Semiologia do Sistema Urinário MARILEDA BONAFIM CARVALHO "NÃO SEJA IMPACIENTE COM OS SEUS PACIENTES." {Cari Osborne) Os órgãos urinários (organa urinaria) incluem os rins (renes), ureteres (ureferes), bexiga (vesica -urinaria) e uretra (urethra masculina e urethra feminina). Os rins produzem a urina que, por meio dos ureteres, chega à bexiga, onde é temporariamente armazenada. Durante o esvaziamento vesical a urina passa pela uretra chegando ao meio externo. Para a produção de urina, os rins filtram o plasma, extraindo grande quantidade de um líquido chamado ultrafiltrado, que é, então, processado para reabsorção de substâncias úteis e concentração dos rejeitos a serem eliminados. A maior parte da água do ultrafiltrado é reabsorvida de modo a manter o volume plasmático em parâmetros normais. Assim, os rins movimentam um volume muito grande de líquidos a cada 24 horas. Em cães grandes (e animais de tamanho semelhante), os rins são perfundidos diariamente com l .000 a 2.000 litros de sangue, dos quais são filtrados 200 a 300 litros (ultrafiltrado), que por sua vez são reduzidos, por reabsorsão, para l a 2 litros de urina. As várias propriedades especiais dos rins fazem destes órgãos efetores essenciais para a homeostase de água, de eletrólitos e de dezenas de substâncias derivadas do metabolismo e do catabolismo. Não menos relevantes são as funções renais endócrinas ligadas ao metabolismo de cálcio e fósforo, à produção de hemácias e ao controle da pressão arterial. 428 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico RINS O rim (ren em latim, nephros em grego) é o órgão que repousa sob os músculos sublombares, um de eada lado da coluna vertebral. Os rins têm localização retroperitoneal, com a superfície dorsal em contato com os músculos sublombares, frequentemente circundada por gordura, e a superfície vcntral coberta por peritônio transparente. Cada rim tem um pólo eranial e um caudal, um bordo medial e um lateral, uma superfície dorsal e uma superfície ventral; tais referências devem ser empregadas para descrever a posição de alterações renais localizadas e para orientar procedimentos cirúrgicos. No bordo medial está localizado o hilo renal (hilus renalis), através do qual passam o ureter, veias e artérias renais, vasos linfáticos e nervos. O pólo eranial de cada rim é coberto com peritônio em ambas as superfícies, dorsal e ventral, enquanto o pólo caudal é coberto somente na superfície ventral. O rim é revestido por uma cápsula fibrosa (capsulafibrosa) cuja rigidez restringe a habilidade de expansão do tecido renal. O aumento de volume que ocorre em certas doenças renais tende a causar compressão do tecido, estreitamento das passagens internas e dor. A cápsula adiposa (capsula adiposa), que reveste parcialmente o rim, estende-se através do hilo para dentro do sino renal. A visualização do bordo renal em radiografias é facilitada pela presença dos tecidos adiposos perirenal e retroperitoneal, que podem variar em espessura, de acordo com a espécie e o estado nutricional do animal. O parênquima renal, localizado entre a cápsula e o sino renal, é constituído pela medula renal (medulla renis) e pelo córtex renal (córtex renis). No parênquima renal estão os ncfrons que são as unidades estruturais específicas dos rins. O néfron (nephronum) consiste de um longo túbulo que se inicia no corpúsculo renal (corpusculum renale) e termina em conexão com o dueto coletor. O corpúsculo renal é constituído pela cápsula glomerular (capsulaglomeruli), que envolve completamente uma rede capilar esférica denominada glomérulo (glomerulus). As diferenças de tamanho dos rins, nas várias espécies animais, estão relacionadas ao número de glomérulos que eles contêm. Cada rim contém aproximadamente 30.000 glomérulos no rato, 190.000 no gato, 400.000 no cão, 1.300.000 no homem, 2.200.000 no suíno e 7.000.000 no elefante. Equinos. O rim direito tem forma de triângulo equilátero com os bordos arredondados, mede de 13 a 15cm de comprimento e está localizado no espaço compreendido entre a 15 a costela e a apófise transversa da 1 a vértebra lombar, não sendo acessível à palpação retal. O rim esquerdo tem formato de feijão, mede de 15 a 20cm de comprimento, tem mais mobilidade, podendo haver variação na sua localização que, normalmente, é mais caudal que a do rim direito. Geralmente o pólo caudal do rim esquerdo está em relação com a apófise transversa da 3 a vértebra lombar. Bovinos, ovinos e caprinos. O rim direito está relacionado dorsalmcnte com a última costela e com as apófises transversas das três primeiras vértebras lombares podendo, em alguns casos, ter localização mais caudal (cerca de 8cm). O rim esquerdo tem posição muito variável; quando o rúmen está parcialmente cheio, o que ocorre em período de jejum, o rim repousa à esquerda do plano médio; após a ingestão de alimentos, quando o rúmen está distendido, o rim esquer do é pressionado para o plano médio e repousa abaixo e caudalmcnte ao rim direito, no espaço compreendido pelas 3 a, 4 a e 5 a vértebras lombares. Nos bovinos os rins são lobulados; o comprimento do rim direito varia de 18 a 24cm e do esquerdo entre 19 e 24cm. Os ovinos e os caprinos têm os rins muito semelhantes aos rins de cães (forma de feijão), com comprimento variando entre 5,5 e 7cm. Cães e gatos. Os rins de cães e gatos têm a forma típica de feijão. O comprimento pode ser estimado por meio de radiografia lateral e varia entre 2,5 e 3,2 vezes o comprimento da 2a vértebra lombar no cão e entre 2,5 e 3,0 vezes no gato. Adotando o mesmo critério de medida, a largura varia de 1,4 a 1,8 para os cães e 1,6 a 1,9 para os gatos. No cão, o rim direito está comumente localizado no espaço correspondente ao intervalo entre a 13a vértebra torácica e a 1a vértebra lombar, enquanto o rim esquerdo, cuja posição pode variar mais, está localizado no espaço correspondente ao intervalo entre a 2- e a 4- vértebra lombar. A fixação dos rins à parede do corpo é mais frouxa nos gatos do que nas demais espécies. Assim, nesta espécie, os rins são bastante móveis e, portanto, fáceis de palpar. O rim esquerdo dos gatos ocupa posição ligeiramente pendulosa, o que facilita ainda mais a palpação. Pela localização particular no gato, este órgão é, algumas vezes, mal interpretado como massa abdominal anormal. O rim direito ocupa o espaço compreendido entre a l - e a 4a vértebra lombar, e o rim esquerdo se estende da 2a até a 5a vértebra lombar. Semiologia do Sistema Urinário URETERES Os ureteres transportam urina dos rins para a bexiga. Eles chegam aos rins através do hilo, onde se conectam à pelvc renal ou estrutura equivalente, de acordo com a espécie animal. Assim como os rins, os ureteres são estruturas retroperitoneais. Eles se projetam caudomedialmente ao longo dos músculos sublombares, em direção à bexiga, quando deixam a posição sublombar e ganham acesso à superfície dorsolateral da bexiga através das duas camadas de peritônio que formam os ligamentos laterais da bexiga. Os ureteres adentram a bexiga obliquamente, percorrendo um trajeto entre a camada muscular da parede vesical e finalmente se abrindo para o lúmen. A inserção do seguimento final do ureter entre a musculatura vesical previne refluxo de urina para os ureteres quando aumenta a pressão intravesical. A parede do ureter, assim como a da pelve renal, é composta por três camadas - a adventícia externa, a muscular média e a mucosa interna. A musculatura ureteral apresenta contrações em forma de movimentos peristálticos que ajudam a levar urina para a bexiga e, quando provocada por irritações tais como as determinadas por cálculos urinários, pode entrar em espasmo. Por se tratar de estrutura de acesso difícil, o ureter pode ser negligenciado no exame físico do paciente, entretanto ele pode ser sede de anomalias congénitas ou de processos obstrutivos adquiridos que resultam em danos renais graves. BEXIGA A bexiga e a uretra, como também a musculatura associada, compõem o trato urinário inferior. A bexiga ou vesícula urinária é um órgão cavitário, musculomembranoso que serve como reservatório temporário da urina produzida pelos rins. A vesícula urinária pode ser dividida em colo (cervix vesicae), que se conecta com a uretra; corpo (corpus vesicae) e vértice cranial (apex vesicaé). A área triangular compreendida entre os dois meatos ureterais e o início da uretra é denominada trígono (trigonum vesicae). Em caso de alterações vesicais localizadas, na descrição do processo dcve-se fazer referência à parte afetada considerando, ainda, os aspectos laterais, ventral ou dorsal. O músculo da parede vesical é formado por três camadas de músculo liso que age como detrusor, ou seja, "espreme" e esvazia a bexiga. A mucosa da bexiga (túnica mucosa), assim como a dos ureteres e a da 429 pelve renal, é constituída por epitélio de transição. Existe um mecanismo para prevenir a perda de urina durante a fase de enchimento vesical envolvendo, principalmente, a musculatura estriada disposta ao redor da uretra, além de elementos da própria uretra. Durante a fase de esvaziamento vesical parece haver participação da musculatura lisa na dilatação do colo. Contudo, não existe uma estrutura anatómica que caracterize um esfíncter. Cães e gatos. O tamanho c a posição da bexiga variam de acordo com a quantidade de urina nela contida. A bexiga vazia c pequena e tem forma globular; quando distendida por urina apresenta forma de pêra. A bexiga distendida apresenta contorno regular; entretanto, se o enchimento é apenas parcial, o contorno poderá ser irregularmente moldado pela pressão exercida por órgãos vizinhos, como pode ser observado em radiografias de pequenos animais. Em cães com aproximadamente 12 quilos de peso corporal, a bexiga relaxada mede 17,5cm de diâmetro por 18cm de comprimento c a bexiga contraída mede 2cm de diâ metro por 3,2cm de comprimento. Para o mesmo tamanho de cão, a bexiga pode conter de 100 a 120mL de urina sem estar muito distendida. No cão, a bexiga tem localização quase inteiramente pélvica quando vazia, distendendo-se para o abdome com o enchimento. No gato, entretanto, a bexiga se estende amplamente para a cavidade abdominal, mesmo quando vazia. A bexiga pode se distender pelo enchimento até que seu vértice alcance, ou mesmo ultrapasse o umbigo, c sua parede se torne tão fina quanto um papel. Em cães treinados para reter urina, a distensão da bexiga pode alcançar extremos que determinam risco de ruptura. A superfície ventral da bexiga, em sua porção imediatamente cranial ao púbis, é separada da parede abdominal apenas por peritônio visceral e parietal e pelo omento maior, que pode estar localizado entre as duas camadas de peritônio. Este fato favorece muito o exame vesical e, principalmente, a cistocentese em pequenos animais. Ruminantes. A bexiga projeta-se cranialmente c, quando cheia, fica em contato com a parede ventral do abdome. Equinos. A bexiga contraída é piriforme, tem cerca de 8 a lOcm de diâmetro e repousa inteiramente sobre a porção ventral da cavidade pélvica. Quando cheia, ela pende sobre a rima pélvica e estende-se para a parede ventral do abdome. A capacidade da bexiga dos equinos varia de 2,8 a 3,8 litros. 430 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico URETRA A uretra do macho leva urina, sémen e secreções seminais para o orifício uretral externo (ostium urethae externum}, na extremidade distai do pênis. No macho a uretra é dividida em parte pélvica (pars pelviná) e parte peniana (pars peníná) ou esponjosa. A uretra feminina se origina na bexiga e segue em sentido caudodorsal, com sua parede dorsal em aposição à parede ventral da vagina, e adentra o trato genital caudalmentc à junção vaginovestibular na linha média da superfície ventral da vagina. A musculatura (túnica musculares) da uretra feminina é formada por três camadas de músculo liso. A uretra é envolvida em quase toda sua extensão por musculatura estriada, pelo músculo urethralis, cujo fascículo cranial circunda a uretra, enquanto o fascículo caudal forma um suporte em forma de "U" preso na parede vaginal. A contração desta musculatura, além de diminuir a luz vaginal, pressiona a uretra contra a vagina causando fechamento uretral. A musculatura voluntária em forma de "U" desempenha a função de esfíncter bastante forte. Cães e gatos. A primeira parte da uretra pélvica no gato é a porção pré-prostática (pars preprostatica), mas no cão o início da uretra está inteiramente circundado pela próstata (pars prostaticà). Em ambas as espécies a uretra pélvica continua após a próstata. Km um cão adulto com aproximadamente 12 quilos de peso corporal, a uretra tem 25cm de comprimento em média. Entretanto, tanto o comprimento quanto o diâmetro da uretra podem variar amplamente. Durante a micção ou ejaculação, a parede da uretra se distende, mas a expansão é limitada na porção cavernosa da uretra que passa pelo sulco ventral do osso peniano. Esta característica anatómica da uretra dos cães é fator predisponente para as obstruções uretrais por cálculos. Os gatos machos apresentam afunilamento da uretra em direção à extremidade do pênis, característica esta que pode facilitar acúmulo de material sólido, resultando em obstrução uretral. A uretra da cadela tem cerca de 0,5cm de diâmetro por 6 a lOcm de comprimento, e a mucosa permite expansão considerável quando está sob pressão. Na cadela, pode ser visto o tubérculo uretral (tuberculum urethralé), uma elevação que demarca o orifício uretral externo. O tubérculo uretral está localizado cranialmente ao clitóris, cerca de 4 a 5cm a partir da comissura da vulva. A cateterização da uretra é fácil nos cães e relativamente fácil na gata, mas pode ser considerada mais difícil no gato, devido ao reduzido diâmetro, e ao tamanho, forma e posicionamento do pênis. Equinos. A uretra dos machos é bastante longa, mas a uretra pélvica mede apenas de 10 a 12cm. Na extremidade peniana dos equinos, a uretra termina em prolongamento cilíndrico de 1,5 a 3cm de comprimento, denominado processo uretral, que fica alojado dentro da fossa da glande. Nas fêmeas a uretra mede de 5 a 7,5cm c o lúmen é suficientemente largo para permitir a introdução de um dedo. Ruminantes. Nos bovinos machos a uretra se prolonga como processo de 2 a 3cm, que fica encaixado no sulco localizado do lado direito da extremidade peniana. Nos pequenos ruminantes ocorre o processo uretral que se projeta para além do pênis. A uretra feminina tem cerca de 10 a 13cm na vaca, 4 a 5cm na ovelha c 5 a 6cm na cabra. O orifício uretral externo se abre no assoalho da vagina, sob forma de fenda delimitada, lateralmente, por pregas de mucosa. Vcntralmcnte ao orifício uretral externo, existe o divertículo suburetral, que se constitui em uma pequena bolsa, direcionada cranioventralmente, com cerca de 2cm de diâmetro na vaca e l a l,5cm na ovelha e na cabra. O divertículo deve ser evitado no momento de introdução de sonda uretral. CONTROLE DA MICÇÃO A micção compreende o processo fisiológico de armazenagem e eliminação da urina. A vesícula urinária e a uretra, em ação conjunta, propiciam o acúmulo da urina que vai sendo formada (fase de armazenagem), por meio de relaxamento da bexiga e contração do "esfíncter" uretral que previne o fluxo de urina para o meio externo. Na etapa seguinte, quando a bexiga está suficientemente cheia, a contração vesical e a facilitação do fluxo de urina dada pelo relaxamento uretral propiciam o esvaziamento da bexiga (fase de eliminação de urina). A micção é uma função reflexa que envolve ação integrada de vias parassimpáticas, simpáticas e somáticas, que se estendem desde o segmento sacral da corda espinhal até o córtex cerebral. Este processo envolve os nervos pudendo, pélvico e hipogástrico em uma ação que está sob o controle de neurônios da formação reticular pontina que, por Semiologia do Sistema Urinário sua vez, podem ser influenciados por neurônios do córtex cerebral e do cerebelo. A musculatura lisa da vesícula urinária (músculo detrusor), assim como a musculatura estriada do esfíncter uretral externo, recebem inervação simpática, parassimpática e somática para o controle neural da micção. A fase de armazenagem de urina é dominada por atividade neurológica autonômica simpática, através de relaxamento do músculo detrusor (atividade betadrenérgica) que permite distensão sem aumento significativo da pressão intravesical e, simultaneamente, contração do esfíncter uretral externo que promove a contenção da urina. A contração da musculatura estriada do esfíncter uretral externo, por estimulação voluntária, pode reforçar a continência urinária quando necessário. Uma vê/ atingidos os limiares de volume e pressão da vesícula urinária, impulsos motores eferentcs dão início à fase de eliminação de urina ou esvaziamento vesical. Xesta fase, impulsos autonômicos do parassimpático estimulam a despolarização e contração do músculo detrusor (efeito colinérgico pós-ganglionar), ao mesmo tempo que ocorre inibição da atividade simpática e somática dos esfíncteres uretrais com relaxamento da uretra. Com o esvaziamento da vesícula urinária, tem início uma nova fase de armazenagem. 431 Controle Voluntário da Micção As vias sensoriais que seguem da bexiga para a região pontina no cérebro também chegam ao córtex cerebral, onde é integrado o controle voluntário da micção. Através desta via de controle do reflexo do músculo detrusor, o animal pode iniciar voluntariamente a micção, corno no caso de marcação de território, ou pode inibir a micção, como ocorre quando o animal é treinado para urinar em locais e momentos determinados. O controle voluntário da micção pode ser perdido nos casos de lesões do córtex cerebral. Através de inervação somática, pode haver contração da musculatura estriada do esfíncter uretral externo e musculatura perineal, mecanismo voluntário que traz auxílio adicional para a contenção urinária, quando necessário (Tabela 9.1). EXAME DO PACIENTE Resenha (Identificação) Para avaliar o sistema urinário, assim como ocorre com outras partes do organismo, diversas informações sobre as características do animal têm grande relevância na definição do tipo de aborda- 432 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico gem semiológica e na interpretação dos resultados dos exames para fins diagnósticos e prognósticos. A identificação deve incluir, necessariamente, os itens espécie, raça, sexo, idade e procedência. O sistema urinário pode ser acometido por uma grande variedade de afecções. Muitas doenças (pielonefrite, urolitíase e cistite, dentre outras) podem ocorrer em animais de todas as espécies, machos ou fêmeas, jovens ou adultos. Contudo, existem afecções que ocorrem especificamente em algumas espécies (como por exemplo obstrução uretral por tampões nos felinos) e outras que acometem preferencialmente algumas raças (como por exemplo displasia renal em cães Lhasa Apso e Shih Tzu). Considerando a idade do paciente, o clínico pode conduzir os exames de forma mais eficiente. Muitos problemas se manifestam nos primeiros meses de vida, enquanto outros aparecem na vida adulta. Um exemplo interessante é a incontinência urinária das cadelas cuja causa mais provável será ureter ectópico se o sintoma aparecer no animal jovem, mas tratar-se-á, provavelmente, de distúrbio hormonal se for em cadela adulta castrada. Anamnese O primeiro aspecto a ser considerado na anamnese é o conhecimento de que muitas das doenças que acometem os órgãos urinários resultam em comprometimento sistémico. Por outro lado, muitas doenças com sintomas sistémicos (exemplo: diabetes melito, lúpus eritematoso, erliquiose, toxemia e miopatia de esforço, dentre outras) e outras afecções localizadas (exemplo: piometra) podem causar doença renal secundária suficientemente grave para causar a morte. Assim, o paciente pode apresentar sintomas indicativos de alterações em diversos órgãos e sistemas, além daqueles especificamente relaciona- dos ao aparelho urinário. Portanto, a anamnese deve envolver todos os itens de caráter geral que compreendem a queixa atual (tipo, frequência e duração do problema) e informações sobre apetite/vômito/tipo de alimento consumido, fezes/defecação, comportamento/déficit neuromotor, funções/transtornos reprodutivos, doenças/tratamentos anteriores, vacinação, vermifugação, tratamentos em andamento ou efetuados nos últimos dias, possíveis cirurgias/acidentes/esforço físico recentes e outros que possam ser particularmente importantes para o animal em questão. Também devem ser feitas perguntas sobre aspectos que, dircta ou indiretamcnte, revelem o estado e a função dos órgãos urinários, explorando mais detalhadamente, inclusive, itens já questionados na anamnese geral (Tabela 9.2). Exame Físico Geral No momento da execução do exame físico geral do paciente, os órgãos urinários devem ser considerados. Contudo, em função das particularidades anatómicas de cada espécie animal, tanto no que se refere à conformação geral como às peculiaridades dos órgãos urinários, os acessos semiológicos são distintos para cada caso. Com base nas informações obtidas na anamnese e nos resultados do exame físico geral, o clínico deve decidir sobre a necessidade de aprofundar a investigação por meio de exames especiais do sistema urinário, que incluem o exame específico e os complementares (Tabela 9.3). Exames Específicos e Complementares do Trato Urinário Concluída a avaliação inicial do paciente, se for encontrado qualquer indício de doença do trato urinário, ficam indicados exames complemen Semiologia do Sistema Urinário 433 Tabela 9.3 - Resumo da sequência de exame clínico do sistema urinário. Resenha e anamnese Exame físico Geral • Peso corporal, temperatura, frequência de pulso e respiratória, mucosas (coloração e estado dos vasos), grau de hidratação • Boca (úlceras, alterações da língua, inserção dos dentes, aumento maxilar, hálito urêmico) • Exame geral dos demais órgãos e sistemas Específico 1. Rins • Ambos são palpáveis? • Tamanho, simetria e posição? • Forma, contorno e consistência? • Dor? 2. Bexiga • Posição? • Tamanho, formato, consistência? • Cálculos ou massas palpáveis? • Espessura da parede? • Dor? tares que serão eleitos de acordo com as possibilidades diagnosticas aventadas. Dentre os exames especiais, a urinálise destaca-se por ser necessária em praticamente 100% dos casos. Outros exames incluem as provas de função renal, exames radiográficos, ultra-sonografia e uretrocistoscopia. A técnica de palpação destaca-se no exame físico de rotina. A palpação dos órgãos urinários, seja externa ou por via retal, é útil para verificação das características anatómicas e para avaliação da sensibilidade. É importante ressaltar que o examinador não pode executar movimentos bruscos. O contato de pelo menos uma das mãos do examinador com o corpo do paciente deve sempre ser mantido durante as trocas de posição. A pressão necessária para palpar cada órgão deve ser aplicada de forma gradativa, até que se atinja o grau mínimo necessário. O término da pressão também deve ser feito de forma gradativa. Estes cuidados evitarão desconforto desnecessário ao paciente e, principalmente, impedirão que um grau normal de sensibilidade venha a ser erroneamente interpretado como dor decorrente de doença. O aumento da sensibilidade ou dor, quando existir, será manifestado por gemidos ou reação de defesa, durante o toque suficientemente profundo, mas suave, da área afetada. Outro dado a ser destacado é que a ausência de sensibilidade dolorosa ou mesmo de alterações anatómicas detectáveis à palpação dos órgãos urinários não descarta a possibilidade de doença. Muitas afecções, inclusive várias de caráter grave, não cursam com alterações perceptíveis à palpação. 3. Próstata (importante em cães) • Posição, tamanho, simetria, consistência • Dor? 4. Uretra dos machos • Meato urinário • Secreção uretral ou prepucial? • Tamanho, forma e consistência das porções pal páveis? • Anormalidades periuretrais? 5. Micção • Frequência? • Disúria? • Retenção? • Incontinência? Exames complementares • Urinálise • Cateterização vesical • Técnicas para diagnóstico por imagem • Provas de função renal • Biopsia Exame dos Rins Para examinar os rins, deve ser feito exame físico de ambos os órgãos, sempre que possível, e também do seu produto mais acessível - a urina. Os exames complementares dos rins incluem tanto avaliações feitas por inspeção e palpação, como exames laboratoriais e provas de função renal (Quadro 9.1 e Tabelas 9.4 e 9.5). Os rins podem apresentar diversos tipos de alterações tanto congénitas quanto adquiridas (Tabela 9.7). Estes órgãos possuem grande capacidade de reserva funcional e podem manter a produção de urina, como também suas demais funções, enquanto sofrem algum tipo de doença. Assim, ao serem examinados os rins, o clínico deve avaliar (1) a possibilidade de existência de alguma doença renal em curso, sem comprometimento importante da função e (2) a possibilidade de haver déficit da função renal. Quando ocorre déficit da função renal, o exame do paciente deve ser conduzido de modo a elucidar a causa envolvida. Nos casos de déficit funcional com comprometimento da função de depuração (redução severa da filtração glomerular), o paciente apresenta aumento das concentrações séricas dos produtos finais do metabolismo de substâncias nitrogenadas (creatinina e ureia). Este achado laboratorial, denominado azotemia, pode ter causa pré-renal, renal ou pós-renal (Tabela 9.6). Se o problema per- 434 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico Quadro 9.1 - Técnica para palpação externa dos rins em cães e gatos. A palpação externa dos rins é feita com as gemas dos dedos (indicador, médio e anular), posicionados um junto ao outro e ligeiramente flexionados. As gemas dos dedos são posicionadas o mais profundamente possível, abaixo das apófises transversas das vértebras lombares, a partir do ângulo formado com as últimas costelas, e vão sendo deslizadas em direção caudal e caudo-ventral. Este procedimento deve ser feito com ambas as mãos, simultaneamente, aplicadas cada uma de um dos lados do corpo do paciente, dirigidas uma contra a outra (como se as gemas dos dedos de uma das mãos fossem tocar as da outra). Uma vez localizado o órgão, o examinador deve avaliar tamanho, forma, características da superfície, consistência e sensibilidade. Tabela 9.4 - Sumário das técnicas indicadas para o exame dos rins de cães, gatos, equinos e ruminantes. Aplicabilidade Exame físico de rotina • Eficiente somente em casos de aumento aberrante dos rins • Possível para alguns animais pequenos (excelente para gatos) • Indicada somente para grandes animais (feita com o martelo de percussão, para pesquisa de dor) Inspeção direta (região renal) Palpação externa Percussão dolorosa (região renal) Exames específicos e complementares Inspeção indireta ou diagnóstico por imagem (radiografias simples e contrastadas, ultra-sonografia) Palpação retal Urinálise (análise física, química e sedimentoscópica da urina) Possível para animais de porte pequeno e para alguns filhotes de animais de porte grande • Possível em grandes animais, mas nem sempre os rins são alcançados Este exame é extremamente importante; pode ser empregado para todos os animais Indicadas sempre que houver suspeita de insuficiência renal; de modo geral Provas de função renal são aplicáveis a todos os animais, exceto para ruminantes machos quando houver necessidade de cateterização vesical Indicada para os casos de suspeita de infecção do trato urinário; pode ser Cultura de urina feita quando for possível coletar a urina de forma ass éptica Indicada para os casos cuja definição precisa do tipo de doença renal possa Biópsia renal ser útil para o prognóstico e tratamento • Tabela 9.5 - Provas de função renal. Perfil bioquímico sérico (exames mais comuns) Avaliação da função glomerular Avaliação da função tubulointersticial Dosagens das concentrações séricas de creatinina, ureia, proteína, potássio e fósforo, dentre outros Clearance de creatinina Razão proteína:creatinina urinária Excreção fracionada de sódio Densidade ou osmolalidade urinária Teste de privação de água Tabela 9.6 - Causas de azotemia (aumento das concentrações séricas de ureia e de creatinina). Causas pré-renais Desidratação severa Insuficiência cardíaca Hipoadrenocorticismo Outros Causa renal Doença renal com comprometimento da função Causas pós-renais Obstrução uretral (parcial ou total) Obstrução de colo vesical (parcial ou total) Ruptura de bexiga Deslocamento de bexiga (hérnia perineal) Podem ocorrer combinações das causas. Semiologia do Sistema Urinário siste, o paciente sofre alterações orgânicas importantes em função de quebra da homeostase e passa a apresentar um conjunto de sinais e sintomas clínicos e laboratoriais, que caracterizam o quadro conhecido como síndrome urêmica ou uremia (Quadro 9.2). Esta condição pode se apresentar tanto sob a forma aguda como sob a forma crónica, de acordo com o tipo de doença renal em curso. Outra condição bastante peculiar é a do paciente com glomerulonefrite crónica. Neste caso os rins perdem a capacidade de conservar proteína e desenvolve-se uma condição sistémica denominada síndro- Quadro 9.2 - Conceito de síndrome urêmica (uremia). Conjunto de sinais e sintomas que caracterizam as manifestações sistémicas resultantes de mau funcionamento dos rins. Na síndrome urêmica existem comprometimentos gastrointestinais, neuromusculares, cardiopulmonares, endócrinos, hematológicos e oftálmicos. A azotemia também é um dos achados laboratoriais da síndrome urêmica. 435 me nefrótica, que se caracteriza por proteinúria, hipoprotcinemia, edema e ascite. Exame dos Ureteres Os ureteres podem sofrer processos obstrutivos parciais ou totais que resultam, a longo prazo, em grande dilatação pelo acúmulo de urina normal ou contaminada por infecções, caracterizando o quadro de megaureter. O desenvolvimento de megaureter, em um grande número de casos observados em cães e gatos, é secundário a processo congénito de falha na implantação do ureter na bexiga (ureter ectópico), com ocorrência de obstrução. Em animais pequenos, o exame dos ureteres é possível somente por inspeção indireta, por meio de radiografia contrastada (urografia excretora). Este exame radiográfico é útil para diagnosticar processos obstrutivos ureterais, com ou sem megaureter e ainda é adequado para diagnosticar os casos de ruptura ureteral. Em condições excepcionais, parte dos ureteres pode ser examinada por meio de ultra-sonografia. Nos casos 436 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico A Figura 9.1 - Manifestações clínicas das síndromes relacionadas a doenças renais crónicas. (A) cão com uremia crónica, notar emaciação e apatia; (B) gato com síndrome urêmica, notar apatia e fraqueza muscular; (C) e (D) equino com síndrome urêmica, notar úlcera de mucosa oral e de língua; (E) cão com síndrome urêmica, notar petéquias de mucosa oral e úlcera de língua; (F) cão com síndrome nefrótica, notar edema de região ventral e ascite. Semiologia do Sistema Urinário de megaureter em grandes animais, a anormalidade, algumas vezes, pode ser detectada por meio de palpação retal. Alguns pacientes podem apresentar quadro peculiar de incontinência urinária observada ao longo das 24 horas do dia, sob forma de gotejamento regular e contínuo, acompanhado por episódios de micção normal (fases de armazenagem e de eliminação). Nestes casos, os sinais revelados pelo histórico, pela inspeção e pela palpação da bexiga são indicadores que sugerem falha na implantação de um dos ureteres (Fig. 9.2A). Se o paciente apresentar, desde o nascimento, incontinência urinária sob forma de gotejamento regular e contínuo, com ausência de micção, a causa mais provável será a falha de implantação de ambos os ureteres (Quadro 9.3). 437 Exame da Bexiga e da Uretra A palpação externa da bexiga pode ser feita, em pequenos animais, seguindo a mesma orientação das manobras já descritas para a palpação renal (Tabela 9.8). O paciente pode estar em posição quadrupedal ou em decúbito lateral. O local a ser acessado compreende as paredes laterais da porção mais caudal do abdome, imediatamente à frente do púbis, comumente entre as virilhas. As gemas dos dedos são deslocadas para frente, para cima e para baixo, até a localização do órgão. Para gatos e cães pequenos, a palpação vesical também pode ser feita com uma única mão, sob forma de pinça, com a concorrência do polegar. Ainda, nos cães pequenos, a bexiga repousando no assoalho pélvico pode ser acessada pela combinação de 438 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico palpação retal ou vaginal (com um dedo) e de palpação externa (mão sob forma de pinça). Nos equinos e nos bovinos, a bexiga pode ser examinada por palpação retal; nas fêmeas é possível examinar a bexiga por palpação vaginal. Durante a palpação vesical verifica-se localização, volume, forma, consistência, tensão e sensibilidade. Caso a bexiga contenha pouco volume de urina, pode ser avaliada a espessura da parede e, muitas vezes, é possível detectar a presença de cálculos ou de massas anormais. Quando indicado, durante a palpação, pode ser feita expressão manual da bexiga para verificar se a uretra está patente (desobstruída) ou para coleta de amostra de urina. A bexiga também pode ser examinada por meio de radiografias e ultra-sonografia, que são métodos de inspeção indireta (Fig. 9.2). Em pequenos animais, as grandes distensões de bexiga, causadas por retenção de urina, podem ser detectadas por inspeção direta do abdome. Nestes casos, o conteúdo líquido pode ser identificado e delimitado por meio de percussão digito-digital (som maciço). Na tabela 9.9 estão apresentadas as técnicas para exame da uretra. Avaliação da Micção Para avaliação da micção devem ser consideradas as informações obtidas durante a anamnese (Tabela 9.3). A esse respeito deve ser lembrado que são frequentes informações não precisas que, não raramente, decorrem de falta de clareza das perguntas formuladas pelo veterinário. O ideal é que a avaliação seja feita pelo próprio clínico (inspeção), assim que possível. Para identificar os transtornos da micção, deve ser considerada a postura normal à micção, que é particular para cada espécie animal (Tabela 9.10). As alterações da micção podem estar relacionadas a vários problemas que incluem tanto afecções do trato urinário como afecções extra-urinárias. Com o exame clínico completo e o detalhamento na avaliação do trato urinário é possível diagnosticar a causa do transtorno da micção. Os termos semiológicos apropriados para cada tipo de alteração da micção e suas possíveis causas estão apresentadas nas Tabelas 9.11 e 9.12. Frequência da Micção Para manter o equilíbrio de água, o volume da urina produzida em 24 horas deve ser proporcional ao volume de água ingerida. Entretanto, quando ocorre aumento de perda de água por vias extrarenais (respiração, transpiração, defecação, lactação), deve haver diminuição do volume de urina produzida, a menos que haja aumento compensatório da ingestão de água. A frequência de micção, indicada pelo número de vezes que o animal urina em 24 horas, deve ser proporcional ao volume de urina produzida no mesmo período (Tabela 9.13). Cada espécie animal tem um padrão para a frequência de micção (lembrar que os recém-nascidos sempre urinam muito mais que os adultos). Contudo, diversas condições fisiológicas ou patológicas podem implicar alteração do número de vezes que o animal urina. As variações na frequência de micção recebem denominações específicas que incluem polaquiúria ou polaciúria, oligosúria e iscúria ou retenção de urina. Outra condição que também modifica a frequência de micção é a perda de urina decorrente de incontinência urinária (ver Fig. 9.3 e Tabela 9.14). Tabela 9.9 - Sumário das técnicas semiológicas indicadas para o exame da uretra de c ães, gatos, equinos e ruminantes. Aplicabilidade Exame físico de rotina Inspeção direta Exames específicos e complementares Inspeção direta por uretroscopia Inspeção indireta (radiografias contrastadas, ultra-sonografia) Palpação indireta por meio de sonda uretral Palpação retal Permite o exame do meato urinário externo em todos os animais Eficiente para avaliação interna da uretra e para biopsia; pode ser empregada em todos os animais nos quais seja possível a cateterização vesical (como parte da cistoscopia tra n s u retrai) Radiografias são úteis para animais pequenos A ultra-sonografia é útil para o exame de alguns segmentos da uretra Possível em todas as fêmeas e em cães, gatos e cavalos machos Útii para machos; permite examinar a parte pélvica da uretra Semiologia do Sistema Urinário 439 Tabela 9.10 - Posturas normais e atitudes comuns à micção. Equinos Geralmente só urinam quando não estão trabalhando. A postura para micção é similar para cavalos e éguas e consiste em extens ão dos membros torácicos seguida por abaixamento do abdome e inspiração, que resultam em aumento da press ão intra-abdominal. O cavalo faz ligeira exposição do pênis Ruminantes As vacas adiantam os membros pélvicos, arqueiam o dorso e elevam a cauda. Os bovinos machos urinam tanto quando estão parados como quando estão andando ou comendo. A urina é eliminada na cavidade prepucial, de onde escorre através do meato. Os ovinos adotam as mesmas posturas de micção observadas em bovinos Caninos As cadelas flexionam os membros pélvicos de modo que o períneo fique paralelo ao solo, faltando pouco para tocá-lo. Os cães levantam um dos membros pélvicos e direcionam o jato para um objeto selecionado. Quando filhotes, antes da maturidade sexual, os machos adotam a mesma postura de micção das fêmeas. Os cães adultos, principalmente os machos, podem urinar pequenas quantidades, muitas vezes seguidas, para marcar território Felinos A postura adotada, tanto pelas fêmeas como pelos machos, é a mesma das cadelas. Os felinos fazem uma pequena cova onde depositam a urina, cobrindo-a após a micção. Machos e fêmeas sexualmente maduros podem ter o hábito (não desejado pelo proprietário) de eliminar urina sob a forma de spray (marcação de território). Primeiro o animal cheira o alvo, então se vira de costas e emite o jato. O alvo é sempre uma superfície vertical de cerca de 20cm acima do solo Tabela 9.11 - Disúria (dificuldade para urinar). Caracteriza-se por sinais de desconforto ou de dor à micção, podendo haver dificuldade para eliminação d a urina. De acordo com a causa e a intensidade do problema, as manifesta ções de disúria podem variar tanto quanto ao tipo como quanto à intensidade. Assim, a disúria pode ser classificada como micção dolorosa, estrangúria ou tenesmo vesical Causas possíveis • Enfermidades dolorosas da bexiga, uretra, vagina ou prep úcio • Enfermidade dolorosa de outros órgãos comprimidos pela prensa abdominal durante a mic ção • Peritonite aguda • Tumores ou cálculos vesicais • Obstruções uretrais Tabela 9.12 - Variações do estado de disúria. Micção dolorosa Durante os esforços de micção, o animal apresenta gemidos, desassossego, movimentos de um lado para o outro, olhares dirigidos para o ventre, agitação da cauda, "sapateado" Estrangúria Caracteriza-se por esforços prolongados, com intervenção enérgica da prensa abdominal, sem eliminação de urina, ou que acabam por produzir eliminação de poucas gotas ou de poucos jatos finos de urina, acompanhados de manifestação de dor (gemidos) Tenesmo vesical É um esforço constante, prolongado e doloroso para emissão de urina. Nos casos extremos, o animal pode conservar constantemente a postura de mic ção. Nesse quadro, a vontade de urinar é constante, mesmo que a bexiga contenha volume de urina pequeno ou esteja vazia Tabela 9.13 - Frequência normal de micções em 24 horas para adultos. Equinos e bovinos Ovinos e caprinos Cães Cadelas Gatos 5 a 7 vezes 1 a 4 vezes Muito variável 2 a 4 vezes 2 a 4 vezes 440 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico Figura 9.2 - Exemplos de diagnósticos que podem ser feitos por meio de radiografias e ultra-sonografias. (A) megaureter e dilatação de pelve renal direita de cadela, diagnosticados por urografia excretara, notar a porção cranial do ureter contralateral normal; (B) ultra-sonografia de rim esquerdo de cadela com dilatação pélvica resuitande de ectopia ureteral; (C) cálculos vesicais não-radiopacos em bexiga de cão detectados em radiografia de contraste duplo; (D) cálculos radiopacos em bexiga de cão detectados em radiografia simples; (E) cálculo vesical em cadela, detectado pela ultra-sonografia, notar a sombra acústica que se projeta abaixo do cálculo; (F) ultra-sonografia de bexiga de gato com cistite hemorrágica severa, notar o espessamento e irregularidade da parede vesical. Semiologia do Sistema Urinário Volume de Urina A análise do volume de urina requer acompanhamento por 24 horas com mensuração de todos os volumes eliminados (Tabela 9.15). Isso pode ser feito colocando-se o animal em gaiolas metabólicas ou empregando bolsas coletoras. Entretanto, estes procedimentos comumente não podem ser empregados na rotina. Mesmo assim, pode e deve ser feita a avaliação por estimativa do volume de urina. O proprietário ou tratador do animal pode inferir sobre possíveis aumentos ou diminuições do volume de urina produzida, considerando o número de vezes que o animal está urinando por dia e os tamanhos das "poças" de urina, formadas a cada micção. Para tanto, o veterinário deve conduzir, com muita clareza, suas perguntas. Muito frequentemente o informante se refere ao fato de que o "animal está urinando muito" não fazendo distinção entre polaquiúria (micção muito frequente, sinal típico de cistite aguda) e poliúria (aumento do volume de 24 horas, comum na insu- 441 ficiência renal crónica, dentre outras afecções). As variações do volume de urina produzida em 24 horas devem ser qualificadas obedecendo as denominações: poliúria (muita urina), oligúria (pouca ou pouquíssima urina) ou anúria (quantidade desprezível ou nenhuma urina) (ver Tabela 9.16). Alterações Macroscópicas da Urina Alguns tipos de alterações na composição da urina podem ser verificados pelos proprietários Tabela 9.15-Quantidade padrão de urina produzida em 24 horas. Equinos 3 a 6L (máximo de 10L) 6 a 12L Bovinos (máximo de 25L) 0,5 a 2L 0,5 a Ovinos e caprinos 2L 40 a 200ml_ 180 a 400mL Cães grandes Cães pequenos e gatos Coelhos Semiologia do Sistema Urinário 443 ou tratadores dos animais. O veterinário deve obter informações sobre o aspecto da urina levando em consideração que, na maioria das vezes, a resposta só será válida se a urina foi vista durante ou imediatamente após a micção. As alterações de urina, mais comumente descritas pelos informantes, incluem urina anormalmente escura e de odor fétido. Também há relatos de presença de sangue, de cálculos pequenos, de muco, de catarro ou de pus. Uma observação importante a ser feita é a de que, em nosso meio, com muita frequência, os informantes descrevem como "pus na urina" o que, na realidade, seriam cristais eliminados em abundância; "odor fétido anormal", para o que seria característico da espécie, além de outros equívocos. Seja qual for a alteração descrita, a informação deve ser validada pela inspeção feita pelo próprio veterinário. Uma amostra de urina, coletada adequadamente, deve ser enviada para exame laboratorial (urinálise e outros exames indicados). É importante, também, a certificação de que a urina não esteja sendo contaminada por material proveniente do trato genital (secreções vaginais, uterinas, prostáticas e prepuciais). A presença de sangue na urina merece investigação especial, feita por inspeção do paciente, tanto durante o ato da micção como durante um período de intervalo (lembrar que, muitas vezes, o informante observou atentamente e pode fornecer os detalhes, se for questionado). Para esta inspeção, o clínico deve considerar três momentos distintos durante a micção: a fase inicial ou de eliminação do primeiro jato de urina, a fase intermediária ou do jato médio, e a fase de conclusão ou do jato final. Adicionalmente, considera-se a fase de repouso ou de intervalo entre as micções (Tabelas 9.17 c 9.18; Quadros 9.4 e 9.5 e Fig. 9.4). COLETA DE URINA PARA EXAME LABORATORIAL A coleta de urina para exames laboratoriais deve ser feita obedecendo rigorosamente os critérios necessários para cada caso. As amostras podem ser obtidas por micção espontânea, por cateterismo vesical e por cistocentcse. No caso de coleta por micção espontânea recomenda- 444 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico se o aproveitamento da urina do jato médio. Entretanto, em casos específicos, pode ser examinada a urina do primeiro jato (contém mais material proveniente da uretra) ou a do jato final (contém mais material que esteja sendo sedimentado na bexiga), de forma isolada ou em comparação com a urina do jato médio. Caso seja empregado o cateterismo vesical também deve ser desprezado o volume inicial que conterá maior abundância de material que tenha sido aprisionado na sonda durante sua passagem pela uretra (também pela vagina no caso de fêmeas). Quando a urina for obtida por cistocentese pode ser aproveitado todo o volume coletado. Os resultados dos exames realizados devem ser interpretados sempre considerando o jato de urina aproveitado e a forma de coleta da amostra. A amostra de urina deve ser acondicionada em recipiente estéril e livre de resíduos químicos. Depois de receber a amostra, o frasco deve ser hermeticamente fechado e refrigerado até o momento do exame. O ideal é que não decorram mais do que 40 minutos (máximo de 2 horas) entre a coleta e realização dos exames desejados. O exame de urina fica indicado nas situações apontadas no Quadro 9.6. Os resultados esperados nas urinálises de urinas normais estão apresentados nas Tabelas 9.19 e 9.20. Semiologia do Sistema Urinário 445 quadro 9.5 - Diferenciação entre hemogiobinúria e mioglobinúria. Hemoglobinúria - Presença de hemoglobina na urina leptos-pirose, anemia hemolítica do recém-nascido, extensas). A urina apresenta-se avermelhada ou Mioglobinúria - Presença de mioglobina na urina em esforço). A urina tem coloração castanho-avermelhada. em decorrência de hemólise intravascular (babesiose, envenenamentos, acidente ofídico, queimaduras acastanhada. decorrência de lesão muscular extensa (miopatia de D Figura 9.4 - Alterações macroscópicas da urina. (A) gato com cistite hemorrágica, notar o jato de urina sanguinolenta (hematúria) obtido por expressão manual da bexiga; (B) urina de equino com pielonefrite, notar floculação decorrente de piúria e depósito constituído principalmente por cristais; (C) (D) (E) e (F) representações esquemáticas para localização de hemorragias do trato urinário de acordo com a quantidade de sangue presente em cada um dos jatos de urina (primeiro, intermediário e final). 446 Semiologia Veterinária: A Arte do Diagnóstico Quadro 9.6 - Casos em que se deve solicitar urinálise. . . , 1. Quando o paciente apresentar sinais sugestivos de doen ça do trato urinário (superior ou inferior) 2. Quando o paciente apresentar sinais de doença sistémica 3. Quando o paciente apresentar quadro clínico de doença grave de causa desconhecida 4. Sempre que for examinado um paciente geriátrico 5. Sempre que for feita avaliação antes de anestesias Tabela 9.19 - Achados normais na urinálise de cães e gatos. Parâmetros Cor Aspecto Densidade Mínima Máxima Intervalo de variação mais comum PH Glicose Cetonas Bilirrubina Sangue oculto Proteína Hemácia/campo 400 x Leucócitos/campo 400 x Cilindros/campo 400 x Células epiteliais/campo 400 x Gotículas de gordura/campo 400 x Bactérias/campo 400 x Cristais/campo 400 x Gatos Cães Amarela Límpido - ligeiramente turvo Amarela Límpido 1,001 1,065 1,013 - 1,035 4,5 - 8,5 Negativo Negativo Negativo, traços,+* Negativo Negativo, traços* 0-5 0-5 Hialino ocasional Ocasional Incomum Negativo Variável 1,001 1,080 1,035 - 1,060 4,5 - 8,5 Negativo, +** Negativo Negativo Negativo Negativo 0-5 0-5 Hialino ocasional Ocasional Comum Negativo Variável Somente na urina bem concentrada (> 1,035). Pode haver glicosúria transitória, por estresse. CONSIDERAÇÕES GERAIS PARA ORIENTAR O DIAGNÓSTICO DE DOENÇAS DO TRATO URINÁRIO Gomo regras gerais para orientar o tipo e sequência de procedimentos, bem como o raciocínio clínico para o diagnóstico de doenças do trato urinário, o examinador deve estar atento para as considerações que se seguem. 1. Os distúrbios da micção são altamente relevantes para o diagnóstico. As anormalidades da micção decorrem de problemas na bexiga, na uretra ou em ambas, salvo os raros casos de transtornos do sistema nervoso central que determinam alterações na frequência de micção, os casos de doenças dolorosas localizadas no abdome ou pelve e as incapacitações musculoesqueléticas. 2. As doenças renais, exceto pela possibilidade de alterações do volume de urina produzida e, conseqiientemente, da frequência de eliminação de urina, não se manifestam por distúrbios da mic ção. As doenças renais são detectadas principal mente por meio das suas manifestações sisté micas observadas ao exame geral, em associação aos achados da urinálise e, em parte dos casos, nos resultados de exames especiais tais como provas de função renal, urografias excretoras e ultra-sonografias renais. 3. Os exames especiais do trato urinário são empregados, algumas vezes, apenas para con ferir certo refinamento ao diagnóstico (exem plo: biopsia renal para diagnóstico de um tipo específico de glomerulonefrite), mas em grande número de casos, um ou mais exames espe ciais são requeridos, de forma imperativa, para o diagnóstico (por exemplo, prova de função renal para diagnóstico de insuficiência renal Semiologia do Sistema Urinário Tabela 9.20 - Achados Parâmetros normais na urinálise de equinos , bovinos, ovinos e Equinos Bovinos Cor Amarela Amarela Amarela Aspecto Densidade pH Glicose Cetonas Bilirrubina Sangue oculto Proteína Hemácias Leucócitos Cilindros Células epiteliais Filamentos de muco Bactérias Cristais Turvo (muco e cristais) 1,020- 1,050 7,0 - 8,0 Negativo Negativo Negativo Negativo Negativo, traços Ausentes, raras Ausentes, raros Ausentes Poucas Presentes (mais em fêmeas) Ausentes ou poucas Comum (em abundância) Límpido 1,025 - 1,045 7,4 - 8,4 Negativo Negativo Negativo, traços Negativo Negativo, traços Ausentes, raras Ausentes, raros Ausentes Ausentes, raras Negativo Ausentes ou poucas Variável Límpido 1,015 - 1,045 7,0 - 8,0 Negativo Negativo Negativo Negativo Negativo, traços Ausentes, raras Ausentes, raros Ausentes Ausentes, raras Negativo Ausentes ou poucas Variável crónica; cistografia de contraste duplo para diagnóstico de cálculos vesicais radiolucentes). 4. Se ao examinar o paciente forem detectados sinais indicativos de doença do trato urinário, ou se for necessário diagnóstico diferencial, a urinálise (exames físico, químico e sedimentoscópico de urina) é imprescindível. Mesmo nos casos de processos mecânicos como a obstrução uretral por cálculos já detectados, a urinálise deve ser feita no momento conve niente, para verificação de possível distúrbio concorrente ou predisponente. 5. As doenças do trato urinário, exceto nos casos dramáticos como a obstrução uretral (iscúria e tenesmo vesical) e nefrite intersticial aguda causada por leptospirose (sinais sistémicos e alteração macroscópica de urina), dentre ou tros, podem cursar de forma insidiosa, ou se rem "suportadas" pelos animais domésticos sem manifestações relevantes. O examinador deve estar atento para os pequenos detalhes da re senha e anamnese que, combinados a resulta dos por vezes aparentemente irrelevantes do exame físico, indiquem a necessidade de urinálise e de exames especiais para conclusão bem-sucedida do diagnóstico. 6. Informações sobre o volume e aspecto macros cópico da urina comumcnte são obtidas com facilidade na anamnese ou durante o exame fí sico. É importante que o examinador conside re que o relato ou observação de urina em vo lume normal ou abundante e com aspecto macroscópico "bom" (urina clara e límpida) não são informações que, por si só, excluem a pos- 447 caprinos. Ovinos e caprinos sibilidade de doença renal. A produção de urina com estas características, muitas vezes, está relacionada a doenças renais graves e possível insuficiência renal. Adicionalmente, este tipo de urina pode estar relacionado a doenças como diabetes melito ou insípido, polidipsia psicogênica, uso de diuréticos não revelado pelo proprietário, dentre outros problemas. 7. A hematúria macroscópica pode ser relatada durante a anamnese c observada ao exame físico do paciente. As hematúrias podem ocorrer por lesão mecânica (trauma acidental ou por urólitos), inflamação ou neoplasia de qualquer órgão do sistema urinário ou genital. A observação precisa do tipo e momento de ocorrência da perda de sangue traz informações, muitas vezes decisivas, para a localização do problema. Gotejamcnto de sangue ou de secreção sanguinolenta pela vulva ou óstio prepu-cial, fora dos momentos de micção, são indicativos de transtorno dos órgãos genitais (comum na doença prostática do cão). Nas fêmeas também devem ser consideradas as manifestações fisiológicas de cio, parto e puerpério. BIBLIOGRAFIA CHRISTIE, B.A. Anatomy of the urinary tract. In: SLATTER, D.H. 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