Idealismo Transcendental e Refutação do Idealismo

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Vinícius M.R. de Carvalho
Idealismo Transcendental e Refutação do
Idealismo
Rio de Janeiro
2013
Idealismo Transcendental e Refutação do
Idealismo
Vinícius M.R. de Carvalho
Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, para a obtenção
de Título de Mestre em Filosofia
Orientador: Prof. Dr. Pedro Costa Rego
Rio de Janeiro
2013
ii
Idealismo Transcendental e Refutação do
Idealismo
Autor: Vinícius M.R. de Carvalho
Orientador: Prof. Dr. Pedro Costa Rego
Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, para a obtenção de Título de Mestre em Filosofia
Comissão Julgadora:
Profª. Drª.
Ethel Menezes Rocha
Prof. Dr.
Hans Christian Klotz
Prof. Dr.
Pedro Costa Rego
Rio de Janeiro
2013
iii
de Carvalho, Vinícius Moraes Rezende
Idealismo Transcendental e Refutação do Idealismo/
Vinícius Moraes Rezende de Carvalho. - Rio de Janeiro:
UFRJ/IFCS/PPGLM, 2013
xi, 84f.:il.; 29cm.
Orientador: Pedro Costa Rego
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Programa
de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica. 2013.
Referências Bibliográficas: f. 83-84.
1. Ontologia
2. Filosofia Moderna
3. Kant
I. Rego, Pedro Costa. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Programa
de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica. III. Idealismo
Transcendental e Refutação do Idealismo
iv
para Gabi
v
Ne sommes-nous pas une fantaisie organisée?
Paul Valéry
vi
Agradecimentos
Agradeço aos amigos do Sapere aude!, aos amigos da universidade, aos amigos de
infância e ISERJ, aos amigos todos, que são todos do peito. Agradeço ao meu orientador,
que também é um amigo. Agradeço à minha família, pelo apoio prestado nos últimos 27
anos. Agradeço aos amigos que fiz no PPGLM e principalmente aos seus professores que
foram sempre fontes de diálogo. Finalmente, agradeço à CAPES e ao governo brasileiro,
por prestarem apoio financeiro à minha pesquisa.
vii
Resumo
Este trabalho explora a questão do mundo externo e da refutação do idealismo na filosofia
de Kant. Através de uma interpretação crítica do Quarto Paralogismo enquanto um
mero exercício de semântica filosófica, mostramos como os pressupostos ali estabelecidos
precisam ser superados para uma refutação cogente do cético. Depois, mostramos como
a Refutação B empreende tal superação. Finalmente, mostramos os limites da Refutação
B para uma prova completa da existência do mundo externo.
Palavras-chave: Ontologia, Filosofia Moderna, Kant
Rio de Janeiro
2013
viii
Abstract
This work concentrates on the question of the existance of the external world and the
refutation of idealism on Kant’s philosophy. By a critical interpretation of the Fourth
Paralogism as a mere exercise of philosophical semantics, we show how the pressupositions there established must be overcome for a cogent and complete refutation of
skepticism. Then, we show how the B Refutation tries to overcome those pressupositions.
Finally, we show the limits of the B Refutation in relation to a cogent and complete
proof of the existance of the external world.
Keywords: Ontology, Modern Philosophy, Kant
Rio de Janeiro
2013
Sumário
1 Introdução
1.1
1.2
1.3
1
O sentido da questão pelo mundo externo . . . . . . . . . . . . . . . . .
2
1.1.1
O que quer dizer externo e interno? . . . . . . . . . . . . . . . . .
2
1.1.2
O sentido pragmático
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
2
1.1.3
O sentido pragmático e a conclusão filosófica . . . . . . . . . . .
3
1.1.4
Abandono do sentido pragmático e origem da questão . . . . . .
4
Legitimidade da questão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
5
1.2.1
A filosofia e o ponto de vista pragmático . . . . . . . . . . . . . .
5
1.2.2
Filosofias do senso comum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
5
1.2.3
Erística filosófica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
7
1.2.4
O papel do ceticismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
9
1.2.5
A questão do mundo externo qualificada . . . . . . . . . . . . . .
11
A questão na filosofia kantiana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
12
1.3.1
12
Duas formas de ver a questão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
2 O Quarto Paralogismo
17
2.1
O adversário e o argumento do adversário . . . . . . . . . . . . . . . . .
17
2.2
A discussão dos termos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
21
2.2.1
Externalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
22
2.2.2
Representação e objeto externos . . . . . . . . . . . . . . . . . .
23
Sumário
x
2.2.3
Objeto externo e objeto transcendental . . . . . . . . . . . . . . .
25
2.3
Como resta o paralogismo depois da tratamento semântico kantiano
. .
27
2.4
Da passagem do Quarto Paralogismo à Refutação B . . . . . . . . . . .
28
3 A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
3.1
31
O argumento da refutação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
31
3.1.1
O ante-texto do argumento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
31
3.1.2
Kant contra o idealismo transcendental consequente . . . . . . .
44
3.1.3
Da determinação empírica de um ‘Eu Penso’
. . . . . . . . . . .
47
3.2
Excurso: os elementos da Estética Transcendental . . . . . . . . . . . . .
49
3.3
Retorno ao argumento: a questão do permanente . . . . . . . . . . . . .
55
3.3.1
O permanente, enquanto aparece no texto do argumento . . . . .
55
3.3.2
Definição do que seja um permanente . . . . . . . . . . . . . . .
56
3.3.3
Do permanente enquanto condição das representações em geral .
58
3.3.4
Uma possível objeção ao argumento do permanente . . . . . . . .
60
O permanente e o idealista problemático . . . . . . . . . . . . . . . . . .
65
3.4.1
Da hipótese de uma faculdade oculta . . . . . . . . . . . . . . . .
68
3.4.2
Da hipótese de uma “fantasia organizada” . . . . . . . . . . . . .
71
3.4.3
A pressuposição do permanente . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
72
3.4
4 Conclusão: as limitações da Refutação e as perspectivas para um trabalho futuro
73
4.1
O primeiro limite: pressuposição X causação . . . . . . . . . . . . . . . .
75
4.2
O segundo limite: os indivíduos do mundo externo . . . . . . . . . . . .
79
Referências Bibliográficas
83
Lista de Figuras
3.1
Uma série sobreposta e uma série “absoluta” . . . . . . . . . . . . . . . .
64
Lista de Argumentos
1.1
Um mini-sistema metafísico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
9
2.1
Argumento preliminar do Quarto Paralogismo . . . . . . . . . . . . . . .
17
2.2
O argumento do Quarto Paralogismo tomando em conta as diversas
posições filosóficas em questão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
2.3
O argumento do Quarto Paralogismo depois do tratamento semântico
kantiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
3.1
3.2
20
27
Um raciocínio por inferência através do segundo postulado do pensamento
empírico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
39
O argumento por inferência da Refutação B . . . . . . . . . . . . . . . .
41
Capítulo 1
Introdução
O objetivo desta introdução é duplo: primeiro, o de tematizar a pergunta pela existência
do mundo externo de maneira geral, de forma a perguntar pela sua legitimidade na
filosofia. Essa primeira parte visa, por sua vez, a resposta de duas perguntas intimamente
ligadas. Primeira pergunta: a pergunta pelo mundo externo faz sentido? E a segunda: se
sim, como ela deve ser compreendida? Essa primeira parte apenas reflete a preocupação
do autor deste trabalho em estabelecer um escopo rigoroso à infame questão do mundo
externo. Em outras palavras, trata-se de mostrar que a questão não pode ser meramente
descartada, seja de um ponto de vista da história da filosofia, seja do ponto de vista
mais estrito do que significa a atividade filosófica.
A segunda parte da introdução aborda a questão na filosofia kantiana. Trata-se
de lidar com o tema da refutação do idealismo em dois âmbitos distintos. O primeiro
consistindo na tentativa de um afastamento do sistema transcendental de uma posição
cética com respeito à realidade dos objetos das nossas representações, enquanto o segundo
âmbito corresponderia a uma doutrina positiva acerca do mundo externo. Essa distinção
se tornará mais clara ao longo desta introdução.
Capítulo 1. Introdução
1.1
1.1.1
2
O sentido da questão pelo mundo externo
O que quer dizer externo e interno?
O que queremos dizer com a pergunta pela existência do mundo externo? A questão já
implica na divisão entre âmbitos interno e externo e na relação que pode haver entre
ambos. Quando perguntamos pela existência do mundo externo, fazemos referência
implícita a uma externalidade radicalmente distinta do âmbito interno das nossas representações, cuja existência (desse âmbito interno) é evidente. Para falar com mais
exatidão, nem chegamos a tomar esse âmbito interno somente como nosso, mas antes
consideramos a existência desse âmbito interno como equivalente à nossa existência, isto
é, à existência de um Eu, que distinguimos até mesmo do nosso corpo, que por vezes
aparece como um objeto estranho e independente de nós, como no caso da dor e das
sensações que são coatoras em geral.
1.1.2
O sentido pragmático
Em seu sentido mais corrente, a pergunta pelo mundo pode ser traduzida na hipótese de
que, eliminada essa sede de representações e percepções que reconheço em mim ou como
mim (o âmbito interno), algo diferente de mim é capaz de subsistir e operar segundo leis
próprias, quer eu conheça estas ou não. Mas colocada dessa maneira a questão perde
outro aspecto que lhe é essencial. A pergunta pelo mundo é também uma pergunta pela
harmonia e sincronia possíveis entre as representações do Eu e algum acontecimento ou
fato que existe realmente fora desse Eu. A sincronia é experimentada pragmaticamente:
quando um homem trabalha, vê o mundo reagir ao seu esforço, e logo pode medir os
resultados do seu trabalho com a expectativa da sua prévia ideação, isto é, com a idéia
do resultado que ele possuía antes de começar a trabalhar. Se o mesmo homem sente
dor, logo associa a sensação a algum âmbito que considera independente e fora de seu
controle, e estabelece com este âmbito uma relação perceptível. Não existe maneira de
3
1.1. O sentido da questão pelo mundo externo
se comportar no mundo a não ser considerando-o independente de nós. Qualquer análise
existencial, por mais limitada que seja, nos diz isso. O cuidado que tomamos com nossas
ações revela o medo instintivo de que elas não produzam resultados esperados, o que
por sua vez implica que tais resultados possam comportar-se de maneira autônoma e
contra nossa vontade. O cuidado com o nosso corpo, por sua vez, implica no medo de
ser assolado por coisas ou eventos que não controlamos, que não são nossos, no sentido
pleno do termo. Até o nosso próprio corpo pode ser visto como um elemento passível de
comportar-se contra nossas ideações e de padecer de maneira totalmente independente
de nossa vontade.
1.1.3
O sentido pragmático e a conclusão filosófica
Como mesmo os idealistas mais radicais não podem negar essa sincronia entre o que
consideramos mundo com o que consideramos nosso e ação nossa, as suas teses tendem a
ser coerentes com a pragmática usual. Trata-se apenas de revelar uma verdade filosófica
muito extravagante. Por isso, a questão foi considerada muito escolástica e sem legitimidade, mesmo entre filósofos. É verdade que, nesses termos, a solução não pode importar
em nenhuma mudança radical de comportamento no mundo pois, como vimos, ainda
que a tese da idealidade do real seja verdadeira, é impossível comportar-se como se ela
o fosse. Mas a inexistência de consequências práticas ou aplicações imediatas nunca foi
um fator que deteve a filosofia. A animosidade contra esse tipo de questão, por parte
de filósofos, tem origem bem diversa.
De toda forma, a conclusão de que, de um ponto de vista exclusivamente pragmático,
a questão pelo mundo externo carece de sentido, não está longe da verdade. Pois viver
no mundo depende da posição radical de estar no mundo enquanto uma coisa em relação
a outras, que são tratadas como diferentes de nós (ainda que a verdade filosófica diga
o contrário) e viver a expectativa que essas coisas respondam coerentemente a nossas
ações e de acordo com o nosso querer.
Capítulo 1. Introdução
1.1.4
4
Abandono do sentido pragmático e origem da questão
O ponto de vista pragmático não pode nos servir na resolução de uma questão somente
visível após o abandono desse próprio ponto de vista. Quer dizer que para colocar-se
a questão o filósofo precisa, por assim dizer, retirar-se ao seu gabinete e abandonar o
mundo dos vivos. O filósofo sabe que, em termos práticos, a resposta já está dada, que
cada linha que escreve estabelece uma relação entre o mundo e o sujeito. Mas a filosofia,
ou pelo menos alguma filosofia, não pode se contentar com tal “prova”, ela quer, antes,
uma demonstração racional por conceitos.
Eis o sentido metodológico da questão: se alguém aduz à pragmática como um
princípio que deve regular não a solução da questão, mas servir como um indicativo
que deve regular quais questões podem ser formuladas com sentido e como devem ser
formuladas se devem ter sentido; se alguém aduz à esse princípio, então a questão da
existência do mundo está dissolvida. Mas se, pelo contrário, alguém rejeita a pragmática
como um princípio filosoficamente viável, então a questão precisa ser resolvida por
conceitos.
Aqueles que escolherem o segundo caminho, como eu, podem ser chamados, com
justiça, de lunáticos, pois é esse o nome que damos às pessoas que retiram-se de seu
mundo usual para viver em um “mundo da Lua”, onde as coisas funcionam de maneira
diferente. Questionar o mundo em sua própria existência é não apenas cair no buraco
de Tales, mas usar uma escada para descer ali e tomar um chá com o filósofo. Descer
aqui é ignorar a efetividade da realidade, ainda que por um breve momento. Entretanto,
como tentarei provar abaixo, negar a efetividade da realidade é um momento essencial
à filosofia.
5
1.2. Legitimidade da questão
1.2
1.2.1
Legitimidade da questão
A filosofia e o ponto de vista pragmático
Como a condição para a colocação da questão sobre o mundo é a retirada do mundo (em
seu sentido pragmático) daquele que questiona, alguns filósofos, notadamente Heidegger,
chamaram a atenção para a absurdidade que é perguntar-se pela existência de algo que
acaba de ser abandonado (e que, ainda segundo Heidegger, nunca foi de fato abandonado).
Mas a incapacidade de certos troncos da filosofia em aceitar a experiência de um mundo
como prova da existência de um mundo deriva do próprio nascimento da filosofia
enquanto questionamento da totalidade do real.
Em certo sentido, a filosofia sempre esteve em conflito com a experiência de sua
época. Isto não significa que os filósofos de uma época não podem ser considerados
homens dotados dos preconceitos de então, mas apenas que a metodologia que seguiam
não estava comprometida, a priori, com nenhum desses preconceitos. Essa aparente falta
de amarras da filosofia é a principal responsável pela sua má fama, que logo contagiou a
vida intelectual como um todo, principalmente em épocas e circunstâncias que pediram
homens de ação. A contradição entre vida intelectual e vida prática só foi aparentemente
resolvida com a experiência, no século XX, do intelectual engajado. Mas ainda ali, podese argumentar, o intelectual só viveu mais intensamente a contradição que desejava
solucionar, ao perceber que os seus princípios abstratos não faziam sentido ou mesmo
que eram empecilhos para as soluções a serem colocadas em prática e vice-versa.
1.2.2
Filosofias do senso comum
É verdade que a filosofia tem se esforçado algumas vezes em corroborar o que chama
de senso comum. Essas filosofias do senso comum podem ser caracterizadas como uma
reação aos sistemas mais extravagantes. A sua legitimidade reside sempre em mostrar a
saída mais fácil e imediata para os problemas filosóficos, isto é, a sua dissolução. O que
Capítulo 1. Introdução
6
delas se espera é um tipo de apoio ao modo de pensar do momento em que aparecem.
Elas dizem: “os problemas filosóficos devem ser resolvidos (dissolvidos) pela religião”,
como também: “os problemas filosóficos devem ser resolvidos (dissolvidos) pela ciência”.
Tudo depende do momento histórico. Como as ciências e religiões raramente questionam
a evidência do mundo externo, tomando-o, respectivamente, seja como dado natural ou
como tarefa da criação, filosofias cujo ponto de partida é a harmonia com doutrinas
religiosas ou teorias científicas, ou mesmo com a consciência usual da época, parecem
usufruir de um manancial de sentido e legitimidade que por definição estaria vedado às
filosofias que negam ou duvidam da segurança de tais pontos de partida.
Ironicamente, essas filosofias harmoniosas não costumam admitir que a sua própria
atividade está condicionada historicamente. O senso comum de então será o senso
comum para sempre. O pensamento religioso legará uma doutrina sólida e imovível para
a humanidade e o método científico não sofrerá mudanças radicais a partir dos seus
próprios experimentos. Como contra-prova precisamos apenas aduzir aos dois últimos
séculos de história humana. Pois se é verdade que essas filosofias positivas tendem
a ser muito difíceis de derrotar no campo teórico, já que assentam sobre os edifícios
mais sólidos (leia-se, mais hegemônicos) da sua época, é igualmente verdadeiro que as
mudanças bruscas da história, que acontecem no campo da política e dos costumes,
acabam sendo o melhor remédio contra elas.
É uma verdade quase trans-histórica que para cada época que identificamos, existem
forças para mantê-la como é e forças que visam destruí-la e transformá-la. Igualmente,
na filosofia, as filosofias positivas, ou que assentam sobre a hegemonia, são confrontadas
por uma série de filosofias negativas, cujo objetivo é enfraquecer o consenso. Como o que
importa aqui é o resultado final de sobrepor-se ao inimigo, a questão do mundo externo
pode ser utilizada como forma de enfraquecimento ou construção do consenso. Assim, a
legitimidade da questão passa pelo seu uso erístico e não pelo seu uso apofântico. Ou,
traduzindo, a questão é legítima enquanto tática contra um inimigo na política e não
7
1.2. Legitimidade da questão
por que visa exprimir uma verdade.
Mas o leitor não precisa concordar com minhas teses acerca da relação entre filosofia
e política e filosofia e história para vislumbrar a legitimidade possível da questão do
mundo externo. Ele pode estar preocupado, por exemplo, com a perda da dignidade e
autonomia da filosofia em relação a outras áreas do saber e da vida se levar a sério a
minha descrição da atividade filosófica. Como o objetivo deste trabalho é simplesmente
passar a limpo a questão do mundo externo no idealismo transcendental, podemos
apresentar uma versão parecida do mesmo argumento, mas um pouco mais palatável
para aqueles que acreditam na autonomia da filosofia1 .
1.2.3
Erística filosófica
A legitimidade da questão pode ser defendida de outro ponto de vista, por assim dizer,
interno à filosofia, que não diz respeito à relação da filosofia com sua realidade histórica,
mas simplesmente à maneira como os filósofos relacionam-se entre si.
Ora, a filosofia, como quase todo ramo da atividade humana, é um âmbito onde
convivem disputa e cooperação. Isso significa que a filosofia não é uma atividade individual, que possa ser reduzida à ação ou pensamento de um único indivíduo. O que
nos obriga a concluir que a filosofia é a construção de algum sentido comum, que possa
A autonomia da filosofia tem dois sentidos. O primeiro está fundamentado na visão idílica de um
sábio desinteressado na busca pela verdade e alheio à bellum omnium contra omnes da vida natural;
significa que tudo o que ele diz está de alguma forma emancipado de ter que tomar parte em um conflito
real entre os homens. O segundo sentido significa que a filosofia é capaz de sustentar suas conclusões
de forma a ignorar as conclusões de outras disciplinas e que ela tem carta branca para se pronunciar
acerca de qualquer coisa, em qualquer contexto; que ela é a busca por um último fundamento e não
se fundamenta em nenhuma outra coisa, o que implica que sua atividade estaria de alguma forma
emancipada do “poder temporal ” das outras disciplinas. Nutro uma profunda desconfiança por essas
caracterizações da filosofia, penso basicamente o contrário disso tudo, mas não sou nenhum Foucault,
nem mesmo um Feyerabend, e não tenho esperanças que minha posição chegue a convencer alguém. Ela
é relevante no trabalho apenas porque a partir dela é possível estabelecer a legitimidade da questão pelo
mundo externo. Ainda sobre a minha concepção de filosofia: a que apresento, abaixo, sob o título de
erística filosófica, é apenas uma alternativa interna e que preserva a autonomia da filosofia nas questões
em disputa. Basicamente, a diferença entre a primeira e a segunda concepção é que, no primeiro caso,
as disputas filosóficas são provenientes de aspirações e conflitos reais e extra-filosóficos, a filosofia sendo
meramente a região ideológica do conflito. Enquanto que, no segundo caso, a razão de ser do conflito
são as questões filosóficas em abstrato, distantes dos prazeres e necessidades mundanas - a idéia de
uma autonomia da filosofia é preservada.
1
Capítulo 1. Introdução
8
ser compartilhado com vários homens. Para usar uma expressão da retórica, convencer o outro é um momento essencial de todo sistema filosófico. Mas o convencimento,
quando falha, pode dar lugar à refutação, essa manifestação do poder destrutivo da
racionalidade. Ora, se a refutação é legítima, então ela tem um embasamento filosófico
próprio. Se alguém se desse o trabalho de fazer uma genealogia das questões e posições
filosóficas, descobriria toda uma família delas cuja característica comum é a de terem
surgido enquanto refutações, isto é, enquanto reações a sistemas estabelecidos.
O meu ponto é que a questão do mundo externo deve ser compreendida como uma
dessas posições. A pergunta pelo mundo externo não serviu como pedra fundamental
de nenhum sistema filosófico, mas apenas como posição tática para a refutação de
sistemas estabelecidos. A pergunta raramente foi feita sem qualificações: “o mundo
externo existe?”, mas, antes, tomou sempre a forma de um desafio: “pode este sistema
provar a existência de um mundo externo?”.
Alguém pode pensar que, enquanto arma a ser utilizada em uma disputa filosófica,
a questão ontológica da existência do mundo é o equivalente do gás mostarda, dada
a aparente deselegância e impiedade em sua condenação en bloc. Não se trata de,
refinadamente, contestar este ou aquele ponto, esta ou aquela sutileza, das posições
de um adversário, mas antes mostrar a ele que, malgrado a bela arquitetônica do seu
sistema, ele é incapaz de confirmar ou refutar decididamente a experiência sensível mais
banal.
Alguém ainda poderia dizer que a pergunta pelo mundo externo é exclusiva de um
tipo de ceticismo muito radical que não pode ser levado a sério, pois é, no fundo, uma
anti-filosofia. Ainda que alguém concordasse com esse diagnóstico, bastaria repetir que
a pergunta pelo mundo externo pode ser usada (e na maioria das vezes é usada) como
uma posição tática contra um sistema filosófico estabelecido.
9
1.2. Legitimidade da questão
1.2.4
O papel do ceticismo
O ceticismo hoje é considerado uma corrente filosófica própria que se distingue pelas
suas conclusões: que é impossível conhecer com certeza determinadas coisas ou mesmo
que é impossível conhecer tout court; mas eu gostaria de propor outra concepção de
ceticismo, muito mais calcada na atividade filosófica do que nas conclusões dos manuais.
É muito mais proveitoso conceber o ceticismo como um momento da reflexão filosófica que procura testar mentalmente a correção de um sistema. Assim, o cético procederia
da seguinte maneira: primeiro, ele identificaria certas expectativas que podem ser razoavelmente levantadas a partir do sistema em questão. Depois, ele tentaria mostrar
como essas expectativas razoáveis não foram atendidas pelo sistema. Finalmente, ele
poderia propor a substituição do sistema analisado por um outro ou mesmo nenhum
sistema (o que faria dele um cético strictu sensu). Vista dessa maneira, a questão sobre
a existência de um mundo externo é completamente legítima. Pois é uma expectativa
razoável de qualquer sistema metafísico que este diga alguma coisa acerca do mundo.
Ainda que conclua pela sua não-existência real.
Assim, ele pode atacar um sistema metafísico quando, por exemplo, encontra duas
proposições (P e Q) acerca do mundo:
Premissa 1
Premissa 2
P
Q
A percepção de uma coisa não pode ser provada
O mundo externo é um caso de percepção
A existência do mundo externo não pode ser provada
O mundo externo é constituído de uma diversidade de substâncias
Tabela 1.1: Um mini-sistema metafísico
O que aqui se afirma é que um objeto cuja existência não pode ser provada (propo-
Capítulo 1. Introdução
10
sição P) tem como propriedade ser constituído de várias substâncias (proposição Q). O
metafísico poderia afirmar que não há problemas em afirmar propriedades de objetos
possivelmente não existentes, desde que o faça de maneira hipotética. Assim, ele poderia
condicionar Q dessa forma: se o mundo externo existe, então necessariamente ele é
constituído de uma diversidade de substâncias. O problema é que agora a verdade de Q
depende da premissa de que percebemos o mundo externo enquanto tal e que o mundo
externo enquanto o percebemos existe. Isto é, a única proposição com valor cognitivo
do sistema depende de que a nossa percepção do mundo externo seja uma percepção
verdadeira (não que ela exista, pois isso é inegável, mas que ela seja correspondente
com a realidade). Aqui o cético pode acusar o metafísico de arbitrariedade, pois o que
ele faz é simplesmente inserir o mundo como um caso de percepção verdadeira que não
pode ser provada. O metafísico também pode acusar o cético de questionar “o que é
simplesmente dado”. O que importa, entretanto, é que o cético tenha obrigado o metafísico a reconhecer que a sua proposição Q depende da veracidade de nossa percepção do
mundo externo.
Mais uma vez estamos às voltas com a legitimidade da questão. Mas a filosofia
não pode se contentar simplesmente em acatar uma percepção como correta. Antes de
afirmar que o mundo é um dado perceptivo inegável ao mesmo tempo em que impossível
de demostrar, é necessário analisar a percepção. Só que analisar a percepção é justamente
perguntar pelas suas características e não tomá-la como correta. Qual a estrutura dessa
percepção? Ela pode ser decomposta em elementos mais simples? Se sim, quais são esses
elementos? A análise dessa percepção leva naturalmente à pergunta pela sua correção.
Será que a percepção (inegável) de um mundo externo nos apresenta um fato? Se é
possível enganar-se acerca dos elementos do mundo, por que não seria possível enganar-se
a respeito da estrutura do mundo? Ora, aqui o cético pode levantar muitas hipóteses que
precisariam ser descartadas para assegurar a estrutura do mundo externo: a imaginação,
uma faculdade oculta, o gênio maligno, etc. É necessário mostrar que nenhuma dessas
11
1.2. Legitimidade da questão
pode ser a condição de possibilidade do mundo externo.
1.2.5
A questão do mundo externo qualificada
É necessário frisar que, ainda que justificada, a questão sobre o mundo externo sempre
precisa de qualificações. Sua infâmia até mesmo entre os filósofos não é um caso muito
difícil de ser compreendido. A questão é de fato um dispositivo erístico, muito mais
preocupado em colocar um adversário contra a parede do que descobrir alguma verdade
perene. Pois a percepção de um ambiente externo que chamamos de mundo é uma
evidência tão radical que até mesmo os céticos e idealistas que concluíram contra a
sua correção não o fizeram de maneira absoluta, mas sempre ressalvaram que, ainda
que a verdade seja muito diferente, a maneira como nos comportamos em relação a
essa percepção não pode ser modificada, ela é um elemento muito essencial de nossa
natureza.
Mesmo os materialistas radicais concluíram pela falsidade de nossas percepções
acerca do mundo. Desde pelo menos os atomistas gregos, os filósofos que assumem
ou provam a realidade de um mundo externo distinto de nós concordam com os seus
colegas idealistas que nossas representações acerca do mundo são incorretas ou no
mínimo limitadas. Com efeito, a divisão entre qualidades secundárias e primárias deixa
implícita uma divisão correspondente na ontologia, onde as primeiras não possuem o
mesmo atestado de realidade que as segundas, ainda que ambos os tipos de qualidades
participem de nossa percepção do mundo.
Seja qual for a solução para o problema do mundo, podemos afirmar que nenhuma
delas passa pela simples confirmação arbitrária de nossas percepções. Minha sugestão
para alguém preocupado pela legitimidade da questão acerca da existência do mundo
seria em pensar na mesma como uma forma de crítica e correção de nossas percepções.
Uma crítica decididamente radical e erística, mas ainda assim incluída nesse exercício
filosófico geral de questionamento do “que é dado”.
Capítulo 1. Introdução
1.3
12
A questão na filosofia kantiana
Passo agora à questão de saber como o problema do mundo externo se desenvolve
especificamente na filosofia kantiana. O objetivo desta seção é mostrar como e por que
as dúvidas céticas a respeito de um conhecimento possível acerca do mundo externo
podem afetar o sistema kantiano.
É certo que já na primeira edição da Crítica da Razão Pura, Kant tematizou o
problema no Quarto Paralogismo. O aparecimento da Refutação do Idealismo na segunda
edição mostra que, seja qual for o resultado que extrairmos dos argumentos do Quarto
Paralogismo, Kant os considerava no mínimo insuficientes e passíveis de refinamento.
Uma olhada rápida nas reflexões que permeiam os anos de 1785 – 1793 mostra que o
problema continuou assombrando a vida madura do filósofo até poucos anos da sua
morte. Com isso, não há dúvidas que Kant considerava a questão importante.
Isso não significa que ele tenha sempre considerado a questão legítima, entretanto. O
Quarto Paralogismo pode ser compreendido como um exercício de semântica filosófica
que mostra como a questão pela realidade do mundo externo é um pseudoproblema,
na medida em que assentaria numa má compreensão do que significa dizer que alguma
coisa é externa. Explicarei melhor essa semântica filosófica de Kant no Capítulo 2.
1.3.1
Duas formas de ver a questão
De maneira geral, há duas formas de olhar para a questão do mundo externo na filosofia
kantiana. O primeiro modo consiste em vê-la no contexto de uma disputa com um
cético anti-sistema. O objetivo de Kant seria o de salvaguardar o sistema do idealismo
transcendental de posições céticas virulentas acerca da impossibilidade de conhecimento
seguro de um mundo exterior. A tarefa de Kant seria a de retratar essa posição cética
particular e mostrar como ela não tem legitimidade dentro do sistema transcendental.
Bastaria para isso um argumento epistêmico. Tal argumento consistiria em mostrar
13
1.3. A questão na filosofia kantiana
como uma certa posição cética, a saber, a da suspensão do juízo, torna-se irracional e
completamente arbitrária dentro do sistema crítico. O objetivo é mostrar ao cético a
necessidade de pressupor um âmbito externo ao sujeito de conhecimento.
Mesmo o ceticismo mais radical pode aceitar o pressuposto pragmático de que é
necessário comportar-se como se o mundo existisse. Assim, se a pressuposição conquistada por Kant for de ordem meramente pragmática, então o embate entre o filósofo
transcendental e o ceticismo é ocioso. Não se trata, portanto, de mostrar a necessidade
de um pressuposto pragmático, mas, antes, de um pressuposto epistêmico. É necessário
demostrar como, sem esse pressuposto, a própria experiência não poderia ser da maneira
como ela de fato é. A refutação do idealismo e a prova do mundo externo podem ser
assim compreendidas no escopo dos argumentos transcendentais, cujo objetivo central
é o de assegurar certas características da experiência de forma completamente a priori.
Uma segunda forma de olhar para a questão seria tratá-la independentemente do
contexto de uma disputa com um adversário particular. É claro que, na formulação
da dúvida acerca da realidade do mundo externo, uma certa posição cética sempre
emerge, ainda que em traços muito grosseiros. Porém, o mais importante neste caso
seria reconhecer a necessidade de uma explicação filosófica geral para a realidade do
mundo externo. Nesta visão, tratar-se-ia de exigir da filosofia em geral, e da metafísica em
particular, uma explicação para as estruturas da realidade mesmo que a existência de tais
estruturas nunca estivesse em questão. Nesta visão, a realidade do mundo externo precisa
ser assegurada porque essa é uma obrigação da filosofia e não por que uma barbárie
cética ameaçaria derrubar os portões imperiais da certeza. Poderíamos imaginar um
mundo onde todos os homens concordassem entre si e, ainda assim, exigiria-se que a
matéria com a qual esses homens concordam passasse por um exercício explicativo.
É importante ter em vista essa distinção ao tratar da questão em Kant. É fácil
confundir-se a respeito do que o filósofo está tentando fazer em determinado momento.
Muitas vezes somos tentados a estender as afirmações de Kant para além do seu escopo
Capítulo 1. Introdução
14
original. Queremos que ele diga algo acerca da estrutura do real quando, na verdade,
o seu esforço consistia apenas em afastar um tipo particular de ceticismo. Talvez isso
possa explicar a frustração que encontramos entre os comentadores, e mesmo entre os
mais simpáticos à filosofia transcendental, quando são obrigados a tratar da refutação
kantiana do idealismo. O objetivo do que foi dito acima é estabelecer a distinção
entre dois objetivos possíveis de Kant. O primeiro deles, enquanto disputa com um
cético, é a refutação particular de um adversário. O segundo, é a prova de um mundo
externo como necessidade de um sistema metafísico independente da consideração de um
adversário particular. A diferença é simples: no primeiro caso, uma refutação apagógica
via reductio é possível, pois trata-se de expulsar apenas o ceticismo, rigorosamente
caracterizado. No segundo caso, a questão da existência de um adversário particular
está em aberto e é apenas secundária, forçando o filósofo a elencar características
positivas que corresponderiam à realidade do mundo externo.
De toda forma, talvez seja que do ponto de vista do idealismo transcendental a
segunda maneira de colocar o problema seja carente de sentido. Pois ela equivaleria a
romper com os limites críticos do sistema e ensaiar algum tipo de tese determinada
acerca da coisa-em-si. Talvez seja suficiente, para o bom funcionamento do sistema, a
prova de um pressuposto racional necessário contra um cético particular. É essa uma
das questões que me proponho investigar.
Há ainda, entre os intérpretes da filosofia kantiana, aqueles que questionam a necessidade de qualquer refutação do idealismo. Seja a que encontramos no exercício de
semântica filosófica do Quarto Paralogismo, seja a prova da necessidade de um pressuposto da Refutação de 1787. Para G.E. Schulze2 a posição consequente com os preceitos
da filosofia crítica seria a suspensão do juízo acerca da realidade das coisas exteriores.
Para Jacobi 3 , Kant deveria abandonar as tentativas de separação do seu idealismo do
idealismo berkleiano e abraçar um idealismo ainda mais radical, que suprimisse o con2
3
cf. Schulze (1911)
cf. Jacobi (1787)
15
1.3. A questão na filosofia kantiana
ceito insustentável de uma coisa-em-si. Schopenhauer considera a revelação da filosofia
crítica de que o mundo externo só possa ser tomado enquanto representação e por isso
enquanto uma ilusão, como um mérito do Idealismo Transcendental:
Tal conhecimento claro e tal exposição tranquila e lúcida dessa índole
onírica do mundo inteiro é, propriamente, a base de toda a filosofia kantiana,
é sua alma e seu mérito máximo. Levou-a a efeito desmontando e exibindo,
peça por peça, toda a maquinaria de nossa faculdade de conhecimento, por
meio da qual se efetiva a fantasmagoria do mundo objetivo, com lucidez e
habilidade admiráveis.4
5
É claro que nenhuma dessas parece ser a saída kantiana. Como veremos, a posição de
Schulze pode ser facilmente identificada com a do idealista problemático da Refutação B.
Igualmente, é sabido que a motivação para uma nova refutação do idealismo nos moldes
da que aparece em 1787 deve-se em grande parte às críticas de Jacobi à refutação
original nos Paralogismos. Finalmente, a posição de Schopenhauer, de que o mundo
externo deva ser considerado ilusório por ser cognoscível apenas via representações,
parece muito dissonante com a conclusão kantiana do Quarto Paralogismo em que o
mundo externo, apesar de ser apenas representação, pode ser ainda considerado como
detentor de realidade empírica.
Nas próximas páginas apresentarei uma breve interpretação do Quarto Paralogismo
esforçando-me em tornar claro o esforço semântico de Kant em afastar a questão do
mundo externo como uma questão sem sentido se tomada fora dos limites impostos
pelo seu idealismo transcendental. Depois, tentarei mostrar como o próprio ponto de
Solche deutliche Erkenntniß und ruhige, besonnene Darstellung dieser traumartigen Beschaffenheit
der ganzen Welt ist eigentlich die Basis der ganzen Kantischen Philosophie, ist ihre Seele und ihr
allergrößtes Verdienst. Er brachte dieselbe dadurch zu Stande, daß er die ganze Maschinerie unsers
Erkenntnißvermögens, mittelst welcher die Phantasmagorie der objektiven Welt zu Stande kommt,
auseinanderlegte und stückweise vorzeigte, mit bewunderungswerther Besonnenheit und Geschicklichkeit.
cf. Schopenhauer (1986), p.567
5
A tradução do trecho é autoria e responsabilidade da profª. Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola.
4
Capítulo 1. Introdução
16
vista de Kant modificou-se em relação ao problema e como, na posterior tentativa de
resolução do mesmo, na Refutação de 1787, certas ambiguidades tornam-se evidentes e
dão espaço ao aparecimento de tensões e possibilidades de ruptura do próprio filósofo
com os limites impostos pelo seu sistema.
Capítulo 2
O Quarto Paralogismo
2.1
O adversário e o argumento do adversário
Kant abre o Quarto Paralogismo expondo o argumento de seu adversário. O argumento
pode ser sumarizado preliminarmente assim:
(p1)
(p2)
(c)
Aquilo que possui como única evidência de existir ser a causa
de uma dada percepção, têm existência duvidosa.
A existência dos fenômenos exteriores só pode ser determinada como causa de percepções dadas.
Portanto, a existência dos fenômenos exteriores é duvidosa.
Tabela 2.1: Argumento preliminar do Quarto Paralogismo
Este é, em essência, o argumento do adversário. Ele expressa uma posição aparentemente cética, no sentido de que conclui pela dúvida de alguma coisa e não pela
determinação positiva de nada. No caso, só podemos tomar a existência do “fenômeno
exterior” como duvidosa. Mas como concluímos pela dúvida?
A estratégia do adversário, segundo Kant, funda-se na explicação de (p1). Pois (p1)
nada mais é que a constatação de uma regra epistêmica geral: que o campo de causas
possíveis de serem responsabilizadas por um determinado efeito é muito extenso, de tal
Capítulo 2. O Quarto Paralogismo
18
forma que tendo um conhecimento apodíctico do efeito eu ainda possa me enganar sobre
a sua causa. Em (p2) consideramos o caso dos objetos exteriores como uma instanciação
de (p1). Assim, os objetos exteriores seriam a causa hipotética de nossas percepções.
Porém, ao contrário dessas percepções dadas, cujo conhecimento me é evidente, pois
estou simplesmente acquainted com elas, quer dizer, posso comprovar sua realidade na
medida em que sou consciente delas, aquilo que é externo, enquanto causa, só pode
ser objeto de uma inferência. Dada a regra epistêmica geral, tal inferência será sempre
problemática.
À posição geral que considera a causa de nossas percepções como distinta das
próprias percepções Kant chama de idealismo. Assim, a dúvida idealista consistiria
em comparar dois níveis de acesso diferentes à experiência: um deles, que depende
apenas da consciência dos dados acessados para atestar a sua realidade e o outro,
cuja impossibilidade de acesso aos dados pela consciência torna qualquer atestado de
realidade um problema. Ao primeiro nível, cabem as percepções que relacionamos com
os objetos externos. Ao segundo nível, cabem esses objetos externos hipotéticos, que
por princípio são inacessíveis à consciência.
A breve descrição de Kant esclarece a motivação para o aparecimento de uma posição
idealista em geral na história da filosofia: o que distingue especificamente o idealismo é
o fato de que este conclui pela “idealidade dos fenômenos externos1 ”, isto é, dado que o
objeto considerado externo tem duas faces, ou modos de ser, um deles como inerente à
consciência, o outro como afastado ontologicamente desta consciência e causa hipotética
do primeiro modo; e como ao primeiro modo corresponderia um sentimento de certeza,
enquanto ao segundo só podemos atribuir inferências problemáticas, o idealismo seria
assim uma doutrina que buscaria a economia de princípios explicativos. Já que o único
acesso que temos às coisas corresponde ao primeiro modo de tomá-las, isto é, como
modificações de nossa consciência, vejamos se não é possível explicar satisfatoriamente
1
ver A367
19
2.1. O adversário e o argumento do adversário
as coisas sem apelar para uma existência independente da consciência.
Entretanto, o próprio Kant não parece reconhecer a profundidade de sua tese quando
se expressa de outra maneira acerca do significado dos termos idealismo/idealista:
Por idealista não se deve entender aquele que nega a existência dos objectos externos dos sentidos, mas apenas aquele que não admite que sejam
conhecidos mediante percepção imediata, concluindo daí que nunca podemos estar completamente seguros da sua realidade pela experiência possível.
(A369)2
Aqui o idealismo é reduzido a um mero ceticismo. Talvez por Kant ainda não
distinguir bem o que ele mais tarde chamará de idealismo dogmático em oposição ao
idealismo problemático 3 . O primeiro correspondendo à doutrina que busca uma economia
de princípios explicativos enquanto o segundo à posição cética apresentada acima.
No Quarto Paralogismo, Kant usará o termo idealismo empírico para referir-se ao
que mais tarde também será apresentado como idealismo problemático ou cético. O
idealista empírico aqui deve ser oposto ao idealista transcendental no sentido de que,
malgrado ambos reconheçam a distinção epistêmica entre a acessibilidade primária aos
dados da consciência e a acessibilidade problemática ao objeto do fenômeno externo, só
um deles permanece no campo da dúvida cética. O idealista transcendental, ao contrário
do seu irmão, pode ser também um realista empírico e escapar do ceticismo.
Já tal realista empírico deve ser distinguido do realista transcendental. O realista
transcendental é o pai do idealista empírico, na medida em que é o seu pressuposto. Cabe
ao realista transcendental afirmar a realidade do espaço e do tempo como coisas-em-si,
isto é, independentes de nossa sensibilidade. Portanto, os objetos aí dispostos seriam
igualmente independentes de nossa capacidade de representá-los. Como, porém, esses
A ênfase é de Kant. Como referência para as citações da Crítica da Razão Pura, utilizarei a edição
portuguesa da Fundação Calouste Gulbenkian cuja referência bibligráfica é Kant (1994). Como é praxe,
indicarei apenas a paginação das edições originais de 1781 e 1787, A e B respectivamente.
3
cf. A377 e B275
2
Capítulo 2. O Quarto Paralogismo
20
objetos são inacessíveis para nós, dada a tese da primazia dos dados da consciência4 , a
consequência do realismo transcendental é a tese de que só podemos suspender o juízo
acerca da existência real, isto é, independente de nós e de nossa consciência, desses
objetos. Como vimos, essa é justamente a tese do “idealismo empírico”.
Dentro dos termos kantianos, a querela então deve ser resolvida entre dois pares de
posições. O primeiro par, que sustenta o paralogismo, é o do 𝑟𝑒𝑎𝑙𝑖𝑠𝑡𝑎 𝑡𝑟𝑎𝑛𝑠𝑐𝑒𝑛𝑑𝑒𝑛𝑡𝑎𝑙 →
𝑖𝑑𝑒𝑎𝑙𝑖𝑠𝑡𝑎 𝑒𝑚𝑝´𝑖𝑟𝑖𝑐𝑜. O segundo é o do 𝑖𝑑𝑒𝑎𝑙𝑖𝑠𝑡𝑎 𝑡𝑟𝑎𝑛𝑠𝑐𝑒𝑛𝑑𝑒𝑛𝑡𝑎𝑙 → 𝑟𝑒𝑎𝑙𝑖𝑠𝑡𝑎 𝑒𝑚𝑝´𝑖𝑟𝑖𝑐𝑜.
A ordem dos termos é importante. Ela mostra que o Quarto Paralogismo funda-se
em certas pressupostos acerca da realidade do espaço-tempo e que a posição cética se
conclui a partir desses pressupostos. Ao contrário, a tese do realismo empírico deve ser
concluída de pressupostos acerca da idealidade do espaço-tempo. Mas no que consiste,
exatamente, o realismo empírico? Essa é a questão capital para a compreensão do Quarto
Paralogismo. Antes de aventurar qualquer resposta, passemos a limpo o argumento do
Quarto Paralogismo tendo em vista a posição desde onde são afirmados:
(p1)
(p2)
(p3)
(p4)
(c1)
(c2)
A consciência é testemunho direto da realidade de suas representações
Certas representações possuem enquanto objeto fenômenos
exteriores
A inferência de um efeito conhecido para uma causa desconhecida só pode ser problemática
A realidade de um objeto externo só pode ser atestada pela
sua existência independente da consciência
Por (p1) (p2) e (p3) a inferência da realidade dos objetos
das representações exteriores é problemática
Por (p4) e (c1) a existência de objetos externos independentes de nossa consciência e responsáveis por nossas representações é duvidosa
Premissa comum
Premissa comum
Princípio epistêmico
Premissa realista transcendental
Conclusão comum
Conclusão idealista empírica
Tabela 2.2: O argumento do Quarto Paralogismo tomando em conta as diversas posições
filosóficas em questão
Nem o realista transcendental nem o realista empírico de Kant são realistas diretos. Todos assumem
a tese de que o acesso aos dados da consciência é privilegiado, ao contrário do acesso aos dados reais,
que só pode ser problemático ou impossível.
4
21
2.2. A discussão dos termos
As premissas e conclusões ditas comuns são as que foram tomadas como válidas por
todos os envolvidos no argumento. O princípio epistêmico, também, é tomado como
válido para todas as posições. A premissa realista transcendental e a conclusão idealista
empírica seriam as diferenças específicas de tais posições, no que concerne o argumento.
Como vimos, um dos pontos da análise kantiana é mostrar como o realista transcendental
consequente torna-se um idealista empírico. Nosso esquema leva isso em consideração ao
mostrar como de uma premissa realista transcendental (p4) chegamos a uma conclusão
idealista empírica (c2).
A passagem das premissas para as conclusões é quase trivial. Como em todo paralogismo, mostrar que o raciocínio é, em última instância, falacioso, não consiste em atacar
sua forma lógica, mas em mostrar que o sentido dos termos utilizados é impreciso ou
incorreto. Como veremos, depois da reinterpretação kantiana dos termos o que acontecerá é que algumas dessas posições serão refutadas e outras serão acatados por Kant
levando em conta a ressignificação dos termos relevantes proposta pela sua “refutação”
do Quarto Paralogismo. É por isso que uma boa interpretação do Quarto Paralogismo
deve levar em conta o esforço de semântica filosófica kantiano para esclarecer e definir
o sentido possível que os termos da argumentação podem adquirir.
2.2
A discussão dos termos
Em primeiro lugar, cabe definir quais termos estão em disputa no esforço de esclarecimento filosófico de Kant. O princípio básico de funcionamento do argumento é mostrar
como o adversário uso os termos de forma imprecisa e/ou incorreta e como esse uso
acaba por levá-lo ao paralogismo em questão.
Capítulo 2. O Quarto Paralogismo
2.2.1
22
Externalidade
O primeiro termo, a externalidade, é o mais importante, porque ele se combina com outros
dois para formar os compostos "representação externa"e "objeto externo". Ademais,
é justamente o estatuto da externalidade que está em questão. Pois a dúvida que
caracteriza o idealista lança sua sombra somente sobre o campo da externalidade e do
externo, ao mesmo tempo em que tudo o que pertence à consciência5 está já assegurado.
Como a distinção psíquica entre dados internos e externos é uma propriedade legada
como evidência da mais elementar experiência humana, nem o astuto Kant pôde negala como tal, antes tendo que acoplá-la ao seu sistema de alguma forma. Como o fez
pode ser descrito mais-ou-menos assim: primeiro, o filósofo identificou a externalidade
a um sentido subjetivo. Assim como alguns moralistas ingleses do séc.XVIII fundaram
uma teoria moral sobre a idéia de um senso moral comum a todos os homens6 , o que
deveria responder pela objetividade possível dos juízos morais, Kant estende a idéia
de sentido subjetivo ao fenômeno7 da externalidade. Assim, o sentido externo é uma
“propriedade do nosso espírito que nos dá a representação de objectos como exteriores
a nós e situados no espaço (B37)”. Primeiro, temos o reconhecimento de que o sentido
externo é subjetivo, isto é, que reside unicamente dentro de nós. O sentido externo é,
por assim dizer, interno. Igualmente, a forma como se expressa Kant é bastante fraca. O
sentido externo nos apresenta objetos como exteriores a nós e situados no espaço. Isso
não significa que (1) tais objetos existam necessariamente ou que (2) dada a existência
de tais objetos, que eles sejam realmente externos. O primeiro uso dessa expressão
parece muito evidente: cabe distinguir aqui o que é experimentado enquanto externo
mas realmente não o é, como no caso das alucinações ou sonhos. Porém, no contexto
do Quarto Paralogismo podemos ler a definição de Kant como uma advertência de seu
Ou seja, tudo o que é interno.
Ver a esse respeito a obra de Shaftesbury (1904).
7
Uso o termo ‘fenômeno’ aqui em um sentido não técnico, para caracterizar genericamente um
acontecimento.
5
6
23
2.2. A discussão dos termos
sistema contra o realista transcendental. Trata-se de dizer que, ao contrário do que pensa
o adversário realista, o objeto externo nunca é absolutamente externo, sendo antes uma
modificação subjetiva do espírito. Pois o espaço onde estão situados os objetos externos
só pode ser uma condição subjetiva, se o idealismo transcendental for a teoria correta,
e os objetos situados no espaço só podem ser representações:
Com efeito, o espaço é apenas representação; portanto, o que está nele
deve necessariamente estar contido na representação e nada absolutamente
há no espaço além do que nele se encontra realmente representado. (A375,
nota)
Como o externo está identificado com o espaço e o espaço, como forma do sentido
externo, está identificado com uma condição subjetiva, resta-nos a conclusão de que o
que está no espaço é também subjetivo, isto é, representação. Como nenhum objeto
externo pode deixar de possuir extensão e a extensão é uma propridade inerente ao
espaço, todo objeto externo é uma representação externa.
2.2.2
Representação e objeto externos
O idealismo transcendental do Quarto Paralogismo nos obriga a concluir pela igualdade
dos termos representação externa e objeto externo. Com efeito, esta é a estratégia de
Kant para afastar a dúvida idealista empírica. Lembremos que a dúvida surge quando nos
damos conta de como a inferência pela realidade de um objeto externo enquanto causa de
uma percepção tem um estatuto epistêmico muito diferente daquele testemunho direto e
auto-evidente da realidade de nossas representações. Se Kant conseguir acavalar os dois
termos e mostrar que tudo o que pensamos quando pensamos em um objeto externo
pode ser explicado por uma representação, ainda que um tipo especial de representação,
então ele de certa forma refutou o argumento do adversário.
Oras, dada uma representação externa, podemos concluir pela sua realidade através
Capítulo 2. O Quarto Paralogismo
24
de um simples testemunho de consciência. Isto é, toda representação externa, enquanto
representação, ainda que seja uma falsa representação externa, ou seja, ainda que apresente como externo algo que apenas acontece internamente, é real. Kant tenta dar conta
dos problemas evidentes que isso sugere. O primeiro deles é o critério de falseabilidade
das representações externas. Pois que existam sonhos e alucinações, isto é, falsas representações externas, é um fato. Logo, é necessário explicar tal fato8 . Para diferenciar a
experiência externa verdadeira da aparente experiência externa, Kant apela ao encadeamento empírico dos fenômenos9 . A idéia é que ilusões isoladas podem ser detectadas
na medida em que sejam dissonantes com o encadeamento ordinário dos fenômenos10 .
Igualmente, a objetividade da experiência externa verdadeira assenta não sobre
um campo de entes independente do sujeito, mas, ao contrário, em leis de síntese dos
dados da sensibilidade que são intersubjetivas. O objeto externo é real e verdadeiro na
medida em que compartilhado por muitos, e compartilhado por muitos na medida em
que construído seguindo regras de síntese da intuição válidas para todos nós.
O segundo problema é muito mais complicado e temos razões para acreditar que
tenha levado à supressão da Refutação A na segunda edição da CRP. Vamos chamá-lo
de aporia da representação11 . Ela consiste no seguinte: se os objetos externos são, para
todos os fins, apenas representações externas, o que os distingue dessas representações?
Ou, para afinar a nomenclatura e pôr o problema a claro, qual a diferença entre o
representamen ou signo e o representado que torna a relação de representação possível
e necessária?12 A vantagem de nos expressarmos assim consiste justamente no fato
Poderíamos nos perguntar por que seria necessário explicar o fato das alucinações, dos sonhos e
do erro em geral. A resposta mais simples seria: se uma teoria tem a ambição de explicar a origem e os
limites do nosso conhecimento, então ela toma para si, automaticamente, o dever de explicar a origem
dos nossos erros. Pois o primeiro só pode ser concebido em contraste com os últimos, e os últimos,
quando se tornam numerosos e inevitáveis, servem como demarcação de limites ao primeiro.
9
cf. A376-377
10
É claro que resta aqui a possibilidade de uma ilusão sistemática ou, como gosto de chamá-la, de
uma fantasia organizada conforme as regras usuais do encadeamento dos fenômenos. Não tratamos
dessa questão aqui, pois a discussão dessa possibilidade no contexto da Refutação B é muito mais rica
e interessante.
11
Furto a expressão de Bouton (2002).
12
Uso aqui a terminologia introduzida por C.S. Peirce em seus Collected Papers, v.I, §540: “"I confine
8
25
2.2. A discussão dos termos
de satisfazermos a distinção necessária entre aquilo que é representado e aquilo que o
representa, sendo a representação considerada uma mera relação entre essas duas coisas
distintas. Pois se são a mesma coisa, então a relação de representação é ociosa e o uso
do termo completamente equivocado. Porém, se são diferentes, eu sempre posso alegar
que o testemunho da consciência vale para a confirmação da realidade do representamen
mas não para a realidade do representado.
É claro que a alegação vale igualmente para o idealista empírico. Se não é possível
concluir pela realidade do representado então por que a representação ainda pode ser
chamada de representação? E por que devemos permanecer em uma dúvida? Sejamos
idealistas dogmáticos! Tomemos a representação como uma percepção auto-suficiente,
isto é, sem necessidade de referência a outra coisa distinta dela. Tudo o que podemos
dizer é que temos percepções externas.
A esta altura está mais claro do que nunca de que tanto Kant quanto o idealista
empírico reconhecem no representado um âmbito que não pode ser suprimido sem que
se perca alguma coisa de essencial com ele. A insistência no vocábulo da representação
deve ser considerada um sintoma disso, uma parapraxia.
2.2.3
Objeto externo e objeto transcendental
É verdade que a primeira reação do próprio Kant à aporia da representação foi a de
tentar dissolvê-la. Primeiro, através da distinção entre objetos externos e objetos ou
objeto transcendental:
Ora, pode-se sem dúvida admitir que alguma coisa, que pode estar fora
de nós no sentido transcendental, seja a causa de nossas intuições externas;
mas essa alguma coisa não é o objecto que compreendemos ao falar das
representações da matéria e das coisas corporais; estas são meros fenômenos,
the word representation to the operation of a sign or its relation to the object for the interpreter of the
representation. The concrete subject that represents I call a sign or a representamen."cf. Peirce (1958)
Capítulo 2. O Quarto Paralogismo
26
isto é, simples modos de representação, que nunca se encontram senão em nós
e cuja realidade, tanto como a consciência dos meus próprios pensamentos,
repousa na consciência imediata. O objecto transcendental é-nos igualmente
desconhecido, quer se trate da intuição interna quer da externa. (A373)
Em relação a propriedades que poderiam ser consideradas independentes de sua
intuição, Kant se expressa assim nos Prolegômenos:
na minha opinião, ainda mais propriedades [comparando sua doutrina à
de Locke], sim, todas as propriedades que compõem a intuição de um corpo,
pertencem apenas ao seu fenómeno.13
O que nos deixa encafifados perguntando o que é que restaria de não-representacional
que as representações representariam.
Isto posto, a saída de Kant no Quarto Paralogismo parece ser a seguinte: a pergunta
aporética da representação é deslocada ao âmbito do objeto transcendental. Isto tem a
consequência vantajosa de legitimar o próprio idealismo transcendental, pois a suspensão
do juízo acerca das coisas-em-si e portanto do absolutamente não-representacional parece
estar de acordo com esta doutrina. Ao mesmo tempo, devemos conceder realidade
empírica às representações externas. Isto parece ser o ponto crucial da argumentação
kantiana: a de que é possível afastar o problema e permanecer em um tipo moderado de
realismo. É claro que para isso, e paradoxalmente, é necessário que todas as propriedades
da intuição de um corpo sejam meras representações. Mais uma vez, podemos nos
questionar a insistência no vocábulo da representação já que, rigorosamente falando,
não há nada sendo representado se só existem representações. O vocábulo percepção
seria mais exato e a sentença esse est percipi poderia ser usada para sumarizar a posição
kantiana do Quarto Paralogismo.
13
Ver Kant (2003b), p.59
27
2.3. Como resta o paralogismo depois da tratamento semântico kantiano
2.3
Como resta o paralogismo depois da tratamento semântico kantiano
Na posse de todos os termos relevantes reinterpretados, podemos repassar a limpo o
argumento do Paralogismo, levando em conta a modificação dos termos:
(p1)
(p2)
(p3)
(p4)
(p4’)
(c1)
(c1’)
(c2)
(c2’)
A consciência é testemunho direto da realidade de suas representações
Certas representações possuem enquanto objeto fenômenos
exteriores
A inferência de um efeito conhecido para uma causa desconhecida só pode ser problemática
A realidade de um objeto externo só pode ser atestada pela
sua existência independente da consciência
A realidade do objeto transcendental enquanto coisa-em-si é
problemática, mas este é distinto do objeto externo
Por (p1), (p2) e (p3) a inferência da realidade dos objetos
das representações exteriores é problemática
Por (p1), (p2), (p3) e (p4’) a inferência da realidade do
objeto transcendental das representações é problemática
Por (p4) e (c1) a existência de objetos externos
independentes de nossa consciência e responsáveis por nossas
representações é duvidosa
Por (p4’) e (c1’) a existência dos objetos das representações externas é tão certa quanto a própria consciência dessas
representações. Só a existência do objeto transcendental é
duvidosa
Premissa comum
Premissa comum
Princípio epistêmico
Refutação do Realismo Transcendental
Premissa Idealista Transcendental
Conclusão rejeitada
Conclusão Idealista Transcendental
Refutação do Idealismo Empírico
Conclusão final contra
Quarto Paralogismo
Tabela 2.3: O argumento do Quarto Paralogismo depois do tratamento semântico kantiano
As mudanças cruciais aconteceram em torno da premissa realista (p4) que confundia
o objeto transcendental com os objetos das representações exteriores. Na posse da
noção de objeto transcendental, Kant foi capaz de impugnar a validade desta premissa
o
Capítulo 2. O Quarto Paralogismo
28
e deslocar o mérito da questão para a existência de um tipo específico de representações,
a saber, as que se dão no espaço. Com isso, não rejeitou propriamente o princípio
epistêmico que problematiza inferências, mas apenas tornou-o irrelevante para a questão
do mundo externo tomado este enquanto mera representação. Finalmente, usou da
própria premissa idealista contra o ceticismo acerca do mundo externo, a saber, que a
existência de representações (externas) pode ser confirmada por um simples testemunho
de consciência.
Mas é esse o espírito da dúvida cética?
2.4
Da passagem do Quarto Paralogismo à Refutação B
O deslocamento da questão só é possível através da reinterpretação da mesma sob a
chave de uma mudança inesperada no conceito de existência externa. Nas palavras do
prof. Christian Klotz:
A exposição kantiana na primeira edição da Crítica está baseada na pressuposição de que nossa concepção comum de uma realidade externa refere-se
apenas a objetos enquanto existentes no espaço. Conseqüentemente, a discussão ali foi focada na questão se uma consciência empírica que representa
objetos como existentes no espaço seja uma base suficiente para estabelecer
a existência de objetos espaciais e, com isso, acertar a verdade da convicção
comum. A doutrina da Estética Transcendental mostra que esta questão tem
uma resposta positiva e, com isso, que o ceticismo está errado. Pois segue-se
desta doutrina que existência externa no sentido relevante – existência no
espaço – é nada mais que um estado de coisa fenomênico. Portanto, nós podemos legitimamente comprometer-nos à existência de objetos externos se
os conteúdos de intuições empíricas apresentam-se como sendo espaciais14 .
14
Ver Klotz (2008), p.128
29
2.4. Da passagem do Quarto Paralogismo à Refutação B
Ora, nenhum cético negou a realidade das intuições espaciais enquanto dados da
consciência. A estratégia kantiana não passa de uma trapaça. Ela pressupõe que nós, os
interlocutores, sejamos o suficientemente cegos para nos convencermos de que a questão
gira em torno da realidade de nossas intuições externas e não de seus objetos reais
correspondentes.
É claro que a questão não é absolutamente sobre isso! Quando pergunto pela realidade do objeto e da experiência externos, não me pergunta pela realidade da minha
representação, mas pela realidade de uma instância independente de minha intuição
sensível. Quando espero por um automóvel que deve me levar até a universidade, faço-o
pois sei, ou acredito saber, que o automóvel-objeto, independente do meu automóvelrepresentação, continua funcionando e é capaz de percorrer o caminho que me separa
dele. É claro que posso afirmar que, uma vez intuído, uma vez que tal automóvel dobra a
minha esquina, eu só posso conhecê-lo enquanto automóvel-representação, mas é inegável
que o meu questionamento pelo mundo externo não tem o mínimo interesse em saber
a realidade das minhas representações (pois ela é evidente, e o próprio Kant concorda
com isso) mas sim se a minha crença em um automóvel-objeto independente de mim
pode ser filosoficamente justificada!
Àqueles que tentam ridicularizar o exemplo acima como um caso da doutrina dos dois
mundos, como se houvesse então um automóvel-númeno diferente do meu automóvelfenômeno, indico que tampouco está em questão, ainda, a natureza do objeto da representação comparada com a representação enquanto objeto. Apenas, e trata-se de fazer
ver que a questão do mundo externo gira em torno dessa expectativa, está em jogo aqui a
justificação da minha crença de que, seja qual for a natureza do objeto responsável pela
minha representação, sei que ele é a causa direta e independente da minha representação.
A independência deste objeto enquanto causa é muito importante, por isso o exemplo
de um automóvel (que é um pouco ridículo, admito) que não posso ver e que ainda
assim deve chegar à minha faculdade sensível de alguma forma. Se quisermos continuar
Capítulo 2. O Quarto Paralogismo
30
falando de representações, então não falemos mais acerca das representações hic et nunc,
cuja realidade é atestada pela consciência hic et nunc, mas falemos, sim, acerca de representações possíveis e discutamos a origem dessas representações. Essa é a real questão.
É claro que, diante da ressignificação dos termos, a refutação empreendida ao longo
do Quarto Paralogismo não têm mais nada a nos dizer, pois Kant parece satisfeito em
reduzir a questão do objeto externo à da representação externa. Para tanto, acabou por
assumir-se um idealista problemático em relação à existência do objeto externo. Mas é
essa a questão que realmente nos interessa! A maneira como se expressa Kant, ainda no
Quarto Paralogismo,
Se tomarmos os objectos externos como coisas em si, é pura e simples
impossível conceber como devemos chegar ao conhecimento de sua realidade
fora de nós, apoiando-nos simplesmente na representação que está em nós.
Com efeito, ninguém pode sentir fora de si, mas somente em si mesmo e, por
conseguinte, toda a consciência de nós mesmos não nos fornece nada a não
ser apenas as nossas próprias determinações. (A378)
deve ser considerada a maneira correta de colocar o problema. É, com efeito, a
maneira como a Refutação B colocará o problema. Veremos como, partindo simplesmente
da certeza das minhas determinações internas, o raciocínio kantiano nos obrigará a
reconhecer pelo menos a necessidade de um pressuposto racional básico: o de que tais
representações dependem de um âmbito não-representacional. A suma do argumento
kantiano do Quarto Paralogismo pode ser: saindo de uma dúvida cética, permanecemos
na mesma dúvida, que Kant quer fazer parecer, através de uma cortina de fumaça
terminológica, uma dúvida completamente distinta. Dito isto, não percamos mais tempo
com tal trapaça.
Nay, let it rest where it began at first.15
15
Shakespeare, Henry VI
Capítulo 3
A Refutação do Idealismo e o
permanente da percepção
Neste capítulo farei uma rápida apresentação geral da estrutura e da estratégia do
argumento da Refutação do Idealismo na Crítica da Razão Pura. Depois, farei um breve
excurso pela Estética Transcendental a fim de mostrar algumas considerações kantianas
acerca do tempo, na medida em que estas impactam o argumento da Refutação. O
argumento então será reexposto e interpretado estabelecendo-se uma ponte entre o
conceito de um permanente como aparece na Refutação e o mesmo conceito enquanto
aparece na Primeira Analogia, que sustenta o pressuposto racional da existência de uma
substância. Finalmente, aponto as consequências do argumento para as hipóteses céticas
acerca da inexistência do mundo externo.
3.1
3.1.1
O argumento da refutação
O ante-texto do argumento
A localização da Refutação do Idealismo (doravante RdI) já nos diz muito sobre a
estratégia a ser empregada por Kant. Com efeito, minha pretensão nesta seção é discutir
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
32
duas formas de apresentar o argumento contra o idealismo, a primeira, através de uma
hermenêutica da posição do argumento no restante da obra, mostrando como o texto
ante-refutação é imprescindível para a leitura e compreensão corretas da RdI. A segunda
forma de apresentação será uma leitura clássica do argumento, tarefa já empreendida
exaustivamente, mas com a novidade de importar os resultados da hermenêutica prévia.
Discutindo o segundo postulado do pensamento empírico (“O que concorda com as
condições materiais da experiência (da sensação) é real ”), Kant defende a possibilidade
de conhecermos a existência de uma coisa antes de sua percepção, como no caso das
propriedades magnéticas da matéria. A idéia central apresentada é que podemos conhecer
a existência de coisas cuja percepção nos é vedada se seguirmos o encadeamento empírico
dos fenômenos. Assim, se uma certa experiência exige a existência de uma determinada
coisa e essa coisa pode ser concebida sem contradição, então é legítimo concluir pela
possibilidade real da coisa. Se, caso contrário, for impossível encontrar uma ligação entre
a concepção da coisa e o encadeamento de uma certa experiência, então estamos no
âmbito da mera possibilidade lógica e qualquer predicação de existência da coisa é
ilegítima.
Tendo defendido esse tipo de conclusão mediata da existência de uma coisa, Kant
observa que o idealismo apresenta uma objeção contra esse tipo de raciocínio. Como
toda generalização filosófica, sempre é útil tomar a afirmação de Kant cum grano salis. A
exceção óbvia seria o próprio idealismo transcendental, mas, como veremos, não é claro
em que medida os idealismos que Kant tem em mente impugnam esse tipo de raciocínio.
Tomada literalmente, essa afirmação só se aplicaria a um tipo de idealismo radical, que
associa a percepção de uma coisa à existência dessa coisa, ou, o que é o mesmo, iguala
coisa e percepção. Para esse tipo de idealismo, parece óbvia a impossibilidade de concluir
por existências mediatas, já que a característica distintiva da conclusão mediata por
uma existência é que a coisa cuja existência está em questão não pode ser percebida
diretamente.
33
3.1. O argumento da refutação
Tudo parece ficar mais claro quando Kant define o idealismo material1 como “a teoria
que considera a existência dos objectos fora de nós, no espaço, ou simplesmente duvidosa
e indemonstrável, ou falsa e impossível ” 2 . Agora, a questão geral da possibilidade pela
conclusão mediata da existência de coisas não perceptíveis é especificada na questão
pela conclusão mediata da existência de coisas fora de nós. Mas, se não quisermos cair
na trapaça do Quarto Paralogismo, devemos aceitar que a prova da existência de coisas
fora de nós não é simplesmente a prova de representações no espaço, mas sim a prova
da existência de coisas que são distintas de nossas representações.
O idealismo material é dividido por Kant em idealismo dogmático e idealismo problemático. Cada um desses “idealismos” é associado a um medalhão filosófico, o primeiro
à Berkeley, o segundo a Descartes. A opinião da literatura divide-se em relação à fidelidade de Kant às posições originais desses filósofos. Para evitar mal-entendidos, usarei
idealismo dogmático e idealismo problemático e não idealismo berkeleiano e idealismo
cartesiano para nomear as posições apresentadas por Kant.
A diferença entre os dois consiste em que o primeiro considera a existência de
objetos fora de nós como impossível, enquanto o segundo como indemonstrável. Isto é, o
primeiro pretende demonstrar a irrealidade do espaço e das coisas contidas nele, enquanto
o segundo limita-se a suspender o juízo diante da questão. O primeiro comporta uma
doutrina positiva acerca da inexistência do espaço, enquanto o segundo parece refletir
uma posição genuinamente cética, o que talvez tenha servido como motivo para que
alguns comentadores caracterizassem o adversário de Kant como um “cético cartesiano”.
Kant considera o idealismo dogmático como refutado em seu fundamento pela Estética Transcendental. Ele não esclarece por que o considera devidamente refutado. O que
está claro é que Kant não considera o idealista dogmático como o adversário a ser batido
na RdI. É possível até mesmo argumentar que Kant nem considera o idealismo dogmático como uma posição genuinamente filosófica! Ao descrever o idealismo problemático
1
2
Em contraposição ao seu idealismo transcendental, que ele também chama de idealismo formal.
CRP, B274, ênfases do autor
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
34
ele diz:
O idealismo problemático, que [...] alega a incapacidade de demonstrar,
por uma experiência imediata, uma existência que não seja a nossa, é racional
e conforme uma maneira de pensar rigorosamente filosófica, a saber, não
permitir um juízo decisivo ates de ter sido encontrada prova suficiente. (CRP,
B275)
Donde é possível concluir, se lermos tal sentença como um adeus definitivo ao
idealismo dogmático, que o mesmo não é racional nem está conforme “uma maneira de
pensar rigorosamente filosófica”.
Seja como for, a RdI parece ter como alvo o cético idealista problemático, cuja
caracterização mais geral seria a crença de que o acesso privilegiado que temos ao
conteúdo de nossa mente não pode ser estendido aos objetos no espaço. Para colocar em
termos russellianos, nossas representações (termo geral de Kant para conteúdo mental)
são objeto de uma acquaintance ou acesso imediato, enquanto que o acesso às coisas
reais e distintas de nossas representações só pode ser inferido problematicamente, a
partir de uma hipótese indemonstrável. A hipótese poderia ser formulada assim: “Para
toda representação existe um correlato possível na realidade, uma coisa representada”.
A hipótese pode ser atacada de muitas maneiras. Primeiramente através da apresentação de casos excepcionais, onde, havendo representação, ainda assim não podemos
encontrar nenhum objeto correspondente. É o caso de uma alucinação ou sonho. Mas esse
tipo de contra-argumento não descarta a possibilidade de que a hipótese seja verdadeira
em alguns casos (e no fundo plenamente verdadeira, pois a hipótese menciona apenas
a possibilidade de um correlato e não a sua necessidade). Quem queira defendê-la deve
apenas elencar regras que mostrem o funcionamento normal das nossas representações
e discriminem os casos excepcionais3 .
3
Como vimos, essa é uma das estratégias de Kant no Quarto Paralogismo para refutar a hipótese
cartesiana do sonho.
35
3.1. O argumento da refutação
Um ataque mais virulento é o que podemos denominar de sistemático. Já não
se trata mais de elencar exceções à hipótese mas apresentar uma contra-hipótese de
mesma extensão que concorra com a original. A questão não é de tornar a contrahipótese verdadeira, mas simplesmente mostrar que a escolha pela hipótese é arbitrária.
Assim, uma contra-hipótese sistemática seria: “A causa de nossas representações é uma
faculdade oculta, interna ao sujeito, e não coisas reais que existem fora de nós”. A
estratégia do cético (que podemos ou não chamar de cartesiano) é forçar a suspensão
do juízo através de hipóteses que concorram com a verdade.
A manobra cética consiste em mostrar que como de um efeito é sempre possível
conjecturar causas diferentes, o cético só precisa multiplicar as conjecturas até forçar o
interlocutor a aceitar que ele não tem boas razões para optar pela hipótese da existência
de coisas reais enquanto causas de nossas representações em detrimento de todas as
outras. Assim, o debate é realmente assíncrono, pois, enquanto o cético pode permitirse sempre a invenção de conjecturas mais ou menos plausíveis, a depender da sua
imaginação, aquele que quer defender a hipótese terá que esforçar-se por apresentar
argumentos de sua necessidade, ou seja, terá que defender que a hipótese, no fundo,
não pode ser aceita só enquanto hipótese, mas que é necessariamente verdadeira. O
cético entra na disputa como um espírito livre, e talvez leviano, que pode saltar de uma
afirmação a outra, sucessivamente, sem peias de que se contradigam entre si, enquanto
que o seu adversário está esmagado pela gravitas do dever de provar uma única hipótese,
na qual aposta todas as fichas.
A estratégia kantiana não é disputar princípios, o que quer dizer que ela pressupõe
o diálogo a partir de um ponto comum. Kant aceita a premissa do cético de que a
nossa experiência interna é indubitável. Já uma segunda parte da premissa, de que a
nossa experiência interna se distinguiria assim do nosso acesso às coisas, sempre dividiu
os comentadores. Alguns sustentam que a estratégia de Kant consiste justamente em
pôr em xeque a idéia, tão cara ao ceticismo “cartesiano”, de um acesso privilegiado a
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
36
nossas representações. Assim, Kant mostraria que o acesso a nossas representações é
necessariamente mediado por algum elemento não-representacional. Para outros, Kant
mostraria que nosso acesso às coisas é tão imediato quanto a nossas representações.
O primeiro caso confunde privilégio epistêmico com privilégio ontológico. O cético
não afirma com certeza absoluta que as coisas não existem. Apenas que a única coisa que
podemos indubitavelmente conhecer, de forma imediata, é a existência de representações
nossas. Ainda que tal existência dependa de elementos extra-representacionais, nosso
acesso epistêmico a essa existência pode ser feito imediatamente e é portanto muito
distinto do nosso acesso a esses elementos extra-representacionais que condicionam a
existência das representações. A prova disso é a própria necessidade de prova de uma
tal relação de dependência entre nossas representações e seus elementos.
O segundo caso rompe com a teoria representacional da percepção. Isto é, com a
própria necessidade de elementos não coisais que reproduzem os aspectos das coisas. Pois,
se nosso acesso às coisas é imediato, isto significa que não se dá através de representações,
pois uma representação é justamente a reprodução de um aspecto da coisa na mente
ou espírito. Minha opinião é que toda a teoria da percepção de Kant encaminha-se
para uma teoria representacional do conteúdo mental e que não há motivos suficientes
para acreditar em uma ruptura tardia com sua própria doutrina. O que caracteriza essa
posição não-representacional de Kant é uma interpretação da Estética Transcendental e
do Quarto Paralogismo onde o espaço é concebido não como um elemento mental, mas
como um “horizonte” onde objetos espaciais aparecem. Assim, nosso acesso ao espaço
seria imediato e nossas representações espaciais seriam na verdade “apresentações” desses
objetos no horizonte espacial4 .
O fato da teoria mental de Kant ser representacional não é nenhum ponto pacífico
entre os comentadores. Por exemplo, o prof. Werner S. Pluhar, em sua tradução da
Crítica da Razão Pura para o inglês, que reflete o estado da arte, argumenta pelo sua
4
Para uma defesa elegante deste ponto de vista, ver Caranti (2011)
37
3.1. O argumento da refutação
escolha do termo presentations para verter Vorstellungen:
A tradução tradicional de Vorstellung (igualmente para o verbo) para
‘representação’ sugere que a teoria kantiana da percepção seja representacional o que, porém, ela não é (apesar de Kant utilizar algumas vezes o
latim ‘repraesentatio’). Pois primeiramente, vorstellen, no uso kantiano do
termo que é relevante aqui, não é algo que as Vorstellungen fazem; é algo
que nós fazemos. Além disso, o uso de vorstellen nunca significa algo como
‘representa’ no sentido de ‘estar no lugar de’. Mesmo uma intuição empírica,
por exemplo, não está no lugar de um objeto da experiência (muito menos
de uma coisa-em-si), mas antes participa da experiência que esse objeto da
experiência é.5
6
Minha rejeição desses dois pontos de vista deixa ao mesmo tempo explícita minha
posição com relação ao problema. Acredito que a estratégia kantiana consista em mostrar
que a existência de toda representação está condicionada à existência de pelo menos
um elemento não-representacional. O que acredito ser fiel a própria declaração de Kant
na abertura da RdI:
A prova exigida deverá, pois, mostrar que temos também experiência e
não apenas imaginação das coisas exteriores. O que decerto só pode fazerse, demonstrando que, mesmo a nossa experiência interna, indubitável para
Descartes, so é possível mediante o pressuposto da experiência externa. (CRP,
B275, ênfases do próprio Kant)
5
The traditional rendering of Vorstellung (similarly for the verb) as ‘representation’ suggests that
Kant’s theory of perception (etc.) is representational, which, however, it is not (despite the fact that
Kant sometimes adds the Latin ‘repraesentatio’). For one thing, vorstellen, in the kantian use of the term
that is relevant here, is not something which Vorstellungen do; it is something that we do. Moreover,
vorstellen as so used never means anything like ‘represent’ in the sense of ‘stands for’. Even an empirical
intuition, e.g., does not stand for an object of experience (let alone a thing in itself), but rather enters
into the experience which that object of experience is.
6
Ver Kant (1996), p.22, nota. Contrastar as afirmações do prof. Pluhar às do próprio Kant como
citado na p.45 deste trabalho.
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
38
E aqui uma objeção pode ser levantada contra o propósito de uma RdI quando o
próprio Kant, discutindo a natureza de sua prova, afirma que o seu intuito básico é
forçar o cético (ou Descartes) a reconhecer o pressuposto de uma experiência externa.
Alguém poderia perguntar: o que de fato constitui uma experiência externa? Se tal
experiência não for constituída de nada além de representações espaciais, como quer o
Quarto Paralogismo, então a RdI falha, ainda que obrigue o cético a reconhecer uma
experiência externa, porque a única coisa que mostrou é a existência de um tipo diferente
de representação e não de coisas que seriam causas dessas representações.
Diante da ambiguidade do próprio Kant, o intérprete se vê forçado a tomar partido.
Na Introdução deste trabalho, na seção sobre ’O que significa externo e interno?’ insistimos em reconhecer na experiência externa não só um tipo diferente de representação
(a representação espacial) mas também a de uma relação constitutiva entre essas representações e coisas não-representacionais, que formariam o que chamamos de mundo
externo. Trata-se de obrigar Kant a abandonar o registro do epistemologuês que marca
o Quarto Paralogismo e, segundo alguns comentadores, mesmo a RdI, e obrigá-lo a falar
ontologuês. Como todo trabalho de tradução e transcrição, algumas nuanças da língua
original podem se perder, dando lugar a novas nuanças. Mas vejamos se não tenho razão
em insistir na mudança de registro diante da estratégia da RdI.
Já disse que a própria localização da RdI deve iluminar a forma do argumento. O
que nós vimos é que antes de introduzir o problema do idealismo, Kant estava às voltas
com um tipo de raciocínio ou inferência da existência de coisas cuja percepção nos é
vedada, seja pela constituição orgânica dos nossos sentidos ou pela limitação dos nossos
instrumentos experimentais. A forma desse tipo de raciocínio poderia ser descrita mais
ou menos assim:
39
1
2
3
4
5
3.1. O argumento da refutação
O que concorda com as condições materiais da experiência é
real
Possuímos o conceito de uma coisa C cujo acesso perceptivo
nos é vedado e portanto cuja certeza sobre a existência nos
é vedada
Possuímos o acesso a uma cadeia de experiência formada por
um número finito de percepções P1...Pn
A cadeia P1...Pn exige para a sua efetividade uma coisa C
Por 4 e 1, C é real e existe
segundo postulado do pensamento empírico
Tabela 3.1: Um raciocínio por inferência através do segundo postulado do pensamento
empírico
O meu ponto é que se minha hipótese sobre a localização da RdI estiver correta, então
o ontologuês é o único dialeto que poderemos falar a partir de agora. Pois a hipótese
implica no fato de que Kant considera o problema do idealismo como solucionável a
partir de um raciocínio desse tipo. Dada essa hipótese, o raciocínio da RdI é um caso
especial do raciocínio acima. Se a RdI é um caso especial do raciocínio acima, então C é
uma coisa cujo acesso perceptivo nos é vedado. Ergo, C não pode ser uma representação,
pois uma representação cujo acesso perceptivo nos é vedado é uma noção contraditória.
Assim, o objetivo da RdI deve ser o de provar a existência C de uma coisa não-perceptível
e não-representacional.
O idealismo problemático é justamente aquele que aponta para o fato de que a
natureza do fundamento não-perceptivo de nossas percepções pode ser objeto de uma
multiplicidade de hipóteses contra as quais não podemos levantar nenhum juízo decisivo,
restando ao filósofo racional somente a sua pirrônica suspensão. Assim, a refutação
do idealismo problemático deve encontrar esse fundamento não-perceptivo de modo a
assegurar que o mesmo seja, no mínimo, não-representacional, isto é, seja uma coisa
distinta de toda e qualquer representação, afastando as hipóteses de um fundamento
subjetivo, como a imaginação ou uma outra faculdade oculta.
Com estas considerações acima pretendo ter convencido o leitor que o ontologuês deve
ser o vocabulário correto na compreensão da RdI. Isto quanto a forma. Consideremos
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
40
agora a estratégia de Kant contra o idealismo problemático.
Allison7 , considera-a um caso de reductio ad absurdum, visão com a qual tendo a
concordar. Trata-se de mostrar ao cético como uma premissa aceita por ele obrigao a admitir a existência de uma experiência externa, ou traduzindo em ontologuês, a
pressuposição da existência de uma coisa diferente de nossas representações e responsável
pelas mesmas. O absurdo ao qual o cético é reduzido é o de sustentar um acesso
privilegiado à consciência empírica da minha existência e ao mesmo tempo negar que o
elemento condicionante dessa consciência exista. Logo, ele está assumindo a existência
de uma coisa (a auto-consciência de minha existência ou o cogito) ao mesmo tempo que
nega a sua causa ou pressuposto. Como afirma McCann (1985):
A variedade de ceticismo com a qual Kant estava mais preocupado era
o ceticismo cartesiano, que ele chama de idealismo problemático ou psicológico. Seus dois elementos principais são: (i) sabemos que existimos como
substâncias pensantes em virtude de nossa percepção de nossos estados de
consciência como estados de uma tal substância, tal percepção sendo uma
condição necessária da consciência; e (ii) nossas percepções ou experiências
sensoriais não nos fornecem, tomadas por si, um fundamento para a nossa
crença de que objetos externos existem.8
Reduzir o cético ao absurdo seria, então, mostrar que (i) deve implicar na rejeição
de (ii).
O argumento pode ser enumerado assim, levado em conta a estratégia contra o
ceticismo cartesiano:
cf. Allison (2004), p.289
The variety of skepticism with which Kant was most concerned is Cartesian skepticism, which he
calls problematic or psychological idealism. Its two main elements are these: (i) we know that we exist
as thinking substances in virtue of our awareness of our own perceptions or conscious states as states of
such a substance, such awareness being a necessary condition of consciousness; and (ii) our perceptions
or sensory experiences do not by themselves provide a basis for the belief that there are external objects.
7
8
41
3.1. O argumento da refutação
1
2
3
4
5
6
Tudo o que concorda com as condições materiais da experiência é real
Possuímos acesso privilegiado a uma percepção P (a consciência empírica da minha existência)
A percepção P depende de uma coisa C não-representacional
a qual não temos acesso privilegiado
Por 1, 2 e 3, C é real
Mas o cético idealista aceita 2 e rejeita 4
Então o ceticismo idealista é absurdo, se provarmos 3
Tabela 3.2: O argumento por inferência da Refutação B
Já se pode decifrar dessa lista que o passo 3 é o núcleo do argumento. Sem ele, não
reduzimos o cético a nada. Também podemos argumentar que, com o passo 3, a redução
do cético segue naturalmente e quase trivialmente. Ele também cumpre o papel de
rejeitar o idealismo enquanto (equivocadamente) caracterizado por Kant na introdução
da RdI:
O idealismo, porém, apresenta uma poderosa objeção contra estas regras
de comprovação mediata da existência, pelo que é este o lugar próprio para
a sua refutação (CRP, B274, ênfase de Kant)
Como vimos, só um idealismo muito radical, como aquele contido tão-somente na
regra “Esse est percipi” pode cair nessa definição negativa de idealismo. Corrigindo
Kant, diríamos: o idealismo em geral apresenta uma poderosa objeção contra um uso
específico dessas regras de comprovação mediata da existência, a saber, no que concerne
a existência de coisas fora de mim.
O argumento depende que o idealista aceite o segundo postulado do pensamento
empírico. Como esse postulado é apenas uma formalização de certas regras da experiência, como a continuidade dos fenômenos e o seu encadeamento em causa e efeito, etc.
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
42
o mesmo não pode ser aceito, pelo menos não sem qualificações, por um cético como
Hume, que não vê na cadeia de causa e efeito senão um hábito cuja conexão com o real
é duvidosa. Notemos que Kant não caracteriza o idealismo como uma doutrina que nega
o segundo postulado, mas como a doutrina que impugna o uso desse postulado para
fins de confirmação mediata de certas existências. De todas formas, se considerarmos
que a relação de causa e efeito é uma ilusão habitual do uso de nosso entendimento
para compreensão da experiência, podemos simplesmente estender esse uso habitual ao
segundo postulado. Pois a utilidade do postulado é de apenas legitimar uma relação de
causa e efeito muito particular, a saber, aquela que parte de um elemento percebido
(como efeito) para um elemento não perceptível (como causa desse efeito).
Como o passo 3 é o principal, vejamos mais pormenorizadamente no que ele implica.
Isto servirá também como uma forma de confirmar a nossa hipótese hermenêutica: se,
quando analisarmos o argumento em sua letra, não encontrarmos nenhuma referência
à estratégia sugerida, então nossa hipótese deve ser considerada falsa. Caso contrário,
podemos considerar um indício de que estamos no caminho certo.
Mostrar que uma percepção P é dependente de uma coisa não-representacional
implica: (1) analisar a estrutura específica da percepção P. (2) analisar a estrutura das
representações em geral. (3) concluir que a estrutura específica da percepção P não pode
se efetivar (isto é, ser real) sem uma certa propriedade p. (4) provar que a propriedade p
não pode compor a estrutura das representações em geral, donde a fortiori (5) segue-se
que a propriedade p é extra-representacional.
Apenas com esses passos provamos que, se existe uma percepção P dependente de
uma propriedade p, e se a propriedade p é contraditória com a estrutura das representações em geral, então a percepção P é dependente de uma propriedade p que é
extra-representacional. Mas uma importante regra do sistema kantiano é “No simples
conceito de uma coisa não se pode encontrar nenhum caráter de sua existência”, logo,
se a percepção P não existe e só pode ser hipoteticamente concebida, então não há
43
3.1. O argumento da refutação
como determinar a existência da propriedade p que a tornaria real. Só podemos dizer,
hipoteticamente: se a percepção P existisse, então a propriedade p seria real.
Acontece que Kant, astutamente, escolhe uma representação ou percepção indubitável para o lugar de P, qual seja, a do cogito empiricamente considerado (o sentido dessa
qualificação ficará mais claro depois) cuja existência é inegável, pois o ato de duvidar
dela nada mais é que uma instância desse cogito. Assim, se P tem existência indubitável
enquanto efeito de uma propriedade p, então a propriedade p tem existência indubitável
enquanto sua condição de possibilidade. O célebre comentário de Allison chama isso de
“equal-certainty principle” 9 .
A estratégia está completamente destrinchada e poderia ser assim resumida: tratase de importar para um elemento não-representacional a certeza do cogito através do
equal-certainty principle, na medida em que, pelo segundo postulado do pensamento
empírico, podemos encontrar uma causa não-perceptível e não-representacional do próprio cogito empiricamente considerado. Com isto está provada a vigência de uma coisa
não-representacional que é causa de pelo menos uma representação, com o que aparentemente temos toda a gama de elementos necessários para uma redução do idealista
problemático.
Alguém poderá objetar o meu uso de expressões negativas, como não-perceptível
ou não-representacional, ou indeterminadas, como coisa ou algo, para categorizar o fundamento que deve em última instância refutar a posição do idealismo problemático.
Acontece que a esta altura da exposição não determinamos ainda o elemento que Kant
utilizará para provar a vigência de algo não-representacional. Esse elemento está intrinsecamente ligado à noção que Kant tem do tempo e será apresentado na análise do
texto da RdI. Aqui, no ante-texto, ainda estamos lidando com esboços e traços muito
grosseiros, cuja forma final será aperfeiçoada a medida em que o texto avança (e nossa
hipótese se confirme, claro).
9
cf. Allison (2004), p.296
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
44
Ainda assim, essa objeção é a prenúncia de um problema posterior, que é o conflito da
RdI com o próprio idealismo kantiano. Como veremos, a indeterminação do fundamento
das percepções é uma posição que não pode ser abandonada sem causar traumas ao
filósofo crítico e o seu sistema. Mas deixemos essa linha de argumentação para o momento
em que o argumento completo de Kant, e não um mero esboço hipotético, estiver em
nossas mãos. Eu gostaria agora de lançar a hipótese de um outro adversário na RdI, o
próprio idealista transcendental, ou um tipo de idealista transcendental.
3.1.2
Kant contra o idealismo transcendental consequente
Durante toda a sua vida de filósofo notável, o seu sistema crítico já estabelecido, Kant
teve a preocupação em desfazer os mal-entendidos dos seus contemporâneos. Os fiéis
escudeiros do seu tempo eram pouco numerosos: podemos contar entre eles o amigo
Beck, o professor Reinhold, e o jovem e independente Maimon, o único crítico com quem
Kant estabeleceu relações de tolerância.
Os polemistas e renovadores da doutrina kantiana são muito mais numerosos. Primeiro, os que confundiram os princípios de sua filosofia com os do idealismo material
de Berkeley, como Eberhard e Garve. Depois, a condenação de Jacobi do idealismo
transcendental como um sistema auto-contraditório. Finalmente, as conclusões do que
podemos chamar de kantianos consequentes, que levaram ao radicalismo a divisão crítica entre fenômeno e noúmeno. Os dois primeiros grupos, junto com alguns filósofos
independentes, formam a parcela da filosofia alemã que tentou resistir ao avanço irrefreável da filosofia kantiana. O terceiro grupo, mais interessante, forma a primeira escola
neo-kantiana que viria a desembocar no idealismo absoluto de Schelling e Hegel10 .
O filósofo G.E. Schulze escreveu, sob o pseudônimo de Enesidemo, uma polêmica
contra a vulgarização filosófica do sistema kantiano pela pena do professor Reinhold. Na
polêmica, Schulze acusa Reinhold e, através dele, Kant, de infringir os limites da própria
10
Para as influências recíprocas, em especial entre Schulze e Fichter, ver Fincham (2000)
45
3.1. O argumento da refutação
filosofia crítica ao postular a existência de uma coisa-em-si não perceptível e que seria
causa de nossas sensações. Assim, Kant e Reinhold aplicariam a categoria de causalidade
a um númeno para sustentar a realidade ulterior de nossas representações ao mesmo
tempo em que estabeleceriam, como princípio, que as categorias do entendimento só
têm sentido quando aplicadas a fenômenos11 .
Conclusão da polêmica de Schulze: o idealista transcendental consequente é um
cético em matéria de ontologia. Ele não dispõe dos meios de prova para sustentar a
realidade ulterior de nossas percepções. Ora, o idealista transcendental consequente de
Schulze é apenas o disfarce do idealista problemático da RdI!
A reação de Kant aparece em carta ao amigo Beck, datada de 4 de dezembro 1792:
Alguém, entretanto, sob o pseudônimo de Enesidemo, foi o autor de uma
posição cética ainda mais radical, qual seja: a de que não podemos realmente
saber se qualquer coisa (como objeto) corresponde a nossas representações;
o que pode ser lido como: não sabemos se uma representação é uma representação (algo que representa alguma coisa). Pois uma representação
significa uma determinação em nós que relacionamos a alguma outra coisa,
a representação tomando o lugar, por assim dizer, da coisa representada.12
A objeção de Kant parece ser meramente terminológica: como o conceito de representação implica em algo sendo representado, eliminar o pressuposto desse algo é minar
o próprio conceito de representação. A objeção falha em capturar o espírito do ceticismo
de Schulze que é o de mostrar como os próprios preceitos da filosofia crítica nos obrigam
a suspender o juízo em relação à existência e causalidade daquilo que produziria em nós
a sensação.
Schulze (1911)
Unter dem angenommenen Nahmen Änesidemus aber hat jemand einen noch weiter gehenden
Scepticism vorgetragen: nämlich daß wir gar nicht wissen können ob überhaupt unserer Vorstellung
irgend etwas Anderes (als Object) correspondire, welches etwa so viel sagen möchte, als: Ob eine
Vorstellung wohl Vorstellung sey (Etwas vorstelle). Denn Vorstellung bedeutet eine Bestimmung in uns,
die wir auf etwas Anderes beziehen (dessen Stelle sie gleichsam in uns vertritt). (AA XI: 395)
11
12
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
46
Além disso, a ”objeção” de Kant supõe que para toda representação há algo (real)
sendo representado. O problema, aqui, é saltar de um dado psicológico a uma conclusão
ontológica: ao fato de que o sujeito de Kant sente-se naturalmente inclinado a relacionar
suas representações com objetos correspondentes seguir-se-ia que é essencial a toda
representação a correspondência com algo de real, o que é um absurdo patente se
observarmos os inúmeros casos de sonho, alucinações ou mesmo de sentimentos, onde a
correspondência com algo externo só pode ser muito vagamente definida.
Independente de concordarmos ou não com Schulze, a verdade é que o próprio Kant
viu-se às voltas com a questão de um correlato real de nossas representações até o fim
de sua vida, como o atestam as diversas reflexões reunidas sob o título de ”Reflexionen
zum Idealismus” (1788 - 1793).
Tudo isto significa que a nossa leitura da RdI pode dar conta da posição de Schulze?
Em certo sentido, sim, pois estando a RdI correta, o ceticismo confortável de nosso
Enesidemo germânico não pode ser mantido. Ao mesmo tempo, veremos que, em virtude
da natureza da questão (já introduzida no Capítulo 1) a solução de Kant só pode ser
considerada incompleta e que o seu aperfeiçoamento conforme as expectativas de uma
resposta à questão do mundo externo só pode passar por uma inflexão inconsequente
do idealismo transcendental.
O objetivo desta seção foi indicar como o problema do mundo externo não é apenas
um problema erístico entre Kant e outros filósofos mas que ele também pode ser visualizado, se Schulze estiver correto, como uma aporia interna ao idealismo transcendental
e que ou precisaria ser resolvida ou nos levaria ao ceticismo pirrônico. O problema é
real em Kant (e atesta uma inconsequência, segundo Schulze) na medida em que, espalhadas pela sua filosofia teórica, o jargão da afecção sempre reaparece. Isto é, a idéia
problemática de uma coisa responsável causalmente pelas nossas representações.
A guisa de exemplo, o objeto da Estética Transcendental, a sensibilidade, é definida
por Kant como “a capacidade de receber representações graças à maneira como somos
47
3.1. O argumento da refutação
afectados pelos objectos (CRP, B34)”. Isto é, a própria Estética não tem sentido sem
a noção de uma afecção de nosso espírito. Não só Kant introduz aqui a terminologia
da afecção mas também, em corajoso ontologuês, afirma que tal afecção é efeito da
existência de objetos.
Passemos, finalmente, ao argumento em si e vejamos se não podemos retirar dele
uma nova compreensão, tendo em vista os pressupostos que estabelecemos.
3.1.3
Da determinação empírica de um ‘Eu Penso’
O teorema a ser provado é relatado por Kant em um misto de epistemologuês e ontologuês, assim: “A simples consciência, mas empiricamente determinada, da minha própria
existência, prova a existência dos objectos no espaço fora de mim (CRP, B276)”. Quando
Kant diz objetos, nossa esperança é que ele esteja a trabalhar numa prova da existência
de coisas, mas quando ele adiciona a qualificação “no espaço fora de mim” então mais
uma vez estamos diante da ambiguidade categorial das representações externas. De
todas formas, se o nosso esquema anterior está correto, não faz sentido que Kant esteja
a trabalhar apenas em busca da prova da possibilidade de representações espaciais.
Conforme o esquema estabelecido anteriormente, “a simples consciência, mas empiricamente determinada, da minha própria existência” é a percepção P. E a “existência
dos objectos no espaço, fora de mim” é a coisa C ou propriedade p 13 cuja existência
devemos provar indiretamente.
Oras, a consciência da minha própria existência nada mais é que a afirmação de
que eu penso e que, pensando, sou consciente do próprio ato de pensar alguma coisa.
Pois mesmo que a consciência de minha existência fosse a consciência apenas de uma
intuição minha, isto é, de um produto da minha sensibilidade, ainda assim eu só poderia
me tornar consciente dela na medida em que a pensasse. A propriocepção não é em si
nenhuma consciência, mas apenas o sentimento vago de um existir. Como o pensamento
13
O motivo de não sabermos exatamente se o que está sendo provado é a existência de uma coisa ou
de uma propriedade ficará claro nas seções seguintes.
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
48
é o caráter essencial de toda consciência, ter consciência de sua própria existência implica
em pensar-se enquanto pensante, ainda que o aí pensado seja um produto sensível e não
do entendimento.
Mas o que significa uma consciência empiricamente determinada e por que Kant
adiciona ao cogito da RdI a condição de ser empiricamente determinado? O que está
em jogo na determinação empírica do cogito é a relação do mesmo com uma intuição. A
princípio, nada no conceito do ”Eu penso” estabelece de forma necessária essa relação. O
cogito pode ser apenas uma representação lógica do ato de pensar. O ’Eu’ do ”Eu penso”
lógico seria apenas uma representação da identidade abstrata da função do pensamento.
O ’penso’ seria apenas a indicação dessa função, não importando quando ela foi de fato
estabelecida.
A expressão ”empiricamente determinado” poderia ser compreendida de muitas
formas, mas Kant parece ter em mente um tipo de determinação muito específica,
quando diz que “Tenho consciência da minha existência como determinada no tempo.
(CRP, B276)”. A determinação empírica do cogito preencheria então o ’Eu’ lógico com
um ’Eu’ determinado no tempo, assim como o ato de pensar seria também temporalizado
como um ato de pensar em determinado instante. Ao ’Eu’ empiricamente determinado
corresponderia assim uma existência em um instante do tempo, existência definível
apenas pela função de pensar nesse instante.
Pelo fato da prova de Kant exigir uma determinação empírica do ’Eu penso’ e pelo
fato dessa determinação só poder ser concebida como uma temporalização, é seguro
concluir que o argumento da RdI depende de alguns dos resultados prévios da Estética.
Isto é, é necessário ter em mente uma sequência de fatos: a de que o acesso ao empírico
é singular, a de que as únicas representações singulares são intuições e, finalmente, a de
que a forma que preside toda intuição é a forma temporal.
Esse conjunto de proposições envolve os elementos da singularidade, da intuição e,
finalmente, do tempo. Como a compreensão kantiana desses elementos está embutida no
49
3.2. Excurso: os elementos da Estética Transcendental
argumento da RdI, uma interpretação da origem dessas compreensões se faz necessária.
Todos eles estão convenientemente ordenados na Estética Transcendental, então é para
lá que devemos nos dirigir agora. Será um rápido excurso.
3.2
Excurso: os elementos da Estética Transcendental
Boa parte do poder argumentativo da Estética Transcendental (ET) reside na distinção
tractaciana entre mostrar e demonstrar. Quer dizer que a cogência dos argumentos reside
no fato de participarmos de alguma maneira da natureza dos elementos descritos. É
impossível demonstrar, com rigor, que um indivíduo possui um acesso à realidade de tal
e tal maneira, mas é possível mostrar ou expor a forma de determinado acesso e esperar
que tal pessoa possa concluir que participa dessa forma. O termo participar pode assim
ser compreendido platonicamente, como uma instanciação da forma apresentada. O
método expositivo deve mostrar que um indivíduo ou conjunto de indivíduos instancia
uma forma que é construída no pensamento, mas dado o caráter privado (de direito) da
maneira como um indivíduo acessa a realidade, é impossível demonstrar com rigor lógico
uma determinada instanciação. Ainda que apontemos para as características fisiológicas
como um indício de que tal indivíduo ou grupo de indivíduos possua um determinado
tipo de acesso à realidade, a impossibilidade de demonstração rigorosa ainda persiste,
pois as qualidades da experiência só podem ser realmente comprovadas por aquele que
as experimenta.
Como veremos, um dos objetivos da ET é estabelecer o espaço e o tempo como
formas da intuição humana. Igualmente, veremos que a natureza do espaço e do tempo
enquanto intuições é derivada logicamente da impossibilidade de conceitos discursivos
darem conta do que se apresenta a nós nessa intuição. Existem assim três etapas da
método expositivo da Estética: a primeira é expor a natureza dos conceitos enquanto
uma forma de representação discursiva. Não há prova rigorosa disso, mas apenas apelo
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
50
à instanciação individual a partir de exemplos. A segunda é, partindo da natureza dos
conceitos, mostrar como, por eliminação, as formas do espaço e do tempo residem sobre
intuições puras, cuja característica comum é o fato de se apresentarem a nós como
representações imediatas de singulares ilimitados, o que seria impossível dada apenas
uma forma representacional conceitual-discursiva. A terceira etapa é a definição do
escopo da Estética para toda forma de sensibilidade humana, isto é, a hipótese racional
de que todos os indivíduos de uma determinada espécie participam dessa forma.
Assim, a rigor, a prova da instanciação das formas kantianas da sensibilidade inexiste.
Porém, uma vez que aquiescemos ao fato da instanciação, a rigorosa necessidade de sua
aplicação em todo acesso ao real pode ser vindicada. Isto é, a prova da sua transcendentalidade persiste, ainda que a prova da sua instanciação particular seja impossível. O
método expositivo de Kant é sumarizado por ele mesmo:
Entendo, porém, por exposição (expositio) a apresentação clara (embora
não pormenorizada) do que pertence a um conceito; a exposição é metafísica
quando contém o que representa o conceito enquanto dado a priori. (CRP,
B38, ênfases de Kant)
A princípio, poderíamos substituir o termo ’exposição’ pelo termo ’definição’, sem
prejuízo de sentido. Mas o método expositivo é a conjunção de dois tipos de exposição,
a metafísica e a transcendental:
Entendo por exposição transcendental a explicação de um conceito considerado como um princípio, a partir do qual se pode entender a possibilidade
de outras conhecimentos sintéticos a priori. Para este desígnio requere-se: 1.
- que do conceito dado decorram realmente conhecimentos dessa natureza. 2.
- que esses conhecimentos apenas sejam possíveis pressupondo-se um dado
modo da explicação desse conceito (CRP, B40, ênfases de Kant)
51
3.2. Excurso: os elementos da Estética Transcendental
Consideremos a conjunção dos dois tipos de exposição. Não se trata apenas de dois
tipos de definições diferentes, a primeira de um determinado conceito enquanto tomado
independente da sensibilidade, a segunda tomando esse mesmo conceito em relação à
possibilidade de um conhecimento sintético a priori? No entanto, não podemos descartar
a relação desses conceitos com o objeto de estudo, isto é, com a sensibilidade humana.
A ET é a prova de um hilemorfismo necessário entre duas formas e a multiplicidade da
matéria. A prova só pode começar na medida em que os conceitos tornam-se formas
que determinam o modo como objetos nos são dados.
A exposição metafísica dos conceitos do espaço e do tempo mostra como esses
conceitos são derivados de intuições mais originárias, ou o que é o mesmo, pretende
reduzir os conceitos de espaço e tempo a intuições, pela equação intuição = singular.
Com relação ao espaço, a exposição prossegue da seguinte maneira. O primeiro passo
é mostrar o espaço enquanto uma unidade que só pode ser pensada por limitações. O
espírito do texto de Kant parece ser o de mostrar que todo conceito de espaço pressupõe
uma limitação:
(...) só podemos ter a representação de um espaço único e, quando falamos
de vários espaços, referimo-nos a partes de um só e mesmo espaço. Estas
partes não podem anteceder esse espaço único, que tudo abrange, como se
fossem seus elementos constituintes (que permitissem a sua composição);
pelo contrário, só podem ser pensados nele. [O espaço] é essencialmente uno;
a diversidade que nele se encontra e, por conseguinte, também o conceito
universal de espaço em geral assenta em limitações. De onde se conclui
que, em relação ao espaço, o fundamento de todos os seus conceitos é uma
intuição a priori (que não é empírica). (CRP, B39 - 40, ênfase de Kant)
O que poderia ser mostrado de outra forma: tomemos um conceito de espaço de
magnitude n, sempre será possível pensar um espaço que contenha n + 1 e assim
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
52
infinitamente. De onde concluímos que todo conceito de espaço é a limitação de uma
unidade. O que foi mostrado é como dado um conceito de espaço, o próprio conceito
nos fornece a regra de construção de um conceito maior, tornando, por conseguinte,
patente a sua limitação. Ainda, como é possível, partindo de um conceito de espaço de
magnitude n, chegar a um conceito de espaço de qualquer magnitude, concluímos que
todo conceito de espaço é o limite de uma unidade maior (infinita), mas ainda não foi
possível mostrar como essa unidade não pode ser pensada em um conceito infinito:
O espaço é representado como um grandeza infinita dada. Ora, não
há dúvida de que pensamos necessariamente qualquer conceito como uma
representação contida numa multidão infinita de representações diferentes
possíveis (como sua característica comum), por conseguinte, subsumindo-as;
porém, nenhum conceito, enquanto tal, pode ser pensado como se encerrasse
em si uma infinidade de representações. Todavia é assim que o espaço é
pensado (pois todas as partes do espaço existem simultaneamente no espaço
infinito). Portanto, a representação originária de espaço é intuição a priori
e não conceito. (CRP, B40, ênfases de Kant)
O raciocínio é nebuloso, mas talvez possa se tornar mais claro se tivermos em
mente a distinção entre intensão e extensão. Kant parece querer dizer que todo conceito
discursivo pode ser considerado extensionalmente infinito, isto é, como uma propriedade
que subsume uma série possivelmente infinita de indivíduos, enquanto parte desses.
O espaço, ao contrário, se quer ser um conceito singular, deveria ser intensionalmente
infinito, de modo a denotar um único indivíduo, a totalidade do espaço. Esta parece ser
a distinção kantiana entre “subsumir uma multidão infinita de representações possíveis”
e “encerrar em si uma infinidade de representações”. A primeira função é apenas uma
explicitação da propriedade de um conceito como predicado possível de uma série de
indivíduos, enquanto a segunda função equivaleria à possibilidade do intelecto humano
53
3.2. Excurso: os elementos da Estética Transcendental
acessar diretamente um conceito com infinitas características.
Com o tempo, o procedimento é análogo. Primeiro, é introduzida a idéia da forma
temporal como uma unidade (um singular):
O tempo não é um conceito discursivo (...). Tempos diferentes são unicamente partes de um mesmo tempo. Ora, a representação que só pode dar-se
através de um único objeto é uma intuição. (CRP, B47)
O único tipo de representação apta a capturar a natureza do tempo é a intuição, pois
ela é a única capaz de nos colocar em contato direto com singulares, logo o tempo é uma
intuição. Aqui está em jogo a noção de que todo conceito é uma nota característica de
muitos indivíduos possíveis. Não existem, a rigor, conceitos singulares, mas apenas o uso
singular de conceitos. Isto é: posso utilizar o conceito de uma propriedade para identificar
um único indivíduo no mundo, mas nunca poderia negar que se, por hipótese, surgisse
outro indivíduo satisfazendo essa propriedade, o meu conceito da propriedade, antes
individual, agora serve como fundamento de uma comunidade entre os dois indivíduos.
Todo conceito é de jure uma característica comum14 .
O fundamento da unidade do tempo é o mesmo que o do espaço. Sempre é possível
pensar uma magnitude de tempo maior que n, n+1, e assim infinitamente. Ademais,
como as partes do tempo são comensuráveis, concluímos que elas fazem parte de um
único indivíduo infinito. Como só a intuição nos coloca em contato com indivíduos, dada
a natureza dos conceitos, o tempo é uma intuição:
A infinitude do tempo nada mais significa que qualquer grandeza determinada de tempo é somente possível por limitações de um tempo único,
que lhe serve de fundamento. Portanto, a representação originária do tempo
terá de ser dada como ilimitada. Sempre que, porém, as próprias partes e
toda a magnitude de um objecto só possam representar-se de uma maneira
14
Ver a esse respeito Kant (2003a), A140
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
54
determinada por limitação, a sua representação integral não tem que ser
dada por conceitos, (pois estes só contêm representações parciais); é preciso
que haja uma intuição imediata que lhes sirva de fundamento. (CRP, B48,
ênfase minha)
O que precede é importante para estabelecermos o fato de que o acesso sensível,
imediato e singular ao empírico como forma humana da sensibilidade é uma hipótese
racional primitiva, indemonstrável e apenas convincente pelo método expositivo em geral.
Assim, que a empiria seja acessível pela sensibilidade e que os objetos da sensibilidade
sejam singulares são fatos que só podem ser mostrados. Mais: que a intuição seja a
maneira de capturar singulares é também um fato que só pode ser mostrado mas que,
uma vez aceito, nos leva a concluir que espaço e tempo são originariamente intuições.
Um último elemento resta a ser analisado: o caso da infinitude das formas do espaço
e do tempo. Caberia perguntar como é possível que seres sensíveis e finitos tenham
acesso a formas infinitas. Mas a conclusão com que nos deixa a ET é mais estarrecedora.
A infinitude dessas formas só é acessível sensivelmente, pois todos os conceitos de espaço
e tempo implicam a limitação de uma forma única e maior. É claro que isso não pode
significar que entramos em contato sensível direto com a totalidade infinita do espaço e
do tempo, pois isso não se verifica. Pelo contrário, nossa intuição só entra em contato
com porções individuadas de espaço e instantes temporais, mas o que é importante é que
tais indivíduos possam ser considerados como partes de um todo ilimitado. O raciocínio
de Kant só pode funcionar por exclusão: existem dois tipos de representação, intuições
e conceitos. Como conceitos são inapropriados para representar a totalidade do tempo
e do espaço, essas representações só podem ser intuições.
Concentremo-nos agora em explicar por que a determinação empírica do cogito passa
necessariamente por uma temporalização. Para explicar isso basta dizer que o tempo é
a forma do sentido interno, isto é, a maneira como intuímos as modificações de nossa
própria mente. Como toda representação é uma modificação da nossa mente, toda
55
3.3. Retorno ao argumento: a questão do permanente
representação está determinada no tempo, mesmo as nossas representações espaciais.
Ora, o cogito é uma dessas representações, ou “a representação de que uma representação
está em mim” 15 . Logo, ele também está sob as regras de funcionamento da forma
temporal, o que será vital para o funcionamento da RdI.
Com isto, já apresentei todos os elementos necessários da ET para a compreensão
da minha interpretação da RdI. Resta ainda falar das características temporais que
presidem a representação do cogito (e, na verdade, toda representação), mas será mais
conveniente expô-las à medida que apareçam no texto do argumento.
3.3
3.3.1
Retorno ao argumento: a questão do permanente
O permanente, enquanto aparece no texto do argumento
Uma rápida recapitulação: vimos que o ponto principal do argumento de Kant consiste
em provar que uma percepção P depende de uma coisa não-representacional. Provado
esse ponto, podemos estabelecer, pelo principle of equal certainty, que a afirmação de
realidade acerca de uma coisa não-representacional é tão cogente quanto a da percepção
P.
O primeiro passo para provar o ponto principal do argumento é estabelecer condições
gerais para todas as representações. Como as representações são muito variadas, cada
uma delas correspondendo a um indivíduo ou a um tipo de indivíduos, quer sejam
intuições, quer conceitos, a única maneira de estabelecer uma condição geral é olhar
para a sua forma. Ora, a forma de toda representação é o tempo, na medida em que todas
ocupam o sentido interno, logo estabelecer uma condição geral para as representações é
estabelecer condições para a forma temporal.
Já estabelecemos que a consciência empiricamente determinada de minha existência,
o meu cogito, está determinada no tempo, pois toda consciência é uma representação e
15
Kant (2003a), A41
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
56
toda representação está ligada à forma temporal. Kant nos diz, entretanto, que “toda
determinação no tempo pressupõe algo de permanente na percepção” (CRP, B276). Ora,
a consciência empírica da minha existência é uma forma de determinação no tempo,
logo, ela pressupõe um permanente na percepção.
Os primeiros passos da estratégia de cerco ao cético começam a ser dados, pois
já estabelecemos uma condição geral para todas as representações (através de uma
condição geral para as determinações temporais). O problema agora é provar que toda
determinação temporal depende realmente de um permanente, não apenas afirmá-lo,
como o faz Kant – e aqui deixo a minha indignação com a tarefa ingrata de interpretar
uma refutação cujo argumento central foi omitido, ou, para ser mais caridoso, elipsado
pelo autor. Talvez esta dissertação nem fosse necessária se Kant tivesse se preocupado
em estabelecer de forma mais clara o seu argumento. A esta altura o intérprete precisa
filosofar por conta própria, buscar recursos em outros textos, para finalizar um argumento
que se dispõe como auto-suficiente. Assim, permitam-me deixar claro que o argumento
não é auto-suficiente e que dado o escasso esforço do autor em tornar-se claro, tomo a
liberdade de ser claríssimo nas minhas interpretações que venham a ser deturpantes, pois
não é possível avançar aqui sem um mínimo de ousadia. Com isso, espero poder contar
com a caridade interpretativa dos kantianos mais rigorosos, principalmente daqueles
fixados obsessivamente na letra do texto.
3.3.2
Definição do que seja um permanente
Kant não estabelece uma definição precisa do que seja algo permanente, mas podemos
antecipar com segurança, a partir do sentido usual da palavra permanente, que a sua
definição filosófica deve ter alguma relação com o tempo. Aqui, farei recurso à Primeira
Analogia, onde o filósofo estabelece o princípio de permanência da substância. Não é
possível ter certeza que o permanente aqui exposto seja o mesmo permanente que está
em questão na RdI, mas espero que as minhas conexões pareçam naturais o suficiente
57
3.3. Retorno ao argumento: a questão do permanente
para que sejam convincentes.
Agora, o que podemos mostrar 16 da forma do tempo em geral pode ser expresso no
seguinte:
• O tempo forma uma série
• O tempo é unidimensional
• O tempo é unidirecional
O tempo forma uma série unidimensional na medida em que todos os instantes
do tempo são sucessores de outros instantes e sucedidos por outros ainda. Conforme
a posição dos fenômenos na série do tempo, podemos estabelecer duas relações: (a)
se dois fenômenos ocupam um mesmo lugar da série temporal, então estes fenômenos
são simultâneos, (b) se dois fenômenos ocupam posições diferentes na série temporal,
então um deles é sucedido pelo outro. O tempo é unidirecional na medida em que corre
somente em uma direção. Um momento que sucede a outro não pode vir a ser o seu
antecessor ao longo da série.
A capacidade de um fenômeno em ocupar um intervalo da série temporal é a sua
duração.
Agora, uma permanência pode ser: (a) uma duração determinada ou (b) uma duração
coextensiva à totalidade da série temporal (a eternidade). Sobre a sua compreensão de
duração, afirma o filósofo:
Só mediante o permanente adquire a existência, nas diferentes partes
sucessivas da série do tempo, uma quantidade a que se dá o nome de duração. Porque na simples sucessão, a existência está sempre desaparecendo e
recomeçando e não possui nunca a mínima quantidade. (CRP, B226, ênfases
de Kant)
Aqui convém levar em consideração o sentido de mostrar que estabeleci no meu excurso pela Estética
Transcendental. O leitor é convidado a comparar a forma do que é apresentado com a sua apreensão
individual e usual das coisas.
16
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
58
Interpreto a passagem acima como querendo dizer o seguinte: só a partir de um
permanente é possível reconhecer uma existência, pois, caso não houvesse algo que perdurasse, nada poderia reconhecidamente existir. Para que algo posso reconhecidamente
percorrer o caminho da existência à não-existência ou vice-versa, isto é, durar, este algo
deve ser a determinação de alguma coisa que persiste através dessa duração determinada. Assim, para toda duração determinada, existe um permanente que nos possibilita
percebê-la, logo, o permanente é ele mesmo uma duração coextensiva à totalidade da
série temporal, o que significa dizer que é algo eterno e imutável.
3.3.3
Do permanente enquanto condição das representações em geral
Agora que definimos o permanente como uma duração coextensiva à série temporal, podemos argumentar em relação ao ponto central da Refutação. Aqui importa afastar uma
objeção importante. É a de que o permanente é o que condiciona a percepção de durações, mas, na medida em que negamos a existência de todo tipo de duração, poderíamos
negar a necessidade de um permanente. O que está em jogo é uma concepção de existência ínfima cuja identidade só poderia ser estabelecida pela imaginação. Assim uma série
(a) que representasse a duração de uma existência em um intervalo de tempo seria assim:
(a) (𝑡1 , 𝑃 ), (𝑡2 , 𝑃 ), (𝑡3 , 𝑃 )...(𝑡𝑛 , 𝑃 )
A série (a) estabeleceria a identidade de P como uma única existência durante todo
o intervalo de sua duração.
Pelo contrário, uma série (b) que representasse existências ínfimas poderia ser descrita assim:
′
′′
(b) (𝑡1 , 𝑃 ), (𝑡2 , 𝑃 ), (𝑡3 , 𝑃 )...(𝑡𝑛 , 𝑃𝑛′ )
59
3.3. Retorno ao argumento: a questão do permanente
Onde a identidade da coisa P é apenas um efeito da imaginação e, na realidade, a
existência cessa e recomeça a cada instante na série temporal.
Ora, não importa qual série seja correta, se (a) ou (b), o que importa é que mesmo
a ínfima existência só pode ser concebida se pressupomos um permanente onde sua
duração (ínfima) seja determinada. Não discutimos aqui a identidade da existência de
P, mas apenas a sua magnitude. Se P deve ter uma magnitude qualquer, mesmo que
seja arbitrariamente pequena, então um permanente deve ser pressuposto.
Assim que isso fica estabelecido, é claro que as relações de sucessão e simultaneidade
também são dependentes do permanente, pois elas não são mais que modos da duração.
A sucessão é o simples reconhecimento de que uma duração terminou e foi substituída
por outra de identidade diferente:
(c) (𝑡1 , 𝑃 ), (𝑡2 , 𝑄)...
E a simultaneidade nada mais é que a concorrência de duas existências numericamente distintas durante o mesmo intervalo temporal:
(d) (𝑡1 , 𝑃, 𝑄), (𝑡2 , 𝑃, 𝑄), (𝑡3 , 𝑃, 𝑄)...(𝑡𝑛 , 𝑃, 𝑄)
Dado que a forma do tempo preside toda representação e toda representação só
participa da forma do tempo na medida em que contém pelo menos a propriedade
da duração, sem contar as relações de simultaneidade e sucessão que estabelece com
representações que também duram, e como o permanente é condição dessa propriedade de
durar, que por sua vez condiciona a capacidade dessas representações de relacionaramse entre si como sucessivas ou simultâneas, o permanente é assim condição de toda
representação em geral.
Esse é o esquema e o funcionamento geral do argumento. Vimos que sua conclusão
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
60
nos obriga a reconhecer a pressuposição de um permanente que sirva de fundamento
à propriedade que toda representação tem de durar. Agora resta-nos saber os efeitos
dessa conclusão sobre o nosso adversário, o idealista problemático.
3.3.4
Uma possível objeção ao argumento do permanente
Reservarei agora algumas linhas com o objetivo de comentar uma possível interpretação
da Primeira Analogia e da concepção de um permanente que em si mesmas serviriam
como uma objeção a toda minha interpretação acerca da RdI.
Ela consiste em mostrar como mesmo que a Primeira Analogia seja capaz de sustentar
a necessidade de um pressuposto racional acerca da idéia da substância, ela é incapaz
de mostrar a vigência de um permanente absoluto, isto é, de um ponto arquimediano17
sobre o qual sustenta-se toda a possibilidade de atividade representacional do sujeito.
Há pelo menos duas razões para levarmos a sério essa objeção. A primeira delas
está na própria letra do texto de Kant. Afinal, a substância da Primeira Analogia é
a “substantia phaenomenon” e não uma substância completamente independente de
nossas representações. O que se exige para uma RdI, no entanto, é justamente que
tal substância ou propriedade de permanência seja algo de absolutamente distante da
capacidade representacional do sujeito, que, enfim, ela não possa ser reduzida a uma
representação nem a uma relação entre representações.
Entretanto é esse justamente que parece ser o caso quando interpretamos o esquema
da substância de maneira mais econômica. Ao invés de pressupor um ponto permanente
absoluto de onde é possível determinar a possibilidade de uma duração e com ela todas as
relações temporais entre os fenômenos, eu poderia simplesmente reconhecer no esquema
da substância uma mera relação entre dois fenômenos, nomeadamente entre aquele que
é tomado como o substancial e aquele que é tomado como sua modificação no tempo.
Assim, o ponto de vista privilegiado de onde reconheço a existência de durações não
17
Devo esta denominação, assim como a idéia geral desta objeção, ao prof. Guido Imaguire
61
3.3. Retorno ao argumento: a questão do permanente
seria o de um permanente parmenídico, uno, imutável e eterno, mas apenas o de um
outro fenômeno particular, tomado, de maneira relativa, naquele preciso instante, como
substância.
A série temporal na qual reconheço todas as modificações não dependeria assim
de um permanente absoluto, mas seria o efeito de uma sobreposição infinita de várias
durações distintas, algumas tomadas, relativamente, como substâncias, outras como
modificações das primeiras. O mesmo fenômeno poderia ocupar as duas posições, a
depender do ponto de vista.
Esta é reconhecidamente uma interpretação muito mais apta da Primeira Analogia, dado que, primeiramente, ela só utiliza noções já introduzidas anteriormente pelo
sistema, ou seja, a de simples relações entre fenômenos, sem pressupor alguma coisa
completamente estranha ao já estabelecido. Depois, e segue-se isto do precedente, é
uma interpretação muito mais confortável dentro do próprio sistema kantiano, já que
eu não precisaria me preocupar em tentar estabelecer uma exceção ao sistema crítico,
isto é, eu não teria a ingrata tarefa de mostrar como seria possível permanecer idealista transcendental ao mesmo tempo em que comprometido com a idéia da existência
de um permanente absoluto e absolutamente extra-representacional, quer dizer, nãofenomênico.
Infelizmente, não podemos acatar tal interpretação se a Primeira Analogia deve
servir como matriz argumentativa da RdI. Assim, existem três possibilidades: ou a RdI
independe completamente da Primeira Analogia e nossa hipótese interpretativa, de saída,
estava equivocada, ou a objeção não tem cabimento, podendo ser refutada, ou, ainda, a
RdI depende dos resultados da Primeira Analogia, como quer nossa hipótese, mas ela
simplesmente falha em tentar provar a vigência de um absoluto extra-representacional,
pois a Primeira Analogia não serve para isso.
A primeira possibilidade pode ser afastada apelando ao que precede. Creio ter
mostrado razões suficientes para considerar semelhanças de família entre o argumento da
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
62
RdI e a Primeira Analogia especificamente no que concerne à questão de um permanente.
Mas, se isso não basta para convencer o leitor, podemos considerar uma passagem
interessante da RdI tendo em mente a objeção apresentada acima.
É a célebre passagem acoplada de última hora à RdI, quando da redação do Segundo
Prefácio da CRP:
Ora o que permanece não pode ser uma intuição em mim, pois os fundamentos de determinação da minha existência, que se podem encontrar
em mim, são representações e, como tais, necessitam de algo permanente
distinto delas e em relação ao qual possa ser determinada a sua alteração
e, consequentemente, a minha existência no tempo em que elas se alteram.
(CRP. B XXXIX - XL, nota)
Podemos interpretar tal passagem como um esforço de afastar a objeção de que o
permanente da representação seja, em última instância, um permanente relativo, isto
é, um permanente fenomênico, uma outra representação tomada como fundamento da
determinação de minha duração no tempo.
Logo abaixo, Kant nos adverte para não confundirmos o permanente da representação
com a representação do permanente:
(...) a representação de algo permanente na existência não é idêntica à
representação permanente, porque esta pode ser muito variável e mutável
[leia-se, relativa], como todas as nossas representações, mesmo as representações da matéria, e contudo refere-se a algo de permanente, que tem de ser
uma coisa distinta de todas as minhas representações e exterior a mim (...)
(CRP, B XLI, nota, ênfases de Kant)
O que evidencia que ele tinha em conta a distinção central da objeção, qual seja:
a de um permanente relativo e em última instância representacional (a representação
63
3.3. Retorno ao argumento: a questão do permanente
do permanente) e a do permanente absoluto, condição última e necessária da minha
determinação no tempo (e no fundo de toda determinação no tempo), o Permanente da
representação.
E, para não dar lugar a dúvidas, na mesma nota Kant diz:
Quanto ao como [o permanente é a condição de determinação da minha
existência no tempo], também não podemos explicar neste lugar como pensamos em geral o que subsiste no tempo e cuja simultaneidade com o variável
produz o conceito de mudança. (CRP, B XLI, nota)
Ora, o local onde Kant explica o seu modo de pensar “em geral o que subsiste no
tempo e cuja simultaneidade com o variável produz o conceito de mudança” é justamente
a Primeira Analogia. Espero que isso seja o suficiente para aplacar os ainda céticos acerca
da relação entre a Primeira Analogia e a RdI.
Agora, a objeção persiste. Se a RdI realmente recapitula o que foi provado na
Primeira Analogia, é necessário mostrar como o argumento nos levaria a assumir a
existência de um permanente absoluto ou, nas palavras de Kant, do permanente da
representação em contraposição à mera representação do permanente.
A sugestão de Kant parece ser a de uma iteração infinita do exercício de busca por um
permanente. Assim, se o que encontro como persistindo no tempo na determinação de
uma duração é uma mera representação, devo buscar o fundamento dessa determinação
em outro lugar, pois eu teria razões para exigir dessa representação que me serve
como um permanente relativo um outro fundamento de determinação. Se este outro
fundamento de determinação for ainda outra representação, devo repetir o processo,
até encontrar, no fundo, o permanente absoluto, que me permita reconstruir toda essa
cadeia de determinações. Ainda assim, é difícil enxergar como uma iteração infinita
do procedimento seria suficiente para encontrar a necessidade da pressuposição de
um permanente absoluto. Pois, pela sobreposição de momentos temporais distintos,
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
64
uns cumprindo o papel de “permanentes”, outros de variações desses permanentes, os
elementos podem ser reutilizados indefinidamente. Como diz Kant, mesmo o nosso
conceito de matéria em geral, que parece ser o candidato natural para esse permanente
absoluto, pode servir apenas como um permanente relativo, na medida em que diversas
partes ou porções dessa matéria podem cumprir o papel de ponto de vista necessário
para a compreensão de mudanças na experiência.
Contudo, é impossível construir uma série temporal sobreposta que explique todas as
mudanças da experiência. Para simplificar o argumento, é melhor ilustrá-lo. (Cf. gráfico
3.1)
m3
m4
m5
m6
m3 = ?
m6 = ?
m1
m2
m1
m2
m3
m4
m5
m6
permanente absoluto
ponto arquimediano
uno parmenídico
ὑποκείμενον
Figura 3.1: Uma série sobreposta e uma série “absoluta”
Cada um dos intervalos no gráfico representa uma existência fenomênica, em cada
extremidade há dois momentos, o momento em que tal existência vem a ser, em que
ela aparece como tal, e o momento em que ela deixa de ser. O argumento da Primeira
Analogia mostra como só podemos reconhecer tais momentos enquanto modificações
65
3.4. O permanente e o idealista problemático
de algo subjacente. A objeção argumenta que poderíamos construir a mesma série de
modificações usando apenas sobreposições entre os fenômenos.
Como se vê, na série temporal sobreposta, as mudanças m3 e m6 carecem de um
ponto de vista a partir do qual podem ser explicadas. Ou, o que é o mesmo, carecem
de um permanente, mesmo que relativo, que torne compreensível essas mudanças. É
necessário pressupor um permanente, absoluto ou relativo, que sirva como ponto de
vista para a explicação dessas mudanças. Mas, se tal permanente for um permanente
meramente relativo, então será necessário pressupor em algum momento o permanente
absoluto, o uno parmenídico e incriado, que sirva como fundamento da explicação dessas
mudanças. É verdade que o permanente relativo é capaz de servir como fundamento de
algumas mudanças na experiência, mas a mera substantia phaenomenon é incapaz de
explicar exaustivamente a série de mudanças da experiência, tornando inevitável, então,
a pressuposição de um permanente absoluto, de uma substância strictu sensu, que seja
responsável pela determinação de toda modificação temporal.
3.4
O permanente e o idealista problemático
Minha interpretação do argumento é basicamente uma transposição da Primeira Analogia para a RdI. Não poderia ser de outra forma, pois, dada a minha hipótese interpretativa, a RdI é a conclusão mediata pela existência de uma coisa não-representacional.
Toda conclusão mediata partindo de dados é o que Kant chama de raciocínio analógico:
Na filosofia, as analogias significam algo muito diferente do que representam na matemática. Nesta última, são fórmulas que exprimem a igualdade de
duas relações de grandeza e são sempre constitutivas, de modo que, quando
são dados três membros da proporção, também o quarto será dado desse
modo, quer dizer, pode ser construído. Na filosofia, porém, a analogia não é
a igualdade de duas relações quantitativas, mas de relações qualitativas, nas
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
66
quais, dados três membros, apenas posso conhecer e dar a priori a relação
com um quarto, mas não esse próprio quarto membro; tenho, sim, uma regra
para o procurar na experiência e um sinal para aí o encontrar. (CRP, B222,
ênfases de Kant)
A afirmação com que se pretende elucidar parcialmente a natureza do idealismo
transcendental nos manuais de filosofia, a de que conhecemos apenas fenômenos, não
pode ser levada a sério sem qualificações. Pois, se a noção de fenômeno pressupõe
uma relação sensível e imediata com um objeto dado na percepção, então resulta que
conhecer apenas fenômenos significa o mesmo que conhecer apenas os dados imediatos
da sensação.
Entretanto, nenhum juízo cognitivamente valioso pode ser feito apenas acerca de
nossas sensações imediatas. A expectativa levantada pela expressão ’conhecer uma coisa’
é muito maior do que aquela que associamos à mera afirmação de que estou “acquainted ”
diretamente com alguma coisa. Antes, conhecer alguma coisa, nesse sentido forte, é
conhecer detalhes ou relações não imediatamente disponibilizados pela sensação dessa
coisa. A mera percepção de que um objeto encontra-se neste exato momento diante
de mim é um tipo de cognição bastante diferente da capacidade de reconhecer que tal
objeto é detentor de uma série de propriedades, como, e.g. ser chamado de mesa, ser
azul, ser sólido, etc. Conhecer a mesa azul e maciça que tenho diante de mim neste
momento é relacionar sua percepção imediata a noções adquiridas anteriormente.
É claro que se todas essas noções que relaciono com a minha percepção imediata
tiverem o seu fundamento último na experiência anterior (quer dizer, em fenômenos
anteriores), a afirmação de que conheço apenas fenômenos pode ser mantida com o
pequeno qualificativo de que conheço fenômenos relacionando-os com dados adquiridos
anteriormente na experiência, ou, o que é o mesmo, com fenômenos não dados imediatamente, mas de alguma forma abstraídos (não nos interessa saber exatamente como)
de experiências passadas.
67
3.4. O permanente e o idealista problemático
Na matemática a continuidade entre os dados fornece uma regra de construção para
o elemento que queremos encontrar. Assim, num par de proporções (2/4, 𝑥/6) podemos
encontrar 𝑥 = 3 pela relação estabelecida entre os três números dados.
Mas em uma analogia filosófica, essa conclusão mediata refere-se a elementos qualitativos e a sua determinação na experiência não pode ser dada, apenas o fato de que
existe uma relação necessária entre essa qualidade buscada e a efetividade dos dados
que obtemos da experiência.
Ora, é justamente essa a relação entre o cogito empiricamente determinado e o
permanente não-representacional. Dada a efetividade do cogito enquanto representação
evidente e duradoura, sei que ele depende de um permanente. Dadas as condições gerais
das representações a partir da exposição da forma temporal, sei que é impossível que
esse permanente seja uma representação, pois é ele a condição de todas elas. Logo, o
permanente é algo de não-representacional ou uma coisa extra-representacional. Pelo
princípio de equal certainty, sabemos que aquele que acata a certeza do cogito deve
também acatar as suas condições de possibilidade.
Assim, o cético idealista problemático está obrigado a acatar o pressuposto da
existência de um permanente não-representacional, já que parte da premissa de que o
cogito é real, ou seja, é efetivo, efetividade cuja causa está comprovadamente relacionada
a uma determinação do tempo, só possível mediante a pressuposição de um permanente,
que por sua vez é um atributo contraditório à natureza das representações (isto é,
nenhuma representação pode fazer o papel desse permanente).
Ao cético idealista problemático restam dois tipos gerais de hipótese: o primeiro
diz respeito a uma faculdade oculta do sujeito, o segundo à possibilidade de que a
experiência nada mais é do que um engodo sistemático. Cabe analisar cada uma dessas
duas saídas separadamente.
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
3.4.1
68
Da hipótese de uma faculdade oculta
O idealista que concede à pressuposição do permanente poderia refugiar-se na hipótese
de que mesmo esse permanente necessariamente pressuposto pela condição temporal de
nossas representações seria o produto de uma faculdade subjetiva da qual não teríamos
consciência. O espírito da dúvida cética se mantém: ainda que haja razões convincentes
para a pressuposição de um permanente, nada pode garantir que esse permanente não
seja uma criação subjetiva.
A hipótese de uma tal faculdade oculta depende que os âmbitos representacionais e subjetivos não sejam simplesmente coextensivos. Isto é, depende de que o nãorepresentacional não possa ser associado seguramente ao não-subjetivo. Pode haver uma
qualitas occulta não-representacional interna ao sujeito e cumprindo o papel do permanente, ainda que este não pudesse tomar consciência desse fato. Assim, o cético poderia
conceder a necessidade de um permanente sem ter que conceder, com isso, a existência
de alguma coisa externa ao sujeito. O espírito de sua dúvida permanece, ainda que ele
a tenha reescrito para adaptar-se aos avanços kantianos.
Acontece que a prova da pressuposição necessária do permanente depende da exposição do tempo enquanto forma do sentido interno. O que para alguns é a “bad psychology”
da filosofia kantiana, para nós é uma etapa essencial do argumento. O que aqui se pode
criticar é o fato de todos os fenômenos do sujeito serem compreendidos sob a rubrica de
representações. Isto é, que eu possa compreender, a partir de um único gênero, coisas
tão diversas como idéias, conceitos, intuições, desejos, afetos, etc. Mas a exigência de
nossa interpretação da RdI é mais modesta, na medida em que simplesmente afirma,
com a estética transcendental, que todo o conteúdo do sujeito deve ser esquematizável
conforme a forma temporal, seja qual for a real natureza desse conteúdo. Aquele que
afirmar o contrário deve mostrar como uma determinação do sujeito poderia acontecer
sem que aconteça, ao mesmo tempo, uma determinação temporal, se o cético acatou
a presença de um permanente (o que ele precisa ter feito, para argumentar que pre-
69
3.4. O permanente e o idealista problemático
cisamente esse permanente é um produto do sujeito) então, pari passu, aceitou pelo
menos um exemplo de representação enquanto determinação temporal. O que ele deve
fazer agora, para sustentar a sua hipótese, é mostrar uma representação ou pelo menos
uma operação subjetiva que não envolva uma determinação temporal, mas isso é tão
impossível quanto mostrar a alguém como voar debaixo d’água.
Allison afirmou que o que realmente está em jogo, para a prova da RdI, é que o
método expositivo da estética transcendental seja capaz de convencer que existem dois
modos básicos de funcionamento do sujeito: o passivo e o espontâneo. O problema é que
não existe nenhuma prova convincente (pois o método expositivo não é demonstrativo)
de que uma faculdade que produza representações seja completamente espontânea ou
completamente passiva. Ademais, em alguns raros casos concedemos que não sabemos
distinguir entre a origem imaginária ou sensível de nossas representações, como em alucinações ou sonhos, o que coloca em risco a exatidão de um método cuja única eficácia é o
de apontar para as informações que captamos em nossa vida interna, introspectivamente,
e compará-las a uma forma descrita de maneira a tirar conclusões sobre a natureza dessa
vida interna.
Além disso, o conceito de passividade já implica na presença de alguma coisa estranha
ao sujeito que o afeta de alguma maneira, não podemos ser passivos com relação a nós
mesmos, a não ser que o nosso próprio comportamento seja considerado fora de nosso
controle. O problema é que é justamente a existência de uma tal coisa estranha ao
sujeito que está sendo provada. Oras, se a prova requer o conceito de passividade para
funcionar, ela tem que ser necessariamente circular. Assim sendo, se a hipótese de Allison
estiver correta, a RdI é impossível.
Igualmente, outras linhas argumentativas que apelem a um conceito de passividade
originária sofrem do mesmo problema de circularidade. É o caso da argumentação da
Reflexão 5653 (AA XVIII: 306 - 312), “Gegen den materialen Idealismus”
A intuição de uma coisa como fora de mim, pressupõe a consciência
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
70
de uma determinabilidade do meu sujeito, na qual (determinabilidade) eu
não sou determinante, e a qual não pertence à espontaneidade, dado que o
determinante não se encontra em mim. E de fato não posso pensar um espaço
como estando em mim. Portanto a possibilidade de representar coisas no
espaço (como na intuição) está fundada na consciência de uma determinação
através de outras coisas, a qual (welches) (consciência) não significa outra
coisa senão a minha passividade originária, na qual eu absolutamente não
sou ativo. Que o sonho produza ilusões de existências fora de mim, não prova
nada contra isso; pois é preciso que tenham acontecido percepções externas
prévias. É impossível receber originariamente uma representação de algo
como fora de mim sem de fato ser passivo. (AA XVIII: 307, a tradução é
fruto de um esforço coletivo de estudantes, incluindo o presente autor, com
o prof. Pedro Costa Rego)18
O mérito de nossa interpretação consiste em romper com o círculo que necessariamente se impõe àquele que basear a RdI no conceito de passividade. Pois o que
mostramos é que pouco importa a origem de nossas representações, se elas duram no
tempo a pressuposição de um permanente distinto delas é necessária. Mesmo um sujeito
completamente espontâneo, que literalmente criasse o conteúdo de suas representações,
está submetido à condição geral de todas elas (o permanente), se devem estar no tempo.
A combinação Primeira Analogia + RdI não prova que representações externas sejam
necessárias enquanto permanentes para as representações internas (hipótese cara aos
que acreditam que Kant só pode falar fenomenologuês), mas mostra como mesmo re18
Die Anschauung eines Dinges als ausser mir setzt das Bewusstsein einer Bestimmbarkeit meines
Subjekts voraus, den welchem ich nicht selbst bestimmend bin, die also nicht zur Spontaneität gehört,
weil das Bestimmende nicht in mir ist. Und in der Tat kann ich mir keinen Raum als in mir denken.
Also ist die Möglichkeit, [einen] Dingen im Raum als in der Anschauung vorzustellen, [bloss] auf dem
Bewusstsein einer Bestimmung durch andere Dinge gegründet, welches nicht weiter als die Ursprüngliche
Passivität von mir bedeutet, den der ich gar nicht tätig bin. Dass der Traum [eben dergleichen] Täuschung
hervorbringe von Existenzen ausser mir , beweist nichts dawieder; denn es mussten allemal äussere
Wahrnehmungen vorhergehen. Ursprünglich eine Vorstellung von etwas als ausser mir zu bekommen,
ohne in der Tat passiv zu sein, ist unmöglich.
71
3.4. O permanente e o idealista problemático
presentações externas são dependentes de um algo extra-representacional que faça o
papel de um permanente, que é a ratio cognoscendi da duração de todas as minhas
representações.
3.4.2
Da hipótese de uma “fantasia organizada”
O cético ou idealista que concede a natureza necessária da pressuposição do permanente
o faz sob a força do que Allison chamou de equal-certainty principle. Como vimos, a
pressuposição de um permanente é necessária como condição de todas as representações,
mas só a representação do cogito empírico é um ponto de partida que pode ser estabelecido conjuntamento com o cético cartesiano. Como o cético não disputa a efetividade
do cogito, uma vez estabelecida a lei pela qual toda representação que dure necessita de
um permanente ele tampouco pode duvidar da realidade de um permanente enquanto
implicada na existência do cogito empírico.
As hipóteses sobre uma fantasia sistematicamente organizada para nos enganar
devem, assim, cair por terra, enquanto hipóteses acerca da certeza da existência de pelo
menos um ente extra-representacional. Pois se o cético acatou a prova do permanente,
então não pode duvidar da existência do que é causa necessária da sua certeza mais forte:
a certeza que tem do cogito. O que lhe resta é a simples hipótese de que mesmo esse
permanente possa ter sido criado por um deus enganador, mas esse deus não poderá ser
sistematicamente enganador, terá que ser miraculosamente benigno. Pois a certeza do
permanente é tão forte quanto a do cogito, e escapa até mesmo aos desígnios malignos
desse deus. Como a hipótese só era relevante enquanto erística filosófica, na medida em
que mostrava ao adversário a incapacidade de sua filosofia em acessar com segurança
outro âmbito que não o âmbito do sujeito, ela perde o seu sentido enquanto hipótese
epistêmica e torna-se apenas uma hipótese teológica abstrusa pela qual não nutrimos o
mínimo interesse.
Capítulo 3. A Refutação do Idealismo e o permanente da percepção
3.4.3
72
A pressuposição do permanente
Este é o espaço ideal para afastar uma preocupação. Esta consiste no seguinte: se tudo o
que conseguimos provar foi a necessidade de uma pressuposição, o problema do mundo
externo ainda não estaria em aberto, de um ponto de vista estritamente ontológico?
Não seria necessário provar a vigência real de um permanente absolutamente extrarepresentacional?
À primeira pergunta só podemos responder que sim. Como veremos abaixo, a prova
kantiana esbarra em limitações que a impedem de dar uma resposta completa ao problema do mundo externo, se levarmos em conta as expectativas que levantamos na
Introdução.
À segunda pergunta podemos responder: depende. Se o nosso único objetivo é o de
refutar o idealismo problemático, então a prova de um pressuposto necessário é suficiente.
Pois o idealista problemático é também um cético pirrônico e sua posição depende da
possibilidade de uma suspensão do juízo relativo à questão. Ora, a prova epistêmica
kantiana, de um pressuposto racional necessário, não é uma mera recomendação médica.
O termo “como se” 19 não lhe faz justiça. O que ali se prova é que uma certa proposição
tem que ser considerada necessariamente verdadeira e que não poderia ser diferente,
nas atuais condições. Esse é o escopo da prova de um pressuposto racional necessário.
Isto posto, o cético, se acatar a prova, não pode apelar para a suspensão do juízo, a sua
posição é indefensável. Por isso, considerada estritamente no âmbito de uma erística
filosófica, de uma disputa entre o sistema kantiano e o cético anti-sistema, a prova do
pressuposto é suficiente. Considerada no vácuo, entretanto, a questão pela realidade do
mundo externo não foi nem parcialmente respondida.
19
Para uma interpretação e expansão da noção kantiana de princípio regulativo em todo um sistema
filosófico do “como se” ver Vaihinger (1984).
Capítulo 4
Conclusão: as limitações da
Refutação e as perspectivas para
um trabalho futuro
Enquanto interpretada por nós, a Refutação do Idealismo esbarra em alguns limites.
Acima (ver Introdução) argumentei que a RdI deve cumprir um papel duplo: (a) refutar
o adversário cético e (b) provar a vigência de um mundo externo. Ao mesmo tempo,
chamei a atenção para o fato aparentemente paradoxal de que é possível cumprir (a) sem
cumprir (b). No momento, acredito que a presente interpretação prova a vigência de um
mundo externo só se por ele entendemos o “deserto do real”, apesar de afastar a dúvida
cética em sua generalidade. Pois o que foi mostrado é apenas a vigência da pressuposição
necessária pela existência de uma coisa ou propriedade, a saber, o permanente ou a
permanência de algo extra-representacional. O mundo externo ainda está carente de
objetos.
Tampouco foi provada, e isto está em pleno acordo com a limitação precedente, a
vigência dos correlatos de nossas representações, isto é: de coisas não-representacionais
Capítulo 4. Conclusão: as limitações da Refutação e as perspectivas para um trabalho
futuro
74
às quais nossas representações têm referência possível, mas não necessária, de forma
individualizada. Se a pergunta pelo mundo externo deve necessariamente abarcar a
questão desses correlata, como argumentei na Introdução, então a RdI está a muitos
passos de sua solução.
A tentativa de alguns comentários1 de encontrar na revolução copernicana e na
distinção crítica entre fenômenos e coisa-em-si uma saída para o argumento cético
acerca da falsidade sistemática possível da experiência não pode ser tomada por nós.
Ela reside na tentativa de igualar hipóteses dessa natureza com predicações acerca da
coisa-em-si. O próprio Kant se expressa em um sentido que pode ser confortavelmente
interpretado de acordo com a tese desses comentários, no texto da primeira edição dos
Paralogismos:
Portanto, como nos obriga, evidentemente, a presente crítica, manter-nosemos fiéis à regra acima estabelecida de não levar as nossas questões para
além dos limites em que a consciência possível nos pode dar o seu objecto,
nunca nos deixaremos arrastar a procurar saber o que os objectos dos nossos
sentidos podem ser em si, isto é, independentes de toda a relação aos sentidos.
Porém, se o psicólogo toma os fenómenos por coisas em si, se admite na sua
teoria coisas em si mesmas, seja única e simplesmente a matéria, como faz
o materialista, seja o ser apenas pensante (a saber, segundo a forma do
nosso sentido interno) como o espiritualista, sejam ambos, como o dualista,
é constantemente embaraçado pela dificuldade de ter que provar como pode
existir em si o que não é uma coisa em si, mas somente o fenómeno de uma
coisa em geral (CRP, A380).
A hipótese do gênio maligno seria assim apenas mais uma predicação sem sentido
acerca de como as coisas podem existir em si mesmas. O idealismo transcendental teria
1
Ver, e.g., Caranti (2011) e Chingnell (2010)
75
4.1. O primeiro limite: pressuposição X causação
sua utilidade validada na medida em que serviria como o único refúgio contra esse tipo
de ceticismo2 . Porque então nos seria impossível optar por esse refúgio?
A advertência acima encontra-se no contexto dos paralogismos, onde Kant argumentava pela realidade do fenômeno espacial e não de objetos independentes do sujeito. O
que está em jogo é a sua concepção fenomenista de objeto, onde este último é definido
como fenômeno ligado por regras intersubjetivamente válidas. Essa definição de objeto
está fortemente calcada no vocabulário do epistemologuês e, a partir dela, ainda que
seja possível empreender uma refutação do ceticismo à maneira do Quarto Paralogismo,
é completamente impossível responder à questão dos correlata, pois ela se torna sem
sentido. A matéria do fenômeno é tão produzida pelo sujeito quanto a sua forma e não
é possível encontrar nenhuma razão pela distinção numérica de nossas representações.
Passemos a limpo, então, todas as limitações da Refutação B e vejamos como esses limites apontam para a obrigatoriedade de uma crítica sistemática do idealismo
transcendental, a ser empreendida no futuro.
4.1
O primeiro limite: pressuposição X causação
Concluímos pela necessidade de um pressuposto racional, qual seja, a de que toda determinação da minha consciência só é possível em relação a um âmbito absolutamente
não-representacional, onde reconhecemos a instância de um permanente absoluto, único
fundamento possível de todas as minhas representações no tempo. Porém, alguém poderia perguntar-se pela realidade desse pressuposto. Essa pergunta, por sua vez, pode ser
interpretada em dois sentidos: o primeiro deles, o sentido epistêmico, concerne apenas
à obrigatoriedade de assumirmos esse pressuposto. O pressuposto seria real na medida
em que assenta na Estética Transcendental e na evidência de que as determinações da
minha consciência são reais. Isto é, na posição, que o cético não disputa, de que eu
2
Para a tese do “único refúgio” ver Caranti (2011) p. 22-30
Capítulo 4. Conclusão: as limitações da Refutação e as perspectivas para um trabalho
futuro
76
tenho representações e que tais representações são temporais. Simplesmente tomando
tal posição como ponto de partida é possível obrigá-lo a assumir o pressuposto, como
vimos. É claro que, de um ponto de vista psicológico, ninguém é obrigado a assumir
nenhuma proposição se não estiver disposto. Porém, de uma perspectiva estritamente
lógica, se o interlocutor assumir a simples proposição de que possui uma consciência e
que essa consciência é testemunha de certas representações, deve ser possível caminhar
com ele desse ponto de partida à conclusão pela necessidade do pressuposto3 .
De toda forma, uma outra forma de reivindicação pela realidade do pressuposto
pode se dar. É o caso da pergunta por tal realidade tomar um sentido ontológico. O
sentido ontológico da pergunta foi ilustrado com felicidade por Klotz (2008), p.133:
Tem-se que mostrar, diz Kant, que “nós estamos de fato passivos”, e com
isso, que “nossa experiência refere-se a coisas que estão realmente fora de
nós”. Então, Kant não intencionou apenas mostrar que a pressuposição de
um fundamento não-fenomenal de aparências está operante na percepção
consciente, mas também que ela é verdadeira.
Ora, “estar de fato passivos” diante de “coisas que estão realmente fora de nós”
é considerar o pressuposto racional como fazendo referência a alguma coisa real que
nos afeta. Em outras palavras, alguma coisa fora de nós, absolutamente permanente,
absolutamente não-representacional, que seja causa necessária de nossas representações.
Tomada desta forma, a exigência kantiana só pode escandalizar os seus intérpretes
e interlocutores. Pois não se trata, então, justamente de predicar sobre a coisa-em-si,
aplicar a categoria da causalidade ali onde o Manual de Filosofia Kantiana nos diz
que ela não pode ter sentido? Sim, se assumirmos a posição do idealista transcendental
consequente.
É um ponto de concordância entre todos os críticos de Kant, de Schulze a Hegel,
3
Assumo aqui, obviamente, que a minha interpretação da RdI é a correta.
77
4.1. O primeiro limite: pressuposição X causação
passando por Fichte e Jacobi, que todos eles tenham levado o conceito de coisa-em-si
tão a sério quanto o seu progenitor. Pois, se é verdade que o sistema kantiano é belo
por sua arquitetônica, é igualmente verdadeiro que vê-lo ruir através de uma implosão
controlada e direcionada ao fuste principal é a causa de um prazer muito estupendo.
Assim, o que esses críticos fizeram foi elevar o conceito da coisa-em-si à uma posição
capital no sistema, de forma que, mostrando uma incongruência de certas afirmações
com esse conceito, ou mesmo uma contradição interna no mesmo, pudessem impugnar
a totalidade da obra kantiana em uma única sentença. Então, é “impossível entrar no
sistema sem ele e permanecer no sistema com ele”. De nossa parte, não vemos por
que deveríamos tomar, sem nenhuma reflexão, o conceito de uma coisa-em-si como um
conceito sistêmico, isto é, que fosse essencial a nossa permanência no sistema kantiano,
se por isso compreendemos o aquiescer de nossa razão à certas afirmações do filósofo.
Simplesmente, digo: o conceito de coisa-em-si, com exceção de seu uso nos argumentos
da liberdade transcendental, é um mero conceito histórico-polêmico. Com isto, quero
dizer que a coisa-em-si foi levantada como uma arma contra certas afirmações, de certo
adversário, acerca de certos objetos supra-sensíveis; a depender do contexto. Não há
motivos maiores para tomá-la como um conceito que prescreve uma limitação geral no
âmbito do sistema kantiano.
Que através da coisa-em-si esteja implicado que conhecemos fenômenos não se
deve seguir, necessariamente, que todo e qualquer uso puro da razão não possa gerar
conhecimento genuíno. A possibilidade de compatibilizar o conceito de coisa-em-si com
certos usos teóricos puros da razão precisa ser explorada. A Refutação do Idealismo, e
a Refutação B em particular, podem ser tomados enquanto estudo de caso. Pois aqui
só temos um resultado proveitoso se assumirmos que o conceito de coisa-em-si não
está em questão. Mas isto só é possível se o transformamos em mero conceito históricopolêmico. Um trabalho futuro, portanto, deve consistir numa historiografia da coisa-em-si
que mostre os seus momentos de dilatação, onde cumpre um papel essencial enquanto
Capítulo 4. Conclusão: as limitações da Refutação e as perspectivas para um trabalho
futuro
78
erística filosófica com um adversário particular, e de retração, onde necessariamente
deve sair do tabuleiro sem que isso venha a significar a derrota no jogo. Nesse, como
em muitos outros pontos, o comentário de Henry Allison pode servir de precursor. Pois
ali o intérprete em questão nos apresenta a tese de que o idealismo transcendental tem
sua justificativa histórica na medida em que é uma reação ao que chama de modelo
teocêntrico do conhecimento4 . Tal modelo consistiria no estabelecimento seguro do
ponto de vista privilegiado de um ente supra-sensível que fosse sede e portador de uma
série de verdades eternas pelas quais seria possível derivar proposições acerca do mundo
sensível e da experiência em geral. A revolução copernicana, e portanto o conceito
de uma coisa-em-si, seria uma forma de atacar o modelo teocêntrico na sua própria
possibilidade já que a partir dela se estabelece que não podemos conhecer Deus como
o garantidor da realidade do mundo, legislador da natureza ou portador de verdades
eternas. Entretanto, Allison não avançou o suficiente sua tese e insight, preferindo
continuar a sustentar o conceito de uma coisa-em-si como uma regra sistêmica geral
que não pode ser ultrapassada sem obrigar aquele que o faz a “sair do sistema”. É essa
compreensão da teoria kantiana, um efeito provocado pela concepção arquitetônica do
seu autor, que um idealista transcendental inconsequente busca evitar.
Isto posto, é bem verdade que a coisa-em-si é a santa padroeira do reino filosófico
da liberdade. Não é possível sustentar um compatibilismo à Kant sem o conceito de
uma coisa-em-si. É algo de que o idealista transcendental inconsequente deve abrir mão,
esta noção de liberdade. Porém, é um preço ínfimo e mesmo um bônus para aqueles que
filiam-se à longa e excelente linhagem do determinismo filosófico. Caso contrário, terão
que buscar outra santa para o seu conceito de liberdade.
O idealismo transcendental inconsequente nos diz: a supressão dos limites críticos de
uma coisa-em-si para uma instância particular não necessariamente cria um precedente
para a generalização desta supressão de limites em qualquer instância. É claro que isto
4
cf. Allison (2004), p.27 e ss.
79
4.2. O segundo limite: os indivíduos do mundo externo
precisa ser provado e o primeiro passo consiste justamente no estudo historiográfico do
conceito filosófico da coisa-em-si no kantismo.
4.2
O segundo limite: os indivíduos do mundo externo
Suponhamos que o interlocutor tenha empreendido o esforço de converter-se ao idealismo
transcendental inconsequente. Mesmo que ele aceitasse a realidade ontológica do mundo
externo, teria em mãos um mundo completamente destituído de objetos. Pois, mesmo
se aceitar uma leitura ontológica do pressuposto do permanente, o permanente em si
mesmo não é nada de determinado, isto é, só sabemos que há um instância que cumpre o
papel desse permanente, mas não sabemos no que exatamente essa instância consistiria.
O problema do mundo para uma teoria da percepção que seja representacional envolve o problema da correlação entre as representações e os seus objetos correspondentes.
Como é evidente que temos um múltiplo de representações ou, melhor dizendo, que somos capazes de individuar representações, devemos nos perguntar se a esse múltiplo
corresponde um outro múltiplo real ou se, ao contrário, o real é de uma tal natureza
que o seu princípio de individuação não pode ser encontrado simplesmente nele, mas
deve residir dentro de nós.
O problema da individuação pode ser explicitado através da seguinte pergunta: “o
que torna um indivíduo um indivíduo?”. A resolução do problema envolve distinguir o
indivíduo da comunidade que o representa. A comunidade que representa um indivíduo
pode ser compreendida de duas maneiras. Verbal ou mentalmente, como uma espécie,
um gênero ou um conceito que representam o indivíduo e concretamente, enquanto um
conjunto de coisas reais do qual o indivíduo é um membro. Se retraçarmos o problema
no vocabulário do seu ponto histórico de origem, podemos dizer que a primeira maneira
de compreender uma comunidade corresponde a um episódio da querela dos universais
e a propriedade que distingue o indivíduo é a mesma que distingue os particulares dos
Capítulo 4. Conclusão: as limitações da Refutação e as perspectivas para um trabalho
futuro
80
universais. ‘Quididade’ é o termo geral para essa propriedade. Porém, a quididade de
um indivíduo é só mais uma característica geral que o agrupa. Em outras palavras,
a quididade é ela mesma um tipo de comunidade e não pode servir para responder à
pergunta pelo que separa o indivíduo de toda comunidade possível.
Uma outra solução envolve compreender a comunidade como um conjunto de coisas
reais. Neste sentido, o indivíduo deve poder ser numericamente identificado, ainda que
toda sua comunidade seja composta de membros perfeitamente idênticos entre si. A
essa propriedade de identificação numérica um célebre querelante da época chamou
de ipseidade. A ipseidade é o que torna o indivíduo particularmente um indivíduo, o
que o separa de toda comunidade. Mas a ipseidade é apenas um nome, uma marca
que faz referência à individualidade do indivíduo sem contudo explicá-la. A noção de
ipseidade precisa ser remetida para fora dela mesma, se quiser explicar o fenômeno da
individualidade.
Nossa posição natural é a de contestar a razoabilidade da exigência de uma explicação
para o fenômeno da individualidade:
quaelibet res singularis se ipsa est singularis (...) quia singularitas immediate convenit illi cuius est, igitur non potest sibi convenire per aliquid aliud;
igitur si aliquid sit singulare, se ipso est singulare.5
A individualidade ou singularidade seria um dado primitivo da experiência, sobre o
qual podemos construir nossas explicações mas nunca explicá-lo ele mesmo. O conceito
de ipseidade poderia ser assim reduzido ao mero gesto ostensivo de apontar para um
indivíduo, sem perda de poder explicativo (zero).
Sendo assim, por que deveríamos insistir no problema da individuação na filosofia
de Kant, se o pai da via modernorum já havia aparentemente sepultado o problema?
Se levarmos a sério o estado de exceção instaurado pela revolução copernicana, o cami5
Guillerme de Ockham, 1990, Ordinatio I, d. 2, q. 6, p. 196, n. 3-6
81
4.2. O segundo limite: os indivíduos do mundo externo
nho natural de apelar à simples experiência para mostrar a evidência do fenômeno da
individualidade nos está vedado. Pois a revolução copernicana consiste em admitir a
possibilidade do “objecto se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuição 6 ”. Ora,
se todo objeto se guia pela natureza da faculdade da intuição então ou o motivo dos
objetos serem indivíduos encontra-se nesta própria faculdade ou na concorrência dessa
faculdade com alguma coisa distinta dela. De todas formas, a experiência já não é mais
dada como pronta e dificilmente podemos argumentar que qualquer dado fornecido por
ela seja primitivo.
É assim que o fantasma do problema da individuação pôde sair da sua sepultura
medieval e nominalista para reaparecer na Königsberg do séc. XVIII. Não tenho a
ambição de demonstrar que o próprio Kant tenha reconhecido o problema em sua
filosofia. De todas formas, é possível mostrar indícios de que o filósofo reconheceu que
a aparelhagem formal do seu idealismo deixava lacunas na explicação da natureza da
experiência. Refiro-me a passagens como esta:
(...)a capacidade do entendimento puro de prescrever leis a priori aos
fenómenos, mediante simples categorias, não chega para prescrever mais
leis do que aquelas em que assenta a natureza em geral, considerada como
conformidade dos fenómenos às leis no espaço e no tempo. Leis particulares,
porque se referem a fenómenos empiricamente determinados, não podem
derivar-se integralmente das categorias, embora no seu conjunto lhes estejam
todas sujeitas. (B165, ênfases de Kant)
Essa lacuna pode ser expressa resumidamente na distinção entre natureza em geral
(ou natura formaliter spectata) e natureza particular (ou natura materialiter spectata).
À primeira aplicam-se as leis formais do entendimento e da sensibilidade, mas o segundo
modo de conceber a natureza é apenas subdeterminado por estas, o que significa dizer
6
cf. B XVII
Capítulo 4. Conclusão: as limitações da Refutação e as perspectivas para um trabalho
futuro
82
que existe uma lacuna se considerados apenas os princípios subjetivos do idealismo
transcendental.
É a natureza dessa lacuna que deverá ser o objeto de investigação de um trabalho
futuro que tenha a ambição de demonstrar uma prova cogente e completa do mundo
externo dentro do framework do idealismo transcendental inconsequente.
É claro que o problema da individuação pode interesser até mesmo àqueles que
não aceitem que a importância do conceito de uma coisa-em-si possa ser relativizada.
Mesmo no caso de um idealismo transcendental puro-sangue o problema da individuação
persiste, ainda que deixemos de lado o problema dos correlatos, pois ainda devemos
explicar como é possível que da aparelhagem formal do sujeito transcendental seja
possível deduzir a individuação de suas representações.
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