CONVERSÃO, na Sagrada Escritura

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CONVERSÃO
na Sagrada Escritura
Perante a vastidão do tema, optei por sublinhar apenas
alguns aspetos da conversão, a partir de dimensões
que favoreçam uma reflexão pessoal sobre ela.
frei Domingo Montero *
1. A CONVERSÃO COMO EVANGELHO
Ao abordar o tema da conversão numa perspetiva bíblica, o primeiro elemento a destacar é que se trata de uma “feliz notícia”, de que a conversão é “evangelho” e coração do Evangelho. O que a carateriza não é o apelo ao homem para que se converta –
elemento comum a todas as religiões – mas a proclamação da conversão de Deus ao
homem, até se converter em homem. Este é o elemento distintivo da conversão evangélica.
Dar aos enunciados éticos a mesma importância que aos teológicos, ao abordar o tema
da conversão na proposta de Jesus, seria falsificá-la. A conversão não é chamamento
ao “esforço”, mas oferta de “graça”. Daqui derivarão as posteriores urgências da conversão para o homem, urgências do «amor primeiro» (Ap 2,4; ver 2 Cor 5,14), que
devem ser resolvidas a partir desta plataforma, pois «nós conhecemos o amor que
Deus nos tem e acreditamos nele» (1 Jo 4,16).
1.1. No Antigo Testamento
Já no Antigo Testamento se contempla o protagonismo de Deus, sob o tema da misericórdia. Uma das experiências mais antigas e mais profundas de Israel é a de que Javé
é um «Deus clemente e misericordioso». O texto de Êxodo 34,6-7 pode citar-se a este
respeito como paradigmático no frontispício da sua história, pois nele aparecem os
vocábulos típicos da misericórdia:
«Ó SENHOR! Ó Senhor! Deus misericordioso (=rahum) e clemente (=hanum),
vagaroso na ira, cheio de bondade (=hesed) e de fidelidade (=hemet), que
mantém a sua graça até à milésima geração, que perdoa a iniquidade, a rebeldia
e o pecado...».
Deste Deus misericordioso se faz eco o Salmo 103,8.
Esta experiência amplia-se com outra não menos significativa: o próprio Israel compreende-se como uma realidade surgida historicamente da iniciativa misericordiosa de
Deus: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egipto, e ouvi o seu clamor
diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de
o libertar da mão dos egípcios.» (Ex 3,78); e uma realidade mantida na existência
graças à mesma misericórdia:
Se o Senhor não estivesse do nosso lado
– Israel que o diga –
se o Senhor não estivesse do nosso lado,
quando os homens se levantaram contra nós,
ter-nos-iam engolido vivos.» (Sl 124,1-3)
E, se é certo que Israel descobre a misericórdia divina a partir do seu próprio pecado e
da sua própria desgraça, tal misericórdia, contudo, pertence à íntima essência de Deus
e supera n'Ele qualquer outra força (ver Os 11,8). É o crisol onde se fundem todos os
matizes do amor divino: o de pai (Is 63,16; Os 11,1ss; Sl 103,13), o de esposo (Os
2,3) e o de mãe (Is 49,14-15). É o rosto mais comum de Deus, que chega a ser definido como «o Misericordioso» (Sir 50,19). E além disso, a revelação da sua omnipo-
tência e envolve toda a criação, já que «a compaixão do homem tem por objeto o próximo, / mas a misericórdia divina estende-se a todo o ser vivo» (Sir 18,13); e assim,
«Tu tens compaixão de todos, pois tudo podes» (Sb 11,23) e procedendo assim «te
fazes respeitar» (Sl 130,4).
Israel celebrará, proclamará, invocará e se acolherá a esta misericórdia, protagonista
da sua história, que é toda ela “História de Salvação”. Deus irrompe nela para salvar e
nela, permanece como salvador.
Uma aproximação a esta denominação do amor salvador de Deus, que é a sua misericórdia, permite descobrir os seguintes aspetos:
Misericórdia constituinte (misericórdia e eleição/criação)
Misericórdia reconstituinte (misericórdia e perdão)
Misericórdia estimulante (misericórdia e futuro)
a) Misericórdia constituinte: Já o indicava ao princípio: Israel emerge dentre os
povos como uma decisão da misericórdia de Deus: «Quando Israel era ainda menino,
Eu amei-o, e chamei do Egipto o meu filho» (Os 11,1). E todos os seus ulteriores progressos ficarão a dever-se não ao seu próprio poder ou ao número das suas gentes,
mas a uma intervenção gratuita e generosa do Senhor:
«Toma cuidado em não esquecer o SENHOR, teu Deus... Não suceda que, depois de
teres comido e estares saciado, decidas construir boas casa para nelas habitar,
aumentar o teu gado (...) Então, o teu coração se tornaria soberbo, e tu esquecerias o SENHOR, teu Deus, que te tirou da terra do Egipto, da casa, de servidão. Foi Ele quem te conduziu através desse deserto grande e temível (...) Foi Ele
quem fez jorrar, para ti, água do rochedo duro. Foi Ele quem te alimentou neste
deserto com um maná desconhecido dos teus pais (...) Poderias dizer no teu coração: “Foi a minha força e o poder do meu braço que me proporcionaram esta riqueza”.» (Dt 8,11-17)
Em termos parecidos se exprime o Salmo 44,4-5. Josué (24,1ss), por seu lado, no
discurso de despedida, insistirá nesta leitura: a história de Israel é uma história pilotada, protagonizada pela misericórdia de Deus.
Mas não só a realidade de Israel. Toda a realidade criada emerge também desse amor
benevolente de Deus:
«Tu amas tudo quanto existe
e não detestas nada do que fizeste;
pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado.
E como subsistiria uma coisa, se Tu a não quisesses?
Ou como se conservaria,
se não tivesse sido chamada por ti?
Mas Tu poupas a todos, porque todos são teus,
ó Senhor, que amas a vida" (Sb 11,24-26).
b) Misericórdia reconstituinte: Mas esse «amor primeiro» não foi correspondi-
do. Os testemunhos bíblicos a este respeito são abundantes: «Lembra-te, não esqueças que desgostaste o SENHOR, teu Deus, no deserto, desde o dia em que saíste da
terra do Egipto até chegares a este lugar, revoltando-te contra o SENHOR» (Dt 9,7).
Oseias (11,1-3) explicita:
«Quando Israel era ainda menino, Eu amei-o,
e chamei do Egipto o meu filho.
Mas, quanto mais os chamei, mais se afastaram;
Entretanto, Eu ensinava Efraim a andar,
trazia-o nos meus braços,
mas não reconheceram
que era Eu quem cuidava deles".
O profeta Ezequiel (20,5ss) sublinhará essa falta permanente de correspondência, e
Jeremias (2,10-13) mostrará a sua estranheza perante um facto que não sem precedentes nem analogia na história dos povos:
«Passai, portanto, às ilhas dos Kitim e vede;
enviai gentes a Quedar e informai-vos bem
e vede se lá aconteceu algo de semelhante.
Acaso troca uma nação os seus deuses?
E, no entanto, aqueles não são deuses.
Mas o meu povo trocou a sua glória
por aquilo que não vale.
Pasmai, ó céus, acerca disto!
Tremei de espanto e de horror!
– oráculo do SENHOR.
Porque o meu povo cometeu um duplo crime:
abandonou-me, a mim,
nascente de águas vivas,
e construiu cisternas para si,
cisternas rotas,
que não podem reter as águas.»
Contudo, essa atitude negativa do povo não bloqueia nem paralisa o dinamismo do
amor de Deus, que não só é o primeiro, mas «permanece para sempre» (Sl 52,3;
136,1ss), pois
«a misericórdia do Senhor não acaba,
não se esgota a sua compaixão.
Cada manhã ela se renova.» (Lm 3,22)
«O meu povo é inclinado a afastar-se de mim;
quando se convida a subir ao que está no alto,
ninguém procura elevar-se.
Como poderia abandonar-te, o Efraim?
Entregar-te, ó Israel?
Como poderia Eu abandonar-te, como a Adma,
Ou tratar-te como Seboim?
O meu coração dá voltas dentro de mim,
comovem-se as minhas entranhas.
Não desafogarei o furor da minha cólera,
não voltarei a destruir Efraim;
porque sou Deus e não um homem.» (Os 11,7-9).
c) Misericórdia estimulante: O pecado afundou Israel no desânimo, apagou do
horizonte a sua alegria. A mensagem dos profetas Ezequiel e II Isaías, junto a certos
salmos de lamentação, fazem uma radiografia exata desta experiência de uma comunidade empobrecida e desanimada. A casa de Israel anda a dizer:
«Os nossos ossos estão completamente ressequidos, a nossa esperança desvaneceu-se; ficámos reduzidos a isto» (Ez 37,11). Esta é a palavra de Israel; muito diferente da de Deus: «Eis que abrirei as vossas sepulturas e vos farei sair
delas (...) Então, reconhecereis que Eu sou o Senhor DEUS, quando abriras vossas sepulturas e vos fizer sair delas, 6 meu povo. Introduzirei em vos o meu espírito e vivereis» (Ez 37,12-14).
E tudo isto, porque Deus não pode desentender-se de Israel: Ele é o seu “redentor”
por direito, o “goel” de Israel; e com semelhante “goel”, quem poderá temer? (ver Rm
8,31).
Israel tem futuro, porque o futuro é Deus e de Deus. Deus tem a última palavra – a
misericórdia – e nela reside o futuro de Israel.
1.2. Jesus, o rosto misericordioso de Deus
«Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos,
por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do
Filho» (Heb 1,1-2). Também no tema da conversão de Deus ao homem. Apesar da
densidade e intensidade com que o Antigo, Testamento o revela, estamos ainda no
campo do fragmentário. E em Cristo «resplendor da glória de Deus e imagem fiel da
sua substância» (Heb 1,3) que brilha com maior perfeição o rosto do «Pai das misericórdias e Deus de toda a consolação» (2 Cor 1,3).
Jesus irrompe na História como incarnação e proclamação dessa realidade. Por isso,
com Ele atinge-se a «plenitude do tempo» (Gl 4,4). Os tempos do homem esgotaram-se, sem renovar o homem; começa o tempo de Deus, que é inaugurado com a
maior ousadia – a conversão de Deus em homem – e com o chamamento desse Deus
convertido à conversão do homem. Por isso, a conversão, em Jesus, é prioritariamente
anúncio do desígnio salvador de Deus; implica renúncias, porque este desígnio tem as
suas incompatibilidades: a entrada nesse mundo novo, nesse tempo novo exige deitar
fora rastos ou, se se preferir, exige “libertações”; finalmente, comporta denúncias de
tudo aquilo, e daqueles, que obstaculiza/m ou paralisa/m esse plano salvador.
Para ser anúncio, evangelho de conversão, Jesus «esvaziou-se a si mesmo» (Fl 2,6ss)
– renúncia – e pôs a nu as resistências surgidas perante o seu projeto evangelizador
– denúncia –.
Neste sentido, convém advertir um matiz importante. Entre João Baptista e Jesus existe uma grande diferença: João é pregador da conversão a Deus; Jesus incarna a conversão de Deus. Em João predomina o aspeto ético-ascético; em Jesus, o teológicocelebrativo.
2. A CONVERSÃO EM DEUS: ASPETO CONTEMPLATIVO
Uma aproximação atenta à Sagrada Escritura adverte-nos de que a conversão do povo
é possível porque é querida por Deus. E a sua vontade, pois "Deus, nosso Salvador,
quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade" (1
Tm 2,4; ver Ez 18,23).
Deus é o agente principal: «É assim que a vou seduzir: ao deserto a conduzirei, para
lhe falar ao coração (...) Aí, ela responderá como no tempo da sua juventude» (Os
2,16-17). Por isso, «ó Deus, volta-te para nós! (ou «fazei-nos voltar», segundo outras
versões) Mostra-nos o teu rosto e seremos salvos» (Sl 80,4; ver Jr 31,18); pois «ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não atrair» (Jo 6,44), dado que «é
Deus quem opera em vós o querer, e o agir» (Fl 2,13).
Também é Deus a meta da conversão: «Buscai-me e vivereis!» (Am 5,4) Mas Deus
é, sobretudo, o paradigma, o modelo da conversão: «Tanto amou Deus o mundo, que
lhe entregou o seu Filho Unigénito» (Jo 3,16; ver Fl 2,6ss). Sim, Jesus é a visibilização, o sacramento da conversão de Deus ao homem e do homem a Deus. E, assim
como nele a conversão de Deus ao homem é total e sem reservas, assim há de ser a
conversão do homem a Deus, total e sem reservas (Mt 10,37ss). Não pode ser dubitativa nem fragmentária, mas decisiva e radical. Jesus incarna o SIM de Deus ao homem
e o SIM do homem a Deus, pois
«o Filho de Deus, Jesus Cristo, não foi um “sim” e um “não”, mas unicamente
um “sim”. Nele todas as promessas de Deus se tornaram “sim” e é por isso que,
graças a Ele, nós podemos dizer o “ámen” para glória de Deus» (2 Cor 1,19-20).
«Sede perfeitos/misericordiosos, como é perfeito/misericordioso o vosso Pai celeste»
(Mt 5,48; Lc 6,36). «Aprendei de mim» (Mt 11,29). Paulo recomendará: «Tende entre
vós os mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus» (Fl 2,5).
3. DIMENSÕES DA CONVERSÃO: ASPETOS OPERATIVOS
O aspeto da conversão visto até agora ficaria incompleto, se eliminássemos dele ou
então se silenciássemos a necessidade de resposta-acolhimento a essa iniciativa de
Deus. O anúncio da conversão é verdadeiro “evangelho” para o homem, contanto que
ele tome consciência da sua situação e esteja disposto a receber a salvação que lhe é
oferecida, porque «todos estamos sob o domínio do pecado» (Rm 3,19). Este processo
de acolhimento supõe, entre outros, dois momentos fundamentais: um de rutura e
outro de abertura.
3.1. Rutura
a) Com o pecado (amartía). A conversão supõe rejeição do pecado, não apenas
enquanto ato isolado, mas também enquanto atitude global e pragmática da vida, Para
compreendermos corretamente o pecado, a primeira exigência é libertá-lo da dimensão factual, circunstancial e quantificável ainda que se desconheça isto.
No Novo Testamento, especialmente no Evangelho de São João, é clara a dialética
entre pecado=atitude e pecados = atos; entre pecado = potência configurante e pecados = concretizações históricas. Jesus, participando desta dialética, opta preferentemente contra o pecado/atitude e força configurante (Jo 1,29; 16,8).
A atomização moralizante da vida, refletida na moral casuística, é o elevado -preço
pago que, de ricochete, direta ou indiretamente, contribuiu para uma interpretação e
vivência redutiva do sacramento da penitência, e ainda hoje contribui para o descrédito ou a rejeição da prática do Sacramento.
b) Com a autossuficiência (anomía). Se se quiser entender o essencial da con-
versão, é preciso ter presente as palavras com que Jesus insiste na necessidade de
mudança, de «fazer-se como crianças» (Mc 10,15), isto é: renunciar à autossalvação
para entender e receber a graça da salvação (Ef 2,5).
A autêntica conversão dá-se quando o homem se descentra de si mesmo, para ser
centrado por Deus; quando não pretende atingir a sua salvação pelas próprias forças,
mas deixa de olhar para si mesmo e, com audácia, confia em Deus e dele espera todo
o bem. O reconhecimento por parte do homem da sua incapacidade salvífica supõe a
possibilidade de receber a salvação de Deus como graça. Com isto não se está a postular nem a defender uma transferência de responsabilidades, uma alienação na
exterioridade – Deus é “mais íntimo a mim mesmo do que eu próprio”, confessa Sto.
Agostinho –, mas uma descentralização egoísta que descubra – revele – ao homem a
sua dimensão relacional.
c) Com a injusta (adikia). O convertido há de redimensionar todo o sistema de
relações pessoais com Deus, com os outros – pessoas e coisas – e consigo mesmo,
para o resgatar de infiltrações e desvios egoístas.
Uma exigência fundamental da conversão é a prática da justiça, entendida como “Caminhar na presença do Senhor”, com todas as implicações desta opção.
Justiça é uma categoria central na Bíblia. É atributo de Deus, e como tal significa, primordialmente, salvação. E é vocação do homem, consistindo na sua justa relação com
a criação e, particularmente dentro dela, com as pessoas e com o Criador. É um término de relação inter-humana (Is 16-17=Lc 6,36-38), inter-criatural (Is 11,5-9=Rm
8,18-26) e do ser humano com Deus (Is 1,11-20=Mt 7,21-23). Converter-se, nesse
sentido, significa “voltar-se” com uma nova atitude para Deus, para as pessoas e para
o mundo.
d) Com a mentira (pseysma). A mentira, como atitude existencial contra a Verda-
de, é um dos principais obstáculos da conversão e, consequentemente, uma das ruturas impostas a todo o ser que procura a luz (Jo 3,20).
A conversão traz uma nova filiação. O diabo é «pai da mentira» (Jo 8,44), enquanto
que o convertido está chamado a ser «filho da Luz» (Jo 12,36; 1 Ts 5,5) e, por conseguinte, a viver como tal (Ef 5,8).
A conversão é libertação, pois para sermos livres nos libertou Cristo (Gl 5,1), e só a
Verdade nos tomará livres (Jo 9,32).
3.2. Abertura
A conversão não se compreende só e principalmente a partir das ruturas que impõe; a
“boa notícia” de Jesus não é uma diminuição, nem uma subtração à vida do Homem.
«Não vim revogar, mas levar à perfeição» (Mt 5,17): não é uma corrente interminável
de “nãos”, mas um SIM (2 Cor 1,19) fundamental e global a Deus-Pai. SIM que reveste
a modalidade de um regresso. Com esta peculiaridade: o caminho não é percorrido na
sua totalidade pelo homem sozinho; o próprio Deus se pôs a caminho para facilitar e
possibilitar o reencontro. Mais ainda: Deus precede-nos nesse caminho (Lc 15,20).
«A conversão a Deus – escreve João Paulo 11 – consiste sempre na descoberta da sua
misericórdia, isto é, daquele amor que é paciente e benigno (1 Cor 13,4) como o é o
Criador e Pai... A conversão a Deus é sempre fruto do retorno para junto deste Pai,
que é rico em misericórdia (Ef 2,4). O autêntico conhecimento do Deus da misericórdia, Deus do amor benigno, é a fonte constante e inexaurível de conversão, não somente como momentâneo ato interior, mas também como disposição permanente,
como estado de espírito. Aqueles que chegam ao conhecimento de Deus assim, aqueles que O veem assim, não podem viver de outro modo que não seja convertendo-se à
Ele continuamente» (DIM 13)
Os termos bíblicos que objetivam a realidade da conversão projetam certa luz sobre a
sua modalidade: shub=voltar e metanoien=pensar-mais-além.
* Com o verbo shub designa-se o regresso do cativeiro da terra pátria à casa do
Pai: o caminho existencial do homem não só há de corrigir alguns graus na sua
orientação; há de girar completamente para recuperar a liberdade.
* Com metanoien=transmentatio quer-se indicar que o homem não só tem que
enriquecer o seu pensamento com alguns elementos novos, mas tem que transcender-se a si, mesmo «para ter a capacidade de aprender qual a largura, o
comprimento, a altura e a profundidade a capacidade de conhecer o amor de
Cristo, que ultrapassa todo o conhecimento» (Ef 3,18-19). Não se trata de adquirir uma “nova mentalidade”, mas de ter a «mentalidade de Cristo» (1 Cor
2,16). E esta reorientação só é possível com a graça de Deus (2 Cor 5,18), oferecida de maneira multiforme em Jesus Cristo, Caminho que possibilita os nossos passos e Verdade que ilumina os nossos pensamentos.
A conversão supõe, portanto, um “êxodo”, uma “saída” dessas escravidões fundamentais – pecado, autossuficiência, injustiça e mentira – e uma “entrada” em espaços só
explorados pelo amor de Deus e só exploráveis a partir desse amor.
3.3. Reorientação existencial perante o Outro,
os outros e as outras coisas
Já o referimos acima: a conversão recupera, restaura as justas relações cortadas pelo
pecado, entendido fundamentalmente como “desorientação” existencial e “fratura”
violenta da solidariedade entre os seres e os estados da criação.
Efetivamente, o pecado “desorientou” o homem. «Onde estás?» (Gn 3,9) – é a pergunta de Deus a Adão, que, antes de perder o Paraíso, já se tinha perdido a si próprio.
Ao pecar, confundiu-se; por isso, ficou desorientado – «escondi-me» (Gn 3,10) – e
introduziu uma fratura violenta nas relações inter-humanas e interculturais (Gn
3,14-19; Rm 8,20).
A conversão devolve ao homem a orientação e a relação original, que ele nunca deveria ter perdido.
3.4. Configuração cristológica
O chamamento à conversão feita por Jesus concretiza-se em «acreditai no Evangelho»
(Mc 1,15), que é «Jesus Cristo, Filho de Deus» (Mc 1,1). Por isso, acreditar no Evangelho resume-se no seguimento de Jesus.
Seguir não é imitar, nem repetir; mas fazer avançar, perseguir e prosseguir no caminho, no projeto, na causa de Jesus. É neste sentido que se entende a afirmação do
Evangelho: «Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim também fará as
obras que Eu realizo; e fará obras maiores do que estas» (Jo 14,12); bem como as
afirmações paulinas sobre o contributo positivo do crente para a obra de Cristo (Cl
1,14), que, se não é insuficiente em si mesma, não está, contudo, completa até que
não inclua, a partir da liberdade, todo o projeto criatural em Deus (ver Cl 1,15-20).
Seguir Jesus exige conhecer e viver a sua mensagem e o seu percurso existencial,
assumi-lo como proposta alternativa para a existência própria e alheia, pois «quem diz
que permanece em Deus também deve caminhar como Ele caminhou» (1 Jo 2,6), assumir o seu estilo e o seu conteúdo.
Este seguimento implica esforço (Lc 13,24), violência (Mt 11,12). Mas não é forçado
nem violento; é proposto e abraçado na liberdade: «Se alguém quiser vir após mim»
(Mc 8,34). É um caminho interior para o interior de Cristo.
Seduzido por Cristo, Paulo aparece como um claro expoente desta realidade: «Para
mim, viver é Cristo» (Fl 1,21). «Estou crucificado com Cristo. Já não sou -eu que vivo,
mas é Cristo que vive em mim» (Gl 2,19-20).
Não se trata de nenhuma despersonalização nem alienação do Apóstolo, mas de uma
personalização de Cristo, admitido conscientemente como referência existencial primordial. Paulo sente e consente com Cristo, existe e coexiste em Cristo. Trata-se de
uma configuração que redimensiona a pessoa toda: sentimentos (Fl 2,5ss) e mentalidade (1 Cor 2,16).
A partir desta configuração pessoal, o agir do cristão reveste a modalidade duma ação
de Jesus, porque «é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20). É isto, precisamente, o que
significa levar «as marcas de Jesus» (Gl 6,17): enfrentar a vida, assumindo as implicações do seguimento, escutando o apelo à conversão, que é o chamamento urgente
do amor (2 Cor 5,14).
«Corramos com perseverança a prova que nos é proposta, tendo os olhos postos em
Jesus» (Heb 12,1-2). O cristão jamais deve perder de vista Jesus Cristo, como referência primordial da vida, sob pena de se perder, metendo-se por caminhos errados e
estéreis que não conduzem a lado nenhum.
Trata-se de «conhecê-lo a Ele» (Fl 3,10), de «nele ser achado» (Fl 3,9), de «ter os
seus mesmos sentimentos» (Fl 2,5), de «caminhar como Ele caminhou» (1 Jo 2,6), de
ter «sempre presente Jesus Cristo» (2 Tm 2,8ss). E isto não se improvisa.
Para o “seguimento cristão” é imprescindível esse matiz contemplativo e interiorizador
da pessoa de Cristo, até ao ponto de experimentar a sua presença como sedução permanente (Fl 3,12), inspiradora dos maiores radicalismos (Fl 3,8). Nunca o perder de
vista! E isto significa reconhecê-lo como “memória dinâmica e inspiradora”; descobri-lo
como inspiração permanente das nossas opções concretas.
3.5. Nova antropologia
A cristificação, o ser e existir em Cristo, outra coisa não é do que «a nova criatura»;
pois, «se alguém está em Cristo, é uma nova criação» (2 Cor 5,17).
A conversão dá à luz o homem novo (Ef 2,15), cidadão dos «novos céus e nova
terra, onde habita a justiça» (2 Pe 3,13). Isto significa apresentar Cristo como a verdadeira referência antropológica. De facto, a cristologia é o ponto de partida da verdadeira antropologia.
«Façamos o ser humano» (Gn 1,26): foi a primeira decisão de Deus, o seu grande
projeto. E, para o configurar, olhou para si mesmo: "à nossa imagem, à nossa semelhança" (Gn 1,26). Expressão ainda não totalmente esclarecida, talvez porque resida
todo o "mistério" do homem, expressão que, de qualquer modo, encerra uma referência iniludível do homem a Deus, e uma presença e referência indestrutível de Deus no
homem e pelo homem.
A partir daí, Deus e o homem são companheiros de jornada. E todo esse itinerário foi
um acompanhamento humanizador, não isento -dê dramatismo, Pois, se o projeto de
Deus "era muito bom" (Gn 1,31), a matéria com que foi amassado (Gn 2,7), depressa
mostrou a sua fragilidade. A Bíblia fala-nos, quase a seguir, de um profundo desencanto (Gn 6,6). Mas, Deus não abdicou do seu propósito, porque fazer o homem e
fazê-lo homem é a grande tarefa da História da Salvação.
O Novo Testamento falará de Cristo como «novo e último Adão» (1 Cor 15,45ss). Só aí
a humanidade consegue ser «imagem do Deus invisível» (Cl 1,15). Até aí, não haverá
descanso.
Hoje a exegese não esquece, ao considerar o texto da criação do homem, a sua
perspetiva profético-escatológica. Ali acaba, ou começa um projeto? 0 Adão do Génesis e a sua circunstância foram uma realidade, ou uma profecia?
Houve teólogos medievais que puseram em dúvida, ou negaram simplesmente, que
aquele estado paradisíaco tivesse existido.
De qualquer modo, São Paulo é bastante claro: «Assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi feito um ser vivente e o último Adão, um espírito que vivifica. Mas o
primeiro não foi o espiritual, mas o terreno; o espiritual vem depois. O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo vem do Céu. Tal como era o terrestre,
assim são também os terrestres; tal como era o celeste, assim são também os celestes» (1 Cor 15,45-48).
Não é que haja dois homens, dois projetos humanos independentes saídos das mãos
de Deus. Há apenas um, que passa do animal ao espiritual, graças à intervenção do
mesmo Deus. Assim, o próprio primeiro homem é o tipo (figura) do que havia de vir;
Adão é profecia ou anúncio de Cristo, o antítipo (Rm 5,14).
Os escritos neotestamentários apresentam Jesus como verdadeiro homem e paradigma do homem verdadeiro (Jo 19,5): este é o horizonte e a utopia humana, a nossa
tensão e inspiração; mas, além disso, é também o protagonista e o espaço desse novo
e definitivo perfil do homem, porque «Ele, dos dois povos, fez um só para, a partir do
judeu e do pagão, criar em si próprio um só homem novo» (Ef 2,14-15).
Pela conversão, unidos Àquele que tomou um corpo carnal (Cl 1,22), os cristãos morreram p ao pecado (Rm 8,10) pela incorporação à morte de Cristo no Batismo (Rm
6,5ss), onde tem origem o novo nascimento (Tt 3,5), para uma nova dimensão existencial: serem «feitos por Deus, criados em Cristo Jesus» (Ef 2,10); pois, «se alguém
está em Cristo, é -uma nova criação. O que era antigo passou; eis que surgiram coisas
novas» (2 Cor 5,17; Gl 6,15).
Novidade que implica acolhimento: «Do mesmo modo que recebestes Cristo Jesus, o
Senhor, continuai a caminhar nele: enraizados e edificados nele, firmes na fé» (Cl
2,6-7); e abandono: «deveis despir-vos do homem velho (...); deveis revestir-vos do
homem novo, que foi criado em conformidade com Deus» (Ef 4,22-24).
A conversão incarna e toma visível a categoria da novidade a nível antropológico e
criacional, em geral.
O chamamento de Jesus à conversão é a proposta de uma nova humanidade. O projeto humano revelado e incarnado nele diferia qualitativamente dos modelos considerados no seu tempo como "canónicos"; daí a exigência: «Vinho novo, em odres novos»
(Mc 2,22). Jesus traz esta inaudita possibilidade: não se trata de mais do mesmo –
mais vinho do mesmo vinho – mas de "outro" vinho, «o melhor vinho» (Jo 2,10), extraído da sua própria Videira (Jo 15,1). Com Jesus chegou a mudança!
3.6. Processo de maturação e discernimento
Se a conversão não pode ser parcial nem dubitativa, mas, desde o primeiro momento,
decisiva, tão-pouco pode ser automática: é um caminho, uma transformação. Não é
um facto isolado nem isolável.
Herdeiros de uma mentalidade e espiritualidade fixistas, não estamos habituados a
entender e a viver a fé e a conversão, como um processo, como uma realidade aberta,
“in fieri”. Isso significa que o acontecimento cristão, e o acontecimento da conversão,
é decisivo, mas não se esgota numa única decisão; existe algo único, em movimento,
que nunca está no mesmo ponto.
Neste sentido, pode aplicar-se ao processo da conversão o que Paulo afirma de si
mesmo a respeito do seu projeto cristão:
«Não que já o tenha alcançado ou já seja perfeito; mas corro, para ver se o alcanço, já que fui alcançado por Cristo Jesus – maravilhosa definição da conversão-vocação! Irmãos, não me julgo como se já o tivesse alcançado. Mas uma
coisa faço: esquecendo-me daquilo que está para trás e lançando-me para o que
vem à frente, corro em direção à meta. Todos nós, os perfeitos (os convertidos),
tenhamos, pois, estes sentimentos!» (Fl 3,12-15).
A conversão insere-se num processo de maturação pessoal protagonizado pelo Espírito
Santo. Implica um exercício permanente de discernimento a respeito dos verdadeiros
valores: «Não vos acomodeis a este mundo – rutura –. Pelo contrário, deixai-vos
transformar, adquirindo uma nova mentalidade, para poderdes discernir – abertura –
qual é a vontade de Deus: o que é bom e lhe é agradável, é perfeito» (Rm 12;2). E
exige o trabalho da própria estrutura pessoal para a adequar à nova situação (Ef 4,
1ss; Cl 3,1ss).
Tal processo gerará novas referências: de uma existência centrada em si mesmo a
uma existência
■ referida a Deus: «Nenhum de nós vive para si mesmo e nenhum morre para si
mesmo. Se vivemos, é para o Senhor que vivemos» (Rm 14,7-8);
■ referida a Cristo: «A vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de
Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim» (Gl 2,20);
■ referida ao seu projeto histórico, o Reino: «Procurai primeiro o Reino de Deus
e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo» (Mt 6,33).
1.7. Instância permanente, a nível pessoal e eclesial
O chamamento à conversão não é o “primeiro” chamamento: é o único! Não há outros,
nem somos chamados para outra coisa. A conversão é a única proposta existencial de
Jesus, e é a mesma que os seus discípulos hão de renovar depois da Páscoa (At 2,37).
Converter-se é viver em estado e em atitude de conversão, atentos ao Deus -que está
à porta, chamando (Ap 3,20) e convida à vigilância (Mt 24,42; 1 Pe 4,7). E uma instância -latitude permanente a nível pessoal (Lc 13,1ss) e a nível eclesial, como lembra
o julgamento das Igrejas no livro do Apocalipse (Ap 2-3).
3.8. Conversão ao irmão
Na Sagrada Escritura, este é um dos aspetos operativos mais importantes da conversão, enquanto corretivo de uma evasão espiritualista, pois «a Deus, nunca ninguém o
viu» (1 Jo 4,12; e em Jo 1,18: «a Deus jamais alguém o viu»; ver Ex 3, 20).
«Onde está o teu irmão?» (Gn 4,9) É a pergunta que pesa sobre qualquer pretensa
conversão a Deus. Já o livro de Isaías denunciava o equivoco de confundir a vontade
de Deus com as elaborações litúrgicas e ascéticas (Is 58), feitas mais à medida dos
desgostos da religião, do que da verdadeira fé.
A mediação humana é indispensável para o encontro com Deus (1 Jo 3,11-24), e as
necessidades humanas determinam o julgamento divino acerca da nossa vida (Mt 25,
34-46). Converter-se, a Deus exige converter-se ao irmão; mais ainda: converter-se
em irmão.
O que é ser irmão? Antes de mais, uma revelação: «Vós sois todos irmãos» (Mt 23,
8), porque «um só é o vosso Pai» (Mt 23,9). Mas é também uma tarefa; é reconhecer
outra existência com as mesmas raízes, mas com desenvolvimentos autónomos. Ser
irmão é um facto referencial e diferencial, plural e solidário. É reconhecer que a vida
não apenas se recebe e se vive, mas convive-se. É vocação de aproximação ao outro,
e de integração respeitosa do outro em mim e de mim no outro, do melhor de ambos.
É saber-se metade de uma realidade que só é completa no encontro, É chegar a acreditar na possibilidade da permuta de corações. E ampliar as capacidades de entrega e
de acolhimento, sentindo o outro como pedra viva na construção da própria vida e
sentindo-se pedra viva na construção do outro (cf. 2 Pe 2,5).
Tal conversão é matizada por três rasgos fundamentais: Reconciliação, Misericórdia e
Compreensão.
a) Reconciliação: «Se fores apresentar uma oferta sobre a altar...» (Mt 5,23ss). A
conversão a Deus não pode ser uma leviandade, nem é compatível com a rotura da
comunhão com o irmão, a quem deveremos perdoar não apenas sete vezes (Mt 18,
21ss).
Reconciliar não significa anular nem eliminar a alteridade ou a diversidade, mas procurar os pontos comuns para, a partir deles, potenciar a coesão e a comunhão; voltar a
conciliar, a recuperar o princípio saudável da relação, com uma indeclinável vontade
de chegar à «verdade no amor» (Ef 4,15).
b) Misericórdia: O princípio da conversão de Deus, ao homem é a misericórdia; e a
conversão do homem ao homem deve inspirar-se no mesmo princípio.
São Paulo convida a revestirmo-nos de sentimentos de misericórdia (Cl 3,12), e a
exercê-la com alegria (Rm 12,8). Uma misericórdia operativa: o juízo final definitivo
incidirá sobre a misericórdia pra cada ou, omitida (Mt 25,31-46; Tg 2,13).
É a tarefa confiada à Igreja (2 Cor 5,18-19), que não só «deve professar e proclamar a
misericórdia divina em toda a sua verdade» (Dives in Misericordia, 13), mas também
torná-la visível nas obras.
c) Compreensão: «Aquele que é fraco na fé, acolhei-o, sem cair em discussões,
sobre as suas maneiras de pensar Deixemos, pois, de nos julgar uns aos outros. Tomai
de preferência esta decisão: não ser para o irmão causa de tropeço ou de escândalo
Procuremos portanto, aquilo que leva à paz e à edificação mútua (...) Acolhei-vos uns
aos outros, na medida em que também Cristo vos acolheu» (Rm 14,1-19; 15,7).
Estas recomendações de Paulo são uma antecipação daquelas que Francisco de Assis
formulou na Regra bulada: «Aconselho, admoesto e exorto no Senhor Jesus Cristo a
todos os meus irmãos que, quando vão pelo mundo, não litiguem, nem questionem,
nem censurem os demais; mas sejam mansos, pacíficos, modestos, sossegados e humildes, e a todos falem honestamente, como convém» (2 Regra 3,10-11). «E a todos
admoesto e exorto que não desprezem nem julguem os homens que virem com vestidos macios e de cores, usar comidas e bebidas delicadas; mas antes cada um a si
mesmo se julgue e despreze» (2 Regra 2,17).
4. CONVERSÃO E COSMOVISÃO
A conversão é um princípio gerador e regenerador de perspetivas; possibilita outra
visão da realidade: mais fraterna (Mt 23,8), mais confiada (Mt 6,25ss), redimida pelo
amor de Deus (Jo 3,16), centrada em Cristo, pedra angular e remate da abóbada (Ef
1,3ss; Cl 1,15ss), alfa e ómega (Ap 11,8); e também mais crítica (Rm 12,2).
A conversão introduz um "antes" e um "depois", não só a nível pessoal – «se alguém
está em Cristo é uma nova criação, o que era antigo passou; eis que surgiram coisas
novas» (2 Cor 5,17); mas também a nível de criatura: «novos céus e nova terra» (2
Pe 3,13).,
O convertido recupera a visão original de Deus sobre o mundo (Gn 1,31) gerando um
saudável otimismo (Rm 8,28-39; 1 Cor 3,21), descobrindo a mais-valia de sentido
existente em toda a criatura (Sb 11,24-26) e revalorizando-a (Sl 8; 103).
Esta foi a experiência de Francisco de Assis. Ao olhar retrospetivamente a sua vida,
distingue dois períodos nitidamente diferenciados: «Quando eu estava em pecados» e
«quando Deus, nosso Senhor, quis dar a sua graça a mim, o irmão Francisco, para que
começasse a fazer penitência». Ao primeiro corresponde a seguinte leitura da vida:
«parecia-me muito amargo dar com os olhos nos leprosos»; ao segundo: «o que antes
me parecera amargo, converteu-se para mim em doçura de abria e de corpo» (Testamento 1-3). Só a partir da sua conversão ao Evangelho, Francisco redescobre – ou
melhor: lhe é revelado o rosto. Fraterno da criação (Cântico das Criaturas). E que a
conversão supõe uma mudança de visão.
8. CONVERSAO É FESTA
Talvez se passe por alto este dado com demasiada facilidade e frequência: a conversão é uma proposta alegre e de alegria. No seu anúncio da conversão, Jesus exprime-se em clave de festa. As imagens do banquete (Lc 14,6), das bodas (Mt 22,2) exprimem -o chamamento à conversão como convite para uma festa, a festa que Deus
preparou para o homem.
Uma coisa é clara: a conversão provoca «alegria no Céu» (Lc 15,7), «alegria entre os
anjos de Deus» (Lc 15,10), e deveria provocar alegria também entre os irmãos: «Filho, tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e
reviveu, estava perdido e foi encontrado» (Lc 15,31-32).
O livro dos Atos diz que, depois da conversão, o eunuco «seguiu o seu caminho cheio
de alegria» (At 8,39); e depois da proclamação da Boa-Nova na Samaria «houve grande alegria naquela cidade» (At 8,8).
A conversão não pode ser formulada em termos rígidos nem ser envolvida em tons
negros ou roxos: «Alegrai-vos sempre no Senhor» (Fl 4,4; 1 Ts 5,16), Encontrar-se
com Deus assim, o exige! Deve ser exteriorizada em formas significativas dessa realidade, para o que nada contribuem certos espaços lúgubres, ou certas fórmulas rigoristas.
6. ESTRUTURA SACRAMENTAL DA CONVERSÃO
Este aspeto é fundamental, mas apenas o vou aludir; de outro modo, teria de entrar
numa leitura profunda da teologia sacramental. Uma coisa é clara: a conversão cristã
manifesta-se e atualiza-se sacramentalmente. Assim acontece com a conversão de
Deus ao homem, incarnada em Cristo, sacramento de, conversão, de encontro de
Deus com o homem e do homem com Deus (2 Cor 5,18). E eclesialmente. É um
assunto pessoal, mas não individual, pois tem profundas implicações comunitárias.
a) Neste sentido, o Batismo é o sacramento fundamental e primário da conversão, da
incorporação a Cristo (Rm 6,3-11), e da configuração existencial com Ele (Gl 2,19; 3,
27); assim como da incorporação na comunidade (Ef 4,5; 1 Cor 12,13). Por outro,
lado, sublinha-se a ideia da força regeneradora, devida à ação do Espírito (Tt 3,5; Jo
3,1-8).
A partir desta apresentação, no Novo Testamento, particularmente nos escritos paulinos, desenvolve-se uma exigente parenese. Assim, uma correta inteligência do Batismo exclui o abuso da abundante graça de Deus (1 Cor 10,1-13); exige a mais dura
luta contra a concupiscência e as paixões pecaminosas (Rm 6,12-14.19; G1 5,24) e
oferece múltiplos motivos para o esforço moral (Ef 5,6-14; Fl 2,15ss; C1 3, 12-17; 1
Ts 4,3-8; 1 Jo 2,6; 3,6).
b) A Eucaristia desempenha também um papel importante como estrutura sacramental de conversão. Não é apenas pão e vinho convertidos em Corpo e Sangue de Cristo
(1 Cor 11,23-25); é também alimento dos convertidos em Cristo (1 Cor 11,26-30; Jo
6,34) e de conversão em Cristo (Jo 6,53-58). Por outro lado, não convém esquecer a
Eucaristia corno âmbito e urgência da conversão ao irmão (1 Cor 11,17-22.33).
c) Enfim, uma estrutura sacramental que melhor exprime a conversão como atitude
permanente é a do chamado sacramento da Reconciliação, enquanto concretiza o
perdão da Igreja e na Igreja (Tg 5,16; Jo 20,23). A crise por que hoje está marcada
talvez esteja a urgir um novo questionamento ou uma revisão profunda dessa estrutura.
Gostei muito da expressão lida numa circular de D. António Villaplana, bispo de Leão:
«O sacramento da penitência é, talvez – e sem talvez – o sacramento mais humano de
todos.» A partir daí pergunto-me se realmente o entendemos assim, se o vivemos
assim e se o servimos ou administramos assim, como uma celebração; ou, antes, como um inevitável purgatório. Interrogações que não podemos deixar fora dos nossos
âmbitos fraternos, mas devemos acolher dentro de casa, para realizar uma vivência e
um exame evangélico sobre a realidade da conversão.
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Os textos bíblicos são citados segundo a Nova BIBLIA dos Capuchinhos
* Licenciado em Sagrada Escritura pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, frei Domingo Montero
é franciscano capuchinho espanhol, diretor da revista “Evangelio y Vida” dos capuchinhos de
Espanha. Publicou 14 livros de caráter bíblico, dois deles editados pela Difusora Bíblica em Português: Parábolas: Ontem e Hoje (1015) e Bem-aventurados (2016). Foi dois triénios ministro
provincial dos franciscanos capuchinhos da Província de Castela e vários triénios guardião em
Leão e em Salamanca. Este estudo foi apresentado no IX Encontro de Superiores locais da Conferência Ibérica dos Capuchinhos, em Manresa (Espanha), em 17 de outubro de 2000.
Tradução / frei Acílio Mendes
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