Sinais de fumaça: a "pauperização" da aids

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Sinais de fumaça: a "pauperização" da aids - indícios, indicadores e
realidade
Janete Luzia Leite1
A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA/Aids), ao se colocar a partir da
penúltima década do século XX como um dos maiores problemas a serem
enfrentados pela Saúde Pública na virada para o próximo Milênio, trouxe em seu
bojo profundas transformações sociais, políticas e econômicas. Além do repentino
impulso que o advento da Aids provocou no terreno biomédico, evidenciou-se uma
preocupação crescente com esta nova doença em praticamente todas as áreas do
conhecimento humano. No início da década de 1980, quando a AIDS surgiu no
cenário mundial como doença transmissível, incurável e mortal, a comunidade
científica internacional demorou algum tempo - breve, mas precioso - para poder
avaliar a causalidade e a magnitude do flagelo que tinha à frente. Em pouco tempo,
porém, devido ao grande avanço nas pesquisas, descobriu-se que os principais
meios de transmissão desta doença são o sangue e o esperma infectados.
Descobriu-se mais: que os atingidos por esta "peste" geralmente eram os
homossexuais masculinos e os viciados em drogas endovenosas, ou seja, pessoas
de
vida
considerada
desregrada.
A
própria
comunidade
científica
mundial
compactuava desse pensamento crendo que, por estar restrita a grupos sociais
específicos, a nova doença seria, em pouco tempo, auto limitante. Com isso, as
pessoas "normais" não precisariam se preocupar com a nova entidade nosológica,
muito menos com aqueles por ela acometidos. Afinal, tratava-se de pessoas já
marginalizadas e de comportamentos julgados desviantes pela sociedade. Era a
hora de serem devidamente "castigados" (Hanan, 1994). Assim, ocorreram
manifestações de discriminação e preconceito que, em certos momentos, foram até
socialmente incentivadas através de violações a diversos Direitos Humanos básicos:
isolamento
dos
doentes,
demissão
de
homossexuais
de
seus
trabalhos
e
perseguição aos usuários de drogas injetáveis (UDIs). Entrementes, bem cedo se
verificou que outras pessoas, que aparentemente não possuíam motivos para
serem "castigadas", contraíam o mesmo mal, como no caso das crianças, dos
hemofílicos e dos transfundidos. Percebeu-se que a AIDS não atingia só aos
socialmente "condenados", mas também aos "inocentes" e que, não pertencer a
algum grupo de risco1 ou não ter se exposto a situações de risco não livrava
1
Prof. Adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ. Pesquisadora do Centro de Pesquisa Nacional em
HIV/Aids do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle-UNIRIO. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa e
Estudos em "Questão Social" e Serviço Social - NUPEQUESS/ESS-UFRJ.
[email protected]
ninguém do "perigo". Constatou-se que éramos, todos, uma população em risco
(Ibid., Op. cit.). O que Mann (apud Daniel e Parker: 1991) posteriormente
denominou de "infecção silenciosa"2 contribuiu para que a Aids se alastrasse
rapidamente a números catastróficos, posto que o imaginário social a classificou
como uma doença associada à liberalidade sexual em geral e a outros grupos
socialmente marginalizados. Em síntese, o que inicialmente parecia ser só mais
uma doença, isto é, uma questão de ordem puramente médica, logo se pôs como
uma das mais sérias calamidades sociais dos últimos tempos ao desvelar toda a sua
perversidade pela rápida e progressiva disseminação de seu agente etiológico - o
Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) - aliada à letalidade da doença, que se
concentrava numa faixa etária extremamente jovem e produtiva, fazendo com que
grandes investimentos fossem empreendidos basicamente em dois sentidos: 1)
conter a proliferação da infecção pelo HIV, e 2) combater/curar a doença e suas
manifestações clínicas. Com isso, em menos de dez anos, num avanço sem
precedentes na história, as primeiras descobertas sobre as formas de transmissão e
prevenção do HIV foram estabelecidas e os primeiros medicamentos que tentavam
impedir a sua replicação no organismo humano foram desenvolvidos e fabricados.
Se, do ponto de vista estritamente médico, avanços consideráveis foram obtidos,
no terreno social a Aids coloca problemas cujas dimensões não podem ser
ignoradas, a exemplo das formas de prevenção veiculadas (que não levam em
conta as diversidades culturais humanas, formas de se fazer sexo e exercer a
sexualidade, religiões e minorias socialmente subjugadas), o alto custo dos
medicamentos e dos exames periódicos (proibitivo, mesmo para pessoas com
poder aquisitivo razoável) e as atitudes discriminatórias, que violam os direitos
humanos básicos e interditam a cidadania de milhares de pessoas. Estes e alguns
outros fatores servem como pano de fundo para que observemos na atualidade a
"pauperização" crescente da Aids, ou seja, a evolução mundial da pandemia mostra
que atualmente somente os estratos mais pobres das sociedades economicamente
desenvolvidas é que estão sendo majoritariamente atingidos pelo HIV/Aids. Nos
países em vias de desenvolvimento a tendência é a mesma, mas como nestes
países há a predominância da pobreza e as desigualdades sociais são mais
gritantes, infere-se o custo social que a doença poderá acarretar em breve. O
impacto e o alcance sociais causados pela Aids fizeram com que mesmo as áreas
mais rígidas e conservadoras em sua "cientificidade" fossem obrigadas a abrir
canais de interlocução com as Ciências Sociais e Humanas. Em 1989, a V
Conferência Internacional sobre Aids (Montréal) trouxe à tona, pela primeira vez, a
preocupação expressa em seu temário: "Aids, o Desafio Científico e Social". Era a
prova cabal de que as Ciências Biomédicas se curvavam - não pela primeira vez,
mas nunca com tamanha evidência - às chamadas Ciências Sociais e Humanas na
busca de respostas e soluções para o enfrentamento da doença. A XII Conferência
Internacional sobre Aids (Genebra, 1998), revelou a necessidade de medidas mais
consistentes, o que é claro em seu temário: "Bridging the Gap" (Atravessando o
Abismo).
Paralelamente, os grandes eixos de produção de trabalhos nas
Conferências Internacionais demonstram a ampliação da importância das Ciências
Sociais na problemática da Aids no mundo: "Impacto Social e Psicológico e
Resposta Social" (Berlin, 1993), "Impacto, Resposta Societária e Educação"
(Yokohama, 1994) para, finalmente, explodir em "Ciências Sociais: Pesquisa,
Política e Ação" (Vancouver, 1996). Os trabalhos apresentados ao longo deste
período, longe de guardarem uma homogeneidade, marcam uma miríade de temas
e preocupações de ordem social, mas também uma diferenciação metodológica ao
trata-los, evidenciando uma busca incessante de respostas às várias situações que
são postas pela doença e pelos doentes.
Dentro do amplo espectro de questões
passíveis problematização pelas Ciências Sociais, cabe salientar aquelas que
concernem aos Direitos Humanos e de Cidadania no que tange à pandemia do
HIV/Aids. Atualmente já não se pode mais negar que o desrespeito aos direitos das
pessoas infectadas pelo HIV/Aids é um dos maiores propulsores de sua rápida
propagação, principalmente no que se refere ao seu translado para segmentos
sociais cada vez mais carentes e marginalizados, mais suscetíveis, portanto, a
todas as formas de coerção, submissão e estigmatização, a exemplo dos pobres,
das mulheres e das crianças. Mas tais questões configuram-se, ainda, frágeis e
controversas, devido principalmente à diversidade e permeabilidade de concepções
que nelas estão contidas (desde a própria concepção de direitos, passando pela
saúde, até desembocar na assistência) e seus rebatimentos no enfrentamento da
pandemia. Isto porque, em seu conjunto, o projeto neoliberal faz com que noções,
tais como eqüidade, cidadania, direitos humanos e justiça social recuem no espaço
de discussão política e cedam lugar às noções de produtividade e eficiência, agora
colocadas como condição sine qua non para o acesso a uma suposta modernidade,
dando a entender que qualquer discurso que tente ir na direção contrária é
retrógrado e conservador. As políticas de ajuste econômico que os governos vêm
tentando implementar e executar implicam em um aumento abusivo de preços e
tarifas. A queda do salário real também é causa de diversas manifestações de ira
popular, de criminalidade e de insegurança cidadã. Nestas sociedades, as
representações coletivas tradicionais dos interesses da população se acham em
crise, constituindo uma sociedade dual, estruturada, por um lado, sobre um
pequeno setor de indivíduos integrados; e outro setor de pessoas que vão ficando
inteiramente excluídas, provavelmente de forma irrecuperável. É neste circuito que
a Aids se manifesta como uma doença-símbolo da globalização e da falência
mundiais. Um de seus traços mais marcantes incide justamente na supressão de
direitos, notadamente os sociais. A Aids, portanto, mesmo em suas manifestações
mais locais, é indissociável dos problemas globais, manifestados fundamentalmente
numa agudização da questão social extremamente grave. Com isso, mesmo as
garantias mais básicas dos seres humanos, aliadas à retirada paulatina dos Estados
das Políticas Sociais, estão sofrendo um retrocesso.
Assim, para fazer frente à
exclusão, os indivíduos contaminados pelo HIV e/ou com Aids buscaram a aquisição
de direitos e benefícios através da instituição de uma "cidadania diferenciada" que,
em um primeiro momento, mostrou sua eficácia pela introdução de várias
legislações de exceção3 que contemplavam questões próprias dos soropositivos.
Entretanto, é necessário lembrar que os primeiros soropositivos eram oriundos das
camadas médias e altas das sociedades, ou seja, indivíduos que possuíam o poder
de
se
organizar
e
a
informação
necessária
para
mobilizar
mecanismos
reivindicatórios. Atualmente, com a "pauperização" da pandemia, há um giro: os
direitos voltam a ser violados e as reivindicações encontram um ponto de
estagnação. Em segundo lugar está o fato de que o reconhecimento da relação
fundamental entre HIV e Direitos Humanos foi lento, mas continuadamente guiado
para o aprofundamento da problemática que se inscreve no binômio Direitos
Humanos/Saúde Pública. A polêmica se estabelece quando se analisa Saúde Pública
e os Direitos Humanos, pois as políticas, práticas e programas de Saúde Pública
possuem o poder de oprimir e violar os Direitos Humanos básicos, encontrando
justificativa legal para o ato de restringir os direitos individuais em favor do bem
coletivo. Sendo a primeira pandemia a ocorrer na era dos modernos Direitos
Humanos, o surgimento da Aids no mundo sinalizou uma verdadeira revolução no
pensamento tradicional sobre a saúde e sua ligação com os Direitos Humanos,
tendo no final da década de 80 o marco fundante de uma intensa atividade mundial
buscando a garantia de direitos para as pessoas vivendo com HIV/Aids. Estas
discussões são permeadas por outras de maior quilate, que remetem diretamente à
Justiça Social no que tange às profundas desigualdades de recursos entre o Norte e
o Sul e das quais a saúde é somente um exemplo. Questões como a "ditadura das
patentes" para medicamentos e exames, cujo monopólio internacional e exclusivo
se acha concentrado no hemisfério norte do planeta; políticas reguladoras
internacionais, que determinam regras distintas para as duas partes do globo
terrestre; o controle e a democratização do conhecimento; e mesmo problemas
mais pontuais, como a obtenção de medicamentos e a manutenção de leitos
hospitalares fazem com que a relação Direitos Humanos/Saúde Pública ganhe
novos contornos e assuma uma grande relevância. Sob o prisma neoliberal, a
mercantilização das relações confiadas ao automatismo regulador do mercado anula
todo o controle sobre o meio vital com que desenhamos e desenvolvemos nossas
estratégias de vida. O acesso aos bens e serviços é só a conseqüência da
maximização das redes de consumo para aqueles dispostos a pagar por estes bens
e serviços, mas, em nenhum caso, se reponde à demanda coletiva por uma
redistribuição social dos recursos disponíveis; a integração a estes processos é
meramente virtual porque o único processo societal que pretende integrar
globalmente é invisível, imprevisível e atomizado: o mercado. Levando-se em
consideração que um dos principais pressupostos da retórica neoliberal reside no
fato de que ele transforma as questões políticas e sociais em questões técnicas,
podemos inferir que tipo de recuos terá na área da saúde e sua relação com a
pandemia do HIV/Aids, até porque o esfacelamento do setor saúde termina por
justificar a privatização e a exploração mercantil de todo o processo saúde-doença,
através da "qualidade" superior do setor privado. Afinal, segundo o discurso
neoliberal, a liberdade de opção agora existe: pode-se "comprar" saúde doravante.
Fica aí escamoteada a realidade de que se retirar a saúde da esfera pública e
submetê-la às regras do mercado significa não mais liberdade e menos regulação
do Estado, mas precisamente mais controle da vida cotidiana, na exata medida em
que a transforma num objeto de consumo individual, esvaziando o poder da
discussão política e coletiva. Ademais, a Aids representa um divisor de águas nos
discursos oficiais nacional e internacional sobre os Direitos, evidenciando que, se a
cidadania pressupõe quebrar com os mecanismos de exclusão (incluindo aí o direito
à diferença), a universalização destes direitos deverá, necessariamente, contemplar
em primeiro plano a concepção de cidadania, principalmente porque este conceito,
nos últimos vinte anos, vem sofrendo um processo regular de desmontagem
(Goméz, 1998) a partir da ofensiva neoliberal que ora se mostra hegemônica no
mundo. Neste sentido, é inegável que a luta contra a Aids consolidou bases para
um novo tipo de relação entre o Estado e a sociedade civil, fundamentalmente a
partir do envolvimento direto de pessoas afetadas por e vivendo com HIV e Aids, o
que permitiu também o fortalecimento de diversos movimentos em prol de
categorias socialmente marginalizadas, tais como travestis, lésbicas, detentos,
jovens, crianças e mulheres. Contudo, torna-se imperativo reconhecer que o vigor
das reações de pessoas com HIV/Aids - nunca dantes observado no contexto
conhecido das epidemias - e a eficácia de suas lutas não podem ser descolados da
presença de dois fenômenos sociais inéditos, sobre os quais puderam se apoiar. O
primeiro se refere ao aparecimento e desenvolvimento, a partir do pós-Guerra, de
legislações garantidoras de direitos fundamentais aos seres humanos4. O segundo
concerne à eclosão das reivindicações de minorias sociais, étnicas e religiosas por
todo o mundo, colocando em cena atores sociais "não clássicos" com um enorme
potencial revolucionário, notadamente a partir dos chamados "anos dourados"5.
Atualmente, o que se tem observado é que a pandemia do HIV/AIDS está entrando
numa nova fase, mais perigosa: com a descoberta e comercialização dos inibidores
da protease6 (1996) que, associados aos já amplamente utilizados inibidores da
transcriptase reversa7, inauguram uma nova era na história da doença: a era da
"cronificação"8 da AIDS. Com isso, a letalidade inexorável da AIDS deixa de ser,
pouco a pouco, um fantasma e sua cronicidade transforma-a em natural e, por
extensão, banal. Conseqüentemente, não só há a tendência de um relaxamento em
termos de garantias individuais e coletivas para as pessoas infectadas, como
também das formas de prevenir a contaminação9. Isto é tão mais verdade que a
Aids já começou a sua migração - de forma rápida e contínua - para os países
pobres, tradicionalmente os que mais ignoram os direitos fundamentais mais
básicos do ser humano. O que se torna importante reter é que, no decorrer destas
duas décadas de existência, a quase totalidade das recomendações e movimentos
ativistas de que se tem notícia se caracterizam por reclamarem para a Aids a
igualdade perante as outras doenças, ao mesmo tempo em que exigem legislações
de exceção por sua diferencialidade. Entretanto, o que mais chama a atenção é a
subdivisão dentro destes mesmos grupos. Assim, existem (e proliferam) os grupos
de mulheres soropositivas, grupos pelas crianças soropositivas, grupos dos negros
soropositivos, dos toxicômanos soropositivos, dos homossexuais soropositivos, dos
travestis soropositivos, etc. 10 A partir de então, começam a surgir muitos sinais
de que arrefecem os movimentos que inicialmente clamavam por direitos humanos
para as pessoas com HIV/Aids, dando lugar a questões mais intimamente
vinculadas à manutenção do tratamento e à distribuição de medicamentos, mas
isolando-as da esfera dos direitos; ignorando, portanto, que os direitos são um dos
aspectos mais relevantes da concepção de cidadania e de sua vinculação medular
com as políticas sociais, ou seja, o reconhecimento de direitos pelo Estado. Com o
aumento da pandemia - notadamente nos países em desenvolvimento - e nenhuma
previsão sequer de estabilização no número de novos casos, parece haver uma
tendência a novamente se ignorar os direitos fundamentais já conquistados e o
cansaço de se lutar por novos direitos. Assim, os movimentos e grupos que militam
nesta área têm se mostrado corporativos e restritos em suas demandas e formas
de encaminhamento das lutas sociais e sua ótica não é eqüitativa e/ou
universalista, mas particularista, manifestando uma capacidade de mobilização
marcada pelo apelo emocional, no qual predomina uma visão instrumental, moral e
conjuntural do Estado, das políticas sociais e das instituições que eles pretendem
influenciar para reorientar suas ações. Reafirma-se, por um lado, o valor do Estado
democrático como o âmbito natural da justiça e como instância estratégica de
redistribuição de recursos e, ao mesmo tempo, ele é desmantelado em função do
reforço darwiniano do mercado, procurando, desse modo, a manutenção dos lucros.
Esta crise se manifesta de forma tensionada, notadamente devido à supressão dos
vários direitos de cidadania que a saída do Estado da esfera da garantia da
distribuição de bens públicos engendra. As tensões das economias em dificuldades
estão minando os sistemas políticos das democracias liberais, parlamentares ou
presidenciais, assim como já minaram todos os sistemas políticos vigentes no
Terceiro Mundo. As próprias unidades básicas da política, os "Estados-nação"
territoriais, soberanos e independentes, vêem-se esfacelados pelas forças de uma
economia supranacional ou transnacional. O Estado, entendido em seu arcabouço
institucional-representativo, presencia uma crise de legitimidade, o que contribui
para a sua progressiva falência. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que
observamos um alargamento da cidadania no âmbito nacional dos Estados, este
mesmo Estado - responsável pela promoção e proteção dos direitos - viola-os.
Desta forma, o discurso contemporâneo sobre o HIV/Aids revela os conflitos de
interesses
de
diferentes
tendências
e
distintos
atores
sociais
na
relação
Estado/sociedade civil de uma forma global. Isto se reflete em pressões por
medidas concretas nas esferas dos direitos humanos e da cidadania, notadamente
no que tange à Saúde Pública e à Justiça Distributiva. O impacto gerado por estas
pressões expressa-se em Legislações Internacionais específicas para as pessoas e
grupos vivendo com HIV e Aids, o que obrigou os Estados a se posicionarem nestas
questões. Entretanto, estas medidas evidenciam a diferença (ser portador do
HIV/Aids), em detrimento da igualdade do direito à saúde. A conseqüência imediata
é o enfraquecimento da luta por novos direitos e a fragilização daqueles já
conquistados. No Brasil, estas questões são marcadas pelos os paradoxos presentes
nas políticas sociais de saúde no Brasil como estratégias de legitimação de uma
ordem
política
concentradora
de
poder,
socialmente
pouco
democrática
e
economicamente excludente. Estas ações e políticas referem-se a um cenário
demarcado pela globalização econômica e empobrecimento da população e seus
efeitos diversos - e adversos - sobre os gastos sociais do Estado, os direitos sociais
e a ordem democrática brasileira. Isto, a partir do momento em que a deterioração
da Saúde Pública confirma-se como tendência estrutural crescente no Brasil,
marcando uma oposição entre políticas de saúde pública e atenção médica
individual curativa, ameaçando as possibilidades de novas conquistas de direitos
sociais, esvaecendo a demanda pela universalização da saúde como dimensão
social da cidadania. A versão brasileira do neoliberalismo, que trouxe em seu bojo
diversos "pacotes" de ajuste fiscal, é orientada para a "racionalização do gasto e da
oferta, tendo como desdobramentos: redução dos gastos públicos, ampliação da
privatização, caráter focalizado para atender as populações vulneráveis, e estímulo
ao seguro privado" (Bravo, 1998: 10). O atual contexto sociopolítico e econômico
brasileiro representa uma inflexão para o Serviço Social na Saúde, uma vez que
coloca como necessidade premente a retomada da luta por direitos anteriormente
já conquistados, como o direito à Seguridade Social (Bravo, 1996, 1998), além de
colocar novas demandas - as mais diferenciadas possíveis - no âmbito da prática
profissional neste setor. É verdade que os cortes paulatinamente impetrados no
Setor Saúde abalaram fortemente todos os direitos conquistados em termos de
garantias sociais no âmbito da Seguridade Social, mas também propiciaram novas
formas de gestão e de luta pela manutenção dos direitos fundamentais da
população. Em suma, a Aids caracteriza-se principalmente por uma sucessão de
eventos em rápida mudança, colocando na ordem do dia temáticas que são centrais
para o Serviço Social Contemporâneo: o recrudescimento da questão social - base
sociohistórica da requisição social da profissão - e a forma como esta se manifesta
nas diversas fronteiras nacionais e internacionais exigindo, portanto, novas
mediações, decorrentes das modificações que atravessam o Estado e a sociedade;
além de temas que adensam a sua centralidade na profissão, sendo os principais
aqueles que dizem respeito à cidadania e aos direitos, que se consubstanciam nos
processos de mobilização social, elaboração de políticas públicas e criação de
mecanismos permanentes de participação política. Mas se deve atentar também
para o surgimento de coalizões entre governos, setor privado, grupos da sociedade
civil e Organizações Não Governamentais (ONGs), repondo sob novas roupagens
uma das questões que vem mobilizando o Serviço Social nos últimos anos: a
relação entre o indivíduo e o Estado. Há que se ter a clareza de que o que se
encontra em jogo não é apenas a reestruturação neoliberal das esferas econômica,
política e social, mas uma reelaboração e redefinição das próprias formas de
representação destas esferas. O que desejamos sinalizar é que trabalhar com a
Aids significa agir sobre as novas formas de exclusão, trabalhar com minorias
sociais, com os não-cidadãos; lutar por direitos que não são exclusivos das pessoas
com HIV, mas de todo e qualquer cidadão. Depreende-se, pois, que o mundo
inteiro está mergulhado numa crise que se manifesta em todos os níveis. Parece
ser consensual que, num futuro próximo, as profissões que cuidam do "social"
serão chamadas a atuar. O problema reside em saber qual a forma será
exigida/esperada e como se responderá a ela.
Bibliografia
1. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro, Campus, 1992.
2. BRAVO, Maria Inês. Serviço Social e Reforma 1996, 1998.
3. DANIEL, Herbet; PARKER, Richard. AIDS: A Terceira Epidemia. São Paulo, Iglu,
1991.
4. GOMÉZ, José Maria. Globalizando a Cidadania. In: Alternativas. Rio de
Janeiro: Novamérica, 1998.
5. HANAN, Janete L.L. A Percepção Social da AIDS - Raízes do Preconceito e da
Discriminação. Rio de Janeiro, Revinter, 1994.
6. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
7. JAMESON, Frederic. "Periodizando os anos 60". In: BUARQUE DE HOLLANDA,
Heloísa. Pós-Modernismo e Política. Rio de Janeiro, Rocco, 1991.
8. ZOLO, Danilo. "La Ciudadanía en una Era Pós-comunista". In: Ágora n° 7,
Invierno, 1997.
1 - O termo "grupos de risco" foi largamente difundido e utilizado no início da
pandemia do HIV/Aids no sentido de indicar aqueles indivíduos que colocavam as
outras pessoas em risco de infecção pelo HIV o que, epidemiologicamente é
considerado incorreto, posto que esta expressão designa indivíduos ou grupos mais
propensos a adquirir certas patologias, não a transmiti-las. Hoje se avalia que esta
concepção inicial em muito contribuiu para que diversas pessoas (notadamente as
mulheres casadas e monogâmicas) fossem infectadas por seus parceiros sexuais.
Depois se passou à utilização da nomenclatura "comportamentos de risco", que se
mostrou igualmente ineficaz. Atualmente o termo considerado como o mais correto
é o de "exposição a situações de risco".
2 - Segundo MANN, a pandemia do HIV/Aids possui três momentos, tão distintos
entre si, que poderiam se configurar como três diferentes epidemias. Ao primeiro
momento ele denomina de "infecção silenciosa" (ou silente), correspondendo à
penetração da epidemia em escala mundial que, por demora em sua divulgação,
passou despercebida. A segunda epidemia corresponde à explosão da Aids em suas
formas clínicas mortais. Já a terceira epidemia é aquela relacionada às reações
sociais, culturais, econômicas e políticas advindas da pandemia e que, segundo o
autor, é a mais perigosa.
3 - As legislações de exceção se caracterizam por - como o próprio nome já explica
- abrirem uma exceção em determinado caso ou assunto, não raro, deixando de
contemplar questões similares. No caso da Aids, por exemplo, várias legislações de
exceção foram estabelecidas para os soropositivos, mas continuaram deixando a
descoberto pacientes acometidos por outras doenças igualmente fatais, como o
câncer.
4 - BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro, Campus, 1992.
5 - Ver especialmente JAMESON, Frederic. "Periodizando os anos 60". In: BUARQUE
DE HOLLANDA, Heloisa. Pós-Modernismo e Política. Rio de Janeiro, Rocco, 1991 e
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo, Cia. das Letras, 1995.
6 - Atuam no último estágio do ciclo de reprodução viral e impedem o HIV de ser
adequadamente elaborado e liberado pela célula CD4+ infectada. Os que se
encontram disponíveis para comercialização são: Saquinavir, Inadinavir, Ritonavir e
Nelfinavir.
7 - Compõem a primeira classe de drogas anti-retrovirais, inaugurada com o AZT.
Agem
incorporando-se
ao
DNA
do
vírus,
interrompendo
seu
processo
de
elaboração. O DNA resultante é incompleto e não consegue formar vírus novos. As
estas categorias pertencem
os seguintes medicamentos: Zidovudina (AZT),
Lamivudina (3TC), Didanosina (ddI), Zalcitabina (ddC) e Estavudina (d4T).
8 - A "cronificação" da Aids significa que, com as novas descobertas em termos de
medicamentos para debelar as infecções oportunistas e refrear a replicação do HIV
no organismo humano, a evolução clínica da Aids tende a se tornar mais lenta, o
que, em tese, acarretará na possibilidade de vida mais longa sem a perda da saúde
para aqueles infectados/doentes, oportunizando assim a manutenção da vida até o
aparecimento de novos medicamentos (incluindo-se a vacina) ou a descoberta da
cura.
9 - A imprensa já começa a noticiar casos de grupos que estão se expondo
deliberadamente a situações de risco sem tomar os cuidados necessários devido à
eficácia demonstrada por estes medicamentos e a promessa de outros a curto
prazo Cf. Libération, 02/04/96; L'Express, 04/04/96; "Gay americano quer nova
liberação" (JB, 21/12/97). Internacional, p. 18); e "Gays britânicos não tomam
precauções" (JB, 20/01/99).
10 - Somente para se ter uma idéia da magnitude da explosão destas Organizações
no que tange à Aids (que logicamente guarda relação com a nova configuração
assumida no plano mundial após a ofensiva neoliberal), em 1980 havia 4615 ONGs
no mundo (Hobsbawm, Op. cit.). Em 1991, a OMS identificou mais de 200 ONGs e
Organizações de Serviços Dedicados à Aids (OSAS), atuando nas diversas questões
relacionadas à Aids na África. A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS)
estimou a existência de 500 ONGs e OSAS dedicadas ao combate à Aids na América
Latina e a entidade norte-americana National AIDS Information Clearinhouse
relacionou cerca de 16.000 organizações dedicadas à Aids nos Estados Unidos.
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