Revista 32 - Portal do Colégio Gregor Mendel

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REVISTA REDAÇÃO
PROFESSOR: Lucas Rocha
DISCIPLINA: Redação
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DATA: 10/08/2014
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Cerco ao Ebola (CILENE PEREIRA e HELENA BORGES)
A Organização Mundial de Saúde declara a
epidemia uma emergência mundial. O Brasil e o
mundo se preparam para se proteger do vírus, que
já matou quase mil pessoas até agora na África
A EPIDEMIA de Ebola que castiga os países
africanos Serra Leoa, Guiné e Libéria ganhou contornos
ainda mais preocupantes na semana passada. Na
sexta-feira 8, a Organização Mundial da Saúde (OMS)
declarou a proliferação do vírus uma emergência de
saúde internacional. A OMS considera a atual epidemia
um evento extraordinário. ―É a mais complexa de toda
a história da doença‖, disse a médica Margaret Chan,
diretora-geral da instituição. Na avaliação da entidade,
as possíveis consequências da internacionalização da
epidemia são sérias, particularmente em vista da
agressividade do vírus.
É a terceira vez nos últimos anos que a OMS
determina uma emergência mundial. Em 2009, a
pandemia de gripe causada pelo H1N1 recebeu a
classificação e, em maio, foi a vez da ameaça da volta
da poliomielite a países nos quais a doença está
erradicada. Em relação ao Ebola, a entidade não
determinou a proibição de comércio com as nações
atingidas ou de viagens internacionais a esses locais,
mas recomendou aos governos que informem os
viajantes com esses destinos sobre como minimizar os
riscos de contaminação. Além disso, orientou que os
países estejam preparados para detectar casos e tratálos e que tenham planos para repatriação de cidadãos
que foram expostos. Nos países afetados, referendou a
necessidade de submeter a exames pessoas com
sintomas que passem por aeroportos, portos e postos
fronteiriços e da aplicação de medidas efetivas de
proteção dos profissionais que lidam com os doentes.
Os pacientes não devem deixar seus países, salvo se
for para receber tratamento médico em outro país.
Confira como o hospital Emílio Ribas se prepara
para atender a possíveis doentes em SP.
A OMS quer reunir esforços para conter a
epidemia, que até agora não deu sinais de
arrefecimento. Até sexta-feira, haviam sido registrados
1.711 casos e 932 mortes. O sinal mais importante de
que ela pode se espalhar ainda mais foi a confirmação
de nove casos na Nigéria, país de porte muito maior do
que as nações atingidas até então e também com
relações muito mais intensas com o resto do mundo.
Além disso, um homem morreu na Arábia Saudita com
sintomas, outras duas pessoas estão sendo
monitoradas na Inglaterra e em Benin, na África, e na
Tailândia 21 turistas também estão sob observação.
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TRATAMENTO - Na quinta-feira 7, o padre espanhol Miguel Pajares chegou a Madri, na Espanha, levado da
Libéria, onde foi infectado
Diante da ameaça, o mundo reagiu. A Nigéria começou a montar centros de atendimento de urgência. Na Libéria,
soldados impedem que moradores de áreas atingidas cheguem à capital, Monróvia. Na Espanha, foram adotadas todas as
precauções no transporte do padre Miguel Pajares da Libéria a Madri, onde está internado depois de se contaminar. Nos
Estados Unidos, o Centro de Controle de Doenças (CDC), em Atlanta, considerado a maior referência do mundo no combate
a doenças infectocontagiosas, elevou o surto para nível 1 de alerta. Postos de quarentena estão montados em portos,
aeroportos e postos de fronteira de 20 cidades e aumentou o número de funcionários no Centro de Operações de
Emergência, que rastreia casos.
No Brasil, na sexta-feira 8 o ministro da Saúde, Arthur Chioro, anunciou que indivíduos das áreas afetadas que
manifestem desejo de vir ao Brasil passarão por triagem médica antes de embarcar. ―Reforçaremos a vigilância
epidemiológica do viajante‖, informou. A OMS, porém, não tem nenhuma recomendação nesse sentido. Além disso, serão
colocados nos aeroportos avisos a passageiros que estiverem febris para que procurem postos da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa). Antes, na quarta-feira 13, Jarbas Barbosa, secretário de Vigilância em Saúde do Ministério,
reuniu-se por videoconferência com os secretários estaduais de saúde para reforçar as medidas a serem adotadas em caso
de suspeita de infecção (leia mais no quadro à pág. 70). O trabalho deve ser feito de forma coordenada entre os serviços de
vigilância sanitária, especialmente os localizados em portos e aeroportos, e os hospitais de referência no tratamento
de doenças infectocontagiosas para onde seriam levados os pacientes. Cada Estado deve ter uma instituição com esse perfil.
―É preciso ter leitos isolados. E qualquer instituição de referência em enfermidades transmissíveis tem um‖, disse Barbosa. O
Ministério também enviou às secretarias uma cartilha com as orientações.
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secretarias uma cartilha com as orientações.
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Em São Paulo, profissionais do Instituto de Infectologia Emílio Ribas – uma das principais referências em atendimento
de moléstias infecciosas do País – vêm se aprimorando para a eventualidade de receberem um caso. ―Estamos treinando
novamente todos os que podem entrar em contato com esse tipo de paciente‖, disse o infectologista Ralcyon Teixeira, chefe
do Pronto-Socorro da instituição. Por lá, o paciente seria recebido no serviço de emergência e depois internado em um leito
na UTI (são 17). ―Nossos leitos são equipados com um sistema no qual o fluxo de ar que sai do quarto é purificado para
evitar que o ambiente seja contaminado‖, explica o médico. ―E o ar do quarto é filtrado e purificado.‖ No caso do Ebola, a
transmissão não ocorre pelo ar. Por isso, os médicos dizem que, se a demanda por leitos aumentar, é possível colocar os
contaminados em quartos comuns. ―O essencial é que o doente seja internado em leito sozinho e com acesso limitado de
pessoas‖, afirma Teixeira.
Entre outras questões repassadas no Emílio Ribas estão coisas como decidir que avental impermeável usar para evitar
a contaminação do profissional. Eles têm dois: um verde e um branco. Optaram pelo branco, mais resistente. Eles vestirão
ainda macacão e bota impermeável, máscara e proteção para o rosto com viseira e dois pares de luvas. Relembraram ainda
a importância de registrar o nome de todo profissional que tiver contato com o doente ou entrar em seu ambiente e bem
como o horário da visita. É uma precaução para que essas pessoas sejam monitoradas se surgir algum problema.
Entre autoridades de saúde e estudiosos, no entanto, é consenso que o risco de o Ebola chegar por aqui é baixo.
Várias explicações sustentam a previsão. Uma é de ordem científica. ―Todos os elementos da cadeia epidemiológica de
transmissão do vírus estão na África. Aqui não existem animais que possam carregá-lo‖, afirma Crispim Cerutti Junior, da
Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Ele se refere a espécies de morcegos que servem de reservatórios do Ebola. Outra
diz respeito ao nível de perícia dos profissionais envolvidos no atendimento a males contagiosos. Desde 2011, por exemplo,
há treinamentos de vigilância epidemiológica visando a grandes eventos. ―As simulações de incidente biológico incluem o
caso Ebola‖, diz a infectologista Otília Lupi, da Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro.
Além disso, há uma experiência significativa armazenada no trato de pacientes com doenças infecciosas sérias, como a
Aids. ―No Brasil, é inadmissível hoje um enfermeiro manusear um paciente sem luvas ou usar agulhas que não sejam
descartáveis ou esterelizadas‖, diz Otília. Isso é importante porque, no caso do Ebola, a transmissão ocorre pelo contato
direto com sangue, excreções ou secreções da pessoa infectada ou com objetos contaminados. Outro aspecto levantado é a
existência de grandes diferenças culturais entre o Brasil e os países onde ocorre a epidemia. Na África, muitas famílias
mantêm os pacientes em casa, o que facilita o contágio dos outros moradores. E insiste-se no ritual de velório que inclui a
lavagem do cadáver à mão e sem luvas.
Há, porém, inquietações. ―Nosso temor é a epidemia se expandir em direção a países com maior conexão com o Brasil,
como Angola. Aí sim estaríamos em risco de o vírus chegar‖, diz Otília. Não se pode esquecer, também, que a conexão do
País com a Nigéria, onde já há infectados, também é considerável.
CILENE PEREIRA e HELENA BORGES são Jornalistas e escrevem para esta publicação. Fotos: Emilio Naranjo/EFE, JOHN
SPINK/AP; Kelsen Fermandes/Ag. Istoé. Revista ISTO É, Agosto de 2014.
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Viver em Miami (CHRIS DELBONI -
de Miami - e MARIANA QUERIOZ BARBOZA)
Cada vez mais brasileiros vivem na capital do sol e das compras. Saiba quem são eles e o que é preciso fazer para
realizar esse sonho
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FOI com poucas malas e o sonho de experimentar a vida nos Estados Unidos que a empresária Ana Paula Mariutti, 45
anos, o marido, Alexandre, 46, e os filhos Thomas, 15, e Lucas, 13, desembarcaram no Aeroporto de Miami, na Flórida, no
domingo 3. Sócia de duas escolas bilíngues em São Paulo, Ana Paula já estava acostumada a passar as férias na cidade ao
menos uma vez por ano. Encantou-se tanto com o lugar que decidiu ficar em definitivo por lá. Os Mariutti vão morar em
North Miami Beach, um paraíso a menos de dois quilômetros da praia, e assim se juntam aos 250 mil brasileiros que
atualmente vivem na Flórida. A maioria deles, em Miami e arredores, como Fort Lauderlade e Boca Raton. ―Sou atraída pelo
estilo de vida americano, mas queria um lugar próximo de nossa realidade cultural‖, diz Ana Paula. Não é recente o
interesse dos brasileiros pela região. A novidade é que o fenômeno agora conhece um terceiro – e mais marcante – ciclo.
Primeiro houve a invasão dos turistas, em meados da década de 1990. Depois, no final dos anos 2000, muitos deles
descobriram que era vantajoso comprar um imóvel na cidade. Além de o custo ser inferior a similares vendidos no Brasil e
da perspectiva de valorização do investimento, parecia ser um jeito de manter uma ligação com a cidade. Agora, nessa
terceira fase, as pessoas simplesmente querem ficar – talvez para sempre.
Qual é a mágica de Miami que seduz tanta gente? Não são poucos os seus atributos. A cidade é daquelas raras que
combinam beleza natural com vasta oferta de serviços. São 24 quilômetros de praias de areia branca e mar azul de frente
para o Caribe. Mas isso pode ser encontrado em outros lugares. A diferença da capital do sol nos Estados Unidos é todo o
resto que ela proporciona. Para quem gosta de ir às compras, talvez não exista melhor destino no mundo. Para os padrões
brasileiros, seus preços são baixíssimos. Roupas, eletrônicos, computadores, itens de decoração, cosméticos, artigos para
bebês, tudo custa bem menos. Quase sempre, metade do valor praticado no Brasil. Às vezes, um terço. Não é só. Em
Miami, os serviços públicos funcionam. Os parques são bem cuidados. Os pedestres são respeitados no trânsito. Se a pessoa
mora numa região central, dá para fazer tudo a pé ou de bicicleta. A sensação de segurança permite que se caminhe à
noite, de frente para o mar, sem o pavor típico experimentado por quem vive em uma grande cidade brasileira. As escolas
públicas são boas. Faz calor boa parte do ano. E Miami é perto de tudo. Até do Brasil. Para São Paulo, são oito horas de
voo. Nova York, menos de três. Havana, a capital cubana, 40 minutos.
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A maior deficiência de Miami, e que rendia críticas severas mundo afora, era sua irrelevância cultural. Mas isso está
mudando. Se não é uma Paris ou uma Nova York, a região caminha para se tornar um centro cosmopolita. E parte dessa
transformação se deve à extensa comunidade latina. Antes vista com certo preconceito, agora ela se insere na sociedade
americana pela via mais nobre, a da arte e da cultura. Há seis meses, o antigo Miami Art Museum foi renomeado Pérez Art
Museum, depois de um aporte de US$ 40 milhões do bilionário cubano-americano Jorge Pérez. Há muito mais. No inverno, a
cidade respira cultura com a realização do Art Basel, reconhecido como um dos mais importantes eventos de arte
contemporânea do mundo. Inspirado por essas transformações, o jornal britânico ―The Guardian‖ classificou Miami como ―a
cidade mais excitante dos Estados Unidos‖, um elogio e tanto vindo de uma das publicações mais sisudas da Europa. ―Às
vezes, Miami parece estar seguindo a fórmula de Londres: especulação imobiliária + arte contemporânea + boom de
restaurantes + diversidade cultural = cidade global dinâmica‖, escreveu o crítico de arquitetura Rowan Moore, em artigo
recente.
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Uma comprovação definitiva dessa
tendência é o Design District, região
que concentra grifes como Cartier,
Louis Vuitton e Louboutin e que, nos
últimos anos, ganhou novas galerias,
estúdios e antiquários. Perto dali, o
bairro de Wynwood fez de suas ruas
uma grande galeria de arte alternativa,
ao exibir grafites do mundo inteiro,
inclusive do Brasil, presente com os
desenhos dos Gêmeos. O País
desempenha um papel relevante no
amadurecimento cultural da cidade.
Com uma galeria na Lincoln Road, em
Miami Beach, o pernambucano Romero
Britto foi um dos primeiros brasileiros a
se instalar na região e a fazer sucesso
entre americanos e latinos. Neste exato
momento, a arte brasileira está em
destaque na região. Até setembro, na
Galeria
Richard
Shack
do
ArtCenter/South Florida, está aberta à
visitação uma exposição da escultora e
pintora paulista Laura Vinci. ―Quando
vim para cá de vez, não havia uma
ligação relevante da cidade com a arte
e a cultura‖, afirma Paulo Bacchi, dono
da loja de móveis de luxo Artefacto,
com três endereços na Flórida e 11 no
Brasil. Bacchi trocou São Paulo pelos
Estados Unidos em 2002. Fez tanto
sucesso por lá que se tornou líder no
segmento de móveis de luxo na cidade.
―Hoje, Miami é cosmopolita.‖
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A presença maciça de brasileiros tem
forte impacto na Miami que surgiu nos últimos
anos. Graças a eles, os restaurantes
começaram a ficar abertos até mais tarde,
como acontece em São Paulo e no Rio de
Janeiro. Por causa do Brasil, muitas lojas
estimulam seus funcionários a aprender
algumas palavras em português. Em 2013,
755 mil turistas brasileiros desembarcaram
em Miami, segundo o órgão oficial de turismo
da cidade – um avanço de 9,5% em relação
ao ano anterior e de quase 20% sobre 2011.
Na Flórida como um todo, que abriga os
parques da Disney em Orlando, os brasileiros
correspondem ao maior contingente de
turistas estrangeiros, com 1,8 milhão de
visitantes no ano passado e um desembolso
total de R$ 5,7 bilhões no período. Isso
provocou um aumento nos investimentos das
companhias aéreas, interessadas na demanda
cada vez maior. Até o fim do ano, a Azul deve
inaugurar uma rota já utilizada pela Gol que
liga Campinas, no interior de São Paulo, a
Fort Lauderdale, a cerca de 40 quilômetros de
Miami, com tarifas promocionais a partir de
US$ 600. A American Airlines, que realiza
voos diretos partindo de várias capitais do
País, planeja fazer a mesma rota em breve.
No mundo dos negócios, os brasileiros
provocaram uma revolução, especialmente no
setor imobiliário.
O movimento começou depois que a
crise econômica de 2008 derrubou o preço
dos imóveis no mercado americano. Atraídas
pela ideia de pagar menos por uma casa de
veraneio em Miami do que por uma
propriedade no Rio ou em São Paulo, muitas
pessoas começaram a procurar apartamentos
para investir. Não por acaso, os brasileiros se
tornaram o terceiro maior grupo de
compradores de imóveis em Miami e
arredores. ―A procura é tanta que, nos
próximos dois anos, eles devem liderar esse
ranking‖, afirma Claudia Murad, sócia da
Unique Living Miami – Exit Realty Brickell.
Para atender à crescente demanda, os
serviços das corretoras se estenderam a
recepção nos aeroportos, reserva de
restaurantes, aluguel de carros e barcos e ao
cuidado das casas enquanto os proprietários
estão fora do país. No segmento de luxo, os
brasileiros
também
representam
fatia
importante. Projetado pela arquiteta pop star
Zaha Hadid, o One Thousand Museum, que
tem apartamentos cotados entre US$ 5
milhões e US$ 15 milhões, já vendeu 28% de
suas unidades a brasileiros, mais até do que
para americanos.
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No mundo dos negócios, os brasileiros provocaram uma revolução, especialmente no setor imobiliário. O movimento
começou depois que a crise econômica de 2008 derrubou o preço dos imóveis no mercado americano. Atraídas pela ideia de
pagar menos por uma casa de veraneio em Miami do que por uma propriedade no Rio ou em São Paulo, muitas pessoas
começaram a procurar apartamentos para investir. Não por acaso, os brasileiros se tornaram o terceiro maior grupo de
compradores de imóveis em Miami e arredores. ―A procura é tanta que, nos próximos dois anos, eles devem liderar esse
ranking‖, afirma Claudia Murad, sócia da Unique Living Miami – Exit Realty Brickell. Para atender à crescente demanda, os
serviços das corretoras se estenderam a recepção nos aeroportos, reserva de restaurantes, aluguel de carros e barcos e ao
cuidado das casas enquanto os proprietários estão fora do país. No segmento de luxo, os brasileiros também representam
fatia importante. Projetado pela arquiteta pop star Zaha Hadid, o One Thousand Museum, que tem apartamentos cotados
entre US$ 5 milhões e US$ 15 milhões, já vendeu 28% de suas unidades a brasileiros, mais até do que para americanos.
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REQUISITADO - O artista plástico
pernambucano Romero Britto foi
um dos primeiros brasileiros a se
instalar em Miami e fazer sucesso
entre os americanos
Há dez anos, a imobiliária Elite
International Realty recebia dois pedidos
por mês de brasileiros interessados em
se mudar para o sul da Flórida. Hoje são
duas consultas por dia – e de pessoas
que não querem baixar o padrão que
têm no Brasil. Dona de uma casa de
cinco suítes em Miami Beach, usada há
três anos como refúgio da família em
feriados prolongados, Cristiane Quitete
Nogueira, 44 anos, quer se mudar de
vez em 2015 com o marido, o
empresário aposentado Marco Antônio
Gomes Nogueira, 56, e a filha mais nova
do casal, Antônia, 5. ―Vou em busca de
mais qualidade de vida e segurança‖,
afirma. A questão da segurança é um fator importante na escolha de muitas pessoas. A psicóloga Taluana Cabral, 35 anos,
considerou três episódios de violência urbana sofridos por sua família em Santos para que decidisse pela mudança. ―Vivia
em estado de alerta‖, diz. ―Em Miami, tenho outro estilo de vida. Matriculei meus filhos numa escola pública de Key Biscayne
e faço quase tudo a pé.‖
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Outro atrativo para os brasileiros é o dinamismo típico da sociedade americana. Ao contrário do que acontece no Brasil,
montar um negócio nos Estados Unidos requer pouca burocracia. Para abrir uma empresa no ramo de logística, com
instalações físicas e alvará de funcionamento, o empresário Junior Amaral, 46 anos, precisou de apenas um mês em Miami.
Em São Paulo, chegou a esperar um ano e meio apenas por uma licença da prefeitura.
Os brasileiros também estão descobrindo que obter um visto de permanência é menos complicado do que se imagina.
Ainda que só a compra de um imóvel não garanta nenhum direito especial, empreendedores dispostos a investir a partir de
US$ 500 mil num negócio que gere emprego a americanos ou residentes permanentes legais conseguem um visto de
imigrante que, na maioria dos casos, se estende ao cônjuge e aos filhos menores de 21 anos.
As licenças de moradia para não imigrantes são boas opções para os estrangeiros que ambicionam fazer um período de
experiência nos Estados Unidos. Nesses casos, basta aos interessados se matricular em universidades e outras instituições
de ensino, inclusive escolas de idiomas. Nunca foi tão fácil morar em Miami. Será que está chegando a sua vez?
CHRIS DELBONI, nesta reportagem, foi Jornalista convidada e MARIANA QUERIOZ BARBOZA escreve periodicamente para
esta publicação. Revista ISTO É, Agosto de 2014.
Pai é insubstituível. E mãe, é peça de reposição? (MALU FONTES)
MUITOS dirão que se uma propaganda gerou polêmica e disse me disse, então ela é ótima, pois já gerou mídia
espontânea e isso é uma cereja no bolo para a publicidade do que quer que seja. Há, no entanto, quem defenda a tese de
que se uma publicidade precisa de explicação é porque não foi bem sucedida, já que tudo que precisa de explicação é
porque claro não está e isso é, sim, um problema. Pois bem, a campanha publicitária do dia dos pais de um dos mais
tradicionais shopping centers de Salvador atingiu em cheio as duas turmas: a que defende a primeira tese e a que
compartilha do segundo ponto de vista.
A campanha, estrelada pela atriz Júlia Rabello, do Porta dos Fundos, a princípio parece um primor de falta de sintonia
com os tempos de hoje, em que milhares de crianças são criadas exclusivamente por suas mães porque seus paizinhos
insubstituíveis simplesmente os abortaram. Sim, pois homem para abortar não precisa de procedimento nenhum, clínica
clandestina nenhuma. Simplesmente some quando a mulher lhe diz que está grávida. O mote da campanha é: ‗Pai.
Insubstituível‘. Ou seja, um primor para os garotinhos e garotinhas ainda muito novinhos que veem um outdoor desses
quando estão passando diante dele a pé ou vendo-a através da janela de um carro onde sempre é carregado por mamãe e
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nunca por papai ou da janela de um buzu lotado no colo de quem arranca as tripas todos os dias para ser pai e mãe. Não,
mas esse não é o problema da campanha, claro, pois a publicidade, e nada contra ela, não é dada a essas sutilezas diante
de criancinhas despaternalizadas. A questão aqui é a semiótica da coisa: que diabos faz ao lado dessa frase aquela mãe
loura sorridente ao lado daquele menino vestido de kimono e fazendo uma careta de constrangimento dentro de um
capacete de hóquei?
Ok, você entendeu. Palmas para a sua inteligência e perspicácia: as mães são essas tolas superprotetoras para quem o
filho pode até praticar esportes marciais, mas sem proteção na cabecinha para apanhar dos monstros filhos dos outros,
jamais. Ah, mas nem por isso venha chamar de burro quem não entendeu, pois para metade ou mais que isso de quem
olhou para a peça, parece, sim, faltar uma legenda explicativa. Como dizem os menos dotados de vocabulário, o que quer
dizer a ―mensagem‖? Esses têm uma segunda chance: recorrer à versão da campanha da TV, onde a mesma mãe
superprotetora aparece negociando na aula de esportes marciais condições mais apropriadas para que o filhinho querido
possa lutar sem se machucar.
A campanha (bem ou mal sucedida em resposta de público e crítica, vá lá saber...), sob o ponto de vista das mães e do
maniqueísmo patético que as classifica unilateralmente como superprotetoras e os pais como valentões que estimulam os
filhos a enfrentar os leões, parece ser um retorno ao passado, coisa lá dos anos 80, 90, quando, para combater um
comportamento errado se recorria a alguém vulnerável contra quem se descia o malho, transformando-o no exemplo do
que todos deveriam temer ser. Ou ninguém lembra que, para aconselhar motoristas a não beber e dirigir, ou a respeitar a
velocidade, via-se outdoors com pessoas em cadeira de rodas, representando a ameaça e o risco de ser um para ou
tetraplégico? O mote de fundo era: quer ficar assim, preso a uma cadeira de rodas? Então beba e corra.
Quem hoje faria uma campanha estúpida assim, onde para promover um bem se usaria a tragédia de um ser humano
como ameaça? Parece que em termos de compreensão dos papéis de pais e mães não se avançou muito. Semana passada,
um pai insubstituível destemido e longe de uma mãe superprotetora deu de olhos e um tigre arrancou o braço do filho. Foi
uma fatalidade e ninguém duvida. Mas serve para pensar: papéis esterotipados não servem para nada, a não ser, talvez,
para vender camisas masculinas no segundo domingo de agosto.
MALU FONTES é Doutora em Cultura pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), jornalista e professora de Jornalismo da mesma
Universidade. Jornal CORREIO, Agosto de 2014.
Ela e a taça de vinho (LUIZ FELIPE PONDÉ)
ELA parecia ansiosa em meio àquelas pessoas, mas era apenas desejo. Bebera muitas taças de vinho. Sabe-se, há
milênios, que a virtude de uma mulher depende do número de taças de vinho que bebe. Aliás, segundo relatos
genealógicos, os antigos praticavam um ritual bastante comum e que, segundo alguns especialistas, ainda é praticado hoje
em dia. O ritual, apesar de pouco sabermos de seus detalhes, implicava no uso da mulher como taça de vinho.
As mulheres quando tomam muitas taças de vinhos (não todas, como pessoa que sabe se comportar à mesa, sei que
nem todas são iguais, algumas são diferentes) sonham em ser elas mesmas usadas como taça de vinho. Alguns homens,
pouco informados, se perguntam, afinal, como uma mulher poderia ser usada como uma taça de vinho. A dúvida, antes de
tudo anatômica, revela uma profunda ignorância, antes de tudo, espiritual. Perguntas assim são como aquelas que,
normalmente, homens chatos fazem no final da noite, e que exigiriam respostas semelhantes a explicar a razão de Deus ter
criado o universo, sendo Ele todo poderoso e vivendo Ele muito bem em Sua solidão perfeita.
Já elas, nascem sabendo. Mas, muitas vezes, esse "saber" (como dizem os afetados teóricos pós-modernos pra se
referirem ao conhecimento) é mesmo da ordem inconsciente, não do inconsciente da mente, mas da pele. Esse "saber" é
aquele que torna úmido o coração entre as pernas. Outra forma de perceber esse desejo avassalador de ser usada como
taça de vinho é pelo olfato. Ela, seguramente, em meio a todas as palavras ditas ao vento, como é comum em ambientes
sociais cheios de gente inteligente, exala o odor típico de quando se quer misturar pele, saliva e vinho.
Certa feita, quando eu disse que a virtude de uma mulher dependia do número de taças de vinho que ela bebia, um
desses jovens trêmulos e muito magros, que gostam de pensar que superaram o machismo por alguma forma de desejo
inofensivo (ela sempre sabe que todo desejo que importa é ofensivo de alguma forma), me acusou de ser niilista. Por quê?
Simples. Porque eu negava a existência da virtude "em si" já que eu a reduzia, segundo ele, ao efeito da presença ou
ausência da quantidade de álcool no sangue.
Claro, poderia ter dito a ele que desde a filosofia grega cética, caras como Enesidemo (nascido em Creta no século 1º
antes de Cristo) ou Sexto Empírico (médico e filósofo grego que viveu entre Atenas, Alexandria e Roma entre os séculos 2 e
3 depois de Cristo) afirmavam que o comportamento de alguém nunca pode ser tomado como "verdadeiro" porque se ele
(ou ela) bebeu algo, o comportamento fica diferente. A dúvida cética aplicada a ela seria assim: afinal, quem é ela? A jovem
e muito compenetrada intelectual ou a deliciosa bêbada que sonha em ser usada como taça de vinho? Quem é "seu
verdadeiro ser"?
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Óbvio que nada disse ao jovem trêmulo porque, na verdade, ele provavelmente nada entenderia uma vez que tendo
ele já suposto que se pode desejar uma mulher "com respeito", isso significa que ele não conhece esse recôndito recanto da
alma feminina e sua irresistível vocação para fundamentar sua virtude no número de taças de vinho que bebe numa noite.
Mas, a verdadeira crítica do jovem trêmulo à minha afirmação era que eu estaria duvidando da capacidade feminina de
ser honesta "em si". Meu Deus, quanta cegueira num corpo tão magro. As meninas à nossa volta, todas já tendo tomado
algumas taças de vinho, imersas em pura misericórdia, sorriam pra mim pedindo que fosse piedoso. Escravo como sou da
virtude feminina máxima, sua beleza, cedi imediatamente ao impulso de me defender de tamanha absurda acusação de
duvidar da honestidade feminina "em si".
A verdade, aquela altura da noite, é que eu estava de fato fazendo uma ode a mais pura honestidade feminina em si: a
honestidade que vem diluída no número de taças de vinho que ela bebe. A prova máxima, e que no passado os homens
aprendiam desde jovens (hoje eles aprendem a ter medo das mulheres que os desejam), é que quando ela quer mentir, ela
não bebe nada.
LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel
Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de
vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). [email protected]. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO,
Agosto de 2014.
Baixinho (GREGORIO DUVIVIER)
QUANDO era pequeno, não imaginava que continuaria pequeno o resto da vida. "Come bastante pra crescer e ficar
bem alto", diziam. Comia com a voracidade de quem quer ter um metro e noventa. Perguntava: "Já estou crescendo?".
Ainda não estava.
Era o mais baixo dos meus amigos, mas estava comendo tanto que um dia ultrapassaria todos. Minha mãe, talvez
percebendo que a única coisa que esse mito estava gerando era obesidade, confessou: "Gregório, não importa o que
aconteça, você nunca vai passar de um metro e setenta". Não importa o que aconteça. Eu estava amaldiçoado. Carregava
nas costas o peso do futuro. Chorei por horas, talvez dias, embora possam ter sido só alguns minutos. Queria ser goleiro da
Holanda ou detetive da Scotland Yard, profissões de gente alta.
"Talvez eu tenha que me contentar com a ginástica olímpica." E chorei mais um pouquinho. Quando via um baixinho,
batia uma tristeza profunda de lembrar do futuro. Era como aquelas propagandas que diziam: não percam, domingo, no
Faustão'... Não! O domingo vai chegar! E o "Faustão" também! A vida é melhor sem saber disso. Até que cresci - não muito,
mas cresci. Estacionei no 1,69 m, com sensação térmica de 1,70 m - o cabelo despenteado ajuda a chegar lá e até hoje
checo se a maturidade não me rendeu algum centímetro a mais.
Os amigos desfavorecidos verticalmente me ajudam a superar. Antonio Prata tem, na ponta da língua, uma lista de
baixinhos ilustres, que vão de Millôr Fernandes a Bono Vox, passando por Woody Allen, Al Pacino e, claro, Romário, antena
da raça baixinha. Isso conforta. Os baixinhos engrandecem a causa. A não ser pelo Bono Vox, que envergonha a classe e
usa salto embutido. Tudo tem limites. Às vezes gosto de alguém sem saber por que, e depois percebo: é baixinho. Quando
vejo um de nós, aceno com a cabeça como quem diz: estamos juntos.
Odiamos shows em pé. Ainda comemos como quem um dia quis crescer. Nunca vamos ser goleiros ou detetives da
Scotland Yard. Mas nos resta a simplicidade de quem olha o mundo de baixo pra cima, além do conforto em cadeiras da
classe econômica - e da propensão para a ginástica olímpica.
GREGÓRIO DUVIVIER é ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos. Jornal FOLHA DE
SÃO PAULO, Agosto de 2014.
Pelo direito de ser mãe (CRISTIANE SEGATTO)
Uma lei de 2009 determina que os planos de saúde ofereçam tratamento de reprodução assistida. Quando será
cumprida?
QUEM passar pela Avenida Paulista no sábado (9) ao meio-dia verá uma manifestação diferente. Nada de black blocs,
professores ou metroviários. Desta vez, o recado será dado por cinquenta carrinhos de bebê. Todos vazios.
É uma forma de expressar a ausência sentida por toda mulher desrespeitada no seu direito de ser mãe. Desejar um
bebê e não conseguir trazê-lo ao mundo ou criá-lo costuma ser uma experiência devastadora. Uma agressão capaz de
desestabilizar a mais forte das criaturas. Há pelo menos três formas de preencher o vazio provocado pela infertilidade: pela
conscientização de que a vida não é só a maternidade, pela adoção de uma criança ou pelas técnicas de reprodução
assistida. Essa é uma decisão muito pessoal. Qualquer que seja ela, deve ser respeitada.
Algumas mulheres podem se realizar plenamente e descobrir outras fontes de prazer e realização pessoal quando
desistem de gerar um filho. Muitos casais optam pela adoção e protagonizam belíssimas histórias de encontro e
transformação. São os persistentes que passam anos numa fila cruel que, segundo relatos recentes, continua tão
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burocrática quanto nas últimas décadas. Por fim, há os casais inférteis que desejam gerar seus próprios filhos. Não fazem
nada além de seguir um dos mais fortes chamados da natureza, aquele que impulsiona cada ser vivo a passar seus genes
adiante e contribuir para a sobrevivência da espécie.
Nesse grupo, existem duas categorias: os que podem pagar por um tratamento de reprodução assistida e os que
dependem do SUS ou dos planos de saúde. Quem pode pagar tem algum domínio sobre a situação. Pode escolher um bom
médico numa área difícil, cheia de falsas promessas e interesses comerciais, e arcar com as despesas de tratamentos que
costumam ser longos, caros e penosos – tanto no aspecto físico quanto emocional.
Quem não pode pagar batalha por uma das raras vagas para tratamento de reprodução assistida oferecidas pelo SUS.
Ou recorre aos planos de saúde, cada vez mais especializados em fugir de suas obrigações. Desde 2009, a Lei 11.935
determina que os convênios ofereçam tratamentos de infertilidade. É mais uma lei que não pegou. Em 2010, a Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS) lançou uma resolução normativa que desobriga os planos de saúde a pagar
inseminação artificial e todas as outras técnicas de reprodução assistida.
―A ANS excluiu os tratamentos de reprodução assistida do seu rol de procedimentos assim como os tratamentos não
reconhecidos pela ciência, os procedimentos não-éticos e as cirurgias experimentais‖, afirma o médico Newton Busso, da
Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia.
Busso encabeça o projeto ―Tratamento de infertilidade para todos‖ e a manifestação da Avenida Paulista. Antes dela,
haverá apresentações e debates com a presença de entidades médicas, representantes da OAB e dos deputados federais
Mara Gabrilli (PSDB-SP) e Eleuses Paiva (PSD-SP). O evento acontece a partir das 8h30, no Teatro Gazeta, com entrada
gratuita. A programação completa está em https://www.facebook.com/tratamentodeinfertilidadeparatodos.
A infertilidade é um problema mais comum do que se imagina. Um em cada cinco casais não consegue gerar filhos sem
a ajuda da medicina. Aos 36 anos, Fabiola Rocha e o marido estão entre eles. Tentam engravidar há quatro anos. O tempo
passa, as chances diminuem e nenhuma porta se abre para que possam ser atendidos no SUS ou pelo plano de saúde.
Fabiola chora ao contar que chegou a sugerir ao marido que ele se casasse com outra mulher que pudesse lhe dar filhos.
Ele não aceitou. ―A gente vai vencer‖, disse a ela.
Fabiola quer vencer, mas não encontra apoio algum. ―A gente não vê a luz‖, diz. A pressão de familiares e amigos pela
chegada do bebê limita a vida social. Onde quer que Fabiola vá sempre há uma pessoa inconveniente perguntando se ela não
pensa em engravidar. Pensa e muito. Corre atrás, telefona, vasculha a internet, mas não encontra nenhum tratamento
gratuito ou acessível. É mais um direito fundamental que o Brasil nega. ―Não me sinto cidadã. Sinto um descaso tremendo‖.
Por quanto tempo Fabiola empurrará um carrinho vazio?
CRISTIANE SEGATTO é Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve
sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Revista ÉPOCA, Agosto de
2014.
Brincar de faz-de-conta (ROSELY SAYÃO)
CINCO fotos de situações ocorridas nos últimos dias dão para fazer uma página de um álbum que pode ter o título
"Retratos da Vida".
Foto 1: Uma mulher joga o filho de dois anos contra a parede, por ficar irritada com o fato de ele mexer em seu
aparelho celular sem permissão. O garoto morreu. Foto 2: Um homem é o principal suspeito de matar o filho de dois anos
com golpes de jiu-jitsu durante o banho do garoto. Foto 3: Crianças entre dois e três anos são encontradas na creche presas
às cadeiras por lençóis e fraldas, porque a responsável saíra para comprar créditos para seu celular. Foto 4: Um vídeo na
internet mostra uma crianças entre dois e três anos passeando pelo parapeito da janela de um apartamento situado mais ou
menos no décimo andar do prédio. Foto 5: Um garoto de 11 anos perde um braço por ter se aproximado demais da jaula de
um tigre para provocá-lo durante um passeio ao zoológico.
Todo os comentários sobre as cinco notícias postados na rede têm algo em comum: culpam os pais dessas crianças.
Mas será mesmo que esses pais são os únicos responsáveis pelos fatos ocorridos, seja por problemas com drogas, mentais
ou de descaso com os filhos? Convido você, caro leitor, a refletir também sobre o contexto social e cultural de nosso entorno
na atualidade, e a entender por que cada um de nós está implicado nessas fotos.
Quando uma criança dá trabalho, consideramos que ela tem algum problema. Levamos a criança a médicos das mais
variadas especialidades, a psicólogos, a psicopedagogos, etc. Enfim, a qualquer tipo de profissional que possa dar um jeito
nela. Cuidamos da criança mais ou menos como cuidamos de um carro: quando ele quebra, levamos à oficina mecânica.
Vivemos tão intensamente nossa própria vida, que as crianças não podem nos dar trabalho algum. Queremos apenas
desfrutar das crianças, não nos ocuparmos com elas!
Nossa sociedade adulta, infantilizada, adora brincar de faz-de-conta: fazemos de conta que cuidamos muito bem de
nossas crianças. Criamos leis contra a publicidade infantil e contra a palmada, equipamos nossos carros com travas de porta
e cadeirinhas especiais para o transporte, as janelas de casa são protegidas por redes, etc. Entretanto, cresce o número de
crianças esquecidas em carros, nas escolas, deixadas em casa sozinhas. Aumenta o índice de crianças obesas. Crianças
maiores têm sofrido mais acidentes, porque não sabem fazer avaliação de risco das situações que exploram. Esses são
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alguns exemplos dos efeitos que o brincar de "faz-de-conta que cuidamos de nossas crianças" produz. Achamos melhor
pensar que os pais dessas crianças, e apenas eles, são responsáveis e/ou culpados por tudo o que acontece com elas, não
é? Criança apresenta algum problema na escola? Melhor chamar os pais. Criança entra em uma situação perigosa, de risco?
Melhor avisar os pais.
As cenas registradas em vídeos por pessoas que transitavam pelo zoológico enquanto o garoto de 11 anos desafiava a
morte sem saber são exemplares para nos mostrar como as crianças não nos afetam. Por que ninguém tirou o garoto de lá?
Por que apenas avisar o pai ou dizer "cuidado aí, garoto" deu a sensação de dever cumprido? Todas as crianças são
responsabilidade de cada um de nós. Elas são o nosso futuro. E serão o futuro, mas antes precisam sobreviver a nós.
ROSELY SAYÃO é psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no
ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Agosto de 2014.
Depois da Flip (CONTARDO CALLIGARIS)
PASSEI o fim de semana em Paraty, na Flip. Fora o cuscuz de tapioca e o bolo de aipim, que são vendidos pelas ruas
da cidade, o que não esquecerei da Flip deste ano?
1) O encontro com Francisco Lellis, que eu não via há quase 30 anos. Lellis, historiador e cozinheiro, lançou em Paraty,
no Senac, um bonito livro de história da gastronomia, escrito com André Boccato, jornalista e também cozinheiro, "Os
Banquetes do Imperador, Menus Colecionados por Dom Pedro 2º" (Senac). Lellis foi meu primeiro (e único) professor de
português, em Paris (onde ele continua morando). Ele me dava aulas particulares na época de minhas primeiras viagens ao
Brasil, nos anos 1980, e me transmitiu um carinho pela língua portuguesa sem o qual nunca eu teria chegado a gostar da
língua que hoje me parece minha.
2) No fim da Flip, um amigo me perguntou qual seria, ao meu ver, o livro mais duradouro desta safra. Às vezes, o
efêmero é tão importante quanto o duradouro (nas relações amorosas, a duração não é garantia de qualidade). Essa
reserva feita, na safra deste ano, o livro que, ao meu ver, mais durará será "Longe da Árvore", de Andrew Solomon
(Companhia das Letras), que é uma extraordinária reflexão sobre nossa capacidade (ou incapacidade) de aceitar que nossos
filhos sejam diferentes de nós.
Valorizamos a diferença, mas é difícil dizer o quanto toleramos que nossos rebentos não correspondam às nossas
expectativas. Na volta de Paraty, li a notícia de um casal australiano que recorreu a uma barriga de aluguel tailandesa; a
mãe de aluguel teve gêmeos, um dos quais com síndrome de Down; o casal trouxe de volta para a Austrália só a menina,
que era "normal" (http://migre.me/kS6jk).
Fui para a Flip para um bate-papo na Casa Folha; o título previsto era: "Desejo, Obediência e Rebeldia". De fato,
prevaleceu a vontade de conversar livremente. Um tema acabou sendo, justamente, a dificuldade em aceitar que os filhos
sejam "seres sexuados" (mais "sexuados" do que a gente?).
Por que aceitamos, cada vez mais, que filhos e filhas tragam namoradas e namorados para casa, inclusive para dormir?
Será que o pretexto da segurança é a única razão de nossa "permissividade"? Há outra hipótese. Talvez a gente encoraje
nossos adolescentes a viver paródias de casamentos como um jeito de conter e normalizar a vida sexual deles: vivam
"casados" na casa dos pais, talvez, assim, vocês não sejam tentados por sexualidades furiosas e "animadas" além da conta.
Enfim, para desenvolver o tema do bate-papo, eu tinha preparado algumas ideias. Menciono duas, para não perdê-las.
1) Desejar, hoje, parece ser sempre bom. E não desejar seria uma espécie de pecado mortal. Isso, talvez, porque a
insatisfação crônica do desejo é o que temos de melhor contra a finitude da vida. Se eu parar de desejar (qualquer coisa - o
que importa é que o desejo não se apague), o que me protegerá da morte? Em nome de que pedirei mais tempo de vida?
Meditar sobre a brevidade da vida e a proximidade da morte (exercício aconselhado até dois séculos atrás) saiu de moda.
Claro, a brevidade da vida continua igual: evitamos apenas a meditação sobre ela.
2) O desejo está na rebeldia ou na obediência? Faz meio século que vivemos uma tremenda valorização da rebeldia. É
como se, em nome do desejo, só fosse possível se rebelar; ou como se houvesse desejo só na transgressão - aliás, como se
a transgressão fosse a prova de que ainda estamos desejando. Curiosamente, há muitos casos em que a obediência é uma
condição necessária para realizar o desejo da gente. Primeiro, é possível que alguém tenha o desejo de obedecer. Segundo,
obedecer a um terceiro pode ser necessário para a gente realizar um desejo que, sem isso, a gente não se permitiria (a
obediência, nesse caso, funciona como uma autorização e uma "desculpa").
A grande questão da psicologia social desde os anos 1950 pode ser resumida assim: quem pratica o horror em nome
de uma regra, será que ele gosta de obedecer e está disposto a fazer qualquer coisa para satisfazer seu desejo de
obedecer? Ou será que ele obedece à regra porque a regra é o pretexto que o autoriza a praticar o horror?
A questão se aplica a qualquer um que pratica o horror em nome de uma regra --do guarda de campo de concentração até
o pequeno funcionário de uma repartição pública que maltrata a velhinha que está na fila desde as primeiras horas do dia.
CONTARDO CALLIGARIS, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New
School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade
e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Agosto de 2014.
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A paz é o que importa (ROBERTO LIVIANU E LAILA SHUKAIR)
A HUMANIDADE depositou no pacto de criação da ONU as suas melhores esperanças de construção de um
instrumento internacional que pudesse garantir paz aos povos depois de uma guerra que deixou em toda a parte rastros de
sangue de milhões de seres humanos. Percebe-se claramente que, no entanto, depois de quase 70 anos desde sua criação,
o sonho de paz é longínquo - o mundo assiste impotente e atônito a um grave momento de conflito entre israelenses e
palestinos.
Apesar do Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz da ONU, baseado na cultura de paz por meio da educação, da
economia sustentável, do desenvolvimento social, entre outros objetivos, é sabido que mudanças de cultura acontecem ao
longo de gerações. Mesmo assim, como promotores de Justiça, sempre tivemos clareza acerca dos contornos de nosso
papel de defesa da sociedade, que, nos termos do preâmbulo da Constituição Federal, deve ser comprometida na ordem
interna e na internacional com a solução pacífica das controvérsias.
Nesse contexto, por exemplo, vemos o Código Penal não como instrumento legal de vingança da sociedade, mas como
lei reguladora da vida social, definindo crimes e penas com o objetivo de promover a paz social. O promotor de Justiça não
deve ser um acusador frio que vê o criminoso como inimigo, mas um sensível, humano e criterioso defensor de toda a
sociedade que busca aplicar a lei na sua exata medida.
Cremos na mediação para resolver conflitos e, por isso, pensamos ser positiva a ideia da Justiça restaurativa, com seus
métodos que visam cerzir a parte esgarçada do tecido social chamando a própria comunidade para facilitar o processo de
recomposição dos danos e o próprio diálogo entre agressor e agredido. Cultura de paz são todas as pequenas ações
cotidianas, é uma forma de comunicação que permite sempre que um escute o outro, é uma escuta qualificada e imparcial e
uma maneira diferente de lidar com os inexoráveis conflitos.
Cremos na universalização dos direitos humanos, na necessidade do cultivo de um sentimento universal de
pertencimento ao planeta, em um mundo ideal sem fronteiras onde compomos uma única e grande família, com
compromisso existencial perante as futuras gerações, com a necessidade de sobrevivência na Terra e com a lapidação de
uma nova consciência nos próximos séculos.
Consideramos imprescindível a difusão da cultura de paz e, por isso, nós, uma palestina e um judeu, de braços dados,
idealizamos e lideramos no domingo retrasado (27/7) no parque Ibirapuera uma caminhada pacifista e apartidária. É o ecoar
de um grito para que o mundo ouça, multiplique e produza pressão em prol da intervenção pela paz. Para estimular outras
pessoas a gritar também. Para que as grandes potências saiam da inércia e para que vença o sentido humanitário da vida, e
não interesses políticos e econômicos.
Que prevaleça a paz entre os povos e que ela se restabeleça em especial em Israel e nos territórios palestinos. Que a
tolerância, o respeito pela vida, a humildade e o entendimento falem mais alto. Que o ser humano seja sempre o eixo
central de preocupação da civilização, já que somos todos filhos de Abraão!
ROBERTO LIVIANU, promotor de Justiça em São Paulo, é presidente do Movimento do Ministério Público Democrático. LAILA
SHUKAIR, promotora de Justiça em São Paulo, é tesoureira do Movimento do Ministério Público Democrático. Jornal FOLHA DE
SÃO PAULO, Agosto de 2014.
Falta de transparência na saúde paulista (FAUSTO PEREIRA DOS SANTOS)
DESDE que a Santa Casa de São Paulo suspendeu abrupta e temporariamente o atendimento a emergências, ganhou
dimensão pública a discussão sobre o financiamento dos hospitais filantrópicos. O SUS (Sistema Único de Saúde) é gerido e
financiado pela União, Estados e municípios. Ao governo federal cabe formular e pactuar as políticas públicas e financiar
grande parte das ações e dos serviços de saúde num processo compartilhado de responsabilidades.
No que se refere às Santas Casas e hospitais filantrópicos, o Ministério da Saúde transfere os recursos para o gestor
responsável (Estado ou município) por meio de contrato, para que efetue os repasses aos estabelecimentos de saúde. O
recurso federal transferido é composto pela produção de serviços, que tem a tabela do SUS como referência, e por
incentivos diversos que aumentam substancialmente o volume de transferências.
Atualmente, 50% dos valores transferidos para Estados e municípios já não é mais pela tabela SUS, mas por incentivos
e outras modalidades que priorizam a qualidade. Ao contrário do afirmado pelo secretário da Saúde do Estado de São Paulo
em artigo publicado nesta Folha, o Ministério da Saúde transferiu R$ 417,7 milhões para a Secretaria da Saúde entre
janeiro 2013 e maio de 2014 para que fossem repassados à Santa Casa de São Paulo. Entretanto, segundo dados da própria
secretaria, confirmados pelo provedor da Santa Casa, R$ 74 milhões não chegaram ao seu destino.
As explicações apresentadas pelo governo estadual demonstram a decisão de não utilizar a totalidade dos repasses
pela União para o financiamento da Santa Casa, já que os recursos que deveriam incrementar os valores recebidos por
produção foram descontados e não acrescidos na forma de incentivos. Assim, recursos novos que visavam melhorar o
financiamento do hospital não foram alocados na instituição. Se o gestor estadual tomou a decisão de realocar esse recurso
para outra finalidade, deveria fazê-lo de forma transparente.
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Para além dessas contradições, temos buscado contribuir no enfrentamento da crise da Santa Casa. Indicamos o
técnico que vai compor a equipe de auditoria junto ao hospital. Estamos apoiando a negociação da instituição com o BNDES.
Outra iniciativa do governo federal foi a criação do Programa de Fortalecimento das Santas Casas (PROSUS), que ajuda a
zerar a dívida tributária dessas instituições. Ao todo, 261 hospitais já enviaram propostas de adesão ao programa. Também
repassaremos às Santas Casas neste ano R$ 2,4 bilhões de recursos adicionais como incentivo à contratualização com o
SUS.
Por essas e por outras razões, estranhamos o tom utilizado pelo secretário da Saúde do Estado de São Paulo, que
desqualifica a provedoria - e a sua gestão - e levanta suspeição sobre os valores repassados pelo ministério, buscando
estabelecer um embate público, sem dar transparência ao uso do recurso federal transferido para o Estado. Trazer o debate
para o ringue da disputa eleitoral não contribuirá para a solução do problema. O Ministério da Saúde aguarda com
serenidade o início da auditoria proposta pela secretaria estadual da Saúde e continuará envidando esforços para garantir o
bom funcionamento da Santa Casa de São Paulo.
FAUSTO PEREIRA DOS SANTOS, 53, sanitarista, é secretário de atenção à saúde do Ministério da Saúde. Foi diretor-presidente
da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar (2003-2010). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Agosto de 2014.
Judaísmo não é sionismo (BRENO ALTMAN)
O PRESIDENTE da Confederação Israelita do Brasil, Claudio Lottenberg, publicou nestaFolha um artigo instigante. O
título embute uma premissa fundamental: "Antissionismo é antissemitismo". Trata-se de conveniente cláusula para
interdição do debate: não seria possível confrontar as ideias de Theodore Herzl sem se confundir com os que levaram seis
milhões de judeus ao extermínio.
Tal escudo moral, amparado na vitimização, resvala para o cinismo. Sucessivos governos sionistas, afinal,
transformaram Israel em país ocupante de territórios alheios, impedindo a soberania de outro povo, o palestino. Os
requintes de brutalidade para manter essa dominação colonial, nos últimos anos, ofendem a comunidade internacional. O
álibi do Holocausto, nessas circunstâncias, constitui insulto à humanidade e à memória judaica.
Lottenberg nem sequer se refere ao massacre de Gaza, mesmo diante dos corpos de mulheres e de crianças. Prefere
apresentar versão edulcorada do sionismo, que seria "a expressão moderna da autodeterminação nacional judaica". Não faz
qualquer questão de se diferenciar dos bandos mais reacionários, como o Likud de Binyamin Netanyahu. O autor vai ainda
mais longe. Para ele, os judeus "definem-se por uma religião (o judaísmo), uma língua (o hebraico) e uma terra (Israel)".
De uma penada, expurgou, por exemplo, os judeus que são ateus, aqueles cuja língua é a do país no qual vivem e os que
não consideram primordial a existência de Israel.
Atualmente hegemônico entre os judeus, o sionismo é apenas uma corrente de opinião, que se caracteriza por
abordagem nacionalista. Não equivale a eventual código histórico-cultural dos povos judeus. Trata-se tão somente de uma
orientação político-ideológica fundida à religião e ao Estado. O epicentro de seu discurso sempre foi a criação de uma "pátria
judaica". Vários dos fundadores do sionismo eram agnósticos, mas selaram aliança com chefes religiosos para reforçar seu
poderio, ainda que às custas de construir o Estado de Israel como entidade confessional.
Ao contrário da autodeterminação dos negros na África do Sul pós-Mandela, forjando uma república laica e não racial,
o nacionalismo sionista pressupõe supremacia judaica e religião estatal. Essa concepção levou a uma nação com tripla
personalidade: democracia para judeus, cidadania de segunda classe para árabes-israelenses e regime de apartheid para
palestinos dos territórios ocupados. Nem todos os sionistas, é verdade, são defensores do colonialismo. Muitos, como o
próprio Lottenberg, são partidários da solução dos dois Estados e da retirada para as fronteiras anteriores a 1967. Constitui
manobra repulsiva, porém, afirmar que seja antissemitismo a contraposição ao sionismo. Essa é a lógica que dirigentes
sionistas sempre quiseram impor aos críticos da política belicista e expansionista de Israel.
Não é ser antissemita negar aos grupos dominantes do sionismo o direito de cometer crimes de limpeza étnica,
discriminação e agressão armada contra o povo palestino. Não são definitivamente antissemitas os judeus que, honrando
longa história de participação nas lutas pela emancipação dos povos e pela paz, se apresentam para combater a doutrina
supremacista que rege o Estado de Israel.
BRENO ALTMAN, 52, jornalista, é diretor do site Opera Mundi. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Agosto de 2014.
Pagamento no cartão deve ter preço diferenciado? NÃO
A conta não pode ficar para o consumidor (JULIANA PEREIRA DA SILVA)
NESTA semana, o Senado aprovou o projeto de decreto legislativo 31/2013, do senador Roberto Requião (PMDB-PR),
que busca revogar a resolução 34/1989 do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, que proíbe o comerciante de
estabelecer diferença de preço de venda quando o pagamento ocorrer por meio de cartão de crédito.
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A proposta ainda seguirá para a Câmara dos Deputados e, se aprovada, mudará muito pouco porque o conselho foi
extinto em 1991, após a criação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, e porque esse entendimento foi
recepcionado pelos órgãos de defesa do consumidor, com base nos direitos e garantias previstos no Código de Defesa do
Consumidor, sancionado um ano depois da resolução 34.
De toda forma, o projeto trouxe à tona a discussão da diferenciação de preço para pagamento em dinheiro ou cartão.
Se o comerciante pode cobrar do consumidor que paga com cartão de crédito ou de débito um "extra", por que não
conceder um desconto a quem paga em dinheiro? O tema é complexo e tem nuances sociais e econômicas. Há argumentos,
pareceres e jurisprudência para todos os lados. Também não há consenso em vários outros países, tampouco um modelo
que possa simplesmente ser importado.
Permitir a cobrança de preço diferenciado tem preocupado todos os órgãos de defesa do consumidor. O comércio alega
que o modelo atual é injusto porque os custos das operações com cartões são repassados aos preços de forma linear,
independentemente do meio de pagamento. A diferenciação permitiria a diminuição dos custos envolvidos e maior
competição entre os meios de pagamentos, o que poderia beneficiar o consumidor. Não há, entretanto, garantias de
diminuição de preços, e corre-se o risco de acontecer justamente o contrário.
Não pauto essa reflexão sob a perspectiva da economia ou da concorrência, mas, sim, pela realidade da vida dos
consumidores brasileiros. Em que pese a legítima insatisfação do comércio com os custos e as altas taxas de desconto
cobradas pelas instituições financeiras nas operações com cartões, não parece razoável resolver uma questão complexa de
forma tão simplista, transferindo todo esse custo à parte mais fraca da relação, o consumidor. Um custo que ninguém sabe
ao certo com precisão. Há quem diga 4%, outros 5%, e já quem defenda 8% sobre o preço de venda.
No dia a dia, consumidor e vendedor acordam prazos e descontos, de acordo com a capacidade e disponibilidade de
pagamento. Trata-se da boa e velha pechincha, da livre negociação individual. Não é dessa situação que estamos falando.
Nos últimos anos, o brasileiro foi incentivado a aderir ao "dinheiro de plástico". Milhões de consumidores foram incluídos
financeiramente e o primeiro passo para materializar essa inclusão foi receber um cartão multifuncional. Eles agora pagam
anuidades e tarifas, foram incentivados a utilizá-lo para organizar seus gastos mensais, para pontuar nos seus respectivos
programas de fidelidade e ganhar benefícios.
Outro incentivo foi a questão da segurança. Não à toa, as campanhas publicitárias alardeiam que pagar com cartão,
além de prático, é mais seguro em caso de furtos ou assaltos - cartão se cancela, dinheiro não. O comerciante, por outro
lado, diminuiu o risco de inadimplência e aumentou as vendas.
Agora que a grande massa foi incluída e que o cartão não é mais um privilégio de poucos, vamos resolver o problema
da falta de concorrência e dos altos custos repassando esse preço ao consumidor? Ou será que somos ingênuos o suficiente
para acreditar que o consumidor médio brasileiro terá sempre dinheiro no bolso para poder se livrar do acréscimo no cartão?
JULIANA PEREIRA DA SILVA, 40, é secretária nacional do consumidor do Ministério da Justiça. Jornal FOLHA DE SÃO
PAULO, Agosto de 2014.
Pagamento no cartão deve ter preço diferenciado? SIM
Comércio e liberdade são inseparáveis (ABRAM SZAJMAN)
A POPULARIZAÇÃO dos cartões de crédito e de débito gerou benefícios para a sociedade, empresas e consumidores.
Transações feitas dessa forma são rastreáveis e representam incentivo à emissão de nota fiscais. Otimizam o fluxo de caixa
do estabelecimento comercial e eliminam o risco de inadimplência, pois são vendas garantidas, isentas, inclusive, do perigo
de se receber dinheiro falso ou cheque sem fundos.
Os cartões favorecem o planejamento financeiro da empresa varejista pela regularidade dos depósitos e pode funcionar
como atrativo para atrair mais clientes. Estes, por sua vez, ganham em segurança e podem aproveitar oportunidades
mesmo quando desprevenidos de numerário. Tudo isso posto, é preciso lembrar também que se o "dinheiro de plástico"
veio para ficar, ele não substitui outras formas de pagamento. Para pessoas menos favorecidas ou que ainda não estão
acostumadas com avanços tecnológicos, notas e moedas são, muitas vezes, o único meio disponível.
Como o comerciante, pelas razões expostas, é levado a aceitar os diferentes meios de pagamento, surge a questão do
preço a ser praticado em relação a cada um deles. No século passado, uma infeliz resolução do Conselho Nacional de Defesa
do Consumidor, de 1989, proibiu o varejista de diferenciar o preço da venda quando o pagamento ocorresse com cartão.
Mesmo naqueles tempos tenebrosos em que a inflação chegou a atingir 80% ao mês, o efeito da medida que visava
proteger o consumidor foi prejudicial a este: os preços acabaram unificados pelos valores cobrados no cartão, então cerca
de 20% mais elevados.
A medida, equivocada e tornada absolutamente anacrônica em razão da estabilidade de preços proporcionada pelo
Plano Real, permanece inexplicavelmente até hoje em vigor. Evoca o que ocorreu em passado remoto, quando um imposto
emergencial instituído na década de 1750 pelo marquês de Pombal, para financiar a reconstrução de Lisboa destruída por
um terremoto, continuava a ser cobrado no Brasil às vésperas da Proclamação da República. Os efeitos nefastos da
proibição de praticar preços diferenciados saltam à vista. O primeiro deles é o engessamento do comerciante, que deve ser
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livre para gerir o negócio e praticar preços compatíveis com seus custos ou, ainda, para estabelecer parcerias e promoções
em relação a este ou aquele produto ou serviço e respectivas formas de pagamento.
Como se sabe, as administradoras de cartão cobram taxas por vezes elevadas e estabelecem prazos dilatados para o
reembolso ao varejista. Caso este precise do dinheiro de imediato, terá de arcar com juros, cada vez mais elevados na
presente conjuntura do país. Outro custo a ser considerado é o aluguel da máquina para o uso do cartão. Assim, será o
consumidor o principal beneficiado caso a cobrança volte a ser diferenciada, permitindo ao lojista dar descontos para o
pagamento em dinheiro vivo, que não implica custos já citados para a modalidade cartão.
Em resumo, caso seja aprovado na Câmara dos Deputados o projeto de decreto legislativo que passou no Senado, o
Brasil terá eliminado mais uma ingerência indevida, que ignora um princípio básico: comércio e liberdade são irmãos
siameses, inseparáveis. O argumento contrário que se esboça, sobre a possibilidade de aumentarem os assaltos, é risível,
pois o drama da segurança pública ultrapassa a questão de se ter mais ou menos dinheiro na mão. Que o diga quem já
sofreu sequestro relâmpago ou teve o cartão clonado.
ABRAM SZAJMAN, 75, é presidente da Fecomercio SP (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São
Paulo). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Agosto de 2014.
Domingo em São Paulo (DRAUZIO VARELLA)
DOMINGO, assim que o dia clareia, gosto de correr pelo centro velho. Desço a Consolação, entro na Ipiranga, passo
pela agitação na porta da Love Story, viro à direita na Barão de Itapetininga e já estou no meio dos prédios mais
encantadores da cidade. Excluído o entra e sai da boate, as ruas se recuperam das extravagâncias do sábado à noite,
silenciosas e desertas.
Na praça da Sé, dou a volta na catedral, cruzo com os moradores da praça que formam fila para receber o café da
manhã que os voluntários lhes servem, com o pregador que fala das armadilhas de Satanás para meia dúzia de gatos
pingados, passo pelo casarão da Marquesa de Santos junto ao Pátio do Colégio, largo São Bento e viaduto Santa Efigênia.
Toda vez que atravesso o viaduto me vêm à cabeça, repetitivos como mantras, os versos trôpegos de Adoniran Barbosa:
"Venha ver, venha ver Eugênia, como ficou bonito o viaduto Santa Efigênia". Sigo pela rua do mesmo nome, paraíso dos
compradores de eletrônicos, na direção da Duque de Caxias e da antiga Estação Sorocabana, que hoje abriga a Sala São
Paulo e a Osesp, nossa orquestra sinfônica, expressão máxima da cultura paulista.
Em poucos minutos chego na Cracolândia, denominação abjeta, forjada para nos dar a impressão de que se trata de
uma excrescência incrustada na cidade sem fazer parte dela, como um tumor maligno que a polícia não consegue extirpar.
No último domingo, na esquina da alameda Cleveland com a rua Helvétia, homens e mulheres se aglomeravam maltrapilhos,
encardidos, com os cabelos desgrenhados e o cachimbo inseparável, seu bem maior. Alguns fumavam crack, outros
vagavam feito baratas tontas, inquietos, falando sozinhos, no meio da rua e do lixo acumulado. Outros, agachados entre os
companheiros, vasculhavam o chão atrás de migalhas das pedras que eventualmente saltam dos cachimbos incandescentes.
Dei a volta no largo Coração de Jesus, com a igreja e o colégio do mesmo nome, onde estudaram meu pai, meus tios e
primos, hoje sitiado pelo crack, e virei na Dino Bueno, paralela à alameda Cleveland. Um pouco à frente, uma fila maior do
que a da praça da Sé levava a uma porta em que distribuíam café com leite e pão com manteiga. Na esquina seguinte, um
homem descalço, tão alto quanto esquálido, de barba grisalha e rosto encarquilhado, atirava pedaços de pão para os
pombos que o rodeavam. Um deles pousou meio desequilibrado em seu ombro. Parecia São Francisco.
Depois do programa que a Prefeitura implantou na região, diminuiu o número de habitantes naquela esquina. Domingo
passado, no entanto, tive a impressão de que voltamos ao que era antes. Há meses não via tantos usuários reunidos. Entre
eles, contei cinco meninas em fase avançada de gravidez. Certamente haveria outras, em estágios mais precoces. Não
consigo me conformar como a cidade mais rica do país não se dá ao trabalho de armar uma barraca na esquina para
oferecer anticoncepcionais para essas meninas. Tenho certeza de que formariam fila. Elas não decidem ficar grávidas para
viver os mistérios da maternidade.
Existem anticoncepcionais administrados por via intramuscular que previnem gravidez por três meses. Há outros que
conseguem fazê-lo por mais tempo, quando implantados sob a pele. É uma iniquidade assistirmos impassíveis ao
nascimento dessas crianças e ao sofrimento das mães escravizadas pela dependência de cocaína, que engravidam porque
precisam vender o último bem que lhes restou. Que futuro aguarda bebês nascidos em condições tão trágicas?
A assim chamada cracolândia não é um corpo estranho que despencou do espaço sideral, numa vizinhança degradada.
Os que ali passam a vida vieram ao mundo e foram criados dentro de nossa ordem social. Na maioria das vezes, não foi o
crack que lhes desgraçou a existência. A pobreza, a falta de perspectivas e as iniquidades do ambiente em que cresceram é
que os conduziu à sarjeta. Negar às usuárias de crack o acesso aos métodos anticoncepcionais - direito garantido por lei
federal a todas as brasileiras -, é uma ignomínia que expõe a face mais perversa do moralismo hipócrita de nossa sociedade.
DRAUZIO VARELLA é médico cancerologista. Por 20 anos dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos
pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro 'Estação
Carandiru' (Companhia das Letras). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Junho de 2014.
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Uma questão de “equilíbrio” (SERGE HALIMI)
A expedição punitiva do Exército israelense em Gaza reativou uma das aspirações mais espontâneas do jornalismo
moderno: o direito à preguiça. Em termos mais profissionais, chamamos isso de “equilíbrio”. A rede de televisão
norte-americana de extrema-direita Fox News qualifica-se, não sem humor, como justa e equilibrad
A EXPEDIÇÃO punitiva do Exército israelense em Gaza reativou uma das aspirações mais espontâneas do jornalismo
moderno: o direito à preguiça. Em termos mais profissionais, chamamos isso de ―equilíbrio‖. A rede de televisão norteamericana de extrema-direita Fox News qualifica-se, não sem humor, como ―justa e equilibrada‖ (fair and balanced).
No caso do conflito do Oriente Médio, onde os erros não são partilhados igualmente, o ―equilíbrio‖ significa dar
vantagem à potência ocupante. Para a maioria dos jornalistas ocidentais, é também um meio de se proteger do fanatismo
dos destinatários de uma informação que poderia desagradar-lhes dando rapidamente palavra àqueles que irão tranquilizálos. Além de não observarmos esse mesmo tipo de preocupação em outras crises internacionais, como a da Ucrânia, por
exemplo (ler o artigo da pág. 16), o verdadeiro equilíbrio sofre por ao menos duas razões.
Primeiro porque, entre as imagens de uma carnificina prolongada em Gaza e as de um alerta aos tiros de mísseis numa
praia de Tel-Aviv, uma boa balança deveria se inclinar um pouco... Depois, porque alguns protagonistas, israelenses no caso
em questão, dispõem de comunicadores profissionais – entre os quais seu primeiro-ministro, que poderíamos acreditar que
foi formatado para a televisão norte-americana –, enquanto os outros só têm a oferecer para as mídias ocidentais o calvário
de seus civis.
No entanto, inspirar piedade não constitui uma arma política muito eficiente; mais vale controlar a narrativa dos
acontecimentos. Assim, há décadas explicam-nos que Israel ―responde‖ ou ―devolve‖. Esse pequeno Estado pacífico, mal
protegido, sem nenhum aliado poderoso, consegue, no entanto, ganhar sempre, às vezes sem nem sequer sofrer um
arranhão... Para que tal milagre ocorra, é necessário que cada enfrentamento comece no momento preciso em que Israel se
mostre como uma vítima estupefata da maldade que o atinge (um sequestro, um atentado, uma agressão, um assassinato).
É nesse terreno bem demarcado que se desenvolve em seguida a doutrina do ―equilíbrio‖. Um vai se indignar do envio de
mísseis contra populações civis; o outro objetará que a ―resposta‖ israelense foi bem mais assassina. Um crime de guerra
por todos os lados, com a bala no centro, em suma.
E assim nos esquecemos do resto, quer dizer, do essencial: a ocupação militar da Cisjordânia, o bloqueio econômico de
Gaza, a colonização crescente das terras. Desse modo, a informação contínua parece nunca ter tempo de ir fundo nesse tipo
de detalhe. Quantos de seus maiores consumidores sabem, por exemplo, que entre a Guerra dos Seis Dias e a do Iraque,
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ou seja, entre 1967 e 2003, mais de um terço das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas foram
transgredidas por um único Estado, Israel, e que frequentemente essas resoluções diziam respeito à colonização de
territórios palestinos?1 Mais vale dizer que um simples cessar-fogo em Gaza seria o mesmo que perpetuar uma violação
reconhecida do direito internacional.
Não podemos mais contar com Paris para lembrá-lo. Ao declarar, em 9 de julho, sem uma palavra para as dezenas de
vítimas civis palestinas, que cabia ao governo israelense ―tomar todas as medidas para proteger sua população diante das
ameaças‖, François Hollande abandonou qualquer aparência de equilíbrio, tornando-se o pequeno telegrafista da direita
israelense.
1 Ler “Deux poids, deux mesures” [Dois pesos, duas medidas], Le Monde Diplomatique, dez. 2002.
SERGE HALIMI é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França). Ilustração: Flavio Morais. Jornal LE MONDE
DIPLOMATIQUE BRASIL, Agosto de 2014.
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