E LÁ VEM LEITURA: trabalhando Clarice Lispector com crianças Maria Andréa Souza de Andrade Nascimento Aluna do Curso de Pedagogia da Faculdade Amadeus RESUMO Este artigo apresenta os resultados de um estudo de caso realizado com crianças de sete a oito anos, alunos do ensino fundamental de uma escola municipal da cidade de Aracaju, que teve como objetivo estimular a formação de leitores por meio da leitura do conto “A vida íntima de Laura”, de Clarice Lispector. Um dos desafios do projeto foi o fato de que dois terços dos alunos ainda não estavam alfabetizados. Utilizando uma abordagem da leitura interacionista proposta por Isabel Solé, dentre outros autores, demonstrei que mesmo as crianças ainda não alfabetizadas participaram ativamente de todo o processo e tiveram o gosto pela leitura despertado. Palavras-Chave: Estratégias de Leitura. Formação de Leitores. Literatura Infantil. INTRODUÇÃO Alguns professores, que não são da área de português, muitas vezes se alarmam ao saber que os alunos não estão compreendendo o texto ou os assuntos abordados. Outros professores acreditam ainda que cabe somente ao professor de português o incentivo à leitura. O papel dos professores em geral é ajudar os alunos a serem pessoas que saibam interpretar textos de qualquer natureza. Portanto, os próprios professores precisam entender que serão o espelho para o futuro da criança leitora, como enfatiza Silva (1998), pois cabe aos professores, criarem o hábito pela leitura, paixão pela leitura, pois muitos dos hábitos das crianças são decorrências da imitação dos hábitos dos adultos”. Desde minha primeira gestação, minha paixão pela leitura fluiu cada vez mais, quando eu me debruçava no chão de casa ou na cama para narrar alguns contos infantis para meu filho. Os anos se passaram e quando ele ingressou na escola, aos quatro anos, se encantava com a leitura no âmbito escolar e mostrava um melhor desempenho em relação a sua idade. Hoje, ele está com nove anos e se tornou uma criança leitora. Chegou até mesmo a criar um blog (Criança também lê), onde publica pequenos textos sobre os livros que lê. Assino as revistas da Turma da Mônica, desde quando ele tinha cinco anos e desde então ele já leu mais de quatrocentas revistas em quadrinhos e mais de trinta livros de literatura infantil. A leitura na vida de meu filho tem dado muitos frutos: ótimo desempenho na escola e muita facilidade no aprendizado, não somente em Português, como também nas outras disciplinas. Com base nessas experiências que eu tenho vivenciado com a leitura e sabendo da sua fundamental importância para a formação do aluno, tive a oportunidade de trabalhar a leitura de forma diferenciada com crianças de sete a oito anos, alunos do ensino fundamental de uma escola municipal da cidade de Aracaju. Eu observei que somente um terço da sala de aula sabia ler e que a classe mostrava-se desinteressada pela leitura. Por conta disso, a primeira estratégia de leitura proposta para as crianças foi que elas levassem livros do acervo da biblioteca da escola nos finais de semana, com o objetivo de melhorar o aprendizado dos alunos e incentivar o gosto pela literatura. Como os alunos mostraram bastante interesse e eu queria encontrar maneiras de desafiá-los cada vez mais, propus que além dos livros que levavam para casa, pudéssemos adotar um livro para fazer parte da nossa rotina. Sabendo que Clarice Lispector é reconhecida como uma das maiores escritoras brasileiras, que publicou contos, crônicas, analogias, romances e literatura infantil, escolhi um dos quatro contos infantis que ela publicou e apresentei-o para a classe. O conto escolhido foi “A vida intima de Laura”, que conta a história de uma galinha bastante pensativa, cujo nome é Laura. O livro tem o propósito de transmitir valores éticos e contém uma linguagem desafiadora e rebuscada, mas, mesmo assim, acessível ao universo infantil. O objetivo deste trabalho foi demonstrar, por meio de um estudo de caso, que é possível, para o professor, desenvolver atividades na sala de aula que formem crianças leitoras. Além disso, demonstrarei que, apesar de dois terços dos alunos ainda estarem no nível silábico ou silábico-alfabético, consegui que toda a turma participasse do projeto de leitura com êxito. Para a realização deste estudo de caso, recorri a diversos autores, como Emilia Ferreiro, Magda Soares, Isabel Solé, Josette Jolibert, Ângela Kleiman, dentre outros, que me deram embasamento teórico para a contextualização da criança leitora e a contribuição do adulto no seu processo de aprendizagem, já que, de acordo com Kleiman (1993), a criança se tornará uma criança leitora, se o adulto tiver paixão pela leitura. CONHECENDO OS ALUNOS, IDEALIZANDO O PROJETO. Desde os anos 80, a língua portuguesa tem sido o centro da discussão acerca da necessidade de melhorar a qualidade da educação no que diz respeito à escrita e à leitura (BRASIL, 2000). Ao longo de alguns anos, algumas mudanças foram sendo feitas, reflexo da preocupação com o processo de alfabetização do aluno. Este processo está pautado na construção do conhecimento do individuo, pois a criança precisa compreender não só o que a escrita representa, mas também de que forma ela representa graficamente a linguagem. Ferreiro (1991) afirma que existe um processo de aquisição da linguagem escrita, em que a criança passa por alguns níveis de desenvolvimento. Muitas vezes, esse processo parece caótico para o adulto, mas é o caminho percorrido pela criança para o desenvolvimento da leitura e da escrita. Segundo essa autora, os níveis são os seguintes: escrita pré- silábica, silábica, silábico-alfabética e alfabética. Na escrita pré- silábica, a criança não estabelece vínculo entre a fala e a escrita. Sua representação para se comunicar por escrito é através de desenhos, rabiscos, garatujas e traçados lineares com formas diferentes (Figura 1). Na escrita silábica, a criança já aceita palavras com uma ou duas letras. Este nível representa um salto qualitativo para a criança, que supera a etapa da correspondência global entre a forma escrita e a expressão oral atribuída. Exemplos: Boi - OIOI Queijo - CGO Jacaré - JALE Figura 1: Representação da escrita pré-silábica Fonte: http://www.professorefetivo.com.br Na escrita silábico-alfabética, existem duas formas de correspondência entre sons e grafias. A silábica (sílaba, som produzido por uma só emissão de voz) e a alfabética (análise fonética e/ou análise dos fonemas, que são os elementos sonoros da linguagem e têm nas letras o seu correspondente). Este nível é marcado pela transição entre os esquemas prévios a serem abandonados e os esquemas futuros que virão a ser construídos. As crianças começam, então, a descobrir que as sílabas podem ser escritas com uma, duas, três ou mais letras, que o som não garante a identidade das letras, nem a identidade de sons. Ela parte assim, para o nível alfabético. O nível alfabético caracteriza-se pela correspondência entre fonemas e grafias. Neste nível, geralmente, as crianças já conseguem ler e expressar graficamente o que pensam e falam. Elas também compreendem a logicidade da base alfabética da escrita. Exemplos: G+A= GA T+O= TO -> Forma-se, assim, a palavra GATO. Considerando o processo de aprendizagem apresentado por Ferreiro em cada um dos seus níveis, fica evidente a necessidade de se respeitar as fases de cada criança quando da sua alfabetização. No projeto que produzi com as crianças ao longo de um semestre de estágio, levei em consideração estes níveis, o que resultou em um rico aprendizado tanto para mim como para os educandos. O meu estágio foi numa turma de vinte e um alunos do segundo ano do ensino fundamental, com crianças de sete a oito anos. No semestre em que estagiei, consegui desenvolver uma iniciação na formação leitora dos alunos. Para conhecer a turma, nos primeiros dias de aula observei os alunos, analisando alguns pontos relevantes, como, por exemplo, a escrita de cada um, a compreensão e interpretação de textos e, por último, a atenção deles no desenvolvimento das atividades. A partir dessa análise, eu pude obter um breve diagnóstico da classe. Foi necessária uma semana para começar a conversar com a classe, me aproximar deles e me aprofundar no nível de aprendizado de cada um. Para haver uma interação entre nós e vice-versa, realizei dinâmicas, como por exemplo, estimular que os alunos se apresentassem àqueles que estivessem sentados à sua direita, à sua esquerda. Para auxiliar no diagnóstico, elaborei alguns ditados de palavras, utilizando alguns recursos, como jogos de alfabetização. Aproveitei os momentos com os jogos para que cada aluno identificasse seu nome. Para finalizar o diagnóstico, desenvolvi a contação de algumas histórias clássicas, como Branca de Neve e os Sete Anões, Rapunzel, A Bela e A Fera, além de algumas revistas em quadrinhos da Turma da Mônica que estavam disponíveis na biblioteca da escola. As leituras eram feitas ora em voz alta, ora de modo silencioso. Após as leituras, os alunos registravam o que haviam entendido da história, a relação da ficção com a vida real e o que ficava de mais importante para cada um. Apenas sete das vinte e uma crianças da sala eram alfabetizadas. Elas faziam seus registros de forma escrita. O restante da turma, que estava distribuído entre crianças nos níveis silábico-alfabético e silábico, faziam os registros por meio de desenhos ou pinturas. A iniciativa de fazer o registro do que cada criança entendeu está de acordo com o pensamento de Kleiman (1993), que afirma que temos que levar em conta se o aluno de fato compreendeu a leitura e não simplesmente pedir que ele faça uma leitura silenciosa ou individual simplesmente por fazer. Ela também afirma que a prática da leitura na sala de aula, não apenas na aula de português, tem que propiciar a interação entre aluno e professor, professor e aluno. Os passos adotados ao longo das duas primeiras semanas me permitiram ter um diagnóstico da sala, concluindo que um terço da classe estava no estágio alfabético e o restante, conforme já apresentado, ainda não estava alfabetizado. Encarei esta informação como um desafio: eu precisava ajudar aquelas crianças a superar os desafios que tinham pela frente para serem alfabetizadas, principalmente levantar a autoestima delas, já que algumas tinham vergonha de se expressar na sala de aula por ainda não saberem ler. Compreendi que, por maiores que fossem os desafios, o primeiro passo a ser dado seria abrir portas para a formação leitora dos alunos. Para estimulá-los à leitura, selecionei alguns livros no acervo da biblioteca da escola e, no dia seguinte, levei-os para a sala e esperei a reação deles ao verem os livros. Organizei uma leitura coletiva: eu e os alunos sentávamos em círculo, cada um lia seu livro e em seguida partilhava um pouco sobre ele para o restante da turma. Finda esta atividade, sugeri que cada aluno escolhesse um ou mais livros. Depois que estavam com seus livros nas mãos, perguntei se eles gostariam da ideia de levá-los para casa e ler no final de semana. De acordo com Silva (1998), é fundamental para a formação da criança leitora que o docente promova a leitura na sala de aula e fora dela. Quase todos os alunos aceitaram a ideia, com exceção de alguns que não sabiam ler. Como o professor precisa ser motivador (SOLÉ, 1998), aproveitei o momento para explicar que, para ler, não é necessário estar alfabetizado. Utilizei-me de algumas estratégias para motivar os alunos não alfabetizados. Assim, sugeri alguns livros que tinham mais gravuras e estimulei os alunos a interpretá-las, inclusive com a possibilidade de recriar a história. De acordo com Ferreiro (1991), o professor não deve se restringir a uma técnica especifica de aprendizagem, já que o processo é construtivo. Cada criança apresenta um nível diferente de aprendizado. Ainda nesta ótica, Ferreiro (1991) relata uma experiência pedagógica desenvolvida por Ana Teberosky, baseada em três ideias simples, mas fundamentais: a) deixar entrar e sair para buscar informação extraescolar disponível, com todas as consequências disso; b) o professor não é mais o único que sabe ler e escrever na sala de aula, todos podem ler e escrever, cada um ao seu nível; c) as crianças que ainda não estão alfabetizadas podem contribuir com proveito na própria alfabetização e na dos seus companheiros, quando a discussão a respeito da representação escrita da linguagem se torna prática escolar. Todas as segundas-feiras, no inicio da manhã, fazíamos uma roda de conversa na sala de aula e cada um contava sua experiência, fazia uma síntese da história, descria a parte do livro de que mais gostou e justificava esta escolha. Por meio desta leitura coletiva, os alunos puderam perceber que suas ideias podiam ajudar os colegas mais tímidos. Isso se dava, por exemplo, quando crianças que ficavam com vergonha de apresentar, eram estimuladas por colegas mais desinibidos a falar. Segundo Conrado e Silva (2006), a roda de conversa é importante porque garante a palavra para todos que querem participar, incentiva a participação dos mais tímidos e esclarece algumas palavras ou conceitos que não estejam claros para as crianças. Um fato importante que observei nessa atividade de levar os livros para casa foi que algumas crianças partilhavam na roda de leitura que seus pais, avós ou irmãos mais velhos liam para eles. Pude ver a alegria daquelas crianças, que estavam criando laços afetivos com seus pais por meio da leitura. Algo que também me chamou muito a atenção, foi que no momento da apresentação das histórias na sala de aula, notava-se que, quando uma criança gostava da história do outro colega, eles faziam uma troca de livros. A partir desta observação, pude concluir que, através da leitura, os alunos estavam começando a se relacionar melhor uns com os outros. Depois que percebi como a classe estava motivada pela leitura, pensei que poderia ser muito proveitoso se a leitura fizesse parte da nossa rotina em sala de aula. Como eles tinham muito contato com leituras de histórias clássicas, como já mencionado neste artigo, pensei que poderia ser proveitoso para a formação dos alunos enquanto leitores se eles tivessem contato com alguma leitura nova para motivá-los com novos desafios, já que “a leitura de textos se coloca como uma janela para o mundo, por isso é importante que essa janela fique sempre aberta, possibilitando desafios cada vez maiores para a compreensão do leitor” (SILVA, 1998). ESCOLHENDO CLARICE LISPECTOR E LENDO COM AS CRIANÇAS Como eu estava pensando em uma forma de ajudar as crianças no seu processo de formação enquanto leitores escolhi o livro “O mistério do coelho pensante e outros contos”, de Clarice Lispector. Porque ela? Pelo fato de ser uma grande escritora, conceituada internacional e nacionalmente, ganhadora de vários prêmios importantes, tais como o Prêmio Jabuti. Nascida em 10 de Dezembro de 1920, morreu ainda jovem, aos 57 anos de idade. Seu livro de maior sucesso foi “A hora da estrela”, mas sua obra é vasta, incluindo romances, contos, crônicas e histórias infantis. Clarice Lispector relatou em uma entrevista concedida ao programa Panorama, da TV Cultura, em 01/02/1977, que sempre foi apaixonada pela leitura e que já escrevia aos nove anos de idade (PANORAMA, 1997). Depois de vários livros para “gente grande” resolve escrever para “gente pequena” (LISPECTOR, 2010). Clarice Lispector escreveu quatro contos infantis, todos os presentes no livro aqui citado: - O mistério do coelho Pensante - A Mulher que matou os peixes - A vida íntima de Laura - Quase de Verdade Apresentei à classe os quatro contos, mas como não daria tempo de ler todos eles durante o semestre, escolhemos apenas um. Escolha do livro O conto escolhido foi “A vida íntima de Laura”. Por se tratar da história de uma galinha, chamou muito a atenção das crianças. Logo surgiram vários comentários por parte dos alunos, querendo saber o que a galinha Laura tinha de tão especial para poder contar para eles. Outra coisa marcante para os alunos na escolha do livro foi o fato de a personagem principal ser uma galinha, um animal comum, com o qual eles conviviam quando iam para a casa dos avós, primos, ou até mesmo, em alguns casos, os próprios pais criavam. O fato de a galinha ter nome de gente também chamou a atenção deles. E, por último, a autora despertou a curiosidade das crianças, com uma série de provocações, como no exemplo abaixo: “Agora adivinhe quem é Laura. Dou-lhe um beijo na testa se você adivinhar. E duvido que você acerte! Dê três palpites. Viu como é difícil? Pois Laura é uma galinha” (LISPECTOR, 2010). Desde o início do conto, as crianças ficavam ansiosas querendo saber quem era essa galinha e que vida íntima era essa que guardava tantos segredos. Com isso, todos os dias eles mostravam-se curiosos para saber o que iríamos ler naquele dia. Combinados Nós fizemos algumas combinações: - Iríamos ler o conto em voz alta; - Leríamos uma página por dia (poderia ser até mais, se necessário); - Faríamos alguns comentários após a leitura, inclusive poderíamos fazer uma ponte com o nosso cotidiano; - Caso algum aluno quisesse, poderia ler no meu lugar. Todos os dias, quando eu chegava para a aula, a classe perguntava se naquele dia iria ter a história da galinha Laura. Antes da leitura, preparávamos o ambiente. Havia dias em que íamos para fora da sala e em outros dias ficávamos dentro da sala. Eu sempre inovava o ambiente, para ficar mais aconchegante e acolhedor para as crianças. Às vezes trocávamos as cadeiras de posição, para sair da sua posição rotineira; outras vezes, sentávamos no chão; outras ainda íamos sentar no pátio da escola. Eu sempre buscava mobilizar as crianças para que aquele momento fosse prazeroso. Segundo Silva (1998), é importante, “no momento da leitura, criar um ambiente de relaxamento e descontração, com as crianças se acomodando em círculos ou sentadas no chão”. A hora da leitura do conto era o momento ápice da manhã que eu passava com eles e logo se tornou parte da nossa rotina. Com isso, as crianças já sabiam que quando eu chegava, “lá vinha leitura”. Assim nasceu o tema deste artigo: E lá vem leitura: trabalhando Clarice Lispector com crianças. A vida íntima de Laura Depois de ter apresentado o perfil da turma e os motivos para a escolha do livro, darei continuidade falando um pouco de “A vida intima de Laura”. Vou logo explicando o que quer dizer “vida íntima”. É assim: vida íntima quer dizer que a gente não deve contar a todo mundo o que se passa na casa da gente. São coisas que não se dizem a qualquer pessoa. Pois vou contar a vida intima de Laura. Agora adivinhe quem é Laura. Dou lhe um beijo na testa se você adivinhar. E duvido que você acerte! Dê três palpites. Viu como é difícil? Pois Laura é uma galinha (LISPECTOR, 2010). Desde o início do conto, a autora consegue brincar com as crianças, despertando a curiosidade delas, com o intuito de prender a sua atenção. A reação dos meninos era que chegasse o mais rápido possível o final da história para poder saber como era a vida íntima da galinha Laura. Neste livro, a autora aborda temas como o medo da morte, o racismo, tolerância e respeito às diferenças, bondade. O nascimento do filho de Laura, por exemplo, chamou muito a atenção das crianças por representar uma vida nova, fazendo com que eles pensassem que temos que ver as dificuldades de todos os dias a partir de uma nova perspectiva. Outro aspecto explorado pelo conto é a riqueza, não material, mas a habilidade e talento que cada um de nós tem. Laura é uma galinha casada com o galo Luís. Eles moram no quintal da Dona Luiza. De todas as galinhas do quintal, ela é a que mais põe ovos. Ela é uma galinha que tem alguns defeitos, porém também tem muitas qualidades. A maioria das galinhas que mora no quintal com Laura não gosta dela, por considerarem que ela é uma galinha burra. Mas Laura não se incomoda com o que os outros pensam dela, pois sabe que seu marido, Luís, a ama muito e sabe que ela é uma galinha especial. O importante para Laura é que ela gosta de fazer o bem e não de ficar imitando as outras galinhas. Para Laura, cada um tem seu talento. Uma de suas características mais admirável é ser autêntica, com sonhos e planos, inclusive o de ser mãe. Até que numa noite Laura sentiu que o ovo estava pronto para nascer. Ela estava até dormindo e acordou sentindo o ovo nascendo dela (LISPECTOR, 2010). Laura não esconde seu jeito de ser, inclusive não esconde seu medo. Enfrenta-o de forma bem natural, mas, pensando assim, quem não tem medo de alguma coisa na vida? O medo de Laura era parar na panela de Dona Luíza, virar uma galinha ao molho pardo, comida tradicional naquela casa. Agora vou contar uma coisa um pouco triste. A cozinheira disse para Dona Luiza, apontando para Laura: - Essa galinha já não está botando muito ovo e está ficando velha. Antes que pegue alguma doença ou morra de velhice, a gente bem que podia fazer ela ao molho pardo. Laura ouviu tudo e sentiu medo (LISPECTOR, 2010). Apesar de tudo, Laura é bem otimista. Mesmo diante de seu medo, enfrenta-o e pensa que mesmo se não tiver como escapar desse triste e trágico fim, então que pelo menos seja comida pelo craque Pelé. “Eu sei que você nunca viu Laura. Mas se já viu uma galinha meio marrom, meio ruiva, e de pescoço muito feio, é como se estivesse vendo Laura” (LISPECTOR, 2010). Dois pontos importantes Do ponto de vista da formação e do desenvolvimento das crianças, destaco dois momentos em especial de A vida íntima de Laura: o momento em que Dona Luiza empresta a galinha Laura para a vizinha para botar alguns ovos e o momento em que se fala da única galinha de uma raça diferente que vive no galinheiro de Dona Luiza, enfatizando que as outras galinhas não têm preconceito com ela por causa disso. Empréstimo: Dona Luísa a emprestou para um quintal vizinho. É que ela sabia botar muito ovo e pediam que a emprestassem por uns tempos (LISPECTOR, 2010). Laura se viu entre galinhas desconhecidas e sem Luís, e no começo ficou apavorada com a possibilidade de nunca mais voltar para o seu quintal. Depois que ela começou a arranjar novas amizades, percebeu que não era tão ruim estar entre galinhas desconhecidas. Como ela tinha um bom coração, a partir do momento em que aceitou a situação difícil em que se encontrava, Laura começou a botar grande quantidade de ovos. A atitude que Laura toma no sentido de ajudar o quintal vizinho prova mais uma vez que ela transmite importantes valores para as crianças. Ela consegue se relacionar com outras galinhas facilmente, fazendo, inclusive, amizades. As crianças gostaram dessa atitude de Laura, porque mesmo pensando que iria morrer, ela começou a analisar melhor a situação e esperar o momento certo para tomar as decisões. As crianças aprenderam também, que a “grande quantidade de ovos” que Laura colocou representa a importância de ajudar uns aos outros, não importa o local ou a quantidade de vezes. É essencial contextualizar a leitura, como diz Silva (1998): “É preciso construir e levar à prática situações a serem concretamente vivenciadas, de modo que o valor da leitura venha a ser paulatinamente sedimentada na vida dos educandos”. As crianças se identificaram muito, apropriando-se desses valores que Laura transmite. Elas compreenderam a importância de serem também pessoas generosas e de “bom coração”. Os alunos faziam pontes com essa parte da história de Laura no dia-a-dia da sala de aula, ajudando os que estavam próximos, como por exemplo, em momentos que iriam fazer colagem e o colega precisava da cola ou tesoura, ou quando tinham que emprestar um material escolar como borracha ou lápis. Esta experiência está plenamente de acordo com o que afirma Silva Ano??......: Ao leitor do texto literário cabe não somente compreender, mas também imaginar como a realidade poderia ser diferente: não só compreender, mas transformar e transformar-se; não somente transformar, mas sentir o prazer de estar transformando (1998). A raça diferente Mas ela é modesta. Basta-lhe cacarejar um bate-papo sem fim com as outras duas galinhas. As outras são muito parecidas com ela: também meio ruiva e meio marrom. Só uma galinha é diferente delas. Uma carijó de enfeites preto e branco. Mas elas não desprezam a carijó por ser de outra raça. Elas até parecem saber que para Deus não existem essas bobagens de raça melhor ou pior (LISPECTOR, 2010). Há centenas de raças de galinhas catalogadas. Para Clarice Lispector, entretanto, independentemente de qual raça, cor e classe seja a galinha, Laura não se importava, porque para ela, não existe raça melhor ou pior. O importante na vida é respeitar e acolher aqueles que são diferentes de nós. Essa é outra parte do conto que chamou muito a atenção das crianças. A sociedade muitas vezes impõe padrões de pessoas, distinguindo-as por classe, cor de pele, tipo de cabelo ou quantidade de bens que possuem. Através da história de Laura, as crianças refletiram que precisam respeitar o outro e aceitar suas diferenças. Finalização do projeto Após ter trabalhado com as crianças o conto A vida íntima de Laura, falei um pouco sobre a história da autora, Clarice Lispector. Tínhamos que concluir o projeto de alguma forma, para que os alunos fixassem mais o aprendizado. Reproduzi o conto em cores e com gravuras para as crianças e coloquei no quadro-negro da sala, para que eles visualizassem todas as cenas que tínhamos lido. As crianças foram recapitulando cada momento da história, inclusive fizemos um painel para que ficasse exposto na sala durante aquele semestre, com o propósito de nos influenciar a ler mais outros contos e para valorizar cada um daqueles momentos, em que os alunos adquiriram conhecimento, como comprova Silva, que diz que “ler e conhecer são atos indissociáveis, que aumentam o leque de opções e decisões do cidadão” (1998). A sala foi dividida em grupos. A ideia era que eles conversassem entre si, fazendo uma recapitulação da história. Depois desse momento, as ideias foram registradas no papel. Os registros foram através de desenhos ou textos, e cada criança representou a parte do conto que mais gostou ou mesmo aquela que não gostou. Esse momento foi muito produtivo, pois as crianças puderam expressar de forma livre e crítica suas ideias. Segundo Silva (1998), não pode haver um amortecimento do senso critico por parte do aluno, é importante deixá-lo usar sua criatividade, dando um sentido significativo às suas ideias propostas nos textos. Depois que finalizamos esta etapa, pude perceber que alguns resultados foram alcançados em relação ao aprendizado das crianças: 1. Como eu tinha relatado, não daria tempo de terminar todos os contos infantis de Clarice Lispector, mas mesmo assim, três crianças pediram os outros contos para terminarem de ler. 2. Algumas crianças que eram mais tímidas mostraram mais desenvoltura no final do projeto. 3. Algumas crianças trouxeram livros e revistas que tinham em casa para que eu pudesse ler com eles em grupo. 4. Um dos exemplos mais marcantes foi o de uma aluna que não tinha muito contato com a leitura e que trouxe o livro Alice no País das Maravilhas, que tinha acabado de ganhar, para apresentar à turma. É importante ressaltar que cada criança desenvolve na leitura uma característica única de leitor. Algumas se sentem mais atraídas por revistas em quadrinhos, outras pelos contos de fadas, outras por textos literários. Enfim, há uma diversidade de leitores com características próprias. Cabe ao professor, mediar e direcionar o educando para esse universo de descobertas, como bem escreve Souza: “O educador deve assumir o papel de mediador, para que o mediado desenvolva e amplie sua história de leitura o máximo possível” (SOUZA, 2003). CONCLUSÃO O exemplo visível ajuda muito a criança a querer imitar o adulto. No entanto, é interessante apresentar algumas técnicas que o professor pode seguir para ajudar os seus alunos a pensar, refletir e criar o gosto pela leitura (CONRADO e SILVA, 2006): Ler e discutir jornais, revistas ou livros na sala dos professores, nos corredores da escola etc. Fazer com que o amor aos livros se transforme esporadicamente. Transformar o livro em si no tema de discussão da classe. Formar acervos específicos na própria sala de aula. O professor poderá ler em voz alta, promover leituras coletivas, compartilhadas ou em grupos. Além de o professor utilizar esses recursos, é interessante também, para incentivo à leitura, a utilização de filmes, direta ou indiretamente ligados ao livro. Ou então, como sugere Silva (1998), promover um clube da leitura entre as crianças ou até mesmo convidar alunos de outras séries para que pudessem fazer parte do clube. Depois do envolvimento com a leitura, promover na escola uma feira do livro ou feira literária. Outro momento rico para a formação leitora do aluno seria levá-lo para visitar a biblioteca pública da cidade. Esses hábitos escolares incentivam o aluno a querer ter em casa sua própria biblioteca pessoal, despertando seu interesse em querer descobrir o mundo da leitura. Silva (1998), falando de um trecho do livro de Capitães de areia, de Jorge Amado, tenta mostrar um pouco quais seriam as finalidades da leitura: “Ânsia de ler. Febre de ler. Fome de leitura. Hábito de leitura. Gosto pela leitura. Prazer da leitura. Paixão da leitura”. Esse é o propósito que todo educador deveria ter: construir, no dia-a-dia, condições para criar no aluno a paixão pela leitura. Mostrar o valor da leitura ao educando não é uma tarefa difícil, pois esse processo, se produzido numa linha de experiências bemsucedidas para o sujeito-leitor, significa uma possibilidade de repensar o real pela compreensão mais profunda dos aspectos que o compõem (SILVA, 1998). Concluo afirmando que a formação leitora do aluno requer tempo e que esse tempo precisa ser regado com amor, dedicação e paciência. Aprendemos que há estágios ou níveis para o processo de alfabetização e esses níveis precisam ser respeitados. Também é importante levar em conta que a formação leitora do aluno se origina por vários fatores: sociais, familiares, escolares, materiais etc. Não importa o meio ou a idade em que o aluno foi formado, sempre há maneiras para que haja essa formação leitora. A leitura dá suporte ao aluno, não somente para entendimento da disciplina Português, mas também de todas as matérias que fazem parte do currículo escolar. Os educadores precisam influenciar os educandos dando exemplos, mostrados a partir do dia-a-dia na escola, seja nos corredores da escola, seja na própria sala de aula. É necessário que a escola, como um corpo, se preocupe em levar os educandos a refletir que a leitura faz parte do nosso cotidiano, da nossa formação, tanto como cidadão quanto como pessoa. Sabemos também que há meios que podem contribuir também para que a criança sinta-se motivada a ler. A sala de aula precisa ser dinamizada. A preparação visual também é importante. É interessante que o docente se preocupe em reservar um cantinho da leitura (ou caixa de leitura, baú da leitura), um lugar aconchegante onde os alunos possam sentir prazer e se sentirem motivados. Na nossa condição de educador, não podemos pensar que os alunos que não alcançaram o nível alfabético não poderão participar de projetos de leitura com alunos alfabetizados. Como foi demonstrado neste trabalho, se houver criatividade e o docente acreditar no potencial do aluno, os resultados aparecerão. Percebi que um semestre foi pouco para executar tudo que eu havia pensado para o projeto. Este trabalho, portanto, é apenas o inicio de uma longa caminhada que pretendo continuar numa perspectiva maior. Os próximos passos serão trabalhar os outros contos infantis de Clarice Lispector e acompanhar os alunos por um período mais longo. Mesmo assim, pude perceber que houve significativas contribuições para a formação leitora das crianças. Através de uma simples história, com uma simples personagem, pude observar também uma melhora no rendimento das minhas aulas, não somente de Português, mas de Geografia, Matemática, História, Ciências, Artes e Religião. Um exemplo disso foi quando, em uma das aulas de Geografia, em que eu falava do lugar em que cada criança vivia, as crianças faziam associações com a história da galinha Laura. Encerro esse artigo com as palavras de Silva, um dos autores que me acompanhou neste projeto. Aprendi com ele que a leitura está muito mais além das linhas, está além da criatividade de cada aluno, além das barreiras e além de qualquer situação social. “A leitura exige muito mais do que a soletração de palavras. A criança deve relacionar os conteúdos com as suas experiências, agindo e reagindo. Ler para além das linhas é essencial.” (SILVA, 1998). REFERÊNCIAS CONRADO, Regina Mara de Oliveira e SILVA, Sandra Maria Bezerra. Dinamizando a sala de aula com a literatura infanto-juvenil. São Paulo: Edições Loyola, 2006. FERREIRO, Emília. Reflexões sobre a alfabetização. Tradução: Horácio Gonzáles (et. al.). 19ª ed. São Paulo: Cortez Editores Associados, 1991. KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura: teoria e prática. Campinas: Pontes – Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1993. LISPECTOR, Clarice. O mistério do Coelho pensante e outros contos. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2010. PANORAMA: Programa especial com Clarice Lispector exibido em 01 fev. 1977. São Paulo: TV Cultura, 1977. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU. Acesso em 13 set. 2013. BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: lingual portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental. 2ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. 144p. SILVA, Ezequiel Theodoro da. Elementos de pedagogia da leitura. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Tradução: Claudia Schilling. 6ª ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. SOUZA, Silvana Ferreira de. 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