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Propaganda
A boneca de Berni: O corpo feminino como produto à venda, no filme de Yann
Jouette
Ágatha Salcedo
Mestranda em Estudos Literários/UFAL
Resumo: Análise crítica sobre o curta-metragem francês Berni’s Doll (2008),
escrito e dirigido por Yann Jouette. O filme conta a historia de um trabalhador que
tem seu tempo dividido entre o trabalho numa fábrica de alimento para gatos e seu
descanso em casa, assistindo TV. O diretor conseguiu sintetizar em apenas onze
minutos a problemática da exploração do trabalho, da sociedade do consumo
desenfreado e o fetichismo que envolve o corpo feminino, demonstrando uma
espécie de interligação entre eles. Sabemos que as obras de arte são criadas a partir
das impressões de seu autor sobre o que o cerca, ou seja, sobre o contexto histórico,
social e econômico em que está inserido. A partir de uma interface entre cinema e
sociedade, buscamos analisar como as relações de gênero perpassam a obra em
questão, que pode ser encarada como uma crítica ao uso da imagem feminina
enquanto mercadoria.
Palavras-chave: Relações de Gênero, Corpo feminino, Consumo e
Propaganda.
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1 RIR OU PENSAR, O QUE VOCÊ PREFERE?
O cinema é uma arte “nova”, sendo considerado por muitos como a junção de
todas as outras. De fato, um filme nos conta uma historia a partir do estímulo de
vários de nossos sentidos: suas cores, seus sons, seu enredo, tudo interage para que
um produto “redondo” chegue aos nossos olhos e ouvidos, e finalmente faça nosso
cérebro pensar e repensar sobre tudo aquilo que está sendo informado. Sabemos
que nem todas as obras fílmicas têm o objetivo de nos fazer refletir sobre o
mundo em que vivemos, ou trazer à tona discussões sociais, o que não impede que
façamos uma análise sobre elas, ainda que demonstrando o quanto de conservação
do status quo está presente nela.
Boa parte das sociedades existentes tem algo em comum: são regidas pelo
sistema capitalista, que tem como sua principal característica a exploração de uma
classe social por outra classe social, a partir da absorção do valor do trabalho
alheio. Sendo o trabalho a atividade através da qual o indivíduo faz uso de sua força
e de seu intelecto para transformar a natureza, para daí conseguir suprir suas
necessidades e garantir sua permanência no mundo. Leandro Konder (2009) aponta
alguns dos pontos negativos que envolvem esse tipo de produção:
Tanto o baixo nível de desenvolvimento das
forças sociais produtivas como as condições de
divisão do trabalho e de exploração do homem
pelo homem deram ao trabalho humano uma
feição áspera, um caráter doloroso, coercitivo.
Um espaço do trabalho e da atividade humana,
entretanto, por ser menos importante do ponto de
vista da economia da sociedade, por ser menos
diretamente útil à produção social de riquezas
materiais, pôde resguardar certa espontaneidade:
a atividade de criação artística (KONDER, 2009,
p.157)
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Apesar dessa “certa espontaneidade” que sugere uma “certa liberdade” de
criação, a arte também é vítima do processo de fetichização, uma vez que sua
importância enquanto extensão do conhecimento dos seres humanos – um de seus
aspectos mais importantes – é subestimada. Essa subestimação compromete e
desvirtua o potencial inerente à arte.
O circuito comercial do cinema geralmente é composto por filmes que
seguem um modelo pré-existente, de fácil aceitação e absorção. O que se pretende
com esse tipo de produção é a garantia de retorno financeiro para seus investidores
e criadores. A partir do estímulo ao riso, da mera contemplação de grandes efeitos
especiais, ou da ideia do amor romântico, eles atuam na conservação do
pensamento vigente, ainda que a intenção de seus criadores não seja essa.
De forma falaciosa, é esse “cinema entretenimento’ que chega à sociedade
como sendo a produção cinematográfica existente, disseminando a ideia de cinema
como algo para relaxar e rir comendo pipoca. O resultado é o que apontamos
mais acima, a subestimação do potencial reflexivo da arte em favor de uma
lógica mercadológica. O produto artístico se transforma em mercadoria, além de se
tornar um “calmante para insatisfações”, apaziguando momentaneamente as
insatisfações do espectador, renovando suas energias para que ele seja jogado ao seu
cotidiano exaustivo e estressante.
Ao analisar a indústria cultural, tendo por bases a teoria crítica de Adorno,
Duarte (2007) afirma:
“a indústria cultural não fornece aos consumidores o
que eles desejam, mas toma como dada uma
mentalidade que ela se ocupa de reproduzir ad eternum
em benefício próprio e do status quo. A
rentabilidade desse procedimento é também algo que
diferencia claramente a mercadoria cultural da obra de
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arte, pois aquela é confeccionada visando a obtenção
de lucro, enquanto essa pauta-se pelo ideal da
autonomia, o qual nunca pode ser completamente
realizado,
mas existe
enquanto
princípio
diferenciador sob o ponto de vista da intenção com
que um e outro construto é, respectivamente,
produzido e criado” (DUARTE 2007, p.116 e 117)
Compreendemos então que o que vemos na maioria das grandes cinemas são
produtos que visam lucro e que são criados para atingir um modelo de consumidor,
ao mesmo tempo em que cria esse consumidor. A ideologia que subsidia esse tipo
de produto é a dominante também em outras esferas e faz uso do meio dito artístico
para imprimir suas características e perpetuar seus modelos e padrões, a partir de
mercadorias que anestesiam seus espectadores a partir da não reflexão.
Ofuscada pela fama e alta disseminação dos blockbusters, há outro tipo de
produção – que engloba filmes de diversos formatos, muitas vezes realizados com
uma renda consideravelmente baixa, que não recebem apoio financeiro, e não
chegam aos grandes centros de exibição ou festivais renomados –, que está inserida
no que chamamos de circuito não-comercial. É neste grupo que temos a chance de ver
obras que fogem do padrão anteriormente exposto.
2 O PEQUENO GRANDE FILME DE YANN JOUETTE
O curta-metragem Berni’s Doll (2008) se enquadra entre as produções que
visam mais que o entretenimento de seus espectadores. É daqueles que causam um
tipo de inquietação sobre o que foi visto, levando o indivíduo à reflexão. Trata-se de
uma animação para adultos, que aborda o cotidiano de Berni, trabalhador de uma
fábrica de enlatados para gatos (Cat Food), que leva uma vida simples e solitária.
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Sua rotina se resume a dois momentos: 1)Uma longa e exaustiva jornada de
trabalho, onde seu rendimento é monitorado por uma máquina que calcula quantas
latas ele tampa por hora; 2) sua vida fora da fábrica: o caminho para casa, repleto de
mensagens provenientes de propagandas de outdoors e seu momento de
descanso/lazer que se resume a sentar em sua poltrona e assistir TV, sendo mais
uma vez bombardeado por propagandas.
Nos primeiros segundos do filme, ainda quando a ficha técnica está sendo
apresentada, já é possível perceber a inquietação do diretor sobre o tema do
consumo
desenfreado enquanto algo nocivo para a sociedade: Um rato corre
freneticamente por um labirinto, que possui em suas paredes cartazes com a
imagem de um pedaço de queijo e a seguinte frase: “eat cheese”, até finalmente
encontrar uma fatia de queijo, momento no qual é esmagado por uma máquina e
transformado em comida para gato, preenchendo as latinhas que correm na esteira
até serem tampadas pelo protagonista do filme.
Diversas vezes abertura dos filmes passa despercebida pelos espectadores,
muitos acreditam que sua função é unicamente informar os créditos. Yann Jouette
quebra essa ideia e transforma o início do curta-metragem numa espécie de aviso
sobre o conteúdo, ou até quem sabe uma síntese do que está por se desenrolar. O
tempo é usado de forma exemplar pelo diretor, que consegue abordar temáticas
muito pertinentes a partir de sequências imagéticas em preto e branco e sem falas.
As únicas vozes que ouvimos saem da televisão de Berni, dos apresentadores de
programas.
3 UM HOMEM PARA PRODUZIR E PARA CONSUMIR, UMA BONECA
PARA CUIDAR DA CASA E SATISFAZER OS DESEJOS
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Após uma jornada exaustiva de trabalho, o protagonista do filme vai ao
estacionamento da fábrica Cat Food, entra em seu carro e segue para casa. Nesta
cena percebemos que seu automóvel é o menor em tamanho, sendo uma metáfora
para sua classe social. Além disso, o interior do carro é mais visível que o interior
dos outros, como se seus vidros fossem mais transparentes que os outros. Essa
transparência, aliada à lentidão do tráfego congestionado, fazem de Berni um alvo
em potencial para o atrativo mundo externo, repleto
de
elevador
o enquadramento sugere que
até
seu
modesto
apartamento,
onde
propagandas.
Sobe de
suas grades têm continuidade na tela da TV. Com essa sequência, o diretor parece
querer que percebamos o poder exercido pelo meio de comunicação sobre nós e
quantos são os meios de nos enredar nessa teia.
“A sociedade capitalista requer uma cultura baseada
nas imagens. Ela necessita fornecer uma ampla
quantidade de entretenimento, de forma a estimular o
consumo e anestesiar os danos causados a determinadas
classes sociais, raças e sexo. Além disso, ela também
necessita reunir uma
ilimitada quantidade de
informações para melhor explorar os recursos
naturais, aumentar a produtividade, manter a ordem,
fazer guerra e dar emprego aos burocratas. (...) A
produção de imagens também fornece uma ideologia
dominante. A mudança social é substituída por uma
mudança nas imagens. A liberdade para consumir
inúmeras imagens e produtos é equiparada à liberdade
em si. O estreitamento entre liberdade de escolha
política e liberdade de consumo econômico exige um
consumo e uma produção de imagens ilimitadas”
(SOTANG 2004, p.57)
A partir de uma chuva de imagens, a indústria cultural e do consumo nos
aparta cada vez mais de uma visão crítica do estados das coisas. Conforme nos
vende a ideia de que podemos ter tudo o que quisermos, cria em nós novas
necessidades e nos aprisiona a uma lógica consumista. Alimentar o mercado é
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sugerido como algo libertador, quando na realidade é justamento o contrário.
A rotina se repete no outro dia, com o acréscimo de uma dor no braço
esquerdo – único utilizado ao fechar as latinhas – seguida de uma retaliação por parte
do responsável pela produção, que acompanha pelas câmeras o andamento da fábrica.
Os trabalhadores são todos homens e não se falam, nem demonstram
laços de
amizade ou coleguismo. Cada um deles cumpre uma tarefa distinta da dos outros,
sem ao menos olhar para o lado. Um traço típico do atual modo de produção: a
necessidade de uma ampla divisão social do trabalho, para que uma só mercadoria
seja produzida ela passa por vários ramos de produção, onde há uma dependência
entre cada um dos trabalhos que compõem essa cadeia.
Apesar de conter o trabalho executado por diversos homens e mulheres, cabe
a um só o controle do que é produzido, ao dono dos meios de produção. Netto e Braz
(2010) apontam a conseqüência dessa concentração de poder de decisão e
substituição do caráter social pelo caráter privado do trabalho:
O produtor só se confronta com o caráter social do seu
trabalho no mercado: sua interdependência em face dos
outros produtores lhe aparece no momento da compravenda das mercadorias; em poucas palavras: as
relações sociais dos produtores aparecem como se
fossem relações entre mercadorias, como se fossem
relações entre coisas. A mercadoria passa a ser, então,
a portadora e a expressão das relações entre os homens
(NETTO E BRAZ, 2010, p.98)
Há uma inversão na qual as relações humanas surgem enquanto relações entre
coisas, cabendo aos produtores o papel de mercadorias e as mercadorias absorvem
as características antes relativas às relações sociais.
Ao regressar para casa, mais uma vez recorre à poltrona e às
propagandas: O tele shopping anuncia a venda de partes de corpos femininos,
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afirmando existir produtos para todos os gostos: corpos asiáticos, mexicanos e
africanos, esses últimos em promoção. Ele sai de casa e vende seu carro, na volta
pega o telefone e compra a primeira parte da mulher que pretende montar, apertando
a tecla 3, referente a um tronco de mulher africana. O produto chega a sua casa na
manhã do dia seguinte, segundos depois já estava fazendo uso de sua aquisição
(sexo).
Ao longo da história diversos modelos de beleza feminina vigoraram pelo
mundo. padrões estéticos tem seus correspondentes no decorrer da historia. Ou
seja, o corpo da mulher sempre sofreu um tipo de intromissão por parte dos
olhares externos. Mas foi a sociedade do consumo que o transformou em produto.
A imagem da mulher é amplamente utilizada em propagandas voltadas para o
público masculino, onde geralmente é apresentada enquanto brinde, sendo agregada
a algum outro produto à venda. É incluída no grupo de elementos que exploram a
ideia de virilidade, poder e força masculina.
A beleza mercantil aparece muda e sem vontade própria. Junto aos amigos
que bebem cerveja e cantam alegremente, estão as mulheres com corpos esculturais
e sem fala. Nas propagandas de venda de moto, lá está novamente ela, na garupa
aguardando o novo comprador. Nos grandes salões de vendas de automóvel, lá
estão mulheres escolhidas a dedo para ficar ao lado dos carros, posando para fotos
com qualquer um que passar por aquele corredor.
Também presente nas propagandas voltadas para atrair a atenção das
mulheres, o corpo feminino sofre uma tirânica padronização estética. Os diversos
biotipos são ignorados em virtude da utilização de um corpo exemplar estampado em
outdoors, comerciais e revistas. A imagem vendida, para ambos os sexos, é distante
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do que costumamos encontrar quando andamos pelas ruas, difere das mulheres
comuns.
“O anúncio propõe, portanto, uma troca de identidades
ao destinatário entre a sua identidade enquanto “ser no
mundo” e a identidade projectada de um destinatário,
“ser do discurso” Ao propor esta troca, o anúncio diznos quem somos e como somos, ou seja, fixa os
contornos da nossa própria identidade” (PINTO 1997,
p. 31).
O poder da mídia se mostra também pela sua capacidade de mudar condutas,
de criar modelos a serem seguidos. Mais que estimular o consumo de produtos, ela
impõe um padrão estético, que passa a ser cobiçado por muitas mulheres. As
diferenças individuais são destruídas pela publicidade, sendo engolidas por uma
lógica excludente, sexista, racista, tirânica e machista.
A vida de Berni ganha um propósito: montar sua boneca. Para isso passa a
trabalhar freneticamente, chegando cada vez mais cansado em casa, onde se consola
no ombro e no sexo do tronco africano adquirido. Aos poucos vai conseguindo
comprar as outras partes, seguindo uma ordem de prioridade: comprado o tronco, a
prioridade passou para os braços, que possibilitaram novas posições sexuais e
também fazem com que a boneca possa realizar o trabalho doméstico (lavar pratos,
varrer, passar roupas). O criador do filme consegue unir de forma muito interessante
duas situações que envolvem a condição feminina no mundo machista: a venda
da imagem do corpo feminino como algo para satisfazer os desejos e necessidades
masculinas, ou como brinde que acompanha outro produto (basta lembrar das
campanhas publicitárias das empresas de carros, motos e afins) e a ideia de caber à
mulher a execução dos afazeres domésticos e os cuidados com o trabalhador/homem.
Sabemos que na sociedade contemporânea, embora muito se fale sobre a
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liberdade individual e sobre o espaço conquistado pelas mulheres, ainda recai sobre
elas a responsabilidade pela manutenção da casa e criação dos filhos, cabendo a
elas a esfera privada, bem como é socialmente aceito que o responsável por prover
o lar é o homem, que atua na espera pública. Está claro que as condições e o
formato das famílias sofreram mudanças consideráveis, no entanto não se pode
negar que a ideia predominante ainda é baseada numa distinção de papéis sociais
para homem e para mulher.
Por mais que vejamos mulheres atingindo altos cargos em seus trabalhos, ainda
não foi retirada de suas costas a responsabilidade última pela manutenção da esfera
privada. Ao passo que uma mulher avança em sua carreira, cabe a ela delegar sua
função de mantenedora do lar para outra pessoa, normalmente outra mulher, que
cuidará de sua casa e de seus filhos. Com o intuito mascarar essa situação, surge a
ideia da super mulher, que acumula a jornada de trabalho remunerado e a jornada
de trabalho doméstico, e que no fim de tudo permanece linda e amável para seu
marido.
A divisão sexual do trabalho está muito longe de ser igualitária, entre
homens e mulheres, e ampliação da jornada total de trabalho e a diminuição do tempo
livre não se dão de forma igualitária entre os dois, sem esquecermos de que, como
foi dito anteriormente, a responsabilidade do
trabalho para a reprodução social
é referencialmente feminina. Como exemplificado abaixo:
“Reduzimos o tempo destinado ao cuidado dos filhos
se necessitamos destinar mais tempo ao mercado de
trabalho com o objetivo de aumentar o rendimento
auferido ou por causa da ameaça de desemprego.
Conseqüentemente, podemos reduzir as horas de sono
ou de descanso para não diminuir o tempo destinado ao
cuidado dos filhos, compensando a pressão exercida
pelo mercado de trabalho” (DEDECCA 2008, p. 281)
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É inegável a existência de conexões entre as
formas
de
trabalho
(mercantil/remunerado e doméstico/não-remunerado), além de existir um risco
eminente de que a complementaridade existente entre ambos se torne uma total
subordinação.
Dito isto, percebemos que o fato de a boneca de Berni não usar roupas
durante quase todo o tempo pode ser encarado como uma forma de criticar as duas
ideias acima citadas: corpo feminino como objeto e a naturalização do lugar da
mulher no âmbito privado.
O único momento em que aparece com vestimentas é quando recebe suas
pernas (terceira colocação na ordem de prioridades) e o ‘namorado’ resolve levá-la
para passear. Ao ver uma mulher “normal”, ela percebe que falta algo em seu corpo e
fica furiosa, chegando ao ponto de atacar uma estranha. Após perceber sua tristeza,
Berni resolve adquirir a única parte que faltava para ter um corpo completo: uma
cabeça. Nesse momento ele já obteve uma ascensão de cargo, fruto de seu grande
rendimento, agora é ele quem gerencia a produção, e exige dos outros trabalhadores
um ritmo intenso como o que ele realizava antes de sua promoção. Um detalhe:
em todo o filme seu rosto carrega um sorriso uma única vez: no momento em que
é posto em sua nova sala.
A compra da cabeça não é feita por telefone ou em grandes lojas, dessa vez é
feita via internet, no gabinete onde trabalha. Num simples clique efetua a transação.
Vemos então que além do enorme número de propagandas, é enorme também o
número de meios para realizar a compra de um produto. Tudo é facilitado para que
todos estejam inseridos na lógica de uma sociedade do consumo, independente de
classe social que integra. Somos todos vistos como compradores em potencial. As
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facilidades surgem também com a possibilidade de parcelarmos uma compra em
inúmeras vezes, o que gera a falsa ideia de poder aquisitivo na classe mais baixa,
que vê a chance de obter as mercadorias que as classes abastadas possuem.
O cunho crítico do curta-metragem aparece de forma inquestionável em sua
cena final: Berni e boneca estão na sala de casa quando a encomenda chega. Ele
recebe a caixa e a coloca em cima da mesa. no momento em que se filma o conteúdo
podemos ver uma cabeça sem vida, com traços asiáticos e uma etiqueta na testa. Seu
dono prontamente coloca a parte faltosa no corpo que aguarda ansiosamente pela sua
completude. É o ápice do filme: a boneca sente dor no pescoço, estranha a sensação
e aos poucos vai abrindo os olhos. Conforme sua visão vai se tornando mais nítida,
percebe que um homem se aproxima. A cada passo de Berni um flash da vida a dois
passa pela memória dela: lembra de quando ganhou seus braços e logo passou a lavar
a louça, lembra de quando seu tronco serviu de abajur para que ele pudesse ler,
lembra de como era usada sexualmente e de quando seu braço foi puxado no
momento em que se recusou a atravessar a rua.
Numa espécie de tomada de consciência, a boneca que acaba de se
humanizar, rejeita tudo aquilo que sua memória lhe conta. O primeiro som que
emite em vida é um grito de negação, um enorme grito, que acompanha um
empurrão dado em Berni e sua fuga quebrando a porta do apartamento. Por fim,
vemos um homem confuso, caído no chão de cerâmica xadrez. A câmera se afasta
e nos permite olhar do alto um tipo de labirinto formado pelos cômodos de seu
apartamento e de dos apartamentos vizinho. É uma referência a primeira imagem
do filme, o rato frenético correndo em busca do queijo.Essa cena evidencia dois
processos antagônicos: a humanização da boneca, algo só possível numa realidade
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inventada versus a perda de consciência de Berni, comparado a um animal que age
por instinto. Não há mais espaços para dúvidas, estamos diante de uma crítica ao
mundo atual. Um tipo de denúncia ao sistema capitalista, que Jouette aponta
como responsável pela forte tendência ao desaparecimento de tudo aquilo que é
regido por aspectos qualitativos; desaparecimento das relações autênticas entre as
pessoas, seja no ambiente de trabalho ou em suas relações afetivas. Sendo também
a lógica capitalista responsável pela imposição de papéis distintos para homens e
mulheres, privando a liberdade de escolha.
REFERÊNCIAS
DEDECCA, Cláudio Salvadori. Regime de trabalho, uso do tempo e
desigualdade entre homens e mulheres. In: COSTA, Albertina; SORJ, Bila;
BRUSCHINI, Cristina e Hirata, Helena (org). Mercado de Trabalho e Gênero. Rio
de Janeiro, FGV, 2008.
GOLDMANN, Lucien. A sociologia do Romance. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
HIRATA, Helena. Nova Divisão Sexual do Trabalho?. São Paulo: Boitempo, 2002.
KONDER, Leandro. As artes da palavra.1 ed. São Paulo: Boitempo, 2005.
. Marxismo e Alienação. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
NETTO E BRAZ. Economia política: uma introdução crítica. 6 ed. São Paulo:
Cortez editora, 2010.
PINTO, Alexandra Guedes. Publicidade: um discurso de sedução. Porto: Porto
Editora, 1997.
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