Programa - Cendrev

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“Chego agora aos campos e ás vastas zonas da memória,
onde repousam os tesouros das inumeráveis imagens de
toda a espécie de coisas introduzidas pelas percepções;
onde estão também depositados todos os produtos do
nosso pensamento, obtidos através da ampliação, redução
ou qualquer outra alteração das percepções dos sentidos,
e tudo aquilo que nos foi poupado e posto de parte ou que
o esquecimento ainda não absorveu e sepultou.”
Santo Agostinho, Confissões
Estas “Memórias” constituem a 160ª produção do Cendrev.
Um percurso de trinta e três anos, construído em torno das obras de dramaturgos de
todos os tempos, nacionalidades, cores e credos.
Ao longo destes anos dezenas de criadores das várias disciplinas teatrais cruzaram e
enriqueceram os nossos saberes com os seus.
Centenas de personagens povoaram os espaços deste magnifico edifício teatral que é o
Garcia de Resende com a memória das suas lutas, inquietações, vitórias ou fracassos.
“A memória, onde cresce a história, que por sua vez a
alimenta, procura salvar o passado para servir o presente
e o futuro.”
Jacques Le Goff
Contamos histórias conscientes de que os “grandes” feitos da História foram muitas
vezes realizados por gente considerada “pequena” ou “menor”. E entre os menores da
história oficial estavam (?) as mulheres…
Branca Dias. Mulher e judia num mundo dominado pelos homens e pela Inquisição.
Heroína?
Que importa?
Alguém que só queria ser… feliz.
“…viver é sofrer, e rezar para não sofrer mais, e de vez
em quando sai-nos uma grande alegria, é a felicidade.”
Branca Dias
CENDREV
SINOPSE
É sábado. Estamos em Olinda, no Pernambuco brasileiro do séc XVI, em casa de
Branca Dias, portuguesa cristã-nova de Viana da Foz do Lima. Denunciada pela própria mãe e pela irmã, é presa pela Inquisição em Lisboa, de onde parte clandestinamente com sete filhos, para o Pernambuco. Com Diogo Fernandes, seu marido,
constrói Camaragibe, um dos primeiros engenhos de açúcar do Pernambuco, onde
cria os seus onze filhos, e onde permanecerá dez anos depois da morte do marido
como a primeira senhora de engenho do Brasil. Vende Camaragibe para se instalar
em Olinda, onde se torna mestra de meninas, criando a primeira escola de costura
e de cozinha.
Branca Dias celebra mais um sabath.: roupa lavada, casa varrida, comida feita na
véspera. Entre as orações do dia, Branca Dias recorda e revive os principais momentos e pessoas da sua vida. Está muito calor.
CENAS
Cena 01 – Oração
Cena 02 – Chegada ao Brasil
Cena 03 – Quase
Cena 04 – A Mãe e a Irmã
Cena 05 – Morte de Diogo
Cena 06 – Partos
Cena 07 – Trabalhos do Diogo
Cena 08 – Casamento
Cena 09 – Partida de alguns filhos
Cena 10 – Candomblé
Cena 11 – A Vida em Olinda
Cena 12 – Fim
BRANCA DIAS – “Gostava de ter sido feliz,
toda a minha vida quis ser feliz, quase o
consegui, embora tenha sido sempre o que
nunca pude abertamente ser. Foi sempre
o quase… quase… quase… Nunca fui
cristã, fui quase cristã; nunca fui judia, fui
quase judia; nunca fui portuguesa, fui quase
portuguesa, nunca fui brasílica, fui quase
brasílica, quase professora de meninas,
quase senhora de engenho de açúcar, quase
mãe feliz, quase esposa feliz, …”
Branca Dias é uma mulher universal, uma matriarca, “a mãe de todos nós”. Síntese
de confluências culturais, revela-se uma personagem híbrida, contendo em si uma
simbiose das culturas judaica, cristã, portuguesa, brasílica, convivendo, no Brasil do
séc. XVI, com a cultura índia tupinambá e a cultura negra dos escravos africanos.
A encenação pretende revelar esta simbiose, quer através da figura de Branca Dias,
quer através da música, que se inscreve na lógica do espectáculo como um elemento dramático dialogante com a acção e as palavras das personagens, como ainda
através dos elementos cenográficos e do desenho de luz.
Branca Dias está sempre presente em cena. Uma acção inicial, pôr a mesa para
a refeição de sábado, é interrompida pelas memórias que irão suceder-se, como
flashes, obedecendo não a uma lógica cronológica, mas sim a uma lógica emocional
e afectiva.
Assim, a personagem Branca Dias transfigura-se, não só nas diferentes personagens com quem imaginariamente contracena, como se transfigura em si mesma,
actualizando os tempos e lugares em que acontece cada cena. Nem ao nível das
personagens, nem ao nível dos espaços e dos objectos cénicos existe uma lógica
estruturalmente ordenada e realista mas, contrariamente, uma constante transmutação, obedecendo ao ritmo do pensamento, das sensações e das emoções de
Branca Dias – por exemplo, a água que escorre pelo seu peito acorda-lhe a memória
do corpo quando foi amado pela primeira vez, as roupas que arruma na arca despertam-lhe a memória da cama em que morreu o seu marido, Diogo Fernandes.
Pretende-se que a representação revele uma lógica orgânica entre as várias personagens imaginadas, as acções, a relação com os objectos, a movimentação pelos
espaços, a inter relação com a música.
Assim, numa complexa partitura de movimentações nos espaços, acções, registos
vocais e corporais, a representação desenvolve-se em três níveis fundamentais:
1) Branca Dias, só e já idosa, vive o presente na sua casa de Olinda, num dia de
sábado, 2) Branca Dias nos vários tempos e lugares do seu passado (ora mulher
adulta, ora criança, ora jovem, ora viúva); 3) Branca Dias transfigurada nas outras
personagens com quem revive os diferentes momentos da sua vida.
Neste sentido, embora tenhamos uma única actriz em cena, podemos através dos
suas transfigurações constantes, apercebermo-nos de um vasto leque de personagens: Diogo Fernandes, seu marido, a mãe, Madalena, criada de Viana e falsamente
casada com Diogo, Pedro Álvares da Madeira, mestre de açúcar, Sebastião e Baltazar, seus filhos, João de Melo e Martim Afonso, inquisidores, Cabinda Arlindo,
maioral dos pretos escravos, Caraíba dos tupinambás, Duarte Coelho, governador,
D. Brites Coelho, esposa do governador, Bento Dias de Santiago, seu primo usurário, Mestre negreiro da nau S. José, meninas da escola de Olinda, e a avó, sempre
presente através de sinais e de memórias de ensinamentos constantemente actualizados por Branca Dias.
Dois elementos simbólicos atravessam todo o espectáculo: a água, simbolizando
o mar que Branca Dias atravessou, as lavagens rituais e em casa, o rebentar das
águas nos partos, a água que lava e refresca aliviando calor intenso; e o fogo, presente na candeia ritual, nos tormentos da inquisição, nas fornalhas das caldeiras
do engenho de açúcar, no incêndio dos engenhos lançado pela revolta dos índios,
na lareira onde se cozinham os alimentos e se prenunciam sinais da presença da
avó.
O espaço cénico, despojado, apresenta-se preenchido por uma mesa, uma cadeira,
um banco, uma arca, um alguidar de água, panos, uma candeia.
A verticalidade é-nos dada por dois elementos: uma composição vertical em fundo
reúne elementos que concentram os universos percorridos pela personagem – uma
amálgama de canas, folhagens, frutos, cores, simbolizam e remetem-nos para o
canavieiro de Camaragibe, as canas de açúcar, o sertão, as cores fortes do Brasil,
dos seus frutos e animais; e uma longa cortina de tule que assumirá, através da luz
e da acção, vários significados (a água corrente, o grande mosquiteiro, o interior e a
intimidade de casa, o fogo da lareira, a presença da avó).
Os espaços e os objectos cénicos assumem uma função polissémica ao longo do
espectáculo.
Através da relação orgânica entre personagem, personagens, música, luz, apercebemo-nos, não só da transformação dos espaços, revelada ao longo da representação,
como distinguimos: uma zona de interioridade – a esteira e os pedaços de sobrado
espalhados pelo espaço, permitem-nos imaginar o interior das casas (as múltiplas
casas de Branca Dias) - e uma zona de exterioridade (a viagem pelo Atlântico, o cais
de Olinda, as valas da inquisição, o terreiro do candomblé). Também os objectos se
transmutam nas várias cenas: a mesa, mudando de posição, ora é a mesa da casa
actual, ora o é das casas do passado, ora é a mesa da inquisição.
Resta-me agradecer profundamente:
- à actriz Rosário Gonzaga a oportunidade de, com ela, criar este espectáculo no
belíssimo Teatro Garcia de Resende em Évora; a Miguel Real, criador inspirado deste
texto, matéria prima do nosso trabalho; a David Martins pela sua particular sensibilidade artística criando a linguagem musical reveladora da essência de Branca Dias;
a Ricardo Assis Rosa que concebeu as linhas fortes do cenário; a Paulo Cunha pelo
desenho de luz; a Ana Bruno pela pesquisa para a concepção do figurino; a toda a
equipa do Cendrev pelo empenho e generosidade; a todos os que apoiaram este
espectáculo e ao público a quem ele se destina.
O romance de Miguel Real “Memórias de Branca Dias”, publicado em 2003, que
inspirara uma leitura encenada em Sintra, no ano de 2005, desenvolve-se agora em
espectáculo teatral, com estreia no Teatro Garcia de Resende em Évora e a actriz
Rosário Gonzaga dando vida a esta Branca Dias.
Com uma existência entre a História e a Lenda, considerada uma das matriarcas do
Pernambuco, Branca Dias é, no século XVI, no Brasil, a primeira mulher portuguesa
a praticar «esnoga», a primeira «mestra laica de meninas» e uma das primeiras «senhoras de engenho». Oriunda de Viana do Castelo, denunciada pela mãe e pela irmã
e presa pela Inquisição nos Estaus, em Lisboa, Branca Dias embarca para o Brasil
com sete filhos, juntando-se ao marido, Diogo Fernandes, vivendo ambos entre Camaragibe e Olinda, onde lhe nascem mais quatro filhos e educa uma enteada. Com
a primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil, em finais do século XVI, filhos e netos
de Branca Dias são presos sob a acusação de reconversão ao judaísmo e enviados
para Lisboa, para onde terão seguido igualmente, presume-se, os ossos de Branca
Dias, a fim de serem queimados no Rossio em auto-de-fé.
Em Memórias de Branca Dias, Branca Dias rememora a sua vida, da infância no Minho à velhice em Olinda, a sua prisão em Lisboa, a existência perturbada no engenho
de açúcar, o levantamento da casa grande de Camaragibe e da casa urbana da rua
dos Palhares (ainda hoje existentes), o convívio com Duarte Coelho, primeiro capitão donatário do Pernambuco, a morte de Pedro Álvares da Madeira, comido pelos
tupinambás, o candomblé dos escravos pretos, os terrores de uma nova geografia e
uma nova fauna, o martírio do povo miúdo português no Novo Mundo, evidenciando
assim o lado popular do heroísmo quotidiano, exultante e aziago, miscigenador e
dizimador, generoso e rapace dos primeiros colonos portugueses no Brasil.
Na tradição cultural portuguesa, uma das minorias mais fortemente perseguidas
(entre os séculos XVI e XVIII) foram os judeus, principal alvo de uma instituição
oficial, a Inquisição.
No judaísmo português desenvolveu-se uma tradição secreta, o criptojudaísmo, de
que são principalmente as mulheres as responsáveis pela tradição oral entre gerações (avó, mãe, filha), transmitindo as suas preces secretas numa linguagem que,
ao longo dos tempos, foi misturando palavras e elementos judaicos e cristãos, como
evidenciam as orações que constam desta peça.
Branca Dias é a primeira portuguesa cristã-nova do Brasil de que se tem conhecimento, tendo-se tornado uma personagem lendária e sobre a qual existem alguns
romances brasileiros do séc. XIX. Raros são, no entanto, os documentos históricos
que chegaram até nós:
1. Nasceu em Viana da Foz do Lima.
2. Esteve presa na Inquisição em Lisboa, denunciada
pela mãe e pela irmã (também elas presas).
3. Casou com Diogo Fernandes em Portugal.
4. Diogo Fernandes partiu para o Brasil e pressupõe-se
que Branca Dias terá fugido clandestinamente com
sete filhos para o Brasil.
5. Branca Dias e Diogo Fernandes levantam um dos
primeiros engenhos de açúcar do Pernambuco: Camaragibe.
6. Depois da morte do marido, Branca Dias vai para
Olinda e cria a primeira escola de cozinha e costura
para meninas do Pernambuco.
7. Seis dos filhos e inúmeros netos foram presos pela
Inquisição quando Heitor Furtado Mendonça, o primeiro visitador, chega ao Pernambuco em meados
do séc. XVI. A maioria deles são enviados para Portugal onde sofrem auto-de-fé, morrendo ou presos
ou queimados.
8. No actual Nordeste brasileiro existem inúmeras famílias Fernandes e Dias.
9. Com excepção de cabinda Arlindo, do preto Arroxeado e de frei Roberto, todas as personagens são
reais e históricas: o governador e a mulher, os filhos
de Branca Dias, o Visitador, os cristãos-novos.Esta
peça pretende homenagear uma grande mulher portuguesa que, estando do lado dos vencidos, a História, sempre feita pelos vencedores, tem esquecido.
FICHA TÉCNICA
AUTORIA: Miguel Real
ADAPTAÇÃO DRAMATÚRGICA E ENCENAÇÃO: Filomena Oliveira
INTERPRETAÇÃO: Rosário Gonzaga
ORGÂNICA SONORA E MÚSICA ORIGINAL: David Martins
ARRANJOS PARA VOZ: Andreia Lopes
CONCEPÇÃO CENOGRÁFICA: Ricardo Assis Rosa
DESENHO DE LUZ: Paulo Cunha
PESQUISA E DESENHO DE FIGURINO: Ana Bruno
DIRECÇÃO TÉCNICA: João Carlos Marques
DIRECÇÃO DE CENA: Pedro Bilou
DIRECÇÃO DE CONSTRUÇÃO: Tomé Baixinho
PRODUÇÃO: Cendrev
OPERAÇÃO DE LUZ: António Rebocho
OPERAÇÃO DE SOM: Pedro Bilou
GUARDA-ROUPA: Vicência Moreira
CONSTRUÇÃO: Tomé Baixinho, Tomé Antas, Paulo Carocho
SECRETARIADO: Marlene Charneca, Ana Dominguinhos,
Margarida Rita
FOTOGRAFIA: Paulo Nuno Silva
DESIGN GRÁFICO: Milideias, Comunicação Visual, Lda.
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