max gallo jesus o homem que era deus

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MAX GALLO
JESUS
O HOMEM QUE ERA DEUS
TRADUZIDO DO FRANCÊS POR
ISABEL ST. AUBYN
ÍNDICE
LIVRO I
«Verdadeiramente este homem era Filho de Deus.»
PRIMEIRA PARTE
«Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» . . . . . . . .
13
SEGUNDA PARTE
«Ide depressa dizer aos seus discípulos que Ele ressuscitou
dos mortos.» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
31
TERCEIRA PARTE
«Eu sou a voz de quem grita no deserto… mas, no meio
de vós, está quem vós não conheceis. É aquele que vem
depois de mim, a quem eu não sou digno de desatar
a correia das sandálias.» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
51
QUARTA PARTE
«No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus;
e o Verbo era Deus… E o Verbo fez-se homem e veio habitar
connosco.
E nós contemplámos a sua glória, a glória que possui como
Filho Unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade.» . . . . . .
81
LIVRO II
«Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem crê em mim,
mesmo que tenha morrido, viverá.»
PRIMEIRA PARTE
«Em verdade, em verdade vos digo: vereis o Céu aberto
e os anjos de Deus subindo e descendo por meio do
Filho do Homem.» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
107
SEGUNDA PARTE
«O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão.» 145
TERCEIRA PARTE
«Disse-lhes Ele: ‘Porque temeis, homens de pouca fé?’ Então,
levantando-se, falou imperiosamente aos ventos e ao mar,
e sobreveio uma grande calma.
Os homens, admirados, diziam: ‘Quem é este, a quem até
o vento e o mar obedecem?’» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
167
QUARTA PARTE
«Ele chamou um menino, colocou-o no meio deles e disse:
‘Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as
criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu.’» . . . . . . .
189
QUINTA PARTE
«Depois os guardas voltaram aos sumos sacerdotes
e aos fariseus, que lhes perguntaram: ‘Porque é que não
o trouxestes?’ Os guardas responderam: ‘Nunca nenhum
homem falou assim!’» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
207
LIVRO III
«Agora a minha alma está perturbada. E que hei de Eu dizer? Pai,
salva-me desta hora? Mas precisamente para esta hora é que Eu vim!»
PRIMEIRA PARTE
«Assim, a partir desse dia, resolveram dar-lhe a morte.» . . . . .
247
SEGUNDA PARTE
«Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora.» . . . . . . . .
267
TERCEIRA PARTE
«Filhas de Jerusalém, não choreis por mim, chorai antes por
vós mesmas e pelos vossos filhos; pois virão dias em que se
dirá: ‘felizes as estéreis, os ventres que não geraram e os peitos
que não amamentaram’!». . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
283
PRIMEIRA PARTE
«Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?»
(Eli, Eli, lemá sabactháni)
Evangelho segundo São Mateus, XXVII, 46
1
E
u, Flávio, centurião de Roma, ouvi a voz daquele que Pilatos,
procurador de Judeia, chamara «Jesus de Nazaré, rei dos Judeus».
Ele quisera a frase escrita em latim, em grego, em aramaico, e
que fosse exposta no cimo da cruz em que este homem, este rei, ia
ser pregado.
Aos judeus que protestavam e gritavam que este rei não era o
seu rei, Pilatos respondera: «O que está escrito, está escrito.»
Era sexta-feira, 7 de abril, e o nosso imperador era Tibério,
sucessor do divino Augusto.
Tinham espetado três estacas, para lá das muralhas de Jerusalém, na estrada de Joppé, no cume do Gólgota.
Esta colina pedregosa era nua como um crânio calvo, fustigada
por um vento cortante que sopra do deserto, esmagada pelo sol
implacável como um enxame de flechas lançado por uma máquina
de guerra.
15
Não me recordo dos nomes – alguma vez os soube? – dos dois
homens que iam ser crucificados com Jesus de Nazaré.
Seriam dois ladrões ou dois rebeldes?
Ordenei aos meus legionários que fossem pregados nas duas
cruzes que se encontravam de um e outro lado da que se destinava
a esse judeu de Nazaré, cuja punição os Judeus haviam exigido.
Eu não apreciava as crucificações.
Assistira a algumas, ordenara outras até à exaustão.
Caminhara pela Galileia ao lado do legado da Síria, Varo. As
nossas duas legiões haviam esmagado a revolta, e havíamos crucificado dois mil Judeus, erguendo cruzes, em todas as colinas do país,
para que se espalhasse o terror, que soubessem como Roma castigava
os rebeldes.
Crucificar não era apenas matar com um gesto rápido e preciso,
a lâmina a rasgar o pescoço, o que eu fizera mil vezes; crucificar era
mostrar a morte aviltante para semear o terror.
E a multidão apavorada e atraída por este espetáculo cruel comprimia-se no Gólgota, enquanto os meus legionários, aplicando fortes marteladas, pregavam os dois ladrões às duas traves estiradas no
chão, em frente das estacas espetadas na terra. Os longos pregos
afiados enterravam-se nos pulsos. Outro, ainda mais comprido,
atravessaria os dois pés sobrepostos quando os corpos pregados nas
traves fossem erguidos com elas.
Depois, chegou a vez de Jesus de Nazaré.
Despiram-lhe a roupa. O corpo era todo ele uma chaga, pois
as tiras de couro chumbadas dos chicotes tinham-lhe lacerado a
carne. O homem não fora capaz de transportar a cruz desde a nossa
fortaleza Antónia até ao Gólgota.
16
Tive de escolher um homem no meio da multidão, ordenar-lhe que carregasse aquele fardo. E pareceu-me que o homem aceitou a provação como um favor.
Vi uma mulher enxugar com um pano branco o rosto de Jesus
de Nazaré, esfolado e coberto de suor.
Antes de começarem a pregá-lo, acenei para lhe oferecessem
um pouco do vinho misturado com mirra, que entorpece os corpos,
faz esquecer a morte que nos invade, alivia de algum modo a dor.
Ora, eu sabia como se morre na cruz. O corpo contorce-se.
O peso esmaga os pulmões. Surge a asfixia. Os músculos retesam-se, rasgam-se. Os condenados só podem apoiar-se numa espécie de
muleta – como um corno espetado na estaca. Que se introduz entre
as coxas. Os músculos dos braços e do torso podem relaxar um
pouco, mas o corno dilacera o corpo, gera uma nova dor. E a agonia
não tem fim.
Os dois ladrões tinham aceitado beber. Jesus de Nazaré recusou.
De início, pensei: é uma loucura escolher sentir a dor. Depois
procurei o olhar do homem que se comportava como um rei. Mas
ele tinha os olhos fechados e, com um gesto, ordenei aos legionários
que levantassem as traves, com os corpos pregados. E os soldados
puxaram pelas cordas, içando as traves, até ao momento em que,
deslizando ao longo da estaca erguida, os corpos crucificados encontraram o seu lugar, o corno entre as coxas.
Enquanto os içavam, os dois ladrões tinham tentado gritar,
pendurados como estavam pelas mãos pregadas. E Jesus de Nazaré
deixara descair a cabeça sobre o peito.
Desejei, por ele, que a morte se apressasse a levá-lo. O seu corpo
lacerado dizia que já sofrera o suficiente.
17
2
E
ra meio-dia dessa sexta-feira 7 de abril. Eu fixava o corpo sofredor de Jesus de Nazaré e tinha a impressão de que, por baixo
da minha pesada couraça, a minha pele escaldava, se fendia, enquanto
o céu escurecia, o vento começava a levantar-se, e me custava manter-me de pé, como se o solo que eu pisava tremesse, ameaçando
abrir-se, e eu fosse precipitar-me para o fundo de um abismo.
Em redor das cruzes, a multidão, dificilmente contida pelos
trinta legionários, congregava-se, como uma vaga sempre renovada,
vindo quebrar-se contra os escudos dos soldados, repelida pelos dardos e pelas lanças.
Eu não olhava para estes homens e mulheres de todas as condições, peregrinos ou mercadores, sacerdotes ou mendigos. Os meus
olhos não conseguiam desviar-se do rosto e do corpo de Jesus de
Nazaré, mas ouvia as vozes mordazes, cheias de ódio e sarcasmo,
gritando:
– Se és o rei dos Judeus, salva-te a ti mesmo.
– Se ele é o rei de Israel, que arranque os pregos e desça da cruz.
Então acreditaremos nele: está nas mãos de Deus, diz ele, garante
que Deus o ama, então Deus que o liberte. Chegou o momento!
Ele afirmou ser filho de Deus.
*
18
Estes ditos irónicos, estes insultos, eu recebia-os como chicotadas e apetecia-me gritar: «Deixem-no viver a sua morte.»
E de repente ouvi a voz de Jesus de Nazaré, a de um homem
extenuado, e contudo era clara:
– Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem – dizia ele.
E murmurei esta frase como se fosse minha.
Fechei os olhos. Quando voltei a abri-los, o céu estava ainda
mais escuro, e o vento soprava forte, provocando turbilhões de areia
cinzenta.
Um dos crucificados gritou:
– Se és filho de Deus, o rei, salva-te e salva-nos!
E, debruçado para a frente, esticando os braços, as mãos pregadas, o outro ladrão respondeu:
– Então não temes a Deus, tu, condenado como foste ao
mesmo suplício? Para nós, trata-se de justiça. Pagamos o preço dos
nossos crimes, mas ele, ele não fez nada de mal.
Depois, numa voz suplicante, acrescentou, voltando a cabeça
para aquele Jesus de Nazaré a quem também chamavam Cristos, o
Cristo, o enviado de Deus:
– Senhor, lembra-te de mim quando estiveres no teu reino.
E ouvi mais uma vez a voz de Jesus de Nazaré. Cheia de compaixão e de ternura. Jesus de Nazaré segredava ao rebelde arrependido, mas parecia falar ao meu ouvido.
Dizia: «Em verdade te digo, a partir de hoje estarás comigo no
Paraíso.»
Era quase noite, embora fossem apenas três horas da tarde.
Os legionários terminavam de partilhar entre eles o vestuário
dos crucificados.
19
A túnica de Jesus de Nazaré não tinha costuras, e achei-a à imagem da sua vida, unificada, e que fora para não a rasgar que recusara
o vinho misturado com mirra. Não quis ser impedido de conhecer
a morte, o fim do destino humano.
Vi mulheres que, quase de rastos, se tinham aproximado da
cruz, e agora choravam, ajoelhadas.
Imaginei que uma delas fosse a sua mãe, e no mesmo momento
ouvi a voz de Jesus de Nazaré que murmurava: «Mulher, está aqui
o teu filho», e vi de facto entre as mulheres um jovem de cabelo
encaracolado, e era a ele que Jesus de Nazaré dizia: «Está aqui a vossa
mãe.»
O solo estremeceu. E numa voz rouca, Jesus gritou «Eli Eli lema
sabachtani, Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?»
A angústia estrangulou-me, como no termo de uma batalha
perdida, quando receamos que o inimigo nos agarre pelos cabelos
e nos corte o pescoço.
Ele ainda disse: «Tenho sede.»
Ordenei a um legionário que mergulhasse uma esponja na
nossa reserva de posca, essa água tingida de vinho que sabia a vinagre. O soldado colocou a esponja embebida nessa beberagem na
ponta de uma lança, e humedeceu os lábios de Jesus de Nazaré.
Pareceu-me ouvi-lo dizer: «Pai, deposito o meu espírito nas tuas
mãos, está tudo consumado.»
Em seguida, o seu corpo retesou-se num grande grito e sucumbiu.
O vento uivava. As nuvens de areia atingiram o meu rosto, as
rajadas de vento rasgaram os véus, forçaram a multidão a afastar-se, deixando as mulheres ajoelhadas aos pés da cruz de Jesus de
Nazaré. Julguei que uma mão poderosa pesasse sobre a minha nuca,
obrigando-me a curvar-me, a enterrar a cabeça nos ombros. Tremia
20
como varas verdes; mas talvez fosse apenas o efeito dos abalos que
percorriam a terra, desfazendo os rochedos, fendendo o solo.
Murmurei:
– E se este homem era verdadeiramente filho de Deus?
21
3
O
lhei à minha volta como se alguém pudesse adivinhar a minha
perturbação, ouvir a frase que eu proferira e não ousava re-
petir.
Mas cada palavra palpitava dentro de mim como se eu tivesse
no peito outro coração, de pulsações tão rápidas, tão fortes, que
embatia contra os meus ossos, procurando libertar-se da prisão, deslizando pela minha garganta, forçando-me a abrir a boca, deixando-a
dizer, livre, em voz alta: «Este homem era o filho de Deus.»
Julguei que tivesse clamado estas palavras, mas não se encontrava ninguém ao pé de mim.
Os soldados, apoiados nas lanças, distribuíam entre eles as vestes dos crucificados.
A multidão retirara-se e à volta da cruz de Jesus de Nazaré restavam apenas silhuetas de homens e mulheres destroçados, elas ajoelhadas, os outros encostados ombro contra ombro, ou enlaçando-se,
e pareceu-me ouvir soluços.
Estava tão absorto nos meus pensamentos que não vi o jovem
de cabelo encaracolado, aquele a quem Jesus de Nazaré chamara
filho.
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