PERSONAGEM CONCEITUAL, O FILÓSOFO E SEU DUPLO JOSÉ EDUARDO PIMENTEL FILHO1 Resumo: O presente texto trata do conceito de personagem conceitual, mostra como Deleuze e Guattari o pensaram, e mostra como ele é utilizado pelos filósofos em suas obras, como um recurso de exposição de suas filosofias. E o texto ainda demonstra também como os próprios filósofos viram personagens de suas próprias obras. Palavras-chave: Personagem conceitual, filosofia, filósofos, Deleuze, devir. A idéia de Personagem Conceitual (ou Personagem Filosófico) surge no livro O que é a Filosofia? de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Ela designa a necessidade que os filósofos têm de utilizar personagens literários, fictícios ou históricos para expor sua própria filosofia. O Personagem Conceitual precisa de um território próprio e de uma linguagem igualmente particular, onde, só inserido aí, ele faz sentido. Esse território e linguagem serão compostos pelo universo de conceitos criados pelo filósofo. Porém, linguagem (os conceitos) e território (plano) nada são senão um campo infértil se aí não habitar aquele que irá transitar e falar nesse universo. Não é a troco de nada que Deleuze retira o peso historicista que Foucault havia dado a filosofia, para no lugar apontar uma geo-filosofia. 1 Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). José Eduardo Pimentel Onde o conceito de plano de imanência seria o referido território por onde o personagem conceitual passearia. Os filósofos criam os conceitos, que por sua vez se organizam na forma de plano de imanência, e simultaneamente os conceitos também geram o vocabulário desse plano. Por exemplo, o plano do cogito de Descartes não faz sentido sem uma linguagem que inclua: o Eu, o gênio maligno, a desconfiança dos sentidos, etc. E o habitante desse plano e falante dessa língua, segundo o livro “O que é a Filosofia?”, seria o personagem: “o Idiota”2. Contudo, logo na introdução de O que é a Filosofia? Gilles Deleuze e Félix Guattari mostram como o filósofo se torna o primeiro personagem conceitual de todos. Filósofo enquanto amigo ou amante (Philos) da sabedoria (Sophia) se põe em um devir, assumindo esse papel de personagem. Colocando assim, mesmo que a contragosto, Kant, Nietzsche, Parmênides, Wittgenstein, Heidegger, etc. num mesmo conjunto; o de amantes e amigos. Todos eles se unem por fazer filosofia. Isto é, são criadores de conceitos. Mesmo que o conceito de amante não seja o mesmo para Kant, Nietzsche, Parmênides, Wittgenstein, etc., ele é um para Deleuze, e desta forma ele tem o poder de reunir todos os filósofos em torno de si. O termo Filósofo surge pela primeira vez na obra de Heráclito3. O que é muito conveniente para corroborar a idéia de personagem conceitual de Guattari e Deleuze, já que Heráclito cria essa figura como um rival, um usurpador da posição de uma outra personalidade da época: o Sábio. O filósofo não surge como profissão, nem tampouco como um garimpeiro da verdade; o filósofo surge antes de tudo como um conceito, com finalidades conceituais e aberto a leituras conceituais. Pois se na introdução de O que é a Filosofia? é posto que pouco se perguntou sobre a questão do que seria a filosofia, contudo, já em relação ao que é o filósofo muito já foi dito, mas sem a preocupação com sua genealogia. Diferente do sábio que era o portador da sabedoria, ligado a ela como que ligado a um órgão, o filósofo 2 3 DELEUZE, G. e GUATARRI, F. O que é a Filosofia, 2005, p. 83. HERÁCLITO de Éfeso. Sobre a natureza, fragmento 35. 184 Cadernos da Graduação, Campinas, nº 08, 2010 Personagem conceitual, o filósofo e seu duplo não tem essa relação simbiótica com o saber. É exatamente a sua busca pelo saber que denuncia essa falta. Mas não ser, ou não ter em si, o conhecimento é exatamente o que possibilita ao amante da filosofia aquilo que Deleuze reconhece como devir. Assim como o marceneiro é, em potência, a madeira4, mas ele não tem em si a madeira, o filósofo também não tem simbioticamente o conceito, mas, o filósofo por ser o amigo do conceito, ele é conceito em potência5. E isso justifica porque não é um diploma da faculdade de filosofia que faz o filósofo, antes sim, é a capacidade do indivíduo de vestir essa plumagem, de ser esse personagem original e, igualmente, de ser um criador de conceitos e personagens, ou também como põe a questão Deleuze em Lógica dos Sentidos: “o gênio de uma filosofia se mede em primeiro lugar pelas novas distribuições que esse impõe aos seres e aos conceitos”6. É a capacidade de criar, de dar um novo olhar, que separa o filósofo do professor de filosofia, é a distinção entre o pensador privado (…) ao professor público (o escolástico): o professor não cessa de remeter a conceitos ensinados (o homem-animal racional), enquanto o pensador privado forma um conceito com forças inatas que cada um possui de direito por sua conta (eu penso)7. Pois a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos8. Assim, ter anos de estudo a respeito da história da filosofia não é o suficiente para alguém se intitular filósofo. Tampouco, não conhecer a mais fina-flor a respeito de tudo que já foi escrito sobre metafísica, maiêutica, silogismo e afins não irá impossibilitar alguém de pensar e criar. Pois, Nietzsche não será lembrado na história, a princípio, pela sua dedicação original à filologia, muito menos Spinoza será reconhecido pela humanidade pelos seus serviços prestados como polidor de lentes, mesmo que tudo isso tenha sido de suma importância para suas filosofias e seus devir-personagens. 4 DELEUZE, F. e GUATARRI, F. Op. Cit., p. 11. Idem, Ibidem, p. 13. 6 Idem. Lógica do Sentido, 2002, p. 7. 7 DELEUZE, F. e GUATARRI, F. O que é a Filosofia, 2005, p. 83. 8 Idem, Ibidem, p. 10. 5 Cadernos da Graduação, Campinas, nº 08, 2010 185 José Eduardo Pimentel O fenômeno do “filósofo que vira personagem-filósofo” não surgiu em um pensador específico, na história não temos um: “o extravagante que virou personagem ou anedota filosófica”. Esse tipo, o personagem-filosófico, é a reunião de todos aqueles que já foram reconhecidos como filósofos. De Thales de Mileto à Michel Foucault; é na reunião das histórias particulares que se cria a imagem pública do filósofo; são as estranhezas, os hábitos incomuns, as mortes insólitas, as visões controversas sobre o lugar-comum que os dão fama, e que fazem o homem-regular virar a figura psicossocial do filósofo. A vida do filósofo acaba por se tornar tão singular quanto a obra do próprio, por isso mesmo em muitos casos a correspondência pessoal do filósofo, após sua morte, acaba sendo integrada à sua obra completa, como parte essencial dela. Possibilitando Guattari e Deleuze pronunciarem: o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem conceitual e de todos os outros, que são os intercessores, os verdadeiros sujeitos de sua filosofia. Os personagens conceituais são os “heterônimos” do filósofo, e o nome do filósofo, o simples pseudônimo de seus personagens.9 Ora, nessa perspectiva é inevitável pensar que ser filósofo não é apenas uma profissão, mas sim um modo de vida. E alguns filósofos podem conter em si até mais de um personagem. Isso porque os filósofos precisam, assim como num roteiro para o teatro, de mais personagens para interagirem com o protagonista. Como existem personagens conceituais simpatizantes, isso é, aqueles que expõem a filosofia do autor quase como uma verdadeira face que o filósofo não pôde ter por natureza; também existem personagens para contrariar. Os personagens conceituais antipáticos podem até não se manifestar na vida e no dia-a-dia do filósofo, nesse devir-personagem, mas de certa forma eles se encontram dentro dele, e quando se dão conta que têm utilidade, eles despontam. Em Nietzsche, por exemplo, é evidente a presença do personagem antipático, o Sócrates, o Cristo, por vezes o Estado... 9 Idem, ibidem. 186 Cadernos da Graduação, Campinas, nº 08, 2010 Personagem conceitual, o filósofo e seu duplo aparecendo sempre que uma idéia precisava ser colocada à prova, ou então para revelar os perigos do pensamento num dado plano de imanência. Alguns filósofos, tal qual Wittgenstein, Marx, etc. são comumente datados e intitulados como “o primeiro e o segundo”, ou “o jovem e o velho”, como se algo houvesse se rompido na obra desses pensadores, e dessa ruptura fosse possível reconhecer uma crítica que a evolução da obra de um autor propõe ao seu trabalho mais antigo, ou mais imaturo. Seria isso uma insinuação de um personagem antipático se manifestando, senão na vida, na alma e na obra do filósofo? Por fim, não existe filósofo apartado de sua biografia, nem filosofia isenta da vida, por mais metafísica que essa filosofia seja. O professor de filosofia pode se dar ao luxo de ensinar algo no qual não crê realmente, por uma questão curricular; tal liberdade não é concedida ao pensador. Ainda que somente Nietzsche tenha posto isso em palavras tão claras ao dizer: “fiz de minha vontade para a saúde, para a vida, a minha filosofia”10 em Ecce Homo; não é possível pensar em qualquer outro filósofo que tenha praticado algo diferente disso. Referências COSTA, Alexandre. HERÁCLITO, Fragmentos Contextualizados. Rio de Janeiro, Ed.: Difel. 2000. DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo, Ed.: Persectiva. 2002. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix., O que é a Filosofia? São Paulo, Ed.: 34. 2005. NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce Homo. Rio Grande do Sul, Ed.: L&PM. 2003. 10 NIETZSCHE, F. Ecce Homo, 2003, p. 25. Cadernos da Graduação, Campinas, nº 08, 2010 187