Capítulo XI CIÊNCIA E FILOSOFIA ORIENTAIS - fflch-usp

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Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência I – Osvaldo Pessoa Jr. – 2014
Capítulo XI
CIÊNCIA E FILOSOFIA ORIENTAIS
1. Comparação das Ciências Europeia e Chinesa
Paralelamente ao rico desenvolvimento da ciência e filosofia gregas, no outro lado do
mundo um desenvolvimento semelhante acontecia na China. O fato de termos duas histórias
paralelas que ocorreram basicamente de maneira independente é muito interessante para
entendermos a evolução da ciência. A diferença principal entre as duas histórias é que os
chineses alcançaram um maior grau de desenvolvimento tecnológico, ao passo que no
Ocidente a especulação teórica e a aplicação de métodos dedutivos eram mais intensas. Em
última instância, foi esse avanço teórico e dedutivo que permitiu que a ciência ocidental
passasse à frente da oriental no início do séc. XVII.
O grande estudioso da ciência chinesa foi Joseph Needham (1900-95), que a partir da
Segunda Guerra Mundial abandonou a área da embriologia para se dedicar à história da ciência56.
A Fig. XI.1 exemplifica a influência de sua formação científica na maneira como encarava a
história da ciência. Nota-se que a ciência chinesa pode ser considerada mais avançada que a
europeia entre os séculos III e XVI.
Figura XI.1: Gráfico apresentado
por Needham para exprimir os
pontos de transposição (T), em que
uma área científica na Europa
suplantou a da China, e os pontos de
fusão (F), em que a área se tornou
“ecumênica” ao integrar os saberes
das duas culturas. Note que, segundo
Needham, a medicina ainda não
havia sido fundida em 1967, na
medida em que a acupuntura ainda
não havia sido assimilada pelo
Ocidente. O ponto de transposição
da botânica (T2) é incerto, ocorrendo
entre 1700 e 1780.
Na figura, mencionam-se três invenções que originaram na China: a bússola náutica
demorou 2 séculos para chegar na Europa, mas a primeira bússola rudimentar surgiu 11
séculos antes, estando associado a rituais de magia e adivinhação; a pólvora demorou 6
séculos, e a imprensa com tipos móveis 4 séculos. No vol. 1 de seu livro, Needham faz uma
lista de mais de trinta avanços técnicos que foram transmitidas da China para o Ocidente,
contra quatro que vieram no sentido oposto, como o parafuso. Foi só após essa lista que se
descobriu que o mecanismo de relógio fora inventado primeiramente na China, conforme
salientado na figura.
A ascensão da filosofia e da ciência chinesa ocorreu em um período e em condições
sociais semelhantes à da Grécia. Entre os sécs. VI e III AEC, havia vários estados
56
Sua grande obra vem em cinco volumes imensos: NEEDHAM, J. et al. (1954-76), Science and civilization in
China, Cambridge U. Press. A maior parte do material desta seção provém do vol. 2 (1956), em co-autoria com
W. LING: History of scientific thought. A Fig. XI.1 foi tirada de: NEEDHAM, J. (1970), Clerks and craftsmen in
China and the West, Cambridge U. Press, p. 414. Uma introdução mais sucinta à ciência chinesa é dada no cap. 3
(vol. II) de: RONAN (1987), op.cit. (nota 4).
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independentes na China, que passaram a guerrear mas que permitiam trocas entre culturas
relativamente independentes, unificadas por uma língua escrita única. Essa estrutura sóciopolítica, com culturas independentes em constante diálogo, é o solo propício para a
criatividade e crítica que alimentam a ciência e outras áreas da cultura (situação semelhante
de “diversidade sob cultura comum” ocorreria na Itália renascentista, na Alemanha anterior à
unificação e nas nações de língua inglesa no pós-guerra)57.
2. Escolas Filosóficas na China Antiga
Com a finalidade de fazer uma breve introdução à antiga ciência chinesa,
aproveitaremos para apresentar sucintamente algumas das escolas filosóficas do período,
buscando salientar suas conexões com a ciência.
1) O ponto de partida é a obra de Confúcio (552-479 AEC), que desenvolveu uma
filosofia de relacionamentos sociais justos e harmoniosos, em uma época de caos entre
estados feudais. O ensino deveria ser realizado sem distinções de classe, valorizando-se o
ensino da administração e da diplomacia. O bom governante não seria aquele que segue a lei
de maneira rígida, mas sim aquele que administrasse de maneira sutil baseado nos costumes e
cerimônias aceitos pela sociedade. O confucionismo, expresso na obra Analetos (Lun Yü) que
surgiu após a morte do mestre, era uma doutrina racionalista que se punha contrária à
superstição ou formas sobrenaturais de religião. Esse racionalismo, porém, não estimulou a
investigação científica da natureza, pois era voltada apenas para a vida social humana.
Segundo Needham (v. II, p. 12), “não pela última vez na história, nem na China, o
racionalismo se mostrou menos favorável do que o misticismo para o progresso da ciência”.
Outro famoso confucionista foi Mêncio (374-289 AEC), cuja doutrina da natureza humana
apregoava que o homem seria naturalmente bom. O confucionismo tornou-se a ortodoxia da
burocracia do estado feudal e, a partir do séc. II a.C., uma religião patrocinada pelo Estado.
É interessante comparar a concepção confucionista de “escada das almas”, expressa
por Hsün Chhing (298-238 AEC), com a concepção aristotélica. Segundo o macedônio, plantas
teriam uma alma vegetativa, animais teriam também uma alma sensitiva, e o homem teria
juntamente com essas duas uma alma racional. Na concepção do chinês, o fogo e a água
teriam chhi, que é análogo ao pneuma estóico; as plantas teriam chhi mais vida; animais
teriam, além disso, percepção; e, por fim, o homem teria também o senso de justiça. “É típico
do pensamento chinês que o que caracteriza o homem de maneira particular seja expresso
como senso de justiça e não como o poder de raciocínio” (p. 23). Este autor exprimiu
claramente sua oposição à teorização e o interesse apenas nas aplicações práticas dos
processos técnicos.
2) A visão de mundo que se contrapunha ao confucionismo era o taoísmo, uma
mistura de filosofia, misticismo e religião que tinha uma atitude favorável para com as
protociências experimentais, como a alquimia e outras formas de magia e adivinhação, e
também para com a especulação teórica a respeito da natureza. O taoísmo se originou de duas
tradições. Por um lado, filósofos do período dos estados guerreiros (a partir do séc. VI AEC)
abandonaram as cortes dos príncipes feudais e se retiraram para uma vida no campo para
meditar sobre o tao da natureza, ou seja, o caminho das coisas, e observar a natureza.
Rejeitavam o conhecimento escolástico dos confucionistas, valorizando a compreensão dos
caminhos da natureza. “O conhecimento confucionista era masculino e ordenador: os taoístas
o condenavam e buscavam um conhecimento feminino e receptivo que surgiria apenas como
57
Semelhante tese é defendida pelo sociólogo da ciência BEN-DAVID, J. (1974), O papel do cientista na
sociedade, Pioneira, São Paulo. Original: The scientist’s role in society, Prentice-Hall, Englewood Cliffs, 1971.
Na versão que tenho em mãos, editada pela U. Chicago Press (1984), ver pp. 35-6.
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fruto de uma atitude passiva e cedente na observação da natureza” (p. 33). A outra fonte do
taoísmo proveio da cultura xamanística, com seus rituais mágicos para controlar os espíritos
animais, tendo vindo do norte (originando também a cultura dos ameríndios) e associado ao
povo.
Dois livros marcam o início do taoísmo filosófico, sendo que o mais conhecido é o
Tao tê ching de Lao Tzu (Laozi) (séc. IV AEC), e o outro o Chuang tzu de Chuang Chou
(Zhuangzi), da mesma época. O tao é a ordem da natureza, um “logos” heraclitiano que rege
os processos de mudança. O sábio deve imitar o tao, que trabalha sem ser visto e não domina;
ao ceder, sem impor suas pré-concepções à natureza, ele poderá observar e compreender, e
assim governar e controlar.
Alguns elementos da concepção taoísta incluem a unidade e espontaneidade da
natureza, que é auto-suficiente e não foi criada. A mente humana deve estar vazia para receber
todas as coisas. O homem é uma espécie dentre outras, não é a única medida das coisas, de
forma que padrões humanos não se aplicam à natureza. Como as escolas helenísticas,
valorizam a “ataraxia”, a paz de espírito que provém da compreensão da natureza. As
mudanças na natureza se dão em ciclos, e o tao é o ponto de equilíbrio e tranqüilidade no
centro de todas as perturbações. Há também uma valorização da busca de dois caminhos, o ser
e o não-ser. Muitos textos silenciavam com relação à cosmogonia, pois o tao deveria
permanecer desconhecido, mas outras obras descrevem uma origem a partir de um ovo
cósmico. As mudanças cíclicas também regiam as mudanças de espécies, e um texto fala da
evolução de germes até chegarem nos seres humanos, para daí continuar até retornar aos
germes! Os taoístas nunca desenvolveram um relato teórico sistemático da natureza,
comparável ao de Aristóteles, por exemplo. Havia a concepção dos cinco elementos, do
yin/yang, do chhi (pneuma), mas nada que permitisse tal sistematização. Em termos técnicos,
porém, valorizavam a manipulação de artefatos, misturados às adivinhações e magias.
Tinham, enfim, uma concepção orgânica a respeito da vida (um meio termo entre o
espiritualismo e o materialismo), e buscavam ao máximo preservar a saúde do corpo, pois
após a morte as diferentes almas se dispersariam. No séc. II EC, formou-se uma religião
taoísta, que aos poucos de baseou em uma trindade divina.
3) Outra escola que foi relevante para a antiga ciência chinesa foram os moístas, nome
retirado do fundador da escola, Mo Ti (final do séc. V - início do séc. IV AEC), e cujos
ensinamentos foram compilados na obra Mo tzu. De início eles eram mais organizados do que
os confucionistas e os taoístas, mas acabaram desaparecendo nos séculos seguintes. Eles eram
especialistas em artes militares, que empregavam para defender estados atacados, mas
pregavam o pacifismo e o amor universal. Seu interesse na construção de fortificações os
levaram a estudar mecânica e óptica. Em uma passagem surpreendente, defendem uma
concepção de movimento semelhante à concepção de inércia linear.
4) Próximo aos moístas e aos taoístas está a escola dos lógicos, ou terminologistas,
iniciada no séc. IV AEC, mas a maior parte do que escreveram se perdeu. Discutiam a
distinção entre os universais e as coisas, e exploravam paradoxos lógicos, alguns semelhantes
às antinomias kantianas.
5) Os legalistas representavam o grupo político mais à direita, que defendiam o Estado
autoritário baseado em leis pré-estabelecidas, ao contrário do ideal confuciano de se basear na
ética e no complexo de costumes. Floresceram a partir do séc. IV AEC.
6) Uma escola menor, a dos naturalistas, está associada ao desenvolvimento da
concepção do yin e yang e da teoria dos cinco elementos. Figura destacada desta escola foi
Tsou Yen (c. 350-270 AEC). Eram próximos aos taoístas, mas não recusavam a vida na corte.
O yin e yang eram forças opostas, um mais passivo e o outro mais ativo, que controlaria os
movimentos cíclicos do mundo e do destino humano; etimologicamente estão associados à
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sombra e à luz. A seguinte citação aparece na obra Shu Ching, e deve ter sido escrita no séc.
III AEC:
Quanto aos cinco elementos, o primeiro é chamado de Água, o segundo Fogo, o terceiro
Madeira, o quarto Metal e o quinto Terra. Água é o que descrevemos como encharcado
e descendente. Fogo é que descrevemos como o que queima e é ascendente. Madeira é o
que permite superfícies curvas e arestas retas. Metal é o que se amolda e depois
endurece. Terra é o que permite semear, crescer e colher. Aquilo que encharca, pinga e
descende causa o salgado. Aquilo que queima, esquenta e ascende gera o amargo.
Aquilo que permite superfície curvas e arestas retas fornece o azedo. Aquilo que se
amolda e depois endurece produz adstringência. Aquilo que permite semear, crescer e
colher gera o doce (NEEDHAM, v. 2, p. 243).
Os cinco elementos passaram a ser correlacionados com todo tipo de qualidades, por
exemplo as estações, as notas musicais, animais, planetas, imperadores, emoções, partes do
corpo, etc.
7) Por fim, deve-se mencionar o budismo, que entrou na China em torno do ano 65 EC.
Acreditam na transmigração da alma, que poderia viver uma vida feliz ou miserável,
dependendo do comportamento ético (nem todas as escolas do budismo seguem esta
concepção). O mundo visível seria uma ilusão, e não haveria entidades individuais
permanentes, como almas individuais. O budismo espalhou-se pela China mas manteve-se em
tensão com o taoísmo e o confucionismo. Sua contribuição para a ciência foi pequena, tendo
porém enriquecido as discussões em lógica e epistemologia.
3. A Epistemologia Indiana
(em preparação)
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Capítulo XII
CLASSIFICAÇÃO DE POSIÇÕES EM FILOSOFIA DA CIÊNCIA
1. Os Variados Sentidos de um mesmo Termo: “Empirismo”
Sabemos que os conceitos filosóficos mudam de sentido ao longo da história e
conforme a comunidade que os emprega. Essas muitas definições de um mesmo termo
contribuem para uma certa confusão em alunos em filosofia e, muitas vezes, para a falta de
compreensão entre diferentes escolas. Um exemplo simples de tal variação de significado vem
com o termo “empirismo”.58
Como vimos na seção VI.3, o termo “empírico” designava uma escola de pensamento
da medicina grega antiga, e se contrapunha a duas outras filosofias da medicina, os
“dogmáticos” e os “metódicos”. Em suma:
EMPIRISMOI: O médico deve se guiar pelos sintomas observáveis do paciente, evitando
especulações sobre o invisível (Corpo Hipocrático, Serapião, etc.).
DOGMATISMOI: A teorização sobre causas ocultas é essencial para a prática médica. A
experiência precisa ser completada com conjecturas e raciocínio (Herófilo,
Erasístrato, Asclepíades, etc.).
METODISMOI: A medicina deve se basear na experiência, não em causas ocultas, mas é
preciso sistematizar esta experiência, classificando as doenças segundo suas
características comuns (Temisão, etc.).
O uso de subscritos após os termos filosóficos é um costume interessante, usado por
alguns filósofos, como Lakatos.
A distinção entre o EMPIRISMOI e o DOGMATISMOI reflete uma oposição mais geral,
envolvendo as teses do ceticismo. O ceticismo antigo se opunha à pretensa certeza
reivindicada por metafísicas da natureza, como o hilemorfismo de Aristóteles e sua escola, e o
atomismo de Demócrito, Epicuro, Asclepíades e muitos outros, chamados coletivamente de
“dogmatismos”.
DOGMATISMOII: O conhecimento seguro dos princípios e causas ocultas é possível.
CETICISMOI: O conhecimento, inclusive o científico, é incerto.
58
As seções XII.1 a 3 segue o artigo de PESSOA JR., O. (2009), “A classificação das diferentes posições em
filosofia da ciência”, Cognitio-Estudos 6(1), pp. 54-60.
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Cap. XII – Classificação de Posições em Filosofia da Ciência
Esta oposição fundamental se desdobra contemporaneamente, com muitas
modificações, na oposição entre “realismo científico” e “fenomenismo”, que veremos na
seção XII.4. No contexto científico contemporâneo, a atitude cética se firmou como a tese do
FALIBILISMO, segundo a qual não se pode atribuir certeza a nenhuma teoria científica.
No início da era moderna, Francis Bacon (que veremos na seção XV.1) utilizou o
termo “empírico” em um sentido pejorativo:
EMPIRISMOII: Pesquisa com base em observações não sistemáticas, tomadas ao léu.
No entanto, o sentido que o termo adquiriria posteriormente está associado à posição
de Bacon e da escola britânica, em oposição àquela de Descartes, Spinoza, Leibniz e outros
metafísicos modernos.
EMPIRISMOIII: A fonte principal do conhecimento é a observação.
RACIONALISMOI (INTELECTUALISMO): A fonte principal do conhecimento é o intelecto.
No caso do conhecimento científico, a atitude EMPIRISTAIII tornou-se claramente
dominante a partir do séc. XIX, e a tese racionalista de que o intelecto teria acesso à natureza
do mundo sem a intermediação dos sentidos tornou-se bastante minoritária. Dentro desse
contexto, no séc. XX, o termo empirismo passou a designar a tese de que há observações
neutras (seção XVII.2) e que elas devem servir de base para a “ciência empírica” (nesta
última expressão, “empírica” é tomado no sentido III).
EMPIRISMOIV: Há observações neutras, não carregadas de teorização, e estas devem servir
de base para a ciência (F. Bacon, J.S. Mill, positivistas lógicos).
CONSTRUTIVISMOI (Tese da Carga Teórica): Toda observação é interpretada
teoricamente, é impregnada ou carregada de teoria (Whewell, Duhem, Popper,
Hempel, etc.). As teorias científicas são construções intelectuais, guiadas por formas
da sensibilidade e categorias do entendimento (Kant).
Por fim, podemos mencionar que no séc. XX o termo “empirismo” passa a designar
também a atitude antirrealista, que discutiremos na seção XII.4, segundo a qual uma teoria
científica refere-se apenas àquilo que é observável (EMPIRISMOV). É nesse sentido que Bas
van Fraassen articula o seu “empirismo construtivo”. Uma particularidade é que ele aceita a
concepção da verdade por correspondência (seção II.2), ou seja, aceita que as proposições
envolvendo termos teóricos (cujos referentes são inobserváveis) são ou verdadeiras ou falsas.
Porém, como nunca poderemos saber, a verdade deixa de ser importante, e o único objetivo
da ciência seria a “adequação empírica”, ou seja, dar conta dos dados observacionais.59
59
VAN FRAASSEN, B.C. (2006). A imagem científica. Trad. L. H. de A. Dutra. São Paulo: Discurso/UNESP;
original em inglês: 1980.
56
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2. Tipos de Questões em Filosofia da Ciência
As questões envolvendo o empirismo referem-se ao conhecimento do mundo, e
portanto podem ser consideradas questões “epistemológicas”. Há porém outros tipos de
perguntas que constituem diferentes posições na filosofia da ciência, e podem se salientar
quatro delas.
EPISTEMOLOGIA: Discussão relativa ao conhecimento, à possibilidade do conhecimento
ou à natureza do conhecimento.
ONTOLOGIA: Discussão relativa ao ser, ao que existe, ou à natureza do mundo. O termo é
usado em dois sentidos, em relação à:
I) ONTOLOGIA DE UMA TEORIA: Entidades e relações postuladas por uma teoria
científica ou visão de mundo.
II) COISA EM SI: Entidades e relações que existiriam independentemente de
qualquer conceitualização, como no “ôntico” de Heidegger ou na “coisa em
si” de Kant.
METODOLOGIA: Semelhante às discussões epistemológicas, mas com ênfase na prática ou
na sistematização.
AXIOLOGIA: Discussão relativa a valores, ao que deve ser feito.
Um exemplo de discussão metodológica diz respeito a qual é o método privilegiado de
descoberta de leis universais nas ciências empíricas:
INDUTIVISMOI: As leis científicas devem ser formuladas como generalizações indutivas a
partir de uma coleção finita de enunciados de observação.
HIPOTÉTICO-DEDUTIVISMO: As leis científicas podem ser formuladas de qualquer
maneira, desde que sejam testadas por meio da comparação das previsões (deduzidas
da teoria) com observações experimentais.
Há diversas sutilezas nessa discussão, envolvendo a distinção entre contextos da
descoberta e da justificação, e entre enunciados descritivos e prescritivos da ciência, que
discutiremos em um capítulo posterior.
Um exemplo de discussão axiológica é se a ciência pura, desvinculada de aplicações
práticas, é uma atividade valorosa para a sociedade. Pode-se chamar de CIENTISMOI a tese de
que a ciência natural, mesmo desvinculada das aplicações diretamente benéficas para o
homem, é uma atividade importante. No Renascimento, essa atitude de valorização da ciência
pura era combatida por vários autores humanistas, como Petrarca (seção XIII.1), para os quais
a ciência natural não é importante, na medida em que não traz benefícios para o homem. No
Iluminismo francês, o CIENTISMOII foi o movimento que defendia que a ciência e sua
aplicação prática são valorosas porque permitiriam o progresso social e o fim das
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Cap. XII – Classificação de Posições em Filosofia da Ciência
desigualdades entre os homens. Críticos deste último cientismo, como a Teoria Crítica do séc.
XX (escola de Frankfurt), põem em questão o valor de certos aspectos da ciência, já que ela
contribui para o domínio tecnológico das classes dominantes no capitalismo.
Um exemplo de discussão ontológica é a referente à natureza da alma, mente ou
consciência:
MATERIALISMOI (FISICISMO REALISTA): O que chamamos de alma ou mente é na verdade
apenas uma manifestação da matéria ou de entidades físicas (energia, campos, etc.);
na morte do corpo, a alma desaparece.
DUALISMO MENTE-CORPO: A alma ou mente existe de maneira independente do corpo
material, sobrevivendo à morte deste.
IDEALISMO SUBJETIVISTA: Não há um mundo material independente da mente. Só existe
aquilo que é percebido ou concebido por uma mente.
Outro exemplo envolve o primeiro uso feito em filosofia do termo “realismo”, que é o
REALISMO DE UNIVERSAIS, que na Idade Média se opunha ao NOMINALISMOI, sentido lato, que
englobava o CONCEITUALISMO e o NOMINALISMOII (sentido estrito):
REALISMO DE UNIVERSAIS: Uma semelhança entre duas coisas é devida a uma “forma”
(“universal”) compartilhada por elas, forma esta que teria uma existência (ou
“subsistência”, na terminologia de Russell) independente das coisas. Ou seja, termos
universais fazem referência a algo real.
CONCEITUALISMO: Os termos universais existem apenas em nossa mente, enquanto ideias
gerais.
NOMINALISMOII: Os universais não existem na realidade e nem em nossa mente, mas
apenas enquanto termos lingüísticos. São apenas nomes.
3. Visões de Mundo Naturalistas
A maior parte das abordagens científicas, ao procurar descrever ou explicar a natureza
de maneira “objetiva”, não faz referência a um sujeito epistemológico. Esta parece ser a maior
diferença entre as teorias científicas e boa parte dos sistemas filosóficos, que partem do
sujeito. Ao se explorar as diferentes posições em filosofia da ciência, é didaticamente
interessante iniciar com a seguinte classificação fundamental de visões de mundo.
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Cap. XII – Classificação de Posições em Filosofia da Ciência
MITOLOGIA/TEOLOGIA: Visões de mundo que partem da existência de deuses
antropomórficos, de um Deus único, ou do acesso direto do indivíduo a um mundo
sobrenatural.
NATURALISMO: Visões de mundo que partem da existência da natureza, ou de nossa
experiência perceptiva desta natureza, e que concebem que a natureza possui uma
certa unidade e segue leis próprias.
HUMANISMO/SUBJETIVISMO: Visões de mundo que tomam o homem como a medida de
todas as coisas, ou que fundam o mundo no “sujeito epistemológico”, ou seja, nas
intuições primeiras do observador que conhece ou concebe o mundo.
As teorias científicas (e as posições em filosofia da ciência) geralmente pressupõem
uma postura naturalista, apesar de haver posições que também pressupõem um subjetivismo
(ou mesmo um misticismo mais próximo da atitude religiosa).
Dito isso, apresentamos agora uma divisão fundamental entre as visões de mundo
naturalistas, ou teorias científicas, que é aquela entre o REALISMO TEÓRICOI, que defende que a
ciência possa fazer afirmações sobre entidades ou leis inobserváveis, e o que chamaremos de
FENOMENISMOI (ou “fenomenalismo”, do inglês phenomenalism) que defende que a ciência só
deve se ater ao que é observável ou mensurável.
REALISMO TEÓRICOI (REALISMO DO NÃO-OBSERVÁVEL): Uma teoria científica bem
confirmada deve ser considerada literalmente verdadeira ou falsa, no mesmo sentido
em que um enunciado particular é considerado verdadeiro ou falso. Assim, (i) as
entidades postuladas pela teoria teriam realidade, no mesmo sentido em que objetos
cotidianos são reais, mesmo que elas não sejam observáveis; (ii) as leis teóricas e
princípios gerais seriam verdadeiros ou falsos, exprimindo a estrutura da realidade.
ANTIRREALISMO (FENOMENISMOI): Uma teoria científica refere-se apenas àquilo que é
observável. Não faz sentido afirmar que um termo não observacional corresponda a
uma entidade real.
É possível classificar as grandes escolas científicas do séc. XIX a partir da divisão
precedente. O MATERIALISMOI, definido na seção precedente, é uma abordagem realista que se
opunha na Alemanha à ciência de tradição romântica, que também é realista mas parte de
pressupostos ontológicos distintos, e classificaremos como “naturalismo animista” (ver seção
XIII.2):
NATURALISMO ANIMISTA: A natureza tem uma espécie de alma ou vida, que é opaca à
razão, mas pode ser atingida pela intuição (pois o ser humano tem uma essência
semelhante à da natureza) ou pela experiência (como salientavam os alquimistas).
Forças de simpatia e antipatia regem o desejo das partes (como as de um imã) em se
unirem.
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Cap. XII – Classificação de Posições em Filosofia da Ciência
Já o fenomenismo pode ser dividido em termos epistemológicos, em duas grandes correntes
definidas na seção XII.1, o EMPIRISMOIV e o CONSTRUTIVISMOI. Este empirismo, que funda a
ciência em observações neutras e seguras, pode ser dividido em três tradições no séc. XIX:
INSTRUMENTALISMOI: A ciência não almeja fornecer descrições verdadeiras a respeito das
causas ocultas dos fenômenos, mas apenas “salvar os fenômenos”. A ciência é um
instrumento para se fazerem previsões precisas.
DESCRITIVISMOI (associado ao POSITIVISMO): Os termos teóricos de uma teoria científica
possuem valor de verdade apenas na medida em que são traduzíveis para enunciados
de observação. Uma teoria é uma formulação “econômica” (ou seja, a mais simples
possível) das relações de dependência entre eventos ou entre propriedades
observáveis.
CONVENCIONALISMOI: As leis mais gerais da ciência são convenções, que dependem da
experiência, mas poderiam ser diferentes, conforme os critérios adotados pelo
cientista (Poincaré). As convenções são semelhantes aos princípios regulativos de
Kant.
O finlandês Ilka Niiniluoto (1999) apresenta o que talvez seja a mais completa
classificação das posições em filosofia da ciência apresentada na literatura. Define de maneira
detalhada o chamado “realismo científico”, que seria um conjunto de seis teses principais (R0
a R5), sendo que as três primeiras são:
R0) REALISMO ONTOLÓGICO: Há uma realidade independente de mentes humanas.
R1) REALISMO SEMÂNTICO: A verdade é concebida como uma correspondência entre
linguagem (teoria) e realidade, e a ciência é o melhor indicador da verdade.
R2) REALISMO TEÓRICOII: A linguagem teórica da ciência, envolvendo termos que não
têm referência direta no mundo observável, também têm valor de verdade.
A negação da tese R0 é o IDEALISMO SUBJETIVISTA, definido acima no contexto da
filosofia da mente. Uma versão um pouco diferente da tese R2 foi apresentada acima, e sua
negação constitui diferentes formas de FENOMENISMOI. A tese R1 se baseia na concepção de
verdade como correspondência, que discutimos na seção II.2.
4. Realismo vs. Antirrealismo
Resumindo a seção anterior, o realismo defende que a ciência pode fazer afirmações
sobre entidades ou leis inobserváveis, ao passo que antirrealismo, que chamamos também de
fenomenismoI, defende que a ciência só deve se ater ao que é observável ou mensurável.
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Esta discussão é às vezes chamada da questão do “estatuto cognitivo das teorias
científicas”.60 A melhor maneira de guardar o significado do termo “realismo” é lembrar que
se trata de um “realismo de inobserváveis”: a tese de que a ciência pode se referir a coisas que
se considera que nunca serão observadas. O realismo é a tese de que uma teoria bem
confirmada deve ser considerada literalmente verdadeira ou falsa, no mesmo sentido em que
um enunciado particular é considerado verdadeiro ou falso. Assim, (1) as entidades postuladas
pela teoria teriam realidade, no mesmo sentido em que objetos cotidianos são reais, mesmo
que elas não sejam observáveis (como “partículas virtuais”, “supercordas”, “espaço-tempo
curvo” ou “inconsciente”); (2) as leis teóricas e princípios gerais seriam verdadeiros ou falsos,
exprimindo a estrutura da realidade. Porém, como as teorias científicas geralmente envolvem
aproximações ou simplificações, deve-se entender a verdade através da noção de “verdade
aproximada” ou do conceito de “verossemelhança”.
Figura XII.1: Esquema da relação entre teoria e realidade, segundo a “visão recebida”.61
O fenomenismo é a tese de que uma teoria científica refere-se apenas àquilo que é
observável, ou seja, ao “fenômeno”, em oposição ao “númeno” ou “coisa-em-si”, que estaria
para além do alcance da razão pura (como colocava o filósofo Immanuel Kant). Em outras
60
Este é o termo usado na apresentação clássica, mas desatualizada, de NAGEL, E. (1961), The structure of
science, Harcourt, Brace & World, Nova Iorque, pp. 117-52. Uma discussão mais completa e atualizada é dada
por NIINILUOTO, I. (1999), Critical scientific realism, Oxford U. Press, cap. 5.
61
A “visão recebida” foi desenvolvida entre 1920 e 1960, e caracteriza uma teoria como sendo uma linguagem
logicamente estruturada. Uma boa referência, na qual a figura se baseia, é: FEIGL, H. ([1970] 2004) “A visão
‘ortodoxa’ de teorias: Comentários para defesa assim como para crítica”, Scientiae Studia 2(2), pp. 265-77. Devido
a dificuldades de incorporar modelos e analogias, essa visão “sintática” tem sido hoje preterida em favor da
chamada “visão semântica de teorias”.
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Cap. XII – Classificação de Posições em Filosofia da Ciência
palavras, para o fenomenismo não faz sentido afirmar que um termo não-observacional
corresponda a uma entidade real.
Para esclarecer esta última afirmação, consideremos a representação esquemática de
uma teoria científica da Fig. XII.1, em sua relação com a realidade física. A conexão entre
teoria e realidade é dada a partir dos “termos de observação” da teoria, que se referem
diretamente a entidades observáveis. Mas a teoria também contém termos mais abstratos,
chamados tradicionalmente de “termos teóricos”, que não correspondem a entidades
observáveis. A questão é estabelecer se faz sentido dizer que esses termos teóricos têm
referentes na realidade (ou seja, se pode-se dizer que eles se referem a algo real).
O fenomenismo está preocupado em erigir a ciência em bases seguras, nos fatos
observados ou nas sensações perceptivas. Considera assim que qualquer afirmação a respeito
da realidade não-observável é mera especulação metafísica, passível de erro. O realismo
admite que uma afirmação sobre a realidade não-observada pode ser errônea, pois a teoria
científica pode estar errada (falibilismo). Mas se estamos considerando a melhor teoria
científica disponível, há bases racionais para se defender que seus termos teóricos
correspondem a entidades ou estruturas reais, mesmo não havendo certeza.
5. Variedades de Antirrealismo
Vimos na seção X.1 que, na Antiguidade, a física era vista como abordagem realista à
ciência, buscando explicações verdadeiras sobre o mundo, lançando hipóteses sobre as
verdadeiras causas dos fenômenos. Na astronomia, porém, a tarefa da astronomia seria apenas
“salvar os fenômenos”, ou seja, descrever com precisão as observações, fazendo previsões
precisas, sem se preocupar com a verdade. Esta é uma versão forte do instrumentalismo,
segundo o qual uma teoria científica seria apenas um instrumento para se fazerem previsões, e
não havia a pretensão de que os epiciclos correspondessem à realidade por detrás dos
fenômenos astronômicos. Esse discurso instrumentalista também aparece no prefácio escrito
por Osiander ao livro de Copérnico, que veremos na seção XVI.1.
O descritivismo é uma forma de fenomenismo empirista que busca traduzir ou reduzir
os enunciados teóricos de uma teoria em termos dos enunciados de observação. Uma teoria é
vista como uma formulação “econômica” (ou seja, a mais simples possível) das relações de
dependência entre eventos ou entre propriedades observáveis. Termos teóricos como
“partículas virtuais” seriam uma descrição abreviada de um complexo de eventos e de
propriedades observáveis, e não faria sentido dizer que se referem a uma realidade física
inacessível para a observação (Fig. XII.1). Mesmo assim, o descritivismo aceita que um
enunciado teórico seja considerado verdadeiro ou falso, na medida em que for tradutível em
enunciados de observação verdadeiros.
A distinção entre instrumentalismo e descritivismo é sutil, e hoje em dia há uma
tendência de englobar ambos sob o nome “instrumentalismo” (em sentido lato) ou
simplesmente “fenomenismo” ou “antirrealismo”. O primeiro autor a articular detalhadamente
o descritivismo foi Ernst Mach62, com sua preocupação em reduzir a linguagem teórica à
linguagem de observação, mas foram os positivistas lógicos (Carnap, Schlick, Reichenbach,
62
MACH, E. ([1886] 1959), The analysis of sensations and the relation of the physical to the psychical, Dover,
Nova Iorque. A distinção entre instrumentalismo e descritivismo é apresentada por NAGEL (1961), op. cit. (nota
60). NIINILUOTO (1999), op. cit. (nota 60), discute o descritivismo na p. 110. Notamos que estes autores usam a
palavra “fenomenismo” no sentido mais usual do termo, mais restrito que o nosso, como a variante do
descritivismo que afirma que o mundo empírico consiste apenas de sensações e seus complexos (em oposição ao
“fisicismo” ou “fisicalismo”, do inglês physicalism, que toma os objetos físicos observáveis como ponto de
partida).
62
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etc., entre as décadas de 1920 e 60) que mais trabalharam nesta concepção, com sua
preocupação com a linguagem da ciência. Pode-se talvez associar o positivismo a uma visão
descritivista, apesar de se também poder associá-lo ao instrumentalismo. Além do
descritivismo, outras teses que comporiam o positivismo seriam o nominalismo (seção XII.2),
o critério de demarcação entre ciência e metafísica, a separação entre fato e valor, e a tese da
unidade da ciência.63
Ao contrário do descritivismo, que está ligado a uma preocupação com a linguagem da
ciência e na redução do significado dos enunciados teóricos ao significado dos enunciados de
observação, o instrumentalismo não vê uma teoria científica necessariamente como uma
linguagem, mas sim como um instrumento lógico ou matemático para organizar as
observações e as leis experimentais. Uma teoria é vista não como um conjunto de enunciados
que tenham valor de verdade, mas sim regras de acordo com as quais as observações são
analisadas e inferências (previsões) são obtidas. Seria incorreto dizer que a teoria é “uma
descrição abreviada de observações” (como no descritivismo), da mesma maneira que um
martelo não é uma descrição abreviada de seus produtos. O instrumentalismo tem facilidade
em lidar com idealizações e modelos simplificados em uma teoria científica, não tendo
necessidade de definir uma noção de “verdade aproximada”.
Uma idealização, ou seja, uma teoria simplificada, fornece um bom exemplo de como
uma teoria pode funcionar como instrumento, sem ter referência (sem ser verdadeira ou falsa).
Além disso, o instrumentalismo não vê problemas em se utilizar, em diferentes momentos,
teorias contraditórias.
Além do instrumentalismo e do descritivismo empirista (positivista), uma outra
posição antirrealista forte pode ser chamada de construtivismo (ver seção XI.1), e defende que
a mente tem um papel ativo na construção das observações. Na filosofia, Immanuel Kant foi o
defensor de um construtivismo bastante forte, que afirmava que o próprio espaço e tempo
seriam construções da mente, além das “categorias do entendimento”, como causalidade,
substância, etc.
Houve um célebre debate entre o descritivismo e o construtivismo na Inglaterra, onde
William Whewell, sob influência de Kant, desenvolveu um construtivismo mais ameno, em
que defendia que “todo fato envolve ideias”, ou seja, todo fato é apreendido sob uma certa
perspectiva teórica. Ao enfocar uma reunião de fatos isolados, como nos dados planetários de
Kepler, Whewell argumentava que “há um novo elemento” acrescentado por meio do ato de
pensar: “As pérolas estão lá, mas não formarão o colar até que alguém providencie o fio”. Ou
seja, Kepler projetou nos dados a construção mental conhecida como elipse. Em oposição a
ele, John Stuart Mill afirmava que a elipse que Kepler identificou nas órbitas planetárias
“estava nos fatos antes que a reconhecesse [...] Kepler não colocou o que concebera nos fatos,
mas viu isso neles”.64 Voltaremos a este debate na seção XV.2.
O construtivismo pode ser articulado dentro de um contexto realista, como é o caso do
filósofo Karl Popper, para quem as hipóteses ou conjecturas são um ato de livre invenção do
cientista. Está claro que é sempre preciso testar tais hipóteses por meio de experimentos. Ao
passar por sucessivos testes e ser “corroborada”, pode-se dizer, segundo Popper, que a teoria
se aproxima da verdade. Tal concepção é denominada “realismo convergente”.
63
Para um estudo das teses que compõem o positivismo, ver o cap. I de: KOLAKOWSKI, L. (1981), La filosofía
positivista, trad. G. Ruiz-Ramón, Ediciones Cátedra, Madri (original em alemão publicado em Varsóvia em 1966).
64
MILL, J.S. (1843), A system of logic, ratiocinative and inductive. Vol. I. London: J.W. Parker, livro III, cap. II,
§4, pp. 363-4. Tradução para o português de partes da obra, em Os Pensadores, livro III, cap. II, §3, pp. 171-2.
WHEWELL, W. (1847), The philosophy of the inductive sciences; ver trechos reproduzidos em WHEWELL, W.
(1984), Selected writings on the history of science, ed. Y. Elkana, University of Chicago Press, pp. 254-9.
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