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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
TAUANE BEVILACQUA MENDONÇA
OS RETRATÁVEIS DO SAMBA E DE PÉRSIO DE MORAES: ANÁLISE DE
ELEMENTOS LIGADOS AO SAMBA A PARTIR DAS CRÔNICAS DA REVISTA DA
MÚSICA POPULAR (1954-56)
CURITIBA
2011
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
TAUANE BEVILACQUA MENDONÇA
OS RETRATÁVEIS DO SAMBA E DE PÉRSIO DE MORAES: ANÁLISE DE
ELEMENTOS LIGADOS AO SAMBA A PARTIR DAS CRÔNICAS DA REVISTA DA
MÚSICA POPULAR (1954-56)
Monografia apresentada à disciplina de Estágio
Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito
parcial para conclusão do Curso de História - Licenciatura
e Bacharelado, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes,
da Universidade Federal do Paraná.
Orientador: José Roberto Braga Portella
Co-orientadora: Ana Paula Peters Portella
CURITIBA
2011
AGRADECIMENTOS
"Foi bem cedo na vida que eu procurei
Encontrar novos rumos num mundo melhor
Com você fique certo que jamais falhei
Pois ganhei muita força tornando maior
A amizade...
Nem mesmo a força do tempo irá destruir
Somos verdade...
Nem mesmo este samba de amor pode nos resumir
[...]
Quero chorar o seu choro
Quero sorrir seu sorriso
Valeu por você existir amigo"
(Fundo de Quintal)
Com "A Amizade " eu agradeço à todos os meus amigos, que, como é o caso de alguns, desde o meu
nascimento fizeram com que eu encontrasse "novos rumos num mundo melhor". À todos eles o
meu agradecimento profundo. À dois deles dedico este trabalho: obrigada mãe e pai.
"[...] hoje eu sonhei, mas não vou pedir desculpas
E nem vou levar a culpa de ser povo e ser artista
Sai dessa, moço, por favor não crie clima
Seu buraco é mais embaixo
Nosso astral é mais em cima"
(Mart'nália)
Com "Sai Dessa" eu agradeço à professora Ana Paula Peters que com toda a sua alma de artista e
seu amor pela música brasileira me deu todo apoio necessário para a realização deste trabalho. Que
nosso astral continue sempre "lá em cima" e que nossas afinidades fortaleçam cada vez mais essa
nova amizade.
"[...] fazem samba sincopado bossa nova bem cadenciado
Samba de rico caloroso bem gostoso e bem ritimado
Fazem samba de roda e partido alto, batido na palma da mão
Samba-choro choro indelicado
Samba de breque e samba canção
[...]
o samba é o segundo hino da nossa nação"
(Maria Eugênia)
RESUMO
Há elementos intimamente ligados ao imaginário do samba que seguiram lado a lado o estilo
musical em suas diversas fases. Tais noções são resgatadas por Pérsio de Moraes, nas crônicas que
escreveu durante dois anos (de setembro de 1954 a setembro de 1956) para a Revista da Música
Popular, periódico que nasce com o intuito de impedir o "fim" da autêntica música popular
brasileira: o samba. Os criadores e colaboradores da revista preocupavam-se com a intensa
influência estrangeira da música no Brasil, o que consideravam verdadeiramente nocivo para nossa
cultura. Era necessário, portanto, criar um meio para combater a situação e ao mesmo tempo
resgatar - para nunca mais ser esquecido - os grandes nomes da "época de ouro" da nossa música.
Período que, para os autores da revista, se constitui no único onde houve produção de música
puramente brasileira. Com enfoque nos elementos ligados ao samba visamos compreender como o
autor das crônicas analisadas enxerga o cenário musical e seus personagens na década de 1950
comparativamente a 1920 e 1930, período de surgimento do samba enquanto música urbana popular
e posterior transição entre as fases pelas quais o samba passou até sua definição como "samba de
verdade".
Palavras-chave: música popular brasileira, crônicas, Revista da Música Popular
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO_________________________________________________________________7
PARTE 1: MÚSICA POPULAR URBANA NO BRASIL
CAPÍTULO 1 - Surgimento______________________________________________________10
CAPÍTULO 2 - Samba__________________________________________________________15
CAPÍTULO 3 - Desde que o samba é samba é assim__________________________________27
PARTE 2: OS RETRATÁVEIS DO SAMBA E DE PÉRSIO DE MORAES
CAPÍTULO 4 - Revista da Música Popular_________________________________________32
CAPÍTULO 5 - Crônica, um gênero textual_________________________________________40
CAPÍTULO 6 - Um tipo da música popular_________________________________________45
CONSIDERAÇÕES FINAIS_____________________________________________________73
FONTES______________________________________________________________________76
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS_____________________________________________77
INTRODUÇÃO
Há elementos intimamente ligados ao imaginário do samba que seguiram lado a lado o estilo
musical em suas diversas fases. Tais noções são resgatadas por Pérsio de Moraes nas crônicas que
escreveu durante dois anos (entre setembro de 1954 a setembro de 1956) para a Revista da Música
Popular, periódico que nasce com o intuito de impedir o "fim" da autêntica música popular
brasileira: o samba. Os criadores e colaboradores da revista preocupavam-se com a intensa
influência estrangeira da música no Brasil, o que consideravam verdadeiramente nocivo para nossa
cultura. Era necessário, portanto, criar um meio para combater a situação e ao mesmo tempo
resgatar - para nunca mais ser esquecido - os grandes nomes da "época de ouro" da nossa música,
período que, para os autores da revista, se constitui no único onde houve produção de música
puramente brasileira.
Com enfoque nos elementos ligados ao samba pretendemos compreender como o autor das
crônicas analisadas enxerga o cenário musical e seus personagens na década de 1950,
comparativamente a 1920 e 1930, período de surgimento do samba enquanto música urbana popular
e posterior transição entre as fases pelas quais o ritmo passou até chegar na sua definição como
"samba de verdade".
A Revista da Música Popular teve 14 edições lançadas durante seus dois anos de existência.
As crônicas de Pérsio de Moraes, na seção intitulada Um tipo da música popular, estão presentes
em 13 números, não aparecendo apenas na oitava edição que foi um lançamento especial, com
modificações na estrutura da revista, homenageando Carmen Miranda. Para este trabalho
escolhemos seis crônicas como objeto de análise presentes na 1ª, 4ª, 5ª, 7ª, 12ª e 13ª edições. Os
critérios para a escolha de nosso objeto se basearam nos conteúdos das crônicas. As escolhidas
versam sobre o mundo do samba e dos sambistas, diferentemente daquelas não selecionadas que por
vezes eram apenas divagações do autor sobre alguma questão pouco relevante para este trabalho.
A primeira parte desta monografia é destinada à música popular urbana no Brasil. Ela
divide-se em três capítulos, o primeiro intitulado surgimento, o segundo samba e o terceiro desde
que o samba é samba é assim. Iniciamos o entendimento do surgimento desse gênero musical em
nosso país a partir dos diferentes ritmos e gêneros musicais que existiam e se aclimataram à nossa
terra. Estes diversos ritmos de dança e de música, que vieram influenciar o samba durante a
primeira metade do século XX, são lembrados e contextualizados.
Com inúmeras variantes para o samba e com a sua transição para a fase dos sambas do
Estácio surge a necessidade, por parte de sambistas e alguns intelectuais, em pensar a definição de
qual seria o "samba de verdade". Baseando-nos na historiografia sobre o assunto buscamos
confrontar autores com diferentes opiniões sobre o tema para podermos analisar o que os levou a
classificar um samba como verdadeiro, autêntico ou não.
A segunda parte da monografia é voltada para a apresentação e análise da fonte. Sua
estrutura é realizada de modo igual à primeira, dividindo-se em três capítulos. O primeiro intitulado
Revista da Música Popular, o segundo crônica: um gênero textual e o terceiro os retratáveis dos
sambas e de Pérsio de Moraes. Começamos esboçando um panorama do contexto político e cultural
no qual o Brasil estava passando no período de existência da revista. Fazemos uma breve retomada
do governo de Getúlio Vargas passando gradativamente para os próximos presidentes que
governaram o país na época até chegarmos a Juscelino Kubitschek que comandaria o Brasil no
último ano de edição do periódico. Retomamos, na seqüência, mostrando os objetivos que
motivaram os criadores da revista a lançá-la no mercado jornalístico.
A publicação contou com grandes nomes da música e da intelectualidade brasileira. Em
linhas gerais seu objetivo era mudar a visão inferiorizada de que a música produzida em território
nacional teria menor qualidade do que a estrangeira - pensamento que várias pessoas mantêm, em
relação, não somente à música, até os dias de hoje - e buscar uma base para redefinir a raiz da
autêntica música brasileira, que teria sua versão mais pura com os sambas da década de 1930.
O quinto capítulo é destinado à crônica como gênero textual. Temos certo ser relevante a
abordagem desse item, pois nossas fontes seguem esse estilo textual, parecendo-nos com isso,
necessário o entendimento de um breve contexto do surgimento do gênero no país, bem como suas
possíveis classificações - pesquisadas tanto por literatos quanto por jornalistas, considerando que tal
gênero é híbrido e transita tranquilamente entre as duas áreas. Nessa parte do trabalho buscaremos
provar ao leitor como a crônica representa o gênero textual mais ético do qual temos conhecimento.
Por fim realizamos a análise de nosso objeto de pesquisa: as seis crônicas selecionadas da
Revista da Música Popular. Como já mencionado anteriormente os critérios para a escolha de
determinadas crônicas em detrimento de outras levou em conta seus conteúdos. De início
explicamos sucintamente a estrutura da revista apresentando um panorama de suas seções - mais
propriamente as que são fixas - para que o leitor que não teve acesso à fonte possa se situar a partir
de nosso relato. Quando iniciamos a descrição acerca da seção das crônicas de Pérsio de Moraes
nos atemos mais a detalhes que possivelmente farão diferença na posterior análise.
Tendo como ponto principal de abordagem os elementos relacionados ao samba, as crônicas
analisadas versam sobre: o malandro e a "instituição malandragem" como no caso dos textos
contidos na 1ª e na 5ª edição da revista; a mudança de espaço físico dos sambas da primeira geração
para os do "pessoal do Estácio" tratando também das reformas urbanas e sanitárias às quais o Rio de
Janeiro das primeiras décadas do século XX atravessou, a exemplo das crônicas inseridas na 4ª e na
12ª publicação; o crescimento da indústria fonográfica e sua interferência no modo de fazer música
brasileira, bem como os mecanismos de compra, de venda e de parcerias nos sambas entre
compositores, cantores e gravadoras presentes no 7ª número da revista; a nostalgia vivida pelos
colaboradores da Revista da Música Popular em relação a "época de ouro" da música brasileira,
tendo como marco de referência a década de 1930, contida na 13ª crônica. As demais crônicas são
por vezes utilizadas brevemente para pincelar um ou outro assunto, porém, não são analisadas com
profundidade por não serem objetos da presente pesquisa.
PARTE 1: MÚSICA POPULAR URBANA NO BRASIL
CAPÍTULO 1 - Surgimento
Para falarmos sobre samba é importante situá-lo num contexto político, social e cultural na
história da música popular urbana no Brasil. De acordo com André Diniz "a primeira menção ao
termo samba conhecida foi feita em 3 de fevereiro de 1838, no jornal satírico pernambucano O
Carapuceiro"1 quando o Frei Miguel do Sacramento Lopes Gama redigiu um texto contra o que, na
época, ficou intitulado samba d’almocreve.2 Porém, antes disso já temos vestígios de vários outros
estilos de músicas e danças que influenciariam, posteriormente o nosso samba. A música popular
urbana brasileira surgiu no início do século XIX, na Bahia e no Rio de Janeiro (nossos principais
centros na época do Brasil colonial) e ela nasceu, segundo Diniz, "da confluência cultural de três
etnias: o índio, o branco e o negro, dos quais herdamos todo o instrumental, o sistema harmônico,
os cantos e as danças." 3
O lundu foi o primeiro gênero musical gravado no Brasil e tem como grande referência o
ator, músico e compositor bahiano Xisto Bahia. O lundu tem origem africana, na região do Congo e
da Angola, e foi trazido ao Brasil através dos escravos bantos no fim do século XVIII. José Maria
Campos Manzo afirma que a "primeira referência escrita sobre esta dança data de 1780 - uma carta
escrita por um antigo governador de Pernambuco ao Governo português, sobre danças de negros
brasileiros denunciadas ao Tribunal de Inquisição. Nela o lundu é descrito como dança de caráter
licencioso e indecente" 4, porém ao chegar ao Brasil, o ritmo sai das senzalas, se mistura com a elite
colonial brasileira, se converte em lundu-canção no século XIX, e passa a ter aceitação das distintas
camadas sociais sendo tocado, inclusive, nos bailes de salão do Império. Sobre a ascensão do ritmo
ela ocorreu através da comicidade de acordo com o relato de Manzo:
[...] cantando sensualmente os amores condenados pela sociedade, o lundu se fixou
definitivamente na exaltação da negra e do mulato. Eram muitas vezes cômicos e sempre risonhos.
Foi esta comicidade e sorriso o disfarce psicossocial que lhe permitiu a difusão nas classes
dominantes. E por isso mesmo - por tratar de temas nem sempre aceitos pela sociedade - é que a
maioria dos lundus não trazia o nome do autor que preferia se esconder no anonimato para não ser
identificado e talvez perseguido pelas autoridades”. 5
DINIZ, André. Almanaque do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p.13. História do Samba - Um breve resumo. Disponível em: http://www.sambacarioca.com.br/historia-do-samba.html.
16/05/2011. 3
DINIZ, André. Op. Cit., p.18. 4
MANZO,
José
Maria
Campos.
Breve
história
da
Música
Brasileira.
Disponível
em:
http://www.collectors.com.br/CS06/cs06_05.shtml. 16/05/2011. 5
Idem. 1
2
De acordo com Carlos Sandroni não é possível falar do lundu sem mencionar também a
modinha, ritmo contemporâneo a este e que por vezes era confundido com ele. Antes de se
popularizar e ser intitulada modinha a palavra (moda) se referia, em Portugal, às canções populares,
fossem elas de qualquer natureza e gênero.6 A modinha, ao chegar à colônia, se tornou "um
elemento de integração nacional, cantada nos quatro cantos do Brasil"7, processo semelhante ao
atravessado pelo lundu. E se não é possível falarmos de lundu sem mencionarmos as modinhas, não
é igualmente possível falarmos delas sem citarmos Domingos Caldas Barbosa, nosso compositor de
maior relevância no aparecimento das modinhas brasileiras. Barbosa foi o primeiro a empregar o
termo modinha para classificar seu estilo de canção. Ele era mulato, filho de português com uma
escrava negra angolana, brasileiro, nascido no Rio de Janeiro e falecido em Lisboa. Conquistou
notoriedade em suas canções que foram reconhecidas pela corte portuguesa, além de fazer muito
sucesso por suas trovas improvisadas cantadas juntamente ao som de sua viola. Apesar de Barbosa
ter sido o compositor mais famoso, o Brasil contou com outros músicos importantes que se fizeram
conhecidos por suas modinhas. Villa-Lobos e Catulo das Paixões Cearenses são dois grandes
exemplos.
Foi com o lundu e a modinha, nossos dois primeiros gêneros musicais urbanos, que a
tradição brasileira das serestas se consagrou. Nessa altura, em fins do Brasil Império e início da
República, os instrumentistas à noite, ao violão, “sozinhos ou em grupo, saíam pelas ruas e
residências entoando músicas românticas”. 8 A relevância desses ritmos permanece viva até os dias
de hoje, consagrada nas obras de importantes compositores como Tom Jobim, Vinicius de Moraes,
Chico Buarque, entre outros.
A década de 1870 é tida como um marco para a história cultural (mais precisamente
musical) de nosso país. É durante essa década que, a partir do “abrasileiramento” das técnicas de
execução de instrumentos europeus trazidos ao Brasil, como a exemplo do piano, flauta, violão e
cavaquinho, vemos o nascimento do choro, "ainda não como gênero musical, mas como forma de
tocar". 9 Segundo Diniz (2006), o choro é carioca, sem dúvidas sobre sua origem - ao contrário do
samba, por exemplo, que suscita discussões sobre o assunto. Foi também por volta dessa época que
se "nacionalizaram os ritmos dançantes importados como a polca, a schottisch, a mazurca, o tango,
a habaneira, a quadrilha, etc.”. 10
6
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001. p.60.
7
DINIZ, André. Op. Cit., p.19. 8
Idem. 9
TINHORÃO, José Ramos. Pequena historia da música popular: da modinha a canção de protesto. Petrópolis: Vozes,
1974. p.95. 10
MANZO, José Maria Campos. Op. Cit.
O choro era tocado pelos chorões, nome que se dava aos músicos de tal gênero musical.
Tinhorão faz uma análise sobre a camada à qual pertenciam a maioria desses instrumentistas, e,
apresentando dados resultantes de suas pesquisas, nos mostra que os grupos de chorões eram
formados majoritariamente por pessoas pertencentes a baixa classe média da sociedade carioca.
Eram em sua maioria, funcionários públicos do baixo escalão. Eles se apresentavam constantemente
e tocavam tanto em saraus da elite como para o povo, solidificando o novo estilo entre as diversas
camadas. Ao chegarem à rádio e, através das bandas de música, o choro se espalhou por todo
território nacional. Pixinguinha - Alfredo da Rocha Viana Filho - um dos nossos maiores e mais
reconhecidos músicos compositores foi, talvez, o maior responsável por consolidar o choro como
gênero musical. 11
O choro tem uma relação muito próxima com o samba, maior que o lundu e a modinha, pois
os compositores de ambos os estilos dialogam com freqüência. Diniz chega a afirmar ser "muito
difícil encontrar um grande compositor de samba que não tenha relação com o choro" e acrescenta
dizendo que "alguns são sambistas-chorões, como Nelson Cavaquinho, outros chorões-sambistas,
caso de Benedito Lacerda, e em menor número estão aqueles que conseguem navegar nos dois
mundos com igual naturalidade" 12 e cita Paulinho da Viola como exemplo.
A partir da segunda metade do século XIX, provindo da Cidade Nova - bairro carioca raiado
por volta de 1860 com o aterro da região pantanosa em torno do canal do mangue - que a primeira
dança popular urbana criada em nosso país nasce. Ela é conhecida como maxixe. Segundo Jota
Efegê, "a primeira menção impressa ao maxixe data de 1880". 13 Ainda baseado no autor temos a
informação de que essa dança foi, desde seu princípio, considerada vulgar e de muito baixa
categoria.
A Cidade Nova não tinha boa reputação, era tida como o bairro dos maus divertimentos e,
além disso, era uma região muito populosa, a mais habitada do Rio de Janeiro no final do século
XIX. O maxixe, por ter surgido lá, não era visto com bons olhos e nem muito bem aceito pela classe
alta da sociedade carioca, por ter um "jeito" de dançar considerado indecente para os modos da
época. Ele era "praticado disfarçadamente na calada da noite e num bairro de má fama". 14
Contudo, houve intercâmbio do ritmo para outras camadas sociais e sua transmissão até a alta
sociedade, se deu, majoritariamente, através dos clubes carnavalescos. Os estudantes ou os homens
sisudos iam para a Cidade Nova obter seu divertimento, aprendiam a nova dança e quando nos
bailes dos clubes carnavalescos ensinavam aos colegas, transmitindo o "novo jeito de dançar"
TINHORÃO, José Ramos. Op. Cit. DINIZ, André. Op. Cit., p.21. 13
EFEGÊ, Jota. Maxixe, a dança excomungada. Rio de Janeiro: Conquista, 1974. p.20.
14
SANDRONI, Carlos. Op. Cit. p.62. 11
12
ampliando o círculo pela qual a nova dança passava a transitar. Porém, até meados da década de
1890 "a dança do maxixe se fazia ao som de músicas que ainda não se chamavam assim: eram
polcas, lundus, tangos (e todas as combinações desses nomes)". 15
Para a classe média e alta aquilo era entendido como um lundu dançado de modo diferente.
"Vemos assim a primeira correlação estabelecer-se entre o maxixe e a dança do lundu". 16 No
entanto, havia diferenças bem claras entre ambas. O lundu, com relação a sua forma musical, era
cantado e não somente instrumentado, e quanto à dança, era feita em roda acompanhada por palmas
e dançava-se apenas um par de cada vez. Já o maxixe era apenas instrumental e todos dançavam ao
mesmo tempo, constituindo o que era chamado de "salão de baile". Segundo Sandroni, o maxixe
"era uma dança moderna, urbana e internacional e o lundu deitava raízes no mundo rural e no
passado colonial brasileiro". 17 Porém, a maior diferença entre as duas danças era a classificação do
lundu como uma dança de par separado e o maxixe de par enlaçado.
Foi na década de 1840 que, segundo Carlos Vega as danças de par enlaçado apareceram no
Brasil.18 A exemplo delas nós temos a valsa, a polca e o schottisch - um ritmo mais vivo que a valsa
e mais lento que a polca. Todas eram dançadas aos pares, em passos e volteios que mudavam
conforme a moda. Vindas de fora do país, foram muito bem aceitas no Brasil, se tornando em pouco
tempo danças e músicas populares. "Como novidades modernas, foram adotadas entusiasticamente
pelas famílias mais ricas das principais cidades do litoral, mas custaram muito a ser aceitas no
interior" 19 onde eram vistas como imorais. O maxixe foi a primeira dança popular de par enlaçado
a despontar no Brasil sendo o "resultado da adoção pelo povo de maneiras de dançar contrárias a
seus antigos hábitos". 20
O maxixe, no início do século XX, assume o posto que o lundu ocupava - o de estilo de
dança e música genuinamente brasileiro. Carlos Sandroni nos traz alguns anúncios da época citados por Jota Efegê - contra a repressão do maxixe, mostrando a postura adotada por alguns
brasileiros em relação a ele. Temos um de 1907 que dizia: "o maxixe banido! Ele, que na música é
o vatapá do cardápio nacional!" 21 e outro que em 1914, em forma de charge consta na legenda: " Sua mãe consente que vossa excelência dance o tango - Deus me livre! Mamãe é muito patriota prefere que eu dance o maxixe...". 22 De mau visto e considerado vulgar, o maxixe no início do
15
Ibidem, p.81. 16
Ibidem, p.64. 17
Idem.
VEIGA, Carlos. Danzas y canciones argentinas. Establecimiento Gráfico de Eugênio Ferrero. Buenos Aires, 1936,
p.32. 19
Ibidem, p.65. 20
Ibidem, p.66. 21
EFEGÊ, Jota. apud SANDRONI, Carlos. Ibidem, p.66. 22
Ibidem, p.67. 18
século XX ganha espaço e se torna um dos elementos culturais mais nacionais dos quais o Brasil
dispõe até então.
Em fins do século XIX, mais precisamente a partir dos anos 1870, com tantos estilos de
música, de dança e de instrumentos possíveis de serem combinados, a precisão terminológica ao
designar que ritmo se tocava ou se dançava nos bailes, era bastante grande. No Brasil "criam-se
novas formas musicais que já não são as danças importadas prontas da Europa, assim como não
correspondem mais aos divertimentos populares herdados da época colonial". 23 Há uma mistura,
onde o piano substitui a viola, o par enlaçado substitui o par separado, a composição dos autores
substitui o refrão anônimo e tradicional, e é "nesse contexto que o problema da terminologia
aparece embaralhado, e ele não se desembaralha até meados dos anos 1920 - quando a misturada se
resolve pela imposição do samba" 24 que identificaria o "tipo característico e principal da dança
brasileira de salão". 25
SANDRONI, Carlos. Op. Cit., p.83. Idem. 25
ALVARENGA, Oneyda. Música popular brasileira. São Paulo: Duas Cidades, 1982. p.344. 23
24
CAPÍTULO 2 - Samba
Carlos Sandroni fez um breve estudo histórico-etimológico da palavra samba. Ele constatou
que "a palavra 'samba' é encontrada em diferentes pontos das Américas, quase sempre em ligação
com o universo dos negros". 26 Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira a palavra "samba"
vem derivada de semba que significa "umbigada". Como nos explica Sandroni, umbigada é "o gesto
coreográfico que consiste no choque dos ventres, ou umbigos, e que tem uma função precisa no
desenrolar de certas danças". 27 Até o início do século XX a palavra "samba" aparece sempre com
um sentido mais genérico servindo para designar não uma dança em si, mas divertimentos
populares ou festejos negros de maneira geral. Por muito tempo a palavra foi associada a tradições
da Bahia, dos negros e da roça. Essas associações traziam "conseqüências óbvias quanto ao valor
que se lhes atribuía" 28 fazendo com que o samba fosse considerado ainda por longo tempo como
indigno e baixo. A partir da década de 1870 a palavra "samba" tem seus primeiros registros no Rio
de Janeiro. Com isso, "as fronteiras que se mostravam tão nítidas até aqui começam a se diluir e
assim, pouco a pouco, o samba já não será mais só da Bahia, nem só da roça, nem só dos negros". 29
Sandroni destaca que a partir da origem da palavra "samba" se constituem duas vertentes.
Uma folclórica e a outra popular. Nesta primeira, o samba substitui o batuque e na segunda o
maxixe e o tango. "Essas duas vertentes ainda hoje estão presentes, como se vê, por exemplo, nos
verbetes "Samba" da Enciclopédia da Música Brasileira (EMB) e do Dicionário do Folclore
Brasileiro (DFB), divididos ambos em duas partes correspondentes". 30 Porém, foi a vertente do
samba popular que "beneficiou-se de toda carga positiva atribuída por boa parte dos intelectuais
brasileiros desde os anos 1930 ao folclore". 31 Ou seja, atualmente quando pensamos em samba
somos automaticamente remetidos ao samba popular, samba urbano (para alguns: urbano-carioca),
e é sobre ele que este capítulo se a presta estudar.
O período que abrange os anos 1989 a 1930, conhecido como República Velha, primeira
fase após a Proclamação da República do Brasil, nos interessa especialmente para tratarmos do
samba propriamente dito. Nos primeiros anos da República Velha, o Rio de Janeiro era a maior
cidade do país, com mais de 500 mil habitantes. Era também a capital política, administrativa e
cultural do Brasil. Essa última é foco de nossa atenção visto que pretendemos compreender o
surgimento do ritmo de música popular brasileira por excelência que teve como berço a cidade
26
SANDRONI, Carlos. Op. Cit., p.84. 27
Idem. 28
Ibidem, p.89. 29
Ibidem, p.90. 30
Ibidem, p.97. 31
Idem. maravilhosa. Mas não somente o samba teve como pátria o Rio de Janeiro. No campo do teatro,
dança e arte a capital federal era também a que exercia maior influência e importância.
Com a Proclamação da República a cidade do Rio de Janeiro sofre fortes alterações em suas
diversas estruturas. "Mas as alterações quantitativas são inescapáveis. A primeira delas foi de
natureza demográfica. Alterou-se a população da capital em termos de números de habitantes, de
composição étnica, de estrutura ocupacional". 32 Com a abolição da escravidão os recém libertos
foram lançados no mercado de trabalho, o que além de aumentar o desemprego da época
desencadeou um êxodo para a cidade, oriundo das fazendas de café do interior do estado. Carvalho
nos mostra que, entre 1870 e 1890, a população do Rio de Janeiro dobrou em números de
habitantes. Eram 266 mil no primeiro ano para em 1890 serem 522 mil. E de 1890 até 1900 foram
mais 200 mil pessoas que a cidade teve que receber - sendo a maioria destes, imigrantes. "Esse
enorme influxo populacional fazia com que em 1890, 28,7% da população fosse nascida no exterior
e 26% dela proviesse de outras regiões do Brasil. Assim, apenas 45% da população era nascida na
cidade".
33
Além disso, havia um nítido desequilíbrio entre os sexos com uma composição
masculina que somava o dobro da feminina.
Após duas grandes guerras - A Revolução Federalista (1893) e Guerra dos Canudos (189697) o Brasil, e o Rio de Janeiro ingressaram no século XX da forma mais turbulenta possível.
Manuel Ferraz de Campo Salles - quem assumia a presidência do período, termina seu mandato em
1902 quando Francisco de Paula Rodrigues Alves passa a assumir o comando do país, e Francisco
Pereira Passos o comando da cidade do Rio de Janeiro no cargo de prefeito do distrito federal,
transformando para sempre a história da então capital federal. À luz da belle époque - que se
caracterizava "pela crença desenfreada nas virtudes e benesses da vida burguesa" 34 européia,
sobretudo francesa - o Brasil foi fortemente influenciado pelas ideologias estrangeiras consolidando
a idéia de modernizar, civilizar e embelezar o Rio de Janeiro.
Durante o governo de Pereira Passos as mais importantes reformas urbano-sanitárias foram
executadas. Em menos de três anos, entre 1903 a 1906, áreas inteiras da cidade foram postas abaixo
desalojando milhares de pessoas que habitavam cortiços e casas de cômodos superlotadas. Como
não havia um projeto de habitação para esses desalojados eles começam a povoar os morros e
regiões mais afastadas do centro da cidade dando início as primeiras favelas cariocas. Sob o
pretexto de higienizar a cidade e erradicar doenças epidêmicas o governo lança campanha de
vacinação obrigatória para todas as pessoas, o que gera revolta na população de classe baixa que já
32
CARVALHO, José Murilo de: Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia
da Letras, 1987, p.16.
33
Ibidem, p.17. 34
DINIZ, André. Op. Cit., p.41. havia sido expulsa de suas casas, sem receber explicação alguma e ainda forçada a ser vacinada por
pessoas as quais eles nem sequer confiavam.
Além da maioria da população de classe baixa ficar sem casa crescia, cada vez mais, o
contingente de população que não tinha renda ou com uma remuneração muito pequena. Aqueles
que tinham alguma renda exerciam as mais diversas profissões e em 1906 constituíam um
percentual de 200 mil pessoas vivendo nessas condições. A pouca ou nenhuma remuneração fazia
com que muitoas dessas pessoas ingressassem em atividades ilegais. Alguns "viviam nas tênues
fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade, às vezes participando simultaneamente de ambas". 35 A
maioria estava de alguma maneira ligada a contravenções do tipo desordem, vadiagem, embriaguez
e jogo, sendo essas as principais causas de detenções entre o final do século XIX e início do XX.
Os imigrantes formavam grupos entre si. As afinidades e a necessidade em preservar sua
cultura os unia com laços muito fortes. Um desses grupos conhecido como a "comunidade baiana",
ficava localizado no bairro da Saúde, no Centro do Rio de Janeiro, e se tornou muito popular e bem
quisto pelo restante dos habitantes. A solidariedade dos laços existentes entre eles era "em grande
parte assegurada pela figura das "tias", isto é, de baianas mais velhas que exerciam uma liderança
na organização da família, da religião e do lazer". 36 Várias "tias baianas" ficaram famosas e
reconhecidas e algumas até mesmo entraram para a história do cenário musical carioca do início do
século XX. Tia Amélia, mãe de Ernesto dos Santos, mais conhecido como "Donga" e tia Perciliana,
mãe de João Machado Guedes, ou "João da Baiana" são duas delas, porém a que levou os maiores
louros da história e que é até hoje a mais lembrada foi a tia Ciata (Hilária Batista de Almeida).
Um dos motivos principais pelos quais ela passou a ser a mais famosa dentre as "tias" foi
porque a primeira música a ser considerada oficialmente samba, intitulada "Pelo Telefone”, fora
escrita em grupo em uma das várias reuniões em sua casa. Apesar de Donga ter ficado com o mérito
da composição, sabe-se que a letra foi criada em parceria com muitos músicos da época. A casa da
Tia Ciata localizada na Rua Visconde de Itaúna, 117, na antiga Praça Onze "assumiu assim, uma
dimensão quase mítica como "lugar de origem" do samba carioca". 37
Negra, nascida em Salvador, em 1854, ela chegou ao Rio de Janeiro em 1876 onde se casou
com João Batista da Silva, também baiano e negro, que trabalhava no gabinete do chefe da polícia
da capital federal. A "respeitabilidade" profissional do marido deve ter sido um dos fatores que
fizeram da casa da Tia Ciata um ponto de referência do universo negro carioca no início do século
XX. Mas deve-se também ao trabalho dela própria em áreas que "tanto reforçavam uma certa
CARVALHO, José Murilo de: Op. Cit., p.17. SANDRONI, Carlos. Op. Cit., p.100. 37
Ibidem, p.101. 35
36
identidade afro-baiana como teciam sutis relações com o mundo da elite carioca". 38 Esses trabalhos
eram: a fabricação de doces e a confecção de trajes baianos - muito consumidos pela elite branca
carioca - e a função de principal auxiliar do pai-de-santo no João Alabá, um dos mais famosos
terreiros de candomblé do Rio.
As festas organizadas em sua casa eram também muito famosas. Elas chegavam a durar dias
e dentro da residência a festa era disposta da seguinte maneira: as batucadas eram tocadas e
dançadas no terreiro na parte de fora da casa, os sambas de partido-alto na parte íntima, nos quartos
e na sala de jantar, e o choro na sala de visita, lugar de maior prestígio do domicílio. "Nessas festas
se dançava e se compunham tipos de modinhas que dariam origem mais tarde ao samba que
conhecemos hoje". 39 Diniz sintetiza a importância das tias baianas, suas casas e comunidade
afirmando que "o samba urbano cresce no asfalto carioca com os genes da baianidade". 40
"Essas "tias" eram famosas principalmente por incentivarem rodas de samba. Muitas houve
que acolheram, em sua casa, sambistas que apareciam menos para as festas do que para mostrar a
última composição e melhorá-la junto aos amigos". 41 Ainda sobre as festas Queiroz traz à tona a
repressão pela qual elas estavam sujeitas. Através de vários testemunhos é possível constatar que
havia freqüente "intervenção de forças policiais, que apareciam em tais festas, impedindo sua
continuação" 42 e até mesmo fora das residências, em ruas ou esquinas onde se agrupassem negros a
polícia constantemente se fazia presente.
Sobre o tema da "repressão ao samba carioca em sua fase embrionária" 43 vários são os
textos e depoimentos que o abordam, e na maioria das vezes os autores adotam uma visão
compatível à de Queiroz, afirmando que, de modo geral, toda e qualquer reunião negra, fosse ela
dentro ou fora de residências domésticas, era motivo de intervenção policial. Porém, há autores que
discordam dessa perspectiva e baseados em fontes e novos argumentos para teorias já existentes
eles buscam sustentar seu ponto de vista. Dois exemplos de autores divergentes à opinião do senso
comum da historiografia tradicional do samba que afirma haver até a década de 1930 uma
perseguição oficial ao samba são: Hermano Vianna e Carlos Sandroni. Este citando aquele diz que
"Vianna, no entanto, mostrou que existiu desde cedo, ao lado da repressão interesse e apoio à
música popular por parte de membros da elite" 44 e continua afirmando que "o samba, e antes dele,
a cultura afro-brasileira não foram apenas objeto de perseguição, mas desde o início, também
38
Ibidem, p.102. 39
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de: Carnaval brasileiro – o vivido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1992.
p.27. 40
DINIZ, André. Op. Cit., p.26. 41
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de: Op. Cit., p.28. 42
Ibidem, p.29. 43
SANDRONI, Carlos. Op. Cit., p.111. 44
Idem. parceiros de um diálogo cultural". 45 Para cada um que perseguia havia outro que dava cobertura e
para dar veracidade a esta conclusão Sandroni traz o depoimento de Juvenal Lopes onde ele relata o
seguinte: "nós éramos muito perseguidos pela polícia. Chegavam no Estácio, a gente corria pra
Mangueira, porque lá havia o Nascimento, delegado que dava cobertura e a gente sambava mais à
vontade". 46 Como podemos perceber não eram todos os brancos, nem toda polícia, e muito menos
toda elite que reprimia o samba. Muitos deles foram imprescindíveis na expansão do novo ritmo
pelos quatro cantos da cidade e depois do país, além de vários terem sido exímios compositores de
samba posteriormente.
Voltando a casa da tia Ciata, foi naquele cenário o berço do que é hoje reconhecido como o
primeiro samba oficial - como já mencionado acima. Em 1916, Donga "levou ao registro de autores
da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro uma composição cuja indicação de gênero era "samba
carnavalesco"" 47 sob a inscrição de número 3.295 intitulada Roceiro que foi o grande sucesso do
carnaval seguinte, em 1917, com o nome de "Pelo Telefone" tornando-se o primeiro samba a se
popularizar. O fato de Donga ter registrado a composição evidencia que "o novo gênero de música
urbana não nascia mais anonimamente, mas entre pessoas que tinham consciência de constituir a
sua criação uma coisa registrável". 48A composição nasce decorrente da vontade e necessidade de
novas músicas para embalar o carnaval carioca.
A respeito do carnaval, e principalmente dos carnavais cariocas faremos uma breve
retomada da história, com o intuito de compreender essa "necessidade" de novas músicas para os
desfiles. O autor José Carlos Sebe comenta sobre algumas celebrações mitológicas que
possivelmente foram as primeiras formas relacionadas ao que hoje conhecemos como carnaval.49 O
autor dá seqüência abordando a relação do carnaval com o cristianismo e pensando nas raízes do
carnaval que, no caso do Brasil, acredita-se terem sido a mistura de influências carnavalescas ou
folclóricas européias, indígenas, africanas, orientais e urbano-cariocas. Segundo Sebe:
[...] cada uma destas variações comporta um número expressivo de alternativas, fato que ainda
mais dificulta qualquer tentativa de precisão. Portanto, mais ou menos implicitamente fica
estabelecido que a mistura de todas estas cinco possibilidades também pode caracterizar o carnaval
brasileiro, numa sexta apreciável versão. 50
Entretanto, ele admite que o estudo sobre as origens do carnaval, incluindo a análise da
etimologia da palavra, e o esclarecimento sobre o aparecimento e a estruturação da festa estão longe
45
Idem. 46
Idem. 47
Ibidem, p.118. TINHORÃO, José Ramos. Op. Cit., p.119. SEBE, José Carlos. Carnaval, carnavais. São Paulo: Ática, 1986. p.33.
50
Idem. 48
49
de serem satisfatórios, havendo muito ainda a ser pesquisado. Sebe afirma que "os autores
invariavelmente têm repetido: as mesmas "tradições" que, além de simplificadoras, trazem quase
sempre o carnaval carioca como gerador, responsável pela padronização da festa brasileira". 51
Considerando tal constatação esclarecemos aqui que o intuito deste trabalho não é entrar em uma
pesquisa sobre o carnaval carioca, mas sim buscarmos no que já se pesquisou sobre ele algumas
bases para compreendermos o nascimento e transformação do samba - este sim, objeto de análise no
presente projeto.
Como há divergência quanto ao período preciso que marca o surgimento do carnaval no
Brasil, convencionou-se a data de 1853 "como uma espécie de momento de definição nacional da
festa momística", 52 o que Sebe intitulou "certidão de batismo" do carnaval e que foi marcada pela
"portaria baixada pelo chefe de polícia do Rio de Janeiro proibindo o entrudo pelas suas
repercussões agressivas". 53 O entrudo se celebrava durante os três dias que antecedem a quaresma,
sendo eles o domingo, a segunda-feira e a terça-feira. A celebração era mais uma brincadeira a céu
aberto que uma festa em si, e consistia em os participantes atirarem ovos, jatos de água ou de
perfume, frutas, objetos e folhas uns nos outros ou pelas janelas de suas casas. Sebe explica que "a
cada 'ataque' deveria corresponder uma resposta, chegando sempre o 'jogo' a conseqüências sérias".
54
O caráter violento, agressivo e perigoso da celebração foi o principal motivo para que entrudo
fosse muito mal visto por aqueles que não o praticavam e para que ele fosse proibido oficialmente.
Segundo o autor, os historiadores e pesquisadores do carnaval brasileiro dividem-se entre
três teses plausíveis para explicar o nascimento do carnaval carioca. Para alguns ele é originado do
entrudo transformado, para uma segunda parcela é a fusão de duas festas distintas - as do salão e as
da rua - que "conviveram juntas durante certo tempo e que depois foram organizadas em termos de
espaço e variações, gerando, finalmente, uma celebração multifacetada" 55 e para o restante, o
carnaval brasileiro, mais especificamente carioca, é uma celebração nova, autenticamente carioca,
nascido da evolução dos ranchos em termos de ritmo - com a adoção do samba - e em termos de
espaço físico - o centro urbano da cidade. Como as duas últimas versões são as mais aceitas pela
maioria dos pesquisadores no assunto vamos nos fixar nelas.
No Rio de Janeiro da República Velha, os salões eram, juntamente com o teatro, os lugares
preferidos da elite carioca. Nos salões aconteciam os bailes - que diferente das festas populares nas
ruas - eram lugares seguros, organizados e atendiam as exigências das mentalidades da época que
51
Ibidem, p.55. 52
Idem. 53
Idem. 54
Ibidem, p.59. 55
Ibidem, p.55. seguiam as influências de um padrão europeu. Como bem ressalta Sebe, além de tudo isso eram
lugares onde se fazia "à distinção sócio-racial, que segregava a festa dos pobres aos morros e
favelas". 56 Havia na época dois termos para diferenciar os dois distintos carnavais - dos ricos e dos
pobres. O chamado "grande carnaval" se referia aos salões e clubes onde as sociedades importantes
estavam organizadas e para citarmos alguns exemplos tínhamos os "Democráticos" e os "Tenentes
do Diabo". Já o "pequeno carnaval" era usado para classificar os grupos de foliões populares e os
ternos - que foram as primeiras agremiações do tipo bloco - se enquadravam neste conceito. Alguns
dos primeiros ternos foram os sujos e os zé-pereiras.
Talvez decorrente da má fama e herança deixada pelo entrudo "a "tutela" policial sempre
esteve muito colada à organização do carnaval moderno, não apenas no Rio de Janeiro, mas no
Brasil todo". 57 A polícia era a responsável por dividir as áreas onde ocorreriam o grande e o
pequeno carnaval, porém o grande ocupou o espaço público por pouquíssimo tempo, passando
rapidamente a ser celebrado somente dentro dos espaços fechados e particulares dos clubes e salões.
Em 1907 um rancho especialmente importante foi fundado - Ameno Resedá. Sebe o
considera um divisor de águas na história do carnaval brasileiro, pois ele simboliza a vitória do
carnaval popular carioca sobre o europeizado, porém, sem apagar toda influência que este exercera
e continuaria exercendo, posteriormente, nos próximos carnavais que passarão a se organizar como
escolas de samba.
Os ranchos de reis, segundo Queiroz “foram as primeiras formas de desfile de reunião do
grupo negro na cidade do Rio de Janeiro" 58 e tinham como objetivo remontar as festividades da
terra natal, homenagear amigos e parentes e celebrar alguma data especial como, por exemplo, o dia
dos Três Reis Magos, Nossa Senhora do Rosário ou São Benedito. Não havia um trajeto prédeterminado para ser seguido e nem mesmo um horário ou um dia para acontecer. Às vezes,
decorrente de uma conversa em um bar, resolvia-se formar um rancho e sair para o desfile, sem que
nada fosse previamente preparado. O desfile consistia sempre em sair de um determinado local e
chegar até outro que era "geralmente uma casa, onde seus figurantes eram esperados com festas,
com farta distribuição de comidas e doces para esse fim", 59 mas isso só acontecia quando este era
combinado com antecedência. As casas que se localizavam na rota onde o cortejo passava eram
escolhidas propositalmente para homenagear e saudar seus moradores, que ficavam em suas janelas
ou na entrada da casa assistindo e acenando para o desfile, e se sentiam muito lisonjeados por isso.
56
Ibidem, p.61. 57
Ibidem, p.62. 58
59
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de: Op. Cit., p.29. Idem. Os ranchos, que evoluíram dos blocos, deram as bases para as primeiras escolas de samba.
Existem, contudo, algumas diferenças entre os ranchos e as escolas, porém a maior delas reside no
quesito composição musical, e aqui voltamos a lembrar do nosso primeiro samba oficial "Pelo
Telefone". No primeiro o ritmo musical ao qual eram embalados os desfiles era a marcha-rancho e
os instrumentos utilizados eram os de sopro e corda. Já os desfiles das escolas ocorriam ao som do
samba-enredo e era proibida a utilização de instrumentos de sopro e corda, ao invés disso eram
serem utilizados os de percussão. Porém, ambos os estilos musicais tem origem rítmica no jongo.
Pouco a pouco os ranchos foram "sugados pelas escolas de samba com tal apetite que
perderiam todo seu colorido dos velhos tempos do Ameno Resedá". 60 Quanto mais as escolas de
samba cresciam, mais os ranchos declinavam, chegando, a partir dos anos de 1960 "as escolas de
samba aparecendo como principal atração do carnaval carioca e os ranchos fazendo um desfile que,
embora lindo e digno de todos os aplausos, eram marcado pela tristeza e pela nostalgia". 61 Mas
antes disso acontecer ambos conviveram por algum tempo tendo sua igual importância e
respeitabilidade frente a sociedade.
Segundo Queiroz "existem inúmeras estórias sobre a origem das escolas de samba. Vários
sambistas têm grande preocupação em serem reconhecidos como os que deram o nome e que
fundaram esta ou aquela escola". 62 Mas se não sabemos exatamente quem fundou a primeira escola
de samba - apesar de Ismael Silva reivindicar fervorosamente este mérito alegando ter sido ele a dar
o nome à escola - sabemos que ela nasceu no bairro do Estácio de Sá e foi a evolução do bloco
carnavalesco Deixa Falar. O Deixa Falar nasce em 1917 com a denominação de "rancho
carnavalesco", porém se diferenciava dos demais ranchos da época porque "não tinha o cunho
"familiar e social" do Ameno, pois foi criado por negros e mulatos representantes da massa de
subempregados e desempregados que passariam à história como os bambas do bairro carioca do
Estácio". 63 O termo "escola" passou a ser usado, a priori, simplesmente porque as reuniões do
bloco aconteciam dentro de uma escola. Apenas anos mais tarde, quando outros blocos
carnavalescos trocam sua titulação de bloco por escola é que essa terminologia se enraíza. Segundo
Lopes:
O traço mais marcante, entretanto, de toda essa fase inicial das escolas era a solidariedade, o
sentido comunitário do grupo que, sem influências externas diretas - a não ser a do seu desejo de
ascensão pela imitação dos valores já aceitos - criava ele mesmo as músicas, cantava, fabricava e
tocava os instrumentos, costurava e bordava as fantasias, e confeccionava as pinturas e esculturas
apresentadas no carnaval - autêntica manifestação de arte popular. 64
CABRAL, Sérgio. As escolas de samba, o quê, quem, como, quando e por quê. Rio de Janeiro: Fontana, 1974. p.15. Idem. 62
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de: Op. Cit., p.32. 63
LOPES, Nei. O samba, na realidade...A utopia da ascensão social do sambista. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. p.24. 64
Ibidem, p.33. 60
61
Cavalcanti acrescenta ressaltando que:
[...] ao longo do século XX, o desfile propiciou à cidade um canal de expressão e mediação de
processos sociológicos importantes tais como a expansão da cidade rumo aos subúrbios e à
periferia, a expansão das camadas médias e populares e sua interação. 65
No final da década de 1920, quando os primeiros desfiles, das primeiras escolas de samba
saíam pelas ruas do Rio de Janeiro, não havia qualquer tipo de regras ou regulamento, muito menos
patrocínio financeiro para manutenção da escola. "A sociedade brasileira dominante não existia
enquanto identidade nacional e rendia homenagens diretas à sociedade e cultura européias" 66 não
dando a menor importância às manifestações genuinamente brasileiras que ocorriam debaixo de seu
nariz, pelo contrário, exercendo até mesmo repressão contra elas. Porém, à medida que o controle
do estado e da elite - de modo indireto - crescia, diminuía gradativamente a repressão. "No segundo
desfile, na década de 30, organizado pelo Centro de Chronistas Carnavalescos, já era exigido um
requerimento a guisa de inscrição para que as escolas desfilassem. Os prêmios continuavam a ser
fornecidos pelos jornais". 67 A imprensa era, na época, a maior incentivadora dos desfiles, mas em
pouco tempo o estado começa a perceber a organização das escolas e dos ranchos, e passa a
interferir mais incisivamente sobre eles. Em 1935, as escolas já começaram a desfilar segundo o
primeiro regulamento que disciplina os desfiles: o GRES (Grêmio Recreativo Escola de Samba).
Eram oito regras a serem obedecidas e quatro quesitos a serem seguidos: bandeira, bateria,
harmonia e originalidade. Nesse ano o carnaval carioca já contava com vinte cinco escolas de
samba desfilando. Por, aproximadamente, duas décadas "as escolas de samba do Rio de Janeiro
permanecem sem modificações essenciais no tocante à forma de seus desfiles" 68 e após esse
período muita coisa acontece: o estado começa a determinar uma linha temática para nortear os
desfiles e as letras dos sambas, a população branca dominante entra com relativo peso no universo
dos sambistas e do carnaval como um todo, o jogo do bicho começa a patrocinar as escolas e a
enriquecê-las, dando início a ostentação do luxo nas fantasias, decoração e nos carros alegóricos.
Esse assunto ainda renderia muitas explicações, porém ele não é nosso objeto de pesquisa.
Voltemos a focar no samba e em suas modificações.
O estilo "amaxixado" dos primeiros sambas é explicado levando-se o que ocorria após serem
escritas as letras. De acordo com Tinhorão:
65
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Os Sentidos do Espetáculo. In: Revista de Antropologia, São
Paulo: USP, 2002. V. 45 nº. 1. p. 48.
66
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de: Op. Cit., p.35. 67
Idem. 68
Ibidem, p.39. [...] os sambas eram logo corrompido pelos vícios de execução dos integrantes de orquestras das
gravadoras e do teatro musicado, àquela época impregnados do ritmo do maxixe, e começando a
deixar influenciar-se pelos novo gêneros americanos do one step, do rag-time, do black bottom,
etc. 69
A sonoridade dessas músicas não agradava muito à elite carioca que estava acostumada com
melodias européias como as valsas e polcas. Em decorrência disso surge contemporaneamente aos
primeiros sambas as marchinhas carnavalescas - como gênero de musical independente70- que pela
sua "extrema esquematização rítmica permanece praticamente inalterada até hoje". 71
O samba e a marcha, destinados até 1930 a serem gêneros de músicas carnavalescas,
acompanharam, segundo Tinhorão:
[...] passo a passo, a evolução social das classes a que se dirigiam: o samba vacilante de Donga,
Sinhô e Cainha, da década de 20, ganhou no Estácio o ritmo batucado com a geração de
compositores da camada mais baixa (Ismael Silva, Nilton Bastos ...) , enquanto a marcha
continuaria praticamente inalterada, por nunca ter atingido realmente a massa, única capaz de
acrescentar-lhe alguma novidade". 72
Essa evolução ou transformação pela qual o samba passa foi divido em fases. A primeira
abrange o período entre 1917 a 1927 e é caracterizada pelas gravações mecânicas e por influência
dos sambas de partido alto de origens rurais do Recôncavo baiano. De 1927 para frente, as
gravações passam a ser através de sistema elétrico e uma nova geração de sambistas, advindos de
uma camada baixa da população carioca, herdeiros de uma tradição de sambas de roda, dá início ao
que passa a ser conhecido como samba batucado e marchado do Estácio. Esse novo jeito de se fazer
samba "logo se difundiu, influenciando os compositores de outras áreas da cidade, generalizando-se
e tornando-se um sinônimo de samba moderno, de samba tal qual o reconhecemos hoje em dia". 73
Sobre o bairro do Estácio onde nasce a nova geração do samba, Tinhorão nos explica que
ele se encontra como:
[...] o limite da expansão do velho centro da cidade na direção da zona norte do Rio, tendo surgido
na segunda metade do século XIX com a ocupação de aterros para os lados do Canal do Mangue e
da urbanização de antigas chácaras vizinhas do Caminho de Mata-Porcos (hoje Rua Frei Caneca),
TINHORÃO, José Ramos. Op. Cit., p.120. Antes de terem essa consciência de gênero musical independente "o ritmo da marcha já tinha aparecido, aqui e ali,
desde o fim do século passado, em algumas músicas rotuladas de tango, canção carnavalesca, fadinha, etc.".
(TINHORÃO, José Ramos. Op. Cit., p. 121). 71
TINHORÃO, José Ramos. Op. Cit., p.121. 72
Ibidem, p.125. 73
SANDRONI, Carlos. Op. Cit., p.131. 69
70
foi abrigo desde o início de uma população proletária e de pequeno comércio e atividades
artesanais. 74
Como era muito próximo da área de prostituição do Mangue, o bairro do Estácio abrigava sem querer - todo tipo de "bam-bam-bam" ou como a imprensa costumava chamar: "malandro". As
pessoas que eram rotuladas assim eram geralmente ligadas a algum tipo de atividade ilegal, fosse a
contravenção, a prostituição, o carteado, etc.. Essa realidade era "produto da estrutura econômica
incapaz de absorver toda a mão-de-obra que nessa área urbana crítica se acumulava". 75
O Estácio ficou famoso por ter sido o local da fundação da primeira escola de samba (Deixa
Falar - já mencionada anteriormente) e por ter sido o maior reduto de compositores a fazer sambas juntamente com músicos de outras escolas nasceram na seqüência76 - destinados aos desfiles de
carnaval que exigiam um andamento mais solto e um som de demarcação que empurrasse os
passistas para frente. O novo samba se afastaria definitivamente do antigo modelo do partido alto
dos baianos. Na seqüência, com o "aparecimento da geração de compositores profissionais dos
meios do rádio e das fábricas de discos, o samba nascido carnavalesco foi adaptado pela
modificação do seu andamento para o meio do ano sob o nome de samba-canção". 77
O samba-canção era tocado por orquestras de danças de salão e se proliferou entre a camada
média da sociedade carioca. Já os compositores das camadas populares modificavam seus sambas
até o surgimento do samba-de-breque, uma versão mais sincopada do samba da década de 1930.
Outras variações foram constatadas como o samba-choro e o samba-enredo. O samba-choro ou
choro-canção era o feito de musicalizar as composições de choro, que tinham como característica
ser apenas instrumentais.
De acordo com Tinhorão, sobre o samba-enredo:
[...] criado pelos compositores das escolas de samba para contar em versos a história escolhida
como tema do desfile carnavalesco, surgiu a partir da década de 1940, como contrapartida musical
da progressiva estruturação das escolas no sentido de encenar dramaticamente seus enredos, sob a
forma de uma ópera-balé ambulante. 78
Uma variação do samba-enredo que vale a pena ser abordada - porém, apenas a título de
curiosidade - são os sambas-exaltação. Segundo Ericeira há uma deficiência ou mesmo inexistência
no estudo dos sambas-exaltação como subgênero do samba. "As pesquisas de caráter acadêmico
74
TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998. p.291. Idem. 76
Como por exemplo a Estação Primeira de Mangueira, Osvaldo Cruz, Vizinha Faladeira, entre outras.
77
Idem. Pequena historia da música popular: da modinha a canção de protesto. Petrópolis: Vozes, 1974. p.125. 78
Ibidem, p.171. 75
fazem, quando o fazem, referências mínimas aos sambas-exaltação". 79 De modo contrário aos
sambas-enredo, destinados aos desfiles os sambas-exaltação - e podemos citar também os sambas
de quadra e os sambas de terreiro - "são canções executadas primordialmente, mas não
exclusivamente, nas festas de aniversário de algum componente da agremiação, nas rodas de samba
e nas feijoadas organizadas nas quadras". 80 O autor afirma não haver definição clara entre os
sambas de quadra, de terreiro ou exaltação e, portanto, ele definiu os sambas-exaltação como sendo
"aquela modalidade de samba cujas letras fazem menções diretas ao universo social e afetivo das
agremiações carnavalescas".
81
Em linhas gerais, o intuito consciente dessas músicas seria exaltar e
enaltecer os símbolos, a história, e os sambistas tidos como imortais para cada escola de samba.
79
ERICEIRA, Ronald Clay dos Santos: Ôôô, a Majestade do Samba chegou: os sambas-exaltação da Portela In:
CAVALCANTI, Maria Laura; GONÇALVES, Renata. Carnaval em múltiplos planos. Rio de Janeiro: Faperj;
Aeroplano, 2009. p. 255. 80
Ibidem, p.256. 81
Ibidem, p.257. CAPÍTULO 3 - Desde que o samba é samba é assim
A pergunta feita no início do trabalho volta à tona para tentar ser solucionada nessa etapa da
pesquisa. O autor Carlos Sandroni tem um subcapítulo em seu livro Feitiço Docente intitulado
"Desde quando o samba é samba?" e é, em grande medida, nele que irei me apoiar para sanar meus
questionamentos e elucidar o leitor desta monografia. A primeira idéia que devemos ter em mente é
que apesar de já se falar em samba "como designação de um gênero de música popular desde 1917,
a opinião dominante na crítica brasileira pretende que tal designação é imprópria até o final dos
anos 20: que só a partir de então o samba é samba".82 Sandroni utiliza-se de dois autores cujas
obras, para o presente trabalho, se apresentam como fontes documentais devido a época na qual
foram escritas, para pontuar divergências quanto as questões que definiriam quando o samba é
samba, e qual samba é que é samba de verdade, se é que isso existe. O primeiro livro chama-se Na
roda do Samba, de Francisco Guimarães "Vagalume" e o segundo Samba de Orestes Barbosa,
ambos escritos em 1933.
Sobre seus autores, Vagalume nasceu em 1870 e ficou conhecido por seu trabalho como
cronista do carnaval, mas exerceu também carreira como repórter da polícia. Ele mantinha relações
pessoais de amizade com muitos compositores da primeira geração de sambistas como Sinhô e
Donga. Barbosa, nascido em 1893, tinha notoriedade - maior que a de Vagalume - no meio
jornalístico da época. Escrevia críticas sobre acontecimentos e autoridades do período e, antes de
Samba, já havia publicado outros livros. Posteriormente se tornou também compositor de samba em
parceria com grandes nomes do cenário musical da época, como Sílvio Caldas e Noel Rosa. "As
diferenças de geração e de trajetória entre Vagalume e Barbosa se manifestam, nos livros
respectivos, por um apoio implícito ao estilo antigo, no caso do primeiro, e ao novo, no caso do
segundo. Para Vagalume, um representa a "tradição", outro a "comercialização"", 83 opinião não
compatível com a de Barbosa que vê no samba urbano da segunda geração o samba oficial, o samba
legitimamente carioca. Segundo o autor:
Embora nenhum dos dois livros em questão fale explicitamente de uma diferença entre dois tipos
de samba, ou entre samba e maxixe, fortes contrastes se manifestam neles entre duas maneiras de
encarar o assunto (um valorizando a tradição, outro a modernidade), dois grupos de compositores a
que se dá pesos diferentes (a turma da Tia Ciata e a do Estácio), duas reivindicações de origem (a
Bahia e o Rio), dois personagens-símbolo (o bamba e o malandro). 84
Os autores mais contemporâneos utilizam-se de outros argumentos para diferenciar as fases
82
SANDRONI, Carlos. Op. Cit., p.134. 83
Ibidem, p.135. 84
Ibidem, p.137. pelas quais o samba passou e compreender se em alguma delas há a criação de um samba que seja
mais legítimo que o outro. Cabral, por exemplo, recorre à explicação dada por Ismael Silva que lhe
concedeu uma entrevista onde explicava que na época em que começou a tocar o estilo de samba,
não permitia aos passistas desfilarem andando e era necessário que os integrantes do bloco
cantassem a música marchando, sem que tivessem vontade de dançar ao som da melodia - como
ocorria - motor principal para o surgimento do samba do Estácio.85 Sandroni, por sua vez, questiona
esse argumento alegando ser ele "inconsistente, pois não há nenhuma razão imanente que impeça a
utilização do estilo antigo como estímulo ao desfile: as relações entre música e dança são mais
flexíveis do que deixa supor Ismael". 86 Máximo e Didier apontam para o fato do improviso nos
sambas novos, que eram compostos geralmente em rodas de batucadas, diferente dos sambas
antigos onde quem tocava era músico treinado e compunha com cuidado. 87
Os instrumentos utilizados nos dois estilos de samba também são distintos. No antigo era
possível notar a presença do piano, flauta, clarineta, cordas e metais, ou seja, instrumentos
europeus. Quem os tocava, segundo os autores, eram músicos treinados. Já no novo estilo os
instrumentos de origem brasileira é que davam o ritmo, como é o caso do surdo. Também
apareciam instrumentos africanos como a cuíca que davam a base para as melodias. Nessa fase, os
compositores não compartilhavam da mesma formação técnica de outrora.
Novamente Sandroni questiona a argumentação fornecida mostrando que os sambas antigos
também eram feitos, muitas vezes, de improviso, que também contava com músicos não treinados
cuja leitura de partituras era igualmente indecifrável aos da nova geração e que muitos instrumentos
utilizados foram inventados por eles mesmos como o prato-e-faca.
Sandroni acredita haver nas relações entre música e classes sociais - arquétipo muito popular
entre os autores do assunto - muito mais complexidade do que o estudado até então e escreve que
"obviamente, as "razões" da distinção do samba em estilo novo e antigo são múltiplas e variadas.
Nelas há lugar para a inovação estética e também para a passagem entre os domínios do folclore e
do popular" 88 assim como diferenças entre os lugares onde o samba passa a ser praticado, seu
estatuto enquanto objeto de trocas econômicas, sua forma, seus assuntos, sua associação com
personagens típicos, todos temas que fornecem "um quadro a partir do qual o sentido social da
mudança de paradigma rítmico pode ser compreendido". 89
O estilo antigo de samba tem como seu lugar imortalizado de prática a famosa casa da Tia
85
CABRAL, Sérgio. As escolas de samba, o quê, quem, como, quando e por quê. Rio de Janeiro: Fontana, 1974. p. 45.
SANDRONI, Carlos. Op. Cit., p.137. 87
MÁXIMO, Jõao e DIDIER, Carlos. Noel Rosa: uma biografia. Brasília. Linha Gráfica/Unb, 1990, p. 111.
88
Ibidem, p.141. 89
Ibidem, p.142. 86
Ciata, que já fora mencionada e trabalhada anteriormente. Porém, no estilo novo esse espaço físico
se desloca e passa a ser nos blocos e nos botequins o lugar onde o samba era composto, tocado e
ouvido. Quanto aos blocos também já comentamos sobre eles acima, porém, os botequins são agora
uma novidade. Eles eram ambientes tão habituais aos sambistas da segunda geração que eram
também chamados por "escritório". O botequim, segundo Sandroni, "é para o Rio de Janeiro o que é
o pub para Londres ou o café para Paris: antes de tudo um ponto de encontro, um lugar de
sociabilidade". 90 Lá, os sambistas além de se encontrarem uns com os outros eram encontrados por
quem quer que os estivesse procurando. Como não havia uma "tia baiana" em meio ao pessoal do
Estácio, eram nos botequins - e cada sambista tinha o seu de predileção - que eles poderiam ser
achados, saber das novidades e oferecer seus serviços como músicos ou compositores. 91
Sandroni ressalta uma diferença importante entre o antigo espaço de sociabilidade (as casas
das tias baianas) e os novos (os blocos e botequins) tendo os últimos a característica comum de
serem espaços mais abertos que àqueles. Qualquer um circulava livremente entre os blocos e
botequins, diferente dos freqüentadores das residências baianas que eram escolhidos com critério
para participarem das reuniões. Isso acarreta em um aumento "da capacidade de circulação do
samba nos seus novos lugares sociais". 92
Como a ambigüidade está presente em absolutamente tudo no nosso mundo, também esse
aumento de circulação teve seu lado, para alguns, ruim. A prática do roubo de letras e melodias de
sambas passa a se exercer. Por vezes só alguns pedaços e outras vezes o samba por inteiro era
indebitamente apropriado. Muitos sambas de autores anônimos continuarão tendo seus verdadeiros
compositores anonimados, pois suas letras foram furtadas e receberam a autoria de outras pessoas.
Sandroni mostra que, até meados da década de 1920, a minoria dos compositores é que possuía uma
consciência dos direitos autorais; a maioria, por sua vez, entendia a música como uma expressão
natural que se encontrava em diversos pontos da cidade muitas vezes sem que se soubesse quem a
havia inventado. Para exemplificar o pensamento da época o autor cita uma frase de Sinhô que diz
"samba é como passarinho, é de quem pegar",
93
mostrando também a naturalidade como o
compositor via a questão do roubo dos sambas.
A partir da década de 20 uma outra modalidade é observada configurando-se na compra e
venda dos sambas. No que diz respeito à essa nova prática, Francisco Alves, um personagem
importante na história do samba, tem seu nome sempre lembrado por ter sido o primeiro - e um dos
90
Ibidem, p.143. 91
A maioria dos sambistas no início de sua profissionalização, na década de 1930, não tinha telefone, o que tornava o
contato com eles difícil. A maneira adotada na época para resolver esse problema era encontrar o compositor em sua
casa (quando se sabia onde ele morava) ou no "seu" botequim - método mais comum na altura. 92
SANDRONI, Carlos. Op. Cit., p. 144. 93
Ibidem, p.146. maiores - compradores de sambas da época. Em 1928, para o carnaval daquele ano, Alves
concretizava sua primeira compra, a marcha carnavalesca que se chamava "A malandragem" de
autoria de Bide. A respeito de tais práticas Sandroni afirma que
Havia várias modalidades de compra de sambas: o caso mais drástico era aquele em que o autor,
em troca de uma soma fixa, cedia não só os direitos autorais como o reconhecimento da autoria ou seja, seu nome não aparecia nem no disco, nem na partitura. 94
Os outros dois se constituíam em o compositor ceder apenas uma parte dos direitos autorais
com a promessa do comprador gravar o samba ou o compositor ceder todo o direito autoral da
composição, mas ter a autoria reconhecida na partitura, no disco ou nos dois. O primeiro desses
últimos, também conhecido como "parceria" se torna muito comum entre os sambistas da década de
1930 e novamente Francisco Alves é reconhecido, não só pelos estudiosos no assunto, mas pelos
sambistas da época, como importante na prática de "parcerias". Aos olhos de alguns pesquisadores,
parece-lhes desvantagem a prática da "parceria", porém os próprios sambistas, em depoimentos,
afirmaram que não o era, pois sem esse artifício, ficaria muito difícil, no início de suas carreiras
profissionais, serem reconhecidos e terem a chance de gravar muitas de suas letras. Sandroni
levanta a possibilidade de compreender a importância dos "compradores-parceiros" comparando-os
às editoras musicais atuais que dão chance à música se tornar conhecida em troca de uma parcela
dos direitos autorais. Essa questão da compra e venda de sambas é outro fato que diferencia bem o
antigo samba do novo, pois no antigo "a função-autor se encontrava num estágio ainda mais
rudimentar, dispensando a intermediação monetária e resolvendo-se pela apropriação pura e
simples". 95
Se a diferença entre o estilo novo e antigo de samba já se faz clara até esse momento a
figura do personagem mais tipicamente associado a esse estilo - o malandro - entra no cenário da
música carioca para concluir, definindo enfim, a chegada do samba moderno. As alusões ao
malandro, em suas várias versões e nomes equivalentes, já podem ser encontradas na história escrita
desde 1830, segundo Sandroni que traz a letra de um lundu de autoria de Gabriel Fernandes
Trindade intitulado "Graças aos céus" onde se encontra a menção aos "vadios". Depois em
romances famosos, como em Memórias de um Sargento de milícias, com a figura do "capadócio"
também fazendo alusões ao malandro das subseqüentes décadas de 1930 a 1940.
A primeira impressão escrita já com a denominação "malandro", segundo Carlos Sandroni,
data de 1904 e diz respeito à "coletânea de modinhas e lundus de Eduardo das Neves, que se
94
Ibidem, p.147. 95
Ibidem, p.151. intitulava O trovador da malandragem". 96 Mas, segundo o mesmo autor, somente no final da
década de 1920 que o termo aparece frequentemente nas letras de samba, primeiramente
popularizando para, posteriormente imortalizar a figura do malandro carioca, "tornando-o quase um
sinônimo de sambista" 97 e caracterizando de forma decisiva o estilo novo de se fazer samba no Rio
de Janeiro. Não esquecendo, no entanto, que na primeira geração de sambistas, já se encontravam
referências aos malandros nas letras das músicas, porém com um sentido distinto ao empregado nas
letras de sambas da segunda geração pela qual o "grupo se reconhece e é reconhecido socialmente"
98
a partir da malandragem.
Após o período curto no qual foram produzidos os sambas-maxixe, sambas antigos ou a
primeira geração dos sambas segue um longo período que se estende até 1958 - com o advento da
Bossa Nova - onde prevalece a produção de uma enormidade de sambas-modernos que, cada qual à
sua maneira, irá moldar a identidade musical brasileira.
96
Ibidem, p.159. 97
Idem. 98
Ibidem, p.168. PARTE 2: OS RETRATÁVEIS DO SAMBA E DE PÉRSIO DE MORAES
CAPÍTULO 4 - Revista da Música Popular
Se o samba se manteve por longo período como principal produto da indústria fonográfica
brasileira até a década de 1950, é partindo dela que iremos iniciar esta parte.
Com o fim da República Velha, quem assume o governo brasileiro - através de um golpe de
Estado - e nele permanece por quinze anos ininterruptos é Getúlio Vargas. Este período no qual
Getúlio comanda o Brasil ficou conhecido como Estado Novo e compreende o que chamamos de
Era Vargas. Foram anos conturbados para o país em alguns setores e muito bons para outros. Este
momento da história brasileira ficou conhecido pelo populismo de Vargas - que adotou o
paternalismo para dirigir ações que iriam beneficiar as classes trabalhadoras; pela criação de
indústrias de base estatais - o que gerou o crescimento de outros setores industriais brasileiros; pelo
Departamento Administrativo do Serviço Público, que "remodelou a estrutura do funcionalismo
público prejudicando o tráfico de influências, as práticas nepotistas e outras regalias dos
funcionários" 99 e, finalmente, pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP. Ele era
"responsável por controlar os meios de comunicação da época e propagandear uma imagem positiva
do governo", 100 porém, de acordo com Carlos Fantinati, o DIP não exercia o papel somente de
censura:
[...] ele desempenha uma dupla função no que tange à produção cultural: a primeira é a de obstar e
reprimir a transmissão de mensagens que manifestem resistência ao poder, impedindo – as de
serem veiculadas, sobretudo pelo rádio; a segunda, a de interferir direta ou indiretamente no
próprio processo de produção de cultura e de notícias, tornando-as extensões do poder. 101
O que é feito justamente com o samba, que nessa altura, já está se consolidando símbolo da
identidade nacional brasileira.
Nas eleições de 1945 Vargas perde e o posto de presidente da república passa a ser exercido
- entre 1946 a 1951 - por Eurico Gaspar Dutra, retomando (ou iniciando) um regime democrático no
Brasil, porém ainda muito insipiente. O governo de Dutra ficou marcado pela "continuidade de uma
política desenvolvimentista baseada nos princípios do planejamento econômico com uma forte
99
SOUZA, Rainer. Era Vargas - Estado Novo. Disponível em: http://www.brasilescola.com/historiab/vargas.htm.
04/06/2011. 100
Idem. 101
FANTINATI, Carlos Erivany. A visão eufórica do Brasil. Ensaios para a Revista Guavira Letras. Revista Eletrônica
do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Número 5. 01 de Junho de
2007 - Ano III ISSN 1980-1858. interferência estatal nos setores produtivos industriais e financeiros”
102
direcionamento
amplamente utilizado por Vargas durante os quinze anos anteriores no comando do país. Quando o
mandato de Dutra termina, Vargas volta ao poder - agora por meios legais, através do voto popular
e não baseado em um golpe de Estado - para finalizar a famigerada Era Vargas, que acabaria por ter
fim antes da data prevista com o suicídio de Getúlio no dia 24 de agosto de 1954. Cito, neste
momento, datas, pois elas nos ajudam a compreender a cronologia do contexto no qual nossa fonte
está inserida. Poucos dias após a morte de Getúlio Vargas temos a primeira edição da Revista da
Música Popular - fonte historiográfica da presente pesquisa - que nasce em setembro de 1954 e tem
sua última edição em setembro de 1956.
Nesse curtíssimo espaço de tempo o Brasil é governado por quatro pessoas diferentes. É um
período muito agitado no cenário político brasileiro, o que por sua vez reflete nas outras áreas do
país. João Fernandes Campos Café Filho, vice-presidente de Getúlio Vargas, era quem deveria
assumir a liderança do Estado até se cumprir o final previsto do mandato de Vargas (dezembro de
1955), porém em novembro do mesmo ano Café Filho é afastado do poder em virtude de
movimentos políticos e Carlos Luz assume a presidência por apenas, dois dias, quando é deposto no
dia 11 de novembro. Sobre sua deposição:
[...] houve um golpe militar liderado pelo então ministro da Guerra, general Lott. Atribuíram a
deposição de Carlos Luz a manobras políticas para impedir a posse de Juscelino Kubitschek, eleito
presidente. O Congresso Nacional proibiu Carlos Luz de permanecer no poder e designou Nereu
Ramos, então presidente do Senado, para assumir a presidência até a posse de Kubitschek. 103
Juscelino Kubitschek governa o Brasil, com relativa tranqüilidade, até as eleições de 1960.
Nesse cenário de extrema instabilidade e mudanças no plano político brasileiro o campo
musical também passava por agitações, como a intitulada crise - ou decadência - musical da década
de 50. Na altura, as músicas brasileiras de maior repercussão eram as marchinhas de carnaval e os
sambas que "ainda predominava com temas que caracterizavam o ambiente urbano carioca desde os
anos 30, como o cotidiano do trabalho e a malandragem". 104 Porém, a música estrangeira exercia
grande fascínio entre os ouvintes cariocas. De boleros mexicanos a tangos argentinos, passando por
rumbas, rancheiras e guarânias o estrangeirismo no campo musical era muito forte na década de
1950. Ele, que teve sua chegada triunfante na década de 40, com as big bands americanas, se
102
Presidentes do Brasil - Carlos Luz. Disponível em: http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/ult1689u61.jhtm.
04/06/2111. 103
Idem. 104
WASSERMAN, Maria Clara. “Abre a cortina do passado” - a Revista da Música Popular e o pensamento
folclorista (Rio de Janeiro: 1954 – 1956). Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2002.
p.20. mantém influente nos anos seguintes, principalmente com o novo ritmo trazido dos Estados Unidos:
o jazz, muito apoiado por várias rádios cariocas e amplamente tocado por músicos de bares da zona
sul do Rio de Janeiro.
Essa conjuntura traz grande preocupação para alguns intelectuais que começam a perceber o,
cada vez menor, espaço que a música popular brasileira "pura" ocupava na época. E decorrente
dessa preocupação um grupo de homens da imprensa se reúne e dentre eles, um em especial resolve
executar seu projeto: a criação da Revista da Música Popular. Em formato de periódico ela era
especializada em música popular, não apenas brasileira, mas também norte-americana. Segundo
Maria Clara Wasserman:
A ambiciosa publicação reuniu os principais nomes da música e da intelectualidade brasileira e
congregou um novo pensamento musical, que tentava alcançar a legitimidade através da
abordagem folclórica. Também o reconhecimento da música urbana carioca como autenticamente
brasileira fazia parte da proposta. Quanto à música norte-americana, a exclusiva abordagem do
jazz de New Orleans, deixava clara a intencionalidade de transformar a música “de raiz” em
música pura e autêntica. 105
Em linhas gerais, seu objetivo era mudar a visão inferiorizada de que a música produzida em
território nacional teria menor qualidade que a estrangeira - pensamento que várias pessoas mantêm
em relação, não somente à música, até os dias de hoje - e buscar uma base para redefinir a raiz da
autêntica música brasileira, que teria sua versão mais pura com os sambas da década de 1930. A
revista é criada por Lúcio Rangel - diretor responsável e Pérsio de Moraes - gerente - ambos
igualmente colunistas em quase todas as edições - e tem seu primeiro número publicado em
setembro de 1954. Ela circula pelo país durante, apenas, dois anos, tendo sua última edição datada
de setembro de 1956. Era redigida no Rio de Janeiro e distribuída para as demais cidades de
importância do país. Foram lançados 14 volumes do periódico e "repentinamente ela deixou de
existir, por falta de recursos suficientes para essa cara edição", 106 o que a autora Maria Clara
Wasserman - cuja tese de mestrado foi baseada na revista, e que será amplamente utilizada neste
capítulo - toma nota dizendo que ela acredita "que o principal problema tenha sido a falta de
anunciantes. Todas as pessoas entrevistadas não souberam dizer o motivo do fechamento da RMP e
também nada saiu na imprensa da época". 107 O autor Marcos Napolitano considera a Revista de
Música Popular como "a primeira tentativa de sistematizar os procedimentos de pesquisa e
discussões sobre os fundamentos da música brasileira, como fenômeno cultural das classes
105
Ibidem, p. 8. 106
Ibidem, p. 12. 107
WASSERMAN, Maria Clara. “Abre a cortina do passado” - a Revista da Música Popular e o pensamento folclorista
(Rio de Janeiro: 1954 – 1956). Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2002. Nota de
rodapé número 4 da própria autora. p. 12. populares e, no limite, característico da própria nação brasileira". 108
Quanto à aceitação do periódico por parte do público e dos outros veículos de comunicação,
as informações que temos mostram-se tendenciosas visto que foram extraídas da própria revista,
que em sua segunda e terceira edições, em novembro e dezembro de 1954, dois meses após seu
primeiro número ter sido lançado, trazem uma seção destinada à visão da imprensa em relação ao
nascimento da Revista da Música Popular e em como esta se referiu ao aparecimento daquela.
Outro fator que aponta serem tendenciosas nossas informações é que vários dos autores que
escreveram sobre o surgimento da Revista da Música Popular, em outros veículos de comunicação,
terão, posteriormente, uma ou outra página escritas na revista, quando não uma coluna inteira esporádica ou fixa - como a exemplo de Rubem Braga e Jota Efegê. Porém, iremos citar alguns
comentários extraídos da revista, sem que nos preocupemos, pois agora nosso leitor já está
devidamente avisado sobre a possível parcialidade de tais comentários. Referindo-se ao lançamento
do periódico Rubem Braga, para o Correio da Manhã escreve: "Acho importante porque é a
primeira publicação especializada em um setor meio esquecido de nossa cultura". 109 Mário Cabral,
para a Tribuna de Imprensa diz: "Não me lembro de outra publicação, em nosso meio, com êsse
propósito sério de estudar de verdade o nosso cancioneiro, de estimular o que é autêntico". 110
Hoche Ponte também para o Correio da Manhã enfatiza que: "O que antes de mais nada sentimos
vontade de aplaudir é a idéia mesma de uma tal revista, sobretudo agora, quando o rádio e a
televisão, com seus mil boleros e mambos, exercem uma influência danosa sôbre compositores e
intérpretes de personalidade débil". 111 E por fim, Antonio Bento para o Diário Carioca afirma ser
"a revista que estava faltando a esta cidade tão sambista e seresteira, mas que ainda não sabe, em
têrmos de musicologia, a riqueza enorme que possui em pouco mais de um século da sua canção de
carnaval". 112 Como pudemos perceber, não eram só os criadores e colaboradores da revista que
partilhavam da idéia de ser necessária uma compilação com músicas e compositores da "época de
ouro" que representava a legítima música urbana popular brasileira. Vários outros intelectuais da
época compartilhavam o mesmo pensamento, que era igualmente dividido com uma parcela da
população, que também achava grotesca a influência estrangeira na música brasileira.
Wasserman resgata a idéia de que na época ser um homem da imprensa, era, além de
ascender socialmente perante os olhares alheios, também uma forma de formar opiniões.
Diferentemente dos dias de hoje, onde o jornalismo se diz imparcial, na época a parcialidade era
108
NAPOLITANO, M. . A historiografia da Música Popular Brasileira: síntese bibliográfica e desafios atuais da
pesquisa histórica. ArtCultura (UFU), v. 8, p. 135-150, 2006. p. 137. 109
Revista da Música Popular, n.º2, p.124. 110
Idem. 111
Idem. 112
Idem. explícita e era com essa intenção - a de mudar opiniões - que muitas pessoas ingressavam nessa
área. E foi justamente esse o intuito, segundo a autora, que Rangel e Moraes - juntamente com
muitos outros colaboradores da revista - tiveram a iniciativa de executar o projeto, visando fixar a
concepção de que a música produzida no Brasil, especialmente na década de 1930, foi a única
verdadeiramente pura e não deveria, portanto, ser esquecida jamais.
Maria Clara também destaca que a linha editorial da revista se diferenciava das outras muitas - rodadas na época. Enquanto as demais contavam com um número bastante grande de
fotografias e, em contrapartida, pouco percentual textual a Revista da Música Popular escrevia num
sentido inverso. Eram "50 páginas, cada página com duas colunas de texto e um número reduzido
de fotografias, uma média de quatro vezes mais textos que fotos". 113 Algo que pude notar fazendo
uma breve pesquisa do material jornalístico da década de 50, foi a quantidade considerável de
revistas ligadas à questões pouco importantes como boatos contados a respeito de pessoas públicas
e famosas e também uma grande quantia de revistas sobre cinema, como à exemplo da Cine-Fan,
Cinearte, Cine-Revista, Cinelândia, Filmelândia.114 Wasserman, em sua tese, cita ainda as outras
revistas ligadas à música como a Radiolândia e a Revista do Rádio.115 O fato da Revista da Música
Popular contar com mais textos que imagens nos dá um panorama do tipo de leitor que estaria
procurando o periódico. Ela é claramente voltada a um público mais intelectualizado e
declaradamente direcionada aos fãs, colecionadores ou interessados em discos. Como afirma
Wasserman:
Tratava-se de um público apreciador da “velha música”, colecionadores, estudiosos sobre o
assunto, que negavam o presente musical por este ter se desvirtuado da “pureza” (na expressão dos
editores) conquistada com Ismael Silva, Wilson Batista, Noel Rosa, Aracy de Almeida. 116
A revista quando escrevia sobre a decadência da música brasileira estava, quase sempre, se
referindo a decadência do samba. Porém, a discussão deles é diferente do debate suscitado no
capítulo anterior, onde os autores discutiam qual samba era o verdadeiro, qual teria maior
legitimidade, o da primeira geração ou o do pessoal do Estácio. Na época da revista, já se
considerava bem definido que o "samba de verdade" era aquele feito no Estácio a partir da década
de 1930 - o anterior ainda era metade maxixe. Ele era o ritmo mais puro e genuinamente brasileiro
que se conhecia e foi assim até 1945 quando se inicia a importação de ritmos estrangeiros que
viriam a influenciar de forma marcante a música popular brasileira, o que marca o fim da "época de
113
WASSERMAN, Maria Clara. Op. Cit., p.13. 114
Década de 50: quando a felicidade parecia bater às portas do Brasil. Jornais e Revistas Pesquisados. Disponível
em: http://decadade50.blogspot.com/2006/09/jornais-e-revistas-pesquisados.html. 05/06/2011. 115
WASSERMAN, Maria Clara. Op. Cit., p.13. 116
Idem. ouro" e início da fase de internacionalização na nossa música. A discussão presente na revista
girava em torno de analisar criticamente "a influência americana, as marchas carnavalescas, os fãs
clubes e programas de auditório, as orquestrações no samba e todo o procedimento da indústria
fonográfica". 117
O primeiro ponto, a influência estrangeira, principalmente norte americana, se deu
inicialmente através do cinema. Foi através dos musicais produzidos em Hollywood que o Brasil
passou a conhecer e "imitar" (como gostam de escrever os colaboradores da revista) os ritmos
estrangeiros populares na época, fazendo com que o samba não fosse mais o único "queridinho do
Brasil", tendo que dividir e até perder espaço para os novos "swingues" que chegavam de fora. E a
mistura entre os ritmos foi quase inevitável, o que gerou muita discussão e desgosto para os
amantes da música "pura" brasileira. Uma das mais marcantes influências foi a fusão do samba com
características do bolero, o que ficou conhecido como "sambolero". Era samba, alguns afirmavam,
porém com mudanças significativas no andamento e nas letras das composições, que passaram a ser
cada vez mais "melodramáticas".
Segundo a revista, boa parte da culpa por isso ter acontecido foi devida a pressão que a
indústria fonográfica - muito criticada pelo periódico - exercia. Wasserman, escrevendo a respeito
dos pesquisadores da historiografia da música brasileira: Tinhorão e Vasco Mariz, afirma que eles:
[...] analisam o período como propício à involução musical, provocada pela moderna indústria do
disco que começou a criar e a manipular uma nova audiência pensamento que tomou forma com a
Revista da Música Popular que, pela primeira vez tratou sistematicamente do tema, criticando a
indústria fonográfica que a cada dia, “fabricava” artistas e músicas sem qualquer compromisso
com a tradição. 118
Vimos no capítulo anterior que o foi decorrente também do advento da indústria fonográfica
as primeiras formas de compra e venda dos sambas, parcerias (por vezes não justas) entre
compositores e cantores, etc. Tudo isso é criticado pela revista e por Pérsio Moraes, autor das
crônicas que serão posteriormente analisadas.
Os espaços físicos da música popular brasileira, bem como dos lugares de divertimentos dos
boêmios também se modificou desde meados da década de 40 até os anos de 1950. Entretanto,
novamente diferente do que já vimos no capítulo anterior, esse espaço não gera discussão em torno
das casas das tias baianas e o bairro do Estácio - como lugares de legitimação do samba de verdade.
Agora a questão do espaço é outra. Com o fechamento de prostíbulos, a desapropriação de prédios
antigos e insalubres e a proibição do jogo com o fechamento dos cassinos o malandro sambista fica
deslocado, perde seu ambiente e segundo alguns autores isso vem acentuar perante a sociedade a
117
Ibidem, p.18. 118
Ibidem, p.19. decadência do samba. Porém, uma cidade como o Rio de Janeiro não poderia ficar sem seus
"lugares de divertimentos" e a zona sul carioca então desperta para acomodar novos redutos
boêmios com a abertura de night clubs e boites. Sobre os novos boêmios e a mudança dos espaços
de sociabilidade Wasserman nos lembra que:
[...] a nova boêmia que ocupava Copacabana não era a mesma que circulava no Centro do Rio de
Janeiro. Mesmo em pontos opostos da cidade, a música popular ainda era o elo de união entre
espaços e classes sociais e o que se tocava em ambos os lugares, direcionava o repertório das
rádios, principalmente em relação aos sambas-de-meio-de-ano ou sambas-canções. 119
A música, desde metade de 1940, circulava livremente pelos quatro cantos da cidade. Não se
restringia mais apenas aos morros, subúrbios e zona norte, a música chegou à zona sul carioca, e
essa chegada trouxe conseqüências para a música brasileira. Com o novo ponto de encontro da
boêmia carioca, situado agora em espaços mais nobres da cidade, a música estava mais "próxima da
elite carioca, de artistas nacionais e estrangeiros e ainda de colunistas sociais". 120
Fato que merece destaque na década de 50 foi a inauguração da primeira emissora de
televisão brasileira, a Tv Tupi exatamente em 1950. Mas como ressalta Wasserman, durante toda a
década de 50 "a televisão ainda não representava uma ameaça para a audiência radiofônica",121 pois
ela só viria a se popularizar definitivamente a partir de 1960. Antes disso o número de aparelhos era
reduzido, devido em grande parte ao seu custo, portanto, restringindo o acesso à elite carioca. Na
direção contrária o rádio popularizado desde 1932 "representaria ainda, nos vinte anos seguintes,
um fator simbólico de congregação das classes populares e da burguesia". 122 Todos o tinham em
casa, ele era utensílio imprescindível nos lares tanto pobres quanto ricos, o que acarretou na
consolidação de sua audiência. Wasserman resume afirmando que o rádio "transformou-se em um
fenômeno cotidiano, ligado à cultura popular urbana". 123 Como ela era a principal mídia de áudio
para a propagação da música no Brasil, a Revista da Música Popular menciona-o corriqueiramente
em suas 14 edições. Quase sempre essas menções são em termos de críticas, pois o rádio, como
parceiro da indústria fonográfica, ajudava a difundir qualquer música que agradasse ao público
tendo ela ou não qualidade. E ele fora também o principal veículo de difusão da mistura entre
músicas estrangeiras e brasileiras, fato que desagradava muito os redatores da revista. Como
sintetiza Wasserman:
119
Ibidem, p.21. 120
Ibidem, p.23. 121
Ibidem, p.24. 122
Ibidem, p.25 123
Idem. O procedimento do mercado fonográfico foi duramente criticado pela Revista da Música Popular.
O repertório das rádios durante o período de circulação da Revista (1954 a 1956) evidenciava uma
política voltada para o gosto popular, onde o melodrama era a principal característica das canções
do período. 124
A autora traz, em sua tese, uma pequena amostragem das músicas mais tocadas nas rádios
durante os dois anos de existência da Revista da Música Popular. Baseado nos dados ela constata
que o samba, realmente "puro", constituía apenas 30% do repertório de sucesso na época, dividindo
espaço com as marchinhas de carnaval, com os sambas-canção e com as músicas estrangeiras
(tangos, boleros, rumbas, foxes) que juntos formavam o restante da lista musical interpretada. Esse
fato, segundo Wasserman, representava para a revista um "cenário “apocalíptico e trágico” e
caberia ao próprio periódico retomar a tradição perdida". 125 Com essa passagem compreendemos
claramente a intenção dos fundadores da revista - e igualmente de todos que colaboraram com ela e
escreveram em suas páginas - em "salvar" a música brasileira e o Brasil de um fim dos tempos em
termos culturais e musicais.
Em resumo, as grandes preocupações da revista eram preservar os ídolos dos anos 30, que
em menos de 20 anos já pareciam esquecidos por boa parte das pessoas e principalmente pelos
meios de comunicação do período, como as revistas sobre o assunto e o rádio; não deixar a arte
viver para atender apenas à demanda popular e comercial e principalmente não deixá-la morrer
sucumbida, por exemplo, pelo apelo do capitalismo de compor músicas por dinheiro e não mais
meramente por amor e criar uma raiz de tradição que vincularia os sambas da década de 1930 a
mais autêntica e limpa música popular brasileira, tendo esta que ser preservada a qualquer custo.
124
Ibidem, p.34. 125
Ibidem, p.37. CAPÍTULO 5 - Crônica, um gênero textual
Nós mencionamos anteriormente a diferença de postura em relação ao jornalismo atual e o
propósito dos fundadores da Revista da Música Popular, dizendo que o primeiro se diz frio e
objetivo sendo sempre "imparcial", ou buscando, a todo o momento, ocultar sua parcialidade - o
que à nosso ver é impossível, pois todo texto escrito e toda palavra falada está imbuída de alguma
carga de subjetividade - enquanto que os segundos são explicitamente parciais e tem a intenção de
formar e/ou modificar opiniões. A crônica, seria o único gênero textual passível de comparações
com o jornalismo empregado pelos redatores da Revista da Música Popular. Segundo Yolanda
Maria Muniz Tuzino:
A crônica tem a façanha de ser um texto que informa através do enfoque autoral, subjetivo,
opinativo, parcial. Para o cronista, por sua vez, a crônica é o texto que lhe dá a liberdade de
transitar pelo real e pelo ficcional, pelo noticioso e pelo literário concomitantemente. 126
A palavra crônica tem sua origem etimológica na palavra grega chronos, que significa
tempo. Tuzino cita Massaud Moisés para explicar que:
Do grego chronikós, relativo a tempo (chrónos), pelo latim chronica, o vocábulo “crônica”
designava, no inicio da era cristã, uma lista ou relação de acontecimentos ordenados segundo a
marcha do tempo, isto é, em seqüência cronológica. Situada entre os anais e a história, limitava-se
a registrar os eventos sem aprofundar-lhes as causas ou tentar interpretá-los. Em tal acepção, a
crônica atingiu o ápice depois do século XII, graças a Froissart, na França, Geoffrey of
Monmouth, na Inglaterra, Fernão Lopes, em Portugal, Alfonso X, na Espanha, quando se
aproximou estreitamente da historiografia, não sem ostentar traços de ficção literária. A partir da
Renascença, o termo ‘crônica’ cedeu vez a ‘história’, finalizando, por conseguinte, o seu milenar
sincretismo. 127
Porém, o emprego de seu conceito moderno teve início apenas no século XIX, quando "tal
vocábulo revestiu-se de sentido estritamente literário"
128
não tardando para que a imprensa
utilizasse-o amplamente num sentido de narrativa histórica. Uma questão levantada pela autora é
com relação ao diferente uso e entendimento da crônica pelo jornalismo nacional e internacional.
De acordo com Tuzino:
O berço da crônica brasileira é o jornal impresso. Aqui ela foi desenvolvida pelos cronistas de
modo tão singular que, além de não existir texto com características similares no âmbito
internacional, passou a ser apontada como uma criação genuinamente brasileira. 129
126
TUZINO, Yolanda Maria Muniz. Crônica: uma Intersecção entre o Jornalismo e Literatura. Disponível em:
http://www.bocc.ubi.pt/pag/tuzino-yolandauma-interseccao.pdf. 06/06/2011. p.2.
127
MOISÉS, Massaud. A criação Literária – Prosa II. São Paulo: Cultrix, 2003. p.101. apud TUZINO, Yolanda Maria
Muniz. Op. Cit., p.3. 128
TUZINO, Yolanda Maria Muniz. Op. Cit., p.3. 129
Ibidem, p.1. No Brasil, o gênero, passa a ser utilizado, ainda hoje, com um sentido diferente daquele
empregado por outros países. Internacionalmente, a crônica está relacionada ao relato cronológico
enquanto que em nosso país não existe, necessariamente, essa associação. Para nós, o entendimento
da palavra crônica remete a um gênero textual que descreve, quase sempre, a atualidade, e que tem
como característica ser um texto curto e rápido, próprio para publicações em revistas e jornais.
"Porém, seja como no sentido inicial de “registro do passado e dos fatos na ordem em que
sucederam”, seja em sua acepção atual enquanto - “enfoque dos fatos do dia-a-dia” - o vínculo com
o sentido etimológico permaneceu"130 mantendo na palavra crônica um sentido de resgate do tempo,
seja ele passado ou presente.
A carta de Pero Vaz de Caminha escrita em 1500 para relatar a chegada no Novo Mundo - a
descoberta do Brasil - configura-se na primeira crônica de nosso país. Vários autores compartilham
a opinião de que nossa literatura surgiu da crônica, pois além daquela escrita por Caminha, todas as
outras contemporâneas a ela utilizavam-se do mesmo recurso de linguagem para descrever e
pormenorizar as "coisas" da nova terra. Mas notemos que ainda nessa altura as crônicas tinham o
sentido literal de narrarem cronologicamente os fatos. Outros pesquisadores, por sua vez, atestam
que o nascimento do gênero no Brasil tem seu marco em 1852 quando é lançado o Jornal do
Comércio do Rio de Janeiro por Francisco Otaviano, mas nem todos compartilham a visão de que a
crônica já nascera assim, muitos afirmam que ela nasceu, antes como folhetim, para posteriormente
se tornar o que hoje chamamos crônica. Tuzino citando Neiva escreve que:
[...] à medida que a crônica ganhou o seu espaço no jornal impresso, sobretudo, com os textos de
Machado de Assis, no século XIX, o fator tempo passou a não ser tão fundamental. O aspecto
cronológico cedeu caminho às inúmeras possibilidades de significados da crônica, à sua
abrangência temática e lingüística. 131
Esse teria sido o momento de dissociação, atravessado pela crônica brasileira, que viria a
consolidar o gênero como o entendemos na atualidade.
O século XX foi marcado por profundas mudanças jornalísticas. O surgimento do rádio, a
primeira Guerra Mundial e a divisão do trabalho causaram grande impacto na imprensa brasileira.
"Esta viveria um grande processo de modernização através da importação de novos equipamentos e
de uma maior definição nas relações sociais de trabalho, conseqüências da intensificação do sistema
capitalista". 132 A notícia passa a ser algo "comprável" e, portanto, manipulável. Isso nos remete
130
Ibidem, p. 4. 131
NEIVA, Érica Michelline Cavalcante. A crônica no jornal impresso brasileiro. Disponível em
<www.unirevista.unisinos.com.br>. Acesso em: 11 de fevereiro de 2008. apud TUZINO, Yolanda Maria Muniz. Op.
Cit., p.6-7. 132
Idem. imediatamente à música, que como citada acima, passou pelo mesmo processo e, que também
decorrente dele, os criadores da Revista da Música Popular quiseram executar seu projeto de lançar
a revista. Como observamos não somente as artes (dança, música, teatro) estavam sujeitas ao novo
sistema que se instalava cada vez mais rápido no Brasil - e no mundo. Tudo, uma hora ou outra,
ficaria à mercê dele, sendo dependente do sistema para continuar existindo e com isso virava objeto
comercial, moldável aos interesses capitalistas. Tuzino define bem o que ocorreu igualmente com a
imprensa quando diz que "a notícia transformou-se em bem de consumo e, como tal, destinava-se às
exigências de seu publico consumidor". 133 Penso que a lógica deve ser a que vigora até os dias de
hoje: se a notícia não vende, ela não interessa. Na contemporaneidade, segundo enaltece Sandra
Pesavento, a crônica:
[...] carrega consigo o ritmo alucinante da vida moderna e a sua caracterização estigmática de
leitura leve, de texto ligeiro, para divertir, informar ou fornecer a notícia e os comentários aos
habitantes da urbe moderna. Ela é muito bem aceita, pois combina as exigências da rapidez da
comunicação da sociedade moderna com a tradição coloquial da moralidade. 134
O historiador deve, portanto, ver nesse gênero textual um registro - carregado de
sensibilidade - de um tempo, ações e percepções passadas. Segundo a autora "para o historiador do
presente a crônica se oferece como um exercício imaginário para a apreensão das sensibilidades
passadas". 135
Quanto à crônica ser um gênero literário tipicamente brasileiro, esta afirmação se baseia em
constatar que este estilo lingüístico é diferente nos diversos países, mas que, entretanto, nota-se
sempre a ligação com a narração histórica e com a cronologia. No Brasil isso não ocorre. As
características encontradas em nossas crônicas não se apresentam em nenhum outro lugar. Para
muitos autores ela seria um gênero autônomo fruto da criação de várias personalidades distintas.
Contudo, semelhanças em outros aspectos surgem com relação a nossa crônica com àquelas escritas
em Portugal. De acordo com Tuzino "a característica que faz com que se equivalha é que o autor de
uma crônica portuguesa age de modo similar ao autor brasileiro para redigi-la: utiliza-se dos fatos
como pretexto". 136
Mas se vários autores atestam que o gênero é brasileiro, há ainda os que afirmem ser ele
carioca. Segundo Massaud as crônicas são naturalizadas cariocas, pois haveria um volume, uma
constância e uma qualidade muito maiores nas crônicas produzidas por autores do Rio de Janeiro do
TUZINO, Yolanda Maria Muniz. Op. Cit., p.7. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Crônica: A leitura sensível do tempo. Anos 90 - revista do curso de Pós-Graduação
em História, Porto Alegre, n. 7, p. 29-37 jul. 1997. p.31. 135
Idem. 136
Ibidem, p.9. 133
134
que de outros estados, sem tirar o mérito dos demais escritores. O autor afirma que:
Tal naturalização não se processou sem profunda metamorfose, que explica o entusiasmo com que
alguns estudiosos defendem a cidadania brasileira da crônica: ao menos da crônica dos nossos
dias, tudo faz crer que raciocinam corretamente. De qualquer modo, a crônica tal qual se
desenvolveu entre nós, parece não ter similar noutras literaturas, salvo por influência de nossos
escritores (como na moderna literatura portuguesa). 137
Quanto às classificações destinadas as crônicas há divergência de opiniões e de teorias por
parte dos pesquisadores no assunto. Temos classificações baseadas no critério jornalístico segundo
Luiz Beltrão, na tipologia literária de acordo com Afrânio Coutinho, na relação com gêneros
literários seguindo Massaud Moisés e na estrutura da narrativa como afirma Antônio Cândido.138
Iremos apenas mencionar cada qual sem nos aprofundarmos, para que posteriormente possamos
utilizarmo-nos delas para fazer um panorama das crônicas de Pérsio de Moraes.
As classificações baseadas no critério jornalístico tem sua primeira distinção feita em
relação à natureza da crônica, que pode ser geral, local ou especializada. Na geral, o autor escreve
sobre variados assuntos e tem sempre um espaço fixo no jornal ou revista. A local ou urbana trata
de assuntos quotidianos da cidade e a especializada tem sempre como autor um especialista em
determinado assunto que irá escrever todas as vezes sobre esse mesmo assunto dando pormenores
sobre ele. Quanto ao tratamento dado ao tema da crônica, ele pode ser analítico, sentimental ou
satírico-humorista. No primeiro os dados são expostos e discorridos de modo objetivo e breve. No
segundo o autor se imbui de emoção para escrever e comover seu leito. Já no terceiro o recurso
utilizado é a ironia, a crítica, a caricatura e às vezes a mistura de todos os elementos juntos.
As categorizações através da tipologia literária podem classificar-se quanto à natureza do
assunto ou quanto o movimento interno. Quanto à natureza do assunto as crônicas podem ser
narrativas ou metafísicas. As primeiras se aproximam dos contos e um grande exemplo de escritor
deste estilo é Fernando Sabino. Já as segundas são "constituídas de reflexões mais ou menos
filosóficas sobre os acontecimentos ou os homens, como é o caso de Machado de Assis ou Carlos
Drummond de Andrade". 139 Quanto ao movimento interno elas podem ser crônicas-poemas ou
crônicas-comentários. As crônicas-poemas tem conteúdo lírico, segundo Coutinho é "mero
extravasamento da alma do artista ante o espetáculo da vida, das paisagens ou episódios para ele
significativos, como é o caso de Álvaro Moreyra, Rubem Braga, etc." 140 e as crônicas-comentários
trazem assuntos díspares, abordam vários acontecimentos que podem - e geralmente - são
MOISÉS, Massaud. A criação Literária – Prosa II. São Paulo: Cultrix, 2003. p.103. Ver em TUZINO, Yolanda Maria Muniz. Op. Cit, p.11-12. 139
COUTINHO, Afrânio. Antologia brasileira de literatura. , Letras e Artes, vol.3. Rio de Janeiro: 1967. p. 97-98. 140
Idem. 137
138
relacionados a questões que nem sempre tem ligação direta.
O levantamento das crônicas nas relações com os gêneros literários se divide em crônicaconto e crônica-poema. No primeiro o autor assume o papel de narrador e historiador. Ele relata em
forma de conto um fato que lhe chamou atenção. No segundo o autor insere sua emoção na hora de
escrever a crônica e os temas são geralmente ligados a algum sentimento ou fato sucedido com o
próprio autor. E por fim a classificação através da estrutura da narrativa se dá pela diferença da
crônica diálogo, crônica narrativa, crônica poética e crônica biografia. Na primeira o autor da
crônica conversa com seu leitor, trocando informações com este ou lhe contando como se este
estivesse realmente ali, presente, podendo ouvi-lo. Na segunda há semelhança com a crônica conto.
É um princípio dela, um estágio anterior ao conto em si. A terceira se assemelha à classificação
anteriormente citada da crônica-poema. Eu diria que os autores definiram a mesma coisa. E a
última, a crônica biografia é lírica e narra a vida de uma pessoa, que eu acredito não poder ser o
próprio autor, pois senão o texto se enquadraria à uma crônica poética.
Após esse breve esboço sobre tão rico gênero literário trataremos de algumas questões com
as quais gostaríamos de concluir este subcapítulo. Uma, partilhada por Yolanda Tuzino, defende a
idéia de considerarmos a crônica como um gênero textual híbrido, que não pertence exclusivamente
nem ao jornalismo nem à literatura transitando livremente por ambos os campos de produção.
Segundo Tuzino:
[...] a leitura de mundo oferecida por aquele que produz uma crônica é extremamente ética, na
medida em que deixa evidente ao leitor de que aquele texto é autoral, é opinativo. A Crônica é
Jornalismo e Literatura. Sua natureza híbrida impera nesta compreensão. É jornalística quando
busca no cotidiano os fatos da vida real que são noticiosos e é literária quando se permite utilizar
elementos literários (ex: criação de personagens, linguagem solta e coloquial, etc.) para construíla. 141
Outra noção trazida à tona por Sandra Jatahy Pesavento nos mostra como as crônicas são às
vezes consideradas gêneros "menores", inferiores a outros. Isso se deve ao fato de, na maioria das
vezes, ela tratar de assuntos "mais simples", do cotidiano, em detrimento de abordar questões mais
"sérias" - como poderiam afirmar uma gama de intelectuais. Porém, para a autora, é justamente isso
que faz dela ser um gênero tão grandioso. Elas têm a capacidade de "captar a partir de
"acontecimentos "miúdos" do cotidiano o seu tema narrativo, mostrando ao leitor a beleza das
coisas simples, agora reveladas numa grandeza e singularidade até então insuspeitadas". 142
141
142
TUZINO, Yolanda Maria Muniz. Op. Cit, p.15. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. Cit., p.29. CAPÍTULO 6 - Um tipo da música popular
Vários foram os colaboradores que, vindos das mais variadas áreas como historiadores,
jornalistas, colecionadores de discos, literatos ajudaram a transformar a Revista da Música num
periódico de muita qualidade. Grandes nomes da literatura e do jornalismo deixaram sua marca na
revista à exemplo de Sérgio Porto, Orestes Barbosa, Rubem Braga, Jota Efegê, entre outros. A
própria revista, numa seção - já citada anteriormente - intitulada Como a imprensa se referiu ao
aparecimento da Revista da Música Popular, presente no segundo e terceiro número da revista em
novembro e dezembro de 1954 dois meses após seu primeiro número ter sido lançado, nos prova,
baseado no relato de outros autores escrevendo para distintos meios de comunicação quão
renomada era a gama de colaboradores da revista:
"Os colaboradores da Revista da Música Popular são todos nomes conhecidos e consagrados na
imprensa e nas letras do país [...]" (Estado de Minas)
"O grupo de colaboradores é dos mais abalizados e autorizados [...]" (Diário de Bauru)
"Apresentando agradável aspecto, bastante ilustrada, selecionou igualmente excelente corpo de
colaboradores onde figuram especialistas nos diversos aspectos musicais dos temas populares"
(Diário de Notícias)
E por fim
"[...] escolheu o diretor da Revista da Música Popular uma equipe que congrega o que há de
melhor na imprensa especializada, reunindo, ao mesmo tempo, respeitáveis nomes como os de
Manuel Bandeira e Rubem Braga, que, por si sós, dão uma déia do excelente nível da matéria" (A
Cigarra). 143
A revista não tinha nem dia nem mês certo para ser lançada e nas 14 edições só consta a
informação dos meses. A princípio era um periódico mensal, porém houve meses cujo lançamento
não foi realizado, como em outubro de 1954, e outros em que uma revista se destinava a dois meses,
como em Março/Abril, Maio/Junho, Julho/Agosto e Novembro/Dezembro de 1955. No seu último
ano de existência são editados apenas três números, em Abril, em Junho e em Setembro de 1956.
A estrutura da revista compunha-se de seções fixas e esporádicas. As últimas eram mais
numerosas que as primeiras. As primeiras mesmo que chamadas fixas, não estavam presentes em
absolutamente todos os números da revista - principalmente nas primeiras edições, o que
possivelmente se deve ao fato de no início, o periódico ainda esta estruturando-se e adaptando-se à
demanda e ao que se propôs fazer. A respeito das colunas fixas começaremos dando uma breve
pincelada sobre o que versava cada qual, seus autores e sua disposição na revista. A primeira a ser
tratada é a coluna intitulada Discos do mês e é escrita pelo próprio Lúcio Rangel, com exceção
143
Revista da Música Popular, n.º 3, p.176. apenas do lançamento no primeiro número onde quem fica responsável pela coluna é Sérgio Porto.
Está presente em todos os números da revista até a 10a. edição. A seção era destinada a
apresentações e críticas de diversos discos. Como não poderia deixar de ser a maioria deles era do
gênero samba, e as críticas para esses quase não apareciam. Muito diferente de quando algum disco
de cantor brasileiro cantando ritmos estrangeiros era citado onde nesse caso Rangel não poupava
palavras para escancarar sua indignação
Cantor cow-boy no Brasil é coisa absurda. Porque macaquear o estrangeiro, quando temos o ritmo
e motivos nossos, quando possuímos um dos folclores mais ricos do mundo? E pensar que discos
como êsses são dedicados às crianças brasileiras! A Carrousel já apresentou gravações excelentes
para crianças e ficamos pasmados com a inclusão do cantor cow-boy numa série tão bem feita e
que tanto sucesso vem fazendo. 144
Seguindo a temática dos discos, que permeia grande parte da revista, outra seção fixa se
encontrava na área destinada ao jazz. Como já mencionado anteriormente, a Revista da Música
Popular não tratava apenas da música brasileira - apesar de ser o mote principal - trazendo em todas
as suas edições seções fixas de abordagem exclusiva ao jazz de New Orleans cuja autenticidade era
transparente para os redatores do periódico. A coluna chamava-se Um disco por mês, esteve
presente em onze edições (não aparecendo nos número 7, 8, 9 e 14) e cuja autoria não consta na
revista. Nela, a cada edição, havia um disco de jazz, selecionado pelo escritor que contava um
pouco sobre quem gravou a composição (músico e gravadora), as informações do disco como
nome, faixas e breve história de algumas delas, também avisava onde ele poderia ser encontrado
para compra no país. E claro, a maior parte do texto era destinado às críticas - majoritariamente
positivas - à mídia em questão. Outras colunas constituíam a área destinada ao jazz na revista, mas
como elas variavam de acordo com a edição encaixá-la-emos como esporádicas, porém, que fique
claro que a área sobre jazz estava sempre presente e ocupava as últimas páginas do periódico, sendo
que às vezes uma coluna separada das outras se encontrava no meio da revista.
A seção Estes são raros presente, igualmente à coluna anterior, em onze dos quatorze
números lançados trazia a cada edição um disco (ou mais) fabricado por gravadoras que na maioria
das vezes não existiam no Brasil, mas fazendo com que aqueles discos fossem de muito difícil
acesso. Apenas poucos colecionadores o possuíam. O comentarista falava rapidamente da
gravadora, dos cantores e principalmente dos compositores das canções mais famosas de tais
gravações. É uma coluna semelhante a Um disco por mês com a diferença de que nesta, todas as
recomendações de discos eram de música brasileira. A coluna O rádio em 30 dias escrita por Nestor
de Holanda fez parte do corpo da revista durante sete edições. As seis primeiras de maneira
144
Revista da Música Popular, n.º 2, p.103. consecutiva (estando presentes desde o 1o. até o 6o. número) e a sétima apenas no 12o. volume da
revista. A seção ficava encarregada, de acordo com Maria Clara Wasserman por:
[...] descrever e polemizar os acontecimentos nas principais emissoras do país. Com estilo irônico,
Nestor de Holanda criticava os fatos e as personalidades radiofônicas. Apesar das criticas que fazia
aos fãs clubes e aos concursos, a coluna do jornalista era a única que possuía espaço para os
principais nomes do rádio nos anos 50, como Emilinha, Marlene, Jorge Goulart, Angela Maria e
outros. Em meio a críticas e sugestões, Nestor de Holanda chegava a noticiar os principais eventos
da Rádio Nacional e dos concursos em geral. 145
Em Música dentro da noite Fernando Lobo - compositor, jornalista, radialista e pesquisador
de mpb - traz a agenda cultural de música brasileira do Rio de Janeiro. Ele enfatiza, principalmente,
as atrações que podem ser vistas e ouvidas à noite como em boites, salões de hotéis, casas
dançantes, casas de shows e restaurantes. Mas algumas dicas são também para o período do dia,
como exposições de arte que relacionam música e pintura, por exemplo. A coluna tem um tom
bastante irreverente. Lobo, além de descrever os melhores lugares para conferir cada atração,
contando pequenas histórias divertidas sobre o local ou personagens que fazem parte dele, também
traz ilustrações - desenhadas por ele mesmo - para dar colorido às suas pequenas histórias. A coluna
toma duas páginas da revista e acredito ter sido ela bem aceita pelos leitores visto sua continuidade
durante todas as edições, com exceção do número 8, que, como já mencionamos anteriormente, foi
um lançamento especial redigido para homenagear Carmen Miranda que havia falecido, portanto,
toda revista versava sobre a cantora e sua estrutura se deu de forma diferente nessa edição, não
abarcando nem mesmo as seções fixas.
Na seção intitulada História social da música popular carioca escrita pela folclorista Mariza
Lira, o intuito era trazer para o periódico "um estudo sobre as raízes folclóricas da música do Rio de
Janeiro". 146 Sua coluna esteve presente, consecutivamente, em todos os números da revista a partir
da 3a. edição. Segundo Maria Clara Wasserman, que pesquisou mais a fundo essa seção da revista,
Lira deixava transparecer uma proposta de "historicisar a música popular carioca, garantir a vertente
folclórica e consolidar a idéia de que a música nascida no ambiente urbano do Rio de Janeiro era a
música que representava a identidade da nação brasileira". 147 Ela seguia, portanto, o objetivo claro
da revista: criar uma noção de identidade a partir dos sambas da "época de ouro". Para dar
veracidade a tal criação a revista conta com uma gama de autores vindos de diversas áreas
(músicos, compositores, musicólogos, folcloristas, intelectuais de diferentes áreas, literatos,
historiadores, jornalistas, radialistas, entre outros) que a cada número do periódico deveriam seguir
WASSERMAN, Maria Clara. Op. Cit., p.31-32. Ibidem, p.100. 147
Idem. 145
146
as diretrizes da revista, tendo um compromisso com a construção da identidade nacional com base
na música urbana popular brasileira autêntica.
A última coluna no hall de seções consideradas fixas por esta pesquisa levava o nome de
Um tipo da música popular. Ela nos interessa especialmente por ser nosso objeto de análise dentro
da fonte historiográfica escolhida. A seção tinha autoria do jornalista e escritor Pérsio de Moraes,
natural de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo. Em parceria com Lúcio Rangel foi fundador
da Revista da Música Popular, diretor gerente do periódico durante seus dois anos de existência e
era o responsável pela parte administrativa dela, cuidando igualmente dos patrocínios. Segundo
Wasserman:
[...] a estrutura pouco comercial do periódico, além da postura ideológica de Moraes e Rangel
provocaram uma crise financeira na Revista após a 7ª edição, quando deixou de ser mensal e
passou a circular de forma aleatória, quando fechava o orçamento. 148
A coluna de Pérsio fez parte do corpo da revista durante as 13 edições. 149 Escrita em forma
de crônica, ela tinha por objetivo comentar sobre eventos e/ou personagens que serviram ou
poderiam servir de contexto para famosas letras de sambas. Segundo seu colunista:
[...] o que mais me impressiona na nossa música popular é o tipo humano retratado em certos
sambas ou marchas [...] de fato, o que mais me impressiona é o <<retrato>> de certos tipos nas
côres simples das palavras de rua (ou de morro) dos sambistas, emoldurado pelas notas das
músicas sem intenção.150
O autor, nessa primeira edição de sua coluna, dá seqüência à sua teoria que afirma
retratarem os sambas os tipos mais simples de pessoas. Em geral, não eram os "figurões" que
estavam presentes nas letras, mas sim qualquer um que segundo Pérsio:
[...] a gente se encontra a tôda hora, trabalha junto com êles, fica atrás ou na frente dêles em
qualquer dos milhares de filas de nossa cidade mil vêzes maravilhosa, ou se espreme junto com
êles num elevador, num trem da Central, ou num <<comício>> de banca de jornal. E, no entanto,
nunca os observamos intensamente, atentamente. 151
Para ele, essa era a grande genialidade contida nas letras de samba, o fato de conseguir
flagrar no melhor ângulo figuras "esquecidas", despercebidas de nosso cotidiano. Fazendo um
paralelo com o gênero textual com a qual a coluna é escrita, as crônicas são imbuídas da mesma
WASSERMAN, Maria Clara. Op. Cit., p.91-92. Novamente lembramos que a edição de número 8 foi um lançamento especial em homenagem à cantora Carmen
Miranda. Nesse volume, nem mesmo as seções fixas da revista estão presentes. 150
Revista da Música Popular, n.º 1, p.46. 151
Idem. 148
149
sutileza. De fatos e personagens do dia-a-dia são extraídos os temas fonte de sua inspiração, e
acontecimentos que por vezes passariam sem que nós nos déssemos conta, vistas através das
crônicas ou das letras de sambas adquirem uma nova dimensão, de especial relevância aos olhares
atentos dos leitores e amantes dos sambas.
Pérsio finaliza sua introdução justificando que sua motivação para escrever aquela coluna
era o fato de muitos dos "retratáveis" dos sambas não terem idéia de que eram eles que inspiravam
as letras daquelas tão belas músicas. E segue afirmando que por vezes os compositores não tinham
apenas uma fonte de inspiração, mas várias. Muitas letras davam margem a considerarmos muitas
pessoas personagens de sambas consagrados, e segundo Moraes, todos nós também poderíamos
identificar em alguém de nosso convívio um tipo da música popular.
Em termos de estrutura a coluna tinha sempre um subtítulo que remetia ao "retratável" sobre
o qual Moraes discorreria ao longo do texto. Os personagens eram sempre vinculados ou a um
samba consagrado ou a vários152 - salvo uma exceção na edição de número 12 cujo tema era o
carnaval e para isso Pérsio trouxe como referência marchinhas carnavalescas.
Abaixo as treze crônicas presentes na revista:
UM TIPO DA MÚSICA POPULAR
SEM SUBTÍTULO
SEM SUBTÍTULO
O <<INQUILINO>> DA CALÇADA
LAURINDO
CONVERSA DE BOTEQUIM
"SEU OSCAR"
O SAMBISTA INÉDITO
ONDE ESTÁ A HONESTIDADE?
MARIA MALUCA
PALHAÇO DE NATAL
O FOLIÃO
O "CORREIRO"
POIS É, ATAULFO
N.º DA REVISTA
1
2
3
4
5
6
7
9
10
11
12
13
14
Para este trabalho escolhemos seis crônicas como objeto de análise presentes na 1ª, 4ª, 5ª, 7ª,
12ª e 13ª edições. Como já explicamos na introdução os critérios para a escolha de nosso objeto se
basearam nos conteúdos das crônicas. As escolhidas versam sobre o mundo do samba e dos
152
Todas as composições utilizadas por Pérsio em sua coluna foram produzidas entre 1930 e 1950, salvo duas exceções:
"Quem sabe, sabe" e "Turma do Funil", ambas marchas carnavalescas presentes na 12a. edição da revista e datadas de
1956. sambistas. Diferentemente daquelas não selecionadas que por vezes eram apenas divagações do
autor sobre alguma questão pouco relevante para este trabalho.
Tendo como ponto principal de abordagem os elementos relacionados ao samba, as crônicas
analisadas abordam: o malandro e a "instituição malandragem" como no caso dos textos contidos na
1ª e 5ª edições da revista; a mudança de espaço físico dos sambas da primeira geração para os do
"pessoal do Estácio" tratando também das reformas urbanas e sanitárias às quais o Rio de Janeiro
das décadas de 1930 e 1940 atravessou, a exemplo, das crônicas inseridas na 4ª e na 12ª publicação;
o crescimento da indústria fonográfica e sua interferência no modo de fazer música brasileira, bem
como os mecanismos de compra, de venda e de parcerias nos sambas entre compositores, cantores e
gravadoras presentes no 7ª número da revista e a nostalgia vivida pelos colaboradores da revista em
relação a "época de ouro" da música brasileira, tendo como marco de referência a década de 1930,
contida na 13ª crônica.
O malandro, a malandragem e uma "tradição popular malandra" foram afirmados como
elementos nacionais consagrados pela historiografia brasileira. Esta, se apoiando na abolição da
escravatura onde na década de 1880 um grande contingente de ex-escravos - que seriam os
ancestrais dos primeiros compositores de samba - buscaria, nas atividades ilegais e informais,
maneiras de tirar o seu sustento, abdicando de qualquer atividade relacionada ao trabalho por haver
relação com os difíceis anos de escravidão, justificaria sua teoria do malandro como mito nacional.
Tiago de Melo Gomes, em sua tese de mestrado, busca desconstruir essa enraizada tradição
historiográfica mostrando que contos ligados à tradição oral francesa e inglesa já traziam a temática
malandra desde o Antigo Regime. Ao longo do trabalho tem-se o objetivo de compreender como se
deu a transformação de um tipo como malandro em personagem nacional.
O samba malandro teve sua trajetória de nascimento (como acima descrito), de
sobrevivência - até meados do período do Estado Novo quando o governo entende que seu caráter é
potencialmente desestabilizador para o país por pregar atitudes e enaltecer figuras não desejadas
pela “máquina varguista” e o substituiu por sambas de exaltação - e de desaparecimento após 1945
quando "se tornaria anacrônico devido à instituição do capitalismo brasileiro". 153 Gomes aponta
para o fato de que mesmo pouco desenvolvida por estudiosos, essa tese da tradição historiográfica a
respeito do malandro foi amplamente utilizada por diversos autores, alguns inclusive utilizados
nessa pesquisa como José Ramos Tinhorão, Sérgio Cabral, Alcir Lenharo, Renato Ortiz, João
153
GOMES, Tiago de Melo. Lenço no pescoço: o malandro no teatro de revista e na musica popular "nacional",
"popular" e cultura de massas nos anos 1920. Dissertação de mestrado. Universidade de Campinas, Campinas, 1998.
p.4. Máximo e Carlos Didier.154 O autor continua questionando a visão compartilhada por muitos
autores de que os sambas malandros, escritos, segundos esses mesmos pesquisadores, "todos" antes
de 1937 seriam os sambas puros, produzidos com sinceridade, diferente dos sambas de exaltação,
também enquadrados sem exceções no período do Estado Novo que, por terem sido pensados sob a
pressão da censura, portanto, de modo forçoso, não seriam considerados música de muito boa
qualidade, pois perderiam sua ingenuidade. Segundo Gomes:
[...] as letras de samba de conteúdo malandro podem ser lidas de forma inteiramente livre de
relativizações, uma vez que foram produzidas de forma "autêntica". Já os sambas classificados
como exaltativos são desprezados, tidos como fruto da censura. Logo, já no Estado Novo esta
inocência já está perdida, algo como uma expulsão do paraíso a partir da qual a música e o povo
nunca mais seriam os mesmos. O malandro e seus sambas aparecem então como uma alegoria do
último momento antes do país ser atingido pelo capitalismo, responsável pela perda de
autenticidade da música popular, vista aqui também como uma alegoria do povo, que também
perdeu sua inocência após o advento do capitalismo. 155
Item a item o autor tenta desconstruir as premissas mencionadas acima nos mostrando que
nem todos os sambas malandros foram escritos antes de 1937 e nem todos eles são ingênuos, nem
todos os sambas de exaltação foram produzidos dentro do período do Estado Novo e nem todos são
"forçados" e "impuros", e que o samba também não morre com o nascimento do capitalismo. Em
linhas gerais, o autor, baseado em fontes documentais (que são em sua maioria letras de sambas do
século XX) tem a verdadeira intenção de nos levar a pensar em uma historiografia já consolidada,
porém pouco revisada e que merece possivelmente, consideráveis modificações.
As primeiras músicas com a temática da malandragem ou com o personagem do malandro
aparecem nos últimos anos da década de 1920. Com a crescente valorização dos elementos
"nacional-populares" o malandro, se distancia cada vez mais "do papel de simples trapaceiro para,
como parceiro da mulata, consagrar-se como pitoresco representante de um país que tinha orgulho
do caráter singular de suas "classes populares".
156
Para Gomes, o samba 157 (como hoje o
conhecemos) e o malandro nasceram, para a música popular, num mesmo período e beneficiaram-se
de um contexto de valorização de elementos tidos populares, ascendendo concomitantemente como
símbolos nacionais. Essa valorização está ligada à um progresso que se pretendia para o Brasil,
154
Os trabalhos dos autores acima citados são: CABRAL, Sérgio, "Getúlio Vargas e a Música Popular Brasileira", In:
Ensaios de Opinião, 1975, p. 40-41 e No Tempo de Almirante: uma história do rádio e da MPB, RJ, Francisco Alves,
1990, p.197; LENHARO, Alcir, Sacralização da Política, Campinas, Papirus/Unicamp, 2a. edição 1989, p.40;
MÁXIMO, Jõao e DIDIER, Carlos, Noel Rosa: uma biografia, Brasília. Linha Gráfica/Unb, 1990, pp.132 e 481;
ORTIZ, Renato, Cultura Brasileira e Identidade Nacional, SP, Brasiliense, 5a. edição, 1994, p.43; TINHORÃO, José
Ramos, Música Popular: um tema em debate, RJ, JCM, 2a. edição 1969, p. 149. 155
GOMES, Tiago de Melo. Op. Cit., p. 20-21. 156
Ibidem, p. 129. 157
Entenda-se, nesse contexto, por samba a segunda fase do samba ou os sambas do bairro do Estácio. elevando-o à um patamar de país "novo" procurando elementos que o identificassem como único. O
samba, com suas temáticas, se enquadra muito bem para ser eleito como ritmo nacional por
excelência, por representar a modernidade baseada na tradição. De acordo com Tiago de Melo
Gomes:
A construção da idéia de que o vigor da nação brasileira estava na "alma popular" levou a um
progressivo interesse pela vida dos subúrbios e principalmente, dos morros [...] Entre outros
símbolos deste que era continuamente construído como um "mundo à parte", o samba e o
malandro ocupavam um lugar especial. O malandro seria reconhecido como o habitante típico
deste pitoresco ambiente, enquanto que o samba viria a ser a sua "mais pura expressão cultural".
158
O malandro é personagem típico dos sambas da segunda geração, dos sambas do Estácio, os
mesmos enaltecidos pela Revista da Música Popular, que os via como a única manifestação
autêntica de música urbana brasileira. Como não poderia deixar de ser, Pérsio de Moraes, em suas
crônicas, escolhe sempre sambas produzidos entre as décadas de 30 e 40 para servirem de base ao
"retratável" ao qual ele irá discorrer no momento. Nas crônicas presentes na 1a. e na 5a edição do
periódico, Moraes traz à tona a temática malandra. Na primeira com o samba "Ai que saudades da
Amélia" e na quinta com "Conversa de Botequim". Abaixo as letras das músicas:
"Ai que saudades da Amélia" (Mário Lago e Ataulfo Alves / 1942)
"Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Nem vê que eu sou um pobre rapaz
Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai, meu deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher
Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
Quando me via contrariado
Dizia: "meu filho, o que se há de fazer!"
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade"
"Conversa de Botequim" (Noel Rosa e Vadico / 1935)
"Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada,
Um pão bem quente com manteiga à beça,
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada.
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol.
158
GOMES, Tiago de Melo. Op. Cit, p. 151. Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol.
Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa.
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro,
Um envelope e um cartão.
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos.
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas,
Um isqueiro e um cinzeiro.
(Refrão)
Seu garçom faça o favor de me trazer depressa...
Telefone ao menos uma vez
Para três quatro, quatro, três, três, três
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório.
Seu garçom me empresta algum dinheiro,
Que eu deixei o meu com o bicheiro.
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente.
(Refrão)
Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa..."
A primeira é uma composição de 1942 de autoria de Mário Lago com melodia de Ataulfo
Alves. Na letra da música estão presentes três personagens: o protagonista, sua mulher atual e sua
ex-mulher. Segundo os autores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, que escreveram dois
volumes do livro "A canção no tempo 85 anos de músicas brasileiras", onde há o catálogo de vários
sucessos musicais desde 1901 até 1985, o tema da música seria "um confronto dos defeitos da
mulher atual com as qualidades da mulher anterior. A atual, a quem o protagonista se dirige, é
exigente, egoísta, "Só pensa em luxo e riqueza", enquanto a anterior é um exemplo de virtude e
resignação" 159. A primeira mulher seria a realidade, a representação do presente, já a anterior "é o
passado, uma saudade idealizada na figura da mulher perfeita, pelos padrões da época" 160.
As transformações pelas quais o Brasil atravessou no século XX tiveram influências diretas
no modelo familiar e no lugar que a mulher ocupou no âmbito doméstico e fora dele. Com a
transição da sociedade rural com bases familiares patriarcais para uma sociedade bem mais
159
SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo. vol 1 (1901-1957). Editora: 34. São Paulo,
1997. p.205. 160
Idem. industrializada gerando mobilidade social, cultural e até geográfica o arquétipo familiar tradicional
se altera. Porém, ainda hoje são notáveis alguns registros relacionados às origens da estrutura
familiar. Segundo Rigonatti, citado pelas autoras Marlene Simionato e Raquel Oliveira:
[...] da família romana, por exemplo, temos a autoridade do chefe da família, onde a submissão da
esposa e dos filhos ao pai confere ao homem o papel de chefe. Da família medieval perpetua-se o
caráter sacramental do casamento originado no século XVI. Da cultura portuguesa, temos a
solidariedade, o sentimento de sensível ligação afetiva, abnegação e desprendimento.161
Decorrente principalmente da inserção feminina no mercado de trabalho - acarretando no
trabalho dela fora de casa, diminuindo seu tempo para cuidar dos filhos e do marido - as tarefas
exercidas pelo homem e pela mulher, dentro do lar, se modificam, assim como seus papeis sociais
fora do âmbito familiar.
Porém, Mário Lago e Ataulfo Alves nos versos da música em questão, remontam a uma
época em que havia um estabelecimento de limites distintos para as funções exercidas por homens e
mulheres. A mulher era responsável pelos cuidados com as crianças e com o lar, já o homem ficava
encarregado de ganhar dinheiro para sustentar esse lar. Segundo Bernardo Jablonski:
[...] em termos ideológicos, criou-se um sistema de valores e de crenças que procurava justificar
tal divisão, levando mulheres a assumir posturas "expressivas", ligadas à compaixão,
conformidade, cooperação e prontidão para ajuda. Já os homens se identificavam com os ideais
"instrumentais", próximos à autonomia, independência, ambição e repressão das emoções. 162
É justamente essa postura de compaixão, conformidade, cooperação e prontidão para ajuda
que tanto a Amélia da letra da música quanto a Vina da crônica de Pérsio de Moraes adotam.
Explico-vos. A Vina foi a personagem escolhida por Pérsio para retratar na realidade o
samba de Mário Lago e Ataulfo Alves. Com a intenção de provar que todos os personagens de
sambas famosos poderiam ser pessoas do dia-a-dia e conhecidos de qualquer um de nós, Pérsio
busca, geralmente, relacionar as músicas com gente conhecida em sua vida. Vina, era a empregada
de seu irmão que morava em Cascadura, subúrbio do Rio de Janeiro. O samba trata da
malandragem, mas nesse caso, não seria possível falar do seu marido "malandro" sem pensarmos o
papel das mulheres dos malandros, que também fizeram parte da história do samba. Mulheres que,
em sua maioria, eram resignadas, submissas e partilhavam daquelas posturas conformistas
161
RIGONATTI, S. P. et al. Temas em psiquiatria forense e psicologia jurídica. São Paulo: Vetor Editora PsicoPedagógica, 2003. apud SIMIONATO, Marlene Aparecida Wischral; OLIVEIRA, Raquel Gusmão. Funções e
Transformações da Família ao longo da história. In: I Encontro Paranaense de Psicopedagogia, 2003. p.4 162
JABLONSKI, Bernardo. Papéis conjugais: conflito e transição. In: Féres-Carneiro, Terezinha (org): Relação
amorosa, casamento, separação e terapia de casal. Coletâneas da Anpepp no. 1, pag. 113-124. Rio de Janeiro: 1996.
p.118. sublinhadas acima. Vina e Amélia, eram claros exemplos da existência de tais mulheres. Pérsio, na
crônica, quando narra seu reencontro com Vina - que sempre ocorria em alguns domingos quando
ia cumprir a tarefa de visitar seu irmão e almoçar com a família dele - escreve que Vina estava
"mais magra, mais velha e tem até um dente a menos. Mas seu jeito é o mesmo. Àquela eterna
alegria mansa e mole. Àquêle conformismo cansado das mulheres pobres que trabalham para ajudar
o marido." 163
Miguel, marido de Vina, personifica um tipo claro de malandro, segundo nossa análise.
Chegamos a tal conclusão decorrente de algumas passagens da crônica, como à exemplo do
momento em que Pérsio pergunta a Vina o que é feito do Miguel e ela dá início ao diálogo dos dois
contando:
- Foi na estação se distrair. Sabe? êle não anda bom não. / - Que é que êle tem? Parece tão forte. / É, quem vê êle não diz. Eu também não sei o que é. Só sei que êle tem tido umas molezas, umas
coisas esquisitas, assim um nervoso. Se fôsse rico, o povo dizia que era luxo, mas pobre não tem
disso não. Quando o cara amolece, o negócio não é brinquedo não. Olha, só esta semana o coitado
faltou três dias no serviço. / - Estava de cama?/ - Não. É que na quinta-feira não houve jeito do
pobre acordar cedo, por mais que eu fizesse. Resultado: chegou no serviço meia hora atrasado
(veja você: só meia hora). Pois o encarregado começou com <<mais mais>>, conversa mole, etc.,
e o Miguel fês o que deveria ter feito mesmo: virou as costas e voltou para casa. E por desafôro,
não foi também na sexta. Só foi ontem mas de tarde, receber a semana. Êle tem personalidade, isso
tem!164
O dialógo prossegue com Vina contando à Pérsio que Miguel diz à ela que vai passar a
aturar as indiretas do encarregado para não perder o dia de trabalho e com isso não diminuir o
orçamento de casa, porém ela logo diz que avisou à ele que aquilo ela não topa, que por falta de
comida não se morre naquela casa, pois ela ainda se considera muito forte, diz que não tem luxo e
sabe trabalhar. "Lavo roupa p'ra fora, faço pastéis e doces que o moleque vende na estação. Aliás,
não faço nada demais em ajudar o Miguel, que é tão bom p'ra mim. Só quero que Deus o conserve
sempre assim, sempre meu, mas com sua <<personalidade>>".165
Pode-se inferir das palavras de Vina que ela admirava a "personalidade" (ou poderíamos
chamar de malandragem?) de Miguel e que era feliz por tê-lo ao seu lado. Uma questão a se pensar
é se ela o amava muito e com isso não se importava dele faltar ao trabalho, dormir até mais tarde
tendo ela - e o filho - que arcar com as despesas de casa, ou o fato era que em uma sociedade que
prezava muito pela instituição do casamento, ficar sozinha, para o gênero feminino não era nem um
pouco atraente.
Revista da Música Popular, n.º 1, p.47. Idem. 165
Idem. 163
164
Quando Miguel aparece na crônica, Pérsio pergunta a ele como ele está, e sua resposta é
tipicamente malandra: "Eu não vou. me levam, como se diz".166 E na seqüência, Miguel explica a
Pérsio sua "doença" dizendo que: "Quem me vê não diz, mas eu estou muito doente. Não sei de que,
mas estou. Só quem sabe sou eu, Deus e a Vina."167 Para Pérsio, fica clara a "invenção" da doença
de Miguel para servir como justificativa para não ter que pegar no pesado cumprindo com suas
tarefas de chefe do lar, que passam a ser exercidas com resignação e conformismo, por sua esposa,
Vina. Ainda na crônica, há uma comparação entre Amélia e Vina onde Moraes afirma que ambas
não tinham a menor vaidade e isso decorria do fato de não terem tempo de ter, tinham que trabalhar
para sustentar seus maridos, que volta e meia apareciam com "doenças" sem explicações nem
sintomas, mas que os impossibilitavam de exercerem trabalho quaisquer. E por conta da "doença"
tinham que sair para se distrair e se animar; quem sabe a "doença" não passasse. Para finalizar a
crônica Pérsio conversa com o leitor sobre como ficaria Miguel sem a Vina: "Agora, se Miguel vier
a vier a perder a Vina - o que não desejo porque sou seu amigo - vai sentir uma falta enorme uma
grande saudade. e se lamentará eternamente: - Vina é que era mulher de verdade! ". 168
A segunda composição de 1935 tem autoria de Noel Rosa com melodia de Vadico. A letra
da música é uma crônica perfeita do personagem malandro, na figura de freguês do botequim,
dando ordens ao garçom que, no seu entendimento, deveria ser muito mais que um simples
atendente. Segundo Severiano e Mello:
[...] o personagem principal um freguês desabusado que, ao preço de uma simples média com pão
e manteiga, acha-se no direito de agir como se estivesse em sua casa. Assim, em ordens
sucessivas, ele exige do garçom atendimento rápido e eficiente (...), que inclui ainda o
fornecimento de "caneta, tinteiro, envelope, cartão, cigarro, isqueiro, cinzeiro, revistas, o resultado
do futebol" e até "o empréstimo de algum dinheiro", pois deixara o seu com o bicheiro. Tudo isso
fiado, pois, para terminar, o sujeito ordena: "Vá dizer ao seu gerente / que pendure essa despesa /
no cabide ali em frente". 169
Os autores escrevem que o freguês agia "como se estivesse em sua casa". É justamente isso
que muitos botequins do Rio de Janeiro representaram entre o final da década de 1920 até fins de
1930. Como já foi explicado no primeiro capítulo deste trabalho, os botequins eram espaços de
sociabilidade muito representativos para a capital federal nesta época. A maioria dos sambistas, se
não todos, freqüentava cada qual o "seu" botequim, que era, várias vezes, o mesmo que de algum de
seus colegas. Nesses espaços, os compositores, cantores e admiradores de samba se encontravam,
trocavam informações, ficam à par das novidades e ofereciam seus serviços como músicos e
166
Idem. 167
Idem. 168
Idem. 169
SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. Op. Cit., p.135. compositores. Por essa razão, os botequins eram também chamados de "escritório" pelos sambistas
da "época de ouro" da música brasileira.
Como os botequins eram espaços de predileção dos sambistas, por analogia, eram também
os dos malandros. E a quinta crônica de Pérsio, que também aborda a temática da malandragem
versa em torno dessa familiaridade com que se portavam os malandros e/ou sambistas dentro dos
"seus botequins" e como se sentiam deslocados fora deles.
Pérsio inicia sua história contando que o tipo ao qual irá retratar na crônica daquele
momento foi encontrado por acaso. Estava ele sentado em um bar e de repente adentra o recinto um
tipo que lhe parecia familiar, mas ele não sabia quem era. Após observar brevemente sua
vestimenta, seu "ar um pouco de arrogância, um pouco de zombaria, um pouco de condescendência
superior" 170 e seu comportamento folgado logo percebeu que se tratava do personagem (ou de
alguém que poderia ter sido o personagem) da letra da do samba de Noel e Vadico.
O autor diz que ficou feliz em reconhecer o personagem e afirma que "pela pinta (do
malandro), iria dar um espetáculo completo". 171 O autor esperava que o sujeito interpretasse ao
vivo e a cores as atitudes do freguês da música que lhe veio a cabeça. Isso teria acontecido, se não
fosse, após o pedido do cafezinho seguido de um copo d’água bem gelada o garçom ter ido até a
mesa do sujeito, limpando-a e dando o seguinte recado: "- Café só em pé". 172 Segundo Pérsio:
Esta informação bruta e totalmente inesperada para o mulato, deixou-o apalermado, como se não
tivesse compreendido direito. O sorriso se fechou quase totalmente, ficando apenas um restinho,
mantido a custo, num canto de cara. Heroicamente sustentou o meio sorriso, onde encaixou um
cigarro com oportunidade. Só então passou a estudar o ambiente. 173
Nesse estudo o malandro observa que não se tratava de um botequim da zona norte, mas de
um bar da zona sul. A decoração era diferente, havia luzes escondidas em enfeites de gesso nas
paredes, os móveis (mesas, cadeiras e bancada) eram coloridos, ao invés de guardanapos no centro
da mesa se encontrava um depósito de canudos, enfim "um bar que até agora só vira em cinema".
174
O malandro desconcertado percebendo que estava em um ambiente diferente do qual procurava,
pegou o cardápio e começou a olhá-lo. O autor conta que ele nem mesmo conseguia entender o que
estava escrito, era tudo muito diferente e complicado. As pessoas que freqüentavam o ambiente
também lhe pareciam extremamente estranhas.
Revista da Música Popular, n.º 5, p.252. Idem. 172
Idem. 173
Idem. 174
Idem. 170
171
Porém, Pérsio escreve que apesar da situação ser desfavorável ao sujeito, ele não perde a
classe em momento algum:
O mulato estava derrotado. Via-se em sua cara que êle estava deslocado naquele bar da zona sul.
Sua bossa não podia funcionar naquele cenário. Mesmo assim, ainda manteve sua velha classe.
Meteu entre os lábios um palito de fósforo, derrubou o chapéu verde sôbre os olhos e levantou-se
já, de novo, com alguma pose. Concedeu um olhar de cima para o garçon, fêz uma meia volta
aceitável e gingou o passo para a rua. 175
As referências descritas pelo autor, como "manter a velha classe", "derrubar o chapéu sobre
os olhos", "levantar com pose" e gingar até a rua" atuam num sentido de legitimar a escolha daquele
tipo relacionando-o com o malandro/freguês da letra da música. Os elementos citados estão
intimamente ligados à imagem que se tinha (e ainda se tem) da figura do malandro, portanto, se o
sujeito ao qual Pérsio encontrou, possuía essas características ele poderia ser rotulado como tal.
A crônica termina contando que o mulato sai do bar, pega - disfarçadamente - um ônibus e
segue até o bairro de Vila Isabel, seu bairro. Ele poderia então sentir-se em casa novamente, pois
segundo Pérsio, em seu bairro:
[...] a cadeira de botequim quer dizer confôrto. Onde o cafezinho dá direito a informações
"comerciais" como o resultado do bicho, do futebol, das corridas de cavalos e de outros animais.
Onde o cafezinho dá direito a "convert" de água gelada, palito, jornal e guardanapo. Onde o
garçom tem cuidado com sua saúde, encostando a porta por causa do sol ou de um golpe de ar.
Onde além de tudo, o gerente é "seu" e êle pode pendurar a conta com dignidade. 176
Como nosso recorte espacial foi o botequim, seguimos com a crônica de número 7 que terá
como tema de análise o crescimento da indústria fonográfica e sua interferência no modo de fazer
música brasileira, bem como os mecanismos de compra, venda e parcerias nos sambas entre
compositores, cantores e gravadoras, que no início, ocorria justamente dentro dos botequins ou
"escritórios" como os sambistas preferiam. Na seqüência também iremos relacioná-la com as
crônicas da 4a. e 12a edições que versam sobre as reformas urbanas e sanitárias no Rio de Janeiro.
O texto de Pérsio, nesta 7a. edição chama-se O Sambista Inédito e a música que dá origem à
crônica é de autoria de Crispim Rocha, porém sem título conhecido. 177 Abaixo segue a letra:
Composição de Crispim Rocha 178
175
Ibidem, p.253. 176
Idem. 177
Pesquisamos no Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, disponível em:
http://www.dicionariompb.com.br/, 04/06/2011; em SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no
tempo. vol 1 (1901-1957). Editora: 34. São Paulo, 1997. e nos demais materiais bibliográficos utilizados nesse trabalho,
porém não encontramos nenhuma menção ao compositor, nem nada relacionado à letra da música acima citada. "Vão desmoronar as favelas
Aonde que eu vou ficar
Ô, senhor Prefeito,
Arranje casa pros pobres morar
Arranje casa pros morar
Na rua nós não podemos ficar
Aonde eu moro já mandaram me mudar
Apelo para a sua lealdade
Não deixe as favelas se desmoronar"
Pérsio conta que conheceu Crispim numa noite chuvosa de domingo no bairro de Bangu,
subúrbio do Rio de Janeiro. O autor segue sua descrição dizendo que ele estava:
[...] em uma sala cheia de samba e coisas de samba como instrumentos, fumaça de cigarros e muita
gente, principalmente, da boa raça negra. Os violões marcando um compasso consciente, um
cavaquinho peralta e um pandeiro até discreto. Tudo em volta da mesa redonda que apenas servia
para oferecer uma fantástica batida de maracujá, de saudosa memória. A voz agreste de Crispim se
esgueirava pelo som dos violões, fazia dueto com o cavaquinho e obedecia, respeitosa, a marcação
do pandeiro. 179
Também nos conta que já havia se passado um mês desde que esteve nessa reunião e aquele
samba desconhecido continuava na sua cabeça. Ele ressalta que até aquele momento ainda sentia
uma grande sensação de pena, pois o leitor nunca viria a ouvir aquele samba, levando em conta sua
certeza de que ele nunca seria gravado - certeza que baseado em nossa pesquisa se confirma: não há
referências sobre Crispim Rocha e seu samba. De acordo com Pérsio:
[...] há uma série de "exigências" que o bisonho Crispim ignora e, naturalmente, não
compreenderia. "Exigências" como: comprar cantor, dar parceria a cantor, dar parceria a
"trabalhador" da música, dar parceria a parceiros do cantor, dar parceria a poderosos discotecários,
dar parceria a tantos parceiros que seu próprio nome não caberia no sêlo do disco, enfim,
"exigências" usuais, porém, incompreensíveis para Crispim. 180
O cronista faz uma crítica clara aos novos padrões e condutas impostos pela indústria
fonográfica que estaria matando o samba autêntico. Antes do advento desse mercado de discos as
músicas eram compostas mais por amor do que por dinheiro, e apesar de pouco rentáveis, eram
esteticamente boas, tinham qualidade e nos deixavam felizes ao ouvi-las. Diferentemente do que
ocorre após o crescimento desse segmento industrial que transforma a música - vista como arte, que
deve ser conservada "pura", segundo pensamento de Pérsio de Moraes e seus colegas escritores da
178
Não temos a informação do título da composição e, como ela não foi gravada, também não podemos datar a letra da
música. 179
Revista da Música Popular, n.º 7, p.360-361. 180
Ibidem, p.361. Revista da Música Popular - em um negócio como qualquer outro que visa o lucro através da
venda, antes de qualquer coisa.
Se referindo aos colaboradores da Revista da Música Popular Maria Clara Wasserman nos
explica que:
a crítica que os jornalistas dirigiam ao moderno mercado fonográfico era a falta de critérios
estéticos e a não preocupação em deixar vivo o que chamavam de passado de ouro, ou heróico da
música brasileira. Os articuladores do periódico acreditavam que a conservação das tradições
resgataria uma “consciência” da ainda nascente indústria fonográfica dos anos 50 para que esta
não se deixasse levar por “modernismos” e “estrangeirismos”. Outra característica da publicação
era o juízo de valor presente na definição de “música boa” que estava ligada ao passado heróico e
era desviada naquele momento pela indústria do rádio e do disco. 181
As "exigências" citadas por Pérsio na crônica em relação a comprar cantor e dar parceria a
"Deus e o mundo" estão presentes no mundo do samba desde a década de 1920. Já citadas no
capítulo anterior, as diversas modalidades de compra e venda de sambas, incluindo as práticas de
parceria eram variadas. As letras podiam ser vendidas pelos compositores por uma soma fixa que
implicava em tirar deles o direito autoral completo da obra, concedendo-o ao comprador
(constituindo-se esse o caso mais grave). Ou o compositor também vendia todos os direitos autorais
da música, porém teria sua autoria reconhecida na partitura, no disco ou em ambos. Ou ainda o
compositor poderia ceder apenas uma parte dos direitos autorais com o compromisso, por parte de
quem o comprava, em gravar o samba. Esse terceiro caso, mais conhecido como parceria, se torna
comum entre os sambistas da década de 1930.
A princípio, esse era um bom negócio para os sambistas que admitiam ser muito difícil ter
seus sambas gravados sem a influência de algum intérprete que gozasse de bom prestígio no meio
artístico. Eles serviam como a ponte, ou a porta de entrada para que aquelas letras escritas por
homens desconhecidos, saíssem do anonimato e se tornassem grandes sucessos escritos por
sambistas que posteriormente entrariam para o hall dos gênios da música popular brasileira, como
Noel Rosa e Ismael Silva. Porém, com o crescimento da indústria fonográfica o uso abusivo dessas
práticas, visando sempre o lucro de alguns, essa situação se agrava e passa a caracterizar uma
prática muito negativa, a qual Pérsio de Moraes e o restante de colaboradores da Revista da Música
Popular, refutam com veemência. Segundo eles, aquilo ocorria em decorrência da desenfreada
busca por lucros almejados pelo mercado de discos. O autor Dilmar Miranda nos dá um panorama
de como isso acarreta, por vezes, num fim drástico para os compositores quando escreve que:
181
WASSERMAN, Maria Clara. Op. Cit., p.89-90. [...] como o compositor popular não tinha acesso aos meios burocráticos usuais para o registro de
suas músicas com vistas ao recebimento dos direitos autorais, via de regra, eram ludibriados pelos
apropriadores de suas criações, disso só tomando ciência quando procurava usufruir
financeiramente de sua arte. Desorganizados e semi-analfabetos, muitos só tardiamente
começaram a participar das sociedades arrecadadoras de direitos autorais. 182
As crônicas da 4a. e da 12a. edição se interligam à esta crônica quando remetem à
lembranças das questões suscitadas pelas das reformas urbanas e sanitárias às quais o Rio de Janeiro
das primeiras décadas do século XX atravessou, alterando os espaços da capital federal. Na letra da
música de Crispim Rocha, há um apelo ao "senhor prefeito" para que este não deixe que os pobres
durmam na rua novamente. Eles, que já foram despejados uma vez quando tirados à força do centro
do Rio de Janeiro, tendo que migrar para os morros - dando início as favelas - ou para os subúrbios
da cidade pede para que o prefeito, dessa vez, consiga moradia para eles não os deixando na miséria
como já haveria ocorrido no passado.
As músicas que inspiraram Pérsio de Moraes a escrever as próximas crônicas de nossa
análise são respectivamente Praça Onze e Laurindo - para a primeira - e variadas marchinhas de
carnaval - para a segunda.183
"Praça Onze" (Herivelto Martins e Grande Otelo / 1942 )
"Vão acabar com a Praça Onze
Não vai haver mais Escola de Samba, não vai
Chora o tamborim
Chora o morro inteiro
Favela, Salgueiro
Mangueira, Estação Primeira
Guardai os vossos pandeiros, guardai
Porque a Escola de Samba não sai
Adeus, minha Praça Onze, adeus
Já sabemos que vais desaparecer
Leva contigo a nossa recordação
Mas ficarás eternamente em nosso coração
E algum dia nova praça nós teremos
E o teu passado cantaremos"
"Laurindo" (Herivelto Martins / 1943)
"Laurindo sobe o morro gritando:
Não acabou a Praça Onze, não acabou
Vamos esquentar os nossos tamborins
Procure a porta-bandeira
E põe a turma em fileira
182
MIRANDA, Dilmar Santos de. A cidade e o samba. In; Logos: comunicação e conflitos urbanos. Rio de Janeiro: v.
14, n. 26, p.84-97, 2007. p.95. 183
Selecionamos para transcrição apenas cinco das doze marchas carnavalescas citadas na crônica para não estendermos
muito o texto com letras de música. E marca ensaio pra quarta-feira
E quando a escola de samba chegou
Na Praça Onze não encontrou
Mais ninguém, não sambou
Laurindo pega o apito, apita "evolução"
Mas toda a escola de samba
Largou bateria no chão
E foi-se embora cantando
E daí a pirâmide
Foi aumentando, aumentando."
Marchas de carnaval:
"Mamãe Eu Quero" ( Jararaca e Vicente Paiva / 1937)
"Mamãe eu quero, mamãe eu quero,
Mamãe eu quero mamar!
Dá a chupeta! Dá a chupeta! Ai! Dá a chupeta
Dá a chupeta pro bebê não chorar!
Dorme filhinho do meu coração!
Pega a mamadeira e entra no meu cordão.
Eu tenho uma irmã que se chama Ana:
De piscar o olho já ficou sem a pestana.
Eu olho as pequenas, mas daquele jeito
E tenho muita pena não ser criança de peito!...
Eu tenho uma irmã que é fenomenal:
Ela é da bossa e o marido é um boçal!"
"O Teu Cabelo Não Nega" (Irmãos Valença e Lamartine Babo / 1932)
"O teu cabelo não nega, mulata,
Porque és mulata na cor,
Mas como a cor não pega, mulata,
Mulata eu quero o teu amor.
Tens um sabor bem do Brasil,
Tens a alma cor de anil,
Mulata, mulatinha, meu amor,
Fui nomeado teu tenente interventor.
Quem te inventou, meu pancadão
Teve uma consagração.
A lua te invejando faz careta,
Porque, mulata tu não és deste planeta.
Quando, meu bem, vieste à Terra,
Portugal declarou guerra.
A concorrência então foi colossal:
Vasco da Gama contra o batalhão naval."
"Quebra-quebra Gabiroba" (Plínio Brito / 1930)
"Ó quebra, quebra gabiroba
Eu quero ver quebrar
Ó quebra, quebra gabiroba
Eu quero ver quebrar
Ó quebra, quebra gabiroba
Eu quero só te amar
Ó quebra, quebra gabiroba
Eu quero só brincar
Ó quebra aqui e quebra lá
Eu quero ver quebrar
É no rio de janeiro
Que é a terra do amor
Só se vive sem dinheiro
Mas se goza com calor"
"Turma do Funil" (Mirabeau, Milton de Oliveira e Urgel de Castro / 1956)
"Chegou a turma do funil
Todo mundo bebe
Mas ninguém dorme no ponto
Ha, ha, ha, ninguém dorme no ponto
Nós é que bebemos e eles que ficam tontos
Eu bebo, sem compromisso,
com meu dinheiro, ninguém tem nada com isso
Aonde houver garrafa, aonde houver barril
Presente está a turma do funil."
"Quem Sabe, Sabe" (Carvalhinho e Joel de Almeida / 1956)
"Quem sabe, sabe
Conhece bem
Como é gostoso
Gostar de alguém
Ai morena deixa eu gostar de você
Boêmio sabe beber
boêmio também tem querer."
Para a primeira crônica temos uma composição igualmente datada de 1942 de autoria de
Herivelto Martins e Grande Otelo. A letra, como o próprio nome da música indica, fala sobre a
Praça Onze que existiu por mais de 150 anos, delimitada pelas ruas Marquês de Pombal (a oeste),
Santana (a leste), Visconde de Itaúna (ao sul) e Senador Euzébio (ao norte). Ela foi destruída em
1941 quando a prefeitura começou as obras para a criação da Avenida Presidente Vargas. A Praça
Onze, assim como algumas das ruas que a circundavam já foram citadas neste trabalho. Isso porque
esse local, antigamente denominado Rocio Pequeno, é famoso para o mundo do samba desde as
primeiras décadas do século XX. Segundo Severiano e Mello:
[...] era o local mais cosmopolita do Rio de Janeiro. Em suas redondezas misturavam-se imigrantes
espanhóis, italianos e judeus de várias procedências com milhares de negros, na maioria oriundos
da Bahia. E foram os negros que transformaram a Praça Onze em reduto de sambistas. 184
Os negros fundadores dos primeiros ranchos nascidos cariocas adotaram a Praça Onze,
como local de saída para os cortejos. E a tradição se perpetuou com os blocos e com as escolas de
samba que usavam o espaço como marco espacial para o princípio dos desfiles. As tias baianas - e a
comunidade baiana no geral - habitava ao largo da praça, como à exemplo da Tia Ciata, que morava
na rua Visconde de Itaúna.
A autora Raquel Rolnik, pesquisando sobre territórios negros nas cidades brasileiras nos
explica que as ruas, assim como os terreiros - de samba, de jongo, de candomblé - eram territórios
de escravos durante a segunda metade do século XIX.
A contigüidade dos sobrados nas zonas centrais da cidade contribuía para que fosse intensa a
circulação de escravos domésticos: buscando água nos chafarizes, indo ou voltando com a roupa
ou os dejetos para jogar nos rios, carregando cestas perto dos mercados, transportando objetos de
um ponto a outro da cidade [...] na cidade do Rio de Janeiro, em 1860, havia cem mil escravos
para uma população total de 250 mil habitantes, 60% dos quais envolvidos com serviço doméstico
[...] nas ruas do centro, escravos domésticos misturavam-se aos de ganho, alugados por seus
senhores por hora ou dia. 185
Segundo a autora, tanto São Paulo quanto o Rio de Janeiro passaram por importantes
transformações na virada do século XX – como, por exemplo, a abolição da escravidão - que
repercutiriam primeiramente em um aumento populacional e na densidade demográfica - levando
em conta o êxodo do escravos das fazendas do interior do estado para a capital - influenciando em
futuros planejamentos criados para embranquecer a cidade e redefinir os espaços territoriais. As
reformas urbanas e sanitárias sofridas pela capital federal se enquadram nesses planos. De acordo
com Rolnik:
[...] a face urbana desse processo é uma espécie de projeto de "limpeza" da cidade, baseado na
construção de um modelo urbanístico e de sua imposição através da intervenção de um poder
municipal recém-criado. Um dos principais alvos de intervenção foram justamente os território
negros. A violência dessa transformação foi maior no Rio de Janeiro, não só porque a cidade era
maior e mais importante, mas sobretudo porque, na virada do século, era ainda uma cidade muito
negra. 186
184
SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo. vol 1 (1901-1957). Editora: 34. São Paulo,
1997. p.209. 185
ROLNIK, Raquel. Territórios negros nas cidades brasileiras (etnicidade e cidade em São Paulo e no Rio de
Janeiro). Estudos Afro-Asiáticos, n. 17, 1989. p.4. 186
Ibidem, p.7. A virada do século e as primeiras décadas de 1900 ficaram conhecidas como a "era do botaabaixo", o que nos dá uma dimensão do tamanho e da violência de como foram postas em prática as
reformas no Rio de Janeiro. Elas iniciam, sob o comando do engenheiro e prefeito do distrito
federal, Pereira Passos em 1902 187 até a inauguração da Avenida Central pelo presidente da
república Rodrigues Alves em 1906. Sob o slogan "Rio: civilize-se!" Passos executa a maior
reforma já vista na capital. Reforma esta, que já estava sendo pensada desde os últimos anos do
império, visto a necessidade de elevar o Rio de Janeiro à verdadeira capital federal, fazendo jus a
seu posto, se igualando em termos de beleza, modernização, higiene, estrutura, e civilidade às
grandes cidades européias como Londres e Paris.
O Rio de Janeiro que no começo do século XX ficava confinado entre quatros morros (São
Bento, Conceição, Castelo e Santo Antônio), tendo suas ruas mal iluminadas e estreitas, prédios
antigos transformados em habitações coletivas, noções e hábitos de higiene precários - o que
favorecia constantes surtos de doenças - habitado por pessoas simples, mendigos e vendedores
ambulantes (pois as famílias abastadas já haviam se mudado para as novas freguesias, que
futuramente viriam a fazer parte da cidade com o título de zona sul e norte), necessitava
urgentemente, às vistas da elite, ser remodelado para adequar-se "ao uso e convívio exclusivo das
"pessoas de bem"". 188
A reforma atingiu em cheio "os mais importantes quilombos do Rio de Janeiro"189 dos quais
faziam parte a região portuária da Saúde e Gamboa e os cortiços e habitações coletivas da Cidade
Nova - Sacramento, Santa Rita, Santana e Santo Antônio - trazendo com isso enormes
conseqüências. Além de desencadear a "aceleração do processo de favelização e de periferização
dos subúrbios, com sua conseqüente proletarização, provocando a migração de camadas médias
urbanas para áreas mais nobres da cidade" 190 iniciando a segregação sócio-espacial da cidade
também provocou umas das maiores crises habitacionais já vistas pelo Rio de Janeiro o que
acarretou numa guerra civil. Segundo Rolnik:
[...] durante quatro dias (12 a 16 de novembro de 1904) alastrou-se a insurreição pelos espaços
plebeus da cidade: bondes foram virados e utilizados como trincheiras, combustões de iluminação
foram quebrados, o comércio foi depredado e saqueado, os insurretos enfrentaram os policiais. 191
A guerra de curta duração só teve fim quando o exército acaba intervindo e derrota o Prata
Preta, o capoeira mais famoso do bairro da Saúde que teria sido quem mais conseguiu resistir às
187
Há autores como a própria Raquel Rolnik que trazem o ano de 1904 como o marco de início das obras 188
ROLNIK, Raquel. Op. Cit., p.9. 189
Ibidem, p.10. 190
Site oficial Instituto Pereira Passos. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/ipp. 13/06/2011. 191
ROLNIK, Raquel. Op. Cit., p.10. forças policiais.
A respeito da "guerra" citada pela autora seu início foi desencadeado, igualmente, pelas
reformas sanitárias da capital federal. A guerra ficou conhecida como a "Revolta da Vacina". Tendo
ficado à cargo da prefeitura do distrito federal, além do embelezamento e alargamento das ruas da
cidade, demolição dos cortiços e construção de suntuosos prédios, também a participação no
combate a epidemias como a peste bubônica, a varíola e a febre amarela. Osvaldo Cruz foi o
médico sanitarista escolhido por Rodrigues Alves para comandar a política de saúde pública na
capital. Dentre as três doenças que o estado buscou combater, a única que empregava vacinação
como método preventivo era para a varíola, e foi ela o estopim para a revolta. Os moradores que já
estavam indignados com o autoritarismo empregado pelos higienistas que, muitas vezes
acompanhados de força policial, entravam em suas casas, jogavam "coisas" fora (segundo os
médicos: era lixo), mexiam em suas plantas e animais (buscando exterminar focos de proliferação
do mosquito Aedes aegypti - transmissor do vírus que causa a febre amarela e também a eliminação
de pulgas que serviam de meio de transporte para a doença infecciosa da peste bubônica) agora
seriam também obrigados por lei a vacinar-se contra sua vontade e sem que recebessem nenhuma
explicação e informação sobre o que estava acontecendo. As penas para aqueles que não se
vacinassem iam desde multas de grande valor até a proibição de a pessoa trabalhar.
Havia grande desconfiança quanto à eficácia da vacina, inclusive por parte da elite opositora
ao governo. Para a comunidade afro-descendente, outro problema era sua crença em curar as
doenças apenas através de rituais religiosos, não sendo adeptos a nenhum tipo de medicina
moderna. Tendo em vista toda essa conjuntura, Glória Kok descreve que:
[...] o centro da cidade, convulsionado pelas reformas urbanas de Pereira Passos, transformou-se
num palco de guerra. Os populares armavam-se de pedras, paus, vidros, ferros e outros
instrumentos que encontrassem pelas ruas para enfrentar as tropas de infantaria e cavalaria (...)
Durante quatro dias, as autoridades praticamente perderam o controle da região central e dos
bairros da Saúde e Gamboa. A multidão lutava contra o governo, a vacina e a polícia. 192
A situação descontrolada só voltou ao normal com a ajuda da Marinha, Exército e Guarda
Nacional, que tiveram que prestar reforços rápidos à prefeitura do distrito federal, que sozinho não
conseguia controlar os revoltosos. No dia 16 de novembro, quando a insurreição tem fim o governo
deu início as prisões e deportações. Várias pessoas foram postas em "porões de navios para uma
viagem sem volta ao Acre, território que o Brasil havia comprado da Bolívia em 1903". 193 Segundo
a autora, eles tinham a dolorosa missão de desaparecerem, pois o governo tinha a clara intenção de
192
193
KOK, Glória. Rio de Janeiro na época da Av. Central. São Paulo: Bei Comunicação, 2005. p.64. Ibidem, p.67. remover da cidade (e para bem longe) as pessoas ditas como "perigosas", embora, "muitos deles
fossem
trabalhadores,
desempregados
ou
simples
miseráveis
que
se
envolveram
circunstancialmente na revolta". 194
Essa grande reforma, entretanto, não foi a que pôs fim a Praça Onze - que nos interessa porém, é decorrente dela que a praça passa a representar um espaço importante para o mundo do
samba e dos sambistas. Com a demolição de inúmeras habitações, as pessoas expulsas de seus lares
sem ter para onde ir, acabam dirigindo-se ou para os morros (formando as primeiras favelas da
cidade) ou para os subúrbios do Rio de Janeiro, e a comunidade negra em especial se desloca do
Campo de Santana para a área logo na seqüência onde se localizava a Praça Onze. Em pouco
tempo, o logradouro e seus arredores se tornam os lugares mais caracteristicamente negros do Rio
de Janeiro. A praça fica em pé até 1941 quando sob o comando do governo de Henrique de Toledo
Dodsworth - prefeito do Rio de Janeiro entre 1937-1945 - tem início as obras para o prolongamento
da Avenida do Mangue até o Cais dos Mineiros que juntas formariam a Avenida Presidente Vargas,
que recebeu esse nome em homenagem ao então Presidente Getúlio Vargas.
A crônica referente à Praça Onze fala sobre um personagem, chamado Laurindo - que é
também título de uma das composições usadas para a crônica - que após rumores sobre o fim da
praça fica sabendo com certeza que ela não iria acabar. Tanta era sua felicidade que ele sai morro
acima gritando para todos que pudessem ouvi-lo que a "Praça Onze não acabou!" e incita o pessoal
a esquentar os tamborins e preparar as portas-bandeiras porque a escola de samba sairia para o
desfile novamente. Pérsio de Moraes escreve, propositalmente, no sentido inverso ao que realmente
aconteceu, pois a Praça Onze acabou sim, foi demolida em 1941. Revelando sua tristeza, Herivelto
Martins e o Grande Otelo escrevem em 1942 o samba que tem como tema a destruição da praça e
tudo que ela representava. Sem a praça, segundo a letra da música, "não vai haver mais Escola de
Samba", os tamborins e todos os morros choram, os pandeiros são guardados e as boas e grandes
recordações que a Praça Onze personificava para o mundo do samba ficarão para sempre na
memória e no coração de todos. Já na música "Laurindo", Herivelto Martins a compõe no ano
seguinte à "Praça Onze" desenvolvendo uma espécie de continuação para o samba. Na letra o
personagem Laurindo - que ficou conhecido posteriormente por outras letras de samba - é criado
pelo compositor que idealiza um sambista do morro.
Na crônica, Pérsio mostra como o samba e os sambistas noticiariam a não demolição da
praça (com a música Laurindo) e sua demolição (com Praça Onze). O autor mostra de que para o
mundo do samba, aquele logradouro carioca era muito importante, portanto, a notícia de que seu
194
Ibidem, p.68. fim estaria chegando seria dada de forma "muito mais própria e completa que os jornais [...] com a
grande tristeza do samba". 195 Diferentemente dos jornais que mantendo sua indiferença quanto o
ocorrido, tratando-o apenas como uma simples demolição - como qualquer outra - de mais um
dentre os muitos logradouros da cidade noticiariam a informação de forma muito impessoal. Os
sambistas, por sua vez estariam "chorosíssimos como se o mundo fôsse acabar (e diriam): "não vai
haver mais Escolas de Samba, não vai"". 196
O autor aponta para a diferença entre o que seria importante para os sambistas - vistos nesse
contexto como grupo de classe baixa, ignorado por parte da sociedade - e para a elite. Para os
primeiros a Praça Onze era considerada o berço do samba carioca. Seus arredores sempre foram
redutos de personagens que escreveram as primeiras linhas da história de nosso gênero musical por
excelência. Era lá, que as escolas de samba saíam para seus desfiles que marcaram o cenário carioca
e que se constituem, atualmente, num símbolo da cidade maravilhosa. Já para elite importava que o
Rio fosse sinônimo de modernidade atendendo as exigências impostas pelos padrões internacionais
de beleza, higiene, habitantes brancos. Nada importava se mais uma praça viria a baixo, em prol de
novas avenidas com belos prédios que abrigariam as mais importantes instâncias do governo.
Importava menos ainda o fim desses lugares, levando em conta que para a execução das obras
muito técnicos estrangeiros vieram dar o ar de sua graça (muito admirada na época) nas cidades
brasileiras. Aquilo sim interessava a eles. Pessoas civilizadas circulando pela capital federal,
diferentemente dos feios, sujos e negros que se aglomeravam ao redor da praça.
Outra questão que as composições utilizadas na crônica nos levam a pensar é quanto ao
contexto mundial da época em que foram gravadas. Estávamos em meio à Segunda Guerra Mundial
e em 1943, quando "Laurindo" é lançada, o Brasil havia declarado guerra à Alemanha e à Itália. Os
últimos versos da música dizem:
"[...] Mas toda a escola de samba
Largou bateria no chão
E foi-se embora cantando
E daí a pirâmide
Foi aumentando, aumentando."
Durante a Segunda Guerra Mundial todo o território nacional foi convocado participar da
coleta de metais o que por convenção ficou conhecido como "Pirâmide Metálica". A coleta
baseava-se na doação de objetos sucateados de metal, ferro, alumínio, cobre, bronze, entre outros,
que viriam a ser derretidos e reciclados, sendo transformados como artefato de guerra tanto para o
Brasil quanto para os aliados. A pirâmide presente na letra da música "é uma referência às
195
196
Revista da Música Popular, n.º 4, p.194. Idem. "pirâmides" de objetos, de preferência metálicos, que o governo incentivava o povo a doar para o
chamado esforço de guerra brasileiro". 197 Essa situação denota a não alienação por parte dos
músicos, mesmo os de classes mais baixas, estando eles a par das questões políticas pelas quais o
Brasil atravessava.
Quanto ao deslocamento de espaços atravessado pelo Rio de Janeiro na primeira metade do
século XX temos a crônica de número 12 como foco de análise. Para esse texto Pérsio de Moraes
utiliza-se de várias marchas carnavalescas de grande sucesso na época de suas gravações e que são,
ainda hoje em dia, muitíssimo conhecidas. Porém, para essa crônica as músicas são utilizadas
apenas para dar graça a trajetória percorrida pelo folião nos quatro cantos da cidade. Por exemplo:
"não sabia se tinha cantado "quem sabe, sabe" na Gávea ou em Vila Isabel" ou "quando cantou
"Fala, Mangueira" estava, inexplicàvelmente, no Leblon, lado a lado com um grego que fingia
acompanhar a música numa lira de tampa privada". 198
Na crônica o autor conta a trajetória de um folião pioneiro, que morava no subúrbio do Rio
de Janeiro, durante todo o dia e toda noite de um sábado de carnaval. A primeira questão que nos
chamou atenção, foi a noção, posta pelo autor, de que nos subúrbios - ou pelo menos no subúrbio
onde habitava aquele folião - não havia nada de especial em ser sábado de carnaval. O bairro
continuava pacato e com sua rotina normal. As festas aconteciam no centro da cidade já revitalizada
- considerando que a crônica foi escrita em abril de 1956 e entendendo que Pérsio se referia nesse
texto ao tempo presente - e nos bairros da zona sul como Leblon, Botafogo e Copacabana, ambos
mencionados no texto. Entendemos também a partir da crônica que subúrbio não fazia parte da
cidade. Expliquemo-nos. Em termos físicos sim, era um bairro da cidade, mas às vistas de quem
morava em regiões bem localizadas ou próximas ao centro, não, ele não era considerado como
pertencente à cidade e até mesmo os próprios moradores do subúrbio quando tinham que ir ao
centro diziam: vou a cidade - situação vivida ainda hoje por moradores de bairros afastados nas
grandes capitais. Na crônica, Pérsio escreve que o folião, vendo que estava muito desanimado o
sábado de carnaval em seu bairro, pega um bonde e chega à cidade, onde as festas aconteciam. Lá
ele faz, juntamente com um grupo de amigos, uma via sacra passando por inúmeros bairros tendo
que pegar inúmeras conduções para se dirigir de onde morava até o lugar dos festejos. Porém, nada
o aborrecia, visto que ele havia ingerido uma quantidade considerável de bebidas alcoólicas - mais
especificamente cachaças e chopes. No outro dia o folião mal se lembra do que havia acontecido e
muito menos de como teria chegado em casa. Envergonhado e sentindo-se com uma ressaca imensa
ele sai de casa e refugia-se no botequim. Lá seu desanimo aumentou, após ver noticiado em todos
Jairo e MELLO, Zuza Homem de., Op. Cit., p. 218. Revista da Música Popular, n.º 12, p.646-647. 197 SEVERIANO,
198
os jornais "fotos escandalosas e reportagens com os números dos desastres e crimes ocorridos
durante a doideira geral"199, quando foi obrigado segundo Pérsio a ter que "concordar molemente
com o velho aposentado que não se cansava de dizer (querendo humilhá-lo, por certo) com ar de
grande autoridade e superioridade: - O carnaval de rua está morrendo de ano para ano. No meu
tempo...".200
O comentário feito pelo senhor aposentado tem uma clara nostalgia em relação "aos tempos
passados". Assim como a Revista da Música Popular, aquele senhor também considerava melhores
os anos que já ficaram para trás, os carnavais que já se foram, os bons sambas já produzidos. Esse é
nosso ponto de ligação com a próxima, e última, crônica analisada.
Intitulada O "Correio" a crônica da 13a. edição fez uso da música "O correio já chegou"
composição de 1934, de autoria de Ary Barroso. Tendo sido um grande sucesso no ano de sua
gravação a música conta a história de um narrador que todo dia aguardava o carteiro passar
esperando a carta de alguém que ele amava, porém, essa carta nunca chegou. Os velhos tempos
felizes e de amor não mais voltarão e o apelo que o protagonista faz é de que seu amor o apague
completamente de sua memória. Abaixo a letra da música:
"O correio já chegou" (Ary Barroso / 1934)
"O correio já chegou ô, ô
Nem uma cartinha de você
Todo o dia a mesma coisa
E eu de longe, sem saber porque
Longe dos olhos
Longe do coração
É o ditado mais certeiro
Deste mundo de ilusão
Amor, como é triste a minha sorte
Só espero, agora, a morte
É tudo que me resta pra consolação
O correio já chegou ô, ô
Nem uma cartinha de você
Todo o dia a mesma coisa
E eu de longe, sem saber porque
A minha mágoa
Vem da confiança
Que em você depositava
Minha única esperança
Amor
Já que tudo está perdido
Só lhe faço este pedido
Apaga-me de todo de sua lembrança"
199
Idem. 200
Idem. A crônica traz, em partes, a mesma temática. O "Correio" - título da crônica - vem a ser o
carteiro que é (ou era) tão aguardado por uma enormidade de pessoas ansiosas por notícias e
informações de pessoas amadas que estavam fisicamente longe em determinada altura. Escrevemos
em partes, pois através de uma situação do tempo presente Pérsio tem a intenção de relembrar ao
leitor os "tempos do bom samba, como êste de Ary Barroso". 201 A situação que o autor aborda é o
aumento do preço do sêlo dos correios estipulado pelo diretor geral dos correios e telégrafos. Ele
diz que houve um aumento de mais de quatro vezes em relação ao valor que custava antes. Como
conseqüência, as pessoas que não dispunham de muitos recursos - e às vezes as que dispunham
também - deixaram de enviar tantas cartas de conteúdo "pouco importante" guardando seu rico
dinheiro para quando houvesse necessidade de comunicação, e não simplesmente por capricho ou
para fazer um agrado a pessoa amada. Ele exemplifica a situação comentando que até mesmo a
Revista da Música Popular, que recebia antes muitas cartas de leitores assíduos que escreviam
apenas para elogiar essa ou aquela matéria agora já não recebem mais. E igualmente do lado oposto,
a revista que gostava muito de responder agradecendo e isso já não é mais possível com os selos
custando tão caro: "A êsses leitores amigos também gostávamos de responder dizendo do estímulo
que suas palavras nos traziam. Agora, essa correspondência cordial diminuiu bastante e nos
sentimos quase sòzinhos. Mas saberemos continuar nossa luta, que vale a pena". 202 Pérsio termina a
crônica dizendo que as coisas andam ruins - e não só devido ao preço dos selos, mas com relação a
decadência da música brasileira - mas, afirma que mesmo "as coisas ruins têm sempre o seu lado
bom"203 e continua escrevendo que o lado bom disso tudo é ter "a oportunidade de relembrarmos
êste belo samba de Ary Barroso"204 e saber que já houve música de qualidade produzida no Brasil,
só o que não podemos deixar acontecer é seu esquecimento e morte.
Esse sentimento saudosista e de luta pela preservação da nossa "música de qualidade"
também está presente na crônica da 4a. edição, já analisada acima. No último parágrafo Pérsio, se
referindo às marchas de carnaval e aos sambas da década de 1930 diz que:
[...] essa música, a única verdadeiramente do povo, não se parece em nada com essa outra que
você vem ouvindo ùltimamente, acompanhada por numerosa e pianíssima orquestra e dita em
segrêdo ao microfone para auditórios histéricos. Não. A nossa música popular é simples e forte.
Exige apenas sentimento, vontade de cantar, violões, tamborins e pouco mais. Para o carnaval,
acrescente-se a isso uns surdos, umas cachaças e umas fantasias de sujo. 205
Revista da Música Popular, n.º 13, p.684. Ibidem, p.685. 203
Idem. 204
Idem. 205
Revista da Música Popular, n.º 4, p.195. 201
202
A crítica feita pelo autor se destina aos sambas-canção, que ele diz serem sambas cantados
em segredo - devido ao ritmo mais calmo como era cantado sob influência do bolero - aos
programas de auditório que, ele julga serem histéricos, e à influência das orquestras com variados
instrumentos que passaram a criar novas versões para sambas já existentes ao mesmo tempo em que
produziam novos sambas, sob ritmo e melodia diferentes dos quais os colaboradores da revista
avaliavam como puros e autênticos.
Pérsio de Moraes buscou através de suas crônicas enfatizar - de modo descontraído,
conversando com seu leitor - o engajamento ideológico seguido pela Revista da Música Popular. A
revista como um todo estava muito bem articulada. Seus colaboradores não divergiam entre si, pelo
contrário, cada qual com sua seção e artigo conseguiam brechas para comprovar a necessidade do
periódico em vista da situação alarmante que poderia dar fim a música brasileira autêntica, tendo
como grave conseqüência o esquecimento das grandes obras musicais dos anos 30 bem como seus
gênios compositores. Seguindo a mesma linha Pérsio salienta a gravidade do problema em relação à
decadência da boa música popular nacional decorrente, entre outras coisas, da intensa influência
estrangeira que permeia todo tipo de arte e cultura no Brasil daquela época e o crescimento
desenfreado das indústrias fonográficas e meios de comunicação, que tinham interesse exclusivo
nos lucros obtidos com suas vendas sem que a qualidade da produção importasse.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista o panorama do surgimento da música popular urbana no Brasil, a
contextualização da conjuntura pela qual o país passou durante toda a trajetória percorrida pelo
samba, a discussão historiográfica confrontando pesquisadores que não partilham de opiniões
convergentes e a apresentação seguida da análise da fonte escolhida foi possível pensarmos em
determinadas considerações acerca do objetivo de Pérsio de Moraes ao escrever suas treze crônicas,
bem como, a visão que a Revista da Música Popular buscou criar e fundamentar ao longo de seus
dois anos de existência.
Claramente tendenciosa, tanto as crônicas de Pérsio de Moraes quanto os demais artigos da
revista buscaram dar legitimidade a idéia de que a única música realmente genuína produzida em
nosso país foi o samba, e apenas os sambas da segunda geração ou da fase dos sambas do Estácio.
Para os fundadores da revista (Lúcio Rangel e Pérsio de Moraes), bem como para a vasta gama de
colaboradores, era imprescindível deter o processo de associação da música e da cultura de um
modo geral como divertimento popular, o que acarretava em sua decadência. Processo criado e
alimentado pelo mercado de discos, tendo como principais representantes as rádios e as indústrias
fonográficas. Esses agentes, segundo a revista, perderam o critério e o bom senso para distinguir a
cultura brasileira das demais. Eles permitiam, e até incentivavam, a intensa interferência e
influência das artes estrangeiras nas "coisas brasileiras" afetando fatalmente a música popular
nacional.
Para conter essa inversão de discernimento a Revista da Música Popular foi criada buscando
basear-se em uma tradição que levava em conta a noção de "cultura popular" para definir o que era
autenticamente brasileiro do que não era, refutando veementemente as artes que não atendiam à
qualificação de pureza, proposta pela revista. Seus articuladores, sendo Pérsio de Moraes um dos
mais influentes, a cada número do periódico, buscaram consolidar a importância da preservação da
música brasileira, através de listagens de discos de músicas de qualidade, reportagens com grandes
nomes da música brasileira e incentivo à coleção de materiais ligados ao tema. Bem como a severas
críticas por vezes ridicularizando tudo aquilo que não atendesse a proposta estipulada.
Através das crônicas de Pérsio de Moraes nós pudemos abordar temas relacionados ao
mundo do samba que já haviam sido mencionados na primeira parte da monografia, nos permitindo
com isso explorá-los melhor. Tratamos das questões envolvendo os novos elementos que se
caracterizam como tipicamente ligados ao samba, a exemplo do personagem "malandro", bem
como as mudanças de espaço físico dos sambas da primeira geração - que tem como marco a Praça
Onze e as casas das Tias Baianas- para os sambas produzidos pelo "pessoal do Estácio" - onde os
botequins passam a ser os "escritórios" dos sambistas - lembrando as intensas agitações que as
reformas urbanas e sanitárias trouxeram para a capital federal. A nostalgia vivida pelos
colaboradores da revista, em relação a "época de ouro" da música brasileira também foi tema
suscitado pelas crônicas. Por fim, as insatisfações quanto ao crescimento da indústria fonográfica e
sua interferência no modo de comercializar a música brasileira, bem como os mecanismos de
compra, de venda e de parcerias nos sambas entre compositores, cantores e gravadoras voltaram a
ser enfatizados por estar presentes nos textos observados.
Notamos, à medida que fizemos a análise das crônicas, que elas mantinham ligações entre
si, além de permitirem uma observação de vários temas em um só texto. O final de uma crônica era
quase sempre o ponto de convergência para a outra. Pudemos relacionar, por exemplo, em uma
crônica que tinha como tema o carnaval a questão das reformas no Rio de Janeiro durante a metade
do século XX, a nostalgia vivenciada pelos escritores da Revista da Música Popular e a crítica às
novidades musicais da década de 1950, ligando-a com outra que iniciava abordando a questão da
influência estrangeira na música brasileira acarretando numa produção musical de má qualidade aos olhos de Pérsio de Moraes.
O gênero textual da crônica tem como característica ser leve, pessoal e abordar assuntos ou
personagens do cotidiano de todos nós. Em nossa análise, percebemos que o autor utiliza-se dessa
leveza para embutir suas severas críticas quanto ao panorama musical brasileiro da década de 50,
que para um leitor mais desatento, passariam em forma de "histórinha", sem perceber que seu
subconsciente estaria registrando a mensagem a qual Pérsio procura passar. Entendemos que o
autor, além de criticar, tinha uma intenção clara que incutir nos leitores - e reforçar - a idéia
proposta pela revista que considerava autenticamente brasileira apenas a produção musical da
segunda geração dos sambas. Isso é natural em todos os meios de comunicação, porém faz-se,
majoritariamente, de forma velada. A revista por sua vez deixa transparecer - e até faz questão disso
- sua visão ou sua "missão" como Lúcio Rangel gostava de escrever.
Percebemos através da análise das seis crônicas que Pérsio de Moraes faz questão de deixar
clara sua identificação com os sambistas - geralmente de classe baixa e negros - mostrando-se "do
povo", como eles também seriam, segundo seu entendimento. Sentimos algo como um paternalismo
por parte do autor, que se utilizando desse recurso conseguiria dialogar mais abertamente com certa
parcela de leitores que compartilhariam das mesmas condições dos sambistas do final de década de
1920 até a década de 1940. Sabemos que a revista foi lida, principalmente por um público mais
culto, o que não deixava de significar que esses leitores fossem negros ou de classe baixa. Muitos
colaboradores da revista eram, inclusive, músicos ou compositores dessas décadas, e a maioria não
dispunha de muitos recursos, mas não por isso eram mal vistos pela direção da revista - pelo
contrário, eram muito bem quistos por ela.
A Revista da Música Popular priorizou sempre a qualidade em detrimento do lucro. Talvez
essa tivesse sido outra razão para o seu fim. Sendo muito exigente com relação aos anunciantes que
poderiam aparecer na revista - tendo eles que compartilhar o mesmo ponto de vista do periódico Pérsio de Moraes faz uma rigorosa seleção quanto aos patrocínios para revista, sendo eles em sua
maioria gravadoras especializadas somente em sambas e livrarias que publicavam livros em
memória da cidade do Rio de Janeiro. Vez ou outra algum anunciante "neutro", como companhias
aéreas, apareciam, porém isso não era a regra.
Em todas as crônicas, a intenção de criticar situações do presente - ou de um passado
próximo - que contribuiu para o caminho do falecimento da música brasileira pura está presente. As
críticas em tom de nostalgia - na maioria das vezes - mostravam quão desapontado o autor se
encontrava frente a nova conjuntura musical brasileira. Porém, havia um otimismo, constatado pela
própria atitude de fundar a revista, em relação ao resgate da autenticidade de nossas artes, em
especial a música. Pérsio de Moraes, bem como a revista e seus colaboradores num todo, tinham
esperança de ser possível resgatar uma memória musical dos ouvintes que perceberiam quão
decadente era a música que ouviam naquela altura e saberiam que o Brasil já fez música de verdade,
já produziu música puramente brasileira.
FONTES
Coleção Revista da Música Popular - Rio de Janeiro. Funarte: Bem-Te-Vi Produções
Literárias, 2006. 775p.: il. Edição fac-similada da coleção completa da Revista da Música Popular,
editada por Lúcio Rangel e Pérsio de Moraes, de 1954 a 1956 (14 números).
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História do Samba - Um breve resumo.
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Site oficial Instituto Pereira Passos.
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