O portunhol é uma interlíngua? Enilde Faulstich Universidade de Brasília (UnB) Departamento de Lingüística, Línguas Clássicas e Vernácula (LIV) Seminário apresentado no Institut Universitari de Lingüística Aplicada (IULA), Universitat Pompeu Fabra (UPF), Barcelona, em 21 de abril de 1997 O. Situação do problema O assunto de que nos ocuparemos aqui - formulado na pergunta: O portunhol é uma interlíngua? - diz respeito a questões efetivas de contato das línguas portuguesa e espanhola, na América do Sul, sobre as quais precisamos tomar decisões, com vistas, principalmente ao ensino do português e do espanhol. A expressão portunhol é entendida no Brasil como uma piada, um chiste, como modo de dizer algo que não deve ser levado a sério, em se tratando de língua. No entanto, diversas autoridades brasileiras têm repetido em reuniões solenes que a língua do Mercosul já está decidida, que é o Portunhol. Esta declaração temnos incomodado não somente pelo fato de sermos profissionais da área de língua e de lingüística, mas principalmente por termos a consciência de que as línguas do Mercosul são o Português e o E.Faulstich Espanhol, as duas maiores línguas oficiais dos países do Mercosul, conforme está declarado no Tratado de Assunção1, documento que oficializa o funcionamento do Mercado Comum do Sul entre o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. De nossa parte, nós, da Universidade de Brasília, temos refletido acerca destas questões porque fomos convidados a pensar no planejamento de uma ação político-lingüística que auxilie a decidir que língua deve ser ensinada em região de fronteira, na qual a interferência entre o espanhol e o português é uma constante. Este desejo manifesto de autoridades governamentais advém de posturas que consideram a mudança lingüística em região fronteiriça uma ameaça ao desenvolvimento das línguas estabilizadas e da dúvida de que língua ensinar, principalmente nas escolas primárias dessa região de fronteira, e como ensiná-la. Assim sendo e diante dos seguintes fatos: I) o contato e a interação do português e o espanhol em espaço geográfico limitado no sul do Brasil e nordeste do Uruguai; II) a fala corriqueira de que o Portunhol é a língua do Mercosul e III) a execução de um projeto de política lingüística para o ensino do português e do espanhol no âmbito do Mercosul, primordialmente na região de fronteira, propomo-nos a refletir sobre o tema e a discuti-lo, a fim de verificar se há estrutura lingüística autônoma que já configure o portunhol como uma variante que poderá vir a ser uma língua. Antes de passarmos ao tema principal, procuraremos situar o conceito do portunhol dentro de um quadro mais amplo de interpretação de nacionalismo e de nacionalidade enquanto efeitos caracterizadores do perfil histórico, econômico e social de um povo. 1 Em Boletim de Integração Latino-Americana, “Tratado para a constituição de um mercado comum entre a República Argentina, a República Federativa do Brasil, a República do Paraguai e a República Oriental do Uruguai (Tratado de Assunção, 26/03/1991)” Edição Especial (1993), Brasília: MRE, 1993, p. 185 2 E.Faulstich Por fim, tentaremos responder se o Portunhol é ou não é uma interlíngua e por que o Portunhol não é a língua do Mercosul. O português ou o fronteiriço no sul do Brasil e no norte do Uruguai constitui o que aqui denominamos portunhol. Como resultante da confluência de duas línguas, o português e o espanhol, surge este falar localizado, precisamente nas fronteiras de Santana do Livramento, cidade do Rio Grande do Sul, do lado brasileiro, e nas cidades de Rivera e Quaraí, do lado uruguaio. 2. A concepção controversa do Portunhol à luz de conceitos básicos de identidades coletivas: território, país, nação e pátria2 A lei da conservação não se aplica no domínio da ecologia das línguas. Contrariamente aos recursos naturais, a vitalidade de uma língua depende de sua utilização efetiva, tanto em escala nacional quanto em escala mundial. Quanto mais uma língua é utilizada, mais ela é viva, e inversamente, quanto menos ela é utilizada, mais ela é ameaçada de extinção. Portanto, é seu uso social que determina seu grau de utilização. Esta utilidade é observável no interior das instituições sociais que respondem às necessidades de uma coletividade e que formam territórios sociais necessários ao seu funcionamento. Trata-se, por sua vez de territórios concretos (familiar, religioso, administrativo, educativo, jornalístico, científico, técnico e econômico) e de espaços mais abstratos (território político ou simbólico). A mutação semântica do significado de território se deve à necessidade de ampliação do uso terminológico, uma vez que território passa a significar um tipo particular de patrimônio que é a “soberania” e, ao mesmo tempo, sujeito de um tipo particular de identidade coletiva que tem como referência País, Nação e Pátria de um Povo delimitado geograficamente para formar um Estado. 2 Este item foi transcrito de minha conferência “Impacto da globalização na difusão de idiomas”, apresentada no ICUB, Montevidéu, outubro de 1996 3 E.Faulstich Somente para fins de lembrança, vamos desenvolver sucintamente os conceitos de País, Nação e Pátria3 para melhor compreender o Estado lingüístico que já temos construído, aquele em que o português e o espanhol são línguas oficiais, e um outro que se consolida num território fértil e específico: o portunhol. O conceito de País deve ser entendido no âmbito geográfico determinado pelo exercício do poder. Nesse sentido, as leis criadas pelos homens são leis para serem executadas no espaço geográfico juridicamente pré-determinado. A lei de formação do pensamento lingüístico brasileiro nos séculos XVI e XVII provinha do pensamento hegemônico da coroa portuguesa que, na pena do Marquês de Pombal, destituiu os falares nativos e oficializou o português europeu como veículo de comunicação. Nesse sentido, o País Brasil se estruturava sob os moldes da nação portuguesa, embora fosse um território autônomo. Nação está definido no dicionário da Real Academia Espanhola como “conjunto de habitantes de um país regido pelo mesmo governo” ou “território de um mesmo país” ou ainda “conjunto de pessoas de uma mesma origem étnica que geralmente falam o mesmo idioma e têm uma tradição comum”4. Por conseguinte, é sob o conceito de Nação que se pode verdadeiramente assimilar o conceito de língua. Na transição da formação do espírito lingüístico brasileiro, encontrava-se, de um lado, o suicídio em massa das línguas territoriais - as línguas indígenas - provocado pelo espírito estatal que não era o nosso, e de outro, o surgimento de uma língua geral, ou língua brasílica, comum a toda população que integrava o sistema colonial. Porém , a língua constituída proveniente da Europa - o português - língua cientificamente estruturada, legalizada em 3 Os conceitos que Marcelo Escolar desenvolve em seu artigo Territórios de dominação estatal e fronteiras nacionais: a mediação geográfica da representação e da soberania política foram fundamentais na concepção desta parte do meu artigo. 4 Retirado de M. Escolar 4 E.Faulstich documentos e instituída pelo Poder suplantou essa língua geral que, ainda assim, se diversificou no país e penetrou em outras comunidades que fazem fronteira com o Brasil. Em meados do século XIX, o espírito romântico liderado pelo escritor José de Alencar defende a tese do nacionalismo lingüístico na tentativa de construir a nacionalidade da Pátria Brasil. Sem a pretensão de criar uma língua brasileira, diferente do português, entende que os escritores deveriam adaptar às peculiaridades nacionais o poderoso instrumento de expressão que lhes fora transmitido pronto e alicerçado; foi Alencar quem enriqueceu a língua literária, acrescentando-lhe numerosos tupinismos e brasileirismos. O macroconceito de Nação, que guarda em si o significado de superestrutura política no sistema histórico, o de etnicidade no sistema sociológico e antropológico, e o de língua nacional, no sistema lingüístico, concretiza-se no Brasil pela soma de várias nações que construíram o Estado. Pátria, todos nós sabemos, corresponde ao sentido etimológico do termo patrius, “relativo ao pai”. No caso atual, “pátria”, tendo perdido seu significado original restrito à filiação paterna, conota um sentido mais étnico e uma ampliação do lugar para a área localizada de um determinado grupo social.5 M. Escolar6 sugere a divisão desses conceitos em dois grupos segundo sua referencialidade conceitual: de um lado, território e país conotam um sentido mais geográfico; de outro, pátria e nação conotam um sentido mais étnico. Portanto, ao definir a semântica específica de cada um de maneira concisa, pode-se resumir cada um desses termos da seguinte forma: o território é o âmbito geográfico de exercício do poder de dominação; o país é o âmbito geográfico delimitado e identificado; a pátria é o âmbito apropriado por uma identidade comunitária; a nação é o referente étnico de origem comunitária. 5 6 Em M. Escolar, artigo citado, p. 91 Idem, ibidem 5 E.Faulstich Ao aplicar essa rede de conceitos semântico-políticos às línguas do Mercosul - o português e o espanhol - podemos inferir que cada uma delas constitui a base para o exercício do poder, delimita a fronteira geográfica, identifica uma comunidade, e acentua a etnicidade do povo que a utiliza. Em função de tais circunstâncias, há-de se perguntar: que papel sócio-político e lingüístico terá o portunhol nesse contexto de nacionalidade? Ao contrário de fixar normas para o exercício do poder plural, ao contrário de delimitar e identificar os espaços geográficos instituídos, ao contrário de possibilitar a identidade comunitária de cada povo e, finalmente, ao contrário de fixar os referentes étnicos, provocará uma exacerbação nacionalista porque adulterará o único bem territorial, pátrio e nacional que um povo herda gratuitamente de seus ancestrais - que é sua língua nacional. Nesse sentido, o conceito de língua está diretamente relacionado ao de nação, isto é, ambos são referentes étnicos. Uma língua não se compra, uma língua não se empresta para pegá-la de volta mais tarde; ou uma língua se impõe pelo Poder Superior do País, ou uma língua se herda no seio da família que a abriga. Então, o que é o portunhol? O contato entre fronteiras do português com o espanhol resulta num bilingüismo aberto provocando o surgimento de uma variante mista, denominada portunhol ou fronteiriço. Explicaremos melhor. Várias são as denominações para esta variante lingüística de fronteira que, conforme demonstraremos mais adiante, tem forma própria, resultante da entrada de estruturas de uma língua na outra. Na literatura que trata do assunto, vamos encontrar expressões, tais como, interlecto (Hensey, 1980), dialectos uruguayos de portugués (Behare, 1985) e dialectos portugueses del Uruguay 7 (Elizaicin,1979) . Os uruguaios utilizam fronteiriço para referir-se ou 7 Denominações retiradas de HENSEY, Fritz G. Portuguese and/or “Fronterizo, in the northern Uruguay. In Posner, R. e Green, J. N., 1992, pp. 433-452 6 E.Faulstich ao estilo de falar o espanhol ou propriamente à mistura de línguas, e os brasileiros utilizam portunhol para referir as mesmas situações. Hensey (1991)8 afirma que “a presença do português no norte do Uruguai não é surpresa do ponto de vista da história da região. A área norte do Rio Negro era brasileira, muito contestada, até o século XIX. Após, a atual fronteira internacional foi estabilizada, comunidades uruguaias se desenvolveram junto ou bem perto a Livramento, Quaraí, e outras localidades brasileiras, que já haviam sido parte do interior do Rio Grande do Sul e que agora constituem cidades fronteiriças. As cidades brasileiras são deste modo os mais velhos membros de várias comunidades gêmeas”. 3. Interlecto, interlinguagem, interferência, interlíngua Dubois et alii caracterizam interlecto como um conjunto de fatos lingüísticos que, num continuum, podem passar de uma língua a outra ao mesmo tempo, sem que sejam distinguidos; tais fatos constituem quantitativamente a essência da comunicação oral quotidiana. Hensey (1980)9 sugere que, no contexto sul-americano, ocorre uma situação de interlecto entre o português e o espanhol. Ao combinar a concepção do primeiro autor com a do segundo, entendemos que a concepção de interlecto entre o português e o espanhol é comprovada porque os dados de uso da língua na fronteira demonstram que variantes uruguaias retêm traços do português, estes somente perceptíveis em análises lingüísticas muito refinadas das duas línguas. No entanto, a tendência geral dos usuários é considerar a interferência de uma língua na outra como erro de linguagem. Qual é o limite entre erro e interlinguagem? Tradicionalmente, o sentido de erro está ligado ao de desprestígio social no uso de uma língua. Entendido como um desvio 8 9 Fritz G. Hensey, O português e/ou “fronteirizo” no norte do Uruguai. (Trad. livre) Citado em Hensey 1992 7 E.Faulstich da norma lingüística de prestígio, o erro estigmatiza a variedade e inferioriza as pessoas que o cometem. Em investigações sobre o papel do alfabetizador diante dos fenômenos de adequação lingüística na escola, Lemle (1987)10 adverte para o fato de que “a missão do professor não é a de fazer com que os educandos abandonem sua gramática ′errada′ para substituírem pela ′certa′, e sim a de auxiliá-los a adquirirem competência no uso de formas lingüísticas da norma socialmente prestigiada, à guisa de um acréscimo aos usos lingüísticos regionais e coloquiais que já dominam. A noção essencial aí é a de adequação: existem usos adequados a um dado ato de comunicação verbal e usos que são socialmente estigmatizados quando usados fora do contexto apropriado.” O conceito de erro considera a interferência de variedades da língua dentro da mesma língua; por outro lado, o conceito de interlinguagem considera a interferência de linguagens de uma língua em outra, ambas ocorrendo dentro do mesmo espaço geográfico lingüístico e social, no momento em que o indivíduo adquire uma segunda língua. Esta atitude também é caracterizada negativamente como erro. Payrató (1985)11 faz um estudo extensivo de interferência lingüística e identifica esta com um mudança lingüística (uma substituição, uma inovação ou uma perda), por que passou uma determinada língua, motivada diretamente pela influência de uma segunda língua (p. 193). Por considerar a definição muito ampla, o autor a restringe de acordo com os três parâmetros seguintes: a) Interferência com o processo ou com o elemento: como em qualquer mudança, a interferência atua no processo (neste caso se trata freqüentemente de substituição) e, ao mesmo tempo, atua no elemento que protagoniza o dito processo ou mudança. 10 LEMLE, Miriam. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo, Ática, 1987 PAYRATÓ, Lluís. La interferència lingüística.Comentaris i exemples català-castellà, Barcelona, Curial Edicions Catalanes, Publicacions de l’Abadia de Montserrat, 1985 11 8 E.Faulstich b) Interferência na língua ou interferência na fala: esta ocorre em um ponto específico, ou na língua (como sistema), ou na fala, no processo de bilingüismo. c) Interferência entre línguas ou interferências entre variantes dialetais ou registros de uma mesma língua: os fenômenos derivados dos contatos interlingüísticos são formalmente idênticos aos fenômenos que podem produzir-se entre as variantes dialetais ou aos diferentes registros que apresenta uma mesma língua. Apesar de todo este esforço para definir tecnicamente o conceito de interferência lingüística, resta observar que o sentido próprio de interferência guarda em si um traço de efeito negativo, uma vez que se identifica com um fenômeno de perturbação. Este mesmo sentido aproxima interferência de interlíngua; esta última prevê alteração num contínuo lingüístico por causa do apagamento dos limites da fronteira em que dois sistemas estão em permanente contato. Os dados do corpus de análise, que apresentaremos a seguir, nos mostram o avanço do contato fronteiriço, resultando numa “nova língua” que não é nem o português nem o espanhol. Trata-se efetivamente de um continuum que ora parte do português em direção ao espanhol, e ora parte do espanhol em direção ao português, produzindo o que se considera, na contemporaneidade, a constituição de um novo sistema lingüístico, denominado portunhol. 4. Apresentação dos dados do portunhol No caso de duas línguas em contato, a entrada de dados de uma língua em outra se faz de forma sistemática. Embora a seleção dos fenômenos se faça de modo arbitrário, a combinação dos elementos gramaticais se dá no ponto em que a norma interna das línguas permitem, como se pode verificar no texto seguinte12. 12 O interessante texto foi-me enviado, de Montevidéu, em fotocópia, pela profa. Z. M. Stein, sem, contudo, o registro da fonte. 9 E.Faulstich SI VOCÊ FALA PORTUGUÊS LE OFERECEMOS TRABALHO E CASA EM PUNTA DEL ESTE E AINDA FAÇEMOS O PAGAMENTO EN DOLARES Procuramos cubrir as vagas de : Ref. a : Promotoras Ref. b : Vendedores/as Ofrecemos bons ingresos, lugar para morar é continuidade laboral para tudo o ano para ás pessôas que o desejarem. Solicitamos nos enviar o seu curriculum Vitae aportando experência laboral a : Casilla de Correo 289 – Correo Central Para alguns professores uruguaios, como aponta Hensey, os resultados dessa interlíngua são uma interferência negativa, porque os consideram como erros de mistura de línguas. Hensey (1976) procede a um levantamento de amostras da língua fronteiriça, no local em que o processo se desenvolve, situando os câmbios dentro dos subsistemas da língua: do fonológico, do morfológico, do sintático e do léxico. Utilizaremos alguns dados de Hensey e faremos uma releitura desses dados para demonstrar como se estrutura o portunhol. Convém observar que este lingüista se refere ao fenômeno da interferência designando-o como fronteiriço do norte do Uruguai e não como portunhol; esta última expressão é bastante atual e designa a mistura do português com espanhol em qualquer nível da expressão e da comunicação no Brasil. 10 E.Faulstich As amostras foram recolhidas por Hensey a partir de questionários distribuídos a 131 professores de escolas primárias em que foram solicitados exemplos de “problemas” ou “desvios”, normalmente apresentados pelos alunos na grafia, na gramática e no vocabulário. As respostas foram todas transcritas de acordo com as práticas da grafia do espanhol, portanto a língua interferente era o português nas escolas de Rivera. 4.1. Fonologia A) Em relação às vogais, três marcas de articulação são as mais relevantes: i) a qualidade do /a/ nasalado (= ã): o /a/ muda de qualidade quando nasalado, p.e., dizem bonco por banco; na terminação verbal -amos, como cantamos, o /a/ que é nasalado em português passa por um processo de fechamento extremo e se transforma no fronteiriço em /e/ > -emos > cantemos ii) a ditongação de vogais padronizadas simples do espanhol: perro > pierro; helado > yelado; torta > tuerta iii) a monotongação dos ditongos espanhóis: tempo < tiempo; ferro < fierro < hierro; oco < hueco; ovo < huevo B) Em relação às consoantes, destacam-se: i) o ensurdecimento dos fonemas consonantais sonoros /b/, /d/, /g/ ; na verdade há uma substituição destas consoantes sonoras do espanhol pela homorgânica surda: pedazo > petaso; gato > cato; cuando > cuanto Observamos que estes dados de B)i) não representam fatos de interlíngua, uma vez que no português não se encontra este tipo de variedade espontaneamente, exceto nos casos de foniatria. 11 E.Faulstich ii) alternância de /t/ e /tš/ no ambiente de /-i/, pois o /t/ do português brasileiro tende a se tornar um africado apicodental diante de /i/. O espanhol, que não tem este tipo de realização na língua padrão, passa a sofrer alternância de /t/ e /tš/ em usos como *tiquita por chiquita e *cutillo por cuchillo iii) confusão entre fricativas, porque o espanhol tem 3 fricativas /f/, /s/, /x/ enquanto o português tem 6, formando 3 pares de surdas e sonoras /f/ e /v/; /s/ e /z; /Š/ e /3/13. No caso, ocorre uma forte interferência do /f/ com o /v/, como fafor por favor e fapor por vapor. Também há forte cruzamento do /j/ espanhol com o fonema português /r/ velar (rr): jojo (*rrojo) por rojo. iv) mistura entre /ll/, /3/, /i/. No espanhol uruguaio, o elemento escrito /ll/ cede lugar a um equivalente fonético /3/, que é uma consoante palatal sonora, podendo também se realizar como a palatal homorgânica surda /Š/, assim: caballo > caba/3/o ou caba/Š/o. O português preserva o /lh/ (=ll), mas apresenta o fenômeno do “ieísmo” produzido pela variante fonológica lh > i, como em trabalhar > trabaiá. Dessa forma, a pronúncia de caballo pode ser ou caba3o ou cabaŠo ou cabaio. 4.2. Morfologia Na morfologia, o processo de interlíngua se realiza por meio de quatro atitudes língüísticas fundamentais: i) a perda do determinador de plural como em * niños tristef. Este fenômeno ocorre nos dois lados da fronteira, por isso é considerado erro de falta de concordância ou “mala concordância”. No entanto, estudos sociolingüísticos têm comprovado que se trata de variável que despluraliza 13 Trata-se do par de fonemas palatais: surdo (/Š/) e sonoro (/3/) 12 E.Faulstich o(s) membro(s) em que a concordância é reincidente no português, normalmente elementos que estão sempre à direita na frase, como as mulher . Se se tratasse de simples caso de apagamento da marca de plural -s, a regra atuaria no sintagma as mulheres de forma diferente, eliminando apenas o -s final do que resultaria a forma as mulhere- ii) a substituição dos artigos definidos. Os artigos definidos do espanhol el / la são substituídos pelo o / a do português, principalmente no ambiente em que ocorre também pronome possessivo: a mía casa; o mío libro iii) combinação de en com artigos: a preposição combina com o artigo definido, como na iscuela; ne la escuela iv) substituição dos pronomes pessoais: os pronomes pessoais él > ele e en él > nele, ambas formas do português. 4.3. Na sintaxe frasal. As interferências na sintaxe são observadas na estrutura i) perda do determinador de pessoa e número: nosotros iba em lugar de íbamos. O português usa o futuro do subjuntivo com as conjunções se e quando, referindo-se a eventos futuros, do tipo se eu cantar, se nós cantarmos. Na zona de interferência é comum o uso de si nosotros jugar, si yo pintar ii) substituição dos auxiliares e uso do verbo tener por haber. Em português, o auxiliar ter ocupou completamente o lugar do haver. Exemplos de interferência: en mi casa tiene árboles; tiene un niño en el patio; tenía ido; tiña dicho. 13 E.Faulstich iii) construções analíticas no uso de objetos diretos e indiretos como em llamó él em lugar de lo llamó; dijo para mí em lugar de me dijo iv) colocação do pronome na frase. No português, a colocação do pronome clítico na frase apresenta variação, embora na linguagem corrente a posição mais freqüente é entre um verbo principal e um infinitivo, como em quero te dizer, vai lhe perguntar; e entre um auxiliar modal e um verbo principal, como em estava me procurando, iam lhe responder. O espanhol, em contraste, na maioria das vezes posiciona o clítico antes do primeiro elemento verbal: te quiero decir e em segundo plano, após o infinitivo: quero decirte . No processo de interlíngua, encontram-se correntemente: va me dando; no quiere me dar; voy le pegar a esse niño No uso do imperativo também a regra do português se faz presente: le diga; me dé la goma. 4.4. No léxico Muitas formas que aparecem no “portunhol” são do português, por vezes deformadas na escrita, como: millo (= milho); callorro (= cachorro). Vale a pena notar, outros exemplos entre os substantivos: faca, garfo, culier, vasora, vidro cavalo, pássaro, pierro, rato ovo, tanjarina, pissigueiro arve, buraco, canto, camiñón, fumo etc. 5. Conclusão Como dissemos adiante, nosso propósito era investigar os dados para reconhecer aí uma estrutura que pudesse configurar o 14 E.Faulstich portunhol como uma variante que possa vir a ser uma língua. Identificamos fatos lingüísticos que mostram a interferência entre as duas línguas, o português e o espanhol, porém fomos mais adiante e observamos que o continuum além-fronteiras desenha uma interlíngua que caminha em direção à mudança dos sistemas de base. Finalizamos estas reflexões com as palavras de Hensey quando, no artigo já citado, observa que “há uma clara necessidade de alguma forma de atenção para as necessidades lingüísticas dos jovens de Rivera e comunidades similares. Ao lado das deficiências óbvias nas artes de linguagem e sua expansão nas outras áreas do currículo, existe um sentido de discriminação e uma falta de autoestima associado ao ter um “sotaque fronteiriço”. Atenção : É proibida a reprodução deste texto, bem como partes dele, sem a citação do nome da autora. Série Reflexões E.Faulstich/97 15