Arte doméstica: modos de morar em fins do século XIX no Rio de Janeiro e a casa de Rui Barbosa Marize Malta (Escola de Belas Artes / Universidade Federal do Rio de Janeiro) Nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, momento em que Rui Barbosa e sua família residiram na casa da rua São Clemente, as artes decorativas e aplicadas ocupavam lugar de destaque nos debates artísticos em diversos centros europeus e também no Brasil. Tal situação estava sendo motivada pela ideia do importante papel da arte no dia a dia da população, como uma forma de aprimoramento do estado de civilização das nações, com a “prerrogativa de aglutinar um vasto público, e, ao mesmo tempo, inserir a arte na vida cotidiana”1. Diferente da elitização com que sempre esteve relacionada, servindo a papas, reis e aristocratas, a arte passaria a estar depositada em cada matéria trivial, aplicada em várias superfícies banais, impregnada nos mais corriqueiros objetos. A arte estaria ao alcance das mãos e, assim, próxima das pessoas as mais comuns, podendo estabelecer uma relação de intimidade com cada uma delas. A partir da segunda metade do século XIX se considera que o modo de vida de uma burguesia urbana, tomado como norma, estabelece o programa da habitação e fundamenta as escolhas espaciais2. As exigências de higiene, conforto e bem-estar teriam que ser solucionadas em termos espaciais. Somado a isso e impulsionadas pela democratização de acesso às produções artísticas, de diversas modalidades, muitas famílias burguesas, ou tomando-as como modelo, depositaram na casa o lugar privilegiado para se desenvolver a educação estética de seus filhos e para exibir sua condição privilegiada e refinada de estar no mundo. Tudo aquilo que era mostrado em casa tinha o compromisso de dizer de seu dono e seria acessado visualmente por olhos treinados a perceberem detalhes e interpretarem gosto, status cultural, nível social, personalidade. No Brasil, as grandes casas de feição colonial foram sendo substituídas por palacetes, identificados, por sua vez, pela prática de se construir moradias mais luxuosas, em relação à dimensão, ao porte e à decoração, e de procurar demarcar um desejo de representar um estilo de vida diverso da ‘rusticidade’ colonial ou da amplitude espacial aristocrática, optando por um certo afrancesamento dos modos de morar. A casa passou a ter o compromisso de aparentar um novo status econômico e cultural, para além da posse da terra e da mão de obra escrava produtiva. Ela se cercava de luxo, de um luxo de gosto burguês. Termos como “bom gosto”, “aprazível”, “bem-estar” começaram a fazer parte do vocabulário da população de posses residente no Rio de Janeiro. A boa sociedade veio aprender a morar com estilo e a sentir necessidade de estar cercada por ambientes aprazíveis. Em 127 História da Vida Privada no Brasil 2, Katia de Queirós Mattoso afirma, a partir da imagem da sala de estar do Solar do Jambeiro3, em Niterói, RJ, datada do final do século XIX: “Os rústicos móveis coloniais foram substituídos por mobiliário de estilo, às vezes importado da Europa”4. O uso da locução adjetiva “de estilo” especifica um diferenciador à rusticidade habitual das casas e ajunta um significado qualitativo ao móvel, enfatizando a importância do estilo para a aquisição da imagem de um novo paradigma. Os elementos arquitetônicos, os móveis e os objetos deixaram de ser identificados apenas como formas operacionais para priorizarem valores estéticos e simbólicos e se tornaram destacados objetos presentes no dia a dia, ampliando suas representações e significações. No Brasil, até o século XIX, os móveis eram raros e genericamente muito simples, salvo em espaços religiosos e em alguns poucos sobrados aristocráticos. Contudo, no decorrer do século, a decoração de interiores não foi apenas esparsa coadjuvante na ambientação das casas brasileiras. A decoração assumiu papel principal nas cenas da vida doméstica5; as paredes receberam coberturas diferenciadas, os tetos se revestiram de forros trabalhados, as janelas e portas se enfeitaram, os móveis se multiplicaram, adornaram-se e adquiriram um poder de representação até então pouco usual. Figura 1 – Família de fazendeiros, 1825. Johann Moritz Rugendas. Tal mudança de atitude ocorreu vagarosamente e no início do século XIX ainda não era claramente visível, como podemos observar por meio do ponto de vista de vários viajantes europeus. Alguns chamavam atenção para uma imagem de precariedade dos ambientes interiores das moradias da boa sociedade carioca. Rugendas, visitante no Brasil entre 1821 e 1825, declarou: Julgando-o apenas pelo interior de sua residência, pelas suas vestimentas e pela sua alimentação, o europeu teria dificuldade em acreditar que a maioria desses colonos é abastada e que muitos deles são mesmo ricos. (...) Os móveis se reduzem, comumente, a grandes baús nos quais se guardam as vestimentas e as roupas e que servem ainda, muitas vezes, de assento ou de leito. Há, também, grandes mesas. E somente num dos quartos laterais se encontram, assim mesmo raramente, móveis mais elegantes, espelhos etc.6 128 A representação de posses não equivalia ao padrão europeu, bem como não havia a preocupação de ostentação e, portanto, é compreensível o depoimento em tom de surpresa de Rugendas, que denunciava o disparate entre poder aquisitivo e representatividade deste nos usos, costumes e decoração do espaço doméstico dos brasileiros. A simplicidade dos interiores pode ser corroborada pela observação das imagens documentadas por Debret, pelo próprio Rugendas e Thomas Ender, dentre outros. É comum encontrarmos interiores escassamente mobiliados e até a permanência dos hábitos das senhoras se sentarem ao chão. Décadas mais tarde (nos anos 1880), foi a vez de outro europeu – Eça de Queiroz – que, contrariamente a Rugendas, denunciava o despropósito da adoção dos modos europeus pelos brasileiros, denunciando: Os velhos e simples costumes foram abandonados com desdém: cada homem procurou por na cabeça uma coroa de barão e com 47 graus à sombra, as senhoras começaram a derreter dentro dos gorgorões e veludos ricos. Já nas casas não havia uma honesta cadeira de palhinha onde, ao fim do dia, o corpo encontrasse pouso e frescura: e começaram os damascos de cores fortes, os móveis de pés dourados, os reposteiros de grossas borlas, todo o pesadume de decoração estofada com que Paris e Londres as defendem da neve, e onde triunfa o Micróbio.7 Após seis décadas do depoimento de Rugendas, o panorama doméstico, através do depoimento do romancista português, transformara-se sensivelmente, pelo menos na então capital do Império e para a classe abastada. Somado a outros relatos de viajantes estrangeiros e cronistas brasileiros notamos a importância do século XIX na construção de uma imagem civilizatória do jovem Império, a partir da observação dos interiores das casas, que está presente nos depoimentos como um dos fatores denunciadores da falta ou presença de signos de ostentação e civilidade. Segundo Maria Cecília Naclério Homem8, analisando cerca de 300 plantas de casas paulistas da virada do XIX para o XX, a implantação, em centro de terreno e a distribuição do palacete obedeciam a esquemas franceses, com circulação feita a partir do vestíbulo e divisão da casa em três grandes zonas: estar, serviços e repouso. Por outro lado, a sala de jantar em posição central e de maior dimensão que os outros cômodos, além de próxima à cozinha, bem como um gabinete e quarto independente para hóspedes na parte fronteira do térreo demarcavam a persistência dos hábitos coloniais. Ordem, clareza nas distribuições das atividades e dos personagens que frequentavam e residiam na casa (proprietários, visitantes e empregados) foram cada vez mais bem delineados nas casas oitocentistas. Especialmente o Rio de Janeiro é marcado pelas variações de combinações entre mudanças desejadas, de ordem burguesa, capitalista, urbana, e permanências, de bases agrárias e patriarcais. Aquilo considerado rural podia ser apropriado pelas novas casas urbanas e aquilo típico das cidades caberia ser incorporado nas casas rurais (figs. 2 e 3). Essas mesclas, de múltiplas nuances, trouxeram outras tipologias de casas senhoriais – os palacetes rurais, ou casas-sede das fazendas, e 129 os palacetes urbanos, ou casas ou mansões. Somado a isso, deve-se atentar para o fato das frequentes reformas e ampliações sofridas por muitas casas que mantiveram certas tradições e acrescentaram inovações, alcançando novas configurações. É o caso do Paço de São Cristóvão (fig.3), de cujo módulo inicial, foram acrescentadas torres, escadarias, salões, quartos, e vários outros módulos, ao longo do reinado dos dois imperadores Pedro I e Pedro II. Por outro lado, era sua dimensão que se impunha, visto que seus interiores não eram muito afinados com seu porte e importância. Sua decoração nunca mereceu elogios significativos. Figura 2 – Fazenda do Secretário, 2011 (fotografia do autor). Figura 3 – Vista do Paço de São Cristóvão, 182?. Jean-Baptiste Debret. 130 Com uma aristocracia pautada para além dos rigores da corte portuguesa e diante de um período marcado pela negociação entre uma economia mercantil assentada na escravidão e outra exportadora capitalista, com a mobilidade dos proprietários que detinham os principais meios de produção, é com dificuldade que se pode definir os senhores e suas casas senhoriais no Brasil oitocentista. Além disso, a mudança da situação política de Colônia para Império e de Império para República em um mesmo século, acirra a flutuação dos que se encontravam em posição política e financeira privilegiada. Caio Prado Júnior lembra que com o café se desenvolveu a última das três grandes aristocracias do Brasil – primeiro, os senhores de engenho, depois, os grandes mineradores e, por fim, os fazendeiros do café – aristocracias as quais correspondiam à elite social brasileira9 que, para celebrar o status social alcançado, construíam novas ambientações domésticas. Frente a essa instabilidade, preferimos a acepção de ‘boa sociedade’, pelo menos para o século XIX no Brasil, que inclui homens e mulheres, livres e brancos, partícipes do mundo político imperial e responsáveis por sua ordenação, que se reconheciam e se faziam reconhecer como integrantes do almejado ‘mundo civilizado’. Ilmar de Mattos a relaciona com a classe senhorial que se fundamentou na formação da política do Estado imperial e lhe deu suporte.10 A noção foi ampliada por Maria do Carmo Rainho, alargando o vínculo com o mundo da política, incluindo grandes negociantes, bacharéis, banqueiros, altos funcionários e profissionais liberais. A autora aponta a importância da aparência para a noção de boa sociedade, em que seus membros são “aqueles que por meio da aparência e não apenas do dinheiro e do poder, deixavam visíveis as diferenças que marcavam o abismo existente entre a ‘boa sociedade’ e a sociedade comum, ‘abismo do prestígio, do estilo de vida, do acesso ao mando”.11 Figura 4 – Fachada principal da Vila Maria Augusta, 1923. Revista Paratodos, ano.V, n.221. 131 Rui Barbosa (vila Maria Augusta), Cândido Gafrée e Eduardo Guinle (palacete Guinle Paula Machado), Bento Joaquim Alves Pereira (solar do Jambeiro), por exemplo, fariam parte desse elenco, que não são senhoriais no estrito sentido do termo, mas são inegavelmente membros da boa sociedade. A casa denominada Vila Maria Augusta, homenagem de Rui Barbosa à sua esposa, foi adquirida em 1893 e ocupada a partir de 1895, quando da volta da família do exílio, passado na Inglaterra. O monumento, um museu-casa12, é um dos poucos exemplos preservados de residência urbana aburguesada no elegante bairro de Botafogo, um dos locais preferidos da boa sociedade carioca na virada do século. A espaçosa casa ofereceu abrigo aos muitíssimos livros13 de Rui e às práticas familiares e sociais típicas do período: chás, jantares, saraus, festas, reuniões, casamentos. A casa já tinha um porte senhorial quando foi adquirida. O primeiro proprietário Bernardo Casimiro de Freitas, depois intitulado de barão da Lagoa, construiu a casa em 1849, terminando-a em 1850. Ampliações e embelezamentos foram, ao longo de décadas, atualizando as necessidades práticas, simbólicas, psicológicas, de representação. Presume-se que as principais benfeitorias foram empreendidas por Albino de Oliveira Guimarães, o segundo dono, que vendeu a propriedade para John Roscoe Allen, de quem Rui Barbosa comprou. Durante a permanência de Rui Barbosa no exílio, a casa de Botafogo passou novamente por reformas, comandadas por Antônio Januzzi14, adequando-se às exigências dos novos donos: ganhou mais um banheiro (contíguo ao quarto do casal); foi construída escada externa para acesso direto à biblioteca e arrumadas baias nas cocheiras; passou por pintura geral e empapelamento das paredes. As reformas, portanto, não diziam respeito apenas às questões construtivas. Incluíam escolha dos materiais de revestimento e padrões decorativos, como os papéis de parede. A questão dos papéis de parede rendeu assunto em cartas trocadas15 entre Rui Barbosa e Antônio Jacobina. Em 23 de outubro de 1894, Jacobina escreveu que iria enviar as medidas das salas para que Rui comprasse os papéis na Inglaterra. Em fevereiro de 1895 avisava que não remeteria mais as medidas porque Januzzi se comprometera a colocar os papéis16. Em 14 de março de 1895 informava que despachava (...) amostras dos papéis da sua casa, os melhores do Rio; nas costas estão os locais a que pertencem. Vão as medidas para tapetes das salas e corredores, larguras e alturas das janelas para cortinas, que aí serão mais baratas caso queira comprar, ainda que a despesa é tanta que não sei se vale a pena o fazê-la pois lhe dará um grande desfalque.17 Os pequenos recortes de papéis de parede cruzaram o oceano para aquiescência e aprovação do dono e já se antecipava que os revestimentos eram de qualidade, comprados nas melhores casas do Rio (infelizmente não sobreviveram até nós). Seguindo o fluxo do tema, Jacobina recomendava compra de tapetes e 132 cortinas na Inglaterra, apesar de saber da grande despesa que isso acarretaria a Rui. A decoração demandava gastos e não eram superfluidades. Se o momento talvez não fosse o mais propício para a compra dos artigos da decoração, não se aventava a hipótese de não adquiri-los. Eles eram tão importantes quanto a cadeira para sentar, a comida para comer, a terra para plantar. A casa (fig. 5), com seus três salões à frente, salas para refeições, gabinetes de trabalho e biblioteca do proprietário, quartos, banheiros e dependências de serviços estava adequada para as demandas do casal Rui e Maria Augusta e seus cinco filhos. A ordenação dos cômodos, por outro lado, não seguia estritamente as normas de distribuição usualmente adotadas naquele momento18. A área social era mesclada com cômodos da zona íntima, apesar de a presença dos corredores evitar cruzamentos indesejados. Provavelmente o imperativo da localização e dimensão da biblioteca tenham levado a essa opção. O restante da casa seguia o costume: os cômodos sociais voltavam-se para a rua — salas de receber e sala de jantar (esta mais recuada), os de serviço recolhiam-se aos fundos e os íntimos abriam-se para as laterais do terreno ou se acomodavam no sobrado. Figura 5 – planta-baixa da Casa de Rui Barbosa e os setores de uso. Disponível em: www.casaruibarbosa.gov.br. Há de se atentar para o fato de que na Europa, entre 1850 e 1870, ainda se encontrava o dormitório principal da casa, geralmente destinado ao casal, próximo ou mesmo interligado ao salão, modelo que se assemelhava aos apartamentos reais, fato que permaneceu até a virada do século nas casas abastadas. O quarto do casal ainda costumava se localizar contíguo à área de recepção e muitas vezes abria-se para a rua. Sendo assim, o dormitório de Rui e Maria Augusta, incrustado no bloco social, conformava-se ao modelo aristocrático de distribuição dos cômodos. Como se esperava de um componente da boa sociedade carioca de entresséculos, Rui dividia o usufruto da casa de Botafogo com a casa de veraneio de Petrópolis19. As fachadas das duas casas já sugeriam as conveniências decorativas da 133 época. A casa urbana impunha-se caprichosamente com sua linha classicizante, decorações em cantaria, estuques, gradis e a composição impecavelmente ordenada. A casa petropolitana optava por linguagem menos sóbria, adotava assimetrias, configurando um ar mais informal, e despia-se dos caprichos decorativos da casa de Botafogo. A tipologia do chalé se conformava à atividade de veraneio na serra e não necessitava de artifícios que dignificassem seus moradores, pois estes aí não habitavam. A residência permanente e oficial, sim, tinha o compromisso expresso de aparentar os símbolos da distinção, distinção esperada de um homem público e intelectual como Rui Barbosa. Como decoro e decoração andavam coligadas, esperavam-se encontrar nos ambientes privados as mesmas características da personalidade e de comportamento da pessoa em público. É o que se faz crer ao lermos os textos publicados nas revistas ilustradas ou através de relatos de vários visitantes à vila Maria Augusta. No ano de 1913, o professor português José Julio Rodrigues, integrante de uma comissão que veio ao Brasil para estudar a organização do ensino público, foi levado por Oliveira Lima à casa de Rui. São estas as suas impressões: Sem nenhuma pompa exterior, a casa de São Clemente tinha a simpática característica de fugir ao rococó intolerável das grades prateadas e das estatuetas de louça vidrada, simulando Minervas idiotas ou Alcebíades patetas! Moradia grande e simples, como convinha a um propósito de recato e de estudo, sereno e equilibrado... Subindo, transportas as salas de luxo trivial, para uso de senhoras, em que nada se sentia da entidade central do templo, enveredamos pelos longos e discretos corredores em que as estantes pejadas começavam a surgir, em direção ao recesso de trabalho em que, no isolamento e no silêncio, a mentalidade de Rui se adestrava. Uma cortina erguida nos desvendou a perspectiva do célebre gabinete manuelino, antes salão de trabalho e de recepção, austero, em gótico português, privativo do ilustre jurista e só franqueado aos mais próximos amigos e visitantes de nota. Foi naquele cenário de linhas graves, no enquadramento de estantes alinhadas, de frisos esculturais marcados pela luz fosca das lâmpadas, entre as poltronas de espaldar alto e veludos amortecidos dos tapetes, que, cercado, de políticos e de amigos, eu me aproximei, pela primeira vez, da pessoa de Rui Barbosa.20 Os salões que, aos olhos do português, não simbolizavam em nada o dono da casa, aparentavam um luxo trivial, próprio para senhoras. Esperava-se encontrar imagens que traduzissem a personalidade do homem público e, ao mesmo tempo, indicassem facetas desconhecidas, que só seriam reveladas no âmbito da intimidade. O problema incidia na compatibilização de uma idealização construída a partir das atuações públicas com a imagem que se apresentava no âmbito do privado. A decoração da casa segue uma visível hierarquia tipológica. O vestíbulo (fig.6) é todo forrado de madeira, com apainelados trabalhados com molduras e 134 entalhes em bico de jaca. O piso recebe ladrilho hidráulico e traz uma imagem multicolorida a contrastar com a sobriedade do ambiente de entrada. Nos cômodos de receber (fig.7) a decoração é mais complexa: nos tetos é constante o uso de relevos em estuque e da policromia com vivos matizes; as paredes recebem cores mais saturadas e padronagens salpicadas (visíveis nas fotos antigas), que preenchem toda a superfície; sobre os pisos de tabuado, tapetes eram dispostos, trazendo mais estampas aos ambientes. Na caixa de escada que leva ao sobrado, um local de circulação, paredes e teto apresentam pinturas de troféus, promovendo diversão aos olhos pela variedade de desenhos. Figuras 6 – Hall de entrada - Casa de Rui Barbosa, 2010 (fotografia do autor). Figura 7 – Salão nobre - Casa de Rui Barbosa, 2010 (fotografia do autor). Na zona íntima (fig. 8) há comedimento: pinturas no teto de cores suaves, paredes com delicados frisos a delimitarem as grandes áreas vazias, preenchidas com única cor ou uso de papel de parede com desenhos simplificados (listrados, pequenos buquês, etc.). Nas partes de serviço (fig. 9) os relevos desaparecem, mas não a decoração. As paredes das áreas molhadas são revestidas, em meia altura, com azulejos bizotados ou com arabescos e os corredores recebem pintura de falso mármore. Os pisos são em ladrilho hidráulico. A sala mais imponente da casa é a biblioteca (fig. 10), seja pela dimensão (é o maior cômodo da casa), seja pela decoração que privilegia as altas estantes envidraçadas cobertas de livros, finamente encadernados com letras douradas. O monograma de Rui Barbosa é estampado em dourado no frontão da maior estante, reluzindo destacadamente a identificação do dono (fig. 11). É o único 135 móvel da casa que recebe esse tratamento identificador, o que mostra seu grau de importância para Rui Barbosa. Figura 8 – Quarto de dormir do casal – Casa de Rui Barbosa, 2010 (fotografia do autor). Figura 10 – Salão da biblioteca – Casa de Rui Barbosa, 2010 (fotografia do autor). 136 Figura 9 – Copa – Casa de Rui Barbosa, 2010 (fotografia do autor). Figura 11 – Detalhe do frontão do armário – biblioteca com monograma RB – Casa de Rui Barbosa, 2010 (fotografia do autor). A grande quantidade de assentos e em couro lavrado sugere a frequência dos colóquios intelectuais, gerando uma sala de visitas sui generis. Os convidados que para lá se encaminhavam já saberiam de antemão os assuntos da conversa, diferentemente da sala de visitas ou do salão nobre, em que a formalidade imperava e os temas amenos eram preferíveis. Nas salas de receber predominavam os conjuntos de assentos, que, à época, encostavam-se às paredes ou à frente dos biombos, gerando certa rigidez. Dos sofás, cadeiras e canapés, os convidados apreciavam os objetos de arte, as superfícies decorativas, os móveis mais refinados da casa. Destacava-se a atualidade do gosto oriental nos móveis em laca, nas cerâmicas e em alguns tecidos (fig. 13). As paredes, os tetos e pisos mantinham-se enfeitados. A presença de peças de cunho artístico era constante. Na sala de estar (fig. 14), Rui implementou um decorativismo de referência erudita, histórica. As paredes do cômodo ostentam pinturas pompeianas. Elas são cópias de afrescos da Casa Della Fontana Piccola, em Pompéia, a partir dos modelos tirados do álbum Pompei – Casa dei Vetti, editado em 1895. Por outro lado, o formato em L do cômodo, o cruzamento de fluxo para as salas de refeição e a dimensão avantajada dos assentos, impediam um arranjo convencional dos móveis nessa sala de estar, arrumação esta que convidava a uma estada mais informal. A diversidade de estilos também era flagrante, o que trazia à ambiência uma ideia de acolhimento democrático de diversas práticas e gostos: encontros familiares, chá da tarde com amigas, conversas após as refeições, recepção dos amigos. Para as refeições havia duas salas: a de jantar (fig. 12), contígua à de estar, destinada a ocasiões formais, e a de almoço, usada cotidianamente pela família e amigos próximos. Enquanto a primeira é mais ampla, austera e ostenta maior número de móveis vitrines e apoios para enfeites, oferecendo muitas superfícies para expor as artes decorativas, a segunda tem dimensão mais acolhedora e a decoração menos formal. O grau decorativo dos cômodos da intimidade dependia do gênero (se feminino ou masculino). Em relação aos cômodos sociais, eram menos trabalhados nos seus ornamentos. Os quartos de Rui eram austeros, cercados de estantes que se entremeavam com os outros móveis. O de Maria Augusta era alegre e refinado, teto pintado com flores e querubins, assentos delicados (como que esperando as filhas para as conversas diárias), minúcias nos ornamentos, tudo harmonioso, demarcando uma certa tipologia feminina (fig. 15). O dormitório dos dois, apesar de elegante, passava uma aura casta, sem exageros ornamentais, sem muitos detalhes que remetessem ao feminino sem deixá-lo masculino. Não havia predominância de gênero nas representações, nem qualquer imagem que remetesse a licenciosidades. O genuflexório e a imagem da Virgem com Menino Jesus (cópia de Murilo) demonstravam práticas católicas, como se prescrevia aos bons pais e mães de família (fig. 8). Se o quarto unia o casal, adotando uma única cama, símbolo de uma união por amor, cada um mantinha pelo menos um quarto separado, permitindo manter 137 sua individualidade e não se desvencilhar por completo da regra aristocrática europeia de o casal viver em quartos separados, símbolos da convivência de duas famílias nobres e da independência dos esposos21. Mesmo que as imagens não refletissem algum gênero em especial, como no quarto do casal, as escolhas do decorativo pareciam se direcionar a uma vontade mais feminina. Bibelôs, frufrus, enfeites, minúcias eram, geralmente, relacionados ao mundo feminino. Todavia, segundo depoimento da esposa Maria Augusta sobre Rui, ela dizia: A casa merecia-lhe um especial carinho. Era ele quem escolhia as alfaias, os móveis, os cristais, os quadros, todos os adornos de nossa residência. Era profundamente artista. As faianças, os mármores e os bronzes atraíam-no, fascinavamno extraordinariamente. As peças grandes, como os dois grandes cloisonnés de Pequim, que a Câmara Federal lhe ofereceu, mereciam-lhe estima e admiração; mas as pequeninas peças, as estatuetas, as miniaturas, eram a sua paixão e o seu culto. Ele tinha numa de suas secretárias, arrumadas por ele próprio, um bando de músicos de velho Saxe, que comprou num antiquário de Paris. Comprando ora aqui, ora ali, ele reuniu uma coleção enorme de objetos, que, ao sairmos da casa de Botafogo, foi repartida consideravelmente.22 A maioria dos móveis foi comprada por Rui, alguns deles adquiridos em suas viagens ao estrangeiro23 (fig. 13), outros em leilões, alguns encomendados ou comprados nas lojas do gênero. O gosto pelos detalhes, pelos pequenos objetos decorativos não era exclusividade feminina como reza a tradição. Rui demonstrava interesse pelas artes decorativas e visuais. No acervo da biblioteca de Rui Barbosa podemos encontrar catálogos de galerias de arte, livros sobre os grandes pintores europeus, as exposições universais francesas24, catálogos de móveis de empresas inglesas. Nessas publicações encontramos as anotações de Rui, principalmente nos textos que tratam de arte oriental, situação que sublinha uma preferência. Além disso, Rui era constantemente presenteado, com esculturas, principalmente. Observando o catálogo do leilão de seus bens, que ocorreu em 23 de dezembro de 1924, foram postos a venda 45 estátuas, a maioria com seus respectivos pedestais25. O mobiliário da casa apresenta, no geral, feição mais austera, onde a influência francesa é branda, contestando a questão do “(...) peso acumulativo da tradição francófila”26 na boa sociedade brasileira. Predominava o gosto pelo comedimento, pelas madeiras naturais, ora claras, ora escuras, por desenhos simples, linhas retas. É raro se ver os dourados, as curvas pronunciadas, os entalhes profundos, mesmo nos móveis dos cômodos sociais, onde seriam comumente encontrados. Preferia-se a planaridade, os detalhes sutis, uma certa sobriedade mesclada a uma delicadeza, conferindo ao conjunto de móveis ruianos simplicidade e refinamento. 138 Figura 12 – Sala de jantar – Casa de Rui Barbosa, 2010 (fotografia do autor). Figura 13 – Sala de música – Casa de Rui Barbosa, 2010 (fotografia do autor). Figura 14 – Sala de estar – Casa de Rui Barbosa, 2010 (fotografia do autor). Figura 15 – Quarto de vestir de Maria Augusta – Casa de Rui Barbosa, 2010 (fotografia do autor). 139 Além dos móveis preferencialmente ingleses, há presença de móveis antigos brasileiros e de outros que aludem aos luso-brasileiros. As referências do passado colonial não foram escondidas nos porões, como se imaginava, interagiam com a nova realidade. Tradição e contemporaneidade conviviam. As línguas inglesas, francesas, holandesas, espanholas dialogavam com a portuguesa. Um decorativo brasileiro se delineava nessa heteroglossia. Um gosto particular se configurava, voltando olhos interessados para dentro das casas. Como o próprio Rui Barbosa declarava: “Essa aristocracia do espírito que o gosto pressupõe não depende absolutamente da riqueza, mas da elevação das impressões na nobilitação do sentimento, da inteligência delicada das relações entre o indivíduo e o mundo exterior, condições que o tornam compatível com a mediania das classes laboriosas”27. Esse gosto burguês, mediano, acabou por desenvolver uma arte peculiar: aprazível, decorativa, ao alcance das mãos. A arte doméstica, tal qual encontrada nas ambientações da casa de Rui Barbosa, foi a verdadeira arte que predominou nos lares finisseculares e moldou o gosto de quase toda a nação. Notas e referências 1. MANGONE, Fabio. La storia, gli stili, il quotidiano. In: _______. Architettura e artiapplicate fra teoria e progetto. La storia, gli stili, il quotidiano 1850-1914. Napoli: Electa, 2005, p. 9-13. p.10. 2. ELEB, Monique; DEBARRE, Anne. L’invention de l’habitation moderne – Paris 1880-1914. Bruxelles: Hazan / Archives d’Architecture Moderne, 1995. 3. A fotografia apresentada no livro não identifica o local. Pudemos identificá-la através de pesquisa documental e iconográfica sobre o Solar do Jambeiro. 4. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. A opulência na província da Bahia. In: : ALENCASTRO, Luiz Felipe (org). História da vida privada no Brasil 2 – Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.172. 5. MALTA, Marize. O olhar decorativo: ambientes domésticos em fins do século XIX no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad X/Faperj, 2011. 6. RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1979. p.113-114. 7. Eça de Querioz apud TENREIRO, Joaquim. Móvel brasileiro, um pouco de sua história. Arquitetura revista do Instituto de Arquitetos do Brasil, Rio de Janeiro, n. 31, p. 25-27, jan. 1965. p.25. 8. HOMEM, Maria Cecília Naclério. O palacete paulistano e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira: 1867-1918. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 9. PRADO JR., Caio. História econômica do Brasil. 18 ed. São Paulo: Brasiliense, 1973. p.167. 10. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. 5 ed. São Paulo: Hucitec, 2004. 11. RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A cidade e a moda: novas pretensões, novas distinções - Rio de Janeiro, século XIX. Brasília: Ed. UnB, 2002. 12. O museu de Rui Barbosa é o primeiro museu-casa brasileiro. Como tal apresenta praticamente todos os cômodos ocupados com seus móveis originais, do modo mais fidedigno possível à época de Rui, trabalho que demandou muitos anos de pesquisa da equipe de museólogos da Fundação. Há cerca de duas mil peças catalogadas e classificadas. Com respeito à formação do acervo, ver depoimento da museóloga REIS, Cláudia Barbosa. Painel 2 – A Pesquisa sobre o Acervo. In: Seminário sobre museus-casas, 4, 2002, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2002. Disponível em: <http://www.casaruibarbosa.gov.br> . Acesso em ago. 2005. 13. A biblioteca de Rui conta com cerca de 37 mil volumes. Os livros, adquiridos junto com o imóvel, 140 são mantidos no local em que Rui os dispôs, o que faz com que a casa possua uma original coleção de tipos de armários-bibliotecas. 14. Em carta de 19 outubro de 1893 para Rui Barbosa, Antônio Jacobina comentou que Januzzi pedira dez contos para dar continuidade à obra, a qual não deveria parar em virtude de seu estado adiantado. O primo de Rui lamentava a permanência da obra sem que houvesse alguém acompanhando o serviço de perto e sem a presença do dono que se encontrava no exílio, em Londres. Cf., Carta de Antonio de Araújo Ferreira Jacobina para Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 19 out. 1893. Arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa, pasta CRF 731. 15. Cartas de Antonio de Araújo Ferreira Jacobina para Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 1893-1895. Arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa, pasta CRF 731. 16. Carta de Antonio de Araújo Ferreira Jacobina para Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 9 fev. 1895. Arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa, pasta CRF 731, documento CR 731 (39), 09-02-1895. 17. Carta de Antonio de Araújo Ferreira Jacobina para Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 14 mar. 1895. Arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa, pasta CRF 731, documento CR 731 (41), 14-03-1895. 18. GERE, Charlotte. Nineteenth-century decoration; the art of the interior. New York: Harry N. Abrams, 1989; PORTER, John R. Living in style: fine furniture in victorian Quebec. Montreal: The Montreal Museum of Fine Arts, 1993; ELEB, Monique; DEBARRE, Anne. Architecturre de la vie privée. Bruxelles: A.A.M., 1989 e L’invention de l’habitation moderne: Paris 1880-1914. Bruxelles, Hazan, 1995. 19. Alguns poucos móveis que pertenceram à casa de Petrópolis compõem hoje o acervo do museu do Rio de Janeiro. Os demais estão localizados em Salvador, Bahia, na casa em que Rui Barbosa morou na infância, funcionando como museu desde 1949. 20. RODRIGUES, José Julio. A figura, a casa e o meio de Rui. In: Silhuetas e visões. Faro: Cácima, [s.d]. p.288-290. 21. Cfme. ELEB, 1995, op.cit. 22. Depoimento de Maria Augusta Rui Barbosa. Apud. REIS, Cláudia Barbosa, Álbum de objetos decorativos. Rio de Janeiro: FCRB, 1997. p.10. 23. Há peças da Argentina, Inglaterra, Espanha e Holanda, países em que Rui teve estada. 24. DIDRON, M. Ed. Rapport d’ensemble sur les arts décoratifs. Exposition Universele Internationale de 1878 à Paris. Paris: Imprimerie Nationale, 1882. 25. Jornal do Comércio, Rio de Janeiro,domingo, 21 de Dez. 1924. 26. NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.230. 27. Citado por BARBOSA, Mario de Lima. Um dos pendores de Rui. Revista Branco, n. 9, out.-nov. 1949, p.11. 141