiveram a disciplina de Sociologia em anos anteriores. Foi aplicado como instrumento de coleta de dados uma questão ampla construída em base a definição de olhar sociológico apresentada pelo sociólogo Mills (1975) e problematizada pela Professora Ileizi Fiorelli Silva (2005). A questão assim construída: Quem 7003 eu sou? Como as coisas que aprendi em casa, na comunidade, no grupo de amigos, na escola e em outros lugares influenciam minhas escolhas e fazem eu dar sentido a minha vida? O que ficou de mais importante? E agora, o que eu espero para minha vida?; objetivou instigar a reflexão sobre a relação entre aprendizados, saberes, sentidos individuais com o contexto familiar, comunitário, escolar, assim como na construção de perspectivas futuras. Ou seja, a relação entre biografias individuais e condicionantes sociais. A análise foi realizada em base a interpretação dos textos produzidos pelos estudantes através da Análise Textual Discursiva de Moraes e Galiazzi (2007). Os referenciais teóricos adotados foram, sobretudo, Mills (1975), Berger (2011) e Baumann (2001, 2004, 2008), além de Dufor (2005) e Rancière (2011). As Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2006), no que tange a Sociologia, também serviu de base de interpretação. Na leitura dos discursos textuais emergiram as seguintes categorias de análise: individualização, reconhecimento/articulação e valorização dos aprendizados da família, dos amigos e da escola; que se interpenetraram. Contudo, a concepção que embasa a análise e a produção deste material é a de que ele é apenas uma possibilidade de interpretação de um contexto específico. E que os meios de coleta de dados e análise se (re)construíram na própria pesquisa, nas possibilidades de si e do outro, no questionamento do outro e de si. Costa (2007, p. 18) escreve que: Quando ficamos paralisados ao tomar decisões metodológicas, devemos ter muito claro que o problema certamente não é o nosso despreparo na utilização de instrumentos, técnicas ou métodos, mas sim a incapacidade ou inadequação dos métodos, supostamente disponíveis, para dar conta de formas emergentes de problematização. A interpretação realizada resultou na compreensão de que os conhecimentos sociológicos não são significativamente utilizados pelos estudantes na compreensão das suas biografias e dos condicionantes sociais das escolhas de vida, na medida em que, as influências na formação individual são sentidas, sobretudo, advindas da família e na relação com a construção de valores, isto é, do bem e do mal, do certo e do errado. Não há nos relatos colhidos uma indicação da compreensão de como a família, a comunidade, a escola condiciona as escolhas individuais, ao contrário, há uma negação desses condicionantes, o que caracteriza o processo de individualização. O que emerge é a valorização da família como lugar de formação de caráter, como aprendizado de valores. 7004 Assim, é possível considerar que, no contexto estudado, o olhar sociológico é restritivo ao não revelar a percepção de contextos sociais e históricos mais amplos na relação com a vida íntima, com as escolhas individuais. Tais constatações levam a refletir sobre a efetividade da Sociologia no seu caráter de disciplina escolar, nas práticas, didáticas, metodologias de ensino e de concepções, ou seja, como estas são significadas por professores e estudantes. A contribuição da Sociologia na educação de jovens pode ser significativa se proporcionar o desenvolvimento da capacidade reflexiva no sentido do estranhamento, da desnaturalização e, assim, da compreensão da individualidade como produto social, mas também de produtor social. Desenvolvimento Referencial teórico “Hoje em dia, os homens sentem frequentemente, suas vidas privadas como uma série de armadilhas. Percebem que dentro de mundos cotidianos, não podem superar suas preocupações, e quase sempre tem razão nesse sentimento” (MILLS, 1975, p. 9). O modo como Mills inicia a discussão sobre a necessidade do desenvolvimento da imaginação sociológica é exemplar no sentido de que demonstra a sensação e a impotência causada pelos processos de individualização na sociedade moderna, em que o indivíduo encontra-se cercado em si mesmo. Mills (1975) defende a concepção de que os homens modernos não necessitam de mais informações ou habilidades racionais para conseguirem dissipar a sensação de impotência e encurralamento diante das adversidades sociais e históricas, mas sim de uma “qualidade de espírito que lhes ajude a usar a informação e a desenvolver a razão, a fim de, perceber com lucidez o que está ocorrendo no mundo e o que pode estar acontecendo dentro deles mesmos” (MILLS, 1975, p. 11). A essa qualidade de espírito o autor denomina de imaginação sociológica, assim definida: A imaginação sociológica capacita o seu possuidor a compreender o cenário histórico mais amplo, em termos de seu significado para a vida íntima e para a carreira exterior de numerosos indivíduos. Permite-lhe levar em conta como os indivíduos, na agitação de sua experiência diária, adquirem frequentemente uma consciência falsa de suas posições sociais. [...] A imaginação sociológica nos permite compreender a história e a biografia e as relações entre ambas, dentro da sociedade. Essa é a sua tarefa e a sua promessa. (MILLS, 1975. p. 11-12). 7005 Para Berger (2011, p. 48) a sociologia tem como princípio o desenvolvimento da consciência sociológica compreendida como “a capacidade de olhar uma situação dos pontos de vista de sistemas interpretativos antagônicos. [...] a consciência sociológica seja inerentemente desmistificadora”. Apesar de Berger (2011) centrar que o foco da sociologia são os processos de interação social e o modo como os sistemas sociais funcionam, o autor aponta que a compreensão das interações sociais serve para dar sentido aos fatos da própria vida, assim como a compreensão dos sistemas sociais necessita da compreensão/localização de si no tempo/espaço social. Assim, pode-se concluir que tanto para Mills (1975) como para Berger (2011) a relação entre os processos sociais e as biografias individuais é uma condição para a compreensão da sociedade e de si. A professora e socióloga Iliezi Fioreli Silva (2005), em texto intitulado A Imaginação Sociológica: desenvolvendo o raciocínio sociológico nas aulas com jovens e adolescentes, aborda esta temática como uma forma de aproximar os jovens dos conhecimentos sociológicos e de desenvolver a criticidade. O desenvolvimento da criticidade exposto nos documentos oficiais como as OCNEM’s (2006), como tarefa da Sociologia no Ensino Médio liga-se aos processos de estranhamento e desnaturalização. Contudo, estranhar e desnaturalizar necessitam da compreensão dos contextos sociais/culturais e das biografias individuais. Tais reflexões levam a problematização dos conteúdos, metodologias, didáticas na medida em que a Sociologia enquanto disciplina curricular pode ser tanto fixada em teorias clássicas e contemporâneas, na definição de conceitos sem ser contextualizada e vinculada a realidade e as percepções dos jovens sobre suas vivências, como ser promotora de processos de desnaturalização e estranhamento pela relação entre biografias e condicionantes sociais, ou seja, como promotora de sentidos. Desse modo, é revelador o depoimento de Bourdieu (2012, p.16): Tenho a experiência de uma situação: quando, por exemplo, vou falar de sociologia a não sociólogos, a não profissionais, estou sempre dividido entre duas estratégias possíveis. A primeira consiste em apresentar a sociologia como uma disciplina acadêmica, como se estivesse abordando a história ou a filosofia; nesse caso, acabo suscitando o interesse, mas precisamente de natureza acadêmica. Ou, então, procuro exercer o efeito específico da sociologia, isto é, tento colocar meus ouvintes em situação de autoanálise. Dufor (2005) faz uma reflexão interessante sobre o individualismo na sociedade contemporânea que serve para pensar a função da Sociologia na educação escolar. Diz o autor 7006 que a juventude hoje se encontra em uma condição de a-criticidade, na medida em que, a pessoa é a única responsável pela sua condição de vida e, pela impossibilidade de se basear no passado e de se projetar no futuro. Assim, torna-se cogente problematizar a idéia de criticidade contida na Sociologia, pois ela também corre o risco de ser apenas um discurso sobre a educação. O próprio trabalho do professor encontra-se dessimbolizado, pois ao ocupar um lugar de passado torna-se, na verdade, obsoleto. Não há mais atribuição de sentido porque a escola e o professor tentam transmitir conhecimentos de um tempo inexistente (porque sem significado para o presente) para serem utilizados em um futuro incerto. Este “abandono da relação de sentido” no dizer de Dufour (2005, p. 146) só pode gerar sujeitos a-críticos, porque simplesmente, não há o que criticar quando “tudo está na afirmação de si e na gestão relacional dessa afirmação de si que se deve defender – como todo bom consumidor deve fazer” (DUFOUR, 2005, p. 146). Assim, ao mesmo tempo em que é admissível dizer que a institucionalização da Sociologia traz em si a representação dos ideais contemporâneos de educação, ou seja, de construção do conhecimento, autonomia, problematização, reflexividade, é também plausível refletir sobre os possíveis riscos de engessamento de metodologias, da reprodução de conceitos e ideias mascaradas pela noção naturalizada da sociologia como criticidade. Dufor (2005) compartilha da posição de Bauman (1998), quando este infere que a atualidade está se constituindo pela incerteza, em que “projetos de vida individuais não encontram nenhum terreno estável em que acomodem uma âncora” (BAUMAN,1998, p. 32). Estes novos sentimentos de incredulidade e incertezas, que se referem à “futura configuração do mundo, a maneira correta de viver nele e os critérios pelos quais julgar os acertos e os erros da maneira de viver” (BAUMAN, 1998, p. 32) e cujas superações não são percebidas em um futuro, (re) significam as relações com o outro e com nós mesmos, pois, a própria memória, entendida como meio de identidade e referência, passa por (re) significações, haja vista, que os modos aprendidos configuram-se como insuficientes ou inadequados para lidar com os afazeres do presente. A característica da constituição do sujeito atual torna-se a individualização ao priorizar a liberdade, mas que resulta no esfacelamento das habilidades de sociabilidades (BAUMAN, 2004) e na corrosão e lenta desintegração da cidadania (BAUMAN, 2001). Homens e mulheres contemporâneos marcados por um estilo de vida consumista que reifica as relações 7007 humanas. Sendo o mesmo dizer que, “laços e parcerias tendem a ser vistos e tratados como coisas destinadas a serem consumidas, e não produzidas; estão sujeitas aos mesmos critérios de avaliação de todos outros objetos de consumo” (BAUMAN, 2001, p. 187). Contudo, também para este autor a rearticulação humana e social transpassa como tarefa da Sociologia e volta-se para a relação entre histórias de vida e contextos sociais. Escreve Bauman (2008, p. 21-22) Acredito que o compromisso com o esforço para rearticular a cambiante condição humana sob a qual os “indivíduos cada vez mais individualizados” se encontram enquanto lutam para impor sentido e objetivo em suas vidas é, nas presentes circunstâncias, a tarefa suprema da sociologia. [...] A articulação das histórias de vida é a atividade por meio da qual o significado e o objetivo são inseridos na vida. No tipo de sociedade em que vivemos, a articulação é, e precisa continuar a ser, uma tarefa e um direito individuais. É, porém, uma tarefa bastante difícil e um direito que não é fácil de se conquistar. Para executar a tarefa e exercer o direito plenamente, necessitamos de toda a ajuda que possamos conseguir. E os sociólogos poderiam fornecer muita ajuda se eles se portassem bem, como podem e devem no trabalho de gravar e mapear as partes cruciais da rede de interconexões e dependências que ou são mantidas escondidas ou permanecem invisíveis do ponto de vista da experiência individual. Metodologia Foram sujeitos desta pesquisa 138 jovens, de ambos os sexos, na faixa etária de 14 a 18 anos, estudantes de 1º, 2º e 3º anos do ensino médio, do turno da tarde. A seleção ocorreu por um processo simples de participação voluntária em que a questão da pesquisa foi aplicada dentro do período de Sociologia da escola escolhida. Por ser no turno da tarde a maioria dos educandos não exerce outras atividades como trabalho ou outros cursos, no período inverso. Os jovens e suas famílias encontram-se em um nível socioeconômico baixo. A escola estadual de educação básica está localizada na periferia de um município de porte médio da região central do Rio Grande do Sul. A escola tem uma boa estrutura física com salas climatizadas, salas de informática, salas de vídeo, biblioteca, laboratório de estudo embora faltem espaços adequados para a prática esportiva. A escola também conta com um corpo profissional qualificado envolvendo diretor, coordenadores pedagógicos, professores, educadores especiais e demais funcionários. O instrumento de coleta de dados foi aplicado no mês de março de 2013 e consistiu em uma questão abrangente, a saber: Quem eu sou? Como as coisas que aprendi em casa, na comunidade, no grupo de amigos, na escola e em outros lugares influenciam minhas escolhas e fazem eu dar sentido a minha vida? O que ficou de mais importante? E agora, o que eu 7008 espero para minha vida? Formulada a partir da definição de olhar sociológico apresentada pelo sociólogo Charles Wright Mills (1975) e problematizada pela Professora Ileizi Fiorelli Silva (2005), como proposta de atuação no ensino médio. A análise foi realizada em base a Análise Textual Discursiva de Moraes e Galiazzi (2007) cujo “corpus” de análise é constituído basicamente de produções textuais. Na análise emergiram as seguintes categorias: individualização, reconhecimento/articulação e valorização dos aprendizados da família, dos amigos e da escola. Tais categorias atendem as propriedades de categorização citadas pelos autores que consiste, resumidamente, na validade em relação aos objetivos; construídas a partir de um mesmo princípio conceitual e de forma destacada, este modo de análise se refere a categorização dos sentidos e de não fragmentação. A categorização realizada através da Análise Textual Discursiva permite a compreensão de que os textos embora divididos em unidades e categorias de análise estas podem se interpenetrar nos discursos textuais. Outra característica, é a apresentação/descrição dos depoimentos o que acarreta em uma descrição densa, ou seja, “com intensas ancoragens na realidade empírica” (MORAES E GALIAZZI, 2007, p. 98), o que não impede, porém, ao contrário necessita que se “impõe deixar que as próprias ideias se insiram nas novas compreensões” (MORAES E GALIAZZI, 2007, p. 190). Resultados e discussão da pesquisa apresentada O conceito de individualização se refere a “emancipação do indivíduo da determinação atribuída, herdada e inata do caráter social dele ou dela” (BAUMANN, 2008, p. 183). Assim, observou-se que a maioria dos relatos analisados apresenta um caráter de individualização ao colocarem-se como indivíduos autônomos e não compreenderem-se como produtores e produtos do meio social, que sofrem as influências dos condicionantes sociais. Como descrito em alguns depoimentos abaixo: Acredito que não somos tão influenciáveis na vida e na conduta de cada ser humano, pois assim como eu, que tenho minhas próprias opiniões, o ser só se torna influenciável quando o mesmo quer seguir por esse caminho, acaba assim virando um clone, não tendo suas próprias experiências, erros e acertos. Ele acaba não vivenciando a sua passagem, estadia aqui na terra. Eu creio que fazer suas próprias escolhas, ser diferente, ter e dar um sentido novo a as vida, isso é viver plenamente, é ter uma vida (Dandara5, 15 anos, 2º ano do Ensino Médio). 5 Todos os nomes dos estudantes são fictícios. 7009 Tudo o que aprendi e aprendo a cada dia são lições que sempre trago comigo, meus fracassos me influenciam a pensar e agir de modo diferente e já minhas vitórias fazem eu reagir sempre com as melhores intenções em qualquer situação (Bruna, 15 anos, 2º ano do Ensino Médio). O que ficou de mais importante é que eu aprendi que para conquistar minhas metas preciso ser o melhor entre muitos, dar sempre o melhor de mim. Espero que eu consiga realizar minhas metas e ser feliz (Letícia, 14 anos, 1º ano do Ensino Médio). A categoria reconhecimento/articulação atravessa a própria concepção do olhar sociológico ou da consciência sociológica, no sentido da interpenetração entre condições sociais e biografias individuais. Nesse sentido, dos 138 relatos analisados apenas um demonstrou uma consciência sociológica, como mostra o texto abaixo: Acredito que o quê sou hoje é resultado de todos os que me cercam, as minhas escolhas, minhas atitudes, meu jeito de ser, tudo isso foi moldado pela sociedade, isso não é desculpa para justificar minhas escolhas que não deram certo e jogar a culpa na sociedade, mas realmente eu acredito que todos nós mudamos de acordo com o ambiente (Marcos, 15 anos, 2º ano do Ensino Médio). Há, porém uma valorização dos aprendizados da família, dos amigos e da escola que se interpenetram, apesar de aparecerem com significados distintos. A valorização dos aprendizados da família e com o grupo de amigos, em menor intensidade, ocorrem em relação a formação do caráter, da moral, da ética, como exemplifica o texto a seguir: Mas não sou hipócrita ao ponto de achar que a convivência com grupos de relacionamento, como família e amigos não nos influenciam. Por exemplo, construção do nosso caráter, quando pequenos aprendemos somos ensinados que pegar algo que não é nosso, sem pedir, é errado. E assim se segue por toda a nossa vida (Brenda, 15 anos, 2º ano do Ensino Médio) A valorização dos aprendizados da escola, pouco citados nos relatos, apesar da questão fomentar a reflexão sobre os significados dos aprendizados escolares aparece na relação com a formação para os exames vestibulares, os concursos públicos e o mercado de trabalho. Como revela o seguinte depoimento: “O que ficou de mais importante da escola foi terminar o ensino fundamental (Paulo, 14 anos, 1º ano do Ensino Médio). Ou ainda: “O que fica da escola é a possibilidade de fazer uma faculdade” (Vicente, 15 anos, 1º do Ensino Médio). Tais relatos demonstram que o olhar sociológico não é desenvolvido através das aulas de Sociologia no Ensino Médio. A compreensão das vidas individuais, das biografias ocorre pela individualização e não pela compreensão dos contextos sociais, das estruturas sociais 7010 mais amplas que condicionam as biografias. Mesmo comparando os relatos de jovens do 3º ano do Ensino Médio com os do 1º ano, essa compreensão não é modificada. A discussão sobre tais dados pode ser ainda problematizada, na medida em que, a ênfase dos conteúdos da Sociologia no Ensino Médio se dá, principalmente, sobre os temas sociológicos, como trabalho, política, cidadania, cultura. Na escola pesquisada a seleção dos conteúdos também tem como base os temas sociológicos, pois seguem o livro6 didático escolhido pela escola, cuja ênfase é temática. Como referenciado nas OCNEM’s (2006) os temas constituem-se em possibilidades explicativas da realidade social. Bridi (2009, p. 51) escreve que “a construção do conhecimento em Sociologia supõe a escolha de temáticas sociais emergentes e o entendimento das teorias sociológicas explicativas da realidade, com seus conceitos inter-relacionados”. Aqui a escolha dos conteúdos relaciona-se ao trabalho do educador, assim continua a autora: “Ao ensinar Sociologia, além de desenvolver conteúdos significativos e relevantes quanto ao aspecto social, humano e acadêmico, o desafio para o professor é passar uma maneira de pensar e de apreender a realidade” (BRIDI, 2009, p. 53). Ao relacionar desenvolvimento do olhar/consciência sociológico/a, conteúdos e práticas pedagógicas têm-se uma reflexão sobre concepções e não unicamente sobre formas particulares de ensino-aprendizagem. Os processos de reconhecimento/articulação dependem não de explicações da realidade, mesmo fazendo uso de temas sociológicos, mas de compreensões. Conforme Rancière (2011) as explicações contribuem para o embrutecimento. Fica como uma finalização reflexiva desta parte do texto a exposição deste filósofo e professor sobre os conceitos de explicação e compreensão. É preciso inverter a lógica do sistema explicador. A explicação não é necessária para socorrer uma incapacidade de compreender. É, ao contrário, essa incapacidade, a ficção estruturante da concepção explicadora de mundo. É o explicador que tem necessidade do incapaz, e não ao contrário, é ele que constitui o incapaz como tal. Explicar alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só (RANCIÈRE, 2011, p. 23) Considerações Finais A análise resultou na compreensão de que os conhecimentos sociológicos não são expressivamente relacionados pelos estudantes com suas biografias. Pode-se decorrer desta constatação que a Sociologia ocorra em um âmbito explicativo e não compreensivo, em que não há a relação entre biografias e condicionantes sociais e ainda, em que o estudante 6 TOMAZI, Nelson Dacio. Sociologia para o Ensino Médio. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 7011 permanece em uma situação de passividade. Não há na análise realizada uma compreensão de como a família, a comunidade, a escola condicionam as escolhas individuais, e ainda como estas são condicionadas por contextos sociais amplos. Ao invés, há uma negação desses condicionantes, o que caracteriza o processo de individualização. O que emerge são processos de valorização, sobretudo da família como lugar de formação de caráter, como aprendizado de valores, do bem e do mal, do certo e do errado. Dessa forma, é possível ponderar que, no contexto da pesquisa, o olhar sociológico é restrito ao não revelar a percepção de contextos sociais e históricos mais amplos na relação com a vida íntima, com as escolhas individuais. Em relação aos dados gerais e análises obtidas na presente pesquisa é possível levantar implicações educacionais que fazem relação aos conteúdos, métodos e concepções de como a Sociologia está sendo trabalhada no Ensino Médio. A contribuição da Sociologia na educação básica pode ser significativa se propiciar o desenvolvimento da capacidade reflexiva que tem por base os processos de estranhamento e desnaturalização, ou seja, a compreensão de que somos produtos e produtores sociais, ativos na dinâmica social/cultural. Também é possível refletir sobre os discursos educacionais amplos, na medida em que, não houve uma significação dos aprendizados escolares na constituição dos indivíduos enquanto sujeitos sociais. Tem-se que a escola como instituição moderna é re-visitada no intuito de se aproximar da nova reorganização cultural e social que desenvolve a criticidade e autonomia. Assim, a escola também produz continuidades e rupturas em relação aos seus objetivos, currículos e práticas. Rupturas pela valorização da diferença, da diversidade de culturas, da inter-trans-disciplinaridade, da inserção dos recursos tecnológicos, pelas concepções de saber, de ensino-aprendizagem e da relação educador-educando que transformam didáticas e metodologias; continuidades no que se refere ao objetivo de formação/preparação humana, de reprodução e construção de valores, de cidadania. Contudo, quando se percebe que os discursos não transformam os sentidos e significações dos jovens estudantes é preciso refletir sobre as dissonâncias entre aqueles e as práticas. A referência ao desenvolvimento do olhar sociológico não se reduz aos educandos, mas se refere ao próprio corpo docente, pois não se resume a teorias, mas a posturas/concepções pedagógicas que levem a processos de desnaturalização, estranhamento e relações entre os condicionantes sociais e as biografias individuais. Nesse viés, problematizar não somente a Sociologia no Ensino Médio, mas a educação de modo amplo, implica buscar outros vieses que possam deter outras intervenções e produzir 7012 autonomias. Uma propositiva para fomentar o processo ativo. Uma dinâmica interativa, participativa que questiona a educação na produção e produto de possíveis valores, padrões e comportamentos na história de vida dos sujeitos e nos discursos veiculados na sociedade. Como fazer isso? Não vislumbramos outra possibilidade, atualmente, a não ser na materialidade do cotidiano na relação com as referências sócio-culturais presentes. Exercício que se configura na sua permanência pela dinâmica que caracteriza toda e qualquer forma de relação. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. ______. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. ______. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. ______. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. BERGER, Peter. Perspectivas Sociológicas: uma visão humanística. 31 ed. Petrópolis: Vozes, 2011. BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger. O sociólogo e o historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. BRASIL. Lei nº 11.684, de 02 de junho de 2008. Brasília, 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11684.htm>. Acesso em: 05 jul. 2013. BRASIL. 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