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neuro<ciências
psicologia
Sumário
II JORNADA FLUMINENSE DE COGNIÇÃO IMUNE E NEURAL
Academia Nacional de Medicina
Rio de Janeiro, 11 de agosto de 2011
organização: Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro e José Luiz Martins do Nascimento
EDITORIAIS
As Jornadas sobre Cognição Imune e Neural como plataforma
para a criação de uma nova neuroimunologia,
Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro, José Luiz Martins do Nascimento .......................................... 3
Cognição imune e neural - Encontros e desencontros?
Vivian M. Rumjanek, Marcello André Barcinski ................................................................... 5
OPINIÃO
Immunology and intentionality - Observing immunologists,
Nelson Monteiro Vaz...................................................................................................... 11
ARTIGOS
Psicofármacos para aprimoramento das funções cognitivas,
José Luiz Martins do Nascimento, Gilmara de Nazareth Tavares Bastos ............................ 18
Plasticidade sináptica como substrato da cognição neural,
Ricardo Augusto de Melo Reis, Mário C. N. Bevilaqua, Clarissa S. Schitine ........................ 27
A distinção entre o próprio e o não próprio pelo sistema
immune adaptativo, Maristela O Hernandez, Jorge Kalil ................................................... 42
O mestre dos sonhos à casa torna: revisitando Freud, Sidarta Ribeiro.............................. 49
Reconhecimento do próprio pelo sistema imune inato,
Marcello André Barcinski................................................................................................ 55
A redundante composição antigênica do universo biológico,
o parasitismo e o desafio da tolerância aos auto-antígenos,
Yuri Chaves Martins, Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro ........................................................... 60
Neurociência, a ciência do sistema nervoso: da descoberta
do impulso nervoso ao estudo da consciência e a uma nova
revolução tecnológica, Luiz Carlos de Lima Silveira,
Manoel da Silva Filho, José Luiz Martins do Nascimento................................................... 80
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neuro<ciências
psicologia
ISSN 1807-1058
Revista Multidisciplinar das Ciências do Cérebro
Editor: Luiz Carlos de Lima Silveira, UFPA
Editor associado: Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro, Fiocruz
Editor-assistente: Bruno Duarte Gomes, UFPA
Presidente do conselho editorial: Roberto Paes de Carvalho, UFF
Conselho editorial
Álvaro Machado Dias, UNIFESP (Psicologia experimental)
Aniela Improta França, UFRJ (Neurolingüística)
Bruno Duarte Gomes UFPA (Fisiologia)
Carlos Alexandre Netto, UFRGS (Farmacologia)
Cecília Hedin-Pereira, UFRJ (Desenvolvimento)
Daniela Uziel, UFRJ (Desenvolvimento)
Dora Fix Ventura, USP (Neuropsicologia)
Eliane Volchan, UFRJ (Cognição)
João Santos Pereira, UERJ (Neurologia)
Koichi Sameshima, USP (Neurociência computacional)
Leonor Scliar-Cabral, UFSC (Lingüística)
Lucia Marques Vianna, UniRio (Nutrição)
Marcelo Fernandes Costa, USP (Psicologia Experimental)
Marco Antônio Guimarães da Silva, UFRRJ/UCB (Fisioterapia e Reabilitação)
Marco Callegaro, Instituto Catarinense de Terapia Cognitiva (Psicoterapia)
Marco Antônio Prado, UFMG (Neuroquímica)
Rafael Linden, UFRJ (Neurogenética)
Rubem C. Araujo Guedes, UFPE (Neurofisiologia)
Stevens Kastrup Rehen, UFRJ (Neurobiologia Celular)
Vera Lemgruber, Santa Casa do Rio de Janeiro (Neuropsiquiatria)
Wilson Savino, FIOCRUZ (Neuroimunologia)
Neurociências é publicado com o apoio de:
SBNeC (Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento)
Presidente: Marcus Vinícius C. Baldo
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Editorial
As Jornadas sobre Cognição Imune e
Neural como plataforma para a criação
de uma nova neuroimunologia
Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro*, José Luiz Martins do Nascimento**
Nesta edição de Neurociências apresentamos artigos referentes a comunicações
realizadas por imunologistas e neurocientistas
na II Jornada sobre Cognição Imune e Neural.
Promovida pelo Instituto Oswaldo Cruz e pela
Academia Nacional de Medicina (ANM), a
Jornada ocorreu nos salões da ANM em 11
de agosto de 2011. As reflexões realizadas
chamam a atenção para a necessidade de que
cientistas dessas áreas pensem e escrevam
sobre o tema “cognição” com as abordagens
e paradigmas que usam em suas vivências
cotidianas e repertórios de conhecimentos
que norteiam seus pensares nas áreas em
que atuam, com o intuito e a perspectiva de
ampliar a agenda de debates sobre a maneira
como os seres vivos aprendem e se adaptam
ao meio em que habitam.
Somos, todos nós, afetados pela (e nos
queixamos da) falta de tempo para ler e nos
manter atualizados com a literatura de nossa
própria área e áreas afins. No entanto, são as
contribuições de fora de nosso domínio estrito
de atuação que, muitas vezes, se mostram
decisivas para a mudança de paradigmas e o
avanço conceitual. Ler os discursos de colegas
laureados com o Premio Nobel de Fisiologia ou
Medicina pode ser bastante útil para ilustrar
essa realidade.
Assim, para discutir o tema dessa Jornada, a idéia foi trazer contribuições sob a forma
de ensaios que, embora descrevam conhecimentos acerca de variados temas transversais
às ciências imunológica e neural, concernem
tópicos apresentados e discutidos na Jornada
potencialmente consideráveis como relativos à
questão da cognição. Desse modo, os artigos
publicados aqui, não guardam um ordenamento temático.
Estudos voltados aos sistemas cognitivos,
como as neurociências e as imunociências
têm experimentado uma rápida transformação
nos últimos anos, testemunhando revoluções
sem precedentes na genética; biologias celular, molecular e do desenvolvimento; fisiologia
celular; processamento de informação, proteômica e vários campos do conhecimento, relacionados ou não a questões cognitivas. Está
Organizadores da II Jornada Fluminense sobre Cognição Imune e Neural, *Centro de Pesquisa, Diagnóstico e Treinamento em Malária, Fiocruz, *Laboratório de Neuroquímica Molecular e Celular, UFPA
Correspondência: Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro, [email protected], José Luiz Martins do Nascimento, [email protected]
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claro que os processos moleculares são, em
última analise, responsáveis pelos resultados
finais que poderíamos rotular, simplificadamente, de determinantes de comportamentos
do sistema no indivíduo e deste no ambiente.
O atributo que talvez mais bem defina
os sistemas cognitivos é que eles, além de
complexos e altamente organizados em redes,
envolvem mecanismos de resposta específica
e geração de memória nas interações celulares e moleculares que resultam em fenômenos
como consciência e processos autopoiéticos e
que, vistos por observadores externos, podem
ser considerados como “análises” e “interpretações” dos sistemas e estarem na origem da
definição do indivíduo imune e neural.
O entendimento de que o sistema imune,
como o nervoso, é organizado em redes (idiotípicas em vez de neurais) produziu impacto em
cientistas, que puderam: a) entendê-lo como
capaz de fazer seu autoreconhecimento e exercer um permanente controle interno de seu
estado de ativação; e b) pensá-lo como dotado
de circuitos que criam e trocam informações
com plasticidade, de forma dependente do repertório de vivências imunológicas individuais
e determinante das modalidades de interação
do individuo com seus ambientes. Fica para
trás a idéia de um sistema imune voltado
para o mundo externo, funcionando como um
exército e com finalidades diagnosticadas (por
nós) no contexto de metáforas defensivas.
Portanto, essa é a segunda coletânea de
palestras oriundas de uma Jornada sobre Cognição Imune e Neural (as palestras da primeira
Jornada foram publicadas em: Neurociências
vol 5 número 4 – out/dez de 2009) envolvendo imunologistas: Marcello André Barcinski e
Claúdio Tadeu Daniel-Ribeiro (IOC/Fiocruz); Jorge Kalil (Inst. Butantan/USP); Nelson Monteiro
Vaz (ICB/UFMG) e neurocientistas: José Luiz
Martins do Nascimento e Luiz Carlos de Lima
Silveira (UFPA), Sidarta Ribeiro (IC/UFRN);
Ricardo Augusto de Melo Reis (IB/UFRJ) de
atuação diferenciada em sua áreas de competência. Ela se firma como uma ferramenta
potencialmente útil para o debate e ponto de
convergência para a identificação de temas,
conceitos e paradigmas comuns nos (que reconhecemos como) processos cognitivos dos
sistemas imune e neural. Pensamos que tal
abordagem pode estar na origem da criação
de uma neuroimunologia cognitiva.
Boa leitura !
Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
Editorial
Cognição imune e neural Encontros e desencontros?
Vivian M. Rumjanek*, Marcello André Barcinski**
A pesquisa multidisciplinar está na ordem
do dia já há muitos anos. A pesquisa transdisciplinar é mais jovem e a translacional é
quase recém-nascida (a não ser que consideremos que Carlos Chagas e Oswaldo Cruz já
a faziam desde o início do século passado,
com outro nome). Muitas são as estratégias
de indução para a formação de grupos fazendo
ciência como descrito acima. Estas vão desde
a simplória solução de passar a chamar de
Programas os antigos Departamentos até a
criação dos Institutos Nacionais de Ciência e
Tecnologia agregando grupos das diferentes
áreas do saber. Outros, como o da presente
reunião, fazem algo intermediário: colocam
juntos, em um simpósio, pesquisadores que
trabalham em temas que se quer ver agregados. Falta agora uma avaliação crítica bem
feita para que efetivamente se saiba quais
foram os impactos destas medidas no avanço
da nossa ciência.
Na ocasião da 2a Jornada Fluminense sobre Cognição Imune e Neural tratou-se de dar
continuidade à idéia de Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro, secundado primeiro por Luiz Carlos de
Lima Silveira e depois por José Luiz Martins
do Nascimento de unir neurocientistas e imunologistas para buscar visões diversificadas e
ao mesmo tempo propiciar uma aproximação
entre as duas áreas. Com esse espírito foram
realizadas duas Edições da Jornada em 2009
e 2011.
A relação entre os sistemas Nervoso e
Imune, com o aparecimento de diversas neuroimunlogias foi mencionada anteriormente
nesta mesma revista [1]. Historicamente a
relação é antiga. Em 1927 Ivan Petrovich
Pavlov publicou o livro Conditioned Reflexes:
An Investigation of the Physiological Activity of
the Cerebral Cortex, na versão traduzida por
Anrep, em que Pavlov expunha seu trabalho
de mais de 25 anos. Sob o impacto da Teoria
da Evolução e das descrições de Pavlov, outro
russo Serguei Metalnikov percebe que, sob o
ponto de vista evolutivo, um aprendizado associativo neuroimune faria sentido como uma
*Instituto de Bioquímica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, **Instituto Oswaldo Cruz,
Fiocruz
Correspondência: [email protected], [email protected]
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Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
maneira de responder de forma eficaz a agentes infecciosos potencialmente patogênicos.
Segundo ele, o reflexo condicionado descrito
por Pavlov estaria também presente nas respostas imunes. Em 1926 publica com Chorine
os resultados de experimentos que realizou
mostrando que condicionando animais com
diferentes estímulos, por exemplo, coçando
as costas dos mesmos, e associando esse
estímulo a injeções de patógenos era possível
aumentar a sobrevivência dos animais e a
quantidade de anticorpos produzidos [2]. Esse
tipo de experimento foi reproduzido nos anos
subsequentes por Nicolau e Antinescu-Dimitriu
em 1929 e Ostravskaya em 1930, até serem
gradativamente esquecidos e re-descobertos
por Ader e Cohen na década de 1970. Mas
dentro do escopo de cognição, o próprio reflexo condicionado é visto, dependendo da
linha, como envolvendo ou não uma atividade
cognitiva.
Para esta Jornada foi sugerido que a
discussão não resvalasse para receptores e
mediadores comuns aos dois sistemas, ou sobre a influência de um sistema sobre o outro,
mas discutíssemos, com o auxílio de exemplos
das áreas de atuação de cada expositor, o que
cada grupo entendia por cognição.
Padronizar definições de termos científicos não é tarefa fácil (principalmente não
se tratando de uma reunião sobre nomenclatura). Homogeneizar conceitos é ainda mais
difícil. A primeira pergunta que fica é se a
normatização é indispensável ou se dá para
conviver e trabalhar juntos, desde que cada
um dos atores saiba qual é a interpretação
de um dado conceito adotada pelo colega de
outra disciplina. A imunologia se apropriou de
muitos termos das neurociências, mas será
que conceitualmente eles se equivalem? Se
procurarmos por sinapse encontraremos em
torno de 50.000 artigos sobre a sinapse nervosa e de 650 sobre a sinapse imunológica;
mais de 51.000 artigos sobre memória (envolvendo o sistema nervoso) e mais de 18.000
sobre memória do sistema imune; finalmente,
artigos sobre cognição no sistema nervoso
na ordem de mais de 35.000 e no sistema
imune cerca de 600. Não há dúvida que tendo nascido nas neurociências esses termos
sejam menos frequentes quando abordamos
o sistema imune. Mas, será que os próprios
neurocientistas concordam entre si sobre o
que consideram cognição? Isso não parece
ser o caso, como veremos nas discussões
que se seguem. Entre os participantes da
Jornada havia desde aqueles que consideram
que cérebro e pâncreas tem a mesma capacidade cognitiva (o que gera a dificuldade de
caracterização da “dualidade mente/pâncreas”) até os que sugeriram que tentássemos
nos limitar a estender e aplicar aos sistemas
imune e nervoso o entendimento de cognição
expresso no dicionário [Houaiss 1ª edição
(1-ato ou efeito de conhecer; 2-processo ou
faculdade de adquirir um conhecimento; 3-Derivação: por extensão de sentido, percepção,
conhecimento)]
Ainda dentro das neurociências, a disputa
entre emoção ser ou não ser uma atividade
cognitiva ilustra este aspecto [3] e mostra a
dificuldade das definições. Uns consideram
a percepção produzindo uma resposta como
um processo cognitivo, outros consideram
como cognição o processamento do estímulo
pós-perceptual.
Nelson Vaz, o primeiro palestrante levantou imediatamente a questão “do que entendemos como cognição?” [4]. Vaz já discutiu
em diversas ocasiões que a imunologia clonal,
resultado da expansão de clones de linfócitos
não relacionados entre si, em que a memória
imunológica resultaria do aumento da frequência de clones de linfócitos reativos a um
determinado antígeno, sofre da dificuldade
de explicar a regulação desse modelo, que
necessitaria de mecanismos de regulação
para regular a própria regulação [5]. Ele sugere
a necessidade de uma organização resultante
de uma conservação de relações internas
ao organismo. A especificidade imunológica,
normalmente atribuída em relação a um agente externo, seria, na verdade, conferida por
nós, observadores. As células e moléculas
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que participam do que classificamos como
sistema imune, fazem o que podem fazer, e,
nesta abordagem, as entidades cognitivas na
imunologia seriam os imunologistas. Essa é
uma forma de pensar bastante influenciada
pelos neurobiólogos Humberto Maturana e
Francisco Varela. Segundo eles, cognição
pode ser atribuída a todos os seres vivos,
com e sem sistema nervoso e a atividade
neurobiológica é tratada por eles como “não-cognitiva”. O sistema nervoso, assim como
o sistema imune seriam, cada qual, uma
rede fechada, que sofre perturbações em seu
contacto com o organismo e modifica a sua
estrutura em compensação a essas perturbações. Dentro dessa moldura conceitual, não
existe “reconhecimento”, ao se intervir com
uma célula afetam-se todas as demais que se
re-organizariam dentro de modificações compensatórias possíveis dentro desse sistema.
Mas voltando ao ponto da reunião, o que
seria cognição? Segundo Ricardo Reis [6] “o
termo cognição pode ser definido como o ato
de adquirir conhecimento, ou a faculdade de
conhecer”. Na sua abordagem, ele focalizou
a plasticidade sináptica sob o ponto de vista
de moléculas e receptores envolvidos, da
morfologia celular e de novas redes com a
geração de novos neurônios. A importância
biológica do processo cognitivo não foi o ponto de discussão, mas sim, como o sistema
nervoso, que é o foco de seu trabalho, pode
modificar-se para se adaptar às mudanças
enfrentadas durante todo o desenvolvimento
do indivíduo. Discutiu-se mudanças morfológicas em estruturas que se transformam
em espinhas dendríticas aumentando a
possibilidade de chegada de informações excitatórias e o dinamismo de estruturas pré e
pós-sinapticas. Um outro elemento, trazido à
tona, foi a neurogênese adulta que acontece
em primatas, incluindo o homem. Neste caso
observa-se uma circularidade, por exemplo,
a neurogênese no hipocampo participa dos
processos cognitivos de memória e aprendizagem, e, por outro lado o aprendizado leva
a geração de novos neurônios. Todos esses
processos sofrem influência de vários fatores
e hormônios. Entre outros dados, o grupo de
Ricardo Reis demonstrou como as ampacinas,
compostos pró-cognitivos, são capazes de
regular a neurogênese in vitro.
A possibilidade de melhorar funções
cognitivas foi o tema discutido, em seguida,
por José Luiz Martins do Nascimento [7]. Por
funções cognitivas ele define “habilidades
intelectuais que envolvem pensamento,
percepção, atenção, linguagem, memória,
aprendizagem, criatividade, raciocínio lógico”
e a apresentação discorreu sobre fármacos
nootrópicos e seu uso indiscriminado por
pessoas saudáveis sem déficit cognitivo. Sem
esquecer de lembrar sua importância em pacientes com Alzheimer, Parkinson, coreia de
Huntington, demência senil, déficit de atenção
e hiperatividade entre outras doenças neuropsiquiátricas. O uso de psicofármacos cresceu
com o aumento do nosso conhecimento sobre
circuitos neurais, eventos celulares e moleculares, fazendo dos diferentes tipos de sinapses o alvo biológico de escolha. Dentre esse
grupo discutiu-se o metilfenidato, o modafinil,
as ampacinas e a memantina. No entanto, outros alvos biológicos foram mencionados entre
eles fármacos que atuam na vascularização,
drogas que atuam no metabolismo celular,
e substâncias que atuam na transdução de
sinal. Um maior conhecimento das funções
cognitivas do cérebro está permitindo que se
interfira e se regule essas funções.
Até em torno dos anos 90 do século XX
o processo cognitivo era identificado com o
estado de consciência, levantando dúvidas
sobre se em um estado inconsciente como o
sono haveria o envolvimento do processo cognitivo [8]. Sidarta Ribeiro prendeu-se menos
à discussão sobre cognição per se e trouxe a
baila o fato que graças a novas abordagens
de neurociências e psicologia experimental é
possível atualmente reexaminar algumas proposições freudianas [9]. A dicotomia do mundo
consciente e inconsciente foi levantada. Com
isso discutiu-se a importância do sono como
consolidador de memórias e aprendizado,
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mostrando como a reativação neural durante
o sono leva não só a um processamento
neurofisiológico, mas também, a expressão
gênica diferenciada. E, nesse caso o processo
cognitivo pode ocorrer de forma inconsciente.
O aspecto abordado se referiu mais ao processamento da informação e consolidação
da memória, levando consequentemente à
adaptação da resposta. Esses tipos de estudo
só foram possíveis com o conhecimento atual
em neurociências.
Esse caminho para conhecer melhor as
propriedades e organização do sistema nervoso, foi bastante longo, mas nos últimos anos
a velocidade de informação adquirida já nos
permite sistemas de obtenção de imagens
do cérebro em funcionamento. Uma história
detalhada desse desenvolvimento foi transmitida por Luiz Carlos de Lima Silveira [10].
Ele também falou sobre “Consciência”, como
um aspecto fundamental da compreensão da
existência, integrando a noção do “eu”, e a
pergunta envolvida é se haveria “alguma maneira de registrar a atividade consciente, ou
seja, usar algum tipo de neuroimageamento
cuja análise revele exatamente o que um ser
humano esteja pensando”. Várias questões
foram levantadas e foram discutidas inclusive dentro do enquadramento da hipótese
do centro dinâmico de Edelman [11] o qual
propôs uma teoria biológica sobre a Consciência, a qual procura associar determinados
tipos de processos neurais às propriedades
chaves da experiência consciente. Sugere
que a consciência não é uma propriedade de
uma localização específica ou tipo de neurônio mas o resultado de interações dinâmicas
entre neurônios, dependendo da complexidade
dessas interações e do nível de integração
entre esses complexos neuronais. O fato de
Edelman ter estado envolvido em um ambiente em que as teorias imunológicas estavam
sendo formuladas (ele recebeu o Prêmio Nobel
pela estrutura da imunoglobulina) talvez tenha
pesado na sua conceituação de interação de
dois níveis de organização nervosa uma responsável por categorizar estímulos externos e
outra responsável pelo controle homeostático,
ambas em constante interação [12].
Para grande parte dos imunologistas a
abordagem conceitual enquadra-se na dicotomia do sistema reconhecer entre o “próprio”
e o ”não próprio”, e esse ponto foi discutido
em algum momento por todos os palestrantes
da área, mesmo definindo que esse conceito
não resistiu à prova do tempo. A semelhança
genômica e proteômica entre vários seres
vivos e o homem, dificultando muito a noção
de “próprio” e “não próprio”, foi discutida por
Claudio Tadeu Daniel-Ribeiro [13]. O conceito
de mimetismo molecular infere que parasitas
com estruturas homólogas àquelas de seus
hospedeiros garantiriam a sua sobrevivência
não somente por escaparem a uma resposta imune, mas, também, por reconhecer e
responder a sinais fisiológicos presentes no
meio. Devido à grande homologia encontrada
entre microrganismos (patogênicos ou não)
e a nossa espécie, existe a possibilidade de
autorreatividade e a de indução de patologia
resultante dela. Está claro que o fenômeno
denominado “tolerância imunológica” está
envolvendo reatividade, resultando em uma
resposta altamente regulada, no caso aos
antígenos parasitários assim como a todos
os elementos integrantes do organismo. A
cognição sob o ponto de vista imunológico
envolveria reconhecimento (um processo perceptivo) e memória imunológica (envolvendo
processamento e mudanças prévias). O sistema imune é um sistema altamente redundante, com vários pontos de controle envolvendo
interações celulares e moleculares e seria seu
desequilíbrio que, mais do que a existência
de antígenos comuns entre microorganismos
e seus hospedeiros vertebrados, poderia desencadear reatividade patológica e doença.
A complexidade do sistema imune envolveria a formação de uma memória imune
adaptativa, não dependente de circuitos
neurais, mas formada por células do sistema
imune e moléculas capazes de interagir entre
si. Exemplos claros do mimetismo molecular
desencadeando doenças autoimunes foram
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discutidos por Jorge Kalil [14]. A semelhança
entre moléculas do Streptococcus pyogenes
e a miosina cardíaca pode ser determinante
para desencadear reações auto-imunes na
febre reumática e na doença reumática do
coração. Outro exemplo foi o da infecção pelo
protozoário Trypanosoma cruzi produzindo uma
resposta capaz de reagir com protozoário e
com miosina cardíaca. Isso ilustra claramente
a reatividade contra nossas próprias estruturas e a necessidade de vários mecanismos
de controle central e periféricos para manter
a tolerância imunológica. Um conhecimento
mais aprofundado de como ocorre essa regulação permitiria um controle da autoimunidade.
O conceito original do reconhecimento
imunológico, entre o próprio e o não próprio,
envolvia especificidade e receptores clonais em
linfócitos. Essa discriminação representaria o
processo de cognição do sistema imune adaptativo. No entanto, existe um sistema paralelo, que
recebeu a denominação de imunidade inata, que
permite a identificação de padrões moleculares
presentes em microorganismos patogênicos
(PAMPs) e de padrões moleculares associados
a perigo, isto é, moléculas provenientes de células que sofreram traumas ou injurias (DAMPs).
Neste sistema a dualidade permanece, como
discutido por Marcello Barcinski [15], os PAMPs
equivalem aos ligantes exógenos e os DAMPs
aos endógenos. No entanto, quando se trata
de doenças o eixo se desloca. A discriminação
passa a ser realizada em uma primeira instância por células consideradas por anos pelos
imunologistas como “células acessórias” como
macrófagos, células dendríticas e neutrófilos,
e não pelos linfócitos com seus receptores
recombinados. O reconhecimento de estruturas
como PAMPs e DAMPs induziriam processos
inflamatórios e/ou imunoprotetores capazes de
modular o dano tecidual.
Com Alberto Nóbrega, voltamos a uma
tentativa de integrar sistemas. Ele apresentou
a visão de Jacques Monod sobre a regulação
alostérica, segundo o qual esta constitui o
cerne da regulação metabólica de todo ser
vivo, uma vez que a regulação enzimática por
alosteria não depende do produto ou substrato, podendo ser efetuada por qualquer tipo
molecular que atue sobre o sítio regulatório
da enzima, conferindo uma extrordinária “liberdade” ao processo evolutivo para criar redes
metabólicas complexas e arbitrarias, através
de mutações dos sítios regulatórios. Alberto
observou como o conceito de Monod sobre a
alosteria molecular se estende naturalmente
para uma “regulação alostérica generalizada”
entre diferentes tipos celulares que constituem os organismos metazoários, cada célula considerada agora como uma “unidade
alostérica generalizada”, que é regulada por
centenas/milhares de ligantes. Nesse caso, a
complexidade da regulação aumenta de forma
exponencial quando passamos das unidades
moleculares para as unidades celulares, capazes de gerar todo um organismo com suas
complexas redes metabólicas e celulares. As
redes neurais seriam construídas essencialmente de modo equivalente às redes alostéricas generalizadas, de tal modo que as simulações computacionais de ambas apresentam
um isomorfismo algorítmico. Alberto sugeriu
que esta equivalência poderia ser considerada
como elemento definidor do processo cognitivo
dos sistemas biológicos, variando conforme o
grau de complexidade das redes regulatórias.
No organismo biológico existem subsistemas
incluídos no sistema maior que forma o todo.
No caso do sistema imune, Alberto sugeriu que
o complexo principal de histocompatibilidade
desempenhe o papel de elemento regulador
alostérico.
Afinal, o que entendemos por cognição?
O fato de ser uma Jornada, e por definição
restrita a um dia de duração, não permitiu
a reflexão e o debate que o tema propiciava
de forma exaustiva. No entanto, as Jornadas
vêm, desde a sua primeira edição em 2009,
chamando a atenção para a necessidade
desse debate e se tornando um fórum para
que ele ocorra.
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Opinião
Immunology and intentionality –
Observing immunologists
Imunologia e intencionalidade –
Observando os imunologistas
Nelson Monteiro Vaz
Abstract
When we consider the immune system as a cognitive system, as most immunologists do, our questions
and the criteria we use to validate the answers to these questions, will inevitably follow what we understand
as cognition. An alternative is to ascribe cognition to what immunologists do when they operate as human
observers and generate descriptions of immunological activities. In this uncommon way of seeing, which
I prefer, we ascribe the specificity of immunological observations to what we do as humans observers
operating in human language, rather than to what cells and molecules, such as lymphocytes and immunoglobulins, do as components of the immune system. In this alternative way of seeing, we, immunologists,
are the true cognitive entities in immunology.
Médico, Doutor em Bioquímica e Imunologia, Professor emérito de Imunologia, Instituto de Ciências Biológicas (ICB), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Position paper to: II Jornada Fluminense
de Cognição Imune e Neural, Academia Nacional de Medicina, Rio de Janeiro, 11 de agosto de 2011
Correspondência: Departamento de Bioquímica e Imunologia, ICB-UFMG, Caixa Postal 486 Pampulha
30161-970 Belo Horizonte MG, Fax: (31) 3499-2640, E-mail: [email protected]
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Oral tolerance
In the late 1970s, I was heading a
small laboratory at CARIH (Children’s
Asthma Research Institute and Hospital)
associated to the University of Colorado,
in Denver. Together with Donald G. Hanson and Luiz Carlos Maia, I had literally
bumped into a phenomenon presently
know as “oral tolerance”, which consisted
in a drastic reduction of specific antibody
formation - i.e. of lymphocyte specific
responsiveness - to proteins previously
ingested as food [1,2]. All animals eat
thousands of different proteins and many
other proteins produced by the intestinal
microbiota; would all the responses to
these proteins be also blocked? This leads to a picture that simply didn’t fit - and
it still doesn’t - standard immunological
understanding. We were fabbergasted.
In the more than 30 years that separate us from those findings, “oral tolerance” has generated many hundreds of
publications, but is still poorly understood
[3]. Current interpretations argue that oral
tolerance regulates immune responses
initiated at the gut because, otherwise,
progressive (secondary-type) immune
responses would generate inflammatory
bowel diseases (IBDs) [4]. Although it is
correct to believe that oral tolerance prevents IBDs, this cannot explain its nature
or evolutionary origin [5-7].
Enters Francisco Varela
Simultaneously with our encounter
with “oral tolerance”, I had another unforeseen encounter: a fascinating meeting
with the young Chilean neurobiologist,
Francisco Varela, who I immediately invited to our laboratory and stayed with us
for about one semester. For Francisco,
unaware of the immense changes this demanded from immunologists, “oral tolerance” represented the natural insertion of
the organism in its antigenic environment.
I was then unaware that, although quite
young, Francisco was already famous as
a neurobiologist and “cognitive scientist”,
praised by Gregory Bateson and other giants on the field. I was also unaware of
the existence of Humberto Maturana, who
had been Francisco’s mentor and main
collaborator.
Francisco summarized and simplified
his epistemological (cognitive) approach
in a publication in Co-evolution Quartely,
presented as a conversation with Donna
Johnson, entitled “Observing Natural
Systems”. In that paper, he dealt with
the identity of systems, their wholeness
- Varela’s main interest throughout his
career - and claimed that the wholeness
of systems may be perceived when we
figure their organizational “closure”, i.e.
when we see that, as compound unities
(as systems), they are circularly or more
elaborately turned into themselves [8].
With these and other arguments,
Francisco introduced me to the notion of
systems as “closed” networks. Coincidentally, Niels Jerne, a leading immunologist
of the time, who I greatly admired, had
recently published his theory explaining
immunological activity as derived from
the operation of immunological networks,
created by anti-antibodies (anti-idiotypic
antibodies) [9]. Antigen-induced antibodies generated anti-antibodies which
were sustained each other in a complex
interconnected network; this network embodied the immune system. This was very
similar to what Francisco was telling and
Jerne’s initiative could represent a major
theoretical breakthrough, beyond clonal
explanations of immune activity.
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Francisco and I wrote a paper arguing
that Jerne’s paper, although utterly important, was incomplete, exactly because it
lacked the notion of “closure” (systemic
organization), which Francisco deemed
as essential in the description of any
system [10]. We sent the paper to Jerne,
who praised it. Actually, Jerne himself,
had formerly claimed that: “...we must
now accept that the immune system is
essentially “closed” or self-sufficient in
this respect” (in its recognitions and activations) [11]. This statement appeared
in Jerne’s internal report as Director of
the Basel Institute for Immunology but,
to my knowledge, was never published
elsewhere.
Actually, Jerne’s main paper lacked
this idea of “self-sufficiency”I [9]; he
refers to “a revolutionary new idea that
would change immunology as a whole”,
but fails to describe this idea explicitly.
It could not be the idea of (anti-idiotypic)
anti-antibodies - the links in the immune
network -, because these connections
could not be all equal. I believe, as Varela
also did, that this missing idea was actually the idea of “closure”, or, more simply,
the idea of the inner organization which
embodies the wholeness of systems.
Without the idea of an invariant organization (of a “closure” onto itself) the idea of
anti-antibodies is confusing, rather than
clarifying. Thus, we wrote “Self and nonsense: an organism-centered approach
to immunology”. It was rejected by the
European Journal of Immunology as “too
theoretical” - which, of course, it indeed
was - and we published it in Medical Hypotheses [10].
In addition to its network aspect, our
paper was also devoted to “oral tolerI
Which is not the idea of organizational “closure”,
but rather a step in a similar direction.
ance”, or the drastic inhibition of immune
responsiveness to previously ingested
proteins. The analysis of “oral tolerance”
turned out to be a lifelong objective in my
own laboratory, but was abandoned by
Varela in his future association with immunological research, in Antonio Coutinho’s laboratory at the Institute Pasteur,
in Paris (more on this below).
In retrospect, then, I had stumbled on
a surprising phenomenon that nobody understands (“oral tolerance”) through which
immune responses to foreign proteins is
drastically reduced. We could transfer this
“tolerance” from “tolerant” mice to normal
mice with T-lymphocytes [12]. Thus, rather
than being a selective subtraction of immune responsiveness, oral tolerance added to the immune system something we
didn’t understand. Concomitantly, through
the arguments of Francisco Varela, I was
convinced that the immune system operated as a “closed” network of lymphocyte
and antibody interactions. Immunologists
are mainly concerned with self/nonself
discrimination, but our paper described
the immune system as a “closed” network
of interactions, such that whatever fell
outside this “closed” domain, was simply
nonsensical. Moreover, the very notion of
anti-antibodies (anti-idiotypic antibodies)
[9], that provides an abundant internal connectivity of antibodies and lymphocytes,
denied in itself the idea of self/nonself
discrimination - although Jerne was never
clear on this point. We also claimed that,
in “oral tolerance”, the immune network
assimilates proteins encountered as food
or as products of the gut flora. Thus, in
addition to the attempt to add the notion
of organizational “closure” to Jerne’s
(idiotypic) network [9], we proposed that
physiological contacts with potential antigens involved an assimilation, rather than
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a rejection of these materials [10,13]. This
was a second very important point.
Varela, Coutinho & Stewart
In his subsequent association with
immunologists, Varela totally neglected
the relevance of “oral tolerance” [14].
Curiously enough, he was also able to
maintain a close collaboration with Coutinho for many years, in spite of Coutinho’s
explicitly denial of the concept of closure:
“I did not agree (and I still do not agree today,
despite many discussions with Nelson Vaz)
that their (Vaz-Varela) central claim was right.
I continue to think that a ‘decision-making
behavior’ naturally emerges from the immune
system’s development, structure and operation, allowing for the differential treatment of
molecular shapes it identifies either as ‘self’
or ‘nonself.’” [15].
However, in our paper we explicitly
claimed that:
“... the transformations of the cognitive domain of the immune network in an organism’s
ontogeny are a combination of its recursivity
(its closure) and the fact that it is exposed to
random perturbations or fluctuations from the
environment (its openness). In other words, it
exhibits self-organization, the transformation
of environmental noise into adaptive functional order, in a manner similar to many other
biological systems such as cells, nervous
systems, and animal populations.” [10].
Coutinho confounded the idea of “closure” with solipsism and insisted to ‘put
the network back into the body’ although
Varela himself was careful in explaining
that, although ‘closed’ in its organization,
the system is ‘open’ for intractions [8]. I
can only ascribe the conciliation of these
opposing views to Varela’s great personal
talent in establishing associations with
other scientists.
Here we touch a delicate point because, in his collaboration with Coutinho
and Stewart, Varela added an important
collection of new findings to immune networks, but his ideas on organizational
closure remained in a low key. What was
at stake then? What was behind the titles
of Varela’s papers, such as: “What is the
immune network for?” [16]; or, “Immuknowledge: The immune system as a learning
process of somatic individuation” [17]? A
hint to what might have happened derives
from their proposal to divide immune responsiveness into two immune systems,
called CIS and PIS [18]. A central immune
system (CIS) would roughly correspond
to Jerne’s idiotypic network, i.e., to a
systemic description; and a peripheral
immune system (PIS) was responsible for
lymphocyte clonal expansions in specific
immune responses, as traditionally studied in immunology - actually, a separation
between “local” and “global” events as
is common in connectionist approaches
to cognitive sciences [19].
In our way of seeing, there is only
one immune system, but different ways
of seeing and describing its activity. But,
as it was standard in Varela’s approach
to cognition, the human observer, its operation in language and its way of seeing
remained hidden. This is in sharp contrast
with Maturana’s attitude, who always tries
to make explicit the different phenomenal
domains which may be described by the
observer in his actions in human languaging [20,21].
As almost everybody else, Varela conceived the immune system as a cognitive
system, a self with a defined identity [22].
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In his own words, his main interest was
the emergence of cognition, which he
saw emerging everywhere [23]. On the
other hand, for Maturana, cells, organs,
etc. are totally blind (in cognitive terms)
to their respective media; only organisms, as wholes, are capable of “effective
actions” that we identify as cognitive
actions [20]. In Maturana’s publications
and presentations, the presence of the
human observer and the importance of
human languaging in the construction of
what is experienced as real, are always
made explicit. The characterization of
separate domains of description, which
are typical of the context established by
Maturana in his Biology of Cognition and
Language, which is minimized in Varela’s
work, is totally absent from current immunological literature.
Enters the immunologist as an
observer
Describing a cognitive immune system is quite different from claiming that
the immunologist arbitrates which phenomena are specific and which are not,
tracing a boundary between antibodies
and unspecific immunoglobulins, as Jerne
[24] and Talmage [25] did in the not so
distant past. As a consequence, descriptions of immunological activities based on
Varela’s ideas, or based on Maturana’s
ideas, are significantly different. I have
recently expanded this discussion and
argued that the specificity of immunological activity resides in immunological
observations, i.e. that the specificity
derives from what we immunologists do
as human observers, operating in human
languaging [26]. That this specificity is not
inherent to lymphocytes of antibody molecules is (or should be) consensual among
immunologists and has been treated as
“degeneracy” [27] or “polyspecificity”
[28]. But, to my knowledge, no one has
ascribed immunological specificity to what
we do, as languaging humans, because
this may be understood as solipsism and
scientists insist to be dealing with an
objective observer-independent reality.
Maturana advise us about a reality [in
parentheses] that depends on the history
of the human observer, a kind of ‘inter-subjectivity” we can build among ourselves with our actions and beliefs [21].
Demise and resurrection of immune
networks
The prolonged association of Varela
with frontier reasearch in immunology in
Coutinho’s laboratory brought forth truly
systemic ideas, mathematical formalism
and computer modelings to the idiotypic
network, which were all lacking in Jerne’s
proposal [9] almost two decades before.
Coutinho had been an important collaborator of Jerne at the Basel Institute and
produced an impressive array of experimental evidence in favor of the network
model both before, during and after the
association with Varela [29]. The 1980s
coincided with abundant experimental
and theoretical investigations on immune
networks, leading to the publication of
about five thousand papers. This, however, had a negligible impact on the main
questions of immunology and the interest
in networks gradually waned and disappeared from sight [30]. Why this happened?
Because only the wrong questions were
made, i.e. anti-idiotypic antibodies were
seen as subsidiary means to “regulate” immune responses, when actually
the idea of circular networks (systems)
should totally replace ‘cause/effect’ (sti-
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mulus/response/regulation) frameworks.
Perhaps the interest in immune networks
will resurrect when the right questions
are finally made. I foresee different, yet
compatible, pathways to this end.
In one pathway, we should continue
and improve our analysis of immune networks paying special attention to their
robust stabilizing mechanisms and try to
define their invariant organization - amid
a ceaseless structural change; i.e., we
should find the relations which are kept
constant while the individual components
are replaced by equivalent ones. This is
already being done in several laboratories
[31,32].
Another, more radical pathway involves recognizing the immunologist as the
human observer responsible for his observations and for the configuration of his
realities. Immunologists have configured
many different realities. In clinical and
experimental laboratories, in spite of their
degeneracy or polyspecificity, antibodies
have been used as if they were invaluable
specific biochemical reagents, which seem
to be tailor-made by living organisms to
fit the most diverse configurations. We
should not confuse the use of antibodies
as biochemical reagents, with the emergence of natural immunoglobulins and
their spontaneous organization in robustly
stable cellular and molecular networks. Organisms produce immunoglobulins which
we, as human observers, may (legitimately
and profitably) use as specific reagents in
thousands of different applications. The
aim of basic immunologists is to investigate the organization of these networks,
not the production of specific antibodies,
because the organism does not produce
antibodies: it produces immunoglobulins
that we may use as if they were specific
antibodies.
If this minimally fulfill my expectations, we may finally abandon the idea of
immune systems as “cognitive” systems,
endowed with a memory and the ability to
recognize foreign substances, as epitomized by Capra in his article “The immune
system: our second brain” [33].
Acknowledgments
I am grateful to Roger Harnden for
discussing these ideas.
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Revisão
Psicofármacos para aprimoramento
das funções cognitivas
Psychotropic drugs to improvement
of cognitive functions
José Luiz Martins do Nascimento, D.Sc.*, Gilmara de Nazareth Tavares Bastos, D.Sc.**
Resumo
A neurociência moderna tem começado a identificar alguns dos circuitos neurais e os eventos moleculares
e neurotransmissores relacionados à performance cognitiva. Alterações moleculares e celulares são as
bases do entendimento de muitas desordens neurológicas e psiquiátricas. Esse conhecimento é importante
para o desenvolvimento de terapias direcionadas a alvos moleculares. Drogas inteligentes ou também
chamadas de nootrópicas, que incluem modafinil, metilfenidato, propanolol e ampacinas, tornaram-se
populares, porque elas podem aumentar atenção, sociabilidade, habilidade de lembrar eventos e performance cognitiva. Essas drogas podem variar em suas ações, propriedades fisiológicas e psicológicas e
outras consequências imprevisíveis.
Palavras-chave: memória, atenção, cognição, drogas nootrópicas, alvos moleculares
Abstract
Modern neuroscience has begun to identify neuronal circuits and molecular/ neurotransmitter events
on synapse formation related to cognitive performance. Molecular and cellular changes are the basis to
understanding many neurological and psychiatric disorders. This knowledge is important to development
of molecular therapies. Smart or nootropic drugs which included modafinil, methylphenidate, propanolol
and ampakines, have become popular, because they enhance attention, sociability, ability to remember
events and cognitive performance. These drugs may differ in their pharmacological properties, physiological and psychological effects and unpredictable consequences.
Key-words: memory, attention, cognition, nootropic drugs, molecular targets.
*Professor Associado III do Instituto de Ciências Biológicas, Laboratório de Neuroquímica Molecular
e Celular, Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, **Professora Adjunta I do Instituto de Ciências
Biológicas, Laboratório de Neuroinflamação, Universidade Federal do Pará
Correspondência: José Luiz Martins do Nascimento, Laboratório de Neuroquímica Molecular e Celular do
Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Pará, 66075-110 Belém PA, E-mail: [email protected].
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Introdução
A palavra performance e/ou aprimoramento está em evidencia. Para isso,
existem diversas maneiras para aumentar
o desempenho. Na prática esportiva em
grandes competições o uso de anabolizantes é de uso comum, o Viagra vem
sendo usado em grande escala, inclusive
entre jovens para melhorar a performance
sexual. Nessa ultima década, uma demanda da sociedade que vem aumentando exponencialmente o seu consumo são
os aprimoradores de cognição. Existem
diversas maneiras de aprimoramento
do cérebro, tais como ambiente enriquecidos, dietas alimentares, vitaminas,
exercícios físicos e os psicofármacos que
são bastante utilizados na atualidade. A
razão para seu uso indiscriminado é que
supostamente espera-se uma ação mais
rápida dessas drogas, na medida que
possam induzir modificações estruturais
e funcionais nas sinapses centrais envolvidas nas redes cognitivas [1, 2]
Habilidades intelectuais que envolvem pensamento, percepção, atenção,
linguagem, memória, aprendizagem,
criatividade, raciocínio lógico, são ditas
funções cognitivas [3]. Essas funções
supostamente podem melhorar o seu
desempenho pelo uso de fármacos
chamados de neuroaprimoradores ou
nootrópicos. Essas drogas podem variar
em efeitos fisiológicos, psicológicos e
em suas propriedades farmacológicas
[3-5]. Drogas neuroaprimoradoras, que incluem modafinil, metilfenidato, propanol,
amapacinas, memantinas, atomoxetina,
anfetaminas, piracetam, entre outras,
foram usadas inicialmente com o intuito
de restaurar algumas funções cognitivas
e déficit de memória em pessoas envelhecidas e em doenças neurodegenerativas
[2]. Por essa conduta terapêutica, esses
fármacos tornaram-se populares entre
jovens saudáveis que os usam atualmente com o intuito de melhorar suas
performances cognitivas.
Figura 1 - O filme Sem limites dirigido
por Neil Burger com roteiro de Leslie
Dixon (2011) foi baseado no romance
The Dark Fields, 2001 de Alan Glynn
(1960) [6]. O filme mostra a história de
um escritor mal sucedido, desmotivado e
sem habilidades cognitivas para escrever
um livro contratado a uma grande editora, mas que subitamente ao ingerir uma
droga nootrópica, passa a redigir sem
parar, focado na elaboração do texto, aumento da memória e com o uso regular
da droga passa a ter grande capacidade
de resolver problemas e outras habilidades cognitivas.
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Entretanto, é preciso cuidado com o
uso dessas drogas, pois muito desses
fármacos ainda não foram avaliados
suficientemente por testes clínicos de
longa duração em humanos para serem
usados com esse objetivo, sem esquecer
as implicações éticas e sociais sobre seu
uso [1,6,8]. As bases farmacológicas e
moleculares da ação dos nootrópicos sobre os circuitos neuronais e os sistemas
de neurotransmissores envolvidos nas
funções cognitivas ainda estão em estudo
e é objetivo dessa revisão.
Histórico dos psicofármacos
Desde os anos 50 quando se descobriram as potentes ações sedativas da
reserpina, um fármaco que interfere no
armazenamento das vesículas sinápticas
de varias aminas transmissoras e os
efeitos antipsicóticos da clorpromazina
(que bloqueia receptores dopaminérgicos), a partir dessas duas evidências
farmacológicas, foi sugerida a hipótese
de que é nas sinapses que nascem a
maior parte das patologias neurológicas
e psiquiátricas e são essas os alvos
biológicos susceptíveis que se modificam por ação dos fármacos. A utilização
clinica dessas drogas no tratamento
das enfermidades mentais (ansiedade,
esquizofrenia, mania, crise do pânico,
enxaqueca) e neurológicas (Parkinson,
Huntington, epilepsias), alem do uso
das drogas nootrópicas no tratamento
da perda de memória que resulta em
doenças como Alzheimer, demência
vascular ou traumas craneoencefálicos
e AVC. Portanto, a aplicação dos psicofármacos na neuropsiquiatria é bastante
diversificada, além de seu uso atual na
cognição [9-13].
Aprimoradores de cognição e
memória
Neurobiologia da memória
De um modo sucinto, aprendizagem
e memória constituem-se em uma das
propriedades mais importantes para as
funções cognitivas. O gênero humano se
caracteriza por fazer uso intenso dessa
propriedade e através dela pode desenhar planos de atuação antecipatória.
A memória tem um substrato molecular
determinado e regulado pelo genoma, mas
que pode sofrer modelagem quanto ao
numero, tipo e função das conexões entre
as sinapses, essa regulação sináptica
que é intensa durante o período crítico,
chamamos de plasticidade. O termo plasticidade foi cunhado por William James
em 1890, para descrever a susceptibilidade e modificações no comportamento
humano. Liu e Chambers [14] mostraram
pela primeira vez a formação de botões sinápticos no SNC. A partir dessa evidencia
morfológica, tem-se acumulado um grande
numero de dados na literatura que o SNC
tem a capacidade de sofrer modificações
morfológicas e funcionais nas sinapses e
mais recentemente tem-se demonstrado
que as redes neurais dos mamíferos permanecem plásticas durante toda a vida
do organismo, incluindo a produção de
novas células neurais [15]. Bliss e Lomo,
em 1973, demonstraram que estímulos
repetidos no córtex entorrinal de coelhos
e registrados eletrofisiologicamente em
neurônios do giro denteado, produziam
mudanças na amplitude dos potenciais
pós-sinápticos, que foi denominado de
potenciação de longa duração (LTP). Inúmeras evidências indicam que esse fenômeno é uma maneira que o cérebro tem
de armazenar memória, particularmente
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no hipocampo [16,17]. Ao se considerar
que as sinapses, onde ocorre LTP são
excitatórias e o glutamato é o neurotransmissor majoritário, é de se esperar que
ao ser liberado pré sinapticamente, esse
neurotransmissor atue em receptores pós-sinápticos que coexistem nas espinhas
sinápticas. Esses receptores são do tipo
AMPA, que respondem preferencialmente
ao agonista do glutamato chamado AMPA
e receptores NMDA que respondem preferencialmente ao agonista NMDA [18-20].
Na transmissão sináptica normal, a chegada de um potencial de ação do terminal
axonal produz a liberação do glutamato
que interage em receptores AMPA, que
ao serem ativados produzem uma maior
densidade de corrente pós-sináptica despolarizante através de canais de sódio.
Os receptores de NMDA contribuem muito
pouco, nesse momento por encontrarem-se inibidos por íons magnésios. Contudo,
na medida em que aumenta a frequência
de estímulos, ocorre uma despolarização
maior da membrana pós-sináptica e o íon
Mg++ se dissocia do receptor de NMDA,
que permite a entrada de íons Ca++ e
ativação de proteína cinase dependente
de Ca++- Calmodulina e fosforilação, nesse momento ocorre a inserção de novos
receptores AMPA [2,21,22].
A entrada de íons Ca++ também aumenta a produção de fosfolipídeos na
membrana, como o ácido aracdônico
e aumento na atividade de NO-sintase
neuronal e formação de óxido nítrico.
Essas moléculas podem ser mensageiros
retrógrados para manter a sinapse ativa
por muito tempo [2].
Doenças que afetam a memória
O salto no conhecimento, dos eventos moleculares á clínica que mostram
toda a dinâmica dos diferentes tipos de
sinapses presentes no SNC, tem permitido avanços importantes no estabelecimento das etiologias e patogêneses das
enfermidades psiquiátricas e neurológicas. Esse avanço possibilitou o desenvolvimento de novos fármacos e algumas
estratégias terapêuticas para contornar
o déficit cognitivo e a qualidade de vida
de pacientes com essas desordens [23].
As doenças neurodegenerativas,
como doença de Alzheimer, Parkinson,
coréia de Huntington, demência senil,
doenças vasculares e outras enfermidades como epilepsias, depressão,
desordem do humor, déficit de atenção,
entre outros, apresentam em seu estado
mais grave severa perdas de memórias
com impedimentos cognitivos. Todas as
etapas de aprendizado e estocagem de
informação que vão desde a aquisição de
informações até memória de longa duração estão severamente comprometidas
em algumas dessas doenças [2,24]. Os
mecanismos neurais subjacentes envolvidos parecem afetar vias preferenciais
(redes neurais) do sistema límbico, hipocampo e córtex pré-frontal que modulam
memória explícita [2,23,25,26].
No caso particular da doença de
Alzheimer em que ocorre uma perda
acentuada da memória, o tratamento
preconizado inicialmente foi de aumentar a concentração de acetilcolina para
melhorar o desempenho cognitivo, já que
ocorre degeneração das células colinérgicas no principal núcleo neural que projeta
para o córtex, chamado núcleo basal de
Meynert, localizado na substancia inominata. Esse núcleo recebe inúmeras fibras
do sistema límbico e dá origem a quase
totalidade das fibras colinérgicas do córtex [5,13,27,28]. Os resultados obtidos
ainda são inconclusivos; pois os efeitos
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dessas drogas colinérgicas podem levar
diversas semanas para produzir algum
efeito e até o momento, não foram registrados uma associação entre drogas inibidoras de acetilcolinesterase e melhora
de desempenho cognitivo. Mesmo assim,
inibidores da AChE (tacrina e donepezil)
que permitem um aumento nos níveis cerebrais de acetilcolina e recentemente um
antagonista não competitivo de receptor
de NMDA (memantina), o qual está indicado para as formas moderadas a graves
da doença, são os únicos fármacos atualmente aprovados pelo FDA (U.S. Food and
Drug Administration) para o tratamento
da doença de Alzheimer [13,20,27-30].
Psicofármacos para a cognição
Os fármacos que afetam o sistema
nervoso influenciam a vida de quase todo
o mundo. O que seria da cirurgia moderna
sem os anestésicos, a qualidade de vidas
de pacientes terminais com câncer sem
os opiáceos e seus derivados. Hoje, dispomos de medicamentos que incrementam a atenção, reduzem ou aumentam o
sono, reduzem a ingestão de alimentos,
tratam a depressão, mania, esquizofrenia, transtorno bipolar, ansiedade,
convulsões, doenças neurodegenerativas
e a consciência. Também é importante
observar os efeitos adversos dos psicofarmacos na memória, como é o caso
dos diazepínicos que produzem amnésia,
os efeitos adversos dos alucinógenos e
anfetaminas sobre a percepção [31,26].
Os psicofármacos também podem servir
de opção como ferramentas moleculares
importantes para dissecção das vias preferenciais das redes neurais, que constituem os substratos das funções mais
importantes relacionadas a cognição de
nosso cérebro (consciência, memória,
pensamento abstrato, associação de
idéias, habilidades e potencial criativo)
[27,32].
Esses fármacos atuam preferencialmente na dinâmica da sinapse, modificando a sua síntese, armazenamento,
liberação, ação nos receptores, recaptação e degradação metabólica. Esses
são os alvos moleculares que estão
afetados nas enfermidades e como o
uso dos psicofármacos podem melhorar
o desempenho cognitivo. Portanto, existe
uma razão a priori de se acreditar que as
drogas nootrópicas ao atingir seu alvo
podem ativar vias preferenciais das redes
neuronais [33,34].
As duas drogas que são mais usadas
atualmente para fins não terapêuticos
são o metilfenidato e o modafinil.
O metilfenidato (Ritalina) é o neuroestimulante mais usado hoje e de maior
eficácia no tratamento do transtorno de
défict de atenção e hiperatividade (TDAH)
na redução da sonolência em narcolépticos, diminuição da fadiga e vem sendo
usado em grande escala para tratamento
da obesidade [31]. O alvo neuroquímico
primário do Metilfenidato é o transportador de dopamina e da noradrenalina,
essas duas drogas atuam diferentes
das anfetaminas e não são capazes de
se ligarem em receptores pré- sinápticos
aminérgicos, não induzem dependência
química e não produzem efeitos cardiotóxicos. Em estudos epidemiológicos
recentes com diferentes metodologias
de analises estatísticas para medir atenção, humor, memória, vigília, motivação
e funções executivas mostraram que
Metilfenidato em dose única foi capaz de
melhorar a memória, mas não os outros
parâmetros analisados. Não existem dados sólidos sobre seu uso por períodos
longos [4,35-39].
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Modafinil foi usado inicialmente para
o tratamento do sono excessivo da narcolepsia. Depois seu uso foi ampliado
para tratamento da síndrome da apneia e
hipopneia obstrutiva do sono, desordem
do sono em trabalhadores noturnos,
melhora cognitiva de esquizofrênicos
[2,31,35,36,40,41].
A ação neuroquímica do modafinil apesar de pouco conhecido, parece atuar principalmente sobre o transportador de dopamina e noraepinefrina.com aumento na
liberação dessas aminas [35,36,40,41].
Outros sistemas de neurotransmissores
são afetados somente secundariamente.
Parece que existe certa seletividade de
ação nas áreas corticais sobre as sub-corticais. Em doses terapêuticas parece
melhorara atenção, memória de trabalho
e memória episódica e outros processos
dentro do córtex pré-frontal. Esses efeitos
são observados em roedores, indivíduos
adultos e sadios, bem como em varias desordens psiquiátricas. Contudo em doses
repetidas, modafinil foi incapaz de impedir
a deterioração da performance cognitiva
por um período de tempo mais longo em
indivíduos de privados de sono [31,41].
Diferentes das anfetaminas não produzem
dependência química e apresentam pouco
efeitos colaterais [32].
Ampacinas
Outro grupo de moléculas nootrópicas são ampacinas que ativam sinapses
glutamatergicas excitatorias no córtex
cerebral. Sua ação é sobre os receptores
AMPA que despolarizam a membrana por
entrada de íons sodio. Essa despolarização ativa receptores de NMDA que podem
induzir LTP, portanto essas moléculas seriam importantes para aquisição de novas
informações e estocagem de memória. As
ampacinas estão em fase adiantada
de testes clínicos e apresentam resultados promissores para o tratamento
de disfunções de memória associadas
ao Alzheimer [2,8,13].
Memantina
A memantina foi sintetizada e patenteada em 1968 e usada pela primeira vez
para tratar pessoas envelhecidas com
déficits de memória e mais recentemente
na doença de Alzheimer severa. A estratégia é baseada no principio que a droga
só entra em ação em estados patológicos devido á estimulação excessiva do
receptor de NMDA [28,29]. A memantina
se liga próximo ao sítio do Mg e bloqueia
a atividade canal do receptor. Ainda não
existem dados sobre o efeito dessa droga
na performance de pessoas jovens. Seu
potencial uso como nootrópico é para ajudar no raciocínio e memória [28,29,41].
Drogas que atuam na circulação
cerebral e como aprimoradores
metabólicos
Existem drogas nootrópicas que podem melhorar a performance cognitiva
atuando na vascularização. Por apresentar uma altíssima taxa metabólica,
o cérebro consome 1/5 da utilização do
oxigênio disponível no corpo, por isso
demanda um grande aporte de sangue.
Portanto, qualquer impedimento no fluxo sanguíneo cerebral e consequente
diminuição no suprimento de oxigênio
podem influenciar as funções cognitivas.
Ginkgo biloba é considerada uma droga
que pode atuar no leito vascular como
vasodilatadora, alteração na viscosidade
cerebral e função plaquetária. Essa planta
é usada em muitos países para tratar o
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impedimento cognitivo durante o envelhecimento, em doenças neurodegenerativas
e demências [2,7,42-44]. O piracetam é
outra droga usada por muitos anos em diferentes países para tratar impedimentos
cognitivos no envelhecimento e em doenças neurodegenerativas. O seu mecanismo de ação foi inicialmente relacionado
a modulação dos sistemas colinérgico
e glutamatérgico e com isso melhorar
eventos relacionados a neuroplasticidade. Mais recentemente suas ações foram
relacionadas ás propriedades reológicas
e melhora na fluidez das membranas,
inclusive das mitocondrias de células neuronais. Ao fazer isso, o piracetam poderia
trazer benefícios e contribuir para sua
eficácia terapêutica com repercussões
na captação de glicose e produção de
ATP e melhorar o desempenho cognitivo
[2,7,42,45,46]. Substancias naturais e
seus derivados, podem ser usadas com
êxito em doenças psiquiátricas e também
como drogas nootrópicas, como é o caso
da glutationa e seus derivados, por suas
ações antioxidantes [44,47,48].
Drogas que atuam em mecanismo
de transdução de sinal
As moléculas de sinalização celular
exercem seus efeitos após sua ligação
com os receptores expressos nas células-alvos, que, por sua vez, ativam uma serie
de alvos intracelulares, como enzimas,
segundo mensageiros, canais iônicos,
transcrição gênica em uma sequência
de reações resultando em mecanismo
de transdução do sinal. Drogas neuroaprimoradoras podem afetar de modo
seletivo essas vias de sinalização. As
metilxantinas parecem afetar os níveis de
AMPc por inibição de sua enzima de degradação, a fosfodiesterase do AMPc pro-
duzindo propriedades estimulatórias. As
cinases são enzimas envolvidas nas vias
de sinalização que podem ser bastantes
uteis como alvos de drogas nootrópicas,
entre as cinsases mais importantes como
alvo de drogas temos a Proteina cinase A ,
proteína cinase C, proteína cinase ativada
por Ca++-calmodulina. Entre os fatores de
transcrição mais estudado por sua participação em memória de longo prazo é o
CREB (cAMP response element-binding).
Manipulações genéticas que levam a um
aumento na função do CREB parecem não
interferir na aprendizagem e memoria de
curto prazo, mas aumentam a memória
de longo prazo, podendo ser um alvo importante para o desenvolvimento de droga
aprimoradora de memória [2,49,50].
Conclusão
A importância do conhecimento dos
circuitos neurais, dos eventos moleculares e neurotransmissores relacionados
a performance cognitiva, vai desde a
função normal do cérebro aos distúrbios
psiquiátricos e neurodegenerativos, permitindo que novas drogas aprimoradoras
ou nootrópicas sejam desenvolvidas,
como estratégias para exercerem efeitos
específicos e benéficos sobre a cognição
e ajudem pacientes com doenças neuropsiquiátricas na redução dos sintomas e
melhora em sua qualidade de vida.
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Revisão
Plasticidade sináptica como substrato
da cognição neural
Synaptic plasticity as substratum
of the neural cognition
Ricardo Augusto de Melo Reis*, Mário C. N. Bevilaqua**, Clarissa S. Schitine*
Resumo
O cérebro humano é formado por quase cem bilhões de neurônios cuja organização em redes permite
a execução de inúmeras funções comportamentais. Estímulos ambientais modificam a estrutura dos
circuitos neurais, refinando e tornando as sinapses mais eficientes. O tamanho e a área de superfície
do cérebro de primatas superiores, portadores de cérebros girencefálicos, são fatores determinantes
nas habilidades intelectuais. Neste ensaio serão discutidos como as mudanças plásticas nas sinapses
ocorrem (os pontos de contato entre as células na ordem de centenas de milhares por neurônio) e como
se dá a transferência de informações no sistema nervoso, que tem um papel essencial nos processos
cognitivos. A plasticidade sináptica é discutida do ponto de vista de moléculas (glutamato e seus receptores), células e suas protuberâncias (espinhas dendríticas) e de redes elaboradas a partir da geração
de novos neurônios nos chamados nichos neurogênicos.
Palavras-chave: plasticidade, Hebb, cálcio, cognição, glutamato, sinapse, memória, neurogênese, epigenética
*Laboratório de Neuroquímica, **Laboratório de Neurobiologia da Retina, Instituto de Biofísica Carlos
Chagas Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro
Correspondência: Ricardo Augusto de Melo Reis, Laboratório de Neuroquímica, Instituto de Biofísica Carlos
Chagas Filho, CCS, UFRJ, 21949-900 Rio de Janeiro, Tel: (21) 2562-6594, E-mail: [email protected]
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Abstract
The human brain is constituted by almost a hundred billion neurons organized in neuronal-glial networks
that allow a great number of behavioral outputs. The interaction of the environment with the genetic contents of neural cells modifies the structure of neural circuits, refining the synapses into a more efficient
structure. Here we discuss how plastic changes at the molecular, cellular and network levels target the
synapses (the space between neuronal-glial cells that might reach up to 104 per neuron) and how information is exchanged in the nervous system, an essential role in cognition. Synaptic plasticity might be
related to distinct mechanisms such as the traffic of glutamatergic receptors, spine volume modification,
integration of novel neurons in established networks and potentiation or depression of synaptic pathways.
Key-words: plasticity, Hebb, calcium, cognition, glutamate, synapse, memory, neurogenesis, epigenetics.
Introdução
O termo cognição pode ser definido
como o ato de adquirir conhecimento, ou
a faculdade de conhecer. Os que estudam a cognição têm associado diversos
mecanismos cerebrais subjacentes à
percepção, à atenção, à memória e ao
pensamento, com as etapas do desenvolvimento do cérebro pós-natal e a interação com o ambiente durante a infância
e a adolescência. Estudos envolvendo a
psicologia do desenvolvimento frequentemente geram perguntas sobre como as
redes neurais são refinadas através de
experiências sensório-motoras, fruto de
interações entre o conteúdo genético herdado e a influência de aspectos ambientais que resulta na elaboração da riqueza
dos comportamentos. Perguntas do tipo:
como a consciência surge e se modifica
em meio à interatividade das redes neurais? Como a atividade neural origina o
sentido de sermos seres conscientes?
E como o desenvolvimento do sistema
nervoso central (SNC) leva a emergência
das faculdades mentais, são chaves no
entendimento desse assunto [1-3].
O tamanho e a área de superfície do
cérebro de mamíferos de forma geral e a
girencefalia, presente nos primatas su-
periores são dois fatores determinantes
nas habilidades intelectuais. A maior
densidade neuronal parece estar
relacionada com o aparecimento de um
grupo de células progenitoras de rápida
amplificação, e que durante a evolução,
gerou uma estrutura neocortical mais densa, com neurônios migratórios cujas trajetórias modificadas produziram variantes
das encontradas nos demais mamíferos
[4]. O elaborado desempenho cognitivo
nos humanos tem sido relacionado com
parâmetros quantitativos celulares, envolvendo o número de neurônios e de células
não neuronais [5], o volume de massa
cinzenta e de substância branca [6] e com
a complexidade e o volume de espinhas
dendríticas de neurônios de vertebrados
superiores [7], entre outros aspectos.
Estudos recentes referentes ao escalonamento do cérebro humano sugerem que,
em números absolutos, este órgão apresenta vantagens na constituição cerebral
em relação aos roedores e aos demais
primatas, contendo um maior número de
neurônios [5], e consequentemente de
pontos de contatos entre estas células, o
que favoreceria as habilidades cognitivas.
Registros arqueológicos apontam
poucos sinais de inventividade nos hominídeos presentes no período anterior a
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200.000 anos atrás na Africa; porém, com
o surgimento do Homo sapiens durante
o Paleolítico superior, houve um salto na
criatividade por volta de 50.000 anos atrás
[8]. É possível que substituições de aminoácidos em alguns genes, como do fator
de transcrição Forkhead box p2 (Foxp2)
envolvido na evolução da linguagem, possam ter acarretado mudanças cognitivas
substanciais em nossos ancestrais [9].
É no mínimo tentador correlacionar as
consequências neurológicas com a possibilidade de como a fala, a linguagem
e a capacidade cognitiva diferenciaram
os humanos dos demais hominídeos no
passado remoto. Nesse sentido, camundongos com um gene Foxp2 de humanos
apresentam maior plasticidade sináptica
e comprimentos dendríticos, pelo menos
nos circuitos entre o córtex e os núcleos da
base analisados. A introdução da versão
humana de Foxp2 em camundongos levam
a alterações na vocalização ultrassônica
e no comportamento exploratório desses
animais, assim como nas concentrações
de dopamina cerebral [10].
Neste ensaio, discutiremos como as
mudanças plásticas nas sinapses ocorrem
(os pontos de contato entre as células na
ordem de centenas de milhares por neurônio) e como se dá a transferência de informações no sistema nervoso, que tem um
papel essencial nos processos cognitivos.
Abordaremos a plasticidade sináptica do
ponto de vista de moléculas (glutamato e
seus receptores), células e suas protuberâncias (espinhas dendríticas) e de redes
com a geração de novos neurônios nos
chamados nichos neurogênicos.
A sinapse
O termo sinapse surgiu por volta de
110 anos atrás com o fisiologista britâ-
nico Charles Sherrington. Num trecho de
sua obra de 1897, Sherrington atribui aos
espaços observados entre os neurônios
(visualizados na época por Santiago Ramon y Cajal e outros usando a técnica
de impregnação de prata nos neurônios
desenvolvida por Camilo Golgi), uma importante função na troca de informações
elétricas no sistema nervoso.
A resposta da sinapse é modificável,
o que gera uma plasticidade, que é uma
propriedade essencial do desenvolvimento e uma das principais funções cerebrais
[11]. É sabido que o cérebro é sensível
aos fatores ambientais, seguindo inicialmente um plano genético durante a fase
pré-natal, com a elaboração de gradientes
moleculares especificados no eixo dorsoventral no embrião. A rápida proliferação
de células progenitoras gera múltiplos
neurônios e células gliais, através de uma
orquestração de genes pró-neurogênicos
e gliogênicos [4]. Estímulos ambientais
modificam a estrutura dos circuitos neurais, refinando e tornando as sinapses,
alvo de ação dos neurotransmissores,
mais eficientes por meio de atividade
elétrica e mensageiros químicos. Essa
plasticidade resulta na modificação da
estrutura e da função do sistema nervoso. A questão de quanto e de como o
ambiente influencia no desenvolvimento
do cérebro é de grande interesse geral,
com particular atenção nos campos
da neurobiologia do desenvolvimento,
desenvolvimento infantil, educação e
psicopatologia infantil.
Inúmeros modelos de plasticidade
sináptica são observados em diversos
circuitos cerebrais [11]. Nesse sentido,
podem ser citadas estruturas como o
hipocampo e a amigdala que estão envolvidas com processos de consolidação de
memória espacial e emocional, proces-
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sos associativos nos sistemas límbicos,
pré-frontais e subcorticais, com a participação de várias moléculas e processos
celulares. Durante o envelhecimento pode
ocorrer perda de cognição associada com
sinaptotoxinas em desordens neurodegenerativas, como os oligômeros dos
peptídeos beta-amilóide, encontradas
na patologia do mal de Alzheimer, e a
proteína do príon com a interação em
alvos sinápticos.
Um dos elementos que reforçam
a atividade sináptica e que só recentemente adquiriu um status apropriado na
formação dos circuitos neurais é a célula
da glia, em especial os astrócitos, que
juntamente com os neurônios pré- e pós-sináptico formam a chamada sinapse
tripartite [12]. Embora tenham sido descritas há mais de um século, por muito
tempo essas estruturas gliais foram apresentadas como tendo um papel meramente acessório no cérebro. A constatação
de que a glia contribui para o refinamento
sináptico [13], só foi possível a partir da
utilização de métodos apropriados para o
estudo de propriedades encontradas nas
macro- e microglias, como ondas de Ca2+
geradas por transmissores, secreção de
fatores tróficos mantenedores de populações seletivas, potenciação e depressão
sinápticas, entre outras [12]. Como os
astrócitos estão associados às sinapses
de forma íntima e compartimentalizada,
a integração da informação química e
elétrica é frequentemente modificada nos
circuitos por fatores gliais o que leva a
uma intensa modulação neuro-glial.
Existem questões em aberto sobre
os mecanismos e o local exato de expressão da plasticidade sináptica nos
circuitos neurais em desenvolvimento e
no adulto. Existem dúvidas se ocorrem na
estrutura pré-, pós-sináptica, em ambas
ou se resulta do produto da interação
entre neurônios e células gliais.
A estrutura pré-sináptica se apresenta como um sítio de plasticidade quando
ocorre um aumento na liberação de vesículas contendo neurotransmissores [14],
processo chave na liberação exocitótica
dependente de Ca2+. Diversos sinais convergem em sensores de Ca2+ localizados
na região pré-sináptica, sendo a proteína
sinaptotagmina a mais importante, induzindo uma liberação de vesículas via o
complexo SNARE que é frequentemente
modulado [15].
A estrutura pós-sináptica de uma
sinapse excitatória (glutamatérgica) é
muito dinâmica e tem grande controle na
densidade de receptores pós-sinápticos,
principalmente os complexos pertencentes às subfamílias de receptores ionotrópicos AMPA e NMDA. Um dos processos
mais implicados com a plasticidade
sináptica envolve o tráfego de subunidades de receptores AMPA (subunidades
GluAs) de regiões extra-sinápticas para
as regiões sinápticas, processo esse que
requer pelo menos duas etapas, e que
envolve vias regulatórias e constitutivas,
dependendo do tipo de subunidade em
questão [16]. As subunidades GluA1
apresentam uma longa cauda carbóxi
(COOH) terminal, e são transferidas do
citoplasma para a membrana da região
extra-sináptica por processos regulatórios, que tem a participação das enzimas
Ca2+ Calmodulina Cinase II e a via da
Pi3Cinase. Esse processo é dependente
de atividade e fundamental nos períodos
de intensa plasticidade, como no período
crítico [17]. Se a habilidade para mudar
o comportamento depende do fortalecimento e do enfraquecimento seletivo das
sinapses, o incremento de subunidades
GluA1 na região extra-sináptica (vindo do
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citoplasma) pode ser o primeiro passo
para que estas subunidades atinjam a
região sináptica e aumentem a densidade
de receptores, e que uma vez ativados,
induzam despolarização, fluxo de Ca2+ e
modificações estruturais com base na
polimerização de filamentos de actina.
Isso leva a transformação de estruturas
imaturas (filopódios) presentes durante
o desenvolvimento a se transformarem
em protuberâncias compartimentalizadas
(espinhas) volumosas na forma de cogumelo e em cálice, ricas nos estoques
intracelulares de cálcio, e que uma vez
ativadas, se tornam funcionais (e deixam
de ser silenciosas) [18]. Nesse contexto,
é sabido que modelos de plasticidade
como a LTP (potencialização de longo
termo, discutido em seguida) e a LTD
(depressão de longo termo) podem ser
expressos com a inserção e a remoção de
subunidades de receptores AMPA, respectivamente [18] e esse modelo pode ser a
base para o estudo de funções cognitivas
e de disfunção sináptica.
Crescimento cerebral pós natal e
plasticidade sináptica
Entre os primeiros dias após o nascimento e a infância (por volta dos 6
anos de idade), uma criança sadia está
em um período em que apresenta a sua
maior plasticidade e interatividade com o
meio e o seu cérebro passa de cerca de
350 para 1200 gramas, e que chega até
1400 gramas no pico da adolescência
(um pouco maior nos garotos em função
do peso corporal e influência hormonal)
[19]. A atividade neural relacionada
com a experiência nos mais diversos
níveis (sensorial, motora, emotiva e
social) é talvez o principal substrato
para o grande aumento dos processos
nas redes neurais, o que induz uma
grande interatividade entre as células
e consequente aumento do número de
sinapses. Estudos realizados na década
de 1970 em cerca de 2600 cérebros
autopsiados de um banco de órgãos em
Washington, EUA, mostrou que durante o
desenvolvimento, o crescimento cerebral
aumenta rapidamente entre os primeiros
meses e os primeiros anos de vida, e que
a curva (no formato de U invertido) e se
estabiliza na adolescência [19-20]. Essa
análise foi revisitada recentemente com
o imageamento de centenas de cérebros
de crianças, adolescentes e adultos (3-27
anos), com o emprego de uma técnica
não invasiva (ressonância magnética
funcional) e que confirmou a curva em U
invertida para diversos parâmetros. Porém, o estudo mostra que diferentes áreas cerebrais amadurecem em momentos
distintos, e que os circuitos neurais têm
diferentes trajetórias durante o desenvolvimento no que concerne ao volume de
massa cinzenta (onde estão os corpos
celulares dos neurônios e astrócitos) e a
branca (conjunto de fibras que conectam
as regiões) [6].
Os bilhões de células no cérebro estão conectados de forma a permitir um
grande repertório de respostas comportamentais, desde a execução de padrões
básicos de movimento até na elaborada
tarefa de improvisar um longo discurso.
Para que os circuitos cerebrais controlem
essa diversidade de respostas, foram
necessárias a proliferação e a diferenciação de progenitores no embrião em
uma diversidade de neurônios, células
gliais e outros tipos, e que atingissem os
locais corretos. No pico da embriogênese,
estima-se que cerca de 250 mil neurônios
são gerados por minuto [19] – processo
controlado por fatores que se difundem
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ao longo do tubo neural e que ativam genes responsáveis por diversas proteínas,
que regulam a produção da neurogênese.
Se a produção dos neurônios sofrer uma
interferência nessa fase da ação de drogas (canabinóides ou do álcool), de toxinas ambientais (como o metil-mercúrio),
ou ainda de um particular defeito genético, pode ocorrer a formação incorreta da
estrutura do sistema nervoso. Hoje é aceita a ideia que os circuitos cerebrais se
transformam através de uma combinação
de influências genéticas e ambientais, e
que o ambiente e a genética contribuem
para a construção cerebral. Os primeiros
eventos no desenvolvimento cerebral (no
embrião) são grandemente dependentes
dos genes, seus produtos, e do milieu no
qual isso ocorre. Em resumo, a interação
entre a genética e o ambiente conectando
as sinapses mostra-se necessária para a
formação dos substratos neurais necessários para a riqueza do comportamento
humano [2].
psicólogo canadense Donald Hebb. Essas sinapses hoje são conhecidas como
hebbianas, e as regras hebbianas são
aplicadas a modelos de aprendizagem no
neocórtex e em estruturas plásticas [22].
Estudos recentes mostram que as espinhas dendríticas (em média, com cerca
de 0,5-2 µm de comprimento, chegando
a 6 µm na região CA3 do hipocampo)
são muito dinâmicas, heterogêneas em
forma e estrutura, e modificadas por experiência e por atividade (alvo de LTP), e
que poderia ser o substrato morfológico
da plasticidade sináptica. Um neurônio
maduro apresenta de 1–10 espinhas/
µm num dendrito, sendo esse o local de
chegada das informações excitatórias no
SNC. Embora o imageamento dessas estruturas mostrando a motilidade evidencie
o possível impacto funcional no neocórtex
e no hipocampo em neurônios vivos, o
siginificado da plasticidade das espinhas
ainda é um assunto polêmico [23].
LTP, Hebb e memória
Plasticidade via novos neurônios no
cérebro adulto
O fenômeno de LTP (potencialização
de longo termo) foi descrito na década de
1970 como uma forma de plasticidade
encontrada nos circuitos hipocampais
[21]. Estímulos tetânicos (de alta frequência) quando apresentados a uma
via pré-sináptica provocam o aumento
da resposta da região pós-sináptica, em
termos de incremento dos potenciais excitatórios pós-sinápticos (PEPS), de forma
sincrônica e numa escala temporal que
pode ultrapassar segundos e minutos,
chegando a horas, ou mesmo a dias ou
semanas. Esse modelo de resposta foi
logo reconhecido como sendo adequado
para explicar o processo de memória,
algo que foi postulado inicialmente pelo
Um importante paradigma estabelecido há quase um século, e tido como dogma até recentemente, dizia que “o número de neurônios no cérebro é determinado
durante o desenvolvimento embrionário, e
que durante a vida pós-natal, o cérebro é
incapaz de gerar novos neurônios” [24].
Entretanto, algumas observações iniciais
questionaram este paradigma na década
de 1960, e revelaram uma capacidade
até então desconhecida no cérebro de
vertebrados adultos: a geração de novos
neurônios (neurogênese). Sidman et al.
[25] desenvolveram a técnica da incorporação de timidina tritiada, que ao ser
incorporada ao DNA durante sua síntese,
revela células que foram geradas após
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sua administração. Esta técnica sugeriu a
geração de novos neurônios, e destacou
uma importante área cerebral pela sua capacidade neurogênica: o hipocampo [26].
Nas décadas seguintes, estabeleceu-se
que novos neurônios recebem aferências
sinápticas e estendem prolongamentos
[27].
Estudos em pássaros canoros foram
fundamentais para a implicação funcional
da neurogênese adulta. Canários precisam aprender novas canções e para
isso, novos neurônios são gerados e
adicionados aos “centros vocais” desses
pássaros a cada ano. A geração desses
novos neurônios parece acompanhar
flutuações hormonais e expressão de
fatores de crescimento que ocorrem de
forma sazonal [28].
A neurogênese adulta foi inicialmente
vista como um fenômeno exclusivo de animais evolutivamente menos complexos,
excluindo, dessa forma, os primatas [29].
Entretanto, a partir dos anos 90, vários
trabalhos identificaram nichos neurogênicos no cérebro de mamíferos superiores,
incluindo o homem [30-31], participando
de processos cognitivos como na memória e no aprendizado [32-34]. Atualmente,
a capacidade neurogênica é uma das
formas de plasticidade celular, associada
a diversas linhas de pesquisa que procuram identificar as bases, as funções
e as implicações da geração de novos
neurônios no cérebro adulto.
Circuitos neurais nos nichos
neurogênicos
Os nichos neurogênicos apresentam
condições específicas para a geração de
novas células, como a sua composição
celular e a presença de um ambiente favorável contendo fatores essenciais para o
desencadeamento desse processo. Duas
regiões do cérebro se destacam onde a
neurogênese é amplamente reconhecida:
a zona subventricular (ZSV), situada nas
paredes dos ventrículos laterais e a zona
subgranular (ZSG) do giro denteado do
hipocampo (figura 1). Os novos neurônios
gerados na ZSV migram através de uma
rota precisa, a rota migratória rostral
(RMS) e se estabelecem no bulbo olfatório, onde continuadamente substituem
interneurônios locais [35]. Os neurônios
imaturos gerados no hipocampo adulto,
especificamente na zona subgranular
(SVZ) do giro denteado, migram para o
interior da zona granular onde se estabelecem e emitem/recebem contatos
sinápticos [36] (figura 1). Os progenitores
encontrados em ambos os nichos neurogênicos têm natureza astroglial [37].
Neurogênese na zona subventricular
A presença de células proliferativas
na ZSV tem sido estudada há bastante
tempo e demonstrada em vários vertebrados. Tais células têm características
astrocitárias, sendo conhecidas como
“astrócitos da zona subventricular”. De
fato, tais células expressam marcadores
de células astrogliais, como GFAP, GLAST
e outros [38-39]. Essas células-tronco da
ZSV são conhecidas como “células B”. As
células B dão origem a uma população
de células altamente proliferativas: os
precursores intermediários (PI) conhecidos como células C. As células C têm
importante papel como amplificadoras
do potencial proliferativo do nicho neurogênico. Os precursores intermediários
dão origem aos neuroblastos (células A).
As células A migram em cadeia para o
bulbo olfatório onde se diferenciam em
interneurônios GABAérgicos (inibitórios)
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e se integram a circuitos previamente
estabelecidos (figura 1) [40-41].
Dados recentes mostram que na ZSV
ocorre geração de neurônios glutamatérgicos (excitatórios), e não apenas interneurônios inibitórios do bulbo olfatório durante
a fase adulta [42]. Explantes de ZSV
pós-natal e adulta dão origem a neurônios
glutamatérgicos quando colocados em
contato com a zona ventricular embrionária
[43], evidenciando maior plasticidade dessa região em relação ao fenótipo neuronal
gerado. Experimentos de imageamento
revelaram ainda que células provenientes
da ZSV, até a primeira semana pós-natal,
apresentam migração para regiões do
cérebro como o córtex, estriado e núcleo
acumbens, onde se diferenciam em interneurônios GABAérgicos [44]. Essa migração no animal adulto pode ter implicações
importantes, pois tem sido mostrado que
após lesões cerebrais, neuroblastos podem ser direcionados para os locais de
lesão. Esse processo poderia ocorrer após
isquemia estriatal e cortical, assim como
em modelos animais de Parkinson e na
doença de Huntington [45-48]. Visando a
plasticidade de circuitos cerebrais, progenitores da ZSV são considerados fonte de
células reparadoras, capazes de substituir
células de regiões afetadas por lesões
[49]. Existe ainda uma grande expectativa
em relação aos mecanismos celulares e
moleculares do controle da neurogênese,
face ao contínuo envelhecimento da população mundial e da incidência crescente
de doenças neurodegenerativas, que
permitiriam novas estratégias para tratar
déficits cognitivos.
Em busca de compostos pró-cognitivos
Existe uma família de compostos
pró-cognitivos chamada de ampacinas,
capazes de estabilizar os receptores
glutamatérgicos do tipo AMPA no seu
estado aberto, potencializando a resposta
sináptica excitatória [51]. Esse composto melhora o desempenho em diversos
modelos em animais com privação de
sono [51] e em testes de memória em
humanos idosos [52], além de reduzir os
sintomas em modelos de Parkinson [53],
esquizofrenia e em lesões isquêmicas
[51]. Sabendo que as células na ZSV de
animais adultos apresentam receptores
glutamatérgicos funcionais do tipo NMDA
e AMPA e que o neurotransmissor glutamato regula eventos de diferenciação e
proliferação na ZSV [39,54], o uso de
ampacinas poderia modular o processo
de neurogenêse nessa região. Resultados
do nosso grupo mostram que a ampacina
CX 546 aumenta o número de neurônios
funcionais em culturas de células derivada da SVZ [55].
Diversos marcadores permitem a
identificação e o acompanhamento das
células desde o nicho neurogênico (ZSV)
até o seu destino final (bulbo olfatório).
Enquanto as células progenitoras expressam marcadores tipicamente gliais como
a proteína acídica fibrila ácida (GFAP),
os neuroblastos expressam a molécula
de adesão neural associada ao ácido
poli-siálico (PSA-NCAM) e a proteína doublecortina (DCX). Após a integração na
circuitaria do bulbo olfatório (na camada
de células granulares ou na camada
periglomerular), as células expressam
receptores glutamatérgicos dos tipos
AMPA e NMDA. Vale ressaltar que desde
o estágio proliferativo até a integração
sináptica, os novos neurônios expressam
receptores de GABA [36].
Vários fatores regulam as etapas da
neurogênese na ZSV. Durante o estágio
proliferativo, a neurogênese é regulada
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por sinalização via ativação de receptores
de serotonina, dopamina e acetilcolina.
Diversas moléculas como hormônio tireoidiano, prolactina, polipeptídeo de ativação da adenil ciclase pituitária (PACAP),
além de fatores de crescimento como o
fator de crescimento epidérmico (EGF), fator de crescimento de fibroblastos (FGF),
fator neurotrófico derivado de gânglio
ciliar (CNTF) e fator neurotrófico derivado
de cérebro (BDNF), entre outros, também
atuam modulando a neurogênese na ZSV.
Durante a migração na rota migratória rostral e no bulbo olfatório, a própria migração e diferenciação celular é regulada via
sinalização GABAérgica e interação com
componentes do microambiente, como
PSA-NCAM, efrinas e neuroregulinas. A
sobrevivência e a integração dos novos
neurônios no bulbo olfatório podem ser
afetadas ainda pela ação da acetilcolina,
e de fatores ambientais como atividade
sensorial, e a exposição do animal a novos odores [revisado em 56].
A integração contínua de novos neurônios no bulbo olfatório parece ter papel
importante na plasticidade da discriminação de novos odores. Em um estudo
realizado com animais com expressão
deficiente da proteína NCAM (necessária
para a migração celular), foi demonstrado
que o número de interneurônios no bulbo
olfatório foi drasticamente reduzido e que
o animal apresentava dificuldades em
discriminar odores semelhantes [57].
Este estudo sugere que a neurogênese
na ZSV adulta pode ser importante para
a função olfativa.
Neurogênese no hipocampo adulto
O giro denteado do hipocampo é
uma das duas regiões cerebrais onde a
neurogênese é largamente verificada num
cérebro adulto e as etapas que seguem a
geração desses novos neurônios são bem
conhecidas. Milhares de novos neurônios
são diariamente gerados no hipocampo
de ratos adultos [58]. No giro denteado,
novos neurônios são originados a partir
de progenitores ou precursores localizados na própria estrutura. As células
progenitoras hipocampais têm características astrocitárias e são concentradas
na chamada “camada de células granulares”. A camada de células granulares
fica localizada entre o hilus e a camada
molecular, sendo o sítio neurogênico encontrado especificamente, na camada de
células subgranulares, região adjacente
ao hilus (Figura 1).
No sítio neurogênico, mais especificamente na zona subgranular, três tipos de
células podem ser identificados: células
B, células D e células G. As células B são
astrócitos que são fortemente marcados
com anticorpos anti-GFAP. Tais astrócitos
emitem prolongamentos radiais para o
interior da camada de células granulares.
As células B sofrem mitose e podem
gerar novas células B ou células D. As
células D são amplificadoras e proliferam
rapidamente, gerando novas células D
que amadurecem e dão origem a novos
neurônios granulares. As células G são
neurônios granulares maduros (figura 1)
[59].
Os neurônios imaturos (células D)
estendem um prolongamento apical em
direção a camada molecular, ao mesmo
tempo em que migram para o interior
da camada de células granulares. Além
disso, estendem axônios em direção aos
neurônios piramidais de CA3 [36]. As células que não são integradas aos circuitos
são eliminadas por apoptose. A maior
parte da morte celular parece ocorrer
quando as células saem do ciclo celular
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Figura 1 - Os nichos neurogênicos são representados pela zona subventricular (ZSV)
localizada nas paredes dos ventrículos laterais e pela zona subgranular (SVZ) do giro
denteado no hipocampo. A presença de células proliferativas na ZSV tem sido demonstrada em vários vertebrados, com células que mantêm capacidade proliferativa durante
a vida adulta. A geração dos novos neurônios depende de um ambiente favorável contendo fatores essenciais para o desencadeamento desse processo. Os novos neurônios
gerados na ZSV migram através de uma rota precisa, a rota migratória rostral e se estabelecem no bulbo olfatório, onde continuadamente substituem interneurônios locais.
Os neurônios imaturos gerados no hipocampo adulto, especificamente na zona subgranular migram para o interior da zona granular onde se estabelecem e emitem/recebem
contatos sinápticos. Os progenitores encontrados em ambos os nichos neurogênicos
têm natureza astroglial.
e se tornam pós-mitóticas, expressando
ambos os marcadores DCX e calretinina.
Acredita-se que o processo de eliminação
das células não integradas aos circuitos
seja constitutivo e balanceado por fatores
promotores da sobrevivência celular [60].
A funcionalidade da neurogênese hipocampal adulta ainda é um assunto bastante controverso. Haveria uma razão para
a geração de milhares de neurônios por
dia? Esses novos neurônios substituiriam
outros que porventura morreram durante
o desenvolvimento? Ou mesmo aqueles
que morreram durante a vida adulta? De
fato, Gould e colaboradores mostraram
[61] uma substancial morte de neurônios na camada de células granulares,
especialmente entre os novos neurônios
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nos cérebros de roedores e primatas em
situação controlada. Entretanto, sabe-se
que fatores ambientais são responsáveis
por aumentar o potencial neurogênico
do hipocampo e a sobrevivência desses
novos neurônios [33]. Com base em tais
fatos, uma importante questão pode ser
levantada: seriam as condições experimentais dos trabalhos em laboratório
(ausência de estímulos) a razão da morte
dos neurônios recentemente gerados?
Será que os animais vivendo em seus
habitats naturais apresentariam o mesmo
balanço entre geração e morte de novas
células hipocampais?
A neurogênese hipocampal parece estar diretamente envolvida em
processos cognitivos de memória e
aprendizagem. Sabe-se que fatores que
aumentam a neurogênese no hipocampo
têm importante impacto em tarefas mnemônicas, avaliadas no teste do labirinto
aquático de Morris [33]. É interessante
notar que o próprio aprendizado tem efeito pró-neurogênico [31]. Além do aprendizado em si, a permanência do animal em
um ambiente enriquecido promove mais
oportunidades de aprendizado do que um
ambiente padrão.
Fatores intrínsecos e neurogênese
Dentre os fatores intrínsecos que
regulam a neurogênese hipocampal
destacam-se a via de sinalização desencadeada pelos fatores Wnt, Notch,
a proteina morfogênea óssea (BMP) e
Sonic hedgehog (Shh). A superexpressão de Wnt3 aumenta a neurogênese
no hipocampo enquanto o seu bloqueio
diminui esse processo [62]. Para uma
melhor compreensão desses fatores envolvidos com a neurogênese, destaca-se
o papel de Notch cuja superexpressão
do fator Notch1 ativado, aumenta a proliferação das células hipocampais e a
manutenção da expressão de GFAP pelas
células progenitoras [63]. As BMPs são
moléculas extracelulares que geralmente
antagonizam a neurogênese [64]. Noggina, que inibe as proteínas BMP, aumenta os níveis de neurogênese [64].
Shh é uma molécula solúvel que atua
no desenvolvimento do sistema nervoso
e a sinalização mediada por Shh exerce
importantes funções na expansão e no
estabelecimento dos progenitores pós-natais do hipocampo [65].
Outros reguladores relevantes da
neurogênese são o estresse e o exercício
físico. Estresse é um dos mais potentes
inibidores da neurogênese hipocampal e
sua ação foi demonstrada em várias espécies de mamíferos [66]. O efeito deletério
do estresse na proliferação celular foi
evidenciado por diferentes paradigmas,
como por subordinação ou provocado por
invasão de um intruso [67], choque, odor
de predadores [68] entre outros [60].
A duração do estímulo não parece ser
relevante nos diferentes protocolos de
estresse, já que tanto o paradigma agudo
quanto o crônico diminuem a proliferação
celular no hipocampo [66].
A neurogênese hipocampal é bastante sensível ao aumento dos níveis de
corticóides [66], isto é, tais hormônios regulam negativamente a neurogênese. Um
estudo recente mostrou que a ablação
da neurogênese hipocampal modulou as
taxas de glicocorticóides após um estresse moderado, mantendo as taxas desse
hormônio altas após o evento estressor
[69]. Existem inúmeras evidências recentes mostrando que o exercício físico além
de beneficiar a saúde dos indivíduos,
melhora o desempenho cognitivo e outras
funções cerebrais [70]. Em roedores, a
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corrida voluntária aumenta a proliferação
dos progenitores neurais da zona subgranular do giro dentado em animais jovens
e envelhecidos [34]. Além disso, a corrida
voluntária aumenta a magnitude da LTP
no giro dentado e aumenta o desempenho
no labirinto aquático de Morris [34].
Perspectivas futuras
Inúmeros modelos de plasticidade
sináptica são observados em diversos
circuitos cerebrais, como no hipocampo,
no córtex, nos sistemas límbicos, e em
estruturas subcorticais, com a participação de várias moléculas e processos
celulares. O rápido envelhecimento da
população humana e o aumento na incidência de demências têm preocupado
a todos na busca por mecanismos que
preservem as habilidades cognitivas dos
animais. Existe uma relação entre a cognição manifestada por mamíferos e primatas superiores e a complexidade dos
terminais pré- e pós-sinápticos presentes
nas redes neurogliais. A modificação da
transmissão da informação no cérebro
conta com a participação de diversas
moléculas interferindo em processos
de fortalecimento e enfraquecimento da
eficácia sináptica. A neurogênese adulta,
vista inicialmente como um fenômeno
em animais evolutivamente menos complexos, hoje é tida como processo chave
na elaboração de novos circuitos nos
nichos neurogênicos no cérebro de mamíferos superiores, incluindo o homem.
Atualmente, a capacidade neurogênica é
uma das formas de plasticidade celular,
associada a diversas linhas de pesquisa
que procuram identificar as bases, as
funções e as implicações da geração de
novos neurônios no cérebro adulto.
Agradecimentos
Apoio financeiro do INNT-INCT, CNPq,
CAPES e FAPERJ.
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Perspectiva
A distinção entre o próprio e o não
próprio pelo sistema immune adaptativo
Maristela O Hernandez*, Jorge Kalil**
Resumo
A distinção entre o próprio e o não próprio é essencial à sobrevivência de todos os organismos. O sistema
imune inato é encontrado em todos os seres vivos. Nos vertebrados também é encontrado um sistema
bem mais complexo, o sistema imune adaptativo. Os linfócitos, as células responsáveis pela imunidade
adaptativa, precisam ser selecionados já que eles irão fazer a distinção entre o próprio e o não próprio.
Neste breve artigo iremos discutir o processo de seleção dos linfócitos e também alguns mecanismos
para a manutenção homeostática deste sistema. Já sabemos que falhas na resposta imune adaptativa
levam às doenças. Precisamos agora identificar maneiras de controlar a resposta imune específica.
Assim poderemos contribuir para melhorar o tratamento de doenças autoimunes, onde ocorre ativação
exacerbada contra autoantígenos. Ao mesmo tempo poderemos favorecer uma melhor resposta imune
em doenças onde o sistema imune é reprimido, como câncer.
*Pesquisadora Científica do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração – InCor, FMUSP, São
Paulo, **Professor Titular de Imunologia Clínica e Alergia da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo – FMUSP, São Paulo (SP), Brasil, Diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração – INCOR, São Paulo (SP), Coordenador do Instituto de Investigação em Imunologia (III), INCT – MCT,
Diretor do Instituto Butantan, São Paulo
Correspondência: Prof. Dr. Jorge Kalil, Av. Dr Eneas de Carvalho Aguiar, 44 bloco II 9 andar São Paulo SP,
Tel: (11) 2661-5900, e-mail: [email protected]
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Todos os organismos, de bactérias
até vertebrados possuem sistemas que
permitem discriminar o próprio do não
próprio e todos possuem mecanismos
de defesa contra o não próprio. Este sistema de imunidade inata, em geral, está
baseado na utilização de receptores geneticamente codificados, que reconhecem
moléculas comuns a muitos patógenos, e
possibilita uma resposta imune imediata.
Um sistema imune bem mais complexo
é encontrado em vertebrados. Além da
imunidade inata, os vertebrados também
contam com o sistema imune adaptativo
(Figura 1). As células, chamadas de linfócitos T e B, montam receptores antigênicos capazes de reconhecer antígenos
específicos através da recombinação
aleatória de genes. Uma vantagem importante é que este sistema é capaz de
memória, guardando a informação para
fazer uma resposta imune mais rápida
frente ao mesmo antígeno no futuro [1-3].
Figura 1 – Esquema ilustrativo da evolução do sistema imune indicando a presença da imunidade adaptativa somente
em vertebrados.
Enquanto os receptores da imunidade inata reconhecem especialmente
moléculas não próprias, o sistema imune
adaptativo precisa aprender a fazer esta
distinção. A habilidade de discriminar o
próprio e o não próprio é feita inicialmente
nos órgãos linfóides primários, sendo
chamada de tolerância central [4]. No
timo, para os linfócitos T, e na medula
óssea, para os linfócitos B, ocorre a
eliminação das células que reconhecem
antígenos próprios com alta afinidade.
O receptor de antígenos encontrado nos
linfócitos T é chamado de TCR e aquele
encontrado nos linfócitos B é o BCR.
O processo de seleção dos linfócitos
utiliza inicialmente somente antígenos
próprios e ele é dividido em duas etapas.
Inicialmente ocorre seleção positiva –
somente células que expressam um
receptor antigênico funcional recebem
sinal para sobrevivência. Em sequência
ocorre a seleção negativa – morte dos
clones que apresentam alta afinidade por
antígenos próprios (Figura 2). A apresentação dos antígenos é feita por células
especializadas, entre elas as células
dendríticas, os macrófagos e as células
epiteliais do timo, chamadas coletivamente de APC (Antigen Presenting Cell). As
APC associam os antígenos a moléculas
do complexo MHC (Major Histocompatibity Complex) e este complexo é então
reconhecido pelos linfócitos (Figura 3) [5].
Assim, através da interação com as APC,
os linfócitos são capazes de reconhecer
simultaneamente células próprias já que
elas identificam as moléculas MHC e
ainda identificam o antígeno que está
sendo exposto.
Figura 2 – Durante o processo de seleção clonal, os linfócitos cujo TCR não
reconhece as moléculas do MHC são
eliminados, sofrem processo de morte
e sua diferenciação não segue a diante
43
44
Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
(Negligência). As células que apresentam
um TCR funcional, mas com alta afinidade por antígenos próprios sofrem processo de seleção negativa, também por
indução de morte celular. Já os linfócitos
com TCR funcional, mas com afinidade
intermediária por antígenos próprios são
selecionados positivamente e após o
completo processo de seleção e maturação eles seguirão para a periferia.
Figura 3 – Esquema representativo da
interação entre uma célula apresentadora de antígenos e um linfócito T. O receptor antigênico dos linfócitos T, o TCR,
somente reconhece antígenos associados a moléculas de MHC presente nas
células apresentadoras. Este complexo,
associado a outras proteínas, é chamado
de sinapse imunológica.
A interação entre a célula apresentadora de antígeno e o linfócito é essencial
para o desenvolvimento da resposta imunológica. O sítio onde ocorre este contato
entre as células é chamado de sinapse
imunológica. As sinapses imunológicas
são formadas, como resultado da firme
ligação entre o receptor de células T e
o complexo péptido-MHC presente na
membrana da APC [6,7]. Neste sítio de
interação entre as células encontramos
proteínas do citoesqueleto e moléculas
de adesão, responsáveis por manter um
firme contato entre as duas células. Neste complexo também são encontradas as
proteínas responsáveis pela chamada
transdução do sinal, cascata de ativação
das proteínas que tornarão o linfócito
ativado. Assim, a formação da sinapse
imunológica é vital então para o reconhecimento do antígeno, para a manutenção
da estabilidade da interação entre as
células e ainda para ocorrer a própria
ativação dos linfócitos. Este agrupamento
de toda a maquinaria responsável pela
ativação dos linfócitos se correlaciona
com uma resposta imune eficiente capaz
de gerar linfócitos T efetores e de memória [6,7]. Embora tenhamos mencionado
a formação da sinapse imunológica em
linfócitos T ela também é observada em
linfócitos B.
A “rota” para o processo de seleção
e ativação seguida pelos linfócitos T
pode ser resumida da seguinte maneira:
as células precursoras saem da medula
óssea e entram no timo através dos
vasos sanguíneos. Estas células devem
então montar um receptor TCR funcional
através de um processo de recombinação
gênica. A partir daí começam a interagir
com as células epiteliais do córtex tímico.
As células cujo TCR funcional, capaz de
reconhecer MHC das APC com afinidade
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intermediária pelos antígenos próprios,
são selecionadas positivamente, se diferenciam em linfócitos CD4+ ou CD8+
e migram para a medula tímica onde
interagem com as células dendríticas ou
com as células epiteliais. Na medula as
células que reconhecem antígenos próprios com alta afinidade sofrem processo
de morte induzida [8]. Os linfócitos que
conseguem passar por todo este processo seguem para a periferia. O processo de
diferenciação dos linfócitos B é bastante
semelhante. No entanto o processo de
rearranjo é feito na medula óssea [9].
Na periferia estes linfócitos podem
então encontrar um antígeno que ligue
ao seu receptor. Quando ocorre a ligação
receptor-antígeno os linfócitos se tornam
ativados, proliferam, possibilitando uma
resposta específica para o antígeno
alvo. Alguns dos linfócitos ativados vão
se diferenciar em linfócitos de memória,
são estas as células que induzirão uma
resposta rápida se o mesmo antígeno for
encontrado no futuro [10].
Apesar do processo de seleção
muitos linfócitos autorreativos vão para
a periferia. Em muitos casos esses linfócitos induzem doenças autoimunes [11],
como o lupus e a esclerose múltipla. Para
evitar tamanho problema o sistema imune
conta ainda com mecanismos adicionais
de controle de ativação (Figura 4).
Figura 4 – O reconhecimento de um
antígeno pelo TCR pode induzir diferentes
tipos de resposta imune. Após processo
de seleção dos linfócitos T no timo (ou
linfócitos B, na medula óssea), os linfócitos seguem para a periferia. Os linfócitos
que reconhecem moléculas não próprias,
ao encontrarem seu antígeno específico, se tornam linfócitos efetores e dão
origem à resposta imune adaptativa.
Durante este processo também ocorre
a formação de linfócitos de memória.
Quando ocorre o reconhecimento de um
antígeno próprio, o sistema imune conta
com mecanismos de indução de tolerância periférica, onde ocorre a morte
ou a anergia do linfócito autorreativo.
O reconhecimento do antígeno próprio
sem a indução de tolerância induz o
desenvolvimento de doenças autoimunes. Linfócitos T que reconhecem antígenos não próprios podem favorecer o
desenvolvimento de doença autoimune
devido à semelhança molecular entre o
antígeno não próprio (de um patógeno,
por exemplo) e um antígeno próprio, por
reatividade cruzada.
Um deles é a tolerância periférica. Em
geral a seleção negativa elimina os clones
com alta afinidade por antígenos próprios,
então os mecanismos de tolerância periférica têm que lidar com receptores de
afinidade media por antígenos próprios. As
células apresentadoras de antígeno, em
especial as células dendríticas (DC), têm
papel crucial na manutenção da tolerância
periférica. Na presença de patógenos, por
exemplo, as DC aumentam a expressão de
moléculas co-estimulatórias e do MHC e se
tornam imunogênicas (Figura 4). Estas DC
induzem/ativam os linfócitos a secretarem
fatores de crescimento autocrinos, como
a interleucina-2 favorecendo a proliferação
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dos linfócitos. É possível então montar
uma resposta immune eficaz [12]. Por
outro lado, DC que apresentam antígenos
próprios secretam fatores envolvidos com
a indução de anergia nos linfócitos. A anergia é um estado de hiporreatividade dos
linfócitos, estes não se tornam ativados
após o encontro com um antígeno (Figura
4), possivelmente devido à intereção com
CTLA4 ou PD1 (Cytotoxic T-Lymphocyte-Associated Antigen 4 e Programmed
Cell Death, respectivamente). CTLA-4 é
necessário para a indução do processo
anérgico. O PD-1 é essencial para manter
os linfócitos no estado de não resposta,
em parte inibindo a interação estável entre
os linfócitos e as células apresentadoras
de antígeno [12,13]. Além da anergia, linfócitos autorreativos podem ser levados à
morte por apoptose através dos chamados
receptores de morte, como o Fas.
Os linfócitos autorreativos podem
também ser controlados na periferia por
outros linfócitos T, os chamados linfócitos
reguladores (Treg) naturais. Estas células
também sofrem processo de maturação
no timo conforme descrito anteriormente.
No entanto, por um mecanismo ainda
pouco conhecido algumas destas células começam a expressar uma proteína
chamada FoxP3. Estes linfócitos quando
migram para a periferia têm capacidade
de inibir a ativação e proliferação de outros linfócitos [14].
Assim observamos que o sistema
imune além de aprender a distinguir o
próprio do não próprio, selecionando negativamente grande parte dos linfócitos
autorreativos também conta com mecanismos para limitar a atividade de células
na periferia.
Um fato bem interessante é que o
sistema imune às vezes pode ser induzido
a erro. Um fenômeno curioso é o mime-
tismo molécular. O mimetismo molécular
é a semelhança estrutural, funcional ou
imunológica entre macromoléculas encontradas em patógenos e em tecidos
do hospedeiro. Esta semelhança entre
moléculas pode ser determinante para o
desencadeamento de doenças autoimunes [15]. A resposta imune observada
durante uma infecção podem induzir
respostas autoimunes que atacam e
destroem tecidos e órgãos do corpo, o
estado de tolerância é quebrado e uma
resposta imune deletéria é observada
contra autoantígenos. Assim, a semelhança molecular de um autoantígeno
com um antígeno de um patógeno pode
favorecer a doença autoimune devido a
uma reatividade cruzada (Figura 4).
Resultados obtidos em nosso laboratório confirmaram a reatividade cruzada
entre patógenos e moléculas do tecido
cardíaco [16]. O mimetismo molecular
entre antígenos do Streptococcus pyogenes e a miosina cardíaca tem sido considerado como um mecanismo que leva a
reações autoimunes na febre reumática e
na doença reumática do coração [17]. Em
nosso laboratório avaliamos em ensaio
de proliferação a resposta das células T
obtidas de lesões contra a cadeia leve da
meromiosina, peptídeos estreptocócicos
M5 e proteínas derivadas de válvula mitral. Vários clones intralesionais de células T apresentaram reatividade cruzada
entre os diferentes estímulos. O alinhamento da meromiosina e de peptídeos
da proteína M estreptocócicas mostrou
homologia frequente entre substituições
de aminoácidos conservadas. O alto
percentual de reatividade contra miosina cardíaca reforçou assim o seu papel
como um dos principais auto-antígenos
envolvidos nas lesões cardíacas reumáticas [18].
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Outro exemplo onde o mimetismo
molecular contribui para uma patologia
é a doença de Chagas [19]. A cardiomiopatia chagásica crônica é um dos poucos
exemplos de autoimunidade pós-infecciosa, onde episódios de infecção com um
patógeno, o protozoário Trypanosoma
cruzi, claramente desencadeiam danos
ao tecido cardíaco. Linfócitos T CD4+
infiltrantes que reconhecem a proteína
imunodominante B13 do T. cruzi obtidos de pacientes chagásicos também
apresentam reatividade cruzada contra
a miosina cardíaca humana. Os dados
atuais sugerem fortemente a importância
do mimetismo molécular entre miosina
cardíaca e proteína B13 de T. cruzi na
patogênese da lesão cardíaca na cardiomiopatia chagásica crônica [20].
Desde que Burnet [21,22] formulou
a teoria da seleção clonal muito trabalho
foi dedicado a elucidar os mecanismo
que levam à montagem do repertório de
linfócitos de cada indivíduo. Embora o
conhecimento sobre o assunto esteja
progredindo a cada dia ainda precisamos
identificar maneiras de controlar a resposta imune específica. Assim poderemos
contribuir para melhorar o tratamento de
doenças autoimunes, onde ocorre ativação exacerbada contra autoantígenos. Ao
mesmo tempo poderemos favorecer uma
melhor resposta imune em doenças onde
o sistema imune é reprimido, como câncer. O caminho pode ainda ser longo, mas
os resultados serão recompensadores.
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Perspectiva
O mestre dos sonhos à casa torna:
revisitando Freud
The dream master returns home: revisiting Freud
Sidarta Ribeiro
Resumo
Sigmund Freud construiu uma influente teoria sobre a arquitetura e funcionamento da mente, mas sua
obra psicanalítica foi rejeitada pela ciência por ser considerada não-testável e portanto metafísica. Não
obstante, os últimos anos vêm testemunhando um intenso recrudescimento do interesse pela produção
freudiana em diversos campos de investigação neurocientífica. Neste breve artigo faço um sumário das
principais linhas de pesquisa desenvolvidas na confluência da neurobiologia e da psicanálise, com ênfase
no estudo da relação entre sonho, memória e o inconsciente.
Palavras-chave: psicanálise, refutação, ciência.
Abstract
Sigmund Freud built an influential theory regarding the architecture and functioning of the mind, but his
psychoanalytic work was rejected by science because it was considered to be non-testable, and therefore
metaphysical. Nevertheless, the recent years have witnessed an intense resurgence of the interest in
Freudian contributions within various fields of neuroscience research. In this brief article I make a summary of the main lines of research developed at the confluence of neurobiology and psychoanalysis, with
emphasis on the study of the relationship among dream, memory and the unconscious.
Key-words: psychoanalysis, refutation, science.
Instituto do Cérebro, Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Correspondência: Sidarta Ribeiro, Instituto do Cérebro, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Av. Nascimento de Castro 2155, 90560-450 Natal RN, Tel: (84) 3215-2709,
E-mail: [email protected]
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Um outro ramo muito mais significativo de
investigação psicológica originário da psiquiatria permanece notavelmente isolado e
desconectado, embora mereça mais que qualquer outro campo da psicologia ser chamado
de científico [...] por mais que rejeitemos o
edifício teórico construído por Sigmund Freud
e Carl Jung, [...] não pode haver dúvida de que
ambos foram observadores talentosos que
assinalaram pela primeira vez certos fatos
irrevogáveis e inalienáveis do comportamento
coletivo humano.
Konrad Lorenz [1]
Há 156 anos nascia na Morávia,
atual República Tcheca, um dos mais
ambiciosos e influentes pensadores de
todos os tempos. Excelente escritor,
arrojado, prolífico e criativo, Sigmund
Freud construiu uma ampla teoria sobre
a arquitetura e funcionamento da mente,
inicialmente com grandes repercussões
na biologia e medicina [2]. Fez múltiplas
descobertas seminais sobre a psicologia
humana, desenvolveu um revolucionário
método terapêutico, conjurou um círculo
influente de colaboradores, cultivou discípulos fervorosos e delineou um campo de
investigação inteiramente novo, equipado
com métodos e terminologias próprios:
a psicanálise. Em vida, Freud enfrentou
ferrenha oposição, até que a perseguição
do nazismo o levou ao exílio e à morte.
Entretanto, nada conseguiu impedir que
as idéias desse judeu descobridor da
sexualidade infantil, pioneiro da investigação do inconsciente e da escuta atenta
do paciente invadissem a mentalidade
ocidental. Com o tempo a teoria freudiana ultrapassou suas fronteiras originais
no âmbito da psiquiatria, extravasando
para as ciências humanas e as artes.
A onipresença no vocabulário leigo de
conceitos como “inconsciente”, “ego”,
“repressão” e “complexo de Édipo“ revela
a profunda influência da teoria freudiana
no imaginário coletivo.
Mesmo assim, não é exagero dizer
que Freud “ganhou mas não levou”. Se
abriu portas e janelas nas Humanidades,
não encontrou morada dentro da própria
Ciência. Veementemente questionado
pela psiquiatria de seu tempo, Freud foi
rejeitado pelas gerações seguintes de
neurocientistas, até tornar-se alvo de
desprezo a priori, indigno mesmo de ser
lido e debatido seriamente. Essa ojeriza
a Freud remonta à sua descrição do fenômeno onírico como chave essencial para
compreender a psiquê, através da relação
com os pensamentos inconscientes, os
delírios e a transformação simbólica das
memórias indesejadas. No início dos
anos 1950 descobriu-se que os sonhos
coincidem quase sempre com uma fase
específica do sono, marcada por movimentos rápidos dos olhos [3,4]. A existência desse estado cerebral conhecido
como sono REM (acrônimo de rapid-eye-movement) foi interpretada como um golpe na teoria freudiana, reduzindo o sonho
a um mero estado fisiológico de precisa
definição mas limitada transcendência
[5]. Quase concomitantemente veio
um segundo ataque, com a descoberta
e rápida disseminação terapêutica da
primeira geração de drogas capazes de
debelar surtos psicóticos sem qualquer
necessidade de escutar o paciente falar
sobre suas vivências [6]. Essas drogas
atuam como antagonistas do neurotransmissor dopamina, e seu advento pareceu
retirar a psicose da nebulosa esfera do
sonho para remetê-la ao mundo concreto
da farmacologia. O golpe de misericórdia
em Freud foram as tentativas fracassadas
de corroborar sua teoria das neuroses,
segundo a qual traumas psicológicos
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se expressam como sintomas físicos
aparentemente não relacionados com
suas causas, mas tratáveis pela tomada
de consciência do trauma gerador. Até
mesmo por sua natureza idiossincrática,
a cura pela palavra permanece controvertida até hoje.
O descrédito científico da psicanálise teve profundas consequências. A
despeito da origem acadêmica de Freud,
os círculos psicanalíticos se voltaram progressivamente para o universo da cultura,
afastando-se cada vez mais do empirismo quantitativo da biologia, química e
física. Algumas vertentes, em especial a
Lacaniana, se entregaram ao sectarismo
reativo e ao culto à personalidade, gerando um triunfalismo anti-científico que
abdicou integralmente da pesquisa neural
e teve resultados desastrosos para a inserção biomédica da psicanálise a partir
dos anos 1960. O divórcio foi expresso
de forma cabal pelo filósofo Karl Popper,
quando afirmou que a psicanálise é intrinsecamente incapaz de produzir hipóteses
testáveis. Desde então, vulgarizou-se a
opinião de que Freud não construiu ciência alguma e sim uma coleção estapafúrdia de metáforas mitológicas, uma teoria
irrefutável por meio de experimentos que
não passaria, portanto, de metafísica.
Nas palavras de Popper, “a psicanálise
é simplesmente não-testável, irrefutável.
Não há comportamento humano concebível que possa contradizê-la” [7]. Assim,
se é inquestionável que a teoria de Freud
impregnou a cultura ocidental, também
é forçoso reconhecer que o fez de uma
forma banalizada, massificada e pop. Nos
últimos 70 anos, Freud foi considerado
tão relevante para a neurociência quanto
Marx para o mercado de ações ou Darwin
para os neo-criacionistas. Parafraseando
o biólogo Alfred Kinsey, se todos são
freudianos, então ninguém é freudiano.
Tratado ao longo do século XX como
profeta, depravado ou charlatão, eis que
neste início de milênio o velho Sigmund
regressa ao centro da pesquisa neurocientífica, ressurgindo em tantas frentes
distintas de investigação que já não se
pode ignorá-lo. Um dos temas freudianos
mais centrais são as reminiscências da
vigília dentro do sonho. Tais “restos diurnos” já foram extensamente observados
em humanos e roedores durante ambas
as fases do sono, tanto a nível molecular
[8-11] quanto eletrofisiológico [12-14].
Sabemos hoje que a interrupção da interferência sensorial que o sono propicia
induz uma reverberação mnemônica que
é crucial para a consolidação duradoura
do aprendizado [15,16]. Uma tradução
neurobiológica de conceitos clássicos da
psicanálise permite atualizar a famosa
afirmação freudiana de que “o sonho é
o caminho real para o inconsciente”: enquanto as memórias correspondem aos
“conglomerados de formações psíquicas”, sua totalidade, o banco completo
de memórias adquiridas pelo indivíduo
(e todas suas combinações possíveis),
constitui “o inconsciente”.
Embora apareça nas obras de Paracelsus, Spinoza, Leibniz, Schelling,
Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche,
William James e Dostoievski, foi apenas
a partir de Freud que o inconsciente
passou a ocupar um lugar dominante na
Psicologia. Nesse sentido, dois conceitos
estritamente associados à obra freudiana
são a repressão inconsciente e a supressão consciente de memórias. Através
de estudos de ressonância magnética
funcional, descobriu-se que a supressão
de memórias indesejadas, pioneiramente
descrita por Freud, não apenas existe
objetivamente como requer uma desa-
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tivação de regiões cerebrais dedicadas
às memórias e emoções (hipocampo e
amígdala), através da ativação de porções
relacionadas à intencionalidade (córtex
pré-frontal) [17,18].
Quanto à sexualidade infantil,
escandalosa na Viena do século XIX,
sabemos hoje que se trata de um componente normal do desenvolvimento da
criança, tornando-se horrenda apenas
quando abusada por adultos. O que
nos conduz a uma das partes mais polêmicas da teoria freudiana, justamente
a noção de que traumas psicológicos
podem ocasionar sintomas comportamentais graves. Por décadas a ciência
permaneceu cética a esse respeito,
pois duvidava-se de que a exposição
precoce a estímulos aversivos poderia
marcar uma pessoa de forma perene,
sobrepujando determinações genéticas
“saudáveis”. Tal opinião mudou radicalmente com a descoberta de alterações
hereditárias na expressão de genes e
de fenótipos celulares através de mecanismos que não envolvem alterações
na sequência dos nucleotídeos, mas
sim modificações químicas do ADN capazes de afetar células germinativas e
portanto se transferir para a prole. Um
exemplo particularmente impactante
foi a demonstração de que a regulação
epigenética do receptor glucocorticóide
no hipocampo humano está associada
ao abuso durante a infância [19]. Nesse
estudo, descobriu-se que um grupo de
suicidas com histórico de abuso infantil
expressava menor quantidade de receptores glucocorticóides no hipocampo,
associada à metilação do promotor do
gene que codifica tais receptores. Ao
reduzir a taxa de transcrição do gene e
consequentemente diminuir os níveis de
receptores, essa metilação pode haver
tornado os indivíduos menos tolerantes
ao estresse, levando-os ao suicídio.
Talvez a objeção mais cáustica à
psicanálise seja a afirmação de que seu
objeto de pesquisa, o mundo das idéias,
é irremediavelmente opaco à observação
direta. Mas até essa crítica vem sendo
refutada pela pesquisa neurocientífica recente, em face dos avanços tecnológicos
que permitem o estudo não-invasivo do
conteúdo mental [20]. Se vivo estivesse,
Freud provavelmente levaria o divã para
dentro de um scanner de ressonância
magnética. De todo modo, a rememoração do trauma num contexto de estimulação sensorial amena, típica do setting
psicoanalítico, se assemelha bastante
ao que ocorre em outras técnicas psicoterápicas validadas pela medicina para
o tratamento do transtorno de estresse
pós-traumático, como a estimulação
repetitiva, o relaxamento, a habituação
ao relato traumático, a reinterpretação
cognitiva em contexto não-ameaçador,
e o uso de fármacos capazes de enfraquecer a memória traumática após sua
evocação. Para além da questão clínica,
é preciso reconhecer que a psicanálise
muitas vezes não objetiva a cura, nem
termina por si mesma. Uma de suas funções mais importantes é dar sentido ao
complexo conjunto de símbolos que cada
um carrega em si, servindo não necessariamente para atingir a cura, mas para o
auto-conhecimento. Se a dor é inerente à
condição humana, a psicanálise propõe
fazer da própria vida uma obra de arte.
É chegada a hora do retorno de Freud
ao seio da neurociência. Para isso será
preciso dissolver os preconceitos mútuos
entre psicanalistas e neurocientistas. Os
psicanalistas temem, com certa razão,
que a ciência invada seus domínios de
forma arrogante, prenhe de chauvinismo
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reducionista, com a tirania da eficácia
objetiva, ignorante e desprovida de introspecção. Também têm receio de sair do
refúgio seguro que o isolamento provê. A
própria tradição freudiana, historicamente
fragmentada em guetos beligerantes,
padece da carência de diálogo. O desenvolvimento da teoria fundada por Freud
clama por novas sínteses fundadas no
empirismo biológico. Por outro lado, é
premente reconhecer a importância da
psicanálise para a neurociência. Freud
não é descartável nem mera curiosidade
histórica. Ao contrário, ele nos legou
um extenso programa de pesquisa, rico
em observações relevantes e hipóteses
testáveis, um verdadeiro projeto para
uma psicologia científica. É preciso reler
sua obra com os olhos do presente, testando as idéias e reformando o edifício
herdado. A língua franca desse releitura
é a investigação experimental da relação
entre mente e cérebro.
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Perspectiva
Reconhecimento do próprio
pelo sistema imune inato
Marcello André Barcinski
O problema da discriminação entre
o próprio e o não-próprio está indelevelmente ligado à história da imunologia.
Se por um lado este conceito, na sua
formulação original, aparentemente não
resistiu à prova do tempo, por outro ele
serviu, e muito bem, para a construção
da base teórica sobre a qual repousa o
nosso conhecimento sobre os mecanismos de cognição pelo sistema imune de
vertebrados mandibulados [1,2].
Há alguns anos, Polly Matzinger fez
um interessante relato histórico e uma
análise crítica dos diferentes modelos
propostos para explicar o reconhecimento
imunológico, que se seguiram à postulação de Burnet [3,4]. Em 1970 Bretscher
e Cohn [5] propuseram a necessidade
de um segundo sinal para a correta e
eficiente ativação específica dos linfócitos B. Segundo estes autores este sinal
seria gerado por uma outra célula que não
os linfócitos B e que foi posteriormente
caracterizada como uma célula T auxiliar
(helper). A lógica de Bretscher e Cohn
para a postulação de um duplo sinal foi
a de que este mecanismo de cooperação diminuiria as possibilidade de uma
resposta auto-imune. O reconhecimento
antigênico por células B na ausência do
segundo sinal induziria a morte deste
linfócito. Em 1975 Lafferty e Cunningham
[6] partindo de observações oriundas da
transplantologia experimental e de estudos em doenças auto-imunes, sugeriram,
que também as células T necessitam de
um segundo sinal para a sua ativação.
Este seria fornecido por células hoje
conhecidas como células apresentadoras de antígeno (macrófagos e células
dendríticas).
É interessante notar que ambas
as propostas acima descritas foram
formulações hipotéticas confirmadas experimentalmente alguns anos mais tarde.
A hipótese dos dois sinais de Bretscher
e Cohn, confirmada pela descrição da
células T-auxiliar (helper T-cell) como já
Laboratório de Biologia Celular, Instituto Oswaldo Cruz
Correspondência: Fundação Oswaldo Cruz, Instituto Oswaldo Cruz, Av. Brasil 4365
Manguinhos 21040-360 Rio de Janeiro RJ, Tel: (11) 2562-1368, E-mail: [email protected]
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descrito acima, e a de Lafferty e Cunnigham pelas observações de Jenkins e
Schwartz em 1987 [7] de que macrófagos
fixados não eram capazes de ativar células T específicas e que o reconhecimento
imunológico na ausência de sinais co-estimulatórios era tolerogênico [8].
Os sinais co-estimulatórios foram
posteriormente identificados como as
moléculas B7.1, B7-2, CD28, CTLA-4 e
CD40 e seu ligante e introduziram um
novo nível de complexidade ao fenômeno da regulação da resposta imune [8].
Uma consideração interessante é a de
que enquanto a idéia de um segundo
sinal de cuja gênese participa um linfócito T, foi imediatamente aceita pela
comunidade imunológica da época; o
mesmo não foi verdade para a sinalização via macrófago. Uma interpretação
possível é a de que esta última célula,
por não possuir receptores específicos
para antígenos, mas, ao contrário, ser
capaz de internalizar qualquer molécula
ou partícula, não poderia participar de
um mecanismo finamente controlado e
com alto poder discriminatório como é o
reconhecimento antigênico. É importante
chamar a atenção para o fato de que, apesar dos primeiros trabalhos publicados
descrevendo a apresentação de fragmentos antigênicos por macrófagos [9-12]
serem da mesma época da formulação
dos modelos de Bretscher e Cohn e de
Lafferty e Cunnigham, o aceite definitivo
da noção de que macrófagos - e posteriormente também células dendríticas eram capazes de apresentar fragmentos
antigênicos para células T, via moléculas
de histocompatibilidade, só aconteceu
muitos anos mais tarde. Um verdadeiro
corte epistemológico aconteceu em 1989
quando Charles Janeway [13] redefiniu
e restringiu a noção do “não-próprio”,
reconhecido pelo sistema imune, ao “não-próprio infeccioso” conseguindo assim,
pelo menos aparentemente, a síntese da
dicotomia do “próprio” e do “não-próprio”.
Segundo Janeway, uma série de receptores, geneticamente codificados, expressos em macrófagos e em outras células
do sistema imune inato reconhecem
estruturas caracteristicamente presentes
em microrganismos patogênicos e
ausentes nos seus hospedeiros. O reconhecimento destas moléculas confere
ao sistema imune a competência de
distinguir o “próprio“ do “não próprio
infeccioso” e assim iniciar uma resposta
inflamatória e eventualmente imunoprotetora [14].
As moléculas presentes nos microrganismos patogênicos e reconhecidas
pelos receptores da resposta imune
inata foram coletivamente chamadas de
PAMPS (pathogen-associated molecular
patterns- padrões moleculares associados a patógenos) e os receptores que
as reconhecem foram chamados de PRR
(pathogen recognition receptores- receptores que reconhecem patógenos). Diferentes PAMPS caracterizam diferentes
microrganismos patogênicos, desde vírus
até protozoários e diferentes receptores
reconhecem padrões moleculares que
definem um conjunto de patógenos.
O modelo de Janeway reviveu e impulsionou os estudos sobre o sistema imune
inato, sedimentou o conceitos da apresentação de antígeno e de co-estimulação
e motivou a caracterização molecular e
funcional dos PRR como TLRs (Toll-like
receptors) que conferiram a Hoffman e
Beutler o premio Nobel de 2011.
Finalmente, Polly Matzinger postula
o modelo do perigo (Danger model) [15]
sugerindo que as células apresentadoras
de antígeno são ativadas por sinais de
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perigo provenientes de células e tecidos
que sofreram traumas ou injurias de
diferentes origens tais como infecções,
venenos ou toxinas, irradiações, lesões
mecânicas e outras.
A mudança conceitual gerada por
este modelo está no fato de que enquanto
nos modelos anteriormente propostos a
qualidade e a intensidade da resposta
imune eram definidas por células e sinais
do próprio sistema, no modelo do perigo
o controle é exercido por todos as células
e tecidos de um organismo. Tecidos saudáveis geram tolerância e tecidos lesados
geram imunidade.
Uma consequência importante do
modelo foi definida quando da descrição
da morte por apoptose em contraposição
à morte por necrose: a primeira era tolerogênica enquanto que a segunda era
imunogênica. Por razões que seriam mais
apropriadamente discutidas em um artigo
sobre história ou sociologia da ciência a
hipótese de Polly Matzinger foi recebida
como uma curiosidade inteligente e
criativa, mas que carecia de uma sólido
base experimental e assim encarada
com muito ceticismo pela comunidade
imunológica da época.
A idéia do perigo como gerador de moléculas capazes de ativar o sistema imune inato reviveu, sem necessariamente
dar o merecido crédito a Polly Matzinger,
incorporando os DAMPs (danger associated molecular patterns) ao repertório de
possíveis ligantes de TLRs, como uma
alternativa (não mutuamente exclusivas)
aos PAMPs de Janeway.
Para este renascimento contribuíram os trabalhos que importaram para
as doenças infecciosas em animais, os
conceitos de resistência e tolerância
(não confundir com tolerância imunológica) oriundos da patologia vegetal.
Infectologistas e imunologistas em geral
assumem que a estratégia de defesa
de um organismo envolve mecanismos
que bloqueiam a invasão ou eliminam
o microrganismo patogênico [16]. No
entanto o hospedeiro pode também se
defender limitando o dano tecidual causado por uma infecção. Resistência, neste
contexto, é definida como a capacidade
de limitar a carga infectiva enquanto que
tolerância é definida como a capacidade
de limitar o dano tecidual induzido pelo
microrganismo patogênico incluindo-se
aqueles gerados por fenômenos inflamatórios e imunopatológicos [16]. De
fato, um trauma físico pode causar efeitos teciduais semelhantes ou idênticos
àqueles causados por microrganismos
patogênicos. No entanto as respostas
esperadas e obtidas em cada uma das
situações podem ser muito diferentes.
A diferença de sinalização entre
PAMPs (ligantes exógenos) e DAMPs
(ligantes endógenos) foi experimentalmente evidenciada [17] em um modelo
de necrose hepática induzida por um
agente tóxico e portanto na ausência
de infecção. O fígado de camundongos
tratados com um agente hepatotóxico
liberam HMGB1(high mobility group Box
1) um componente da cromatina. HMGB,
à semelhança de alguns PAMPs, liga-se
aos receptores TLR2, TLR4 e TLR9 e induz
uma reação inflamatória mimetizando
PAMPs. No entanto HMGB1 liga-se também a outros receptores de membrana
(e.g. CD-24) e uma lectina ligadora de
ácido siálico (Siglec-G). A sinalização
induzida pela interação HMGB1 com
CD-24 e a consequente formação de um
complexo com Siglec-G modificam a sinalização via HMGB1/TLR, inibindo o dano
tecidual causado pela ativação de NFkB
(Figura 1) [18].
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Figura 1 – Sinais de perigo. Sinais exógenos e endógenos, como bactérias e molécu-
las de células hospedeiras respectivamente, induzem a resposta inflamatória através
receptores Toll-like. No entanto, uma via de sinalização específica limita a resposta aos
sinais endógenos. Este mecanismo pode prevenir uma resposta imunológica descontrolada a lesões induzidas por agentes físicos [18].
O complexo CD24/Siglec G reconhece também, por exemplo, proteínas de
choque térmico (DAMPs) mas não reconhece LPS, um típico PAMP característico
de bactérias Gram negativas. Um fato
interessante é o de que ambos, HMGB1
e os TLRs são filogeneticamente mais
antigos do que CD-24 e Siglec G que
só surgiram nos vertebrados. Este dado
sugere que o sistema de controle pelos
DAMPs foi evolutivamente co-optado pelo
sistema de ativação via TLRs. Hoje já
existem bem caracterizados um grande
numero de ligantes endógenos com TLRs
definidos como seus receptores; dentre
eles proteínas e peptídeos, ácidos graxos
e fosfolipídios, proteoglicanas e glicosaminoglicanas e ácidos nucléicos isolados
ou complexados a proteínas [19]. Assim
como em uma resposta imune descon-
trolada são observados efeitos colaterais
eventualmente danosos ao organismo,
também a ativação por níveis elevados de
DAMPs pode ser responsável por várias
patologias de natureza inflamatória e
autoimune inclusive a aterosclerose - doença para a qual alguns autores atribuem
uma origem inflamatória/infecciosa – e
câncer [19,20].
O ciclo histórico aqui descrito chama
a atenção para o sistema imune inato
como uma nova forma de operacionalizar
a discriminação entre o próprio e o nãopróprio: não no reconhecimento mas no
controle da efetuação. Não deixa de ser
irônico que um sistema desprovido da
sofisticada organização em receptores
idiotípicos clonalmente distribuídos, possa exercer uma das mais nobres funções
do sistema imune.
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Neste contexto é importante chamar
a atenção para a hipótese de que entre
as pressões seletivas responsáveis pelo
evolução de um sistema imune adaptativo
esteja o da necessidade de discriminação entre MAMPs (microbial associated
molecular patterns) e PAMPs (pathogen
associated molecular patterns) presentes
na flora bacteriana de vertebrados [19].
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Artigo original
A redundante composição antigênica
do universo biológico, o parasitismo e o
desafio da tolerância aos auto-antígenos
The redundant antigenic composition of the biological
universe, the parasitism and the challenge
of maintaining tolerance to self-antigens
Yuri Chaves Martins*, Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro**
Os autores dedicam este trabalho a Raymond Damian, extraordinário cientista que, vislumbrando
as potenciais consequências imunológicas do compartilhamento antigênico entre parasitos e seu
hospedeiros, criou o conceito de “mimetismo molecular”, no início dos anos 60.
Resumo
No presente artigo, discorremos sobre o fenômeno da resposta imune a agentes patogênicos, sob a ótica
do desafio da manutenção da tolerância aos auto-antígenos (auto-Ag), que porventura se assemelhem
a antígenos (Ag) microbianos e parasitários, em caso de infecção. Para tal, usamos uma abordagem
holística utilizando ferramentas de bioinformática aliadas ao crescente corpo de informação disponível
sobre o genoma e proteoma dos diferentes organismos que habitam nosso planeta. Concluímos que,
embora o compartilhamento de Ag entre patógenos e seus hospedeiros seja lugar comum, tal fenômeno
não constitui, via de regra, um risco para a indução de doenças auto-imunes em presença de mecanismos
íntegros de regulação da resposta imune.
Palavras-chave: genoma, proteoma, bioinformática.
*Médico e Doutorando em Imunologia do Laboratório de Inflamação e Imunidade, Departamento de
Imunologia, Instituto de Microbiologia Prof. Paulo de Góes, Universidade Federal do Rio de Janeiro
(programa MD/PhD), **Médico e Doutor em Biologia Humana, Membro da Academia Nacional de Medicina, Pesquisador Titular da Fiocruz e do CNPq, Cientista do nosso Estado da Faperj e Coordenador do
Centro de Pesquisa, Diagnóstico e Treinamento em Malária da Fiocruz
Correspondência: Yuri Chaves Martins, Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro, Instituto Oswaldo Cruz – Fiocruz,
Laboratório de Pesquisas em Malária, Av. Brasil 4365, Pavilhão Leônidas Deane, 5º andar 21045-900 Rio
de Janeiro RJ, Tel/Fax: (21) 3865-8145, E-mail: [email protected], [email protected]
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Abstract
In the present paper, we consider and discuss the phenomenon of immune response to pathogens,
from the perspective of the challenge of maintaining immune tolerance to self-antigens (self-Ag), that may
resemble microbial and parasitic antigens (Ag), in case of infection. We use a holistic approach using
bioinformatics tools allied to the growing amount of information available about the genome and proteome
of different organisms. We conclude that, although the Ag sharing between pathogens and their hosts is
a common place, the induction of autoimmune pathology as a result of infection, is not an usual risk in
the presence of intact mechanisms of immune response regulation.
Key-words: genome, proteome, bioinformatics
Introdução sobre a identidade
protéica entre os organismos (ou a
redundância de proteomas) como
decorrência da evolução genética
Somos todos feitos das mesmas coisas...
Para construir os objetos de que
nos servimos, desde as mais primitivas
ferramentas manufaturadas no paleolítico superior até os tempos atuais, o
homem se utiliza de um conjunto finito
de materiais. Assim, se o leitor olhar
para qualquer objeto ao seu alcance
visual perceberá que a matéria de que
é feito também compõe a estrutura de
outros elementos à sua volta. A cadeira
na qual provavelmente está sentado
pode ser feita de madeira, o mesmo
material, possivelmente, da mesa na
qual repousa este artigo. A caneta que
usa para tomar nota também terá, em
sua composição, o plástico de que é,
parcialmente, composto o computador
(no qual se encontra o arquivo PDF deste documento), que igualmente terá em
sua estrutura o mesmo aço que compõe
a pulseira de seu relógio que pode, entretanto, ser feita de couro, como o que
forra o assento da cadeira. Terão, ainda,
composição similar entre si o carpete
que cobre o assoalho antigo e a cortina
que, entreaberta, permite a entrada da
luz necessária para a leitura de nosso
texto. Pode ser que sua mesa tenha uma
jarra para água, feita de cerâmica, como
o ornamento trazido de uma viagem à
Amazônia, ou de vidro, como aquele que
cobre o tampo da mesa ou o que integra a lente que há em seu porta-lápis,
igualmente feito de madeira... ou de aço.
Do mesmo modo, os seres vivos
que habitam o planeta são feitos de um
conjunto finito de estruturas e substâncias redundantesI. Quando falamos de
redundância no nível molecular não nos
referimos à composição básica de todos
organismos em proteínas, açúcares e
lipídios, mas sim ao fato de que grande
parte das diversas estruturas formadas
por esses componentes básicos também
foram conservadas durante o curso de
evolução dos diversos seres vivos e algumas delas podem estar presentes em
todos ou na grande maioria destes.
I
O objetivo da comparação não é, obviamente,
induzir o leitor à uma visão criacionista da origem
das coisas, não é nossa praia. A proposta é apenas
ilustrar que, assim como o homem faz, devido a
forças econômicas, com os objetos que manufatura, as forças evolutivas também tendem a fazer
com que a natureza mantenha e reaproveite os
materiais e estruturas que dão certo ao longo do
tempo. Assim como o homem usa o mesmo metal
para fazer trilhos de trem, chaves de fenda, agulhas
e estrutura de prédios, porque este é um material
durável e disponível em larga escala a preços
abordáveis, a natureza também utiliza sequências
de aminoácidos parecidas para formar as partes
constantes das imunoglobulinas e dos receptores
de células T e de tantas outras proteínas.
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Tal ocorrência está de acordo com
uma moderna “teoria da evolução”II, que
defende que os organismos evolucionam
através do acúmulo sucessivo de mutações em seu genoma, que acaba por
gerar alterações em seus proteomas,
com consequentes mudanças em sua
capacidade de metabolizar e gerar novos
açúcares e lipídios. Estas, caso constituam uma vantagem evolutiva, são passadas aos seus descendentes. Contudo, na
maioria das vezes, as mutações ocorrem
ao acaso e não resultam em nenhuma alteração significativa ou geram consequências desvantajosas para a evolução do
organismo (uma desvantagem evolutiva),
que tenderia, então, a se extinguir. Desse modo, os organismos vivos tendem
à manutenção de seu próprio código
genético, que se terá provado funcional
ao longo de sua evolução, e desenvolvem
mecanismos para evitar que mutações
ocorram em seus respectivos genomas.
Uma descrição detalhada dos diversos
mecanismos que garantem a manutenção
do código genético e dos que geram variabilidade de uma maneira controlada está
além do escopo do presente artigo. Podemos citar, entretanto, o mecanismo de
correção de erros na replicação do DNA
existente em algumas formas da enzima
DNA polimerase como um mecanismo de
manutenção da integridade genética e o
sexo como um mecanismo de geração de
variabilidade [1,2].
Como há um equilíbrio evolutivo entre
forças que estimulam variabilidade e muII
A moderna teoria da evolução denota a combinação
da teoria da evolução das espécies por meio de
seleção natural proposta pelo naturalista britânico
Charles Robert Darwin (1809-1882), a genética
como base para a herança biológica descrita pelo
monge agostiniano, botânico e meteorologista
austríaco Gregor Johann Mendel (1822-1884) e a
genética de populações.
danças estruturais por um lado e forças
que tendem a preservar o genoma e,
consequentemente, o proteoma dos diferentes organismos, a pergunta que deriva
naturalmente dessas observações é qual
seria o grau de homologia estrutural entre
os diversos organismos vivos conhecidos.
A realização de estudos comparando o conjunto de genes (genomas) e de
proteínas (proteomas) que compõem
os organismos de diferentes espécies
é possibilitada pelo desenvolvimento
de ferramentas de bioinformática e sequenciamento genético, e nos permite
responder a essa pergunta. O grau de
homologia entre proteomas diferentes é
uma medida da semelhança estrutural
entre dois organismos e a comparação
dos proteomas (e genomas) de organismos considerados filogeneticamente
próximos possibilita a inferência do grau
de parentesco entre eles e a obtenção
de indícios da existência de algum ancestral comum em suas origens [3]. A
quantidade de estudos desse tipo está
crescendo com o aumento do número de
genomas sequenciados disponíveis nos
bancos de dados e com a disponibilidade das ferramentas de bioinformática
necessárias para realização desse tipo
de análise [3-6].
Por exemplo, a análise do proteoma
humano após o sequenciamento do nosso genoma revelou que menos de 1%
das nossas proteínas são encontradas
exclusivamente na nossa espécie [3],
ou seja, foi possível encontrar proteínas
com grau de homologia suficiente para
se estabelecer parentesco com outras
espécies conhecidas em mais de 99%
dos casos. Isso não quer dizer que podemos encontrar proteínas idênticas às
nossas nos outros organismos em 99%
dos casos, mas que 99% das proteínas
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codificadas pelo nosso genoma tem
um grau de identidade suficientemente
grande com alguma proteína existente
em algum outro organismo a ponto de
podermos ter um grau elevado de certeza
de que elas tiveram um ancestral comum
no passado. O grau de identidade protéica
se acentua com a proximidade evolutiva
das espécies. Desse modo, quando
comparamos o proteoma do camundongo
(Mus musculus) com o humano, 80% das
proteínas possuem um único ortólogoIII
no nosso proteoma e vice-versa. Dentre
essas proteínas, o grau de identidade
na sequência primária de aminoácidos
é 70,1% (mediana igual a 78,5%), um
grau de identidade bastante alto que
reflete o fato de serem ambos os organismos mamíferos [4]. Contudo, quando
comparamos nosso proteoma com o do
chimpanzé (Pan troglodytes), considerado
nosso parente mais próximo na escala
evolutiva, observamos que em torno de
92% das proteínas possuem um único
ortólogo no nosso proteoma [5] e estas
são extremamente semelhantes, sendo
29% delas idênticas em sua sequência
primária de aminoácidos e a grande maioria das demais diferindo em apenas um
ou dois aminoácidos [6].
Se tais metodologias permitem inferir,
a partir das semelhanças genômicas e
proteômicas, a proximidade filogenética
de duas espécies, elas também facultam
a realização de estudos sobre o sucesso
ou insucesso adaptativo da relação de
parasitismo que microorganismos podem
manter com organismos vertebrados. Semelhanças proteicas entre a samambaia,
a bananeira, a vaca, o chimpanzé e o homem são informativas sob o ponto de vista
evolucionário. Por outro lado, as similaridades protéicas (e, portanto, antigênicas)
no caso de seus hospedeiros dotados de
um sistema imune com capacidade de
resposta imune adaptativa específica e microrganismos infecciosos (os Schistosoma
ou a Fasciola hepatica) podem ser úteis
para o estudo e o entendimento do grau
de sucesso ou insucesso da relação de
parasitismo que essas espécies mantém
entre elas. Essa questão foi, inicialmente,
averiguada com o auxílio de ferramentas
imunológicas que permitem estudar a semelhança dos constituintes de diferentes
organismos sob o ponto de vista de sua
antigenicidade (falamos, então, de antígenos e determinantes antigênicos, em vez
de em proteínas e sequências de aminoácidos). Contudo, ela também pode ser
estudada com o auxílio das metodologias
que nos possibilitam a comparação de
proteomas entre os diferentes seres vivos.
Tal abordagem, nova e elegante, nos permite tratar de paradigmas da imunologia,
como compartilhamento de antígenos (Ag)
(antigen sharing) e mimetismo molecular
(molecular mimicry) e suas potenciais implicações para a manutenção da tolerância
aos nossos próprios constituintes (próprio
ou self) e para a prevenção do desenvolvimento de autoimunidade.
III
O conceito de mimetismo molecular (molecular mimicry) foi cunhado por
Genes ou proteínas ortólogos ou ortólogas são
genes ou proteínas similares, mas que estão presentes em duas espécies diferentes.
O Mimetismo molecular (molecular
mimicry) e a hipótese da rainha
vermelha (the red queen hypothesis)
Most people are other people.
Their thoughts are someone
else’s opinions, their lives a mimicry,
their passions a quotation. (Oscar Wilde)
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Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
Raymond T. Damian em 1964 a partir da
observação do compartilhamento de Ag
(antigen sharing) entre parasitas e hospedeiros [7]. Segundo Damian, parasitas
tenderiam a ter estruturas semelhantes
a seus hospedeiros, pois isto corresponderia à uma vantagem seletiva para
escapar da resposta imune, que aqueles
suscitam nestes, que não os reconheceriam como estranhos ao organismo [8]. A
inferência teórica para a definição desse
mecanismo de adaptação parasitária é
a de que microrganismos com maior semelhança antigênica com o hospedeiro
teriam menos chances de serem reconhecidos, agredidos imunologicamente e
expulsos. Conclui-se, em consequência,
que, inversamente, o insucesso desse
mecanismo de mimetismo por compartilhamento antigênico poderia submeter
os hospedeiros ao risco de desenvolvimento de uma resposta imune dirigida
contra Ag comuns aos dois organismos
levando a uma reação auto-imune e à
agressão do próprio hospedeiro (auto-agressão).
Outra vantagem seletiva para a presença de estruturas homólogas em parasitas seria a de reconhecer e responder
a sinais fisiológicos presentes no meio
e, não somente escapar, mas também
modular a resposta imune do hospedeiro
de um modo a facilitar a sua sobrevivência. Damian se baseou no conceito
de mimetismo criado no século XIX por
Henry Walter Bates para explicar porque
determinadas borboletas encontradas
na Amazônia Brasileira e consideradas
saborosas por seus predadores tendiam
a se parecer com outra espécie menos
palatável, evitando, desse modo, ser o
prato principal do dia [9].
As primeiras evidências de mimetismo molecular foram obtidas quando
se percebeu, com o auxílio de métodos
– tão antigos quanto pouco sensíveis
– de imunoprecipitação, que anti-soros
contra parasitos também reagiam contra Ag de seus hospedeiros [10-12]. Os
autores estudaram “comunidades antigênicas” em extratos de 12 espécies de
cestódeos, 12 de nematódeos e 12 de
trematódeos, alem de boi, camundongo,
cão, carneiro, cavalo, galo, gato, porco,
rato, sapo, homem e de caramujos e
concluíram que quanto mais próximo do
hospedeiro, mais homologia antigênica
era observada.
Posteriormente, com a utilização
de novas técnicas como anticorpos
(Ac) monoclonais e clonagem molecular, verificou-se que parasitos e outros
organismos infecciosos em geral compartilham Ag com os seus hospedeiros.
Assim, Schistossoma mansoni e Fasciola hepatica são capazes de sintetizar
Ag de grupo sanguíneo [13-15], muitos
helmintos patogênicos são capazes de
sintetizar o Ag Forssman (globopentosylceramida), um glicolipídio envolvido na
formação de tight junctions que participa
na adesão celular) [16]. Esse Ag corresponde a um auto-Ag em cães, carneiros,
cavalos, gatos, tartarugas, e está presente em ovas de alguns peixes e certas
bactérias (algumas cepas de enterobactérias e pneumococos) e é base para a
sorologia da mononucleose infecciosa.
A proteína de circumsporozoíta (CSP)
de Plasmodium falciparum possui um
motivo de 18 aminoácidos praticamente
idêntico à região citoadesiva da trombospondina [17-19], Neisseria meningitidis
e Escherichia coli possuem Ag capsulares com semelhança estrutural com
glicopeptídeos cerebrais humanos [20].
Homólogos funcionais de diversas citocinas, quimiocinas, enzimas, proteínas
Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
do citoesqueleto celular [21] e fatores
de crescimento humanos já foram descritos em vírus [22], tripanosomas [23],
helmintos [24,25] e bactérias [26]...
Foge ao escopo deste documento,
mas um fenômeno diferente, também
classificável como mimetismo molecular segundo alguns autores, é o fato
de microrganismos possuírem, em sua
superfície, estruturas responsáveis por
aderir moléculas do hospedeiro. Por
exemplo, alguns vírus como o da imunodeficiência adquirida (HIV) [27], bactérias patogênicas [28], Echinococcus
granulosus [29] e Onchocerca volvulus
[30] são capazes de aderir a inibidores
do complemento presentes no plasma
sanguíneo e Trypanosoma cruzi e Trypanosoma brucei possuem trans-sialiases
que transferem ácido ciálico de células
do hospedeiro para a superfície desses
parasitas [31]. Tal mecanismo pode
facilitar ou promover a indução de resposta imune favorável ao microrganismo.
Partículas de poxvirus formadas durante
o processo de replicação viral e tripanosomatídeos podem ser recobertos com
fosfolipídios do hospedeiro, passando
a se assemelhar a corpos apoptóticos,
o que facilita a fagocitose por células
do hospedeiro, como macrófagos, promove a replicação viral e beneficia ao
microrganismo [32,33]. Além disso, a
presença de receptores para citocinas
humanas capazes de transdução de
sinal e ativação de vias metabólicas e a
produção e secreção de substancias capazes de modular a expansão e diferenciação de linfócitos T já foram descritos
em protozoários demonstrando que o
mimetismo molecular pode ser também
funcional e não somente estrutural [34].
Ao mesmo tempo em que parasitas
se beneficiam de fenômenos que podem
representar formas de escape à resposta
imune do hospedeiro e vitória sobre as
barreiras impostas às suas sobrevivências, espécies hospedeiras de parasitos
também desenvolvem e adquirem mecanismos que as podem favorecer impedindo ou dificultando o estabelecimento de
infecção pelos patógenos presentes no
mesmo ambiente. Hospedeiros também
se beneficiariam de mecanismos de
escape de patógenos que poderiam ser
classificados de “mimetismo reverso”.
Um exemplo recente na literatura é a
demonstração de que ovelhas utilizam
retrovírus endógenos como fatores de
restrição que bloqueariam infecções por
retrovírus patogênicos [35].
Nessa interação, que ocorre durante a co-evolução de patógenos e seus
hospedeiros, se poderia poeticamente
considerar que cada um está tentando
vencer as defesas impostas pelo outro.
O resultado dessa permanente “corrida
armamentista”, seria, entretanto, na
verdade, a permanência dos dois no
mesmo lugar (de parasita e hospedeiro). Tal formulação foi originalmente
proposta pelo biólogo evolucionista
americano Leigh Van Valen (1935-2010)
sob a denominação de “a hipótese da
rainha vermelha” [36]. O nome deriva de
uma passagem do livro de Lewis Carroll
(1832-1898) Through the Looking-Glass
and What Alice Found There na qual a
Rainha Vermelha diz a Alice: “[I]t takes
all the running you can do, to keep in the
same place”IV.
IV
Numa tradução livre ‘Corra o máximo que você SXGHUSDUD¿FDUQRPHVPROXJDU¶)UDVHGD5DLQKD
YHUPHOKDQROLYURGH/HZLV&DUUROO³$OLFHDWUDYpVGR
HVSHOKRHRTXHHODHQFRQWURXSRUOi´SXEOLFDGRHP
2OLYURpDFRQWLQXDomRGRFpOHEUH$OLFHQR
3DtVGDV0DUDYLOKDVGH2DXWRUp&KDUOHV
/XWZLGJH'RJVRQFRQKHFLGRFRPR/HZLV&DUUROO
65
66
Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
A comparação de proteomas
como abordagem para o estudo
da redundância de proteínas:
interesses e limites para a
compreensão do fenômeno de
mimetismo molecular
O número de exemplos de mimetismo
molecular tem crescido ao mesmo tempo
em que se observa um rápido incremento
da quantidade de genomas completamente sequenciados. Além disso, a comparação direta das sequências proteicas
de parasitas e hospedeiros pode se
mostrar uma ferramenta poderosa para
aumentar ainda mais a velocidade de
identificação de estruturas que podem
exercer mimetismo molecular. Contudo,
apesar de extremamente interessantes,
os trabalhos que se servem desse tipo
de abordagem são escassos na literatura
[37-42]. Ao mesmo tempo, talvez por ser
ainda um campo de estudo novo, uma
análise dos trabalhos publicados aponta
para a falta de critérios para a definição
das características necessárias para que
uma determinada sequência seja considerada uma candidata à classificação de
“proteína mimética”. Por exemplo, alguns
trabalhos excluem proteínas que mostram
semelhança (mesmo que ela seja grande)
entre os genomas do parasito e de seu
hospedeiro caso elas também estejam
presentes em organismos não patogênicos filogeneticamente próximos ou em
organismos que estejam em posição
intermediária na escala evolutiva entre o
parasita e o hospedeiro [42]. Outros não
utilizam sequências proteicas inteiras,
mas padrões compostos de pequenas
sequencias de aminoácidos [40,41].
Um outro problema com esse tipo de
abordagem é que ele só permite analisar
homologias levando em consideração a
sequência primária de aminoácidos das
diversas proteínas, o que exclui homologias conformacionais e pode gerar falsos
positivos, já que uma mesma sequência
de aminoácidos presente em duas proteínas globulares diferentes pode estar localizada na parte externa da conformação
de uma proteína e escondida no interior
de outra, devido às suas conformações
secundárias e terciárias. Da mesma
forma, esse tipo de análise não leva em
conta as modificações pós-transcricionais
sofridas pelas diversas proteínas e que
também são capazes de modificar a conformação das mesmas.
Essa ausência de critérios faz com
que o mesmo conjunto de dados possa
ser analisado e interpretado de maneiras
diferentes. Por exemplo, quando procuramos proteínas inteiras com alto grau de
homologia entre dois proteomas e filtramos os resultados excluindo aquelas que
apresentem grau semelhante ou maior
de similaridade também com organismos
não patogênicos ou que tenham posição
intermediária na escala evolutiva entre os
dois proteomas comparados, tendemos
a ter um número menor de proteínas
restantes [42]. Todavia, quando consideramos o proteoma de microorganismos,
dividimo-lo em sequências pequenas de
aminoácidos e verificamos se elas podem
ser encontradas no proteoma do hospedeiro, tendemos a encontrar uma grande
sobreposição entre os oligopeptídeos e
as proteínas do hospedeiro [40,41].
A primeira abordagem tende a diminuir o número de falsos positivos, mas,
consequentemente, aumenta o número
de falsos negativos, já que proteínas
podem ter importância na interação
parasita-hospedeiro, mesmo que também
estejam presentes em outras espécies
não patogênicas ou em espécies inter-
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mediárias na escala evolutiva. A segunda
abordagem, por outro lado, tem as características opostas, ou seja, aumenta
o número de falso-positivos e diminui o
número de resultados falso-negativos.
Para abordar essa questão, nós
calculamos o número de proteínas homólogas entre o proteoma humano e o de vários organismos cujos genomas já foram
completamente sequenciados, utilizando
uma ferramenta online denominada Procom (de Proteome comparison) [43]. As
comparações foram feitas utilizando-se
diferentes valores de e-valueV[44] como
V
E-value é uma abreviação para expectation value
(“valor esperado” em uma tradução livre). Ele representa a chance de que a sobreposição encontrada
na sequencia de aminoácidos, quando comparamos duas proteína, se deva ao acaso. O processo
de geração do e-value quando comparamos uma
sequencia com um determinado banco de dados
consiste em comparar nossa sequencia com todos
os membros do banco de dados e gerar, para cada
comparação, um escore arbitrário “S” que dá pontos para aminoácidos iguais ou parecidos e retira
pontos (penaliza) quando encontra aminoácidos
divergentes. Posteriormente o escore de interesse
(que expressa a comparação entre as duas proteínas de interesse) é comparado com o conjunto
dos demais escores gerados pelas comparações
com as outras proteínas do banco e expresso por
um número chamado Z-score, que é uma medida
de quão não usual é nosso escore de interesse. O
Z-score é calculado da seguinte maneira: Z-score
= [S – (S médio)]/ desvio padrão de S. Geralmente
consideramos que um Z-score maior que 5 como
significativo. A partir dos Z-scores e de sua distribuição na populacão estudada, podemos calcular
a probabilidade de que nosso escore original seja
devido ao acaso, o famoso p-value. O p-value
depende da distribuição dos Z-scores no banco de
dados, que na maioria das vezes não é uma distribuição Gaussiana. O e-value é então finalmente
calculado multiplicando-se o p-value pelo número
de sequencias presentes no banco de dados. O p-value varia entre 0 e 1, mas o e-value varia entre
0 e o número de sequencias no banco de dados.
Desse modo, o e-value não depende somente do
grau de homologia entre as proteínas (número de
aminoácidos homólogos), mas também leva em
conta fatores como o tamanho do banco de dados
critério para a avaliação da homologia
das proteínas do proteoma humano e
do de diversos organismos pesquisados
(Tabela I). Utilizamos o e-value como
medida indireta do grau de sobreposição
na sequência de aminoácidos entre duas
proteínas diferentes. Quando fazemos tal
comparação utilizando um e-value grande
(1-10, por exemplo) elas serão consideradas homólogas mesmo que compartilhem
apenas pequenas porções (alguns padrões) da sua sequência de aminoácidos
(nesse caso a sensibilidade é grande
e – como resultado – a homologia é pequena, porque podem ser consideradas
homólogas proteínas pouco parecidas).
À medida que diminuímos o valor desse
parâmetro (e-value de 1-100, por exemplo)
apenas proteínas com sequências praticamente idênticas são consideradas
homólogas. Ou seja, ao diminuirmos o
e-value, diminuímos a sensibilidade da
comparação e aumentamos o grau de
sobreposição e homologia necessário
para que consideremos uma proteína
como homóloga. Isso é demonstrado pela
diminuição do número de proteínas homólogas encontradas (somente as muito
homólogas são retidas). Essa realidade
está ilustrada graficamente na Figura 1A.
O número médio de proteínas homológas
encontradas nos diversos organismos
comparados foi 9.336, quando utilizamos
um E-value de 10-10, e de 3.558, quando
reduzimos o E-value para 10-100.
Como o e-value pode variar de acordo
com as características dos proteomas
comparados, não existe, teoricamente,
pesquisado (se dobramos o tamanho do banco de
dados dobramos o e-value) e o tamanho da proteína
pesquisada, entre outros. Para uma discussão mais
detalhada sugerimos a homepage - http://www.
clarkfrancis.com/blast/Blast_what_and_how.html
ou o livro Introduction to bioinformatics de Arthur
M Lesk [44].
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Tabela I - Número de proteínas homólogas entre diversos organismos e o ser humano.
Organismo
Total de N. de proteínas homologas
1-50
proteí- 1-10
1-100
nas
H. sapiens
34.090 P. falciparum
5.333
1.833 (34.37; 5.38)
572 (10.73; 1.68)
217 (4.07; 0.64)
E. histolytica
9.771
3.658 (37.44; 10.73) 1.074 (10.99; 3.15)
319 (3.26; 0.94)
G. lamblia
9.645
1.845 (19.13; 5.41)
365 (3.78; 1.07)
115 (1.19; 0.34)
T. gondii
7.587
2.515 (33.15; 7.38)
787 (10.37; 2.31)
293 (3.86; 0.86)
T. brucei
20.697 2.975 (14.37; 8.73)
1.005 (4.86; 2.95)
333 (1.61; 0.98)
T. cruzi
25.040 5.183 (20.70; 5.20)
1.527 (6.10; 4.48)
432 (1.73; 1.27)
E. cuniculi
1.995
893 (44.76; 2.62)
293 (14.69; 0.86)
110 (5.51; 0.32)
C. neoformans 6.571
3.141 (47.80; 9.21)
1.303 (19.83; 3.82)
515 (7.84; 1.51)
B. malayi
7.702
4.575 (59.40; 13.42) 2.005 (26.03; 5.88)
838 (10.88; 2.46)
L. major
8.080
3.113 (38.53; 9.13)
1.048 (12.97; 3.07)
374 (4.63; 1.10)
T. rubripes
33.002 29.948 (90.75; 87.85) 24.994 (75.73; 73.32) 17.761 (53.82; 52.10)
A. thaliana
28.580 10.931 (38.25; 32.07) 3.570 (12.49; 10.47) 1.263 (4.42; 3.70)
C. elegans
22.296 9.979 (44.76; 29.27) 4.663 (20.91; 13.68) 1.959 (8.79; 5.75)
C. intestinalis
15.851 11.239 (70.90; 32.97) 5.813 (36.67; 17.05) 2.712 (17.11; 7.96)
D. melanogaster 18.288 12.180 (66.60; 35.73) 7.166 (39.18; 21.02) 3.573 (19.54; 10.48)
M. musculus
32.280 29.187 (90.42; 85.62) 24.927 (77.22; 73.12) 18279 (56.63; 53.62)
O. sativa
59.711 14.208 (23.79; 41.68) 3.347 (5.61; 9.82)
1.190 (1.99; 3.49)
R. norvegius
28.544 27.099 (94.94; 79.49) 23.023 (80.66; 67.54) 16.882 (59.14; 49.52)
S. cerevisae
5.885
2.887 (49.06; 8.47)
1.173 (19.93; 3.44)
438 (7.44; 1.28)
Negrito= organismos patogênicos; (A;B) = A é a percentagem de proteínas no proteoma do patógeno avaliado que possuem ortólogos no proteoma humano; B é a percentagem de proteínas no proteoma humano
que possuem ortólogos no proteoma do patógeno avaliado.
Figura 1 - Percentagem de homologia com o proteoma humano (A) e percentagem
de homologia do proteoma humano (B) apresentada por diversos organismos quando
utilizados diferentes E-values como critério para considerar uma proteína homologa ou
não com sua respectiva contraparte no proteoma humano.
*
B 100
***
5QRUYHJLXV
0PXVFXOXV
80
5QRUYHJLXV
0PXVFXOXV
7UXEULSHV
40
20
0
1-­10
1
E-­value
1-­100
GH+RPRORJLD
A 100
GH+RPRORJLD
68
80
***
7UXEULSHV
0PXVFXOXV
5QRUYHJLXV
7UXEULSHV
0PXVFXOXV
5QRUYHJLXV
0PXVFXOXV
7UXEULSHV
5QRUYHJLXV
40
20
0
1-­10
1
E-­value
1-­100
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um valor específico que eleve ao máximo
possível a sensibilidade e especificidade
dessa metodologia para identificar proteínas que podem exercer mimetismo. Do
mesmo modo, não há uma ferramenta
ou abordagem de bioinformática perfeita
para identificar potenciais proteínas miméticas em todos os casos. Na realidade, as diferentes abordagens podem ser
utilizadas de maneira complementar e
os critérios e controles utilizados devem
variar de acordo com as características
dos proteomas comparados e com os
objetivos da comparação.
A Comunidade Antigênica (somos
todos feitos dos mesmos
antígenos...) e sua implicação como
risco de ruptura da tolerância a autoantígenos
A good imitation is the most
perfect originalityVI
Um paradigma da imunologia é a
noção de que o sistema imune possui
mecanismos que impedem a formação
de respostas imunes contra estruturas
ou Ag do próprio organismo [45]. Esse
fenômeno, que resulta de um mecanismo
ativo (e não da ausência de resposta),
e é chamado de tolerância imunológica,
ocorre tanto em nível central (órgãos linfóides primários) quanto em nível periférico (órgãos linfóides secundários e todos
os outros tecidos do corpo) e impediria
nossa autodestruição [46].
Quando os mecanismos de tolerância
estão funcionando a contento, permanecemos em um estado de homeostase
no qual, ao mesmo tempo em que soVI
Maxima de Voltaire. Retirada do artigo de Elde NC &
Malik HS. The Evolutionary conundrum of pathogen
mimicry. Nature reviews microbiology 2009;7:787-97.
mos capazes de, ao entrar em contato
com os mais diversos microrganismos e
substancias estranhas ao corpo, produzir
resposta imune contra Ag externos, evitamos produzir respostas imunes danosas
contra componentes próprios (self).
Por exemplo, as estruturas de carboidratos A, B, H – Lewis, que no homem
correspondem a Ag de grupos sanguíneos, e suas respectivas glicosiltransferases, estão presentes em vários (macro
e micro) organismos incluindo diversas
espécies de mamíferos, pássaros, répteis, invertebrados, fungos saprófitas e
patogênicos, helmintos e plantas. Estão
presentes também em bactérias de nosso tubo digestivo. Não é por outra razão
que os humanos desenvolvem, desde
a mais tenra idade, o que imunogeneticistas e hemoterapeutas chamam de
“aglutininas (anticorpos aglutinantes)
regulares” contra os Ag A e B do sistema
AB0 de forma inversa à presença dos Ag
desse sistema que portamos em nossos
glóbulos vermelhos. Em outras palavras,
esses Ac, ditos regulares (que todos
temos e permitiram a LandsteinerVII a
descoberta dos grupos sanguíneos AB0
no início do século passado), são, na
verdade, resultado da imunização a que
nos submetemos, ainda bebês, comendo
comida “suja”. A E. coli do sorotipo 86
tem a mesma especificidade (os mesmos
determinantes antigênicos da substância
H, em cima da qual se constroem as
especificidades A e B do sistema AB0.
VII
Karl Landsteiner (1868-1943), médico e biologista
austríaco, distinguiu, em 1900, os grupos sanguíneos ABO, graças a existência das aglutininas
regulares no soro dos indivíduos, desenvolvendo
a classificação moderna de grupos sanguíneos e
possibilitando a transfusão sanguínea. Ele também
identificou, com Alexander S. Wiener em 1937, o
fator Rhesus (Rh). Landsteiner recebeu o Prêmio
Nobel de Fisiologia ou Medicina, em 1930.
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Quando nascemos, nenhum de nós tem
Ac anti-A ou anti-B. Entretanto, se formos
do grupo sanguíneo A teremos Ac anti-B,
assim como teremos Ac anti-A, se formos
B, e anti-A e anti-B se formos do grupo 0.
Mas não teremos nenhum desses Ac se
formos do grupo AB, do mesmo jeito que
não teremos Ac anti-A sendo do grupo A
ou anti-B, sendo do grupo sanguíneo B.
Essa recusa do organismo em produzir os Ac correspondentes aos Ag que
temos presentes em nossos glóbulos
vermelhos revela a ocorrência de mecanismos de manutenção da tolerância aos
constituintes de nosso próprio organismo
(os imunologistas os chamam de auto-Ag)
cuja descrição foge ao escopo do presente trabalho. A existência de tais mecanismos foi, entretanto, reconhecida por
Ehrlich em 1900 [47]VIII e descrita com o
sugestivo nome de “Horror autotoxicus”.
Contudo, (embora não saibamos
exatamente o porquê em todos os casos) algumas vezes esses mecanismos
de tolerância são rompidos e acabamos
produzindo reações imunes contra Ag
próprios, em um fenômeno denominado
de auto-imunidade. Reações auto-imunes
VIII
Preocupado (na realidade) com o destino de
glóbulos vermelhos em caso de hemorragia intra-abdominal, o bacteriologista alemão Paul Ehrlich
(1854-1915) injetou, no peritônio de cabras sadias, hemácias provenientes de outras cabras ou
de animais de outras espécies e constatou que
tal procedimento dava origem, na cabra “experimentada”, ao surgimento de Ac dirigidos contra
hemácias do animal doador. Ehrlich surpreendeu-se, entretanto, ao descobrir que tais Ac não eram
produzidos quando o animal doador era a própria
cabra. Ehrlich concluiu no artigo original em alemão
que “o organismo tem mecanismos eficazes que
impedem que a reação imunitária, tão facilmente
induzida por toda sorte de célula, de reagir com
constituintes do próprio organismo, dando lugar à
aparição de auto-toxinas... somente quando esses
mecanismos de regulação interna não estão mais
intactos, pode haver (um) perigo.
podem envolver tanto a produção de auto-anticorpos (auto-Ac) quanto a geração de
células auto-reativas que podem resultar
em destruição tecidual e mesmo em doenças auto-imunes [48].
Um dos mecanismos propostos
para explicar a quebra da tolerância imunológica é justamente a exposição do
organismo a Ag externos (presentes em
microrganismos com os quais dividimos o
espaço que ocupamos no planeta) semelhantes, sob o ponto de vista estrutural
ou conformacional, a Ag do próprio indivíduo (e dotados de capacidade de reação
cruzada com estes). Assim a lista, que já
sabemos grande, de Ag comuns a hospedeiros e parasitos (ou parasitos vestidos
com roupagens de seus hospedeiros)
pode representar também um inventário
de perigos e riscos contra os quais nosso
organismo deve estar permanentemente
vigilante com o objetivo de zelar para que
nenhuma resposta auto-imune dê origem
a uma situação de auto-agressão e até,
eventualmente, de doença.
Há, de fato, situações em que, apesar do “bom senso imunológico” ou, por
alguma razão, justamente por falta dele,
o hospedeiro desenvolve uma resposta
imune contra Ag compartilhados, mesmo
sob risco de desenvolvimento de uma
resposta auto-imune que pode acabar
engendrando uma patologia auto-imune.
Exemplos concretos são os Ac contra a
proteína M estreptocócica do tipo 5, produzidos durante a infecção da orofaringe
por Streptococcus pyogenes β hemolíticos do grupo A que reagem contra Ag
presentes nas válvulas cardíacas (miosina cardíaca) [49] e causam a cardite reumática; os produzidos durante a infecção
pelo HTLV-1 contra a proteína viral HTLV1-tax que reagem cruzadamente contra a
proteína ribonuclear nuclear heterogênea
Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
A1 (heterogeneous nuclear ribonuclear
protein-A1, hnRNP-A1) presente em neurônios causando a paraparesia espástica
tropical [50]; a resposta auto-imune, deflagrada pela infecção pelo Trypanosoma
cruzi, em pacientes com a miocardiopatia
Chagásica [51]; ou aquela dirigida contra
Ag compartilhados entre a Klebsiella
pneumoniae e o hospedeiro, que poderia participar da gênese da espondilite
anquilosante no homem [52]. Outras
doenças auto-imunes cuja gênese pode
estar ligada a uma reatividade cruzada
entre, Ag microbianos e auto-Ag, incluem
diabetes melitus tipo 1 [53], esclerose
múltipla [54], síndrome de Guillain-Barré
[55], polineuropatia desmielinizante inflamatória crônica [56], artrite da doença
de Lyme [57], espondiloartropatias [58],
síndrome poliglandular auto-imune [58],
cirrose biliar primária [59]. A lista é, novamente, grande.
Há também casos em que produzimos auto-Ac não (ou pouco) patogênicos
durante infecções. Um exemplo famoso
é a produção de hemaglutininas frias
durante a infecção por Mycoplasma
pneumoniae [60]. Pacientes com essa
condição podem desenvolver Ac da classe
IgM contra um Ag presente na superfície
das hemácias denominado Ag I. Esses
Ac se ligam às células vermelhas do
sangue e causam sua aglutinação quando
a 4oC e, por isso, são denominadas hemaglutininas frias. Elas se desenvolvem
entre a primeira e a segunda semana de
infecção, têm seu pico de produção com
três semanas e declinam lentamente
depois de alguns meses. Apesar de servirem para o diagnóstico de infecção por
Mycoplasma, apenas raramente esses
Ac causam patologia (hemólise) durante
a infecção e, quando isso ocorre, é porque, por alguma razão desconhecida, eles
começaram a reagir com as hemácias a
37oC [61-63]. Do mesmo modo, não há
patologia associada com os auto-Ac dirigidos contra a cardiolipina complexada
com lecitina e colesterol, desenvolvidos
durante infecções por Treponema spp
[64] e usado para o diagnóstico laboratorial (VDRL) da sífilis.
Cabe lembrar que produzimos, permanentemente, e antes mesmo de entrarmos em contato com qualquer Ag externo,
uma população de autoAc, ditos naturais.
A função desses autoAc ainda não está
definitivamente estabelecida, embora
alguns considerem que ajam como uma
primeira barreira de resposta anti-microbiana, graças justamente à sua grande
capacidade de reação cruzada com Ag
externos [65]. Do mesmo modo, a fisiologia dos processos de amadurecimento
e diferenciação linfocitárias inclui um mecanismo (dito de seleção positiva) no qual
justamente serão consideradas aptas a
integrar o repertório de células maduras
e diferenciadas aquelas que reagirem
com auto-Ag no nível do timo. Embora tais
exemplos ilustrem a normalidade fisiológica de vários tipos de autoreatividade,
sabemos que as respostas auto-imunes
se mantém controladas como resultado
da integridade de eficientes mecanismos
de tolerância e regulação da resposta
imuneIX [66]. Assim, a maior parte das
IX
Uma infecção pode desencadear o desenvolvimento
simultâneo de múltiplos autoAc, que podem ou
não derivar do fenômeno de compartilhamento
antigênico. Pode-se ilustrar tal eventualidade
com um exemplo “da casa”. A infecção malárica
se acompanha da produção de Ac contra uma
enorme gama de auto-Ag como DNA, fosfolipídios,
ribonucleoproteínas, músculo liso, cardiolipina e
Ag eritrocitários e linfocitários [66]. O padrão de
produção desses Ac parece variar de acordo com
o grau de imunidade à infecção e, embora alguns
deles tenham sido associados a complicações da
doença (como anemia, nefrite, trombocitopenia
71
72
Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
respostas auto-imunes (auto-imunidade),
inclusive as geradas por exposição a Ag
externos microbianos, só se acompanha
raramente de patologia (doença auto-imune).
Se a diversidade do repertório de Ag
comuns entre microorganismos e seus
hospedeiros for realmente grande, as
probabilidades de encontro de Ag externos parecidos com os nossos próprios
Ag (leia-se dotados de propriedades de
reação cruzada com auto-Ag) serão bastante altas.
Mas qual o tamanho da ameaça
potencial? Quantos Ag em média compartilhamos com um microrganismo? Podemos ter uma idéia realista da resposta à
essa pergunta comparando proteomas.
Como vimos, menos de 1% dos nossos
genes são exclusivos da nossa espécie,
isso quando consideramos todos os
genes de todas as espécies conhecidas
até hoje [3]. Um trabalho interessante
dividiu o proteoma humano em pequenos
oligopeptídeos de cinco aminoácidos de
comprimento (pentapeptídeos ou 5-mers)
de um modo a que todos os peptídeos
possíveis que pudessem ser feitos com
esse tamanho a partir do nosso proteoma fossem representados. Os autores
adotaram, em seguida, o mesmo procedimento com proteomas de alguns vírus
patogênicos e determinaram a quantidade de peptídeos idênticos entre os dois
proteomas. Observou-se que entre 89,3%
e 93,5% dos peptídeos derivados dos
proteomas virais tinham um homólogo
perfeito no proteoma humano [67]. Um
outro trabalho do mesmo grupo utilizou
essa metodologia para analisar quarenta
bactérias diferentes (20 patogênicas e 20
e malária cerebral), não há evidências concretas
de que alguns deles, como os Ac anti-DNA, sejam
patogênicos [66].
não patogênicas) e o proteoma humano e
encontrou números semelhantes (89,8%
a 93,3%) quando pentapeptídeos foram
considerados. A percentagem de homologia diminuiu para 28,8%-37,5% quando
hexapeptídeos foram considerados, para
3%-4,9% no caso de heptapeptídeos e
para 0,4%-0,7% no caso de octapeptídeos
[41]. Se considerarmos que o comprimento ótimo de um epítopo proteico linear
de célula B é de cinco aminoácidos [68]
(embora epítopos de até 16 aminoácidos
de comprimento tenham sido relatados
[69,70]) e que o número de pentapeptídeos possíveis de serem construídos
utilizando-se os 20 aminoácidos que
ocorrem naturalmente no nosso mundo
é de 3.200.000 (esse número sobe
para 6,55 x 1014 quando consideramos
16 aminoácidos de extensão) somos
induzidos à conclusão de que as altas
percentagens de homologia encontradas
não são devidas ao acaso. Na realidade, o fato de um vírus ou uma bactéria
possuir em torno de 90% de estruturas
semelhantes às nossas nos mostra que
nosso sistema imune é bombardeado
rotineiramente por um número enorme de
Ag homólogos aos nossos apresentados
numa roupagem parasitária. Logicamente
esse tipo de abordagem não considera
epitopos conformacionais ou os gerados
por modificações pós-transcricionais e
nem indica um valor médio de homologia
entre os dois organismos levando em conta todos os possíveis epitopos (de cinco
até 16 aminoácidos de comprimento).
Na Tabela I, tentamos quantificar
a percentagem média de homologia do
proteoma de alguns organismos eucariotas patogênicos (com genoma completamente sequenciado) com o humano,
utilizando o Procom e uma abordagem
um pouco diferente. Calculamos a per-
Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
centagem de proteínas homólogas em
relação ao número total de proteínas dos
diversos organismos e esse valor está
representado como o primeiro número
entre parênteses em cada célula da
Tabela. Se levarmos em conta somente
os organismos patogênicos (em negrito),
essa percentagem variou entre 14,37%
e 59,40% (com e-value de 10-10) e entre
1,19% e 10,88% (com e-value de 10-100)
(Figura 1B). Por estarmos considerando
homologias entre peptídeos derivados
dos diversos proteomas de forma independente do tamanho dos mesmos,
obtivemos números relativamente menores que os obtidos pelas análises
que comparam apenas pentapeptídeos.
Contudo, nossos números ainda são
impressionantes já que, por exemplo
alguns organismos apresentaram mais
de metade das suas proteínas como
homólogas às nossas.
Esses dados têm implicações diretas para a compreensão da contribuição
do fenômeno de compartilhamento de
Ag à adaptação evolutiva de parasitos no contexto da co-habitação com
seus hospedeiros ou, ao contrário, ao
desenvolvimento de auto-imunidade e,
eventualmente, de doença auto-imune. O
número total de Ag potencialmente auto-imunes (estimados através do número
conhecido de especificidades de auto-Ac)
está na casa das centenas baixas [71].
Ainda menor seria o número de doenças auto-imunes conhecidas. Roitt [72]
repertoria 31 principais, no capítulo de
Doenças auto-imunes do célebre e clássico livro texto de imunologia, correspondendo uma dezena (ou menos) delas às
mais comuns e conhecidas [73]. Assim,
considerando-se que o número total de
proteínas no proteoma humano gira em
torno de 30.000, menos de um por cento
das mesmas seria alvo potencial de autoimunidade. Essas estimativas não batem com o altíssimo número potencial de
Ag que compartilhamos com organismos
patogênicos (cerca de 90% – 27.000
proteínas – de nossos constituintes),
que poderiam induzir autoimunidade.
Dois racionais, não exclusivos, poderiam
explicar tal contraste: i) os mecanismos
de manutenção da tolerância são extremamente eficientes e só falhariam em
raros casos; ii) o mecanismo de quebra
da tolerância imunológica através do
fenômeno de compartilhamento de Ag
não é predominante nem suficiente para
levar ao desenvolvimento de patologia
auto-imune na maior parte dos casos.
Acreditamos que este fenômeno de
compartilhamento antigênico seja apenas
um dos mecanismos através dos quais o
que chamamos de tolerância imune pode
ser desregulada. Repertoriar os mecanismos envolvidos na manutenção da tolerância a auto-Ag, mesmo quando estes
são expostos ao sistema imune na “pele”
de um microorganismo invasor, foge ao
escopo e objetivos deste trabalho, mas
hoje sabemos que estes são múltiplos,
redundantes e que o contexto no qual
esses auto-Ag são (ou não) apresentados ao sistema imune é determinante
e decorre da variabilidade genética dos
hospedeiros.
Por exemplo, para explicar a fase da
indução da cardite auto-imune pós-estretptocócica, dos Reis e Barcinski [74]
propuseram, em um trabalho profético no
início dos anos 80, que a apresentação
de Ag estreptocóccicos de reação cruzada
com fibras cardíacas pelos macrófagos
seria uma função controlada geneticamente. Segundo os autores, determinantes antigênicos presentes em cepas
de estreptococos ß hemolítico do grupo
73
74
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A que causam a febre reumática seriam
selecionados por macrófagos através de
“genes de resposta imune” (que hoje se
sabe corresponderem àqueles codantes
de Ag de classe II do Complexo principal
de histocompatibilidade, MHC em inglês),
para serem apresentados aos linfócitos T.
A reação cruzada entre os determinantes
antigênicos selecionados geneticamente
e componentes do tecido cardíaco geraria
clones de células-T auto-reativas. A hipótese explicava a capacidade de cepas
diferentes do estreptococos de produzir
a febre reumática, assim como a variabilidade de susceptibilidade de diferentes
indivíduos à doença.
Assim, o risco à integridade dos
organismos e de suas homeostasias
dependeria mais das características genéticas de alguns raros indivíduos que
tem, desafortunadamente, a “vocação”
para apresentar esses Ag de reação cruzada a células imunes efetoras gerando o
risco de indução de resposta auto-imune
e mesmo de desenvolvimento de doença
auto-imune. De fato, desde 1986 vários
trabalhos tem demonstrado a associação
de cardite reumática com alelos de classe
II do MHC em afro-americanos (HLA-DR2),
em Cáucaso-americanos (HLA-DR4), em
brasileiros, egípcios, latvianos e turcos
(HLA-DR7) [75].
Um outro componente da tolerância
aos auto-Ag estaria representado pelo
conjunto de células e mecanismos regulatórios da resposta imune. Assim,
um organismo que, por alguma razão,
apresentasse um desequilíbrio (momentâneo ou não) desses mecanismos
estaria fragilizado se fosse simultaneamente exposto a Ag de reação cruzada
presentes na superfície de microrganismos. Isso foi previsto por dos Reis
e Barcinski [74] que supuseram que a
auto-imunidade desencadeada pela exposição do hospedeiro a Ag de reação
cruzada do estreptococo ß hemolítico
tornar-se-ia uma resposta auto-imune
patogênica, gerando doença (a febre
reumática acompanhada de cardite
pós-estreptocóccica) se, além da predisposição genética (revelada pela
capacidade de macrófagos daquele
indivíduo selecionarem determinantes
antigênicos do estreptococo com propriedade de reação cruzada com antígenos do coração) ocorresse também um
desequilíbrio da regulação da resposta
de células T.
Pode-se supor, portanto, que a possibilidade de coexistência de mais de
um fator de risco de desenvolvimento
de resposta auto-imune justificaria a
redundância de mecanismos protetores
da tolerância aos auto-Ag na tentativa de
garantir a manutenção da integridade do
organismo.
Um mecanismo de redundância semelhante opera para garantir o nosso
equilíbrio e envolve três componentes
que operam simultânea e complementarmente: o cerebelo, o sistema coclear
no ouvido interno e a visão. Em outras
palavras: a propriocepção (capacidade de
conhecer a posição do corpo no espaço,
a função vestibular (capacidade de conhecer a posição da cabeça em relação
ao corpo) e a visão (que pode ser usada
para monitorar e ajustar as mudanças na
posição do corpo). Podemos funcionar
bem com somente dois desses componentes intactos. Assim, o famoso teste
de Romberg (um vídeo explicando como o
teste de Romberg deve ser executado e o
que ele testa pode ser visto no seguinte
website http://www.neuroexam.com/
neuroexam/content.php?p=37) utilizado
no exame neurológico no qual se pede
Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
ao indivíduo sob exame que tente se
equilibrar em um pé só de olho fechado,
pode detectar algum problema cerebelar
ou coclear visto que, nesse caso, com a
privação da visão, dois dos sistemas estarão “falhos” (o problemático, e a visão
retirada do sistema), o que resultará na
perda de equilíbrio e na positividade do
teste [76]X.
Organismos biológicos parecem se
utilizar de estratégias de redundância
semelhantes para garantir que o sistema
como um todo funcione satisfatoriamente, mesmo que uma parte dele falhe por
algum motivo. Isso faz com que, para que
o sistema se desregule, mais de um fator
de risco deva estar presente ao mesmo
tempo (ou sequencialmente) de forma a
inutilizar ou neutralizar mais de um dos
mecanismos redundantes protetores da
integridade em um determinado momento, gerando patologia.
É provável que fenômeno comparável
opere para garantir a tolerância a auto-Ag
ou permitir o desenvolvimento de doenças
auto-imunes. Assim entrar em contato
com Ag homólogos apresentados com
uma roupagem parasitária seria apenas
um dos fatores potencialmente intervenientes no desenvolvimento de resposta
auto-imune e não seria, em princípio,
evento suficiente para determinar a
gênese de patologia de autoagressão.
Em conclusão as chances de produção
de autoAc patogênicos por exposição
a microrganismos com Ag de reação
cruzada são diminutas em presença de
mecanismos de regulação íntegros para
a enorme maioria de perfis genéticos dos
indivíduos.
X
Um vídeo explicando como o teste de Romberg deve
ser executado e o que ele testa pode ser visto no
seguinte website; WWW.neuroexam.com
Agradecimentos
CTDR é Bolsista de Produtividade do
CNPq e Cientista do Nosso Estado da
Faperj. Os autores agradecem aos Doutores Marcello Barcinski e Luis Anastácio
Alves (IOC, Fiocruz) pela revisão crítica do
manuscrito.
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Revisão
Neurociência, a ciência do sistema
nervoso: da descoberta do impulso
nervoso ao estudo da consciência e a
uma nova revolução tecnológica
Neuroscience, the science of the nervous system:
from the discovery of the nerve impulse to the study of
consciousness and to a new technological revolution
Luiz Carlos de Lima Silveira*, Manoel da Silva Filho**, José Luiz Martins do Nascimento**
Resumo
Este capítulo revê alguns aspectos fundamentais do conhecimento atual sobre como o Sistema Nervoso
está organizado e funciona. A revisão tem como ponto de partida a singularidade do nosso presente conhecimento sobre o Universo, a Vida e a Consciência. Em seguida, a organização morfológica e funcional do
Sistema Nervoso é apresentada em grandes pinceladas sobre suas funções, sua macroestrutura e seus
componentes celulares. Como em qualquer sistema, os mecanismos pelo qual a informação é obtida,
trafega entre suas partes e é enviada para o meio exterior ao sistema, constituem uma parte fundamental
da compreensão do seu funcionamento. No Sistema Nervoso a comunicação entre os neurônios e entre
*Núcleo de Medicina Tropical, Universidade Federal do Pará, Belém/PA, Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil, **Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Pará, Belém/PA, Brasil - Este artigo foi escrito a partir das conferências intituladas
“Consciência, visão e sensibilidade ao contraste” e Hipótese do Centro Dinâmico: a Hipótese de
Edelman para o substrato neural da consciência”, ministradas por Luiz Carlos de Lima Silveira, respectivamente, na I e II Jornadas Fluminenses de Cognição Imune e Neural
Correspondência: Dr. Luiz Carlos de Lima Silveira, Universidade Federal do Pará, Núcleo de Medicina
Tropical, Av. Generalíssimo Deodoro 92 Umarizal 66055-240 Belém PA, Tel: (91) 3201-6819, E-mail:
[email protected] ou [email protected]
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eles e as células associadas ocorre mais frequentemente através de mensageiros químicos. A informação
neural pode também ser codificada e enviada a longas distâncias através de fibras nervosas utilizando um
processo eletroquímico – o chamado impulso nervoso.
Palavras-chave: sistema nervoso, impulso nervoso, comunicação intercelular, neurotransmissão, consciência, neurociência.
Abstract
This paper reviews some fundamental aspects of what is currently known about the Nervous System, how
it is organized, and how it works. The starting point is the singularity of our current knowledge on three key
issues – the Universe, the Life, and the Consciousness. Then, the morphological and functional organization of the Nervous System is presented in a large overview, encompassing its functions, macrostructure,
and cell components. As in any other system, it is crucial for the understanding how the system works, to
study how information from outside is obtained, processed, and then used to act on the external world. In
the Nervous System, communication between neurons and between neurons and associated cells more
often occurs by mediation of chemical messengers. In addition, neural information may be also coded
and sent to long distances by nerve fibers by using an electrochemical process called the nerve impulse.
Key-words: nervous system, nerve impulse, intercellular communication, neurotransmission, consciousness, neuroscience.
Reflexão inicial
A Neurociência é um ramo relativamente novo do conhecimento, cujo ponto
de partida pode ser tomado como o da
fundação, nos EUA, da Society for Neuroscience (1969). Entretanto, o seu objeto
de estudo, o Sistema Nervoso, vem sendo investigado há alguns séculos com o
uso de uma extraordinária multiplicidade
de ferramentas. Ramos da ciência como
Neurologia, Psiquiatria, Psicologia, Linguística, Neuroanatomia, Neurofisiologia,
Neurofarmacologia, Neuroquímica, entre
outros, têm olhado o Sistema Nervoso
sob os mais diferentes ângulos e com
uma grande variedade de métodos de investigação. No Sistema Nervoso residem
os mecanismos de funções essenciais
da experiência humana, como visão,
audição, somestesia, fala, motricidade,
percepção, emoção e motivação, assim
como os processos de controle de uma
série de funções do nosso corpo que se
desenrolam sem tomarmos conhecimento
de sua existência, como o controle neural
da pressão arterial, do nível de oxigênio
na corrente sanguínea e da osmolaridade
plasmática. Dessa grande variedade de
aspectos do Sistema Nervoso, nenhum
nos fascina mais que a Consciência, a
própria noção do eu, a constatação da
própria existência que cada ser humano
traz consigo, a qual indubitavelmente
reside no funcionamento dos neurônios
de certas regiões encefálicas em determinadas condições que resultam na vigília e
no sonho. A Consciência é uma das três
entidades fundamentais que ocupam as
questões levantadas pela ciência atual
e, como veremos abaixo, é possível que
o estudo de todos os outros aspectos
da natureza derive do estudo dessas
entidades.
Como em todas as questões abordadas pela ciência, o estudo da Cons-
81
82
Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
ciência exige o desenvolvimento de um
framework conceitual e experimental,
sem o qual se torna muito difícil testar
hipóteses, analisar resultados e propor
novas perguntas dentro dos rigores do
método científico. Esse framework pode
ser encontrado nos trabalhos de Gerald
Maurice Edelman (1929-), médico, imunologista e neurocientista americano,
nascido em New York (1929), detentor do
Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina
(1972), juntamente com o bioquímico e
imunologista inglês Rodney Robert Porter
(1917-), por seus trabalhos sobre a estrutura e a diversidade dos anticorpos, com
contribuições importantes sobre as interações entre células que levaram à descoberta das moléculas de adesão celular
(CAMs) [1]. Edelman propôs uma teoria
original, biológica, sobre a Consciência, a
qual procura associar determinados tipos
de processos neurais às propriedades
chaves da experiência consciente [2-5].
A existência de uma plataforma de
trabalho como a proposta por Edelman
permite abordar um problema técnico
crucial, que aflige todos os que trabalham em Neurociência, qual seja como
tornar possível registrar, medir, aferir
objetivamente processos que acontecem dentro do cérebro, entre eles e,
sobretudo, os processos subjacentes à
experiência consciente. Desde o advento
da Eletrofisiologia, quando os primeiros
experimentos usando essa técnica foram
feitos pelo médico e físico italiano Luigi
Aloisio Galvani (1737-1798), no Século
XVIII [6-8], diversos tipos de registro da
atividade elétrica neural tanto periférica
como central têm sido usados para explorar o funcionamento do Sistema Nervoso,
aos quais se juntaram recentemente métodos complexos computadorizados de
neuroimagem baseados em fenômenos
elétricos [9,10], magnéticos [11], no
emprego de raios X [12], de ressonância
magnética nuclear [13,14] e de emissão
de pósitrons [15], entre outros. A quantidade de informação obtida pelo emprego
dessas técnicas é vastíssima, mas não
tornou mais próxima a realização do
experimento hipotético de “registrar a
Consciência de um indivíduo”. Esse insucesso pode ser atribuído à resolução
espacial ou à resolução temporal desses
métodos, mas também à falta de colocar
a pergunta experimental dentro de uma
base conceitual adequada. Também é
inteiramente possível, mudando esta
argumentação para um enfoque mais
pessimista, que o estudo adequado da
Consciência esteja à espera de uma
grande revolução no conhecimento
científico como ocorreu com a própria
Eletrofisiologia, a qual não poderia existir
antes da descoberta da eletricidade, ou
como ocorreu com a Astrofísica Estelar,
impossível de avançar sem a descoberta
da fusão nuclear. São dois exemplos
da evolução do conhecimento que ilustram como muitas vezes é impossível,
num dado momento histórico, formular
perguntas para serem respondidas de
forma experimental ou teórica sobre um
dado problema científico sem que os
fundamentos físicos subjacentes a esse
problema sejam minimamente conhecidos. Pode ser esse o momento atual do
estudo da Consciência.
As três grandes questões mencionadas acima e que de certa forma compreendem o conjunto do que se indaga
sobre ciência são as seguintes. O que é
o Universo? O que é a Vida? O que é a
Consciência? Todas as investigações que
são realizadas pelos milhares de cientistas naturais de uma forma ou de outra
acabam desembocando nessas três
Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
questões. No centro desses trabalhos
estão o homem, os seres vivos e todas
as coisas existentes, em círculos cada
vez maiores que compreendem o anterior.
A Consciência
A terceira grande questão pode ser
a de maior interesse, pois diz respeito
intimamente à natureza do ser humano:
“o que é a Consciência, quando e como
ela surgiu na linhagem que levou ao ser
humano?” [16-18]. E, além disso, ela vem
com questões subsidiárias altamente
relevantes, tais como “outros animais
são dotados de Consciência?” [16-18],
“máquinas construídas pelo homem podem ser conscientes?”, “a Consciência é
uma consequência frequente da evolução
dos seres vivos?”, “existirão seres conscientes noutros planetas?”, “poderemos
desenvolver métodos de registro de tal
forma a preservar um estado consciente,
tanto para estudá-lo objetivamente como
para reproduzi-lo?”
Se as duas primeiras grandes questões mencionadas no início desse capítulo levam à Astrofísica e à Biologia, respectivamente, a terceira leva à Neurociência.
O problema enfrentado em cada uma
dessas grandes áreas do conhecimento
assemelha-se num aspecto: nas três
situações, pelo menos por enquanto, é
necessário tirar conclusões a partir de um
único experimento – um único Universo;
um único planeta com Vida – a Terra; um
único ser vivo dotado de Consciência – o
Homem. Entretanto, no caso da Cosnciência, existe mais de uma razão para
supor que isso possa não ser o caso. Em
primeiro lugar, o Homo sapiens sapiens
foi precedido por muitos parentes próximos, os primatas da subtribo Hominina,
fossem membros da sua própria espécie
(H. sapiens neaderthalensis), do mesmo
gênero (H. heidelbergensis, H. erectus, H.
ergaster, H. habilis) e de gêneros diferentes (Paranthropus aethiopicus; P. boisei;
P. robustus; Australopithecus sediba, A.
garrhi, A. africanus, A. bahrelghazali, A.
afarensis, A. anamensis; Ardipithecus
ramidus, A. kadaba; e, provavelmente,
muitos outros a serem descobertos), de
tal forma que a partir do que sabemos da
estrutura e função do Sistema Nervoso
em primatas, é quase certo que pelo
menos as espécies mais próximas do
Homem, todas já extintas, possuíssem
processos mentais muito semelhantes
aos que ocorrem no cérebro humano,
inclusive aquilo que chamamos Consciência. Em segundo lugar, a questão
da presença de Consciência em outros
primatas, outros mamíferos e até mesmo
aves e outros animais, quando perguntada dentro do framework montado por
Edelman e seus colegas, é respondida
afirmativamente [16-19]. Assim, pode ser
que pelo menos a Neurociência possa
prosseguir a investigação da sua questão
maior com mais de um ponto no gráfico,
diferentemente do que acontece com a
Biologia e a Astrofísica...
A pergunta da ordem do dia é se há
alguma maneira de registrar a atividade
consciente, ou seja, usar algum tipo de
neuroimageamento cuja análise revele
exatamente o que um ser humano esteja
pensando. Apesar de existirem muitas
formas de registrar a atividade dos neurônios cerebrais (como listado no início
deste capítulo), nenhuma delas ainda é
capaz de fornecer essa informação, e o
assunto ainda é do domínio da Ficção
Científica (Figura 1). Entretanto, os métodos existentes de registro da atividade
neural permitem estabelecer uma série
de correlações entre o efeito da estimu-
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lação sensorial como, por exemplo, a
estimulação visual, e atividade neuronal,
assim como a atividade neuronal que
precede a execução de um determinado
movimento, inclusive os movimentos que
levam à fala. Esses métodos têm sido
usados por Edelman e colegas para estudar os processos neurais que, segundo
eles, formam a base neurofisiológica da
Consciência [2,3].
Edelman e colegas seguiram as
idéias do médico, psicólogo e filósofo
americano William James (1842-1910),
segundo o qual a Consciência é um processo, um fluxo que muda numa escala
temporal de fração de segundo, tendo
como uma das suas principais características o fato de ser unificada ou integrada e, por conseguinte, também não
poder ser completamente compartilhada
entre dois indivíduos [2,19]. Em outras
palavras, a experiência consciente é feita
de sucessivas unidades, cada uma dela
durando aproximadamente 200 ms, não
havendo mais do que uma única “cena”
em cada estado da consciência, que não
é passível de decomposição, de tal forma
que o ser humano não experimenta dois
pensamentos ao mesmo tempo. Várias
observações experimentais corroboram
essa descrição. Por exemplo, pacientes
que foram submetidos ao seccionamento
do corpo caloso são capazes de resolver
simultaneamente dois problemas espaciais visuais quando cada um deles é
apresentado a um dos hemisférios cerebrais, enquanto um indivíduo normal, com
o corpo caloso intacto, combina esses
problemas numa única grande questão
muito mais difícil de resolver [2,19,20].
Além disso, um indivíduo não é capaz de
fazer várias tarefas simultaneamente, a
menos que uma delas seja altamente automática e não represente uma sobrecar-
ga para a experiência consciente (como
ler um texto ao mesmo tempo em que o
datilografa e ouve uma música de fundo)
[2,19]. Também não é possível tomar
mais de uma decisão conscientemente
dentro do chamado periodo refratário
psicológico, aproximadamente o tempo
que dura um estado da Consciência como
descrito acima, cujas bases corticais têm
sido objetos de estudos com imageamento por ressonância magnética nuclear funcional [2,19,24,25]. Outros fenômenos
que também podem ser interpretados
como decorrentes do caráter indivisível
da Consciência são a biestabilidade de
figuras ambíguas e a rivalidade perceptiva
(“perceptual rivalry”), esta última usada
por Edelman e colegas para explorar os
mecanismos da Consciência em uma
série de experimentos usando imageamento cortical por magnetoencefalografia
[2,19,26].
Ainda segundo a teoria de Edelman
e colegas, a segunda propriedade fundamental da Consciência é a sua grande
diferenciação ou complexidade [2,19].
Essa propriedade está relacionada ao
grande número de estados conscientes
possíveis quando um deles é escolhido
como o próximo dentro da sequência que
constitui nossa experiência consciente
diária. Esse número é, verdadeiramente,
gigantesco e a escolha é feita dentro de
uma fração de segundo, por exemplo,
quando um indivíduo discrimina uma cena
dentre um número muito grande delas
[27]. As implicações da grande complexidade do fenômeno consciente levam
ao seu tratamento usando ferramentas
da Teoria da Informação [28]. Dentro de
um processo, a diferenciação entre certo
número de possibilidades implica em
ganho de informação ou diminuição de
incerteza ou entropia [28]. Por exemplo,
Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
Figura 1 - Los Angeles, Dezembro, 1999. Lenny Nero (Ralph Fiennes), um ex detetive
policial que se tornou um ambulante, negocia com sonhos, especificamente com registros “Squid” de experiências feitos diretamente do córtex cerebral e reproduzidos num
aparelho semelhante a um reprodutor de DVD. Esse equipamento permite que o usuário experimente todas as sensações vividas pelo sujeito em que o registro foi feito.”
“Strange Days” é o título dessa película de Ficção Científica, lançada em 1995, dirigida por Kathryn Bigelow e produzida e co-escrita pelo seu ex-marido James Cameron.
Estrelam Ralph Fiennes (A), Angela Bassett, Juliette Lewis (B), Tom Sizemore, Michael
Wincott, Vincent D’Onofrio e Louise LeCavalier [56]. A película é notável pela sua visão
“distópica” do futuro e a moral ambígua da maioria dos seus personagens, levando
muitos críticos a considerarem-na como um exemplo moderno de “film noir”. Os trabalhos realizados por alguns grupos de pesquisa no exterior, inclusive o coordenado pelo
neurocientista brasileiro Miguel Ângelo Laporta Nicolelis (1961-) um dia permitirão que
esse tema clássico da Ficção Científica entre para a realidade da Ciência: o registo e
reprodução da experiência cerebral humana [57,58]. Fontes das ilustrações: [59,60].
Todos os direitos reservados.
A
quando uma moeda de faces idênticas
(ambas coroas) é jogada para o alto,
sabe-se de antemão que ela cairá com
coroa voltada para o observador e o ganho
de informação é igual a zero; no caso de
uma moeda comum, ela poderá cair com
coroa ou cara voltada para o observador
e o ganho de informação é igual a 0,5;
no caso de um dado, ele pode cair com
uma dentre seis faces voltada para cima
e o ganho de informação é de aproximadamente 0,83; e assim por diante. Usando o
mesmo procedimento, quando passamos
B
de um pensamento ao próximo, a escolha é feita entre bilhões de possibilidade
e o ganho de informação é enorme, na
métrica acima valor muito próximo de um,
o valor máximo, e a entropia é diminuída
para valores muito pequenos, próximos
de zero. A abordagem dessa propriedade da Consciência pode ser usada para
responder a questões aparentemente
difíceis tais como se um computador
digital pode ser consciente: neste caso a
resposta é não. O ganho de informação,
além disso, leva rapidamente a diferentes
85
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Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
consequências em termos de percepção,
motivação ou ação, uma característica
dos animais, especialmente dos mais
complexos.
O passo seguinte e crucial para estabelecer uma ligação entre o processo
que representa a Consciência, tal como
descrito acima pelas suas propriedades
fundamentais, e a realidade fisiológica
do funcionamento do Sistema Nervoso
reside, então, na procura dos fenômenos
neurofisiológicos que possam explicar a
integração e diferenciação observada na
atividade consciente. Edelman e colegas
propuseram a chamada Dynamic Core
Hypothesis para descrever essa ligação
[2,19]. Diferentemente de William James
que achava a Consciência um processo
que ocorria em todo o cérebro, Edelman e
colegas, baseado no conhecimento mais
detalhado do funcionamento cerebral disponível na atualidade, atribuem esse papel à mudança na frequência de disparo
de impulsos nervosos de neurônios situados em determinadas regiões do cérebro.
Os neurônios que contribuiriam para a
experiência consciente são aqueles que
fazem parte de grupos funcionais que se
tornam altamente integrados em cerca
de 200 ms, a escala temporal do período
refratário psicológico, e que exibem alto
grau de diferenciação estimado pela sua
complexidade, o qual se manifesta pela
mudança constante no seu padrão de
atividade e de conectividade. O dynamic
core incluiria regiões córtico-talâmicas
posteriores envolvidas na categorização
perceptual interagindo de forma reentrante com regiões anteriores envolvidas
na formação de conceitos, memória
relacionada a valores e planejamento
[2,19]. Utilizando paradigmas psicofísicos
de rivalidade perceptual, neuroimageamento por magnetoencefalografia e es-
timativa de complexidade usando Teoria
de Informação, eles foram capazes de
acrescentar comprovação experimental
à hipótese proposta [2,3].
Neste ponto é importante que certos
aspectos gerais da estrutura e função
do Sistema Nervoso sejam descritos,
uma vez que é na complexa forma como
as células neurais se comunicam que
residem os processos subjacentes à
Consciência, seja como proposto acima,
seja obedecendo a outras hipóteses já
formuladas ou que o venham a ser.
O Sistema Nervoso como um
sistema
Há diversos planos didáticos em que
o estudo do Sistema Nervoso pode ser
decomposto, incluindo o mapeamento de
suas divisões anatômicas e dos nervos
e tratos que ligam essas divisões, a caracterização dos elementos celulares que
constituem essas divisões e as vias que
as conectam, os processos bioquímicos
e farmacológicos que estão na raiz da
comunicação química entre as células
do Sistema Nervoso e os fenômenos
eletroquímicos responsáveis pelo impulso
nervoso e a liberação de certas substâncias químicas pelas células do Sistema
Nervoso. O estudo do Sistema Nervoso
conduzido dessa maneira organiza o palco onde as grandes funções neurais como
a Consciência, a Percepção, a Motivação,
a Emoção, o Raciocínio, a Lembrança ou
o Planejamento possam ser compreendidas, seja hoje ou amanhã, à medida que
o conhecimento avança.
Do ponto de vista anatômico, o Sistema Nervoso pode ser dividido em sistema
nervoso central e periférico. O sistema
nervoso central compreende o tecido
nervoso alojado na caixa craniana e no
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canal vertebral, sendo exceção as retinas
e as porções extracranianas dos nervos
ópticos que, apesar de fazerem parte do
sistema nervoso central, originando-se do
diencéfalo, terminam por ocupar ao longo
do desenvolvimento uma localização fora
da caixa craniana. As grandes divisões do
Sistema Nervoso central compreendem
o cérebro, o tronco cerebral, o cerebelo,
todos protegidamente situados na caixa
craniana, e a medula espinhal, dentro do
canal vertebral (Figura 2). O sistema nervoso periférico compreende a maior parte
do tecido nervoso situado fora do crânio
e do canal vertebral, incluindo conjuntos
neuronais situados nos gânglios nervosos
e os ramos nervosos que se originam dos
nervos cranianos e raquidianos.
Figura 2 - A. O sistema nervoso central está bem protegido contra pequenos traumas
por sua localização dentro da caixa craniana e do canal vertebral. As únicas porções do
sistema nervoso central localizadas fora dessa proteção são as retinas, as quais são
partes de uma região do cérebro chamada diencéfalo e que durante o desenvolvimento ocupam localização fora do crânio para formar a túnica interna do globo ocular. B.
Grandes divisões do sistema nervoso central: 1) hemisférios cerebrais, compreendendo
o córtex cerebral e os núcleos cinzentos da base do cérebro; 2) diencéfalo, compreendendo tálamo, hipotálamo e outros núcleos menores; 3) mesencéfalo; 4) ponte;
5) cerebelo compreendendo o córtex cerebelar e os núcleos cinzentos profundos do
cerebelo; 6) bulbo raquidiano; 7) medula espinhal. O mesencéfalo, a ponte e o bulbo
raquidiano constituem o tronco cerebral. Fonte da ilustração: [61]. Copyright © 1996,
Appleton & Lange. Todos os direitos reservados.
O Sistema Nervoso pode ser estudado do ponto de vista da Análise de
Sistemas, um ramo da Engenharia, Matemática e Teoria da Informação. Nessa
ciência, os elementos fundamentais
que precisam ser definidos e aplicados
à entidade que está sendo estudada,
são sinal e sistema. Um sinal é uma
quantidade física mensurável que varia
no espaço, no tempo ou noutro domínio,
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sendo representado por uma função de
uma variável dependente em relação às
variáveis independentes que representam
o domínio de interesse [29]. Um sistema
é um conjunto de relações causas-efeitos
entre dois ou mais sinais – os sinais identificados como causas são chamados de
inputs ou excitações enquanto os sinais
identificados como efeitos são chamados
outputs ou respostas [29]. Uma forma
comum de representar um sistema é um
diagrama em blocos, um fluxograma que
sistematiza a maneira como a informação
trafega e é modificada num determinado
sistema, como os sinais entram num
determinado sistema e originam sinais
de saída nesse sistema [29].
O Sistema Nervoso pode ser esquematicamente representado por um
fluxograma onde os seus componentes
fisiológicos fundamentais podem ser visualizados em ação. O fluxograma de Larry
W. Swanson (Figura 3) consiste numa
síntese baseada nos conceitos neurofisiológicos desenvolvidos pelo neurofisiologista e histologista espanhol Santiago
Ramón y Cajal (1852-1934, laureado
com o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1906) e pelo neurofisiologista,
histologista, bacteriologista e patologista inglês Sir Charles Scott Sherrington
(1857-1952, laureado com o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1932),
assim como nos conceitos cibernéticos
do matemático americano Norbert Wiener
(1894-1964) e do matemático húngaro
János von Neumann (1903-1957) [30].
Esse fluxograma procura captar a essência de como a informação chega, trafega
e sai do Sistema Nervoso. Ele também
procura explicitar que existem partes essenciais, especializadas, para diversos
subconjuntos de funções que ocorrem no
Sistema Nervoso: a informação provinda
do meio externo ou do meio interno chega
pelo sistema sensorial; os sistemas sensorial, intrínseco e cognitivo influenciam
o sistema motor; e a saída deste é a
via final comum para o comportamento
do indivíduo. O sistema sensorial pode
influenciar diretamente o sistema motor
e gerar respostas reflexas, as influências
exercidas pelo sistema cognitivo sobre o
sistema nervoso são importantes para
gerar respostas voluntárias enquanto as
influências exercidas pelo sistema intrínseco atuam como sinais de controle para
regular o estado comportamental. Além
disso, o fluxograma mostra a retroalimentação exercida pelo comportamento
sobre o Sistema Nervoso, através de
entradas convenientemente acessíveis
do sistema sensorial, de tal forma que
essa retroalimentação pode ser usada
pelo sistema cognitivo para a percepção
e pelo sistema intrínseco para atribuir
afeto (prazer, dor). O fluxograma também mostra a mútua influência entre
os quatro sistemas neurais. A partir de
um fluxograma como esse é possível
desenhar-se um plano coerente para o
estudo da fisiologia do Sistema Nervoso, descrevendo a função desses seus
quatro componentes principais e de suas
divisões funcionais, e relacionando, na
medida do conhecimento atual, forma e
função, ou seja, que funções dependem
de que estruturas neurais.
Cada um dos sistemas mencionados
acima está organizado em arquiteturas
diferenciadas, entre elas a arquitetura
paralela de processamento de informação
e a organização hierárquica dos níveis de
controle.
O processamento paralelo consiste
no uso de circuitos de neurônios sintonizados para diferentes domínios ou para
diferentes regiões de um mesmo domínio,
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transmitindo informação diferenciada
de um nível para outro do sistema; os
diversos tipos de informação transmitida
por esses circuitos são combinados de
acordo com as necessidades comportamentais para tornar mais eficiente o desempenho do organismo. A consequência
disso é que numa determinada via sensorial, por exemplo, existem fibras nervosas
transmitindo informações diferentes e,
muitas vezes, complementares, sobre
uma classe de estímulos sensoriais. A
estimulação mecânica da palma da mão,
por exemplo, é transmitida por pelo menos quatro classes de fibras nervosas
conectadas a receptores sensoriais diferenciados quanto à localização, precisão
espacial e precisão temporal: receptores
de Merckel, superficiais, boa precisão
espacial, pobre precisão temporal; receptores de Meissner, superficiais, pobre
precisão espacial, boa precisão temporal;
receptores de Ruffini, profundos, boa precisão espacial, pobre precisão temporal;
receptores de Paccini, profundos, pobre
precisão espacial, boa precisão temporal
(Figura 4). Os comandos motores dirigidos
aos músculos são levados por axônios de
três classes distintas de motoneurônios
alfa que se conectam respectivamente
a três classes de fibras musculares estriadas esqueléticas que se distinguem
pela intensidade da contração, rapidez
de contração e susceptibilidade à fadiga.
Figura 3 - O Sistema Nervoso pode ser tratado com as ferramentas da Análise de Sistemas e representado por fluxogramas. Neles o fluxo de informação pode ser seguido
através de seus principais passos com maior ou menor detalhamento. No fluxograma
abaixo, o comportamento (B) é determinado pelo sistema motor (M), o qual é influenciado pela informação provinda do sistema sensorial (S), pela informação oriunda do
estado comportamental intrínseco do indivíduo (I) e pela informação cognitiva (C). A
informação sensorial leva diretamente às respostas reflexas (r), a informação cognitiva
produz respostas voluntárias (v) e a informação intrínseca atua como sinal de controle
para regular o estado comportamental (c). A saída do sistema motor (1) produz o comportamento cujas consequências são monitoradas pelo retroalimentação sensorial (2).
Esta pode ser usada pelo sistema cognitivo para a percepção e pelo sistema intrínseco
para gerar afeto. Fonte da ilustração: [30]. Copyright © 2008, Elsevier Science. Todos
os direitos reservados.
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Figura 4 - Os sistemas sensoriais são portas importantes pelas quais a informação provinda do meio externo chega ao Sistema Nervoso. No ser humano, o sistema sensorial
somático é um dos mais importantes. Seus receptores estão distribuídos na pele, nos
tecidos profundos e nas vísceras. A informação provinda da pele chega à Consciência
enriquecendo-a com os detalhes de como os vários estímulos estão atuando na superfície do corpo. A. Mapas de campos receptivos das quatro classes de mecanorreceptores
especializados encontrados na pele glabra humana: corpúsculos de Meissner (RA); células de Merckel (SAI); corpúsculos de Paccini (PC); corpúsculos de Ruffini (SAII). Meissner e Merckel são receptores superficiais, com campos receptivos pequenos, enquanto
Paccini e Ruffini são receptores profundos, com campos receptivos grandes. B. Resposta
de fibras nervosas periféricas a um padrão de pontos da escrita Braille deslocado sobre a
superfície da ponta do dedo humano a uma velocidade de 60 mm/s, na direção indicada
pela seta, com mudança de 200 µm na sua posição a cada passagem. Cada potencial
de ação disparado pela fibra nervosa é representado por um ponto nos gráficos. Somente as fibras nervosas associadas às células de Merckel (SAI) seguem de forma fiel o padrão Braille, uma vez que possuem os menores campos receptivos e sua janela temporal
de amostragem é relativamente grande, permitindo uma resposta sustentada à estimulação. As respostas das fibras nervosas associadas aos corpúsculos de Meissner (RA) e
corpúsculos de Paccini (PC), por não terem essas características, distorcem a informação
presente no estímulo. As fibras nervosas associadas aos corpúsculos de Ruffini (SAII)
pouco respondem a esse tipo estímulo. Fonte da ilustração: [62]. Copyright © 2003,
Elsevier Science. Todos os direitos reservados.
A
B
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Além disso, os sistemas neurais
estão organizados em diversos níveis de
processamento interconectados por vias
dirigidas centralmente (ascendentes) ou
perifericamente (descendentes). Assim
por exemplo, o sistema visual possui três
níveis hierárquicos na retina, seguido de
um nível mais central no tálamo, pelo
menos dois na área visual primária do
córtex cerebral e assim sucessivamente.
A organização hierárquica preconiza que
cada nível está sob o comando de níveis
superiores progressivamente mais abrangentes. Esse tipo de organização implica
num progressivo aumento dos graus de
liberdade dentro de um domínio determinado dos níveis hierárquicos progressivamente superiores, os quais são capazes
de comandar funções progressivamente
mais complexas.
O Sistema Nervoso feito de células
O estudo do Sistema Nervoso como
sistema, visualizando-se seus centros
e vias como grandes blocos de um
fluxograma por onde “flui um software
escrito em linguagem do mais alto nível
computacional” permite, outrossim, dissecar ordenamente as entranhas do seu
hardware. Tanto num nível como noutro,
software e hardware, muito ainda há que
descobrir, categorizar e associar com as
funções neurais de ordem superior que
se sabe, pela introspecção, ocorrerem no
organismo humano na dependência das
ações do Sistema Nervoso. É possível
que quando tudo for conhecido, os detalhes do hardware tornem-se irrelevantes,
tal como num computador digital de hoje
em dia. Contudo, até que seja gerado
laboriosamente o conhecimento de como
essas funções neurais superiores estão
implementadas no tecido nervoso, não
é possível prosseguir sem os detalhes
do que constitui o tecido nervoso, suas
células e como essas células se comunicam (Figura 5).
Figura 5 - O tecido nervoso é formado
pelos neurônios, responsáveis pelas
funções de armazenamento e transmissão de informação necessária à percepção sensorial e ação motora, e diversos
outros tipos celulares com função de
nutrição e defesa. O tecido nervoso
adota vários aspectos estruturais nas
diversas partes do sistema nervoso periférico ou central. A fotomicrografia acima
ilustra uma região periférica da retina do
macaco reso corada com uma variante
do método de Gros-Schultze [63]. Esse
método utiliza a alta afinidade de metais
pesados, no caso a prata, pelo tecido
nervoso. Silveira e Perry aperfeiçoaram o
método para corar uma classe de células ganglionares da retina de primatas,
as células M, responsáveis pela visão
em baixos níveis de contraste [64]. Na
fotomicrografia os corpos celulares das
células M aparecem como contornos
elípticos marrons e os seus axônios
como feixes da mesma coloração contra
um fundo amarelado de células que se
coram menos intensamente. Escala =
100 µm.
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A descrição de uma célula é tarefa
que muda a cada momento, já que a
Citologia é área da ciência em desenvolvimento extremamente acelerado nos
dias atuais. Por outro lado, essa missão
há que ser abordada de diversos ângulos.
Por exemplo, partindo-se das ferramentas
originais da Citologia, podem-se descrever as caraterísticas morfológicas da célula, suas organelas e, nos dias de hoje,
suas macromoléculas. De outra maneira,
pode-se estudar o tráfego de moléculas
entre o meio externo e o interior celular,
ou entre compartimentos dentro das células, definindo-se as forças que atuam
nessas moléculas, que as fazem mover
e, assim, executar os fenômenos essenciais ao funcionamento da célula. Outra
abordagem consiste na quantificação das
diversas reações químicas que ocorrem
na célula, como o complexo de fenômenos bioquímicos que levam ao aproveitamento da energia contida nas moléculas
de glicose, pela oxidação de carbono
ao dióxido de carbono e de hidrogênio à
água; ou à duplicação do material genético, de tal forma a permitir que as células
filhas recebam da célula mãe na divisão
celular a informação necessária para o
seu funcionamento; ou, ainda, descrever
biofisicamente certos fenômenos celulares como a biomecânica da contração das
miofibrilas, a bioeletrogênese do impulso
nervoso e a bioenergética mitocondrial.
Essa multiplicidade de formas de
ver e descrever uma célula e o seu
funcionamento, é consequência do
desenvolvimento histórico dessa ciência
– a Citologia – do estado atual do conhecimento e da própria conveniência de usar
um conjunto simplificado de equações,
e outras formas de representação, que
melhor se adequem às necessidades
do momento. Deve-se apontar, entretan-
to, que todos os fenômenos biológicos
são oriundos da ação de apenas duas
das quatro interações fundamentais da
natureza. Esses fenômenos podem ser
explicados inteiramente, tendo-se todos
os elementos do problema, a partir da
quantificação dessas interações, a força
gravitacional e a força eletromagnética, já
que a força nuclear fraca e a força nuclear
forte não têm qualquer efeito conhecido
que seja especial à Biologia. Assim, por
exemplo, a exigência de maior força a
ser exercida pelo coração humano para
impulsionar o sangue até o cérebro na
posição ereta, é um fenômeno obviamente dependente da força gravitacional. Por
outro lado, a conformação que as moléculas de hemoglobina adotam no líquido
intracelular das hemácias depende exclusivamente de uma miríade de interações
eletromagnéticas entre os seus vários
átomos e os átomos circunjacentes, entre
eles os átomos das moléculas de água e
os íons do líquido intracelular.
O neurônio tem em comum com outras células eucarióticas os seus principais constituintes: o núcleo, onde a maior
parte do DNA celular está armazenada; o
citoplasma, com as organelas habituais,
tais como mitocôndrios, ribossomas, retículo endoplasmático rugoso, complexo
de Golgi e retículo endoplasmático liso;
e a membrana plasmática. Além disso,
como acontece com as demais células
eucarióticas, o neurônio apresenta determinadas especializações que lhe são
peculiares, específicas para as funções
que exerce. Assim, ao mesmo tempo em
que o corpo celular – a região perinuclear – assemelha-se a de muitas outras
células, por outro lado dele irradiam
prolongamentos muitas vezes extensos
e complexos, os dendritos e o axônio,
os quais são locais de contactos sináp-
Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
ticos entre os neurônios e fazem parte
dos circuitos neurais por onde trafega o
impulso nervoso. A Neurociência atual
compreende o estudo de uma série de
fenômenos nucleares, citoplasmáticos
e da membrana plasmática, importantes
para o entendimento de como o neurônio
funciona e como são geradas as funções
neurais a partir do funcionamento de
neurônios individuais.
O núcleo do neurônio é uma região
de alta atividade metabólica e, para cada
classe neuronal, determinados genes são
expressos e eles determinam as particularidades daquela classe como, por
exemplo, o tipo utilizado de neurotransmissor, ou seja, da substância química
que aquela classe de neurônio usa para
mandar mensagens para outros neurônios ou células fora do Sistema Nervoso.
O estudo do núcleo neuronal tem permitido, num primeiro movimento, a localização em pontos específicos do genoma
humano dos genes fundamentais para
o funcionamento do Sistema Nervoso
e, numa segunda fase, os mecanismos
nucleares que controlam a expressão
desses genes, avançando diariamente o
conhecimento sobre a genômica dos receptores sensoriais, da bioeletrogênese,
da transmissão sináptica e da contração
muscular [31].
O citoplasma neuronal, além de ser
dotado de organelas e outros componentes semelhantes àquele de outras
células, apresenta determinadas especializações peculiares ao tecido nervoso.
Assim, ele é dotado de um citoesqueleto
robusto, composto por três sistemas
protéicos fundamentais, formados por
microtúbulos, neurofilamentos e actina,
às quais estão associadas diversas proteínas conversoras de energia e transportadoras. Esse citoesqueleto dá suporte
ao tráfego intenso, bidirecional, entre o
pericário e o terminal axonal situado, frequentemente, a uma grande distância. No
homem, por exemplo, os corpos celulares
dos motoneurônios que inervam as fibras
musculares dos pequenos músculos das
mãos e dos pés estão situados na substância cinzenta medular dos segmentos
cervicais e lombares, portanto a dezenas
de centímetros de distância de seus terminais axonais. Apesar disso, diversos
elementos necessários ao funcionamento
da sinapse neuromuscular são formados
nos corpos celulares e enviados por
transporte axoplasmático para o terminal
axonal à essa distância, enquanto que
uma série de mensageiros químicos trafegam no sentido oposto, vindo da zona
sináptica dos motoneurônios em direção
aos seus pericários.
A membrana plasmática neuronal,
tal como nas outras células, demarca
o limite entre dois sistemas com princípios de organização muito diferentes, o
citoplasma e o líquido extracelular. Em
situações como essas, a interface entre
os meios é local de grande complexidade físico-química e de difícil modelagem
matemática. Para citar um exemplo
comum a todas as células, a diferença
de potencial elétrico entre os líquidos
intracelular e extracelular, o chamado
potencial de membrana ou diferença
de potencial elétrico transmembranar,
representa uma queda de voltagem de
aproximadamente 75 mV / 7,5 nm, ou
seja, 10.000.000 V/m! Esse valor tão
grande exerce uma tensão extraordinária
sobre as proteínas integrais da membrana plasmática e certamente explica como
algumas delas reagem com mudanças
conformacionais importantes quando o
potencial de membrana sofre pequenas
variações por efeito de estímulos de di-
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Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
versas naturezas. A enorme extensão de
membrana plasmática do conjunto dos
neurônios de um organismo é também
notável, já que essas células têm prolongamentos extensos e topologicamente
complexos – a área que as membranas
plasmáticas de todos os neurônios do
cérebro humano ocupariam se fossem
espalhadas lado a lado seria da mesma
ordem de magnitude da superfície da
Terra! É nessa área gigantesca, sujeita a
uma queda de voltagem gigantesca, que
atuam a miríade de sinais que modificam
o funcionamento cerebral a cada instante!
A membrana plasmática neuronal
apresenta toda uma série de receptores
que reconhecem sinais provindos do meio
externo de uma forma geral, inclusive de
outras células, neuronais ou não. No caso
do neurônio, os mecanismos de reconhecimento de sinais externos tomam formas
bastante sofisticadas e essenciais ao
funcionamento do Sistema Nervoso. É
o caso dos diversos processos de reconhecimento de estímulos localizados
nos receptores sensoriais, os quais são
células neuroepiteliais especializadas ou
extremidades dendríticas de neurônios
com corpos celulares localizados quase
sempre nos gânglios sensitivos. E também é o caso dos receptores de neurotransmissores, os quais estão localizados
na membrana pós-sináptica de todos os
neurônios e, em alguns casos, noutras
regiões da membrana fora do que tradicionalmente é considerada a membrana
pós-sináptica.
São funções essencialmente dependentes da membrana plasmática
neuronal as bases iônicas do impulso
nervoso, a propagação do impulso nervoso, a liberação de neurotransmissores e
sua ação pós-sináptica, a recaptação de
neurotransmissores e a interação entre
os estímulos e os receptores sensoriais.
Essas funções neuronais fundamentais
dependentes das funções da membrana
plasmática podem ser abordadas a partir
do conhecimento do modelo do mosaico
fluido para as membranas biológicas,
das propriedades físico-químicas da bicamada lipídica que representa a matriz
desse mosaico e de algumas famílias de
suas proteínas integrais, proteínas essas
constituídas por um número variável de
segmentos que atravessam a membrana
plasmática, estendendo-se do líquido
intracelular ao extracelular [32].
Comunicação no Sistema
Nervoso – o impulso nervoso
Portanto, o sistema nervoso pode ser
descrito no nível celular como formado
por neurônios e diversos tipos de células
associadas, estas com funções de proteção, nutrição, controle do meio interno e
isolamento elétrico dos axônios. Grupos
de neurônios associados em circuitos paralelos, hierárquicos, reentrantes, recebem
informação do meio exterior ao organismo
e do meio interno do próprio organismo,
processam essa informação confrontando-a com aquela armazenada previamente, de
natureza inata ou decorrente de experiência
anterior, e enviam às diversas partes do corpo informação necessária para o controle
das funções orgânicas e para a modificação
do meio ambiente circunjacente. Desse tráfego de informação emanam a percepção,
o aprendizado, a emoção, a motivação e a
satisfação das necessidades do organismo
de sobrevivência e reprodução. Crítico para
que tudo ocorra é a capacidade que os
neurônios têm de mandar mensagens de
um ponto a outro dentro da mesma célula
(os neurônios podem ter metros de comprimento e uma topologia extraordinariamente
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complexa, cheia de ramos que se superpõem aos ramos dos neurônios vizinhos),
de um neurônio a outro e de um neurônio
a outras células do organismo. As formas
de comunicação neuronal, comunicação
química e comunicação eletroquímica,
são especializações derivadas de funções
existentes em todas as células, mas que
atingem um alto grau de sofisticação no
neurônio.
A forma de comunicação natural
entre células é através de mensageiros
químicos e os neurônios são dotados de
maneiras altamente especializadas de
realizar a comunicação química. Porém,
o envio de informação complexa e precisamente codificada, a longas distâncias
e em alta velocidade exige que a evolução buscasse outras soluções que não
apenas mensageiros químicos. Para isso,
neurônios – e também as fibras musculares – desenvolveram uma forma especial
de comunicação para satisfazer essas
necessidades, uma forma extremamente
rápida para mandar mensagens a grandes
distâncias utilizando os gradientes eletroquímicos transmembranares, o impulso
nervoso.
Como mencionado no início desse
capítulo, os primeiros experimentos demonstrando a existência de eletricidade
nos seres vivos foram feitos por Galvani
[6-8]. Galvani observou que estimulando
eletricamente o nervo ciático de rã fazia
com que os músculos das patas do
animal se contraíssem em resposta. A
descoberta da bioeletricidade resultou
dessa observação e dos experimentos
subsequentes, e representou o ponto de
partida para os estudos que prosseguem
até hoje sobre os fenômenos eletrofisiológicos neurais e musculares. A polêmica
entre Galvani e o também físico italiano
Conde Alessandro Giuseppe Antonio
Anastasio Volta (1740-1827) sobre se
os fenômenos observados eram privilégio
exclusivo dos seres vivos, como Galvani
achava, ou se podiam ser reproduzidos
quimicamente em sistemas inanimados,
como achava Volta, levou de um lado à
Eletrofisiologia e de outro à Eletroquímica.
Os trabalhos de Volta criaram uma nova
área do conhecimento, revolucionaram a
Física e legaram uma invenção impactante no futuro do desenvolvimento tecnológico, a pilha ou bateria eletroquímica.
Entretanto, devido ao grande prestígio de
Volta e da oposição ferrenha que ele fez
à idéias de Galvani, eles tiveram o efeito
negativo de cessar os trabalhos sobre
a bioeletricidade por um longo período
[6,7]. Apesar disso, os nomes dos dois
grandes italianos ficaram ligados eternamente à ciência e à tecnologia nas expressões galvanismo, corrente galvânica,
galvanômetro, bateria voltaica, voltagem,
voltímetro, volt, entre outros.
O caminho aberto por Galvani, todavia, estava destinado a ser trilhado
com sucesso pelos seus sucessores e o
resultado dessa caminhada influenciou
definitivamente o curso da Eletrofisiologia
(Figura 6). Os experimentos sobre a
bioeletricidade foram retomados várias
décadas depois pelo físico e fisiologista
italiano Carlo Matteuci (1811-1868). Matteuci realizou uma série de experimentos
usando o galvanômetro inventado pelo
físico italiano Leopoldo Nobili (17841835), bastante sensível para a época,
e mostrou que os tecidos biológicos
excitáveis realmente geravam correntes
elétricas, como proposto por Galvani,
que podiam ser somadas adicionando
elementos em série como na pilha elétrica inventada por Volta. Ele mostrou que
num músculo de rã seccionado havia um
fluxo de corrente da área cortada, ou seja,
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Figura 6 - A eletrofisiologia é um dos pilares para entender-se o Sistema Nervoso. Ela
avançou a partir da descoberta da eletricidade animal pelo médico e físico italiano Luigi
Aloisio Galvani (1737-1798) (A), seguida da descoberta do potencial de ação pelo
físico e fisiologista alemão Emil du Bois-Reymond (1818-1896) (B) e de seu registro e
medida da velocidade de propagação pelo fisiologista alemão Julius Bernstein (18391917) (C). Bernstein usou a equação desenvolvida pelo físico-químico alemão Walther
Hermann Nernst (1864-1941) (D) para modelar o potencial de membrana dos neurônios na situação de repouso. Deve-se aos biofísicos e fisiologistas ingleses Sir Alan
Lloyd Hodgkin (1914-1998) (E) e Sir Andrew Fielding Huxley (1917-) (F) as equações
que descrevem modernamente o potencial de ação. Ver texto para maiores detalhes.
Fontes das ilustrações: [65-70]. Todos os direitos reservados.
A
B
C
D
E
F
do lado intracelular, para a superfície íntegra, ou seja, para o lado extracelular;
essa corrente bioelétrica foi chamada de
corrente de lesão [6,33]. A existência de
uma corrente eletroquímica assim orientada significava que o potencial elétrico
na zona lesada era negativo em relação
à zona intacta.
Os trabalhos de Mateucci inspiraram
diretamente o trabalho do físico e fisiologista alemão Emil du Bois-Reymond
(1818-1896), o qual duplicou os experimentos de Matteucci com equipamentos
mais avançados e chegou à descoberta
que um estímulo aplicado tanto no nervo
quanto no músculo levava à diminuição
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da corrente de lesão, ou seja, a diferença de potencial elétrico entre os lados
intracelular e extracelular da preparação
diminuía ou mesmo desapareceria; havia
uma “variação negativa” no potencial elétrico externo que se propagava ao longo
do nervo ou do músculo [6,33]. Hoje sabemos que isso corresponde ao potencial
de ação, esse fenômeno elétrico que se
propaga ao longo das fibras nervosas e
musculares quando elas são estimuladas
e que constitui o substrato eletrofisiológico do impulso nervoso [34-36].
Um experimento importante para
estabelecer a conexão direta entre o
potencial de ação e o impulso nervoso
consiste em mostrar que os dois se propagam com a mesma velocidade. Quando
du Bois-Reymond descobriu o potencial
de ação, a velocidade de condução do
impulso nervoso já era conhecida. Ela
havia sido medida por um dos maiores
cientistas de todos os tempos, o médico
e físico alemão Hermann Ludwig Ferdinand von Helmholtz (1821-1894), com
uma notável contribuição nos campos
da Termodinâmica, Óptica, Acústica,
Oftalmologia, Otologia e Filosofia, entre
outros campos do conhecimento. von
Helmholtz usou uma preparação nervo-músculo, como seus antecessores, e
construiu um aparelho que lhe permitiu
medir o intervalo temporal entre o estímulo do nervo e a contração do músculo com
grande precisão. Realizando várias vezes
o experimento com os eletrodos de estimulação colocados em diferentes pontos
ao longo do nervo, e dividindo a diferença
da distância percorrida pela diferença do
intervalo de tempo necessário para observar a contração muscular nas diferentes
colocação dos eletrodos, ele determinou
com precisão a velocidade de condução
do impulso nervoso [6].
Assim, o experimento crucial consistia em medir a velocidade de propagação
do potencial de ação e comparar com os
resultados obtidos por von Helmholtz.
du Bois-Reymond, após ter tentado e
falhado, passou esse problema para o
seu discípulo, o fisiologista alemão Julius
Bernstein (1839-1917). Este último construiu um equipamento eletromecânico
para registrar e medir a velocidade de
propagação do impulso nervoso, chamado por ele de reótomo diferencial, e produziu os primeiros registros do potencial
de ação, assim como foi capaz de medir
pela primeira vez a velocidade de propagação desse fenômeno (Figura 7). Como
esperado, a velocidade de propagação
do potencial de ação era a mesma do
impulso nervoso, estabelecendo-se pela
primeira vez uma relação causal entre os
dois fenômenos [6,32]. Bernstein também reconheceu a importância da permeabilidade da membrana plasmática ao K+
para o estado de repouso dos neurônios
e, usando a equação desenvolvida pelo
físico-químico alemão Walther Hermann
Nernst (1864-1941, ganhador do Prêmio
Nobel de Química de 1920), foi capaz
de modelar essa condição de equilíbrio
[6,33]. Ele compreendeu corretamente
que, na situação de repouso, a diferença de potencial elétrico entre um lado e
outro da membrana plasmática obedecia
o previsto pela Equação de Nernst para o
K+. O potencial de membrana de repouso
era igual ou muito próximo do potencial de
equilíbrio para o K+, ou seja, proporcional
à diferença de potencial químico para K+
entre o lado intracelular e extracelular,
sendo o potencial elétrico intracelular
menor que o potencial elétrico extracelular. Essa dependência entre o potencial
elétrico e o potencial químico para K+ foi
interpretada corretamente por Bernstein
97
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como devida à permeabilidade seletiva ao
K+ da membrana plasmática na situação
de repouso.
Entretanto, a mudança da diferença
de potencial elétrico que ocorria após
a estimulação do nervo foi interpretada
erradamente como simplesmente uma
perda dessa permeabilidade seletiva, um
aumento generalizado da permeabilidade
da membrana plasmática a íons e o colapso do potencial de membrana para zero.
Essa interpretação estava alinhada com
o que havia sido registrado nos primeiros
experimentos de du Bois-Reymond e nos
próprios registros de Bernstein. Entretanto, o exame cuidadoso dos registros feitos por Bernstein, mostra que em determinadas condições ele havia documentado
o “overshoot” do potencial de membrana
durante o potencial de ação, ou seja, a
inversão da polaridade do potencial de
repouso, porém não deu importância ao
mesmo, possivelmente julgando tratar-se de um artifício de registro. Ou seja,
durante o potencial de ação a membrana
simplesmente não perdia a diferença de
potencial elétrico entre o lado de dentro
e o lado de fora, mas essa diferença se
invertia, e o lado de dentro ficava agora
com potencial elétrico maior que o lado
de fora.
Figura 7 - Os gráficos são uma reprodu-
ção dos primeiros registros do impulso
nervoso publicados, feito devido ao fisiologista alemão Julius Bernstein (18391917), utilizando um equipamento da
época chamado reótomo diferencial (ver
detalhes do funcionamento desse aparelho em [6]). Na parte de cima da figura
o impulso nervoso é apresentado como
a variação da amplitude da diferença de
potencial elétrico em função do tempo
num dado ponto do nervo. Na parte de
baixo, o impulso nervoso é mostrado
como a variação da amplitude da diferença de potencial elétrico em função
da distância ao longo do nervo numa
dado momento (dois impulsos nervosos
sucessivos são ilustrados). Esses dois
gráficos capturam a essência do impulso
nervoso como uma alteração abrupta da
diferença de potencial elétrico entre os
lados intra e extracelular da membrana
plasmática que ocorre numa dada região
da fibra nervosa estimulada artificialmente e que, a partir daí, se propaga a uma
velocidade mensurável em ambas as
direções, afastando-se do ponto de estimulação. Na situação natural, o impulso
nervoso começa no início do axônio de
um neurônio, próximo ao corpo celular e
propaga-se em direção ao terminal axonal, algumas vezes situado a mais de um
metro de distância. Fonte da ilustração:
[6]. Copyright © 1983, Elsevier Science.
Todos os direitos reservados.
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Figura 8 - As equações de Hodgkin e
Huxley [34] descrevem a variação do
potencial de membrana do nervo em
função do espaço e do tempo, tendo
como parâmetros a capacitância da
membrana e os vários componentes da
condutância da membrana (permeabilidade da membrana a íons). Os gráficos
mostram como a solução numérica para
as equações de Hodgking e Huxley levam
às variações dos componentes da condutância da membrana (g) durante um
potencial de ação propagado (-V) – esses componentes são a condutância ao
íon sódio (gNa+) e a condutância ao íon
potássio (gK+). No início do potencial de
ação há um rápido aumento da permeabilidade da membrana quase inteiramente devido ao aumento de gNa+ mas, após
o pico do potencial de ação, gK+ cresce,
tornando-se uma fração progressivamente maior da condutância total, ao mesmo
tempo que gNa+ decresce rapidamente
para tornar-se negligível. A parte final do
aumento da condutância da membrana
que decresce gradualmente é devida
inteiramente ao aumento de gK+. Fonte
da ilustração: [34]. Copyright © 1952,
The Physiological Society / Blackwell Publishing. Todos os direitos reservados.
Deve-se aos biofísicos e fisiologistas
ingleses Sir Alan Lloyd Hodgkin (19141998) e Sir Andrew Fielding Huxley (1917-),
em experimentos realizados na Universidade de Cambridge (Inglaterra), em
meados do século vinte, a descoberta ou
redescoberta do overshoot do potencial
de ação e o estabelecimento definitivo
da importância dos fluxos de K+ e Na+
através de permeabilidades específicas
da membrana plasmática para a geração
tanto do estado de repouso quanto do estado de ação do potencial de membrana
dos neurônios e das fibras musculares
[34]. Eles ampliaram de forma considerável o trabalho fundamental do século
dezenove de Bernstein. Hodgkin e Huxley
foram além e, trabalhando no axônio
gigante de lula e usando a técnica de fixação de voltagem, desenvolveram empiricamente as equações que descrevem a
permeabilidade da membrana plasmática
nas condições de repouso e ação [34].
Esse trabalho lhes valeu o Prêmio Nobel
de Fisiologia ou Medicina de 1963, que
compartilharam com outro biofísico e
fisiologista, o australiano Sir John Carew
Eccles (1903-1997), este pelo trabalho
sobre a fisiologia das sinapses. Hodgkin
e Huxley fixaram no espaço e no tempo a
diferença de potencial elétrico através da
membrana plasmática do axônio gigante
de lula em vários níveis de voltagem,
mediram a corrente elétrica transmembranar e calcularam a condutância elétrica da
membrana. Eles foram capazes de separar duas correntes, uma devida ao Na+ e
outra ao K+, passando por condutâncias
(permeabilidades) seletivas da membrana dependentes da própria voltagem
transmembranar, com cursos temporais
diferentes. Eles encontraram equações
diferenciais que descreviam adequadamente as mudanças nas condutâncias de
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Na+ e K+ associadas com a estimulação
elétrica da fibra nervosa. Eles propuseram
que durante a primeira fase do potencial
de ação, quando o potencial de membrana se inverte, tornando-se o potencial
elétrico maior no interior da células em
comparação com o potencial elétrico do
líquido extracelular, o fator causal era um
aumento da condutância da membrana
ao Na+. Este aumento era transitório e,
na segunda parte do potencial de ação,
quando o potencial de membrana voltava
à polaridade de repouso, ou seja, com o
potencial elétrico do interior da célula menor do que o potencial elétrico do líquido
extracelular, o fator preponderante era um
aumento da condutância ao K+ (Figura 8).
A descrição adequada dos fenômenos iônicos que explicam o potencial de
membrana tanto na situação de repouso,
quanto nas diferentes fases do potencial
de ação, incorporou-se ao conhecimento
do funcionamento dos neurônios e fibras
musculares e permitiu o enorme avanço
sobre a fisiologia dessas células com técnicas progressivamente mais sofisticadas
[35,36] (Figura 9).
O potencial de membrana neuronal
depende principalmente de duas classes
de proteínas integrais da membrana plasmática, canais e bombas que translocam
íons de um lado para outro dessa membrana [35]. As bombas utilizam a energia
da quebra do ATP para transportar íons
contra seus gradientes eletroquímicos e
os canais deixam os íons fluírem a favor
dos seus gradientes eletroquímicos. Na
situação de repouso o potencial de membrana depende principalmente dos canais
de K+ com portões permanentemente
abertos e, em menor extensão, da bomba
de Na+/K+ [35].
Nas últimas décadas houve um grande avanço num dos “mistérios” centrais
da base biofísica das condutâncias de K+
e Na+, críticas para o entendimento do
potencial de membrana nas condições de
repouso e ação. Tanto Bernstein quanto
Hodgkin e Huxley, entre outros, registraram o efeito dessas condutâncias e as
modelaram matematicamente, porém sua
base estrutural permaneceu desconhecida por muito tempo. Hoje, a estrutura dos
canais de K+ é conhecida em grande detalhe, graças a estudos de clonagem e expressão gênicas, inicialmente realizados
em canais de neurônios do invertebrado
Drosophila melanogaster [37], e estudos
cristalográficos realizados em canais da
bactéria Streptomyces lividans [38]. Os
canais de K+ são uma das mais antigas
proteínas transmembranares, ocorrendo
em todas as células procarióticas e eucarióticas. Assim, mesmo o conhecimento
angariado em neurônios de invertebrados ou mesmo em células não neurais
é importante e útil para entendermos
a estrutura e função desses canais no
Sistema Nervoso de mamíferos, inclusive
no córtex cerebral do homem [39,40].
O estudo da estrutura do canal de
+
K permitiu a descoberta das bases
moleculares da permeabilidade e seletividade da membrana plasmática a esse
íon e também a outros íons importantes
para a eletrofisiologia celular (Figura 10)
[41]. Existe uma grande variedade de
canais de K+, alguns com portões constantemente abertos, outros com portões
dependentes do nível de voltagem transmembranar ou dependentes da ligação de
um neurotransmissor. Esses canais têm
estrutura bastante semelhante entre si e
com os canais de Na+ e Ca++ com portões
dependentes de voltagem: tetrâmeros
formados por quatro subunidades semelhantes; cada subunidade possuindo seis
segmentos transmembranares (apenas
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Figura 9 - Atualmente, utilizam-se procedimentos sofisticados de registro intracelular
e extracelular de neurônios de vários animais e localizações, empregando-se microeletródios. Nos gráficos acima, é feita uma comparação das propriedades de disparo
entre neurônios da substância branca e neurônios piramidais da camada V do córtex
cerebral, registrados com micropipetas inseridas no citoplasma [71]. (A) Registro de
neurônio da substância branca. Potenciais de ação provocados por pulsos de corrente
de 60 pA. Os potenciais de ação foram seguidos por pós-potenciais hiperpolarizantes
rápidos (PPHr) e, após o estímulo, por pós-potenciais hiperpolarizantes lentos (PPHl).
O potencial de repouso (ERM) no momento do registro encontrava-se em -56 mV. (B)
Mesmo neurônio de (A). Aumentando-se a intensidade do pulso de corrente de estimulação, mais potenciais foram disparados e não foi observada adaptação da célula ao
estímulo. (C) Outro neurônio da substância branca, onde os potenciais de ação foram
provocados com a mesma intensidade de corrente da célula anterior mostrada em (A)
e (B). Nesta célula os potenciais de ação foram seguidos por PPHr e por pós-potenciais hiperpolarizantes médios (PPHm), com ERM de -54 mV. (D) Quando a intensidade da corrente foi aumentada, mais potenciais foram disparados, mas ocorreu uma
adaptação. (E-F) Neurônio piramidal da camada V. Procedimento experimental como
nas duas células anteriores ilustradas em (A-D). Notar a acentuada adaptação e um
proeminente PPHm seguindo cada potencial de ação, com ERM de -65 mV.
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dois em alguns tipos de canais de K+);
os segmentos S5 e S6 formam o poro do
canal e possuem interposto entre eles, na
conformação primária da proteína, uma
sequência de aminoácidos que forma
a região responsável pela seletividade
iônica (Figura 10).
A permeabilidade e seletividade
iônica dos vários canais foram durante
muito tempo grandes enigmas da Biofísica Celular. Por exemplo, a alta taxa
transporte de K+ de dentro para fora da
célula (fK+ = 108 íons / s), próxima do
limite de difusão, indica que o transporte
ocorre através de um poro aquoso. Por
outro lado, a alta seletividade, 104 vezes
maior do que a do Na+, não é fácil de explicar por um processo difusional em fase
aquosa, uma vez que os íons K+ e Na+ são
esferas sem maiores particularidades,
inclusive tendo o Na+ um raio de Pauling
menor (rNa+ = 0,95 Å; rK+ = 1,33Å). Esse
enigma começou a ser solucionado a
partir dos anos noventa, mostrando-se
que a permeabilidade e seletividade dos
canais de K+ dependem essencialmente
de suas propriedades estruturais e que
princípios e mecanismos semelhantes
devem também determinar as propriedades dos canais de Na+ e Ca++ [37-40]
(Figura 10).
O K+ é atraído para a abertura interna
do canal por cargas negativas de ácido
glutâmico estrategicamente localizadas.
A partir daí ele percorre um estreito pertuito até uma cavidade central, onde é
estabilizado eletrostaticamente pelas
moléculas de água de solvatação e pelos
dipólos formados pelas hélices do poro.
A passagem pelo filtro de seletividade
só é possível pela perda da maioria das
moléculas de água, a barreira energética
enorme que se opõe a esse processo
sendo vencida pela substituição dos
oxigênios das moléculas de água pelos
oxigênios de carbonilas situadas ao longo
do filtro de seletividade. Ao longo do filtro
de seletividade, o K+ passa com apenas
duas das seis moléculas de água da
camada mais interna de solvatação e os
sucessivos oxigênios das carbonilas vão
ocupando a posição das outras quatro
moléculas de água mais internas. As
cargas negativas de ácido aspártico situadas estrategicamente na abertura externa
do canal contribuem para dirigir a saída do
K+. Em situações onde o fluxo se inverte
o K+ é inicialmente atraído por essas cargas. A razão pela qual o Na+, apesar de
menor que o K+, não poder passar pelos
canais de K+ é porque os oxigênios das
carbonilas do filtro de seletividade ficam
muito longe do íon e não conseguem
substituir apropriadamente a ação eletrostática dos oxigênios das moléculas de
água; isso impede que o Na+ se desfaça
das moléculas de água de solvatação e,
assim, não consiga permear o filtro de
seletividade. Outros estudos desse tipo
estão esclarecendo outros aspectos da
fisiologia dos canais iônicos, tais como
a estrutura do sensor de voltagem, as
alterações conformacionais que permitem
a abertura desses canais sob a ação da
modificação do potencial de membrana,
e o bloqueio que determinados canais sofrem após sua abertura, de tal forma que
o fluxo iônico é subitamente interrompido
(chamado de mecanismo de inativação)
[41-45].
Em resumo, a modificação do potencial de repouso neuronal, quando
levada além de um determinado valor
– o chamado potencial limiar – dispara o
impulso nervoso, uma variação de grande amplitude no potencial de membrana
que se propaga ao longo de seus prolongamentos [35]. Esse é um fenômeno
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Figura 10 - O estudo da estrutura do canal de K+ permitiu a descoberta das bases mo-
leculares da permeabilidade e seletividade da membrana plasmática a esse íon. Existe
uma grande variedade de canais de K+ na natureza, os quais são encontrados em células procarióticas e eucarióticas, sendo sua estrutura bastante semelhante entre si e
com os canais de Na+ e Ca++ dependentes de voltagem. No caso dos canais de K+,
as subunidades podem compreender todos os seis ou apenas dois segmentos transmembranares. Nesse último caso, eles correspondem aos segmentos transmembranares S5 e S6, que formam o poro do canal e possuem interposto entre eles, ao longo
da conformação primária da proteína, uma sequência de aminoácidos que constitui a
região responsável pela seletividade iônica. Roderick MacKinnon e colaboradores estudaram o canal de K+ KcsA da bactéria Streptomyces lividans, formado por 396 aminoácidos e cerca de 6.000 átomos. Esse canal é do tipo com quatro subunidades de dois
segmentos transmembranares cada (uma hélice alfa externa e outra interna) mais uma
região interposta entre eles parcialmente helicoidal (hélice alfa do poro) e parcialmente
desespiralizada (filtro de seletividade). A. Vista esquemática lateral do canal de K+. B.
Corte longitudinal no canal de K+, mostrando a superfície acessível ao solvente aquoso, colorida de acordo com suas propriedades físicas: as áreas azuis são carregadas
positivamente, as brancas têm polaridade intermediária e as vermelhas são carregadas negativamente; as áreas amarelas correspondem às regiões hidrofóbicas voltadas
para a luz do canal. Os íons K+ são representados por esferas verdes de dimensões
correspondentes ao raio de Pauling (1,33 Å). As hélices internas estão voltadas para
o interior do canal, enquanto as hélices externas estão voltadas para a matriz lipídica.
O canal possui um pertuito longo (20 Å de comprimento), que se estende da abertura
interna guardada por cargas negativas de ácido glutâmico, até uma cavidade central
(10 Å de comprimento), seguida pelo filtro de seletividade (12 Å de comprimento por
1,4 Å de raio), que se estende até a abertura externa, onde cargas negativas de ácido
aspártico exercem certa influência. As hélices do poro formam dipólos apontando suas
cargas negativas parciais para a cavidade central do canal. No texto são relacionados
esses aspectos estruturais com a permeabilidade e seletividade do canal de K+. Fonte
da ilustração: [40]. Copyright © 1998, American Association for the Achievement of
Science. Todos os direitos reservados.
A
B
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particular de apenas algumas células, as
chamadas células excitáveis, que compreendem além do neurônio, a fibra muscular
estriada esquelética, a fibra muscular
estriada cardíaca e a fibra muscular lisa,
ressaltando-se o fato de que algumas
células neuroepiteliais (e.g., cones, bastonetes, células ciliadas do órgão espiral
de Corti) e alguns neurônios (e.g., células
horizontais retinianas, células bipolares
retinianas, algumas células amácrinas
retinianas) não apresentam essa propriedade. A excitabilidade neuronal depende
do trabalho de uma classe específica de
canais Na+ e K+ presentes na membrana
plasmática, cuja abertura é dependente
do próprio potencial de membrana – quando a diferença de potencial através da
membrana plasmática cai além de um
certo valor, esses canais se abrem. O
fenômeno é dominado inicialmente pela
abertura dos canais de Na+ dependentes
de voltagem, levando à entrada desse
íon no neurônio, a favor do seu gradiente
eletroquímico. Na fase final, os canais
de Na+ fecham-se através do mecanismo
de inativação, enquanto que os canais
de K+, mais lentos e sem mecanismo
de inativação, permanecem abertos, levando à saída desse íon a favor do seu
gradiente eletroquímico. A consequência
é uma inversão abrupta da diferença de
potencial elétrico transmembranar que
dura cerca de 1 ms – o impulso nervoso.
A propagação do impulso nervoso deve-se
à ação longitudinal das cargas que foram
mobilizadas transversalmente através da
membrana, o que serve de estímulo para
as regiões vizinhas ainda em repouso. O
restabelecimento das condições originais
do neurônio ocorre a um prazo mais longo
que o impulso nervoso, sendo necessário
que o Na+ que entrou na primeira fase
seja devolvido ao líquido extracelular e o
K+ que saiu seja devolvido ao interior da
célula; esse papel é desempenhado pela
bomba de Na+/K+ às custas de energia
metabólica.
Comunicação no Sistema Nervoso –
a sinapse química
O potencial de repouso pode ser modificado de muitas maneiras, por muitos
tipos de estímulos, contudo a via final
comum desses estímulos é constituída
por proteínas integrais que modificam
a permeabilidade a íons da membrana
plasmática, seja atuando como canais,
que deixam os íons se difundirem a favor dos seus gradientes eletroquímicos,
seja atuando como bombas, as quais
transportam os íons contra seus gradientes eletroquímicos às custas direta
ou indiretamente de energia metabólica.
No caso dos estímulos sensoriais, existem mecanismos muito diversos entre
si, baseados em famílias diferentes de
proteínas transmembranares sensíveis
especificamente ao estímulo sensorial
a ser detectado. Por exemplo, na visão
esse papel é desempenhado por uma
proteína transmembranar chamada rodopsina, a qual existe em vários tipos, e
ocorre tanto em cones quanto bastonetes
[46]. A rodopsina é estimulada quando
absorve um fóton e sua excitação é transmitida por uma cascata molecular cujo
efeito é diminuir a condutância de uma
classe específica de canais de cátions,
permeáveis em diferentes proporções
à Ca++, Mg++, Na+ e K+ [47]. Esse é um
dos muitos mecanismos pelos quais os
estímulos sensoriais são transduzidos
em variações do potencial de membrana
dos receptores sensoriais.
Contudo, talvez, o caso mais universal de modificação do estado neu-
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ronal é encontrado na sinapse, onde
os neurotransmissores liberados pelos
neurônios pré-sinápticos atuam em
proteínas integrais da membrana plasmática dos neurônios pós-sinápticos,
chamadas receptores de neurotransmissores que vão, por seu turno, modificar
o potencial de repouso desses neurônios
[48-50]. Essa modificação pode ser por
ação direta, quando esses receptores
possuem canais iônicos, ou indireta,
quando eles controlam uma cascata de
reações metabólicas que levam, ao final,
à abertura ou fechamento de canais iônicos [50].
Outras proteínas integrais da membrana plasmática são importantes para
funções fundamentais do neurônio. Por
exemplo, certos canais de Ca++ dependentes de voltagem permitem o influxo de
Ca++ essencial para disparar o complexo
processo de exocitose das vesículas
sinápticas que contém as moléculas do
neurotransmissor [48]. Esse processo
compreende a ação orquestrada de várias classes de proteínas da membrana
plasmática, da membrana da vesícula
sináptica e do citoplasma, sendo o produto final a liberação de moléculas de
neurotransmissor no líquido extracelular,
as quais vão servir de estímulo químico
para os próximos neurônios do circuito
neural.
Outro exemplo envolve o transporte
de moléculas de neurotransmissores
de volta ao citoplasma neuronal ou de
dentro do citoplasma para o interior
das vesículas sinápticas, ou seja, para
o seu armazenamento [51]. Esses dois
fenômenos dependem de quatro classes
de proteínas integrais, sendo duas classes de transportadores e duas classes
de bombas iônicas. O transporte do
neurotransmissor através da membrana
plasmática, de volta ao citoplasma, depende dos chamados transportadores de
solutos da membrana plasmática, uma
classe que compreende muitas proteínas
diferentes, uma para cada grupo de solutos, não somente neurotransmissores,
mas também aminoácidos em geral e
açúcares, entre outros solutos. Assim,
existe um transportador de glutamato,
outro de GABA, outro de colina, outros
para as diversas aminas biogênicas, etc...
Esses transportadores usam a energia
do gradiente eletroquímico de Na+, criado pela bomba de Na+/K+ e, como tal,
realizam o sinporte de seu soluto com
íons Na+, outros íons podendo ser transportados simultaneamente num sentido
ou noutro. Por outro lado, o transporte
de moléculas de neurotransmissor do
citoplasma para o interior das vesículas
sinápticas envolve uma outra família de
proteínas integrais, dessa feita situadas
na membrana vesicular, as quais utilizam
o gradiente eletroquímico de H+, criado às
expensas de energia metabólica por uma
bomba de H+ presente nessa membrana.
Novamente, existem transportadores
de solutos da membrana vesicular para
glutamato, GABA, acetilcolina, aminas
biogênicas, e assim por diante, os quais
executam o antiporte do seu neurotransmissor e H+.
O termo sinapse foi usado pela primeira vez por Sherrington, em seu livro
The Integrative Action of the Nervous
System (1906), para responder questões
relativas a uma descontinuidade entre um
neurônio e outro. Sherrington comparou
a propagação bidirecional que ocorria em
um nervo com a propagação unidirecional em um arco reflexo. Essa diferença
era devida a barreiras intercelulares
existentes entre os neurônios que ele
denominou sinapse [52]. A partir dessas
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Neurociências“99:_b^QTQ6\e]Y^U^cUTU3_W^Y|z_9]e^UU>UebQ\1SQTU]YQ>QSY_^Q\TU=UTYSY^Q
observações, duas escolas antagônicas
de neurocientistas tentaram descrever
como o sinal passava de uma célula para
outra através das sinapses. Os eletrofisiologistas partilhavam a idéia que o impulso
nervoso cruzava a sinapse eletricamente,
enquanto os farmacologistas preferiam
a idéia da transmissão química. Após
cinquenta anos de debates, ambas as escolas finalmente chegaram a um acordo
de que ambas as formas de transmissão
podiam existir no Sistema Nervoso.
A transmissão química foi mostrada
de uma maneira inequívoca por um experimento histórico realizado em 1921
pelo farmacologista alemão Otto Loewi
(1873-1961, ganhador do Prêmio Nobel
de Fisiologia ou Medicina de 1936). Ele
desenvolveu uma preparação contendo o
nervo vago e o coração de uma rã. Quando o nervo era estimulado eletricamente,
o coração diminuía imediatamente a força
e a frequência de seus batimentos. Quando a solução que banhava a preparação
foi adicionada a uma segunda preparação
contendo agora somente o coração, sem
interferência do nervo vago, esse coração
também diminuía a força e a frequência
de seus batimentos. Esse resultado era
sugestivo que ocorria uma inibição causada por uma substância presente na
solução que hoje se sabe ser acetilcolina
liberada pelo terminal do nervo vago que
havia sido estimulado eletricamente [53].
O conhecimento de todas as etapas
da transmissão química intervindo no
processamento do sinal nervoso veio,
principalmente, através de estudos
de órgãos periféricos como o músculo
sartório de rã e do músculo dorsal de
anelídeos. Nesses estudos, as respostas
eram comparadas com os efeitos de certas substâncias químicas naturais e/ou
sintéticas aplicadas na sinapse entre o
neurônio motor e os seus músculos alvos
e era constatado que os efeitos observados eram bastantes similares [52,54].
Em ambos os casos a acetilcolina, neurotransmissor natural, era sintetizada
pelos neurônios motores e liberada por
estimulação elétrica artificial ou natural
dos seus terminais motores. Portanto,
pode-se considerar a acetilcolina como
um mediador químico ou neurotransmissor que ao se distribuir na fenda sináptica
transmite os sinais provindos do terminal
nervoso ao músculo estriado com que
aquele faz sinapse.
Registros eletrofisiológicos com
microeletrodos intracelulares revelaram
sinais elétricos típicos dessas sinapses. Na preparação nervo – músculo já
mencionada, se o neurônio motor for
estimulado com eletrodos posicionados
nessa célula, uma resposta pode ser
observada na fibra muscular estriada
esquelética por eletrodos de registro lá
posicionados. Se os eletrodos de registro
forem colocados agora no neurônio motor
e o estímulo for dado na fibra muscular,
nenhuma resposta é obtida. Portanto, o
sinal passa somente em uma direção,
do neurônio motor para fibra muscular.
A informação que passa através de uma
sinapse química é vetorizada, ao passo
que numa sinapse elétrica o sinal passa
nos dois sentidos. Outra diferença entre
a sinapse elétrica e a sinapse química é
o retardo sináptico que ocorre na sinapse
química, em torno de 0,3 a 0,8 ms, decorrente das inúmeras etapas químicas
intervenientes entre a chegada de um
impulso nervoso no terminal pré-sináptico
e a geração de um novo impulso na célula
seguinte, muscular ou neuronal.
Outra técnica que revelou particularidades e diferenças entre a sinapse
elétrica e aquela que faz uso de neuro-
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transmissores, como a sinapse neuromuscular, foi a microscopia eletrônica.
Essa técnica mostrou que a sinapse química possuía uma polaridade morfológica
que refletia sua polaridade funcional. A
fenda sináptica era muito mais larga (20
a 50 nm) do que na junção elétrica. Além
disso, os dois lados da fenda sináptica
apresentavam morfologias diferentes,
coisa que não era vista na sinapse
elétrica: no lado pré-sináptico existiam
vesículas sinápticas com 30 a 60 nm de
diâmetro, enquanto do lado pós-sinaptico
essas vesículas não existiam. Quando
as vesículas foram isoladas por meios
bioquímicos, constatou-se a presença de
neurotransmissores nessas estruturas
[55].
Figura 11 - As sinapses são locais onde
os neurônios se comunicam entre si ou
com células a eles associadas. Na figura
vê-se a representação esquemática de
uma sinapse química. Ela é formada
por um elemento pré-sináptico e um
elemento pós-sináptico separados por
uma fenda sináptica. Frequentemente
o elemento pré-sináptico é o terminal
axonal de um neurônio, dentro do qual
as moléculas do neurotransmissor estão
concentradas nas vesículas sinápticas.
Diversas macromoléculas presentes na
membrana plasmática, membrana das
vesículas sinápticas e no próprio citoplasma executam um grande conjunto de
funções que permitem a síntese, acumulação, liberação e recaptação do neurotransmissor. Frequentemente também o
elemento pós-sináptico é um dendrito ou
o próprio corpo celular de um neurônio,
onde existem macromoléculas situadas
na membrana plasmática que funcionam
como receptores dos neurotransmissores. Atuando nos seus receptores, os
neurotransmissores deflagram uma série
de fenômenos no neurônio pós-sináptico, cuja consequência é a passagem da
informação neural de um neurônio para
o próximo.
Para ser considerado um neurotransmissor, a molécula transmissora requer
alguns pré-requisitos: i) presença de
enzimas como passos limitantes no terminal pré-sináptico; ii) armazenamento da
molécula em vesículas pré-sinápticas; iii)
liberação da molécula pelo terminal pré-sináptico regulada por Ca++; iv) presença
de receptores específicos na membrana
pós-sináptica para interagir com essa
molécula; v) presença de transportadores
e/ou enzimas que tenham a função de
terminar com a ação da molécula sobre a
membrana pós-sináptica (Figura 11). Existem varias classes de neurotransmissores que podem ser classificados por sua
estrutura química, tais como: acetilcolina;
aminoácidos como aspartato, glutamato,
glicina e GABA; e aminas biogênicas,
sendo as mais conhecidas serotonina,
dopamina, noradrenalina, adrenalina e
histamina. Fazem parte também do grupo,
os neuropeptídeos que podem ter de três
a mais de 30 resíduos de aminoácidos.
Esses neuropeptídeos podem ser classificados em quatro grupos principais: as
taquicininas, tais como a substância P,
cuja função mais conhecida é sua parti-
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cipação como neurotransmissor nas vias
da dor; os hormônios neurohipofisários
ocitocina e vasopressina, o primeiro que
está envolvido com funções da glândula
mamária e o segundo que atua como
hormônio antidiurético; os hormônios
liberadores hipotalâmicos, incluindo o
hormônio liberador de corticotropina,
a somatostatina e vários outros; os
neuropeptídeos opiáceos, endorfinas e
encefalinas.
A sinapse colinérgica que usa o neurotransmissor acetilcolina (ACh) pode
ser usada como exemplo de sinapse
química. A acetilcolina (ACh) é sintetizada
a partir de dois precursores imediatos,
a colina e acetil-coenzima A, através da
enzima colina acetiltransferase (ChAT)
que está presente no terminal nervoso
pré-sináptico. A purificação dessa enzima
permitiu que se produzisse anticorpos
e assim se pudesse mapear sinapses
colinérgicas em todo o sistema nervoso
central. A enzima de degradação é a
acetilcolinesterase que está presente
em células que apresentam receptores
colinérgicos. A síntese de ACh é limitada
pela quantidade de colina presente no
terminal pré-sináptico. A captação de colina ocorre através de um transportador de
alta afinidade. Um segundo transportador
presente em vesículas sinápticas faz o
terminal pré-sináptico acumular ACh.
Quando um potencial de ação chega
ao terminal nervoso, ocorre um fluxo de
íons Ca+ através de canais de Ca++ dependentes de voltagem, como mencionado
acima. Como resultado da concentração
aumentada de Ca++ intracelular, vesículas
contendo ACh fundem-se com a membrana pré-sináptica e liberam o seu conteúdo
na fenda sináptica. O neurotransmissor
difunde-se pela fenda sináptica e atinge
a célula pós-sináptica em cuja membrana
plasmática ficam localizados os receptores pós-sinápticos. Os receptores pós-sinápticos foram primeiro notados pelo
fisiologista inglês John Newport Langley
(1852-1925) que, ao trabalhar com uma
preparação neuromuscular, mostrou que
a nicotina era capaz de estimular o músculo e o curare inibir a contração observada. Ele chamou a substância presente
no músculo de substância receptiva, hoje
chamada de receptor.
Existem várias peculiaridades para
cada neurotransmissor e simplesmente
não se pode dizer que uma molécula é
excitatória ou inibitória. Dependendo da
situação, o neurotransmissor pode ser excitatório e em outra situação comportar-se
como inibitório. A ação do neurotransmissor depende do tipo de receptor em que
ele se liga e dos processos intracelulares
que são influenciados pelo receptor em
questão. A interação química entre o neurotransmissor e seu receptor pós-sináptico
desencadeia uma série de eventos na
célula pós-sináptica. Essas modificações
podem levar diretamente a uma resposta
de sinalização rápida traduzida como hipopolarização (excitação) ou hiperpolarização
(inibição) da célula pós-sináptica quando o
receptor contém na sua estrutura um canal
iônico – receptor ionotrópico. Esse é o caso
do receptor nicotínico de ACh que contém
um canal de cátions. Noutras situações, o
receptor de neurotransmissor estimulado
desencadeia uma cascata de reações
bioquímicas na célula pós-sináptica que,
entre outros efeitos, abre ou fecha certos
canais iônicos da membrana plasmática;
essa resposta é lenta em comparação com
a primeira descrita acima porque envolve
muitas reações químicas na membrana
plasmática, no citoplasma, em organelas e
até mesmo no núcleo celular, e o receptor
é dito metabotrópico. Esse é o caso dos
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vários tipos de receptores muscarínicos
de ACh.
Após a liberação do neurotransmissor na fenda sináptica e sua ligação ao
receptor na membrana plasmática, o
neurotransmissor precisa ser removido
para finalizar a ação sináptica. Essa remoção pode ser por recaptação do neurotransmissor pelo terminal pré-sináptico
ou sua degradação enzimática. No caso
da transmissão neuromuscular, a ACh
é degradada pela enzima acetilcolinesterase (AChE). Assim todas as etapas
da neurotransmissão foram cumpridas
na sinapse neuromuscular entre o neurônio motor e a fibra muscular estriada
esquelética e constata-se que ACh pode
e deve ser considerada uma molécula
neurotransmissora nessa sinapse.
Uma nova revolução tecnológica
Está em gestação uma nova revolução na história do desenvolvimento
científico e tecnológico. Ela é dirigida
para o funcionamento do cérebro, para a
criação de máquinas inteligentes e para
o desenho de interfaces entre cérebro
e máquina. O Brasil pode desfrutar de
uma posição de destaque nessa nova
era. Graças a um trabalho de mais de
meio século, encontram-se funcionando
em muitas universidades e institutos
de pesquisa grupos de investigação em
Neurociências, com um grande número
de pesquisadores, já em sua terceira
geração. A recente criação do Instituto
Internacional de Neurociências em Natal,
do Instituto do Cérebro do Hospital Albert
Einstein em São Paulo e da Rede Instituto
Brasileiro de Neurociências distribuída
por diversos estados da federação pode
servir para atrair jovens neurocientistas,
aumentar o intercâmbio entre os cien-
tistas brasileiros e do exterior, e criar
uma ponte entre a vida acadêmica e as
necessidades da sociedade em geral. O
mundo dentro de algumas décadas terá
sofrido um enorme impacto das descobertas científicas e inovações tecnológicas
provindas da Neurociência e o Brasil tem
agora uma oportunidade de desenvolver-se no mesmo passo dos demais países
que não teve noutras fases da revolução
científica, tecnológica e industrial.
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