INTERCULTURALIDADE E RELIGIÃO – PARA ALÉM DA VIOLÊNCIA A questão fundamental aqui colocada pode assumir duas faces, que são as faces de uma mesma moeda: por um lado, trata-se de pensar o efeito da relação intercultural sobre o modo de pensar e viver a religião; por outro lado, trata-se de pensar o lugar da religião – no caso concreto, das religiões – na relação intercultural que marca o contexto contemporâneo das relações humanas, seja a nível global seja a nível local. No sentido de organizar algumas ideias em torno a esta questão dupla, proponho que, em primeiro lugar, seja refletida a relação básica entre religião e cultura; partindo daí, levanta-se a questão da relação entre culturas, com base na relação entre religiões – o que nos conduz ao problema da violência e da tolerância; com base nesses dois passos, proponho uma abordagem do fenómeno religioso no contexto das identidades culturais e do seu possível relacionamento. Aqui, não escondo o ponto de partida teológico, com recurso ao conceito bíblico de Deus e de religião, embora pressupondo sempre a sua potencial universalização – o que permite o discurso propriamente filosófico. O ponto de partida de todo o percurso é constituído sobretudo por alguns textos de Paul Ricoeur, que me parecem poder inspirar uma equilibrada compreensão do assunto em estudo. 1. Religião e cultura Para se entender mais profundamente, sobretudo em registo filosófico, a relação entre religião e cultura, é importante recordar, de modo extremamente sintético, alguns tópicos do trajeto da filosofia da religião, da modernidade para cá. De facto, um dos núcleos fundamentais desse trajeto está relacionado, precisamente, com a relação entre a religião, tal como ela é vivida historicamente – e, por isso, como fenómeno cultural – e a sua verdade conceptual, que a pensa para além dessa dimensão cultural. Na relação dinâmica, por vezes mesmo dialética, entre esses dois aspetos é que a reflexão filosófica sobre a religião se desenvolveu nos últimos séculos. Nessa relação podemos encontrar espelhada a ancestral relação entre o mythos e o logos, enquanto modos de compreender o real e o habitar. No caso, contudo, quer um quer outro assumem o estatuto de religião, independentemente do modo de relação entre um e outro. O que significou, em muitos casos, que o logos da religião se transformou em religião do logos, por vezes em confronto com uma pretensa religião do mythos. Poderíamos, assim, falar da evolução da história da filosofia da religião, nos últimos séculos, como uma conjugação entre especulação (enquanto trabalho do logos) e realidade histórica (enquanto articulação cultural do mythos). Se é certo que só a partir de Kant é que se pode falar em filosofia da religião, enquanto filosofia do fenómeno religioso, o certo é que o próprio Kant desenvolve a mesma com base numa distinção dicotómica entre o fenómeno religioso histórico e uma “religião nos limites da simples razão”1, a qual constitui, para ele, a única base viável para uma autêntica filosofia da religião. Esse estilo «racional» de abordagem da religião, que pretende compreender a sua verdade intrínseca, abstraindo das suas realizações históricas concretas, supera qualquer simplificação funcionalista, sociológica ou pragmatista da mesma – como foi grande parte das abordagens que viriam a afirmar-se posteriormente. Num certo sentido, pergunta-se pela essência do religioso, pressupondo que todas as realizações humanas, porque inseridas em contextos que lhe atribuem outros tantos significados, ficam aquém dessa essência, pois acabam por sucumbir ao interesse condicionado pelos sujeitos, no espaço e no tempo. O problema inerente à posição de Kant – pelo menos tendencialmente, já que essa posição se encontra muito diferenciada no texto kantiano2 – reside no facto de a sua base dicotómica (entre racionalidade e historicidade da religião) não permitir pensar, em última análise, o fenómeno religioso enquanto tal, e conduzir, paradigmaticamente, a uma oposição irreconciliável entre, por assim dizer, uma religião filosófica e uma religião teológica (considerada, no caso, como presa nas malhas da história e das circunstâncias culturais de uma revelação concreta), destinando-se a segunda a desaparecer, no contexto da Aufklärung. Uma primeira fenomenologia da religião, em sentido rigoroso – isto é, que pretende partir do fenómeno histórico da religião, enquanto articulado sempre culturalmente – deve-se apenas a Hegel, cujo principal intuito era, precisamente, o de superar a dicotomia entre religião histórica (do âmbito da Vorstellung, ou seja, da representação ou melhor da figuração3) e religião da razão (do âmbito do Begriff, ou seja, do conceito)4. Efetuada essa superação, já não faria sentido falar numa religião «natural», pois toda a religião é sempre «positiva» por natureza. Mas, por outro lado e 1 2 3 4 Cf.: KANT, I. – Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft. Königsberg: Friedrich Nocolovius, 1793. Para uma leitura sintética, ver: DUQUE, J. – “Kant e a religião”. In Estudos (CADC) (2004). Cf.: RICOEUR, P. – “Le statut de la «Vorstellung» dans la philosophie hégélienne de la religion”. In ID. – Lectures 3. Paris: Seuil, 41-62. Cf.: HEGEL, G. W. F. – Vorlesungen über die Philosophie der Religion. Werke in 20 Bände. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1986. Deleted: segundo o sistema hegeliano, toda a religião positiva se encontra, já, a caminho do conceito de si mesma e não é, portanto, apenas histórica. A positividade da representação constitui o seu próprio conceito (a sua essência, se quisermos)5. E isso torna-se mais evidente na religião absoluta, que é a religião da ideia de Deus, enquanto reino do Pai, do Filho e do Espírito. O cristianismo seria, pois, a verdade da religião, enquanto superação da positividade de todas as religiões na religião da absoluta ideia de Deus – ou seja, no conceito da verdadeira religião. Nesse sentido, a fenomenologia de Hegel, se bem que parta dos fenómenos na sua positividade, não é uma fenomenologia qualquer, mas a “fenomenologia do espírito”, isto é, a consideração do percurso histórico do próprio conceito, até se tornar espírito absoluto. Como tal, a sua filosofia da religião não é, propriamente falando, uma filosofia do fenómeno religioso enquanto tal, mas uma filosofia do caminho que leva da figuração religiosa (discurso religioso, enquanto discurso figurativo e simbólico) ao conceito de religião (discurso filosófico, enquanto discurso especulativo). “Compreender filosoficamente a religião é mostrar até que ponto ela já é especulativa, permanecendo figurativa”6. Mais uma vez, é importante salientar o papel dessa tematização metafísicotranscendental da religião, que alerta para a impossibilidade de “dissolver a tarefa de «pensar a religião» na sua especificidade fenomenal numa simples epistemologia das ciências humanas da religião”7. De qualquer modo, a tirania imposta pelo movimento que leva da figuração ao conceito impede – pelo menos tendencialmente – de considerar aquela como algo mais do que mero momento do percurso, abolido pela chegada ao conceito. Correspondentemente, a fé cristã e a sua teologia (ainda figurativa) orientamse para a filosofia da religião (já especulativa), na qual se dissolvem. A esse movimento especulativo contrapôs-se, de forma emblemática, a filosofia hermenêutica – não apenas por oposição, mas por transformação. É Gadamer, um dos patriarcas dessa filosofia, que o exprime, de modo insuperável “Mas, no carácter linguístico (Sprachlichkeit) de todo o pensar, mantém-se a exigência, para todo o pensamento, de uma direção contrária (Gegenrichtung), que retransfigura o conceito na 5 6 7 Cf.: RICOEUR – “Le statut”, 42: “É por isso que nada há de pejorativo na caracterização da religião como intrinsecamente «positiva», e não natural ou racional”. RICOEUR – “Le statut”, 43; Cf.: 44: “O modo especulativo não é extrínseco ao modo figurativo, mas gera a dialética interna do próprio modo representativo. As representações religiosas não são conteúdos inertes, mas processos atravessados por um dinamismo interno, orientado para o modo especulativo”. GREISCH, J. – “La métamorphose herméneutique de la philosophie de la religion”. In AAVV, Paul Ricoeur. Métamorphoses de la raison heméneutique. Paris: Cerf, 1993, 311-336, 312. palavra que une. Quanto mais radicalmente o pensamento objetivante se pensa a si mesmo e desenvolve a experiência da dialética, mais claramente aponta para aquilo que ele não é. A dialética tem que se retirar (zurücknehmen) para a hermenêutica”8. Essa retirada – ou regresso – significa o caminho do conceito à figuração: no nosso contexto, a transformação hermenêutica da filosofia da religião, que leva em consideração sempre a sua articulação histórico-cultural. Sobretudo influenciada pela fenomenologia da religião de Mircea Eliade, a filosofia hermenêutica da religião, tal como é evocada – não propriamente desenvolvida – por Paul Ricoeur, parte da articulação na linguagem e nos símbolos, não para conduzir ao conceito, mas para se manter no constante jogo hermenêutico entre conceito e o símbolo ou a linguagem. O conceito, sempre precedido por essas articulações de sentido, pensa-as, sem as esgotar e, desse modo, reconduz a filosofia da religião à sua dimensão figurativa. Não se trata, portanto, de uma afirmação da figuração, por oposição ao conceito, mas de se manter no jogo entre figuração e especulação, sem que qualquer uma cumpra definitivamente a outra. Assumido esse estatuto cultural da religião – o que implicará sempre uma espécie de estatuto religioso da cultura – pensar o seu lugar no dinamismo intercultural implica, antes de mais, refletir sobre o potencial conflitivo dessa particularização simbólico-cultural do religioso. Também aí, como se verá, a relação entre o símbolo particular e o conceito universal poderá ser inspiradora. 2. Da violência à paz Há algumas décadas já, Arnold Gehlen lançava uma afirmação sintomática: “Que a religião volta a ser algo sério, notar-se-ia pelo menos com o aparecimento de frontes de combate determinadas religiosamente”9. Ou seja, após a pretensa superação moderna do religioso como origem de conflito, a presença desse mesmo religioso manifesta-se como não superada e, ao mesmo tempo, de novo como potencial fonte de conflito. A violência entre os seres humanos ou destes em relação ao resto do mundo não pode deixar de ser vista como um dos mais fundamentais enigmas da existência. 8 9 GADAMER, H.-G. – Die Idee der Hegelschen Logik. In ID. – Hegel, Husserl, Heidegger. Gesammelte Werke 3, Tübingen, 1987, 65-86, 86. GEHLEN, A. – “Religion und Umweltstabili-sierung”. In O. SCHATZ, O. [Ed.] – Hat die Religion Zukunft?. Graz / Wien / Köln 1971, 96. Enquanto manifestação do fenómeno do mal, partilha com ele essa condição simultaneamente fundamental e enigmática10. Ora, se a religião se situa também nesse âmbito fundamental e enigmático para o ser humano, não admira que sempre se tenha encontrado na vizinhança do problema da violência. Antes de tudo, evidentemente, como tentativa de domínio desse fenómeno originalmente caótico e causador de caos, que ameaça a destruição do real, sobretudo a destruição das relações inter-humanas. 1. Ninguém como René Girard terá analisado de forma tão vasta e fundamental esta relação primordial entre religião e violência11. O primeiro grande pressuposto da sua teoria é que a relação humana assenta primordialmente na violência, provocada pelo desejo mimético, isto é, pelo desejo de imitar ou de ocupar o lugar do outro e de ter aquilo que o outro tem. Se assim é, toda a relação humana estaria condenada ao fracasso, à partida. No caos instaurado por esse desejo mimético total e indiferenciado, não seria possível o surgimento de nenhuma comunidade humana – nem, por isso, a sobrevivência da Humanidade. Essa sobrevivência dependerá, portanto, de um mecanismo que controle esse caos primordial e sempre ameaçador, diferenciando assim a relação de violência generalizada. Girard encontra esse mecanismo no esquema do sacrifício expiatório, em que um inocente carrega com a violência generalizada, sendo considerado culpado e possibilitando, desse modo, que em relação a si se unam os membros de uma comunidade. Ou seja, através da violência sobre um bode expiatório constrói-se a paz entre o resto dos membros de uma sociedade, o que possibilita a convivência humana. Toda e qualquer comunidade humana, superadora da violência, assentaria nesse ato violento primordial, que é por isso considerado da ordem do sagrado. Segundo Girard, todas as religiões se baseiam nessa violência contra a violência e só a permanência e repetição ritual do esquema sacrificial originário é que permite a superação da violência destruidora, provocada pelo desejo mimético. 10 11 Cf.: JDUQUE, J. – “O mal: Deus em questão (?)”. In Didaskalia 29 (1999) 301-334. Para o que se segue, ver sobretudo a interessante síntese da sua vasta obra em GIRARD, R. – “Violence et religion”. In Revista Portuguesa de Filosofia 56 (2000) 3-10. 2. Paul Ricoeur12, por seu turno, partindo embora de Girard mas seguindo um caminho algo diverso, situa a relação entre religião e violência a um nível que me parece mais próximo do cerne do religioso do que a sua fundamentação no esquema do sacrifício, segundo Girard. Para este, tudo se situa no nível sociológico ou quando muito psíquico da construção do ligame social, reduzindo-se a religião a essa função e a esse processo imanente de construção da sociedade humana. Para Ricoeur, de modo diferente, o elemento fundamental da religião é precisamente a desproporção entre o “excesso do fundamento... e a minha capacidade finita de acolhimento, de receção, de apropriação, de aculturação”13; ou seja, o núcleo do fenómeno religioso reside numa relação dialética ou tensional entre estes dois elementos, tal como têm sido tematizados precisamente pela transformação moderna e contemporânea da filosofia da religião. Ora, o excesso manifesto nessa tensão pode surgir como uma ameaça para aquilo que eu sou, no meu grupo ou na minha cultura finita. Ou seja, a identidade pessoal e coletiva, sendo sempre particular e por isso finita, sente-se ameaçada por uma referência infinita, que a excede e que a impede de dominar o real, no seu fundamento. “É pois em mim mesmo que experimento essa desproporção que existe entre a minha capacidade finita de adesão e o reconhecimento de algo fundamental que sempre me excede e, pelo seu excesso, me ameaça, o que me faz sofrer. A violência torna-se, então, uma tentativa de proteção contra o perigo de desenraizamento, de cuja ameaça iminente surdamente me apercebo”14. A violência aparece então como proteção contra esse excesso, em todas as suas manifestações possíveis, sobretudo naquelas manifestações concretas em que nos sentimos ameaçados pela diferença de outras identidades pessoais ou coletivas. “Todas as outras comunidades históricas que se reclamam de um mesmo transcendente, mas nos termos de uma outra confissão, aparecem como rivais na luta pela apropriação do Ser, do Outro absoluto, tratado como um mesmo, a possuir com exclusão dos outros”15. Lendo este mecanismo à luz da sua origem primeira, poder-se-ia então dizer: “O excesso de ser converte-se em ter, objeto do desejo de apropriação, projetando nas outras comunidades o mesmo gesto de apropriação-expropriação por rivalidade que se prolonga até mesmo no processo de acolhimento”16. 12 13 14 15 16 Ver, sobretudo: RICOEUR, P. – “A religião e a violência”. In: Revista Portuguesa de Filosofia 56 (2000), 25-35. RICOEUR, P. – “A religião”, 28. RICOEUR, P. – “A religião”, 29. RICOEUR, P. – “A religião”, 33. RICOEUR, P. – “A religião”, 34. É essa uma das leituras interessantes que Ricoeur faz da tese de René Girard, sobre o carácter violento do sagrado. A transformação do sentimento de excesso em relação ao fundamento transcendente da nossa finitude humana em motivo de violência contra esse excesso, tal como surge nas suas manifestações concretas através das diferenças de outros em relação a mim ou ao meu contexto cultural – isto é, na transformação da relação entre culturas em choque de culturas – dá-se, segundo Ricoeur, através de um mecanismo semelhante ao descrito por Girard. De facto, a reação violenta ao excesso do fundamento dá-se, na medida em que se cria uma comunidade de acolhimento que se apodera – ou pretende apoderar-se – de modo finito, desse infinito fundamental. Ao constituir-se essa comunidade, os seus membros reconciliam-se entre si, superando o potencial conflitivo do seu desejo mimético (como básico potencial de violência interhumana) através da defesa contra um terceiro (transcendente), de que pretendem tomar posse, ou que pretendem controlar. Mas, ao pretender tomar posse do fundamento transcendente, uma comunidade insere-se no leque de todas as comunidades que também pretendem apropriar-se do mesmo, as quais surgem assim como rivais nesse processo de apropriação finita do fundamento infinito. Daí resulta, sem dúvida, uma atitude de violência entre formas diferentes de pretensa apropriação do infinito, enquanto manifestações da tensão primordial entre finitude humana e infinitude do fundamento. É o que podemos verificar através do conflito de convicções ou dogmáticas religiosas. Claro que, como o próprio Ricoeur reconhece, o cerne da religião poderá ser concebido de forma diferente, como anterior a essa manifestação humana de reação violenta ao excesso, mesmo que esta se encontre muito expandida. Basta conceber o excesso do fundamento não como ameaça, mas como precisamente o seu contrário, o que corresponderá mais à sua verdade. “Ora, porquê perceber aquilo que funda como uma ameaça e não como gratuidade e generosidade? É isso que ele é, fundamentalmente. Não é a projeção do nosso desejo de apropriação sobre a própria origem da nossa convocação ao ser que transforma em ameaça aquilo que não é senão doação, alargamento da minha capacidade de acolhimento?”17 Assim, a referência ao transcendente resultaria em acolhimento de um dom gratuito e não em defesa contra uma ameaça, que se prolongaria em violência contra todo o diferente, o outro. Ou seja, mesmo a este nível profundo e primordial – ontológico, poderíamos dizer – de relação entre religião e violência, é possível pensar a 17 RICOEUR, P. – “A religião”, 34. atitude religiosa como superação, na sua raiz originária, de todo o tipo de violência, mesmo que em muitas manifestações concretas do fenómeno religioso se tenha seguido o caminho precisamente inverso. 3. Ora, a referência a um único fundamento divino do mundo, como dádiva gratuita, evoca a questão do monoteísmo, que nos conduz de novo ao problema da violência intercultural. O filósofo alemão Odo Marquard, numa análise do percurso da sociedade ocidental e das suas referências orientadoras (a que poderíamos chamar «mitos»), escreveu sem rodeios: “Perigoso é sempre e pelo menos o mono-mito; sem perigo, pelo contrário, são os poli-mitos... Quem participa – através da vida e da narrativa – em muitas histórias, possui liberdade, através da respetiva história, em relação à outra e vice-versa... Quem participa... apenas numa história, não possui essa liberdade. Está totalmente... obcecado com ela”18. Consequência direta dessa obsessão seria, então e como vimos, uma atitude violenta: primeiro, em relação à própria origem transcendente, pretensamente manipulada no «mito»; depois e como consequência, em relação a todos os que possuem «mitos» diferentes. A ameaça do Outro (divino) seria transposta para a ameaça do outro (humano), resultando disso um processo de confronto concorrencial e destruidor. Uma dessas tentativas «violentas» seria a do próprio conceito: quer enquanto conceito de Deus (ou de Infinito), que pretende captar Deus na ideia, violentando a sua transcendência; quer enquanto referência conceptual de tudo e de todos a esse conceito, violentando a pluralidade da sua diferença. Sendo assim, parece haver, de facto, uma relação entre a «metafísica» (conceptual ou «onto-teológica»), o monoteísmo (como metafísica do conceito/Deus único, fundador e transcendente) e a violência. Esta, por seu turno, não se fica pela relação a Deus, enquanto violência sobre o transcendente, manipulado em conceitos (doutrina) e, por extensão (ou ainda antes), em ritos e normas de conduta; o prolongamento direto desta atitude violenta primeira é a violência sobre os outros, que se referem a Deus de modo diferente. 18 MARQUARD, O. – “Lob des Polytheismus”. In HÖHN, H.-J. (Ed.), Krise der Immanenz. Frankfurt a. M.: Fischer, 1996, 154-173, aqui 158-159; Cf.: METZ, J. B. – “Religion und Politik auf dem Boden der Moderne”. In Ibidem, 265-279, 265: “O monoteísmo é visto, na maioria dos casos, como fonte de legitimação de um pensamento de soberania pré-democrático e inimigo da separação de poderes, como raiz de um patriarcalismo obsoleto e como inspirador de fundamentalismos políticos”. Para além disso, esse ponto de partida terá levado, mesmo, a uma atitude violenta em relação à história e à sua pluralidade, reduzindo-a à identidade de um único percurso. E teria sido, segundo estas leituras, precisamente o monoteísmo – judaico, cristão ou islâmico – o impulsionador dessa redução monomítica. Nietzsche leu o conceito de Deus do ocidente judeo-cristão precisamente como unidade estática e aniquiladora do real, no sentido de um irónico «mono-tono-teísmo»19, como princípio de “uniformização homogénea”20. A sua proposta de politeísmo dionisíaco pretende recuperar a diversidade da vida – e das suas histórias fragmentárias – como manifestação da própria divindade pluriforme, enquanto “exuberância vital”21. Assim se compreende genealogicamente que, como reação ao monoteísmo (pretensamente) de pretensão totalizante, a cultura «pós-moderna» esteja claramente dominada pela derrocada de todas as referências universais unitárias. Essa pluralidade, assumida como tal na sua positividade e no seu valor incontornável, tem as suas repercussões sobre o conceito de Deus e de religião, e sobre todas as conceções que daí advêm. Numa vertente mais «a-teísta», prescinde totalmente do próprio conceito de Deus, enquanto referência unitária da realidade – nessa sua função fundamentadora para todo o real (metafísica) considera-se que «Deus morreu». Ficou apenas o real, na sua multiplicidade ou diferença, sem fundamentação universal primeira e última, por isso única e una. Noutra vertente mais «religiosa», a pós-modernidade abandona o conceito monoteísta de Deus em favor de uma visão politeísta da divindade, quer recuperando o politeísmo antigo, quer inventando novas formas de politeísmo, numa nebulosa religiosa pouco definível que, como se viu acima, diviniza cada vez mais sobretudo forças cósmicas, ou então forças sociais ou culturais (como acontece com a contextualização cultural extrema), ou ainda os sistemas que comandam atualmente a relação ao real. Por tudo isso, no contexto do «império do fragmento», o problema da relação entre conceção monoteísta e conceção politeísta de Deus agudiza-se e exige uma abordagem cuidada. Sobretudo porque se potencia o conflito entre os indivíduos (desde a luta competitiva, até ao confronto violento mais extremo), ou então entre os contextos, que pode assumir mesmo o aspeto de conflito cultural ou até de «guerra de civilizações»22. 19 20 21 22 NIETZSCHE, F. – O Anti-Cristo, nº 19. CURA ELENA, S. DEL – “El Dios único: critica y apologia del monoteismo trinitário”. In Burgense 37 (1996) 65-92, 68. CURA ELENA, S. DEL – “El Dios”, 69. HUNTINGTON, S. – El choque de civilizaciones. Barcelona: Paidos, 1997. Ora, o chamado «novo politeísmo», de que anteriormente se traçaram já algumas características e que é o objeto central do «louvor» de Marquard, encontra-se nesta sequência. Implica a «morte de Deus», enquanto princípio único, unificador e dominador universal, que teria levado ao imperialismo e à tirania social, por oposição à tolerância da pluralidade. Também a possibilidade de referência a uma verdade absoluta e, por isso, unificadora foi posta de parte. O próprio sujeito se encontra marcado pela lei da fragmentarização, já que não possui um centro de identidade bem determinável. Até o pluralismo religioso atual, com o correspondente diálogo inter-religioso, parece abonar em favor de uma visão politeísta do real. Os deuses seriam “expressão dos modelos plurais da nossa existência”23, irredutíveis a um único modelo supremo, universalmente válido. De facto, também o novo «regresso do sagrado» ou dos «deuses» parece situarse nesta linha politeísta. O monoteísmo é considerado perigoso e o politeísmo proveitoso para a nossa existência pessoal e social. A pluralidade de mitos superaria a unicidade do mito de um só Deus e de uma só «história da salvação» (judeo-cristã, marxista ou do progresso científico-técnico). Existiria, eventualmente, uma identidade entre a visão monolítica da divindade e a visão totalitária da história e da sociedade, com as consequências repressoras da intolerância do diferente. O «fim da história» única, unificada pelo seu sentido ou finalidade (telos, enquanto parusia ou manifestação – apocalipse – da sua verdade) será, então, uma segunda manifestação da «morte» do Deus único. Ora, ao iniciar qualquer análise crítica desta situação, convém ter em conta que já os deuses da mitologia grega não eram pessoas individuais, mas poderes mais ou menos personificados nessas figuras, poderes esses constituintes do cosmos, da natureza, da sociedade, manifestando forças em interação – na maioria das vezes conflituosa. “As mitologias apresentam, em forma de narrativas, as relações de união e de luta, entre o dia e a noite, a terra e os oceanos, o amor e o ciúme que persegue, etc. O divino não é realmente o Outro”24. Nesse sentido, o politeísmo identifica-se, em última análise, com uma visão panteísta da realidade, já que, pelo menos potencialmente, todos os elementos do mundo podem ser considerados deuses (ou divinos, o que é o mesmo, numa visão impessoal). Mas, onde tudo é (potencialmente) «deus», nada o é, em particular; o que significa que, 23 24 CURA ELENA, S. DEL – “El Dios”, 72. VERGOTE, A. – Modernité et Christianisme. Paris: Cerf, 1999, 17. no mesmo movimento em que nos aproximamos do panteísmo, podemos também considerar o politeísmo como uma forma velada – sub contrario – de ateísmo. Uma conceção impessoal de «deus» resulta, não apenas numa conceção impessoal do ser humano, mas também numa dissolução do mesmo em forças panteístas ou num ateísmo completo. De facto, de uma conceção não pessoal de Deus resulta a necessária ausência de relação verdadeira – isto é, inter-pessoal – entre Deus e o ser humano, o que não permite pensar o ser humano, quanto à sua origem ou verdade mais profunda, como ser de relação – isto é, como pessoa livre e responsável. Mas, se um reverso da medalha implica a anulação da mais profunda liberdade do ser humano, que resulta do seu carácter originariamente relacional, o outro reverso é a anulação da liberdade de Deus, isto é, da sua transcendência e da impossibilidade de manipulação ou posse, por parte do ser humano. Nesse contexto, os deuses passam a ser funcionalizados, em ordem à realização de desejos humanos, como mecanismo compensatório de todos os desejos irrealizados por outros modos mais «naturais» ou imanentes. É nesse contexto que se enquadraria a utilidade social e individual dos mitos, no sentido politeísta e pagão do termo. Mas, se os deuses são usados em função dos desejos individuais dos seres humanos, não admira que, mitologicamente, esses mesmos deuses sejam inseridos num processo originaria e constantemente marcado pela luta entre eles. Do politeísmo resulta, por isso, uma ontologia que assenta na visão agonística do real e do ser humano (social e psiquicamente considerado). A violência é, assim, assumida como o dado mais originário do ser humano, a marca da sua natureza, representada nos deuses a que se refere ou que funcionaliza, à sua «imagem e semelhança». A pluralidade do real, com todas as suas diferenças irredutíveis a uma identidade originária ou final, que parece ser assegurada pelo politeísmo e anulada pelo monoteísmo, acaba por conduzir, paradoxalmente, a uma visão da diferença como princípio de violência e de relação não conciliadora. Defender ou, pelo menos, aceitar a diferença e a pluralidade significa, mais uma vez e segundo essa visão politeísta, aceitar o conflito e a violência como dado primeiro e último, por isso mesmo insuperável em qualquer forma de reconciliação, seja ela positiva ou negativa25. Começa, assim, a pressentir-se que a referência religiosa a uma única origem e a um único fim – monoteísmo em sentido mais vasto – pode não ter consequências 25 Cf.: MILBANK, J. – Theology and Social Theory. Oxford 1990, esp. Cap. 10 («Ontological violence or the postmodern problematic»). violentas. Pode mesmo conduzir ao contrário. Aliás, se essa referência for autêntica, conduzirá mesmo à única superação possível da violência, na sua raiz mais fundamental. Ou seja, o recurso a um fundamento transcendente, uno e único, poderá constituir a base para o acolhimento do ser como doação, o que implica o acolhimento do outro, em solidariedade profunda e positivamente, e não em rivalidade de posse. 3. Identidade e relação 1. A questão do monoteísmo, como referência religiosa – em alguns casos, como alternativa a certo «espírito religioso» problemático – é o cerne da proposta do teólogo alemão Johann Baptist Metz. Penso ser possível recorrer a essa proposta teológica, para podermos avançar com uma leitura do contributo da religião para a relação inter-cultural que supere o potencial de violência latente e possa contribuir para a construção de uma relação mais humanizante e pacificadora. Antes de mais, é importante ter em conta que, quando Metz fala de religião, não fala propriamente do fenómeno religioso em geral (num sentido quase kantiano), muito menos de manifestações religiosas diversas contemporâneas, ao estilo da sociologia. Aliás, é conhecida a posição crítica deste teólogo em relação à religiosidade difusa que marca a sociedades atuais26. Segundo ele, a religião de que se fala aqui é a “religião cristã, com um núcleo monoteísta ainda não completamente esmagado”27. Ou seja, em realidade refere-se ao teológico, enquanto possível essência do religioso, precisamente por ter como cerne a referência a um determinado conceito de Deus, no qual se baseia a experiência política e cultural do sujeito crente. E Metz reconhece que é precisamente esse monoteísmo o que mais dificuldades teve com a modernidade – ou vice-versa. O que pode ser confirmado pela breve análise da discussão em torno à relação entre monoteísmo e violência. Por seu turno, a proposta de Metz baseia-se numa releitura da racionalidade moderna, que vai além da racionalidade meramente instrumental, mesmo da racionalidade discursivo-comunicativa: trata-se da racionalidade anamnética, baseada na categoria da memória, a qual, por seu turno, corresponde ao denominado «apriori do 26 27 “Religião como nome para o sonho de felicidade isenta de sofrimento, como encantamento mítico da alma, como presunção psicológico-estética de inocência para o ser humano: sim. Mas Deus, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, o deus de Jesus…? […] Que aconteceu com Deus?”: METZ, J. B. – Memoria passionis. Ein provozierendes Gedächtnis in pluralistischer Gesellschaft. Freiburg:Herder, 2006, 71. METZ, J. B. – “Religion und Politik”, 265. sofrimento» (Leidensapriori), ou seja, ao critério da autoridade do sofrimento do outro inocente. Segundo ele, este “apriori do sofrimento orienta o discurso político em tempos de incerteza”28. Ao mesmo tempo que é a recuperação de uma categoria e uma orientação originada pela tradição judaico-cristã – por isso com recurso religioso e mesmo especificamente teológico – permanece conciliável com a modernidade, na medida em que pode ser assumida como uma categoria da razão humana universalizável. A base dessa universalização é o próprio monoteísmo bíblico – que Metz considera um monoteísmo pático, porque sensível ao sofrimento – e a máxima, daí derivada, da autoridade do sofredor. Neste horizonte, “a resistência ao sofrimento é absolutamente exigida”29. Ao mesmo tempo que se salvaguarda este universalismo da pertinência política e cultural do religioso, quanto à própria fundamentação última do político, tratando-se aqui da categoria da memória, torna-se evidente que o trabalho dessa fundamentação não é possível sem o recurso a uma tradição, sobretudo articulada narrativamente. Essa fonte permite a superação do maior problema contemporâneo, talvez aquele que mais fortemente coloca em questão a capacidade de fundamentação do político e do cultural: precisamente o individualismo extremo. A pergunta de Metz é incisiva: “Como podemos compreender um indivíduo que se recusa a acreditar em tradições que, por seu turno, acreditam [fundamentam] o indivíduo?”30 Ora, o conteúdo de uma tradição é o recurso para enfrentar os aprioris do horizonte de sentido numa cultura da modernidade tardia, nos quais sobressai o apriori do mercado. Não poderá, nesse sentido, a dimensão religiosa ajudar o político a libertarse da ditadura do económico, possibilitando a concentração numa ética do humano como forma pragmática de existência socio-cultural e de organização do poder? E, ao mesmo tempo, não será essa pragmática político-cultural o modo de realização da salvação prometida e oferecida em Jesus Cristo, por isso elemento fundamental da soteriologia cristã, enquanto base de um modo religioso de habitar o mundo? 2. A referência ao Deus bíblico, tal como é apresentada por Metz como base de uma universalização do religioso, implica a concentração na identidade judaico-cristã, como identidade religiosa e cultural, ao mesmo tempo, superando ambas na sua estrita 28 METZ, J. B. – “Religion und Politik”, 271. METZ, J. B. – “Religion und Politik”, 273. 30 METZ, J. B. – “Religion und Politik”, 276. 29 imanência, precisamente pela referência a Deus. Ora – pensando agora para além de Metz, que permanece estritamente monoteísta – essa identidade radica na mais profunda diferença marcante da identidade cristã: a diferença trinitária. Aí articula-se uma relação primordial entre identidade e diferença, que poderá ser fértil na compreensão da pertinência inter-cultural da religião, pois essa pertinência medir-se-á sempre pela capacidade de articulação pacífica entre identidade e diferença. Ora, segundo a teologia cristã, a diferença entre Pai, Filho e Espírito constitui o cerne do conceito cristão de Deus e constitui, simultaneamente, o modelo de compreensão cristã da realidade – proposta, contudo, universalmente, e não apenas aos cristãos. E porque essa diferença é relacional, o Deus cristão é «relativo» em si mesmo, consistindo nisso a sua verdade absoluta e a verdade absoluta do cristianismo também. Ser relativo significa, na sua raiz, viver a partir do outro e para o outro diferente, sem anular a sua diferença. Isso implica, precisamente, o descentramento de si, como forma de identidade, em vez de a afirmação de si. A diferença, que implica o acolhimento positivo do excesso presente na alteridade do outro que não é como eu, constitui então o núcleo da religião cristã: a identidade da revelação bíblica reside, precisamente, na afirmação constante do valor primordial dessa diferença. Isso é a sua verdade absoluta, critério de auto-crítica, para si e também para as outras religiões. Aí se situam, também, os limites da tolerância, por parte do cristianismo, em relação a outras tradições (já que não se pode tolerar o intolerável, isto é, tudo e todo o que não tolera a diferença presente na alteridade do outro, pessoal ou coletivo). Com base nestes elementos fundamentais da identidade cristã – com os seus antecedentes judaicos, sem dúvida, e potencialmente universalizáveis – podemos considerar que o cerne do cristianismo, enquanto religião, reside na conceção da sua relação aos outros como doação de si, e não como conquista dos outros para si. A kenosis, enquanto entrega de si mesmo pelos outros e constituinte da identidade cristã, pode ser assumida como futuro de todos os seres humanos, como salvação universal. Claro que as formas concretas de percorrer esse caminho podem – e devem – divergir, conforme as diferentes tradições e pertenças. Mas o caminho é comum, porque é o caminho da concreta e absoluta aceitação dessas divergências. O «ser-para-outro» – em vez do «ser-em-função-de-si-mesmo» – constitui, então a identidade do cristão, que pretende ser a manifestação da identidade de todo o ser humano, como correspondência àquilo que é o próprio Deus, em si mesmo. «Ser-para» que se manifesta, por seu turno, em várias dimensões: Ser para Deus / ser para as nações (judaísmo); ser para o Pai (no Filho, pelo Espírito) / ser para o próximo (cristianismo). A identidade cristã – potencial base para toda a compreensão da religião e da sua relação à cultura – pode, assim, ser definida como «ex-centricidade», e não como eventual «ex-clusividade» resultante da «com-centração» em si mesmo. Ora, parece-me que este «conceito» cristão de religião, incarnado – embora de modo falível e muitas vezes desadequado – em realizações culturais e históricas, pode ser apresentado beneficamente como desafio à compreensão da relação entre religião e cultura, no contexto da inter-culturalidade. Resumo: Depois de apresentar a inseparável relação entre religião e cultura, com base numa abordagem hermenêutica da filosofia da religião, focaliza-se a questão no topos da relação entre religião e violência, com recurso às leitura de Girard, Ricoeur e Marquard. Ao contrário do que muitas propostas defendem, considera-se o potencial do monoteísmo como superador de violência. Nesse contexto, o conceito cristão de Deus, baseado na originária articulação da identidade com a relação, é considerado como caminho religioso para a superação da violência – também no âmbito da relação intercultural. Palavras-chave: Filosofia da religião, monoteísmo, violência, cultura, relação