Onde fica o inconsciente?

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Onde fica o inconsciente?
Psicanalista e neurocientista discutem as ligações entre os campos da psicologia e
da neurociência, e por que a primeira ainda tem espaço mesmo com o avanço da
segunda.
Onde fica o Inconsciente? A pergunta que abre este texto está mal formulada. E,
nas ciências, quando uma pergunta é mal formulada, conduz, inevitavelmente, a
conclusões erradas. Mal formulada porque o inconsciente, como a consciência, não
fica em um determinado lugar do cérebro. É resultante da função do cérebro no
seu conjunto, organizado pela linguagem. Salvo, é claro, os automatismos que
governam, por exemplo, o ritmo respiratório, os processos metabólicos, a
temperatura corporal, as sinergias neuromusculares, os batimentos cardíacos.
Embora esses também sofram alterações quando o sujeito percebe ou evoca
objetos, situações, acontecimentos que o perturbam.
Quando um homem cruza o olhar com uma desconhecida no metrô e seus
batimentos cardíacos se aceleram, sabe que essa mulher significa algo diferente
para ele, embora não saiba o que e por quê. Traços dela que evocam experiências
de satisfação ou insatisfação configuraram significados imaginários que podem
mudar o curso de sua vida assim como, nesse instante, mudaram seu metabolismo.
Isso opera a nível inconsciente. O inconsciente não está nos olhos que miram nem
no córtex occipital que recebe o estímulo óptico, nem sequer no coração acelerado,
mas na rede de significações que tal percepção dispara.
A memória genética de comportamentos adaptativos que o Homo sapiens herdou
na evolução das espécies mostrou-se insuficiente para assegurar a sobrevivência.
Por isso, foi necessária a invenção de um sistema de memória externo ao
organismo: a linguagem. Não foi uma mutação espontânea que criou as palavras,
mas foram as palavras necessárias que selecionaram mutações, moldando nosso
cérebro, tornando-o sensível e permeável às palavras, numa das expressões do que
hoje chamamos de plasticidade. Pesquisas que vão de Terrence Deacon (premiado
neuroantropólogo britânico) a Eric Kandel (Prêmio Nobel de Medicina em 2000)
oferecem fundamentação científica a essa tese.
Sigmund Freud antecipou-se em 100 anos aos recentes achados das neurociências,
fazendo a crítica do dualismo "mente-corpo" e oferecendo os instrumentos de
clínica e pesquisa que permitiram compreender por que as experiências infantis
têm o poder de moldar nosso psiquismo e o quanto elas são responsáveis pelo
caráter traumático que podem assumir as experiências da vida adulta. Tal poder
consiste na plasticidade com que nosso cérebro recebe, guarda e permite funcionar
as configurações complexas que a linguagem lhe impõe.
Enquanto a psicanálise se ocupa em decifrar essas configurações complexas, tanto
para compreender a criatividade e a dinâmica dos desejos humanos quanto para
intervir clinicamente no campo da saúde mental, as neurociências avançam na
descoberta dos mecanismos sistêmicos, celulares e moleculares que veiculam as
transformações provocadas pelo campo da palavra. A resultante dessas duas vias
de pesquisa não somente tem humanizado o tratamento das doenças mentais, mas
também tem confirmado o que a psicanálise antecipou nas descobertas que a
experiência clínica lhe ensinou.
Os 100 bilhões de neurônios do cérebro humano, com mais sinapses do que
estrelas na galáxia, se organizam em diversos níveis: tissular, órgão, sistema. Mas há
uma organização superior cujo funcionamento ainda desconhecemos. Supõe-se
que reside na configuração de circuitos neuronais, incluindo também células não
neuronais do tecido nervoso, que podem se modificar constantemente, estabelecer
"esquemas" com memórias simples que se conectariam com outros milhares de
"esquemas" para dar lugar a associações mais complexas como o pensamento, a
linguagem, a consciência, o inconsciente. Ou seja: funções que se desenvolvem em
cada um configurando um cérebro único.
Por isso nos surpreende que um mestre dos estudos sobre a memória como o Dr.
Iván Izquierdo diga que "a psicanálise foi superada pelos estudos das neurociências,
é coisa de quando não tínhamos condições de fazer testes, ver o que acontecia no
cérebro". Quais seriam os testes que nos permitiriam "ver" como se formam a
linguagem, o pensamento simbólico, o desejo, o prazer, as identificações, a filiação
simbólica, a representação do futuro, os laços sociais, o amor e o ódio, a
racionalidade, a culpa, a consciência moral, os sonhos, os ideais, os devaneios, os
delírios, as escolhas de destino? E ainda, se as pudéssemos ver, essas formações
que chamamos "do inconsciente", se configuram por um automatismo biológico
espontâneo ou pela inscrição que no cérebro produzem os pais do pequeno sujeito
em formação? François Ansermet (psicanalista, professor de Psiquiatria da
Universidade de Lausane) e Pierre Magistretti (neurocientista, presidente da
International Brain Research Organization) no seu livro A cada um seu
cérebro (2004), oferecem uma resposta: "Uma biologia do inconsciente e da pulsão
é hoje possível graças aos avanços recentes das neurociências". Um avanço capaz
de "oferecer ao mesmo tempo à psicanálise as verificações da biologia que Freud
esperava já há algumas décadas, e às neurociências, um novo acesso às questões
específicas do campo de exploração que habilita a hipótese do inconsciente". Tratase, então, não de "superar", mas de conjugar os respectivos saberes: do devir de
cada sujeito e do devir de cada cérebro.
Psicanalista Alfredo Jerusalinsky e Neurocientista Diana Jerusalinsky – Artigo publicado em Revista ZH
em 24 de junho de 2016 – 19h08min
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