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Conquistas, rupturas e tensões no espaço social de luta pela primeira infância no
Brasil: o que esperar do Criança Feliz?
Monique Azevedo Esperidião
Laiana Behy
Carla Soares
Marta Caires
Juliana Bastos
Geisa Freixeira
Jessica Freixeira
Maria Aguiar
Daniele Souza
A infância e seus mil dias, ou primeira infância, vem sendo posta como
prioridade na formação dos profissionais, na formulação de políticas públicas e
programas de governo. O desenvolvimento afetivo, social, cognitivo e físico das
crianças, ainda bem pequenas, tem um impacto direto em seu desenvolvimento e no
adulto que será no futuro. A infância assim tida como portadora da noção de futuro,
carregando consigo a metáfora do desenvolvimento de um projeto de nação.
Um espaço social de luta pela primeira infância vem se constituindo no
Brasil, envolvendo distintos agentes sociais, como a Rede Nacional Primeira Infância, o
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Conselho
Nacional de Saúde, Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Conselho
Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), articulando ainda
organizações da sociedade civil, especialistas e pesquisadores, do governo e do setor
privado. Estes agentes sociais estiveram à frente da politização do tema da infância na
sociedade e da formulação de políticas que passaram a figurar enquanto respostas a
tais necessidades sociais.
Há que se recuperar que, ao longo das últimas décadas, distintos programas
tiveram impacto positivo na redução da mortalidade infantil e na infância. Programas de
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redistribuição de renda como o Bolsa Família, Plano Brasil Sem Miséria (Brasil
Carinhoso), Minha Casa Minha Vida representam um conjunto de ações transversais
que têm modificado o curso de vida das famílias brasileiras (Penello, 2016). Outras
medidas incluem o aumento da escolaridade das mães, aumento da cobertura vacinal,
melhoria no acesso ao saneamento básico, engajamento da sociedade civil para a
valorização do aleitamento materno, criação do SUS, Rede Cegonha (Victora et al.,
2011).
Se no início do século XXI priorizamos o desenvolvimento infantil é em razão
de havermos superado uma cruzada pela mortalidade infantil que durou mais de dois
séculos. O progresso que o Brasil fez nesses campos é mesmo reconhecido nacional e
internacionalmente, tendo provocado profundas mudanças no quadro jurídico, nas
políticas governamentais e na participação da sociedade brasileira relativas à proteção
da criança. A Constituição Federal de 1988 é em si um marco princeps de mudança, ao
tomar a criança como cidadã, sujeito de direitos e instituir a família, a sociedade e o
Estado como responsáveis pela garantia, com absoluta prioridade, destes direitos.
Em 2015, celebramos os 25 anos de vigência do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), marco que permitiu a criação de um sistema de garantia dos
direitos e a instituição de conselhos paritários (governo e sociedade) para a formulação,
acompanhamento e controle social da política de atenção à criança e ao adolescente.
Entre os recentes avanços para a garantia do direito à saúde das crianças no
Brasil, destaca-se o lançamento, pelo Ministério da Saúde, da Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC), voltada para o pleno desenvolvimento
infantil, integrando programas e ações antes fragmentados. A PNAISC tem como
princípio a promoção e proteção da saúde da criança e o aleitamento materno por meio
de cuidados integrais que envolvem desde a gestação até os 9 (nove) anos de vida,
com ênfase na primeira infância, ou seja, nas crianças de até 3 anos, e nas populações
de maior vulnerabilidade. Há ainda o Programa Saúde na Escola que poderia ser
potencializado, pois se configura como importante ação intersetorial entre Saúde e
Educação no fortalecimento da constituição de escolares com maior consciência cidadã
e sanitária.
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O Marco Legal da Primeira Infância, lançado em 2016, representa ainda uma
importante conquista nesse espaço de luta, estabelecendo um conjunto de programas,
serviços e iniciativas voltados à promoção do desenvolvimento integral das crianças
desde a gestação até os seis anos de idade. Há ainda a Lei Menino Bernardo (Lei
Ordinária nº 13.010/2014), que estabelece o direito da criança e do adolescente de
serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou
degradante; a Lei de combate ao bullying (Lei nº 13.185, de 6 de novembro de 2015),
que institui o denominado "Programa de Combate à Intimidação Sistemática”, levada ao
conhecimento de pais, alunos, professores e da sociedade em 2016. Registre-se
finalmente a Lei 11.265/2006, que restringe a propaganda para comercialização de
alimentos infantis voltados para crianças de até três anos, tendo em vista evitar
prejuízos às campanhas de incentivo ao aleitamento materno.
Ainda como parte das transformações mais atuais, outra importante política,
lançada desde 2009, é a Estratégia Brasileirinhos e Brasileiras Saudáveis (EBBS,
portaria nº 2395), que também valoriza fortemente a visão sistêmica sobre o
desenvolvimento infantil, e tem sua atuação centrada na primeira infância. Essa
estratégia, apesar das limitações encontradas para sua implantação, permitiu a
experimentação de iniciativas municipais relevantes para o fortalecimento das redes de
cuidado à infância.
O Programa Criança Feliz
Em meio a situação política de golpe de Estado no país, e como primeira
“medida social” do governo Temer, o programa Criança Feliz foi lançado pelo Ministério
do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA), em outubro de 2016, com objetivo de
promover o desenvolvimento infantil, tendo como referência a primeira infância. O
programa pretende ser baseado em experiências de sucesso previamente realizadas
em estados e municípios, a exemplo do Mãe Coruja Pernambucana (Pernambuco),
Programa Família Paulista (São Paulo), Família que Acolhe (Boa Vista/Roraima) e o
Primeira Infância Melhor - PIM (Rio Grande do Sul), que contou diretamente com a
participação do ministro do MDSA, Osmar Terra, à época Secretário de Saúde do RS.
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Como principal ação do programa, pretende-se realizar visitas domiciliares
semanais para acompanhamento das crianças e famílias beneficiárias do Bolsa Família
e do Benefício de Prestação Continuada ou cumprindo medidas de acolhimento
institucional ou familiar. Tais equipes de acompanhamento serão formadas por
profissionais de saúde, educação, serviço social, direitos humanos e cultura, os
chamados visitadores, e terão como principal ação oferecer orientações que resultem
no fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, incluindo atividades lúdicas
que favoreçam o desenvolvimento. Pretende-se ajudar as famílias para o nascimento
dos bebês. Para as situações de vulnerabilidade ou de necessidades especiais das
crianças, o apoio do programa poderá ser ampliado até a criança completar 6 anos.
Como meta, estima-se que o programa deve atender mais de 4 milhões de
crianças até 2018, alcançando 28 municípios brasileiros. Outra importante promessa do
projeto é o seu caráter intersetorial, fomentando aproximações e diálogos para áreas
como assistência social, saúde, educação, cultura e justiça. A Pastoral da Criança é
também considerada uma referência para o Criança Feliz devido ao trabalho no
acompanhamento infantil há mais de 30 anos, em diversos municípios brasileiros.
Apesar da proposta interdisciplinar desenhada para o programa e da
promessa pela priorização financeira com altos investimentos previstos para sua
implantação, cabe analisar desde já que o lançamento do Programa Criança Feliz não
dialoga
com
a
também
recém
lançada
PNAISC,
reforçando
a
conhecida
descontinuidade dos programas, característica da alternância de poder no Estado
brasileiro. Mais que isto, o programa ignora a constituição do SUS como política social,
seus princípios, diretrizes, redes e dispositivos de cuidado.
Conforme vimos apontando, a constituição de um espaço social de luta em
favor da proteção da primeira infância vem se constituindo no Brasil nos últimos anos.
Em razão do cenário de urgência dado pelo significativo aumento de casos de
microcefalia em função de infecção pelo vírus Zika, foi criado um Plano Nacional de
Enfrentamento à Microcefalia, lançado pelo Governo Federal em dezembro de 2015, e
um conjunto de novos agentes, incluindo entidades da sociedade civil, muitas formadas
por familiares, passaram a figurar neste espaço. Como ação do Plano Nacional de
Enfrentamento à Microcefalia, as diretrizes de estimulação precoce em crianças de zero
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a 3 anos com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor decorrente dessa
enfermidade foram criadas para ajudar os profissionais da Atenção à Saúde em seu
trabalho.
Se na elaboração da PNAISC importantes agentes sociais estiveram
envolvidos no seu debate, formulação e execução, o mesmo envolvimento não se viu
na formulação do programa Criança Feliz. Está posto que o tema da primeira infância é
de toda relevância, mas o que se vê no Criança Feliz é um programa imposto através
de Decreto Presidencial, sem debate público e sem a devida construção entre gestores,
trabalhadores e usuários sobre suas possibilidades de implantação. A problematização
das questões da primeira infância, em especial àquelas que envolvam risco e
vulnerabilidade, com análise das reais necessidades sociais destas famílias e seus
territórios, não foram explicitadas e parecem não ser levadas em conta.
A criação dos visitadores é uma ação que mostra como o SUS é ignorado
pelo Criança Feliz. Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), trabalhadores
organicamente ligados ao SUS, não são reconhecidos em sua função e cria-se uma
atribuição paralela, a ser desempenhada por outros agentes sociais, com inserção
precarizada, sendo remunerados com bolsas, e totalmente desvinculados de uma rede
de cuidados que dê suporte à necessária relação de vínculo e continuidade da atenção
às famílias atendidas.
O lançamento do programa foi palco para Marcela Temer fazer seu primeiro
discurso como primeira-dama e embaixadora do programa em caráter voluntário,
conforme afirmou em sua fala. O discurso de ajuda aos pobres foi reiterado com força,
remetendo à tradicional participação das damas de elite nas políticas para crianças no
Brasil. Em sua fala, Michel Temer admitiu que a participação da primeira-dama no
Criança Feliz objetiva incentivar prefeitas, governadoras e primeiras-damas a se
envolverem no programa.
No final do século XIX e início do XX, o combate à mortalidade infantil se deu
num espaço social que reuniu a institucionalização da pediatria e a criação de
instituições de assistência à infância, destacando-se entre as principais figuras da cena
os médicos pediatras, puericultores e beneméritos na prestação de proteção e auxílio
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às instituições filantrópicas. As damas de elite desde então constituíram-se como
importantes agentes sociais de apoio à causa.
O que se vê na atual configuração de lançamento do programa é um reforço
do conservadorismo que marca as elites brasileiras com deslocamento do direito social
para o campo do assistencialismo e da caridade, assim como uma suposta valorização
do cuidado do lar, da família e das crianças exclusivamente pela figura da mulher, na
contramão de um discurso insurgente de paternidade cuidadora.
Finalmente, o enfrentamento dos problemas que incidem sobre a infância no
Brasil requer investir na redução das disparidades regionais, socioeconômicas e étnicas
que persistem apesar do progresso geral alcançado, além de preservar na cultura o
lugar do brincar, do ser criança. Questões que envolvem a excessiva medicalização do
parto e da infância, o aumento da frequência de partos pré-termo, de abortos inseguros,
de mortes maternas evitáveis, aumento exponencial da sífilis congênita, as iniquidades
relativas às crianças indígenas, demandam respostas firmes para um adequado
enfrentamento. Há ainda um frágil reconhecimento da criança nos espaços públicos e
inadequação histórica da rede de creches disponível no país que dê o devido suporte
aos chamados mil dias. Neste período, não menos importante é a valorização da saúde
mental materna e sua crucial relevância para um desenvolvimento infantil saudável. O
desfaio colocado pelo boom de microcéfalos solicita uma resposta social dirigida aos
cuidadores, assim como de enfrentamento por toda a sociedade.
Para além dos 3 anos, há ainda questões que se referem à criança e
juventude, como a gravidez indesejada, a transmissão vertical do HIV, o uso cada vez
mais precoce de substâncias psicoativas e o aumento de todas as formas de violências.
Uma criança feliz é barulhenta, inquieta, alegre e insurgente. Se não está na
escola, explora os becos e ruelas de sua comunidade, desce e sobe morros, circula
fora de casa, diverte-se na rua. Pula corda, roda bambolê, brinca de pique-esconde.
Haja pique para uma criança feliz. Neste cenário de conquistas, rupturas e tensões nas
políticas sociais e de saúde no Brasil, que esperar dos novos “visitadores” que lhes
procuram em casa, que esperar do Criança Feliz?
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Referências
PENELLO,
L.
M.,
Políticas
para
a
infância.
Entrevista.
Disponível
em:
http://www.resbr.net.br/politicas-para-a-infancia. Acesso em: 04 de dezembro de 2016.
VICTORA, C. G. et al. Saúde das mães e crianças no Brasil: progressos e desafios. The
Lancet, London, p. 32-46, maio, 2011.
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