Coleção 2 Coleção (textos publicados no site Crônicas Cariocas entre janeiro de 2007 e janeiro de 2010) Luciano Fortunato 3 4 Para Mary 5 6 “...como é bom poder tocar um instrumento”. (“Tigresa”, Caetano Veloso) 7 8 Apresentação Luciano Fortunato é um questionador. Na coleção, que agora é publicada em livro (de textos escritos para o portal Crônicas Cariocas entre janeiro de 2007 e janeiro de 2010), o leitor vai perceber que o autor fala de suas grandes paixões, como a música, o cinema e as crônicas, todas na condição tripla de estilo, simplicidade e irreverência. O texto de Luciano é pujante no que se refere às músicas e aos filmes imortalizados pelo público. Porém, um lado erótico e melancólico possa ser revelado quando o assunto é o registro do cotidiano. Para quem já entrou na fase dos quarenta e está empenhado a só dizer a verdade, viver talvez seja um tanto perigoso... Assim sendo, sedução e emoção são promessas que o leitor pode esperar nos textos a seguir. Francci Lunguinho Editor do portal Crônicas Cariocas 9 10 1. De música ligeira 11 12 O concreto titã A necessária influência de Arnaldo Antunes Eu poderia falar de umas coisas que eu tenho ouvido e gostado, como Arctic Monkeys, Kings of Leon, o simpático Keane, Wilco, Air. Em português só me vem à cabeça agora a cantora Céu, que eu recomendo. Mas como eu não sou daquelas pessoas que ouvem de tudo – pelo menos não assim que é lançado. Fui ouvir só agora o álbum Qualquer, do Arnaldo Antunes. E o disco é bom. O mestre da poesia concreta Haroldo de Campos disse certa vez que “uma letra do Arnaldo Antunes vale mais que vários livros de poesia”. Mas, é claro, era o mestre elogiando o discípulo. Não que Arnaldo tenha sido um discípulo formal, obviamente. Contudo me parece que Campos estava certo. Também... logo eu dizer isso – eu que ouvi mais músicas dos Titãs e do Arnaldo do que li livros de poesia... Esse negócio começou com a canção “O Que”, do álbum Cabeça Dinossauro, que dispensa apresentações e pede sempre mil comentários, merecidamente positivos. Ali ele já demonstrava suas intenções. A influência concretista viria se manifestar em toda a obra 13 do titã – embora a poesia e a música dele sejam muito mais que isso. É claro que “O Que” não estava sozinha. Todas as faixas do Cabaça Dinossauro são boas. E todos os compositores dos Titãs estavam, provavelmente, no seu melhor momento. O próximo grande marco na história dos Titãs e na história do rock brasileiro, e – eu me arrisco, sem medo, a dizer – na história das letras, seria a canção “Comida” (uma das faixas do álbum conseguinte: Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas). Vamos combinar: poucos versos na história da música brasileira foram tão felizes quanto “você tem fome de que?”. Mas, por motivos a serem estudados, Arnaldo distanciou-se do grande público ao abandonar o anárquico octeto. É engraçado, pois os Titãs eram ultra populares e ainda são. Entretanto, na carreira solo de Arnaldo não há sequer um grande sucesso radiofônico ou (muito menos) televisivo. Porque, veja bem, sofisticada a música dele sempre foi – já era ainda dentro do grupo. Então o que houve? Não sei bem. Mas sabemos que hoje a música dele é ouvida, quase que exclusivamente, pelas classes mais intelectualizadas da população. E há os paradoxos acerca do cara. Arnaldo é um sujeito muito bacana e muito esquisito. Compõe músicas lindas, que lembram canções de roda, e, no entanto, as crianças não conhecem tais canções (estou me referindo à maioria das crianças) – quem ouvir a canção “Num Dia”, do seu último disco Qualquer, que começa assim: “sujar o pé de areia pra depois lavar na água / lavar o pé na água pra depois sujar na areia...” vai se pegar 14 cantando e com vontade de brincar de roda. A gente vira criança ouvindo isso. Uma batidinha delicada no violão meio suingado, uma guitarrinha não menos delicada com efeito “wah-wah”, a ausência de percussão – que é uma característica de todo esse álbum – , e aquele cantar de gente boa que ele tem. Digo uma coisa: comprem esse disco. É um investimento. Mas se não tiver grana, fazer o que? Baixe, pô. Ainda sobre crianças. Quem ouvir o primeiro trabalho solo do Arnaldo – o belíssimo Nome – vai ter na canção “Cultura” uma primorosa peça infantil. Trata-se de um reggae minimalista que começa com o singelo verso: “o girino é o peixinho do sapo...” e vai por aí, falando de vários bichos e utilizando-se de uma didática da fantasia, quase que como um Monteiro Lobato, uma Sylvia Orthof, ou algumas coisas infantis da Clarisse Lispector. A maioria das crianças não conhece o Arnaldo. A única exceção nisso é “Velha Infância”, com os Tribalistas. Por conta de uma inclusão desta canção em uma novela das oito, o público infantil ouviu e cantou nos coros em festinhas escolares: “você é assim, um sonho pra mim...”. Mesmo assim, o trio formado com Marisa Monte e Carlinhos Brown, apesar de muito ouvido, não foi tão visto. Mas as crianças conhecem muito bem o Calipso, cujas letras não são nem um pouco infantis. Por outro lado, Arnaldo Antunes já foi muito fundo no erotismo como o fez, por exemplo, no álbum Paradeiro , com a música “Essa Mulher”, onde canta: “ela goza com o sabonete, não precisa de você / ela goza com a mão, não precisa do seu pau...”. Só que tem o seguinte: nem cantando sacanagem ele soa 15 sensual. Está dizendo palavrões, mas parece um sociólogo, um analista ou quase um padre, quando faz isso. E acaba também não mexendo com a libido feminina – o que é quase um pré-requisito para um pop star. Ele não tem fama de mulherengo como o público feminino adora. Arnaldo não atiça o tesão da maioria das mulheres. Isso é coisa de gente boa. Puxa vida, Arnaldo Antunes só pode ser gente boa. E gente boa geralmente não soa sensual. E, logo, não vende. Se soa filosófico não vende. Se soa intelectual ou erudito, não vende. Pra juntar a isso, ele não é um grande cantor, e sim um intérprete pras suas próprias composições. E não é um intérprete versátil, e tem uma voz esquisita. Bem. Acho que depois de tantos anos de carreira, o pessoal já deveria ter se acostumado com a voz dele. Não foi difícil se acostumar com as vozes nasais de Chico Buarque e Belchior. E, na minha opinião, tem gente com voz muito desagradável fazendo sucesso comercial por aí. E a dele, sinceramente, eu acho muito interessante e agradável, apesar de esquisita. Mas ele vende pouco – não tem jeito. Ele vende pras classes A e (olhe lá) B. Isso pode ser positivo, no fim das contas. Se as pessoas formadoras de opinião são as que ouvem o Arnaldo, o bom gosto e a sabedoria (isso mesmo) dele pode influenciá-las, a ponto de tal influência ser “repassada” às classes “receptoras de opinião”. Puta merda, que idéia estranha essa minha agora. Tomara que faça sentido, e, fazendo sentido, aconteça de fato, pois a música popular desse país necessita da influência de Arnaldo Antunes. 16 Eis o “filé” de Arnaldo Antunes: “Saiba” (do álbum Saiba); “Num Dia” (de Qualquer); “Nossa Bagdá” (do álbum Qualquer, e autoria de Péricles Cavalcanti ); “As Árvores” (de Um Som); “Dinheiro” (de Um Som); “O Seu Olhar” (de Ninguém, e da trilha de Bicho de Sete Cabeças); “Cultura” (do álbum de estréia solo, Nome); “Alta Noite” (também de Nome); “Alegria” (de Ninguém); “E Estamos Conversados” (de O Silêncio); “Essa Mulher” (de Paradeiro). Cantado por outros: “Volte Para o Seu lar” e “Eu Não sou da Sua Rua” (por Marisa Monte, no álbum Mais); “As Coisas” (por Gilberto Gil, em Tropicália 2, o álbum comemorativo dos 25 anos de Tropicália). Com os Titãs: “O Que” (Cabeça Dinossauro); “Comida” (Jesus Não Tem Dentes No País dos Banguelas); “Miséria” (Õ Blesq Blom); “Medo” (Õ Blesq Blom); "Saia de Mim" (Tudo ao mesmo tempo agora). 17 O Fim da Poesia? Vinho tinto e boa música de artistas vivos e mortos podem quebrar um galho Isso aqui é para todos que me amam, todos que estão curiosos por me conhecer um pouco melhor, todos que gostam de ouvir o que um poeta louco diz. Ou seja, pra bem pouca gente. Vou te falar. Escrevo poesia. Livros de poesia. E-books, na verdade. E cada poesia que escrevo é um grito desesperado: “venham me conhecer!”; “venham compartilhar a vida comigo!”. Sempre pretendo somar coisas e pessoas. Quero sempre mais gente com quem eu possa falar e a quem eu possa ouvir, aprender e ensinar. Porém, a dura matemática da vida parece ser um empecilho para que isso se dê plenamente. Minha poesia está no fundo do copo deste vinho tinto barato – não do mais barato, mas um vinho razoável. Minha poesia, acho que não me faz bem: me dá ressaca. Ela faz-me sentir, não raro, um imbecil. Fui chamado de narcisista outro dia na Internet. E é verdade, sou mesmo. Me acho belo e inteligente. Um conhecido meu, músico e pessoa razoavelmente bem sucedida, diz que eu sou um cara que só sabe reclamar, 18 e ele, que pouco me conhece, está certo também. Narcisista e chorão. Que coisa mais esquisita. Sou belo, mas não o suficiente para que todos achem o mesmo. Sou inteligente, mas não o suficiente para sair da casta de onde nasci. Pertinentes e adequados a mim são os versos “eu sei de quase tudo um pouco, e quase tudo mal”, de uma música dos anos oitenta. Toco violão, mas não bem. Canto razoavelmente, mas a voz é um tanto fraca, instável e um tanto anazalada. Dirijo meu carro, mas me apavora a idéia de dirigir o carro dos outros. Sou ateu, mas não possuo as bases científicas para me justificar. E se eu for por esse caminho aqui eu não termino mais de escrever. Auto-piedade. Auto-piedade. A mais pura auto-piedade. Lamentável isso. No meu som agora está tocando Joy Division. Essa foi uma grande banda. Pra quem não sabe, o vocalista se matou. Jovem, muito, muito jovem. Ian Curtis se enforcou quando tinha vinte e três anos, antes de conhecer um sucesso que seria inexorável. Mas ouvir vozes como as de Cazuza, Raul Seixas, Renato Russo, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, e, até mesmo, Curt Cobain, jamais me incitaram qualquer desejo auto-destrutivo. Tenho facilidade em admirá-los sem querer imitá-los – e muito menos a Curt e Ian, que foram suicidas de fato. Também não fico triste em ouvir vozes de mortos. E nunca pensei em me matar, não. Mas quando eu era novo e ficava perto de um trem passando, eu apenas tomava o cuidado de me afastar o suficiente – tinha medo de mudar de idéia de repente e pular embaixo das rodas de ferro. Todas são de ferro. O trem bala tem rodas? 19 Tive pensando na música do Cazuza, “Ideologia”. “Meus heróis morreram de overdose...”. É verdade, que música boa, que letra... “Meu partido é um coração partido, e as ilusões estão todas perdidas...”. Tenho um coração sofredor como de qualquer poeta desse mundo e de todas as épocas da humanidade. É bem verdade que alguns artistas sofredores viajam para os Estados Unidos, comem ostras e tomam do melhor uísque doze anos todo santo dia. Até pão e água é difícil pra mim: pão não é tão barato assim. Mas tudo bem. Prossigo com minha dor e assisto ao fim da minha poesia. Porque viver poeticamente é o que me parece, às vezes, ser uma insanidade. Pondero, contudo, questionando o que vem a ser sanidade. Como discutir o que é necessidade e o que é trivialidade com seres estranhos como os poetas e artistas em geral? Não, não. Espere. Que nada. O fim da poesia seria o fim de tudo. Puxa vida! Não é que esse vinho está me fazendo bem... Então, adeus faturas vencidas, intempéries gerais e, vamos à arte. “Então vamos pra vida...“. Pinturas rupestres. Novos estudos revelam que elas não eram simplesmente figuras funcionais e descritivas de caçadas. Elas eram de fato artísticas. O homem das cavernas tinha poesia. Não se preocupava apenas com sua sobrevivência. Ele buscava ver o mundo além dos seus olhos, ou, ao menos, retratá-lo além. Já vi essa nova teoria em dois documentários da TV. Só idiotas 20 não conseguem ver a arte funcionar. O homem préhistórico já sabia disso. Quer saber? É a poesia o que nos torna humanos. Que mudança... dos parágrafos iniciais até aqui... É a minha teia cultural particular me fazendo recapitular e refletir, e repensar. A cultura é a única fábrica de gente que há. E a cultura é saturada de poesia, música, arte.. Homem e mulher e barriga são ferramentas de moldar bichinhos. Cultura e poesia fazem mais: moldam gente. “...Eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus...”. Engraçado como, ainda hoje, passada a onda hippie, este verso ainda consegue ser tão forte e belo, em pleno turbilhão capitalista. Nesse furacão vivo onde o dinheiro é o principal deus. Mas quem vive a poesia não precisa de deuses. Só precisa do sonho. Não se pede esmola a um sonho. Não se ajoelha diante de um sonho. Um sonho é uma impressão aumentada. É como o poema – é um superlativo mas não é um deus. É a codificação de um desejo. É a flor silvestre enfeitando o cabelo da moça. É o violão feito de madeira cheirosa. São os acordes desse violão. “Quem tem um sonho não dança”... Vê só? Esse texto, em princípio, era pra ser um tiro de misericórdia na pobre poesia. Mas me bastaram um pouco de vinho tinto, boa música nas minhas grandes e queridas caixas de som, meu violão... E minha vocação para a felicidade se mostrou umas poucas linhas depois 21 do que parecia ser o fim da estrada – não o fim da vida, fique claro. E estou eu aqui, bem melhor. Mas sei que como “a vida vem em ondas”, assim é com a felicidade. Ondas perfeitas e ressacas. Não se segura uma onda com as mãos. E, pensando em onda, me ocorreu o verso cantado por Lulu Santos na música “Assaltaram a gramática”, que ele canta com os Paralamas do Sucesso: “...o poeta é a pimenta do planeta.” A pimenta é uma planta única. Ela causa ondas de calor capazes de temperar a vida. Lulu Santos foi o cara que abriu as portas para a geração de rock da década de oitenta. Um desbravador. Também como Lobão e outros. E se até músicas tristes, como as do Joy Division, estão me fazendo feliz agora, o que dizer então da lembrança oportuna dessa alegre canção dos Paralamas... E na tentativa tosca de incrementar um verso irretocável como o cantado por Lulu, eu diria ainda “o poeta é o vinho do planeta”, ou “o poeta é a maconha do planeta” (?!?). * “Eu sei de quase tudo um pouco, e quase tudo mal” é um verso da canção “Nada Tanto Assim”, do disco Seu Espião, de Kid Abelha e os Abóboras Selvagens, um dos mais criativos grupos da história da música brasileira. Joy Division foi uma das mais originais e incisivas bandas de rock que já existiram. Influenciando diretamente vários nomes do rock, como o nosso 22 Legião Urbana, por exemplo. Um ótimo registro do simples e poderoso som deles está no Cd que contém apresentação ao vivo na rádio BBC de Londres. O álbum Ideologia, de Cazuza traz, na faixa título, os versos “meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder / ideologia: eu quero uma pra viver.” Ideologia é , sem dúvida, o disco mais consistente do cantor e compositor. O disco traz ouro puro, como “Faz Parte do Meu Show” e “Boas Novas”(“...então vamos pra vida / senhoras e senhores, trago boas novas / eu vi a cara da morte e ela estava viva”), entre várias outras grandes canções. Gal Costa cantava no começo da década de setenta, com um acompanhamento de violão ultra-simples “eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus / e não me importa honey / oh minha honey baby...” . Esta bela manifestação da inocência hippie, consegue, ainda hoje, ter força e ser impactante. E não é pra menos. Ela é recheada de versos de grande efeito psicológico. “Vapor Barato” foi, muito mais tarde usada como trilha sonora para o filme Terra Estrangeira, de Walter Salles. Foi também regravada pelo O Rappa e teve grande parte dos versos inseridos em uma música de Zeca Baleiro, o que finalmente consolidou sua tardia mas merecida popularização e consagração como canção pop. Na voz de Lulu Santos o país ouviu versos inesquecíveis. A música “Como Uma Onda” é quase um hino para a juventude dos anos oitenta, em busca de 23 consciência. “Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia / tudo passa, tudo sempre passará / a vida vem em ondas como o mar / num indo e vindo infinito”. A letra é um convite à filosofia. “O poeta é a pimenta do planeta: malagueta!”. A música se chama “Assaltaram a Gramática”, e está no disco O Passo do Lui, dos Paralamas do Sucesso, do qual Lulu participa. * Passados dois dias da minha desilusão poética e angústia criativa – de onde saiu essa pequena crônica –, amanheci com graves, graves mesmo, problemas intestinais. Muita dor e mal estar. O motivo? Vinho. O meu antídoto é também o meu veneno. É terrível constatar, tendo que relembrar de vez em quando, sob horríveis dores, que a minha bebida preferida me faz tão mal. Amo vinho. Gosto de pimenta. Será que existe alguma coisa boa nesse mundo que não me cause tantos efeitos colaterais? * O vinho que estou degustando no momento se chama “Sky Blue Sky”, o novo disco do Wilco. Delicioso, e, até agora, sem reações adversas. (LF) 24 Tem que reciclar Bebel Gilberto cuida da imagem do Brasil – e nem deve saber o quanto A supercarioca e também nova-iorquina Bebel Gilberto é hoje – quase sem querer – uma conveniente embaixadora da cultura musical brasileira. Nos últimos dez anos ela é o nome mais conhecido da música brasileira no exterior, tendo vendido bem mais de um milhão de CDs. Uma pergunta inevitável é: por que por aqui Bebel vende pouco? É muito esquisito o que nosso mercado interno faz com artistas desse tipo. As forças estranhas que o regem parecem fazer desdém daqueles que atingem sucesso internacional, como se isto fosse um tipo de fraude do mundo artístico. Pouco se diz da importância desses que ultrapassam fronteiras, e com talento e obstinação vão levando nossa cultura ao mundo. Quase como se os nossos artistas “internacionais” fossem “de araque”, sem jamais representar, verdadeiramente, o que temos de melhor. É claro que isso acontece às vezes. Mas, por favor, separemos o joio do trigo. A portuguesa Carmem Miranda usou aquele “falso” estereótipo do povo brasileiro, que todos conhecemos. As Bananas na cabeça: que figura pode ser mais 25 patética? Os “sambistas” brancos com camisas listradas... A coisa do Zé Carioca... Enfim. Aquilo tudo que não era Brasil, fora até bem aceito pelos brasileiros sem muita reclamação. Carmem Miranda e, vejam só, o “implantado” Zé Carioca foram os nossos embaixadores culturais na época da Segunda Guerra. Engolimos aquilo por falta de alternativa. Aquele Brasil inventado pelos norte- americanos os nossos compatriotas acataram com gratidão de mendigos. Com a Bossa Nova o diálogo inter-cultural se estabeleceu de forma bem mais aceitável, autêntica e, porque não dizer, digna. Se a música de Tom Jobim de João Gilberto não era exatamente “tradicional”, era boa. Melhor inovar com classe do que com frutas na cabeça. Bom ainda lembrar que há muitas vezes uma inocência com o uso da palavra “tradicional” – o processo de influências culturais, inter-relacionando culturas e criando novas formas, se dá há milênios. Uma simplificação grosseira bastante usada, mas não irreal, explica que o “gênero” bossa nova foi uma fusão do nosso samba com o jazz americano. E se foi? Que seja. Tom e João não foram tradutores do Brasil. Foram reinventores. Na receita de sua nova música eles usaram o bom da nossa terra, numa forma o menos estereotípica possível. A Bossa Nova é, até hoje, o nosso produto cultural de maior sucesso no quesito exportação. Depois da turma de Tom Jobim, um ou outro se aventura vez em quando em levar nossa música ao exterior. E um ou outro com certo êxito. Êxito que é fracasso se comparado com o que fizeram Tom e João. 26 No segundo país em exportação musical (é claro que, embora vices, perdemos de cem a zero pros primeiros, os estadunidenses) a “embaixadora” da vez é mesmo Bebel Gilberto. Seu novo disco Momento – na verdade lançado em agosto do ano passado – é uma boa síntese da qualidade e das potencialidades da música brasileira. O velho e o novo estão em Momento. O “bom” velho e o “bom” novo, diga-se. Esse poder de síntese da cantora e compositora pode ser comprovado nas econômicas 11 faixas do disco. Em poucas canções o que se mostra é uma grande variedade de ritmos e sonoridades. Tem violões executados ao estilo do pai, João Gilberto. Tem “ambient music”. Tem eletrônico. Tem influência cubana. Tem samba, obviamente. Tem, enfim, tudo que um disco precisaria para ficar insuportavelmente heterogêneo e perdido. Mas em Momento Bebel Gilberto conseguiu o quase inatingível paradoxo de estabelecer a unidade dentro da diversidade. O disco soa inexplicavelmente coeso. Filha de João e da Cantora Miucha. Sobrinha de Chico Buarque. Parece ser mesmo uma marca da família a inovação musical, vertente que a moça explora naturalmente. Se a “exportação” de Bebel Gilberto poderá surtir efeitos tão positivos quanto a de seu pai, só o futuro responderá. Se ela será uma nova Carmem Miranda – não falo aqui da admirável mulher Carmem Miranda, mas sim do fenômeno Carmem Miranda, que distorceu, graças a Hollywood, a imagem da mulher e da cultura brasileira –, espero que não: é preferível uma discreta e autêntica elegância a uma extravagância “industrial” cheia de terceiras intenções. 27 Como é bom saber que o Rio gerou Bebel Gilberto; que o Brasil tem nela e em algumas outras boas cantoras a possibilidade da eterna redenção de nossa grande música; que Nova York tão bem tenha acolhido nossa cantora morena, “repassando-a” para o mundo – ainda que sob signos suspeitos de word music ou new bossa. De toda forma, sua boa música faz bem para o Brasil, assim como para os ouvidos globalizados e curiosos mundo afora. E Bebel vai tranqüila e com seu estilo autoral e único, reciclando sentimentos, conceitos e sons com sua música calma e sofisticada. 28 Benito di Paula e A-ha Talento e bom gosto não superaram o preconceito Raramente – mas muito raramente mesmo – leio a revista Bizz. Mas li muito nos anos oitenta. Às vezes, hoje, leio os cadernos culturais dos melhores jornais, mas leio pouco. Nunca li a Rolling Stone ou a Billboard, pois meu inglês de ginasial não permite. A anunciada edição brasileira da primeira eu ainda não vi. Às vezes leio resenhas musicais na Internet. Meu negócio é mesmo pegar e ouvir. Vou dizer. Em todos esses anos vivi sempre uma sensação de estranheza pelo fato de nunca ninguém, nenhum crítico musical desses veículos, ter falado bem do grupo norueguês A-ha. Naquela época (me refiro aos anos oitenta) era Echo and The Bunnymen pra cá, The Smiths pra lá, New Order pra cá, The Cure pra lá, Jesus and Mary Chain pra cá, R.E.M. pra lá. Todos incensados pela crítica – esse pequeníssimo grupo de pessoas que lêem as publicações internacionais e ditam o que é bom e o que é ruim, a quem eu sempre respeitei, com desconfiança, mas respeitei . Depois, nos anos noventa era Rage Against the Machine, Nirvana, Belle and Sebastian, The Smashing Punpkins, Radiohead – todos muito bons, admito, cada um a seu estilo. Estes também muito 29 elogiados Mas ninguém se dedicou a falar bem do A-ha, que gravou excelentes discos nas duas décadas em questão. Em 1986, irrepreensível álbum Scoundrel Days mostrava o potencial artístico do grupo. Em 1993, fez Memorial Beach, extraordinariamente bem gravado. E fechou a década, lançando em 2000 o magnífico Minor Earth Major Sky – sendo estes dois últimos trabalhos, inovadores, porém retumbantemente ignorados. São discos surpreendentes pra quem imagina que as músicas do grupo são todas iguais. E, apesar de uma separação e de uma volta, no que eu saiba – eu, que não participo de fã clube de ninguém – o grupo não acabou não, ta legal? Vou então falar mais do A-ha. Nas minhas contas, o grupo gravou, de 1985 pra cá, oito “álbuns de carreira”. Seus grandes êxitos comerciais foram o álbum de estréia Hunting High And Low, de 1985, o já citado Scoundrel Days, de 1986, onde o grupo abandona a bateria eletrônica, e Stay on These Roads, de 1988. Sucessos radiofônicos e televisivos, uma penca. Com destaques para o primeiro sucesso “Take on Me” – onde a banda mostrou-se ao mundo, e ao que veio – e para as belíssimas baladas “Hunting High and Low” e “Say on These Roads”. Mas há vários outros sucessos, que vira e mexe ouvimos nas salas de espera da vida. E, com certeza, ouvimos com prazer. E qualquer alma pura ouve com prazer. Só que o mainstream e sua a crítica especializada não são almas puras. E ai do crítico que elogiar o grupo nórdico! E ainda: qual crítico de caderno cultural, da alta classe média, vai admitir que gosta da mesma música que a sua empregada. Hoje eu 30 já não tenho mais certeza, mas nos anos oitenta as empregadas domésticas adoravam as baladas do A-ha. Entretanto, quem pensa que eles só sabem fazer baladas melancólicas ou “tecnopop” está redondamente enganado – não parou pra ouvi-los. E vou dizer: Morten Harket, vocalista do grupo, é a mais bela voz de toda a música pop, e fim de papo. E o engraçado é que compartilho dessa idéia com dois amigos meus. O caso é que os noruegueses foram tão massacrados que às vezes eu tenho que fazer uma autocrítica pra ver se eu não estou maluco ou não sou o único a admitir isso – que Morten é o grande vocalista vivo. Sua voz é doce, seu agudo é incomparável, seus graves são sussurrados com cuidado, ninguém se compara a ele. Outro dia vi que Chris Martin, vocalista do Coldplay disse ter o A-ha como sua principal influência. Aleluia. Viva Chris Martin! E viva o Coldplay! Mudando radicalmente de estilo – mas não de assunto. Andei ouvindo Benito di Paula, que pra quem não sabe ou nunca ouviu falar, é um cara que fez muito sucesso nos anos setenta cantando sambas considerados bregas pela elite ditadora da MPB. A palavra brega não existia. Eu nem sei que palavra era usada. Só sei que era o cara que as empregadas domésticas ouviam – além do Robertão, é claro. Benito se apresentava – como ainda se apresenta – sempre ao piano, com seu fraque, normalmente colorido e com brilhos. Exímio pianista, grande compositor, grande cantor, grande sambista. 31 Rompeu o estereótipo do sambista maltrapilho do morro. Criou um repertório de canções eternas e de indiscutível qualidade como, “Charlie Brown”, “Retalhos de Cetim”, “Ah! como eu amei”, “Sanfona Branca” – esta uma doce homenagem a Luiz Gonzaga – , dentre inúmeras outras de uma vasta lista de sucessos. Ouvia isso no toca discos Sonata portátil do meu irmão e ficava maravilhado. Vou contar um segredo. Choro quase toda vez em que canto “Ah! como eu amei”. É a beleza musical pura. Ou, se não pura, lapidada com maestria, ainda que o arranjo registrado soe datado. Certamente a canção não deve nada aos sambas-canção de Cartola ou Nelson Cavaquinho, que foram homens verdadeiramente inspirados e talentosos. Mas é triste ver que existe uma MPB e um samba que vive de passado – e isso não é ruim ou pecado – onde está incluído, por exemplo, Paulinho da Viola, que é merecidamente respeitado pelo que fez nos anos setenta, e um pouquinho nas décadas seguintes. Paulinho é gênio indiscutível, embora não seja um bom cantor – como todos sabem, mas têm vergonha de dizer. Paulinho nem precisa gravar muitos discos. Está decretato que ele é “o” grande sambista. O “triste” que menciono é a injusta indiferença para com alguns grandes sambistas do passado. Chico Buarque, diferentemente de Paulinho da Viola, não cessou de criar uma variedade de legítimas obrasprimas mesmo após os férteis anos setenta. Muito embora saibamos que ninguém cantarola pelas ruas as canções novas do Chico. Quando alguém pensa em Chico Buarque, pensa em suas canções antigas, não tem 32 jeito. Canções como “Construção”, “Cotidiano” ou “Apesar de você” – esta gravada também por Benito di Paula, que ajudou a popularizá-la. Pôxa. Se Paulinho da Viola e Chico Buarque (perdão, meu inigualável e idolatrado Chico, o grande construtor da música brasileira contemporânea) podem viver de passado, por que Benito di Paula não pode? Qual o problema? Mas é assim que está: Paulinho, com seu casamento de samba com choro, não pára de andar nas bocas. Os grupos de samba-choro espalhados por aí tocam todo o repertório dele. Mas ele não passa no teste da empregada. Não tem voz pra isso. E antes que queiram me matar, já vou avisando: tenho dois CDs e dois vinis dele e ouço de vez em quando, com muito prazer. Correndo por fora, no tocante a “status”, vêm grandes artistas como Alcione, Beth Carvalho, Arlindo Cruz, Jorge Aragão – este de obra respeitável, embora não consiga cantar afinado nos shows – e o grande vendedor de discos Zeca Pagodinho, entre outros. Estou falando apenas de Samba. Como sou também preconceituoso, não vou falar aqui “daquele” tipo de samba. Não que falte talento a seus representantes. O meu desinteresse vem pela repetição incessante de uma fórmula. Se bem que o Raça Negra merece um parênteses (eles não mereciam o desprezo que tiveram por parte da crítica nos anos noventa, como se fossem culpados por vender muito. Vejo no Raça Negra não um pastiche empobrecido de samba com música romântica apelativa, mas sim uma perfeita transposição do tipo de letra 33 simples, direta e compreensível que se fazia na Jovem Guarda para o ritmo de samba. Foram espertos, deslizaram no vácuo de outros artistas, mas foram inovadores. Só hoje percebo isso). E os críticos sempre às voltas com a “síndrome da empregada”. Quem sou eu pra pedir que os cadernos culturais, detentores do mais puro bom gosto e senso estético, escrevam sobre Benito di Paula? Agora, o que não vale é colocá-lo em evidência como o “sambista brega”, que ele nunca foi. Benito foi uma figura ímpar no cenário musical setentista, trazendo inovações à nossa música. Ser eclético é praticamente uma necessidade do ouvinte contemporâneo. Há muitas opções disponíveis no mercado musical. Muito que se ouvir. E eu, tenho essa dica. É para os ecléticos e saudosistas amantes de boa música pop e de samba: ouçam os discos do norueguês A-ha – não apenas os hits radiofônicos e os primeiros discos, que é normal que já tenham enjoado, assim como as deficientes coletâneas disponíveis no mercado: se bem que não pode existir coletânea ruim deles – e vão ver o que estavam perdendo. E, no caso do samba, em vez de seguir a atual ditadura e o culto em torno do batido e suspeito – ainda que bonito e respeitável – “samba de raiz”, dêem uma chance ao enorme talento de Benito di Paula, cantor e compositor nascido em Nova Friburgo, longe dos morros e da periferia da capital, ambientes tidos como “berços do samba”. Um cantor e compositor “carioca”. 34 Bandinhas: ouçam “Cê” Caetano nos faz voltar ao tempo em que um novo disco de rock era sinônimo de frescor musical. Dizem que a aldeia global preconizada pr McLuhan é hoje um fato. Uma aldeia ou tribo tem seu líder. Hoje parecemos carecer disso no campo artístico. E isso é muito bom – já basta a besta protestante lá de Washington com seu pretenso poder político. Em termos culturais e artísticos, e, sobretudo em se tratando de música, me parece que os caciques da música cantada em língua inglesa começam a perder sua hegemonia, e aldeões de diversos cantos dessa imensa babel cantam o que bem entendem em suas diversas línguas. Muitas vezes eles cantam rock. E o rock não mais pertence, mesmo, aos fodões do norte – embora eles o saibam ainda fazer, em alguns casos, muito bem. Mas com a perda dessa exclusividade estilística deles, os reis vão ficando cada vez mais pelados, e já é possível vê-los com raio-X. Todo mundo já sabe também que a música norte-americana – que já foi a 35 mais rica do planeta – e a inglesa há muito tempo não são exatamente uma referência de qualidade. Quanto à música que se produz no Brasil, já teve períodos mais férteis, com certeza, mas não está estagnada, e se mostra (não nas rádios e na TV aberta) muito criativa e atraente e se propaga cada vez mais ao resto do mundo – vide hoje Seu Jorge e Lenine. A música de regiões fora do eixo Rio-São Paulo também ganhou gás há pouco mais de uma década com Chico Science, que abriu as portas ao regionalismo e sua miscelânea, fazendo uma mini reedição da Tropicália. Chico Buarque – que não pensa mais em música em termos de inovação - nos brindou recentemente com o lindo, lindo, lindo cd Carioca, e provou que vai bem das pernas e da língua. Mas e quanto aos novos? Cadê aquele novo cantor e compositor que poderá salvar a música brasileira da mesmice comercial em que se encontra. Aquele messias capaz de vencer as barreiras da Globo e se mostrar aos pobres e carentes ouvintes brasileiros sem ser considerado brega e sem ser brega? Os “undergrounds”, os “alternativos” estão vivos, e sempre estiveram, bem sabemos. E como seria legal se a boa música, a boa, elegante e inovadora música pudesse chegar a um número maior de ouvidos... E o nosso “propriamente dito” rock? Fique claro: não vou falar de bandas do nosso vasto e rico (e impenetrável) underground. Bem. Tem Los Hermanos com o seu 4, que é belo e inovador, embora melancólico 36 demais – o que não é um defeito. Skank mostra “frescor” – o citado no subtítulo deste texto – em seu Carrossel, que está extremamente bem gravado. Um tanto retrô, na linha do anterior Cosmotrom, mas, como este, bem bonito. Minha mãe adorou. Outros nomes do nosso rock ostentam considerável qualidade técnica, mas, infelizmente não parecem ter muita novidade a mostrar. Pelo menos novidades que nos encantem. E eis que nos chega ele. O consagrado músico brasileiro, senhor de cabelos grisalhos, chamado Caetano Veloso e lança Cê. Não há dúvidas: Cê é um disco de rock. Com direção musical de Pedro Sá e Moreno Veloso, o disco surpreende do início ao fim. Já se usou a palavra “minimalista” para defini-lo, e pode ser um pouco por aí, mas dizer-se isso é muito pouco. Cê é praticamente um modelo para quem quer fazer rock de qualidade, fora da prisão do virtuosismo técnico que tem parecido ser um tipo de dogma para os jovens músicos que compram as pedaleiras mais caras para extrair delas, com suas guitarras não menos caras solos mirabolantes “satrianescos” ou efeitos à la Korn – a banda rap-metal (ou algo do tipo) de rapazes tatuados até a alma, que os meninos adoram. Caetano é o compositor surpreendente de sempre. Só que agora rodeado de garotos que querem e buscam, em consonância com o seu mestre, o diferente, o atípico. Mas não se pense que Cê é só estranheza, ou que seja um disco difícil. Os arranjos são “sofisticadamente simples” e há músicas, de certa forma, previsíveis também. A música “Rocks”, por exemplo, é um rock 37 comum e despretensioso. “Não me arrependo” é uma lindíssima canção de amor que agrada a qualquer ouvinte e cabe em qualquer coletânea ou rádio FM. Em “Porquê” Caetano canta com sotaque português – coisa que já fez em, pelo menos, duas outras ocasiões. Se bem que aqui o buraco é mais embaixo: a frase “estou a vir’’ é repedida, inúmeras vezes, como em um poema concretista, com o cantar lusitano – isso sobre uma base jazística de extrema elegância. O tratamento instrumental, com basicamente guitarra, baixo e bateria é uma dos aspectos que mais nos surpreende e chamam a atenção. E como isso é feito lindamente... Não é som de garagem – está muito longe disso –, apesar de cru. Mas digo que as bandas de garagem precisam ouvir urgentemente este disco, e, assim, terem uma aula sobre o que se pode fazer com poucos instrumentos. “Tá ligado”? E, quem sabe, entendamos todos que não precisamos mais nos considerar órfãos dos nossos grandes roqueiros. Órfãos de Raul, de Cazuza, de Renato Russo. Ou melhor, que não precisamos de roqueiros, mas sim de músicos versáteis que saibam, inclusive, fazer um bom rock. Caetano carrega ainda o peso de ser ético e inovador – coisas que ele é e sabe ser. Talvez isso até lhe doa, como a dor cantada por ele no rap “O herói” (última faixa do CD, e talvez a mais pungente) onde canta: “eu sou herói, só Deus e eu sabemos como dói”. Essa é a dor do personagem mulato pobre da letra, mas ali pode estar subliminarmente exposta a dor desse compositor que sempre conseguiu transformar o seu sofrimento na 38 mais instigante arte. Que é exatamente o que os grandes artistas fazem. No final de um disco repleto de erotismo, como é Cê, novamente pra nossa surpresa, fechando a tampa desta caixa de jóias, podemos ouvir o músico preocupado em questões sociais se manifestando poética e plenamente. Mr. Veloso agora bem que poderia, se quisesse, ser um “godfather” do rock tupiniquim. O rock é nosso (desculpem a paráfrase de “o petróleo é nosso”). Ah. Dizem que Caetano anda ouvindo muito algumas novas bandas de rock. E, a propósito: ainda não li nenhuma declaração dele dizendo claramente que seu disco é de rock. Pra mim é. E dos bons. 39 Que saudade da capa grande de papelão Internet reduz música a “apenas” música É um contra-senso: usar a Internet – que tanto tem ajudado na difusão musical de novos e velhos artistas – para tecer críticas negativas. O título deste artigo poderia ser também “A capa sumiu”. Explico. Após a era de ouro dos singles surgiu o LP, e não tardou para este se transformar em arte, mais do que apenas um disco grande de vinil com uma capa mostrando o rosto do cantor. O álbum – esta palavra começou a ser usada, em inglês, obviamente sem acento, em meados dos anos 60 – “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, é tido como um divisor de águas para uma nova fase da música pop, onde um disco não seria mais apenas um disco. Ele deveria ter uma capa instigante envolvendo arte visual. Deveria conter um encarte com as letras. Deveria ser algo bom de pegar, bom de olhar, bom de guardar, bom de mostrar com orgulho aos amigos aquele objeto enorme que não cabia nas mãos. Aí então veio o CD. Legal. Bonitinho. Bom de pegar. Bom de olhar. Bom de guardar. Bom de mostrar aos 40 amigos. E o melhor: som límpido – na maioria das vezes, mas nem sempre – e praticidade na hora de selecionar as faixas que se quer ouvir. Mas com o advento do CD a música pop, como arte pop, sofreu seu primeiro golpe. Adeus capa do “Sargent Peppers...” (e há inúmeras outras capas “intransponíveis” para o formato pequeno, como “Phisical Graffiti”, do Led Zeppelin). Como apreciar aquele belo mosaico, que já causava confusão visual no tamanho original, agora numa capinha de 12 centímetros? É claro que vários artistas da era digital fizeram de tudo para trazer arte para as capas dos CDs – às vezes com bastante sucesso. Mas nunca se conseguiu reproduzir o impacto de se pegar pela primeira vez numa loja a enorme capa de papelão. Entretanto, o golpe derradeiro na arte visual da música viria com a Internet. Aí fudeu: adeus capa; adeus arte visual. É ligar o E-mule – ou outro site/programa de compartilhamento de arquivos –, baixar o que você quiser e gravar num CD-R de um real. Pra mim é uma pena – apesar de eu também me beneficiar disso. Mas como fica aquela relação afetiva com as capas? Alguns artistas da era do CD usaram bastante o papelão ao invés do acrílico, como o Pearl Jam – que fez capas que são pura arte. A capa das primeiras edições do “Equilíbrio Distante” do Renato Russo (papelão amarelo, com desenhos de Giuliano, filho do cantor): como essa capa foi tocante pra mim... Renato estava prestes a se despedir. E, depois, tocar naquela capa, logo após a ida dele, fez-me sentir como se tocasse, de certa 41 forma, nele, o maior ídolo da minha adolescência. E àquela altura eu nem era mais adolescente. Aquele disco – com sua capa – ainda está, é claro, na minha estante. E aqueles desenhos infantis ainda impressionam. Juliette – minha filha, de quem já falei aqui no Crônicas Cariocas, que ama música e capas de discos – tem a capa em questão como a sua predileta. Mas, e agora, com essa mania de baixar música da Internet, que capas eu vou mostrar pra ela? Algumas capas “intransponíveis” que (infelizmente) diminuíram, e, agora (hiper-infelizmente) sumiram: “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band” (Beatles); “Physical Graffiti” (Led Zeppelin); “Houses of the Holly” (Led Zeppelin); “Õ Blesq Blom” (Titãs); “Litle Creatures” (Talking Heads); “Encontros e Despedidas” (Milton Nascimento); “White Album” (Beatles). Por quê? Não é só uma capa branca – o álbum tem fotos excelentes e um encarte bem elaborad;. “Led Zeppelin III” (Led Zeppelin); “Dangerous” (Michael Jackson). Este, um vinil já da era do CD. 42 A sorte de um amor tranqüilo Cazuza cantou o amor, o Rio, Deus, e nos fez pensar e voar É claro que vale a pena conferir o recente lançamento do Dvd do Barão Vermelho, com Cazuza no vocal, no memorável show de 1985, no Rock in Rio. O Rio, grande palco do samba e da Bossa Nova – crias suas – , foi, naquele ano, o grande anfitrião do mais influente ritmo musical do mundo, o rock. Além dos poderosos gringos, os roqueiros tupiniquins estavam à toda. E ninguém representava melhor o estilo, aqui no Brasil, que a banda carioca Barão Vermelho. E isso se devia, incontestavelmente, à hipnótica personalidade e talento do seu líder, com sua beleza, seu tesão e com o frescor inovador de suas letras. Este show do Rock in Rio é um marco na história de música brasileira. Além da música e do desbunde de nossa liberdade sexual tardia, havia o calor e de uma sociedade brasileira ávida pelo direito de ter eleições diretas para presidente. Quando o Barão Vermelho tocou “Pro dia nascer feliz”, Cazuza fecha a música com frases de otimismo sobre o futuro da nação – foi algo arrepiante. Quem não viu, pode conferir 43 agora.Vinte e dois anos se passaram de lá pra cá, e a marca daquilo parece indelével. Cazuza rendeu teses, livros e, como todos sabem, um filme. Às vezes penso que a cineasta Sandra Werneck, sem querer, prestou um desserviço à imagem de Cazuza. Muita gente gostou do filme – alguns muitos não –, que mostra a trajetória do cantor, do final de sua adolescência até a sua morte, com a doença. Dentre as pessoas que aplaudiram o filme, podemos destacar a própria Lucinha Araújo, sua mãe, a quem ele – como vemos em uma das cenas do filme – mandou “tomar no cu”. Sem moralismos: nada de mais um palavrão em um filme – ainda mais em se tratando de um filme baseado em biografia escrita pela mãe da pessoa retratada. Eu mesmo me lembro de já ter dito “nomes feios” à minha mãe. Discussão de valor à parte, pude observar um fenômeno: conheço pessoas que eram “fãs” e perderam a admiração pelo cantor-compositor-poeta após terem visto o filme. A produção, tão bem cuidada, a direção de fotografia, e a belíssima atuação do ator Daniel de Oliveira não deixam dúvidas de que é um bom produto cinematográfico. Entretanto, é natural que o público não familiarizado com a biografia de Cazuza tenha se espantado. Não é ainda considerado normal e apropriado – mesmo nos dias de hoje, e mesmo numa cidade cosmopolita – um jovem fazer tantas coisas consideradas “imorais” ou inadequadas ao mesmo tempo, como viver embriagado, usar drogas ilícitas em quantidades cavalais, arriscar a vida numa ponte, trocar dia por noite, transar com pessoas de “todos os sexos”, e xingar a mãe. É muita coisa pra cabeça do cristão 44 médio. E há a agravante capital: as pessoas normalmente dão tanto valor à vida dos artistas quanto à sua arte, quando não mais à primeira. O fato de “Caju” ter sido um dos maiores letristas da música brasileira de todos os tempos, não faz com que ele seja amado como um outro roqueiro de sua geração, Renato Russo. Também bissexual, também usuário de drogas, também temperamental e difícil, também vítima da Aids, Renato, ao expor menos sua vida privada, acabou tento melhor aceitação popular, facilmente comprovada em números. É claro que o fato de algumas letras de Renato Russo conterem uma sutil temática de “auto-ajuda” (sem querer ser pejorativo, por favor) conferiu a ele, muitas vezes, o status de “messias”. E quantos jovens não passaram a ler a Bíblia, inspirados em letras como a de “Monte Castelo”, “Quando o sol bater na janela do teu quarto” e “Se fiquei esperando meu amor passar”, todas do disco As Quatro Estações, de 1989? Bíblia, Camões, filosofias orientais... Algo desconcertantemente novo e desbravador, e inspirador de busca por literatura. A juventude brasileira, cristã e não-leitora, parecia clamar por aquilo, o que recebeu agradecida. Grande Renato Russo! Um dia após a morte de Cazuza, no show da Legião no Jóquei Clube do Rio, ele homenageia o “barão” cantando trechos de suas canções e o chamando de “poeta” – naquela época, não sei por que motivo, poeta era um adjetivo. Um elogio. Quase um título de nobreza. Não era uma palavra comumente usada para designar compositores e letristas – com a exceção dos veteranos, como Caetano, e antigos, como Vinícius. Neste mesmo dia, eu estava no Canecão, com minha perna quebrada, assistindo ao 45 show de Oswaldo Montenegro. Eu, na verdade, preferia estar no Jóquei, mas minhas condições físicas não permitiram. Oswaldo também homenageou Cazuza cantando e tocando, sozinho, “Bete Balanço” ao piano. Foi bem lindo aquilo. Cazuza e o Rio – Uma das abordagens poéticas e críticas sobre o Rio de Janeiro que mais me impressionaram na vida foi a letra de “Um trem para as estrelas”. O filme homônimo do Cacá Digues também me passou isso. Adoro o filme. Mas a canção é ainda melhor. A imagem de um Rio pluricultural, “uma cidade de cidades camufladas”, como na música “Rio 40 graus” de Fausto Fawcet, cantada por Fernanda Abreu. Tanto o filme como a canção “Um trem...” são ricos e tristes. A letra diz: “estranho o teu Cristo, Rio, que olha tão longe além, com os braços sempre abertos, mas sem proteger ninguém/ eu vou forrar as paredes do meu quarto de miséria com manchetes de jornal, pra ver que não é nada sério/ eu vou dar o meu desprezo a você que me ensinou que a tristeza é uma maneira da gente se salvar depois/ um trem pras estrelas/ depois dos navios negreiros, outras correntezas”. A crítica mordaz ao cristianismo capitalista, aborda a pobreza, o racismo histórico e outras mazelas das quais as metrópoles não puderam se desvencilhar. É o Rio ruim. O mais carioca dos poetas- 46 cantores de sua geração não poderia deixar de cantar a face cruel de um país, refletida no cotidiano de sua cidade. Cazuza fez canções com crítica social como poucos. O bom do Rio ele quase não precisava cantar: suas músicas e, de certa forma, sua vida, foram outdoors de bela carioquice, estampando a cidade para o Brasil. A carioquice boa, da malandragem charmosa, elegante, de bem com a vida. Da modernidade. Cazuza e o amor – O modo torto de viver o amor encontrado pelo poeta está presente em vários pontos de sua obra. É claro que suas canções de amor não são predominantemente “tortas”. Mas vou aqui destacar uma canção romântica revolucionária, e “torta”. Quando Caetano Veloso gravou em seu disco ao vivo Totalmente Demais a música “Todo amor que houver nesta vida”, registrada originalmente pelo Barão Vermelho, a indústria fonográfica e a crítica especializada começaram a ver Cazuza com novos olhos. A regravação de Caetano era um selo de qualidade. É claro que o mainstream tem seus “pauzinhos”. João Araújo, então presidente da Som Livre e pai de Cazuza, fora um dos responsáveis pela contratação de Caetano na época do “LP/movimento” Tropicália, quando era executivo da Phillips. Teria sido a gravação do cantor baiano uma retribuição? Bem. O fato é que, tráfico de influência cultural ou não, “Todo amor que houver nesta vida” é uma música e tanto. É recheada de imagens poéticas inesperadas: “eu quero a sorte de um amor tranqüilo...” (verso que remete a um desejo de um relacionamento emocionalmente estável), “...com sabor de fruta mordida/ nós na batida/ no 47 embalo da rede/ matando a sede na saliva” (aqui a mais pura sensualidade), “ser teu pão, tua comida, todo amor que houver nesta vida/ e algum trocado pra dar garantia” (uma novidade na abordagem poética: uma pessoa desejando amor e ao mesmo tempo dinheiro do ente amado, numa sinceridade quase desorientadora para os habituados a canções românticas convencionais. O verso “algum trocado pra dar garantia”, é claro, nos pegou de surpresa). Como ele consegui unir tão bem cinismo e sinceridade em poesia... Esta canção é uma das mais cultuadas de Cazuza. A bela expressão “veneno anti-monotonia”, cantada também nela, virou, muito mais tarde, título de um excelente Cd de Cássia Eller, no qual a cantora regravou músicas do autor de “Faz parte do meu show”. Cazuza e o ocaso – O último trabalho de Agenor Miranda de Araújo (nome de Cazuza) foi Burguesia, que é, juntamente com A Tempestade, “do” (eu e muitos preferem “da”) Legião Urbana, um dos mais angustiantes e fortes “discos de despedida” – se é que existe esta categoria musical – que já se gravou. No disco, Cazuza grita por socorro, sensibilizando e fazendo tremer o mais impávido e frio ouvinte. Se em A Tempestade Renato Russo entrega seu corpo e sua alma, no álbum duplo Burguesia, o que se vê é uma pessoa lutando com todas as suas forças contra a morte. Nesse aspecto do emocionante disco, que não é o melhor de Cazuza, destaca-se a canção “Cobaias de Deus”: “se você quer saber como eu me sinto, vá a um laboratório, ou um labirinto/ e seja atropelado por esse trem da morte (...) me sinto uma cobaia/ um rato 48 enorme/ nas mãos de um Deus mulher/ um deus de saia/ cagando e andando vou ver o E.T. (...) traga uma corda irmão/ irmão acorda/ nós as cobaias vivemos muito sós/ por isso Deus tem pena e nos põe na cadeia/ e nos faz voar dentro de uma cadeia/ nós, as cobaias de Deus/ nos somos as cobaias de Deus”. É. Cazuza voou alto – ele quis assim. E, para isso, teve que também fazer voar. Certo dia, quando eu tinha 17 anos, na casa de um amigo roqueiro, eu o perguntei se ele gostava de músicas românticas, pois eu gostava, e nós conversávamos basicamente sobre rock, sendo a palavra “romântico” algo que soava brega naquela época. Era quase uma heresia se declarar amante de canções de amor. Desta forma, a minha pergunta foi tímida – eu, um fã enrustido de Roberto Carlos, sendo vocalista de uma banda rock, onde ele, o meu amigo, era o guitarrista. Então ele falou que gostava. Idiotamente eu estranhei, pois eu o via como um fã de rock, além de um guitarrista de rock. Então ele tirou da sua estante o primeiro LP solo do Cazuza e disse “– Eu gosto de música romântica assim”. Aquele “assim” fez eu entender melhor a música. Cazuza foi romântico até os ossos, e o rótulo “roqueiro” era mesmo pouco pra ele. Sua forma de descrever o amor, influenciou profundamente toda a minha geração. De burguês mimado a corajoso poeta romântico e social, é bem provável que ele tenha morrido sem ter tido um “amor tranqüilo”. Mas, cá entre nós: que poeta vai querer, de 49 fato, algo assim? Cazuza foi um anjo torto sobre a Terra. * As 15 canções mais urgentes, viajantes e “voadoras” de Cazuza (se não conhece algumas, procure): “Só as mães são felizes”; “Um trem pras estrelas”; “O assassinato da flor”; “Cobaias de Deus”; “Blues da piedade”; “Todo amor que houver nesta vida”; “Bruma”; “Filho único”; “Boas novas”; “A orelha de Eurídice”; “Quarta-feira”; “Azul e Amarelo”; “Como já dizia Djavan”; “Obrigado”; e “Ideologia”, é claro. 50 Amantes do futuro Da série “Canções incompreendidas”: Chico Buarque canta os amores impossíveis. "Não se afobe, não, que nada é pra já / O amor não tem pressa, ele pode esperar em silêncio / Num fundo de armário; na posta-restante / Milênios, milênios, no ar / E quem sabe, então, o Rio será / Alguma cidade submersa / Os escafandristas virão explorar sua casa / Seu quarto, suas coisas, sua alma, desvãos / Sábios em vão tentarão decifrar / O eco de antigas palavras / Fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos / Vestígios de estranha civilização / Não se afobe, não, que nada é pra já / Amores serão sempre amáveis / Futuros amantes, quiçá se amarão sem saber / Com o amor que um dia deixei pra você. Futuros Amantes (Chico Buarque – “Paratodos”) A primeira impressão que normalmente se tem desta linda canção de Chico Buarque, é que se trata uma canção de amor otimista em relação a amores difíceis. O primeiro verso é o mais popular: "Não se afobe, não, que nada é pra já...". Este verso, isoladamente, sugere a 51 possibilidade de um encontro futuro entre duas pessoas apaixonadas. Estaria então o cantador pedindo, em tom esperançoso, para que haja paciência. Mas logo depois vê-se que o que está sendo relatado na canção não é um caso de amor resolvido, ou que se possa resolver. Dizerse que um amor pode esperar em um fundo de armário, materializado em foto, carta ou poema, não é propriamente pessimista. O pessimismo esmagador vem, sim, quando se fala do tal futuro onde poderá ser finalmente encontrado este amor guardado: para nossa surpresa, um futuro geológico. Um futuro onde o Rio de Janeiro poderá estar submerso em águas. Um lugar visitado por exploradores submarinos, que poderão, casualmente, encontrar os registros do referido amor e transformá-los em objetos de estudo arqueológico de uma civilização extinta: a "civilização carioca". Mas fica a expectativa, metafísica, de que ainda assim o amor sobreviva e seja usado por amantes do futuro – como se o amor fosse algum tipo de ferramenta (material, energética ou cultural). A canção é, portanto, a última canção que deve ser usada por amantes que queiram, um dia, realizarem-se em seu amor. É de fazer lágrimas irromperem. Mesmo. Lembro com alegria de como amantes reais que um dia conheci "viajavam" ao fazer suas análises sobre livros, poemas, filmes, canções. A arte ganhava, entre eles dois, uma ternura que a acrescentava poder. Este mesmo poder que nutria a arte, lhes voltava também em forma de energia. Eles alimentavam a arte e a arte os alimentava. 52 Seu primeiro encontro relevante foi no colégio, durante o intervalo entre aulas. Eles conversavam sobre literatura – em especial o romance "A Insustentável Leveza do Ser" de Milan Kundera. Ali nascia um relacionamento bastante profundo. Tão profundo que eles chorariam se pensassem na hipótese de um dia tudo o que viveram – que foi pouco, mas enorme para amantes – tivesse de ficar confinado no fundo de uma gaveta, ou em outros ambientes de difícil exploração: como à margem de casamentos bem sucedidos com outras pessoas. Certo dia, quando seus pés tocavam as areias à beiramar, a moça pensou: "isto parece um sonho bom. Sintome mulher neste momento. Estou passeando ao lado do primeiro homem que amei. E esta cidade é uma moldura para nosso amor". Isto foi, mais provavelmente, em l993. Era o ano em que Chico lançava o seu disco "Paratodos". Uma das faixas do disco era justamente "Futuros Amantes" e a moça ainda não conhecia a canção, pois apenas a faixa-título tocava no rádio. Ele também não conhecia. Mas um fato é certo: se pudessem ouvir a música enquanto andavam descalços na praia – como num vídeo-clip em tempo real – eles iriam chorar. Depois de Paratodos e da canção Futuros Amantes, Chico Buarque continuou a compor obras primas de poesia cantada, tendo como “fundo-paisagem” o nosso querido Rio. É claro que o espantoso volume de grandes canções compostas por ele nos anos 70, e a penetração 53 na mídia que elas tiveram, acabam por ofuscar sua obra mais recente, o que é uma pena. Seu último trabalho – “Carioca” – é mais um exemplo de um cd com grandes canções cariocas, universais e de amor que, apesar de bem recebido pela crítica e pelo seu público cativo, deve mesmo passar depercebido pelo grande público. Lamento demais por isso, pois penso que música de elite não pode ficar restrita à “elite”. 54 Um Navio Chamado Djavan Quanto querer cabe em nossos corações? É uma coisa muito brega – o clichê dos clichês – colocar nomes de artistas em filhos. Sempre achei. E acabei colocando em minha filha o nome Juliette, por causa da atriz Juliette Binoche, a quem adorei desde que a vi pela primeira vez. Cafona por opção calculada. O cantor Lenine, se chama Lenine por conta do pai comunista, em homenagem ao grande líder da revolução russa. Melhor ter o nome lembrado por referência a Lênin do que por Stalin. O caso de Djavan é bem especial. Eu acho. Sua mãe sonhara com um navio chamado Djavan. E ponto. Ficou. Eu tinha doze ou treze anos e cantava no banheiro a música “Meu bem querer”. E chorava, sem saber muito bem por que motivo. Deve ser porque sou um tremendo chorão. Mas posso dizer que aquilo era algo completamente novo pra mim. E parece que o novo me emociona. Sempre foi assim. Esta canção foi gravada no LP Luz. O vinil está agora, exatamente agora, nas minhas mãos. É um dos discos preferidos da minha, não muito pequena, coleção de vinis. É o primeiro disco de Djavan a receber uma superprodução. A gravadora CBS o levou para Los Angeles, onde o disco foi gravado e 55 mixado. Há aqui, pra quem não sabe, a “divina” participação do “deus” Stevie Wonder, que dá uma “canja” na faixa “Samurai” (“ah, quanto querer cabe em meu coração...”), fazendo um solo de gaita – talvez o mais lindo de sua carreira. Estou vendo a foto dele com Stevie e as várias fotos do encarte. É muito engraçado: Djavan não envelheceu. O disco é de 1982. Lobão (meu amigo) disse outro dia que Lulu Santos é o “penúltimo romântico”. Cada um é romântico à sua maneira. É claro que estou tratando de romantismo de fato. Romantismo sem-vergonha, de mercado, que nem o desses caipiras que tem por aí, isso não conta. Eu não conto. Me perdoem. Não é preconceito. É, sim, um respeito ao verdadeiro “conceito” de romantismo. Eu não gosto. Acho fake demais. Talvez algo pessoal. Romantismo pra mim nunca foi isso. Em nossa música, posso dizer que Renato Russo foi um exemplo de grande romântico. Um romântico de verdade. Mas, dentre os cantores-poetas vivos, o destaque é mesmo o Djavan. Sua música, sua obra inteira transpira romantismo. O cara é romântico até a medula. Fuçando nas coisas que ele cantou é possível descobrir pérolas. Outro dia conversando com um amigo flamenguista, o Elano Ribeiro, lembrei da música “Boa noite” – originalmente gravada no excelente álbum Coisa de acender, que traz ainda “Se” e “Linha do Equador”. Mas foi em seu álbum duplo Ao vivo que tive maior contato auditivo com a canção. E o verso “ainda bem que eu sou flamengo” foi o que mais chamou minha atenção quando a ouvi pela primeira vez. 56 O tratamento funk dado a ela, disfarça seu poderoso lirismo. Até o flamengo está ali de forma romântica. Afinal, ainda mais hoje, ser flamengo é de um romantismo considerável. Como é uma canção menos conhecida, eu recomendo aos que não possuem a gravação ou não deram a devida atenção, ou não a conhecem. Não gaste dinheiro se não tiver: vá lá na rede e baixe. Djavan, “Boa noite”. Versos fortes – a canção em questão é pontuada de versos poderosos como “nada que brilha cega mais que o seu nome”, ou “por toda a selva do meu ser, nada ficou intacto”, “não existe amor sem medo”, “vida foi feita pra estar em dia com a fome”, e o derradeiro “minha vida por inteiro lhe dou”. É um mosaico de palavras belas. Quem estiver a fim de alguma garota, pode usar a letra como cantada. Se a moça for romântica, a chance de colar é grande. Mas tem que estar a fim de verdade – não vá usar esses poderes para o mal. Djavan é poderoso. E oferece uma viagem como poucos na nossa grande música podem oferecer. Isso por que ele é muito grande. É isso. Amar e viajar no navio Djavan. Engraçado. Eu não conheço ninguém chamado Djavan. Isso é surpreendente. Como os pais não pensaram nisso... Alguém tem que tomar a iniciativa. Porra, conheci dois caras chamados Elton John... 57 Recapitulando os baianos DVD Outros (doces) Bárbaros foi além do saudosismo Certo dia, faz algumas décadas, Jorge Mautner disse a Caetano Veloso: “Jesus Cristo foi o verdadeiro bárbaro, pois com sua paz destruiu o império romano, como um doce bárbaro”. Caetano gostou da explanação e, inspirado nas palavras de Mautner, batizou o grupo reunido em 1976, com Gilberto Gil, Gal Costa, e Maria Bethânia – que foi quem havia feito o convite aos amigos – de Doces Bárbaros. Na ocasião, boa parte da imprensa comparava a penetração de artistas baianos na capital carioca às invasões bárbaras ao império romano do ocidente. É por isso que há na canção “Os mais doces bárbaros”, composta por Caetano, o verso “doce bárbaro Jesus”. O motivo da presença de tal verso na letra só chegou ao conhecimento dos companheiros baianos 30 anos depois da sacada de Caetano e Mautner. Com esta revelação do compositor, foi unânime o coro dos amigos: “eu não sabia disso”, ao ouvirem Caetano a explicar como o nome Jesus foi parar naquela letra. E, como um mentor, 58 que todos sabemos que, de fato, é, ele acrescentou, dizendo a eles: “as coisas são profundas”. Haja licença poética. É claro que não foi Jesus quem destruiu o império romano. Assim como o termo “invasões bárbaras”, para se referir à entrada gradual dos povos germânicos nos domínios romanos já começa a ser substituída pela expressão “migrações germânicas”. História universal à parte, é de se lamentar que o grande DVD Outros (doces) Bárbaros – na verdade um filme rodado em dezembro de 2002 com direção do cineasta Andrucha Waddington – tenha tido tão pequena repercussão. Ali está um dos mais belos reencontros já registrados na musicografia brasileira. O filme mescla ensaios, bastidores, entrevistas e apresentações ao vivo realizadas no Parque do Ibirapuera e na Praia de Copacabana. Apesar do clima saudosista, os baianos (bárbaros) estavam durante as gravações, sem dúvida, vivendo um momento especialíssimo de suas carreiras naquele começo de século 21. Difícil destacar um momento especial de um filme tão grandioso. Gil encantou a todos com sua composição inédita “Outros bárbaros”, que fica mesmo sendo a canção central do projeto, pelo fato de ser ela uma síntese da celebração do encontro de 1976, época em que os quatro jovens artistas gravaram o disco em que fingiram ser um novo grupo – mais ou menos como fizeram os Tribalistas recentemente. “Outros bárbaros” é um dos mais belos sambas da 59 carreira de Gil e é carregada de referências importantes para o quarteto. Uma pena não ter conseguido alcançar popularidade – nesses tempos as grandes canções não têm mesmo muita vez, ainda mais em se tratando de um “samba-marcha”. Estão ainda no DVD “Fé cega, faca amolada”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos; “Um índio” e “Eu te amo”, de Caetano; e a maravilhosa, porém pouco conhecida, “O seu amor”, de Gil. Hoje, em 2008, o DVD vale, com certeza, muito mais do que custa, pois sei que se pode encontrá-lo em bancas de promoção de grandes lojas a preço de banana. Se ele passou despercebido por você, e se, como eu, gosta dos baianos, vá logo fazer essa reparação. Mas, por favor, não vá comprar, por engano, um dos “Novos Baianos” – que, claro, também é algo muito bom. 60 Os bons morrem jovens? Da série “Entrevistas mediúnicas”, Renato Russo fala sobre os dias passados, presentes e futuros Na vizinhança de Cobain, Lennon, Morrison, Presley e Cia., Renato Russo, um dos ícones máximos do rock brasileiro – chegando a ser comparado com Raul Seixas –, o líder do (a) Legião Urbana me falou, numa pequena entrevista exclusiva via MSN – e não me perguntem como consegui isso –, sobre como tem visto o mundo, neste, ainda, alvorecer do terceiro milênio. Ele, que não deu muitas entrevistas na vida, nos brinda agora com observações sobre comportamento, geopolítica, Barak Obama e, claro, música. Luciano – Começando por um assunto difícil, que foi tema de diversas canções suas, quero citar um verso de um dos heterônimos de Fernando Pessoa, o Ricardo Reis, que escreveu: “morreste jovem, como os deuses 61 querem quando amam”. Como você cantou em Love in The Afternoon, os bons se vão mesmo antes? Renato – Todos os assuntos são difíceis. Os homens, na verdade, respondem coisas com mais facilidade que os anjos. Eu, que não sou anjo, não sei te responder se Deus chama primeiro os bons. Eu pensava isso quando escrevi esta canção. Eu relembrava algumas perdas importantes e também estava comovido com a morte recente de alguns amigos, como o músico Tavinho Fialho. E pouco tempo depois que acabei de fazer a música, teve a morte de Kurt Cobain, que eu acho que foi um cara bastante puro e sincero. Então parece que aquilo vinha confirmar a idéia de que os bons morrem jovens. A vida é uma coisa muito dura e pesada, sempre foi. E a morte? Passamos muito tempo da vida tentando explicá-la em vão. Há grandes homens, homens bons, que conseguem uma boa longevidade, eu sei. Mas há uma coisa com as almas sensíveis e boas: elas não se adaptam tão facilmente à vida nessa selva artificial que os homens criaram. Não conseguem se adaptar bem às desgraças deste mundo aí. Eu talvez me enquadre também nisso. Mas não sei se o adjetivo “bom” é o mais adequado pra pessoas como eu. De qualquer forma, não sei responder a sua pergunta. L. – Um presidente negro acaba de se mudar para a Casa Branca. Em que você acha que isso vai repercutir como ganho real para as próximas gerações? R. – O fato de Obama ser negro não poderá fazer dele um grande líder, embora isso aumente sua 62 responsabilidade. Falarmos hoje em raça negra é também um erro. Raça humana é o que existe. No entanto, o orgulho negro está presente na figura de Barak Obama. Orgulho pode ser uma palavra feia em diversos sentidos. Mas é algo inerente ao ser humano. Admiro tudo o que os negros fizeram até hoje. Construíram com seus braços as cidades ocidentais por onde permeou toda a cultura que nos criou. Foram geradores da riqueza que vemos. Eles fizeram na verdade quase tudo o que temos na estrutura física da nossa civilização com a força de seus corpos. E com a força de suas mentes criaram coisas sem as quais eu, Renato Russo, músico, não existiria: tais como jazz, blues e rock-and-roll. Barak Obama nem precisa fazer um grande governo, assim como o governo de Nelson Mandela (na África do Sul) não foi impecável. O que importa é isso aí: um homem de pele negra no poder, pra levantar a auto-estima das pessoas com essa cor de pele, que tanto sofrem preconceitos e discriminação em todo o planeta. E o cara acaba sendo um tipo de representante de todas as etnias discriminadas. E não só das etnias, mas de todos os rejeitados. Não que ele vá ser um salvador. Contudo é, com certeza, um grande passo. Teremos, bem provavelmente, um dia um presidente americano gay. E nunca poderá importar se os políticos do século XXI serão negros, se haverá gays ou mulheres presidindo os Estados Unidos – e eu tenho certeza que isso vai acontecer mais cedo ou mais tarde. Vale saber se a pessoa será honesta, inteligente, equilibrada e bondosa, pois isso é o que vai importar. Eu jamais poderia ser um presidente, pois não sou uma 63 pessoa tipicamente equilibrada, inteligente e boa. Estou muito feliz, sim, com a posse do Obama. L. – E quanto à política no Brasil? R. – O Brasil atual, com seus políticos, me deixa confuso.Tenho mesmo que falar sobre isso? Sabe como é? Ficam esperando que eu diga coisas relevantes. Sempre ficaram esperando por isso: que eu viesse a dizer algo que pudesse construir – veja que coisa – a opinião de alguém ou algo assim. É obvio que eu e muitos outros da minha geração tínhamos em determinado momento a pretensão de mudar o país e mudar mundo. Mas qualquer mudança a nível global, nacional, na nossa rua, na nossa casa, deve passar antes por uma mudança dentro de nós mesmos. E é impossível, no curto tempo de vida que temos na Terra, podermos observar qualquer mudança mais significativa. A alma humana é muito dura – mais dura que o corpo.Toda mudança em grande escala é gradual e demorada. O que a juventude sempre teve é pressa de ver tais mudanças. Isso frustrou os jovens, que esperavam ver a demonstração do seu poder de forma mais visível, com resultados mais visíveis e imediatos, sabe? Mas, ao contrário, quando ocorre uma grande mudança, uma mudança mais rápida, logo depois se presencia um retrocesso. É assim mesmo. Contudo é importante que os jovens não percam essa vontade de mudança coletiva. Pensar só no individual é algo desumano. Nas minhas letras eu sempre transitei entre as pretensões individuais e coletivas. Sempre fui naturalmente egoísta na minha escrita, assim como 64 sempre tentei dar voz à juventude sem voz. Em várias letras minhas há eu e mais um monte de gente sendo representada. E muitos artistas fizeram isso, não apenas eu, obviamente. O problema esteve no exagero com que eu fui abordado, principalmente depois do disco As Quatro Estações, quando teve gente me chamando de messias. Um horror. Eu nunca quis essa responsabilidade. Minha vaidade às vezes até me fez pensar em alguns momentos que eu pudesse ser uma espécie de novo Bob Dylan, ou de Bob Dylan brasileiro. Pôxa! Nem o Bob Dylan agüentou essa barra de ser “porta-voz” de uma geração. Ele repudiou esse posto que conferiram equivocadamente a ele. Gosto de conversar sobre política. Mas não gosto tanto de me posicionar publicamente sobre o assunto, pois ainda estou formando minha opinião a respeito de vários temas. Acredito que os jovens têm a necessidade de errar. E quando falo “jovens” eu não estou dizendo só adolescentes. Estou me referindo a toda a população mais jovem, entende? Às pessoas ativas e em formação intelectual. L. – Mas você tem consciência de que foi um formador de opinião. R. – Cara, eu tive a sorte de poder fazer contratos com uma boa gravadora que me permitiu me expressar através de minha música. Então eu usei essa música como qualquer artista usa sua arte pra poder dialogar com o mundo. A resposta que se tem é proporcional ao tamanho da exposição que as músicas tiveram nas rádios e nas lojas. Minha arte foi feita pra vender. E, 65 com isso, me dar a possibilidade de dialogar com o maior número possível de pessoas. Minha música não me deixou rico. Bem longe disso. Consegui status. E nunca usei meu status pra posar de santo. É um trabalho artístico o que fiz, um bem cultural, só. Tão importante quanto o trabalho de um pedreiro. Quando vejo uma letra minha num livro didático escolar eu fico até um pouco preocupado. Mais preocupado que envaidecido. Pois as letras nem sempre são usadas no contexto que eu gostaria. Que País é Este é uma recordista nisso, não é? E nem é uma letra tão boa. Uma letra punk comum. Foi uma letra de revolta, natural. Não é tão aplicável e verdadeira, da forma como muitos pensam que ela seja. Afinal, há quem lute para respeitar a constituição deste país. Há homens públicos honestos. L. – Você certa vez declarou que, do repertório da Legião, não gosta de Depois do Começo. Porque você disse que ela é pretensiosa e babaca? Sabia que muitos fãs adoram esta música? R. – Depois do Começo é uma canção feita de códigos indecifráveis. Alguns são indecifráveis até mesmo para mim, eu confesso. Moramos – veja eu falando como se ainda morasse aí – num mundo ocidental cristão, num continente cristão, num país cristão com famílias cristãs. Minha família, por exemplo, é católica, bastante religiosa. Toda a religião é feita de símbolos. Alguns deles são lindos, outros menos. É tolice lembrarmos apenas das mazelas proporcionadas pela religião. Há outras instituições bem mais claramente corrompidas do que a igreja. Com certeza, alguns integrantes dos Titãs 66 também devam ficar incomodados com a música Igreja, que está no álbum Cabeça Dinossauro, que tem versos como “eu não gosto de Cristo”. É um posicionamento punk que eu até acho válido. Só que acaba trazendo desconforto às pessoas erradas, que não são o alvo da crítica. No caso da música do Legião, me traz desconforto ouvir minha voz cantando um verso como “Deus, Deus, somos todos ateus...”. É claro que minha família não gostou. Provavelmente o jovem que curtiu Monte Castelo também não gostou da letra de Depois do Começo, embora eu tenha explicitado que se tratavam de códigos fechados, e tal. Nem tudo ali é um convite à loucura de se brincar com a inteligência das pessoas que ficam tentando decifrar a letra, o que não é muito legal. Há coisas positivas em forma de mensagem implícita. Apesar disso, no geral, é uma canção negativa, que nada acrescentou à minha obra. Agora, quem gostou, que continue apreciando. Ela tem uma levada boa, eu sei. E no tocante a eu ser ou não ateu, como a letra pode sugerir no tal verso, eu também não tenho como te responder isso. Toda a construção das línguas e da cultura ocidental não conseguiu clareza numa definição do Deus cristão. Para eu te dizer se sou ateu ou não, nós teríamos que entrar numa longa discussão sobre o que se entende por Deus, como fez certa vez Russel com um padre. Aqui onde estou não falamos sobre Deus. Não pensamos nisso. Pensar ou não em Deus não faz muita diferença num lugar como esse aqui. Mas, no geral, não pensamos. L. – Quanto à sua canção preferida, você certa vez declarou ser Giz. 67 R. – Ah, isso eu não penso mais. Não tenho mais canção preferida. Disse aquilo em um determinado momento em que aquela estética me agradou mais que outras. Fiquei sabendo que as preferidas do meu filho são Vento no Litoral e Perfeição. Eu poderia ficar com estas então, pois são canções das quais eu me orgulho mesmo de ter feito em parceria com meus amigos, embora eu saiba que ele, Giuliano, vai ter outras preferências com o tempo. Mas Faroeste Caboclo é bastante especial, é rica e vibrante, e só foi possível graças àquela energia juvenil da qual eu estava impregnado. Quando ouvi minha mãe outro dia falar num programa de televisão sobre os “cavalos marinhos” da letra de Vento no Litoral, explicando à apresentadora que aquilo era uma alusão à minha homossexualidade, pois o cavalo marinho tem a característica de o macho dar a cria no lugar da fêmea, eu pensei: minha mãe me admirou e me respeitou exatamente como eu fui. É esse tipo de coisa que filhos e pais precisam ter. Reconheço, entretanto, que a barra é pesada, e colocar comida na mesa já é tão difícil... Não se pode esperar que haja nas famílias tempo para se refletir sobre a homofobia. Não dá pra conversar sobre isso numa mesa de jantar com toda a ponderação possível. Todos trabalham, estudam... Os horários são diferentes... Uma luta muito difícil pra todos. As famílias não dispõem de tanto tempo pra refletir sobre assuntos complexos. Os seres humanos vão aprendendo, sofrivelmente, com seus erros, dando cabeçadas. Não tem outro jeito. L. – Em suas entrevistas você sempre falou bem pouco de sua vida pessoal, bem pouco sobre sexo e sempre 68 usou muitas referências a outros artistas. Chegaram a dizer que você falava em terceira pessoa. R. – Minha vida íntima não é mais interessante que a sua, nem que a de ninguém. Minha queixa sempre era o fato de perguntarem pouco sobre as letras e sobre os discos em si. Sexo? Bem... Sexo é algo do qual também pouco falamos por aqui. Aqui simplesmente fazemos. Estou desacostumado mesmo a falar de sexo e não me sentiria preparado pra te dizer algo. Fico bastante triste em ver as pessoas que não são felizes com o sexo – e isso que dizer quase todo mundo. Há os que não conseguem serem felizes com o sexo. Há os que não fazem sexo. Aqui este problema não existe, ou existe em menor grau. Acho que pelo motivo de que as coisas neste lugar sejam tratadas com mais simplicidade. No entanto eu não gostaria que ninguém tivesse pressa em vir pra cá, a fim de resolver este problema do sexo. Há outros problemas aqui. Tem que haver problema, pois o bom de viver é estarmos sempre tentando resolver um problema. Sei que o sexo é o grande tema da humanidade. E não sei mais sobre o assunto agora do que sabia quando esta entre vocês. Não sei o que eu te responderia se me perguntasse se sou gay, por exemplo. E sobre eu fazer muitas citações: os artistas que costumeiramente eu citava foram minha referência cultural. É isso que todos fazemos, não? Falamos da nossa cultura. Uma coisa, porém eu corrigiria: falaria um pouco mais dos artistas brasileiros que me influenciaram. No entanto é inegável que rock internacional é mais importante pra mim do que o samba e a tradição musical brasileira. Digo pra minha 69 formação, e até mesmo pro meu gosto. Apenas neste sentido, de ser algo que me diga mais. Mas gosto de muitos sambas também. A música do Legião tem alguns elementos de samba. L. – Você é otimista com o Brasil? R. – Veja bem: no fundo não existe Brasil. Isso de nação e país são invenções. O que existem são humanos com territórios mal cercados. As culturas, no entanto, são muito parecidas. Os problemas também. Quanto aos habitantes deste território sob este Estado brasileiro, vejo pra essa gente um futuro otimista, sim. Não um céu, pois é algo que não existe. Nem tampouco um inferno, que é outra lenda. O Brasil é amador. Isso pode até vir a ser uma vantagem sobre alguns Estados velhos. O problema é que o hemisfério sul todo é uma vítima histórica do Mercantilismo e do Capitalismo. Sair dessa condição de vítima não é fácil. A alegria do povo brasileiro – que não é felicidade – mascara um estado de opressão a que o povo é submetido. Mas com as armas de que este povo dispõe... A melhor arma acaba sendo mesmo a paciência. Não a paciência de uma vaca num pasto. Paciência aliada à honestidade e, sobretudo, à criatividade, pode ser um grande instrumento. No longínquo dia em que não houver mais fronteiras nacionais, os homens e mulheres terão resolvido metade dos seus problemas. Todos não dá. Nem aqui temos tudo resolvido. Se aqui estivesse tudo resolvido já teríamos dado um jeito de resolver os problemas daí também. A morte resolve todos os problemas. Se não existe morte, é sinal que sempre existirá problema. 70 Embora eu não saiba se exista ou não vida depois da morte. Eu não posso afirmar com certeza se este lugar onde estou existe ou se não passa de um programa sofisticado de computador. L. – Quanto tempo acha que levaremos pra nos tornarmos uma nação próspera e igualitária? R. – Não dá pra saber isso. Mas, com certeza, ainda nesse terceiro milênio. Você não deverá presenciar. Prepare sua filha. E a peça para que prepare o filho dela. Tudo vai depender dessa preparação contínua. Preparar é tão bom quanto ver a coisa pronta. Aliás... A “coisa” nunca está pronta. A preparação para a construção de um mundo melhor já torna o mundo melhor, embora haja dor nesse processo que também deve ser visto como prazeroso. L. – Que tipo de música você tem ouvido? Tem escrito alguma? R. – A música daqui é meio chata. Então ouço mais música da Terra. Há muita gente nova boa. Acho que vocês são meio intolerantes com os novos. Quando eu estava aí eu também valorizava mais os antigos. É natural. Não vou citar ninguém pra não ser injusto com outros. Por favor, ouçam mais as coisas novas. Não é pra adorar e colocar pôster na parede. Apenas ouçam com alegria. L. – Você já pode conversar com algum músico importante por aí, como o Lennon? 71 R. – Sim, sim. John faz uns pães deliciosos. Que cheirinho bom tem a casa dele... Um quintalzinho com uma horta orgânica. É um homem feliz. Curiosamente, os que eram mais inquietos quando habitantes da Terra, chegando aqui acabam tornando-se os mais tranqüilos. Aqueles que eram mais paradões, não sei porque, chegando aqui se estressam. L. – Quem mais tem visto? R. – Muita gente boa. E aguardando outros, claro. L. – Como, por exemplo, Dylan? R. – Nem me diga, cara. Quando eu vi o jornalista e escritor Eduardo Bueno falando que morou uns tempos na casa do Dylan eu senti uma ponta de inveja. Bob Dylan só não vai ser recebido com festa, porque o pessoal por aqui não é disso. L. – Obrigado, Renato. R. – Foi um prazer. 72 Da série “Grandes cantores incompreendidos pela crítica”. Fábio Júnior namorava a coroa? Então eu me perguntava naquele momento da minha vida quando eu não passava de um adolescente imberbe e confuso – e apesar da barba as coisas hoje não mudaram tanto: se Fábio Júnior canta melhor que Roberto Carlos; toca melhor; é mais bonito; porque motivo então não é ele o “rei”? E não parava por aí. Fábio Jr. demonstrou ainda ser um ótimo ator – seu desempenho dramático no filme “Bye, bye, Brasil” de Cacá Diegues e, posteriormente, nas novelas, onde trabalhou muito bem – sobretudo naquelas em que fez papéis cômicos – tiram a possibilidade de considerarmos Roberto um ator, como pode este ter pretendido ser durante a Jovem Guarda com os 3 filminhos que protagonizou. Eu até que gosto bastante daqueles filmes; muito mais por nostalgia que por alguma qualidade artística. Para a época, foram bem produzidos: e só. Daí eu questionava a posse da coroa. E olha que eu ouvira Roberto Carlos durante toda a minha infância. E 73 amava Roberto. E cantava várias músicas suas. Só que a chegada de Fábio Jr. no grande mercado foi, pra mim, e pra muitos brasileiros, um estrondo. Duas canções foram de profundo impacto nacional naquele fim dos anos de 1970: “Vinte e poucos anos” e “Pai”. “Vinte e poucos anos” fazia refletir, com a sinceridade e coerência de um jovem compositor que cantava “...quero saber bem mais que os meus vinte e poucos anos”. “Pai” – tema da novela Pai Herói – fazia chorar. Quem tinha pai chorava. Quem tinha pai morto chorava. Quem era filho de pais separados – algo já em voga na transição dos 70 para os 80 – chorava. E até filhos de mãe solteira, como no meu caso, choravam. Ali estava uma das mais tocantes músicas da história do cancioneiro popular brasileiro: “...pai/ você foi meu herói, meu bandido/ hoje é mais, muito mais que um amigo/ nem você nem ninguém tá sozinho/ você faz parte desse caminho/ que hoje eu sigo em paz”. Emoção à flor da pele dos mortais. E também os recursos vocais usados por Fábio na canção “Vinte e poucos anos” fariam – e devem ter feito – Roberto tremer na base. Aquele falsete no final das frases Roberto não sabia fazer. E aquilo era lindo. Os anos passavam com calma e Fábio expunha obrasprimas em série. Seu repertório trouxe a sensualidade “rasgada” de uma canção como “Enrosca”. Melodias rebuscadas e romantismo não óbvio em canções como “Senta aqui” e “O que é que há”. “Seu melhor amigo”, anterior a essas, já anunciava o que ele faria com o modelo “canção romântica”. 74 Olha. Se eu não conhecesse um pouco o editor desta revista, talvez eu não tivesse coragem de enviar-lhe um texto sobre Fábio Júnior, com a proposta de uma foto sua estampando a matéria. E pior: falando bem do cantor. Este é um caso clássico de sacrilégio, de “heresia estético-jornalistica”. Quase que um pecado capital. Não é comum na imprensa dominante falar-se bem de Fábio Júnior. E “ai” de quem fizer isso. Mas a crítica musical burguesa fez muitas outras vítimas: de Benito di Paula a Kid Abelha. Nem Lulu Santos costuma sair incólume. E sabemos que há artistas por aí gozando de pleno prestígio no meio jornalístico musical, mas que não são capazes de encher um Cd com uma coletânea de 14 sucessos. Eu não gostaria de citar nomes. Mas, quantas músicas se conhece de Ed Motta, por exemplo? Sou um fã de Ed Motta, preciso que saibam. E ainda mais sou fã de Roberto, que é o oposto extremo deste exemplo, por favor. E ele pode ficar, por mim, à vontade com a sua coroa, pois isso não vai prejudicar em nada a música popular brasileira. Embora saibamos da bobagem que é esse papo de “rei”. Quem ainda não se tocou, pelo menos desconfia que isso é uma bobagem. Antigamente o “reinado”, ocupado hoje por Roberto, chegou a ser disputado com Ronnie Von, que foi logo rebaixado a príncipe. Ronnie Von tem gravações de grande qualidade, saibam. Monarquia à parte, é bem verdade que a carreira de Fabio Jr. tenha descambado para algo, digamos, um tanto informe e, até mesmo um tanto vazia nos últimos 15 anos. Ma sua voz continua excelente e eu espero por sua redenção e dou toda a força. Muito embora ele tenha 75 um público que nunca o abandonou. E peço a vocês, ouvintes mais refinados: ouçam o Fábio Júnior, quando puderem, com mais atenção, e com o coração aberto, e... respeito às suas grandes canções – e não são poucas as que se enquadram na categoria de grandes canções. E considerem que o próprio Robertão já deixou de fazer coisa boa há uns bons vinte e poucos anos. 76 O Fantasma de John Lennon Ou Yoko Ono, a Bruxa Não é lançamento, não – até porque eu não fico preso a lançamentos nessa coluna (meu editor me poupou dessa). Mas eu recomendo, pra quem ainda não viu, o dvd “Lennon Legend – The Very Best of John Lennon”. É uma compilação de clips montada e produzida em 2003 (portanto recentemente), a partir de filmagens “oficiais” do cantor (como as extraídas do filme “Imagine”, e, outras, dos arquivos da EMI, inéditas) e de imagens do arquivo pessoal da viúva Yoko Ono e de colaboradores. Não pense em ver videoclips como os atuais. O que se vê não é um exercício de estilo, e sim a alternativa de registrar digitalmente gravações extremamente simples e belas do casal Lennon, com as canções remasterizadas. São imagens de um dos mais influentes casais do mundo pop, em meio a sua arte, seu cotidiano, sua vontade de aparecer – claro – e a bela música que os embalava. É reflexão para os olhos e deleite para os ouvidos. Quem já é fã e não conhece esta coletânea, vai ter nela pequenas, sutis e gratas novidades. 77 Minha esposa não agüentou assistir tudo, pois sempre chora muito quando vê Lennon. Não consegue admirar a arte dele sem pensar em sua morte trágica e precoce. Ela, como a maioria das pessoas que conheço, não gosta da Yoko. Acha que ela é uma bruxa que arruinou a vida do pobre e inocente John. Eu penso diferente. Sempre admirei a face feminista dele – e nisso seu respeito e “devoção” a Yoko. Pop-star rico e amado, alvo das atenções, poderia se casar com uma princesa ou com uma bela atriz de cinema. No entanto, fechou os olhos para os padrões estabelecidos e se enamorou de uma artista oriental que ninguém acha bonita. Seis anos mais velha, a artista plástica japonesa, entre uma ou outra briga ou breve separação, esteve junto a Lennon até o dia de sua morte, em dezembro de 1980. E estiveram mesmo juntos – e juntos mesmo. Minha filha, que assistiu ao dvd duas vezes comigo, disse: “como eles dois gostavam de passear de mãos dadas...(!)”. John amava Yoko. E ponto. A essa altura, algum beatlemaníaco já deve estar me chamando de idiota, dizendo que “todos sabem que a japonesa foi uma oportunista”. A mim isso, em princípio, não importa. Me importa mais o fato de que um dos maiores homens do século vinte – que obviamente não era um santo; como Che Guevara e Gandhi também não eram – ao se casar com uma japonesa feia, e junto com ela produzir arte, mostrou ao mundo várias coisas: que é possível o desapego a cruéis padrões estéticos que escravizam mulheres e homens; o fato de que marido e mulher podem “trabalhar em 78 equipe”; que um homem caminhar com sua esposa por um parque espalha pelo chão sementes de amor. Tudo bem, fiquei piegas. Vejamos então a algo negativo para balancear. Há cenas de mau gosto em alguns clips do dvd em questão. Como no clip de ‘Woman”, onde, num momento, é mostrada a contracapa do disco “Imagine”, em que há o perfil de Lennon como que deitado no chão, sendo essa imagem sucedida por uma foto dele morto, na mesma posição. É de extremo mau gosto. Mórbido pra caramba. Aliás este não é o único momento em que se faz referência à morte do beatle. Não é à toa que Mary, minha patroa, chorou. E tem umas coisas meio estranhas na vida da Yoko. Essa coisa de não se cansar de explorar a morte do marido é muito chata. Já basta alguns cristãos que preferem falar da morte de Jesus do que de seu exemplo de vida. Guardando-se as devidas proporções, é por aí. Certa vez – deve fazer uma meia dúzia de anos – Yoko pôs em leilão uma foto dos óculos quebrados de John, sujos de sangue. Eu não sei, mas me parece que o sangue era montagem. Fiquei perplexo na ocasião e extremamente decepcionado com a viúva. Eu, que sempre a defendera. Vou dizer uma coisa: aquilo ali ficou muito próximo de um vodu. E pra quem a considera uma bruxa... Há ainda as suspeitas de que Lennon, o pacificador, na sua posição de milionário e – como eu – simpatizante do comunismo, tenha financiado guerrilhas na década de 70. Dizem que a CIA investiga isso até hoje. Gilberto 79 Gil e João Donato escreveram: “...que contradição/ só a guerra faz nosso amor em paz”. Pois é. De volta a Che. Até este – que é um símbolo para os neo-comunistas como eu – matou ou comandou a morte de, pelo menos, duas mil pessoas. Gente: não há santos. Nem nunca houve. Há fantasmas. E o de John Lennon não pára de assombrar, acredito e espero que de forma positiva, o mundo de hoje. Ouvindo uma das melhores bandas do momento, o Arctic Monkeys – que eu estou adorando ouvir –, vejo como o fantasma de Lennon age no rock atual. O vocalista tem a voz muito parecida com a de John. Eu achei. Alíás, o som deles é bem Beatles. E são muito melhores que o Oasis – cujo vocalista imita e cultua o falecido. 80 Cobain de carne o osso Filme traz um artista que ninguém viu Que carta de despedida de Getúlio Vargas, que nada. O que poderia superar, em se tratando de cartas suicidas, à que Kurt Cobain, o maior ídolo da música pop dos anos noventa, escreveu para o seu amigo imaginário Bodah? 81 Últimos Dias, lançado agora em dvd, é um filme que não deveria passar despercebido. O Diretor dado a estranhezas, Gus Van Sant (o mesmo do ótimo Elefante), colocou na tela seu filme mais lento, monótono, esquisito, chato, e... belo. Belo é uma palavra que resume bem a coisa. Mas há um tremendo porém: poderá ser considerado um filmaço para quem foi fã de Kurt Cobain e acompanhou aquele grande momento de efervescência e renascimento do rock, ou seja do “hard-punk-rock”, carinhosamente apelidado de grunge. Mas o espectador vai precisar de algo mais: talvez um gosto por filmes europeus ou orientais – que é o que este aqui lembra. O roteiro é estreito como um pentelho louro de uma moça sueca. Baseia-se no seguinte: o super astro do rock, Blake – nome fictício dado a Cobain – vive seus dois últimos dias de vida em sua mansão e arredores, imerso em profunda solidão voluntária. Há amigos na casa, mas ele é essencialmente só. No ímã da geladeira um recado dizendo “a arma está no armário do quarto”. Além do mérito, e bom senso, de não pretender trazer minúcias investigativas sobre a morte do roqueiro, o filme traz, principalmente a ótima atuação do ator Michael Pitt (de Os Sonhadores), que não poderia estar melhor caracterizado. O ator praticamente não fala, apenas balbucia. Mas como convence... Apesar de um roteiro tocado de forma excessivamente lenta, na fotografia o filme encanta. Cada fotograma poderia ser exibido em uma exposição de rock. Em muitas vezes no 82 filme, diante da câmera parada, como a de um fotógrafo – e não de um cinegrafista – podemos notar como foi feliz a composição do ambiente. Isso salta aos nossos olhos – ainda mais quando assistimos pela segunda vez. A cena da morte do cantor é também digna de nota. É poética. A tragédia não é, em nenhum momento, explorada como espetáculo. Entretanto, se você não curte Nirvana, nem filmes lentos, fuja deste aqui, e vá alugar Piratas do Caribe 3. E vá comer pipoca com sal e glutamato. 83 Dinossauros voadores Que mundo aguarda a volta do Led Zeppelin? Idos de 1987. Lá estava eu em casa, em minha interminável jornada musical e (auto) sexual. Foi quando me chega um amigo com uma misteriosa caixa preta de plástico, emprestada de outro amigo. O conteúdo? Os cinco primeiros discos do Led Zeppelin. Da banda eu só conhecia até então – além da capa do primeiro LP (aquela que tem um Zepelim pegando fogo) – as canções “Stairway to heaven”, “Rock’n’roll”, “Whole lotta love”, “Kashmir” e “All my love”, músicas gravadas em períodos distintos. Mas, de todas estas, só mesmo a primeira eu seria capaz de assobiar. As demais apenas me eram meio “familiares”. Resumindo: eu não conhecia o Led Zeppelin – a banda que, em 1969, inventou o heavy metal. A caixa foi por mim recebida com grande curiosidade e respeito. Afinal, o material físico era imponente. Quase místico. E o material sonoro não me decepcionou – fui seqüestrado por aquele som ao mesmo tempo caótico e finamente estruturado. Não é fácil explicar o som feito por aqueles caras. O que saiu dos meus alto-falantes 84 ficou pra sempre marcado em mim. Naquela época eu havia assumido o vocal da banda Poluição Sonora, que vocês não conhecem. Eu, um roqueiro que não conhecia o rock. Alguém disse certa vez: “O homem fez a guitarra, e Deus fez Jimmy Page para tocá-la”. Isso mostra o quanto a banda foi posta no status de divindade. Exageros à parte – coisas do mundo pop –, a verdade é que o “Zep” (para os íntimos) foi mesmo o nome mais importante da música mundial nos anos 70. Crítica e público nem sempre estiveram ao lado da banda, mas os números computados ao longo dos anos e os fãs fiéis, e remanescentes até hoje, 27 anos após o fim da banda, comprovam a idéia dessa grandeza. Agora tem o show de novembro em Londres. E aí? É uma volta definitiva? Pelo que sei, só há boatos. Mas o show – que será definitivamente histórico – vai contar com o esquecido John Paul Jones e com Jason Bonhan, filho de John Bonhan, o baterista morto em 1980. Sua morte decretou o fim da banda. E eu não tenho conhecimento de outro caso assim: uma banda acabar pela falta do baterista. Respeito? Sim, respeito. E está certo. Tem que respeitar. Bonhan imprimiu sua marca no mundo do rock. Se não foi um baterista tão técnico, tinha estilo próprio. E isso é algo difícil de se identificar em quem toca esse instrumento. Pois, pra quem não sabe, sempre foi bem possível reconhecer uma música inédita do Led Zeppelin pelo simples som da bateria. Uma marca. Com seu filho na nova formação, a volta da banda ganha respeitabilidade. 85 O que o mundo do rock ganha com o possível retorno do Led Zeppelin? E ainda: o que o mundo ganha com isso? É claro que eu não sei responder a essas perguntas. Mas tudo vai depender de como será esse show, assim como de quais são os planos deles para um futuro próximo. Vão voltar a criar juntos? Se o fizerem, vão repetir a velha e boa fórmula? De qualquer jeito, o mundo não é mais o mesmo, e é claro que o Led também não. E se esse (re) encontro atiçar a curiosidade de novos ouvintes – sobretudo jovens –, poderemos ver meninos ouvindo música junto a seus pais, e, até mesmo, seus avós. E, convenhamos: essa possibilidade é muito interessante. Ave Jimmy Page! Ave Robert Plant! 86 Meu doce e tempestuoso irmão Renato Legião Urbana foi meu coração, minha cabeça e minha voz Acho que sou ingrato com Elvis Presley. Explico. A partir dos meus cinco anos de idade comecei a ver os inúmeros filmes de Elvis na Sessão da Tarde. Nesses filmes, Elvis sempre interpretava um rapaz pobre, porém sedutor – seu sorriso sincero, seu violão, seu sucesso com as garotas. Seus personagens eram – apesar de sofredores – sempre uns caras bem humorados, felizes, fiéis aos seus amigos, corajosos. Não importava o nome ou o ofício de cada personagem: era ali sempre o belo e cativante Elvis com seus cabelos castanhosescuros brilhantes. A psicologia explica isso com facilidade – refiro-me ao fato de eu hoje cantar e tocar violão, já que não houve músicos em minha família. Sendo assim, é possível que Elvis Presley seja meu pai. Se hoje eu gosto tanto de violão e, ainda mais, de mulher, é, entre outras coisas, por Elvis. Que coisa... E o que eu dou em retribuição? Uma foto em uma colagem com recortes de fotos de artistas que fiz, emoldurados em minha sala, e ainda dois velhos discos de vinil e nada mais. Acho que é pelo obstáculo da língua estrangeira, pois do Roberto Carlos, por exemplo, eu 87 tenho mais material, e até sei cantar muitas músicas. Mas não vou também ficar justificando minha ingratidão. Então, passada uma década, me vem, aos dezesseis anos a minha primeira banda, onde eu cantava, principalmente, as músicas do Legião Urbana. Eu e Renato Russo fizemos um casamento perfeito. Casamento, não. Renato Russo foi meu tempestuoso irmão mais velho. Quando menino eu não podia cantar como Elvis. Mas agora, nos idos de 1986, eu um frangote com voz de homem... agora dava pra enganar, cantando as músicas do Legião. Ninguém nas redondezas tinha uma voz mais parecida (ou conseguia fazer uma voz mais parecida) com a do Renato do que eu. Então o menino tímido que eu era, passou a ser um pouco mais respeitado, pela voz, e pela performance de palco, ainda que, secretamente, eu, a princípio, gostasse mais do RPM, Blitz e Ultraje a Rigor, até aquele momento. Entretanto, o poder das letras – ora herméticas, ora vomitadas com clareza – de Renato Russo não tardariam em capturar meu intelecto, minha psique ávida pelo susto. E, então, sim, cada nova canção da Legião me proporcionava o susto que me alimentava psicologicamente. Cada novo disco da banda era um acontecimento pra minha turma. Discutíamos cada letra. “O que ele quis dizer com este verso?...”, era comum indagarmos. Foram tantas as canções marcantes, e tanta coisa já foi escrita sobre a obra de Renato, e o enorme número de grandes letras, que fica difícil destacar algumas. E é 88 sempre complicado tentar fazer um apanhado analítico pessoal da obra. Pois cada um dos discos, cada uma das canções podem ser objeto de muita análise – eu, que já analisei todas, todas elas, tenho sempre um “disco preferido” diferente a cada vez em que penso nisso. Vou me ater, momentaneamente, a um álbum em especial: A Tempestade, que é o que acho que mais me emocionou. E vou falar alguma coisa sobre este trabalho. A Tempestade (ou O Livro dos Dias) é de 1996. E é o último trabalho gravado pela Legião Urbana – depois viriam álbuns póstumos. Tenho uma história pessoal envolvendo este disco. Fui até o município de Nova Iguaçu, onde normalmente eu comprava meus discos, pra comprar o então novo disco da (do; tanto faz) Legião. Lá estava ele: capinha azul celeste, de papelão. Uma capa elegante. Eu sempre comprei os discos do Legião e do Paralamas sem me preocupar com o conteúdo, que eu já sabia que não poderia ser ruim. A “música de trabalho” executada nas rádios eu havia achado muito estranha; era “A via Láctea”. Muito triste e com um vocal desleixado. Versos como “hoje a tristeza não é passageira, hoje fiquei com febre à tarde inteira, e quando chegar a noite cada estrela parecerá uma lágrima...”. Então cheguei em casa e coloquei o CD no meu som. E o que saiu das caixas era a voz da Xuxa. Isso mesmo, Xuxa. Por algum motivo, a fábrica que prensou (queimou) os CDs, gravou ali , acidentalmente, o então novo disco da apresentadora de TV. Lá fui eu de novo no dia seguinte à loja pra trocar o CD. A moça do balcão me trocou a bolachinha sem problemas, disse que aquele lote inteiro estava com 89 Xuxa gravada nos CDs do Legião. De volta a casa, finalmente pude ouvir o disco com calma. Calma não. Um misto de apreensão e respeito, para, logo depois, como sempre, o susto. E também o deleite após o susto. Mas dessa vez havia algo diferente. Todas as canções eram amargas, extremamente amargas. Chorei ao ouvir algumas delas, e me lembrei do disco Burguesia, do Cazuza. “Meu Deus, será que este aqui é mais um disco de despedida?”, me perguntei. E quando li na primeira página do encarte. “O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus". Oswald de Andrade Eu pensei, e inclusive disse à minha companheira – que sempre me falava dos lugares descritos pelo compositor em alguns versos referentes a Brasília presentes em uma ou outra canção; Brasília, local onde ela também morou: “o Renato Russo vai morrer”, eu disse. “Veja bem. Tudo o que cantou nesse disco mostra que ele não está nada bem. E esses versos aqui...”. Pois bem. Mais ou 90 menos um mês depois daquilo, recebemos a notícia de sua morte. Eu estava no trabalho. Eu estava no refeitório. Não me recordo de ter terminado a refeição. Eu estava perdendo um “parente”. Algo como um irmão distante, que muito houvera me ensinado. Renato morria vítima do HIV. Escondeu a doença de todos. Apenas os mais chegados sabiam. Nenhum fã sabia o que estava acontecendo com ele. Ele ocultou seu mal até o fim. A única coisa que gostava de expor era a sua arte, e isso fizera sempre muito bem. Com o uso dos “coquetéis” ele poderia ter vivido mais. No entanto, isolou-se em seu apartamento e abandonou o tratamento. Ele não conseguiu ser como os outros, “rir das desgraças da vida, ou fingir estar sempre bem, ver a leveza das coisas com humor”, como reclama na letra de “A Via Láctea”. Ele agiu como um romântico do século XIX. Acho que chorei por uma semana. E, confesso: ainda hoje A Tempestade é um CD capaz de me fazer chorar. É ainda um trabalho mal compreendido por alguns ouvintes, considerado excessivamente depressivo. Mas, ora bolas, como não ser “excessivamente depressivo” quando se está às portas da morte? A Tempestade é uma obra de arte intensa e reveladora. O título reflete, como disse sua mãe em uma entrevista, a “tempestade” que o filho vivia em sua vida confusa e tumultuada, naqueles seus anos com o H.I.V., e, sobretudo, nos seus últimos meses de vida. Mas nem tudo é depressão em A Tempestade, que em alguns momentos consegue mostrar até um certo bom humor, como no caso da canção “Leila”. Ou ainda a delicadeza de uma letra leve e romântica como em “Soul Parsifal”, com melodia criada em parceria com Marisa Monte. 91 A obra de Renato Russo e da Legião Urbana, ajudou a revelar um novo Brasil e uma nova juventude brasileira. Mostraram que de Brasília podia sair coisa boa, e não só merda. E inclusive levaram a capital federal para algumas de suas letras. Nem a obra gigantemente linda e fabulosa de Niemeyer me fez sentir tanta vontade de conhecer a “cidade avião” como o fizeram letras como “Faroeste Caboclo” e “Dezesseis”. Um aspecto importante é que, comumente, as letras de Renato eram sérias e rebuscadas – não que não fossem românticas. Mas eram românticas no seu modo peculiar. Revelavam uma vasta cultura do letrista. Eram cheias de referências. Que produtor musical poderia apostar que letras herméticas, com referências a livros e filmes pudessem atrair a juventude, em grande parte tão interessada em músicas engraçadinhas ou de um romantismo tradicionalmente clichê? Os “padrinhos” Paralamas do Sucesso, e os produtores Mayrton Bahia e Rafael Borges acreditaram nisso. A obra da Legião Urbana foi pra mim e pra muitos da minha geração algo quase sagrado. Como uma espécie de bíblia musical, um tratado de poesia livre e de livre pensamento, e de reflexão. Um motor para a criatividade de cada um de nós. Nenhum fã que eu tenha conhecido tentou, verdadeiramente, seguir Renato Russo como um modelo pessoal de vida. Sua obra sempre esteve muito acima de sua vida – algo raro entre estrelas do mundo pop. 92 * O Cânone da Legião – “Legião Urbana” (1984), o disco de estréia, tem o primeiro sucesso radiofônico da banda, “Será”, que é, sem dúvida, a letra mais fraca do álbum que traz “Ainda é cedo”, “Soldados”, e as contundentes “Baader-Meinhof blues”, “A dança”, “O reggae”, e ainda o anti-hino “Geração Coca-cola”; “Dois” (de 1986), figura – não raro, próximo ao topo – em todas as listas dos melhores discos de rock brasileiro. E não é pra menos. É um conjunto de canções finamente elaboradas. O som punk do disco anterior dá aqui lugar a uma sofisticação sem precedentes no rock nacional, com violões executados com simplicidade e precisão, guitarras pontuando delicadamente as melodias. Se a banda preserva neste disco a crítica social contida lá no primeiro trabalho, ela dá aqui um desenho mais romântico e profundo às suas canções. Destaques: “Tempo perdido”, pela performance da banda e pelo belo trabalho técnico de estúdio; “Quase sem querer” e “Andrea Doria”, pela introdução da banda ao estilo folk-music, que se repete na brilhante “Eduardo e Mônica” – esta com arranjo sem bateria e com sua letra quilométrica; “Acrilic on canvas”, pelos versos surpreendentemente românticos e metafóricos; e a magnífica “ ‘Índios’ ” – nada na música brasileira até então se parecia com o clima tenso criado pelo teclado de Renato Russo ao longo desta canção “sufocante”, carregada se símbolos; “Que país é este?” (1987) é uma espécie de coletânea de “sobras” dos discos 93 anteriores, porém em gravações novas. Eram canções já tocadas pelo grupo – a maioria delas desde sua fundação – mas que não haviam ainda sido registradas em estúdio. Jamais um disco de canções “rejeitadas” foi tão bem recebido por público e crítica. Nele estão “Eu sei”; “Mais do mesmo”; “Angra dos Reis”; “Conexão amazônica”; a faixa-título “Que país é este”, que foi a música mais executada por bandas de garagem nos anos oitenta e noventa; e por fim, uma das mais impressionantes canções da história da música brasileira: Renato foi inspirar-se no cordel, foi em Dylan, foi em não sei mais aonde – talvez em seu céu e seu inferno – e mostrou ao país a hipnótica e emocionante “Faroeste caboclo”, a “folk-balada” de nove minutos sem refrão, logo cantada de cor pela juventude brasileira; “As quatro estações” (1989) é o primeiro trabalho sem o baixista Renato Rocha (o Negrete). Com este disco a banda conquista todas as classes sociais que faltavam serem alcançadas. Não que tenha sido um trabalho “popularesco” – longe disso. Mas o conteúdo “religioso” do álbum deu essa força. Canções como “Quando o sol bater na janela do teu quarto”, “Há tempos”, “Se fiquei esperando meu amor passar”, e, sobretudo, “Monte castelo” – esta com trechos da Bíblia – conquistaram todos os jovens católicos do país. Mas “As quatro estações” é muito mais que um disco de “auto-ajuda”, como pode parecer ouvindo-se os versos de “Pais e filhos”: “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...”. Entretanto a própria “Pais e filhos” é uma canção que trata em sua letra, entre vários casos de jovens, de um caso real de suicídio. É um clima pesado, e o próprio 94 Renato sempre achou esta música inapropriada para se cantar em shows, por que os ouvintes não compreendiam a tristeza profunda contida naquela letra. Mas, em todo caso, por força das circunstâncias, ele foi obrigado a se render ao mega-sucesso da canção e a cantou diversas vezes. “Pais e filhos” contém ainda versos poderosamente conciliatórios como “você culpa seus pais por tudo/ isso é um absurdo: são crianças como você...” – de fato, uma aula de amor e compreensão. Neste disco há ainda canções homossexuais e, dentre elas uma com letra em inglês “Feedback song for a dying friend”, com poesia claramente gay. Este quarto disco é, entre outras coisas, um trabalho denso e pesado que o público entendeu como leve. De qualquer forma, é um disco rico em todos os sentidos, em conteúdo e forma – incluindo excelentes arranjos. Não teria como o país deixar de ouvi-lo. E o Brasil fez um bom uso deste grande grito de Renato; “V” (1991) sofreu com o sucesso do disco anterior. Uma capa branca, com o cinco em algarismo romano na contracapa e, no interior, faixas mais longas que o normal, com grandes trechos instrumentais: foi algo que pegou todos de surpresa. A verdade é que “V” é um belo disco, ainda que “difícil”. As tocantes faixas “O teatro dos vampiros” e “Vento no litoral”, e a simpática “O mundo anda tão complicado” conseguiram tornar o trabalho comercializável. Entretanto o destaque estético-artístico do disco é “Metal contra as nuvens”, uma das mais lindas letras escritas por Renato, num arranjo bem ao estilo rock progressivo dos anos setenta; “Música para acampamentos” (1992) é uma coletânea ao vivo de diversas apresentações da banda em shows e 95 programas de rádio. As versões de “Ainda é cedo”, “Música urbana 2” e “Baader-Meinhof blues”, com Renato “encenando” um pequeno monólogo na abertura desta – onde representa uma perseguição policial –, merecem destaque. As belas versões acústicas de “Índios” e de “O teatro dos vampiros”, gravadas para a MTV, já constavam aqui nesta compilação; “O descobrimento do Brasil” (1993). Aqui temos um letrista mais romântico do que nunca. As letras são mais simples e “digeríveis” que o usual. No entanto, os dois grandes destaques do disco fogem a esse conceito: “Perfeição” tem uma das letras mais ácidas da banda, num arranjo com toques de rap, tendo os versos quase todos falados. É considerada uma das melhores músicas da Legião, sendo inclusive a preferida de Guiliano, filho de Renato Russo, que mais ou menos nessa época, ainda criança, desenharia a capa do disco solo em italiano de Renato “Equilíbrio distante”; outro grande destaque é “A fonte”, num trabalho instrumental impecável de toda a banda, e com uma letra pra lá de misteriosa. A música destacada por Russo para este disco é “Giz”, que ele afirmou ser “perfeita”, tendo dito até mesmo que esta teria sido sua melhor gravação em toda a carreira; No último disco gravado por Renato Russo, “A Tempestade” (1996), destacam-se as faixas: “L’aventura”, uma linda canção que trata de um caso de amor que chega ao fim, num magnífico trabalho instrumental; “A Via Láctea”, que contém os versos “quando tudo está perdido, sempre existe um caminho/ quando tudo está perdido, sempre existe uma luz” – esta canção, assim como outras do disco, foram cruamente registradas com a “voz-guia”, isto é, sem o acabamento 96 que normalmente se dá em gravações profissionais, com a voz sendo gravada por último, visando melhor qualidade; “Dezesseis” parece ser uma versão mais rocker de “Faroeste caboclo”, ao contar, em ritmo forte, mais uma estória ambientada em Brasília; “Leila” é primorosa, com um belo trabalho de guitarra de Dado Villa-Lobos e uma das mais surpreendentes, divertidas e doces letras de Renato; quase ao fim do disco, a emocionante “Esperando por mim”, onde ele canta “e o que disserem, meu pai sempre esteve esperando por mim/ e o que disserem, minha mãe sempre esteve esperando por mim/ e o que disserem, meus verdadeiros amigos sempre esperaram por mim/ e o que disserem, agora meu filho espera por mim/ estamos vivendo, e o que disserem... os nossos dias serão para sempre”. Quem viveu os anos de Renato Russo vai sempre se emocionar ao ouvir estas canções; “Uma outra estação”(1997) é o primeiro álbum póstumo de Renato com a Legião. Ou melhor, o primeiro do Legião após sua morte. A maior parte das músicas de “Uma outra estação” integrariam o CD “A Tempestade”, que seria, inicialmente um álbum duplo – e provavelmente até com outro título –, o que não ocorreu por razões de mercado. Destacam-se aqui “Flores do mal”; “Antes das seis” – que tem os versos “quem inventou o amor, me explica por favor...” –; “A tempestade”, com seu vocal soturno; a desconcertante, fortíssima e indispensável “La Maison Dieu”; “Clarisse”, com sua pesada letra sobre uma tentativa de suicídio: “enquanto ela se corta ela se esquece que é impossível ter da vida calma e força” – nada pode ser mais barra pesada que isso – ; e coisas antigas, como as boas “Dado viciado” e 97 “Marcianos invadem a terra”, gravadas em voz e violão. Uma faixa muito interessante é “Riding song”, que abre o disco, onde os integrantes da banda – incluindo o antigo baixista Renato Rocha – vão se apresentando, falando sobre o que fazem na vida. “Mariane”, lindíssima canção, composta e cantada em inglês, também merece nota; “Mais do mesmo” (1998) é uma coletânea bastante deficitária, omitindo grandes sucessos como “Quase sem querer”, “Soldados”, “Angra dos Reis”, etc; “Acústico MTV” (1999) é um ótimo disco. Registrado na ocasião do lançamento de “V”, e lançado posteriormente, apresenta uma Legião Urbana completamente despojada. Uma performance excepcional de Dado no violão, acima de qualquer suspeita. No palco do programa de TV, a Legião crua e minimalista, numa formação com apenas os seus três integrantes. A voz de Renato nunca esteve tão límpida em uma apresentação ao vivo – não que ele tivesse dificuldades com isso. O arranjo para “Índios” é magnífico, numa transposição para violões mais que inusitada. A maravilhosa “Metal contra as nuvens” aparece pela primeira vez ao vivo, não deixando dúvidas sobre a potencialidade do grupo. Este “Acústico MTV” é um trabalho em que “menos” foi “mais”; “Como é que se diz eu te amo” (2001), álbum duplo, é o registro, na íntegra, do último show da banda. Renato estava visivelmente tenso e emocionado durante toda a apresentação, chorando durante a música “Giz”, errando a letra de “Índios”, dizendo à platéia frases como “– Me amem!”. Um grande show, realizado no Rio de Janeiro, na casa que, na época, chamava-se Metropolitan; “As quatro estações – ao vivo” (2004) é o registro de um 98 final de semana de agosto de 1990, em São Paulo, onde eles tocaram para um público de mais de 100.000 pessoas. A execução da canção “Monte castelo” é emocionante, assim como todo o show. Cada palavra dita pelo cantor entre uma e outra canção – e até durante – era ouvida atenciosamente pelo público que correspondia com gritos emocionados, como quem ouvisse não simplesmente o vocalista de uma grande banda de rock, mas o líder cultural de uma geração. Em um grande momento da apresentação, ovacionado pela platéia, Renato fala: “– Eu queria saber o nome de todos vocês!”. URBANA LEGIO OMNIA VINCIT. Ou seja, “A Legião Urbana tudo vence!”. Saudações legionárias! 99 Lenine e o “soul” da natureza No novo disco Labiata, cantor volta a emudecer ouvidos atentos Uma das melhores coisas na música em 2008 é o CD Labiata, de Lenine. Dono de um dos mais impressionantes acústicos MTV, o músico pernambucano, que tem seu nome inspirado no líder comunista Lênin (o pai de Lenine era um comunista entusiasta), ressurge, após ter musicado o espetáculo Breu, do Grupo Corpo, com um trabalho inspiradíssimo, cheio de experimentalismo – o que nunca deixou de ser uma marca do cantor. Outro dia eu e um amigo, o violonista Ricardo Espírito Santo, discutíamos Lenine. Enquanto eu dizia que sua música é, ao contrário do que muitos pensam, melódica e harmonicamente extremamente simples, o amigo ponderava: calma aí, o que Lenine faz com a mão direita não é pra qualquer um. Nisso eu tive que concordar. Mas aquela era uma conversa de músicos, portanto não estávamos discutindo as letras. Pois é. E quem na MPB dos últimos 15 anos foi capaz de dar voz e alma a instigantes letras como ele o fizera? Sozinho, como na eterna “Jack soul brasileiro”, ou em diversas 100 parcerias acertadas, versos 100% inteligíveis e assimiláveis, que sempre soam sofisticados. Qual a magia que consegue equilibrar essas duas forças em Lenine? O simples dentro do sofisticado. O sofisticado dentro do simples... Labiata é apenas mais um disco de Lenine. E, convenhamos, isso não é pouco. É um sinal de fôlego da boa música brasileira. Um sopro de filosofia e poesia do nosso recurso por excelência renovável : nossa música. E já que falo em recursos renováveis, a proposta de Labiata é que se volte o olhar para a natureza. O próprio título do álbum é uma referência à orquídea cattleya labiata, espécie bastante ocorrente no litoral brasileiro. O próprio Lenine é um amante de orquídeas, mantendo um orquidário com mais de 2000 plantas em seu sítio em Araras, próximo a Petrópolis – alguns sons do disco foram mesmo gravados dentro do orquidário. Letras como as das canções “A mancha”, “Lá vem a cidade” e “É fogo” são claramente ecológicas, mas não de uma militância piegas, e sim, carregadas de simbolismo. O trabalho, que recebeu o toque final no estúdio Real World, de Peter Gabriel, em Londres, conta em sua base com os músicos Pantico Rocha, na bateria; Guila, no baixo; e Jr. Tostoi na guitarra: músicos que já há alguns anos tocam com Lenine nos palcos, e mostram aqui, mais uma vez, técnica e sensibilidade irrepreensíveis. Pontos digníssimos de destaque no álbum são as participações dos cariocas do Plap (leia-se Pedro Luiz e a Parede), que tocam nas faixas “A mancha” e “É fogo”; as duas parcerias com Arnaldo Antunes em “O 101 céu é muito” e “Excesso exceto”; a interessante participação vocal, nesta mesma faixa, do roqueiro China (que foi integrante do grupo Sheik Tosado e há pouco lançou seu disco solo); e a surpresa da letra de Chico Science em “Samba e leveza”. A letra manuscrita fora entregue por Chico à sua irmã Goretti 3 dias antes do acidente que matou o cantor. Goretti procurou Lenine, e o entregou a letra, pedindo a ele que a musicasse. Provavelmente Chico ficaria muito satisfeito com o resultado, o que nós podemos conferir em mais este personalíssimo trabalho de Lenine. 102 Lobão e Faustão Aguardamos o dia em que ouviremos (e veremos) os bons músicos tocarem ao vivo na TV Num debate sobre os movimentos de vanguarda na história do cinema, onde intelectuais falavam sobre cinema novo e nouvelle vague, já quase no fim, um rapaz da platéia questiona à roda de debatedores: “Mas e quanto ao povo? (referindo-se ao fato de que a maioria dos filmes comentados naquele encontro, não eram acessíveis aos cidadãos pobres e comuns)” Foi então que um dos críticos respondeu com certo sarcasmo: “O povo? O povo está no Maracanã”. O que o intelectual queria dizer com isso? Provavelmente estava querendo dizer o seguinte: “A boa arte sempre existiu e sempre vai existir independendo do gosto popular”. Bem. Ele não deixa de estar certo – a despeito de seu comentário pedante. Mas pode também que não tenha sido pedante, e seu comentário tenha sido sim, simplesmente, um resumo sincero de um estado de coisas. Uma boa pergunta é se nos últimos tempos a elite artística e todas as pessoas que veiculam cultura têm se esforçado para levar arte ao povo. Tomemos como exemplo a MPB – que só tem o nome “popular” em contraposição à música erudita. MPB, como sabemos, é um “selo” criado nos anos 70 para diferenciar um grupo 103 de grandes artistas daqueles de “importância menor” e gosto duvidoso. A televisão se encarregou de mostrar ao país esta plêiade de grandes nomes da nossa música, os quais nem precisamos citar. A TV Record nos anos 60, com seus áureos festivais e programas, sacudiu o Brasil e mostrou a todos a grande música feita por jovens oriundos da classe média intelectual. A TV Bandeirantes e, sobretudo, a Globo continuou o trabalho de divulgar os melhores artistas de nossa música na década de 1970. Portanto, ouvir música boa na televisão tornara-se um hábito comum dos brasileiros naquela época. E por que não dizer o mesmo dos anos 80 – apesar do play-back – com o BRock? Titãs, Legião Urbana, Barão Vermelho... É. Mas a TV mudou. E enxotou de sua programação nossos melhores artistas. Ao menos em relação à TV aberta podemos afirmar isso. E é ela a principal mídia do país; aquela que chega em todos os lares. E destaco nesse aspecto os, aparentemente imortais (e fatídicos), programas de auditório, aos quais nem eu nem qualquer amante de música suporta assistir, mas que têm enorme influência no gosto popular. Os bons músicos (cantores, compositores, instrumentistas) ainda existem, e existem em grande número. Mas um apreciador de música pode chegar a pensar o contrário ao ligar seu aparelho televisor num domingo à tarde. O que há é o predomínio do mau gosto, o romantismo-brega-pseudo-sertanejo, o pulapula baiano com seu “sai-do-chão”, o funk safado – que é cultura popular sim, mas, convenhamos, é música para 104 pistas de dança (no máximo) e não deveria estar tomando o espaço que deveria ser ocupado por músicos de verdade. Flávio Cavalcanti, se vivo estivesse, quebraria um CD de funk por semana em seu programa, como fez até com disco de Giberto Gil; e olha que ele quebrou Refazenda diante das câmeras – o que também já é uma insanidade. Mas quem são os culpados por essa esculhambação musical televisiva de hoje? Os empresários de televisão, que encontraram filões lucrativos que dão ibope e não querem nem saber? Digamos que a busca pela audiência rápida e fácil seja mesmo algo pernicioso. Mas o que podemos esperar de empresários? A comunicação de massas no Brasil é comandada por menos de 10 grandes empresas. E empresas têm um fim único: o lucro. E, por outro lado, será que bons artistas não estariam por sua vez se omitindo, e, com isso, talvez sem querer, contribuindo para essa invasão de música ruim em nossos lares? Ocorreu também nos últimos anos o que chamo de “efeito Lobão”, com vários grandes nomes se recusando a ir cantar na TV. E não podemos recriminá-los, pois sabemos que play-back em programa de auditório com dançarinas rebolando no palco é mesmo o fim-dapicada. Quando será que esse esqueminha vai ser erradicado? É uma corrupção de qualquer bom senso estético. Quando?? Talvez quando os programadores entenderem a importância da diversidade musical e do respeito aos nossos melhores artistas, além, é claro, de um pouco de arte visual mais variada e de bom gosto. 105 Uma questão interessante é: por que toca Tom Jobim nas novelas das nove, enquanto no Faustão o povo tem que aturar ver Leonardo duzentas vezes? O público alvo não seria o mesmo? Por que também a insistência com um apresentador que grita nos nossos ouvidos, ao que parece, sempre as mesmas palavras? Enfim. Por que o Domingão não acaba? E pensar que o Faustão um dia foi tão interessante, lançando um novo modelo com o saudoso Perdidos na Noite. Precisa-se, com urgência, de um programa de auditório, em canal aberto, que possa receber Lobão, Marisa Monte, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Lenine, Adriana Calcanhoto, etc, etc, etc, sem que nele estes se sintam peixes fora d’água. Bem que Lobão dá sinais de que fez as pazes com a televisão. Faz seu programa (o talk-show Saca Rolha, no Canal 21 – que eu, assim como a maioria dos brasileiros, não tive ainda a oportunidade de assistir – onde é um dos apresentadores); vai lançar seu Acústico MTV – que antes de ser um CD e um DVD é um programa de televisão – , e quem sabe também não toque em programas mais populares. Quem sabe não toque no Faustão. Não sei não. Se bem que me disseram que no ano passado ele foi duas vezes no Raul Gil. Então vem, Lobão! Vem cantar na televisão. Vem e traz contigo essa turma que eu mencionei. Dizem por aí que você está se vendendo ao mainstream. Mas eu não estou nem aí. Eu quero é boa música para ouvir depois do carnaval. Em suma: a música brasileira não vai mal, mas a TV precisa melhorar sua programação musical, e artistas de 106 boa reputação, bom gosto e talento criativo podem ajudá-la nessa tarefa. Miremo-nos no glorioso (como diria Fausto Silva) passado musical desta mídia. O povo brasileiro merece boa música na televisão. Se já foi assim, por que não voltar a ser. E se servir o exemplo dos gringos, é bom lembrar: Elvis, Beatles e até Nirvana tocaram em programas de auditório. 107 Revolução musical: Michael Jackson teria descoberto há tempos a batida perfeita tão procurada pelo nosso querido Marcelo D2 O simples bater de asas de uma borboleta pode causar um furacão no outro lado do mundo". (Teoria do Caos) Quando Bob Dylan deu maconha para os Beatles não sabia que estava iniciando a maior revolução musical da história. De um lado estava o compositor de canções folk de protesto, engajado. Do outro, quatro jovens ingleses bobos que nunca haviam pensado em música como uma forma de arte, ou protesto, ou algo que fosse mais do que simplesmente música, propriamente dita. Pois é. Ali, naquele ato, naquele baseado estavam todos os anseios e medos, certezas, visões de mundo, fúria intelectual e “dilemas” de Dylan. Então, profundamente influenciados por aquele encontro com o intelectual músico americano, os rapazes de Liverpool, a partir daquele momento, apontaram para um novo rumo em sua trajetória de banda de rock, tratando com mais carinho, ternura, percepção, receptividade cultural – e sarcasmo – seu trabalho, logo lançado ao status de obra revolucionária – que foi. Dado isso, o, já revolucionário, rock’n’roll ganhava gás. E, muito mais do que gás novo, 108 semeava-se ali uma brisa que viria desencadear um turbilhão de eventos. Um furação de cultura renovada e renovadora. A música começava então a transmutar-se numa avalanche ininterrupta de metamorfoses. Ela transformou-se em arte pop. Ela solidificou-se como instrumento de panfletagem ideológica (no bom sentido: vide Woodstock, os efeitos sobre e sob oVietnã, as ‘canções de protesto’ produzidas no Brasil nos anos 70, etc, etc, etc). Arte. Engajamento. A música deixara definitivamente de ser “apenas” música. Das metamorfoses vindouras, poucos foram tão emblemáticos quanto Michael Jackson. A mais famosa criança cantora de todos os tempos deu seu grito de independência, já rapaz, quando lançou, em 1979, o disco “Off The Wall” – que é um dos melhores discos pop da história. Um trabalho desbravador. Michael passa de menino prodígio a melhor representante da música negra americana, firmando-se como seu grande ícone. Off The Wall é primoroso. É maravilhoso. Mas faltava algo. Jackson era ainda um cantor negro, e não simplesmente um cantor. Nos Estados Unidos um cantor negro era “um cantor negro”. Não importa Chucky Berry: Elvis é que foi o “rei do rock”. Não importava Nat king Cole: Frank Sinatra, com seus olhos azuis, era “The Voice”. Então, nos anos 70, por mais que Stevie Wonder fosse genial, os Bee Gees foram mais populares. Acontece que uma revolução silenciosa ocorria na aurora da década de 1980. Embora – o branco – Christofer Cross abrisse as portas da década anunciando 109 um possível porvir, Michael, na surdina, escondidinho dentro de um estúdio, gravava sua obra-prima, “Thriller”, que agora completa 25 anos. Mas por que motivo Thriller é tão importante? Em primeiro lugar pelas músicas em si: neste disco estão “Billie Jean”, “Beat it”, “Human nature”, além da faixatítulo. E há vários outros fatores que fazem de Thriller “o álbum “. Ele é tão bem gravado que ainda que seja ouvido num radinho de pilha na Índia ou no sertão nordestino a sonoridade se mantém boa, dado ao extraordinário equilíbrio entre os instrumentos. E ainda, foi naquele momento histórico para a música pop, que as barreiras entre música negra e branca começaram finalmente a ser quebradas, sendo Michael o primeiro grande ídolo negro da história americana no campo artístico a ser verdadeiramente prestigiado pela população branca. E o disco é essencialmente negro. As concessões a isso são as participações de Edie Van Hallen, que faz o melhor solo de guitarra de sua vida em “Beat it”, e Paul McCartney, com quem Michael divide a belíssima “The girl is mine”. Essas participações não tiraram a negritude do trabalho, entretanto, colaboraram, certamente, para a quebra de barreiras mercadológicas. Afinal, um guitarrista de heavy metal e um “beatle” num disco “negro” foram um tiro fatal no apartheid musical estadunidense. A imagem peculiar de Michael, com seu figurino, seu gestual e sua dança desconcertante, foram, obviamente, determinantes para o sucesso da coisa. Isso sem falar na MTV. Thriller, o álbum, e posteriormente, o histórico 110 clip de 15 minutos, foram concebidos pouco tempo após o nascimento da influente emissora musical. Michael está para o vídeo clip, assim como Shakespeare está para a invenção da imprensa: foram pessoas certas na hora e no lugar certo – aliás, como sempre ocorre com os grandes ícones, que sempre se beneficiam das circunstâncias. O que seria, afinal, de Shakespeare sem o invento de Guttemberg? Um filósofo disse – creio que acertadamente – que a perfeição não existe. Para muitos fãs, Michael esteve bem próximo disso – musicalmente, deixemos claro – naquele começo da década de 80, com seu grande disco. Aquela surpreendente fusão de música eletrônica, soul music e funk, e sons de guitarra, além de magistrais arranjos de cordas, tudo guiado sob a batuta de Quincy Jones – o arranjador com quem, para muitos, deve-se dividir os créditos de Thriller –, encantou os ouvidos do mundo, influenciando toda uma geração de músicos e produtores. E mais. Além de ajudar a quebrar preconceitos raciais que separavam, mais do que se vê hoje, brancos e negros no mercado musical, ele potencializou a música de origem negra, dando voz ao rap, e ao hip-hop em geral. Muitos podem não conseguir fazer a conexão, mas os nossos O Rappa e Marcelo D2 devem muito, e talvez não saibam o quanto, a Michael Jackson. Quando penso em “Billie Jean”, e quando ouço “Billie Jean” eu quase me emociono. Todo o andamento desta canção, o arranjo perfeito, a linda e triste melodia, a atmosfera misteriosa que ela traz. Nesses instantes 111 quase tenho a ilusão da perfeição atingida em forma de música: talvez a batida perfeita que o meu querido D2, cá no hemisfério sul, está procurando até hoje. Diante de tudo o que vimos na historiografia musical do século XX, não poderemos nunca mais subestimar um cara esquisito trancafiado em um estúdio musical: ele pode estar concebendo um furacão. * Revolucionários na estética musical (uma lista com graves omissões – como são todas as listas): Irwin Berlin, Cole Porter, Chucky Berry, Charlie Parker, John Coltrane, Miles Davis, Elvis Presley, Bob Dylan, Jimi Hendrix, The Beatles, James Brown, Luiz Gonzaga, Bob Marley, Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Raul Seixas, Zé Ramalho, Stevie Wonder, Michael Jackson, Chico Science, O Rappa e, (tá bom) Marcelo D2. 112 Entre a MTV e a vinheta do Supercine Minha filha vive me falando que adora a música que toca na vinheta do tradicional programa Supercine, da televisão, que passa filmes sábados à noite. Os filmes normalmente não são os melhores, mas a musiquinha de abertura... Ah, a música é mágica. Vira e mexe, nós dois estamos fazendo aquelas notas com a boca, terminando o tema em vozes diferentes. E aquilo ali é puro jazz. Que música magnífica é o jazz... Contudo, meu relacionamento com a música em geral é, digamos, punk. Música, música. A minha relação com a música está se transformando. Estou tornando-me mais e mais um ouvinte do que um músico. Talvez eu prefira mesmo ouvir, a tocar e cantar. Talvez eu esteja descobrindo isso tardiamente. Talvez eu sempre tenha preferido isso. Talvez eu esteja arranjando esse subterfúgio psicológico auto-sugestivo enquanto não participo de uma nova banda. Vá eu saber. É foda. Banda dá muito trabalho – discute-se muito sobre repertório, arranjos, falhas na execução de músicas, em meio a uma infinidade de ensaios. Aí há sempre um músico mais vaidoso que não aceita bem sugestões ou que gosta de dar sugestões demais. Bandas exigem democracia. Criar em grupo é, na maioria das vezes, um saco. Arte e democracia não são exatamente grandes amigos – ao menos não são 113 amigos em potencial. E quando se fala em grupos musicais, é muita gente querendo pensar junto – não se trata de duas pessoas, mas sim de quatro ou cinco cabeças pensando e querendo mostrar seu pensamento. Já o esquema voz-e-violão para bares e restaurantes, por sua vez, é um saco. Acham que você é obrigado a atender a pedidos das mesas, como se as músicas que a gente executa fizessem parte de um cardápio. E pior: de um cardápio infinito. Além da sensação de solidão no palco, que eu acho bastante incômoda. Estou cansado disso tudo. Talvez eu venha a montar uma banda pra gravar minhas composições num estúdio pessoal – no dia em que eu possuir um estúdio pessoal, pois em estúdios alugados não há bolso que agüente. Quero ter total liberdade com minha música e ter uma relação livre com a música como um todo – uma coisa que eu creio jamais ter conseguido. Acho então que vou, por enquanto, ficar no conforto do meu armário. A emissora MTV está agora sendo transmitida em canal aberto para todas as antenas parabólicas. É só sintonizar – quem tem a antena –e a transmissão está lá. Isso vai determinar um ganho significativo nos seus índices de audiência, já que a transmissão de TV para todo o interior do país é, creio, predominantemente feita viasatélite para as parabólicas. Criada no início dos anos oitenta, a emissora especializada em música pop determinou um novo comportamento da produção musical mundial. Fez parir o rap e ao hip-hop. Deu corpo ao rock também, restaurando suas forças. Embora hoje sem o status e a influência de outrora, a MTV ainda forma opinião – e se não o faz de forma direta, ela ainda 114 influencia o comportamento do seu público, majoritariamente adolescente. Talvez a emissora precise, neste momento, começar a adaptar o conteúdo de sua grade às possíveis exigências do seu novo e vasto público parabólico – o público jovem do grande interior do Brasil. A programação, que não é um primor de boa, pode com isso piorar. Assim como pode, claro, melhorar. Tenho assistido a clips muito bons – 50% dos clips veiculados hoje pela emissora eu considero bons. Há até coisas geniais, que dão uma aula de audiovisual e mostram como o videoclipe evoluiu, junto a algumas porcarias completamente descartáveis, previsíveis e de mau gosto. Há também muito, muito conteúdo erótico com o quadradinho verde e a letra “L” de indicação “livre”. Garotas se esfregando e se beijando na boca às 9 da manhã não é exatamente o que o público de TV aberta está acostumado a ver. Minha filha de 11 anos tem assistido a muito videoclipe com sexo, incluindo vários com cenas de homossexualismo feminino. E eu fico sem saber o que fazer, pois amamos música aqui em casa. Amamos rock. Gosto de ver o interesse dela por música e por arte visual. Mas a velha moral nos segura um pé atrás, claro. Este pé atrás parece preso em cimento. E daí, o que fazer? Quebrar o cimento? Deixar minha filhinha pré-adolescente e quase pura ser conduzida pelo “sagrado” trinômio sexo,drogas e rockand-roll? A MTV está aí, dando sinais de sobrevida. Meus discos de rock continuam também vivos e pulsantes nas minhas caixas acústicas na sala do meu doce lar. E eu estou aqui, preocupadíssimo. E o que faço? Começo a colocar CDs do padre Fábio de Melo e proibir videoclipe? Me responda, meu editor. Ah, que 115 bom se a vida fosse simples e perfeita como a música da vinheta do Supercine. 116 Algo de novo e de velho no ar A estranha e interessante música de 2008 Ainda não ouvi o novo disco de Ed Motta, cantado em inglês, no qual ele toca todos os instrumentos. Preciso ouvi-lo com urgência. Estou, sim, neste instante, ouvindo o interessante trabalho da nova banda de Rodrigo Amarante (ex-Los Hermanos) que se chama Little Joy. Engraçado: não sei dizer se é bom. E olha que já é a minha terceira audição. Esse som está me levando aos “filmes de praia” produzidos nos anos 60, que enfeitiçaram minha infância nas “sessões da tarde”. Remete a coisas boas. Então acho que é bom. Toda a sonoridade do Cd é simuladora da surf music daquela década. Todo em inglês também – com uma única faixa em português. Ok, ele venceu. É bom, sim. Mas não exageremos, pois não é nenhuma obra-prima. E a sonoridade pretendida – e alcançada –, que faz parecer que estamos ouvindo um radinho de um Cadillac conversível com uma prancha de surf no banco de trás, faz com que o trabalho agrade apenas a um público bem específico. Quanto ao super bem recebido disco solo do outro “exhermano” Marcelo Camelo, com o título Sou, aí sim, o 117 buraco é mais embaixo. Harmonias complexas, misturadas a outras simples, tudo soando bastante bem aos ouvidos. Em comum com o projeto de Amarante, o som de Camelo tem cara de coisa velha. A faixa “Menina bordada”, por exemplo – uma das melhores do disco –, poderia ter saído do clássico Clube da esquina, do Milton. Este Sou é, provavelmente, o disco brasileiro mais interessante do ano. Marcelo ousou. Seu disco tem muito pouco que lembre rock. Mas tem. O disco parece uma síntese de suas pretensões que não cabiam na banda Los Hermanos. Tem de tudo um pouco. A faixa “Copacabana”, por exemplo, é uma deliciosa marchinha de carnaval. Inserções assim exigem personalidade, coisa que o tímido e elegante Camelo tem de sobra. Em “Janta”, deliciosa balada folk apenas com violões, o cantor apresenta sua parceira teen Mallu Magalhães, que um dia, tenho certeza, será uma grande cantora – se já não o for. Mallu Magalhães me surpreendeu de verdade. A menina de 16 anos é “virada no diabo”. Toca, compõe, canta em inglês. Seu som folk rock é conduzido com uma leveza que consegue reunir de forma desconcertante inocência, deboche, e uma inesperada sensualidade. Se a menina não é tudo o que disseram por aí, pelo menos a mim agradou muito. Sua música é – saiba-se – muito mais americana que muita música americana que se faz hoje: se é que você me entende. Tomara que a indústria não a transforme em pirulito. Um paralelo interessante com a nossa menina Mallu Magalães, é a mulher Camille Dalmais. A cantora 118 francesa Camille (ela prefere ser chamada sem o sobrenome) lança seu terceiro álbum solo. Revelada pelo grupo de new bossa Nouvelle Vague, Camille é hoje, em minha opinião, a artista mais completa do mundo. O que a menina Mallu e a mulher Camille têm em comum? Primeiramente são mulheres, claro. Ambas têm a voz aguda. Cantam em inglês sem serem estadunidenses ou inglesas. E são talentosíssimas. O novo álbum da poliglota Camille, Music Hole, é deslumbrante. A cantora canta em todos os tons e oitavas imagináveis para um ser humano, experimentando diversos timbres possíveis – e impossíveis. Usa a boca e o corpo como instrumentos de percussão – coisa que faz desde menina: um negócio de louco. Camille brinca de fazer música, e é genial, não há palavra melhor. Ela exala liberdade com seu som inventivo e revolucionário. Ouvi-la me dá tesão – e isso já aconteceu quando a ouvi pela primeira vez no Nouvelle Vague. E andei sentindo algo parecido em relação à Mallu. Camelo que me perdoe. Mallu está se descobrindo como mulher e como artista. Camelo está também em bela construção. E Camille? Camille parece estar pronta. 119 O paradoxo da discoteca única Que cantor você levaria para uma ilha deserta? Propus a uns amigos que eles hipotetisassem algo absurdo. Pedi a cada um deles que se imaginasse como náufrago solitário numa ilha deserta. Com apenas a roupa do corpo e um aparelho de Mp3 de 8 gigabytes – acompanhado ainda de um carregador manual – contendo toda a coleção de discos de um único artista. E fiz a seguinte pergunta: qual cantor (cantora, banda etc, enfim...) você gostaria que estivesse no Mp3 de 8 gigabytes acompanhado de um carregador manual? E eu sei que há carregadores à manivela para celular, devendo haver também para outros aparelhos de pequeno porte. É que na ilha deserta, como todos sabemos, não há energia elétrica. Não em tomadas. O primeiro a se manifestar tinha em torno de 22 anos e disse, pra minha surpresa, Engenheiros do Hawaii. Bem. Hawaai... ilha deserta... há mesmo alguma relação. Eu ouvia muito essa banda nos idos de 1987, e até hoje amo algumas coisas deles. Eu perguntei a ele quantos discos os Engenheiros têm. Ele respondeu: 13. Pensei: são poucos discos pra ouvir por uma vida inteira cercado de coqueiros, mar, e, numa melhor hipótese, 120 esquilos e sagüis. Um outro amigo respondeu Legião. Fãs de Legião Urbana normalmente falam apenas “Legião”. Embora eu, que sou fã, diga Legião Urbana. E eu até que poderia levar os discos do (ou da) Legião Urbana, contudo esbarraria no mesmo problema: não são muitos discos. A possibilidade de enjoar de ouvir é maior quando a coleção é pequena. Outro amigo respondeu Djavan. Uma moça linda disse também Djavan. Uma outra amiga, também bem bonita, respondeu, igualmente, Djavan. Então o placar era Djavan, disparado na frente, com 3, versus Engenheiros e Legião empatados com 1. A conversa tomou maiores proporções e eu ainda não tinha falado o meu. Eu estava em dúvida entre Roberto Carlos, Chico Buarque e Caetano. Não demorei a optar por Caetano: uma obra bastante diversificada em estilos e um bom número de discos lançados – pelo menos o triplo do Legião Urbana. Logo o papo saiu da música e enveredou para pessoas. A pergunta passara a ser: quem você levaria contigo para uma ilha deserta. Mais clichê impossível. Em relação às escolhas, uma coisa pareceu clara ao observar um aspecto delas. Ninguém escolheu um nome da música internacional. Nem Beatles, nem Iron Maiden, nem Madonna. Isso, obviamente, se dá pelo fato de que alguém cantando em português seria uma melhor companhia, alguém com quem se pudesse, de certa forma, dialogar. Pois embora a música seja uma “linguagem universal”, abrir mão de uma companhia que fale a nossa língua em prol de alguém que não compreendemos, não é mesmo algo natural. Então, meu ímpeto de filosofia barata me compele a criar um 121 aforismo: “pra tocar na festa do céu o sapo tem que cantar na língua de Deus”. Mas que bobagem. Pensei em algo. E se, em vez de Mp3, fosse um violão? * 122 Bossa nova punk: Precisamos (?) de uma “Nova bossa nova” que privilegie os milhões de músicos autodidatas do Brasil de Tim Maia “Você é um cara de pau!”. Foi o que me disse um amigo após eu ter-lhe dito que eu toco “Águas de março” ao violão com apenas três acordes. Mas é verdade, eu consigo, e quase não se sente falta de nada. Bem, sentese sim, mas nada que seja empecilho para eu cantá-la até o fim, caso seja necessário. Será que o nosso querido maestro soberano ia gostar de saber de uma coisa dessas? Talvez sim. Eu, se fosse ele, gostaria. É um paradoxo. Ao mesmo tempo que João Gilberto, o cantor “punk” da Bossa nova, deu seu recado claro: você pode cantar em público e ainda fazer sucesso internacional mesmo que seja dono de uma voz “pequena”. Tom Jobim, com sua formação clássica, desafiou a paciência dos violonistas de todo o país com suas canções de trinta acordes compostas ao piano. Então. Cantar como João não é difícil. Não é impossível, pelo menos. Mas tocar o seu maior sucesso – ao lado de “Chega de Saudade” – a anti-cançãoprotesto “Desafinado”, composta por Tom Jobim e Newton Mendonça, aí já são outros quinhentos. Eu tenho até medo de morrer sem antes ter aprendido tocar 123 “Desafinado”. Tenho medo mesmo. Pois a canção é a minha preferida da Bossa nova, e é linda, e eu, definitivamente não consigo. Não consigo, pô! Quanto a João, tive a comprovação de que ele é mesmo punk depois que eu soube de suas declarações de que a Bossa nova não existe nem nunca existiu. Ele chegou a suprimir a expressão “bossa-nova” da letra de “Desafinado” em suas últimas apresentações ao vivo, cantando apenas “... isso é muito natural”. Estou falando de um dos pais do movimento. Movimento? Estilo? Nem sei mais o que dizer diante disso. Fui tocar em um jantar do Rotary Club num sábado desses. Um dos diretores locais – o que me havia contratado para um show de voz e violão – me propôs fazermos em junho próximo um grande jantar de comemoração do seu aniversário de 50 anos, aproveitando os 50 anos da Bossa nova. No tal jantar faríamos um encontro com músicos locais, onde o repertório seria cem por cento – adivinhem – ...bossa nova. Eu não disse nada pra ele. Nem que sim e nem que não quanto a minha participação e sobre a viabilização do encontro. Cá entre nós. Eu acho que ele terá dificuldade em organizar isso. A começar pela falta de músicos locais que tenham um bom repertório de bossa nova. Quase ninguém aqui pelas bandas onde tenho residência – no sul do Estado – toca bossa nova. E quando toca, são só alguns poucos sucessos – não dá uma noite. 124 Então pergunta-se: como se chegou a isso? O estilo que – junto ao samba (e bossa nova não deixa de ser samba) – é o que melhor representa o Brasil no exterior, não consegue ser executado pela maioria dos músicos – e a maioria de nossos músicos é autodidata – que tocam na noite, nos bares que estão no nosso próprio território. Pode haver várias explicações pra esse fenômeno. Quando um músico “da noite” vai a um pequeno palco com seu violão e toca uma canção de Tim Maia com três acordes ele consegue agradar a todas as mesas, e é aplaudido após ter tocado com os olhos fechados a música de harmonia simples e bonita. Agora imagine se ele toca – volto nela – “Desafinado”. Bem. Nem todos vão conhecer a música. Quase ninguém saberá acompanhar a letra. E o músico terá, no máximo, dois aplausos, dos dois músicos profissionais que tomam chope da Brahma, de pé no balcão. Ele vai ficar feliz com o reconhecimento. Vai pensar: valeu a pena aprender os 40 acordes dessa emblemática canção, pois quem entende música gosta e aplaude. Então, para azar do dedicado violonista, na próxima semana estará no bar, em seu lugar, um outro músico tocando Tim Maia, ou então o repertório de covers internacionais de Emerson Nogueira. Salve Tom Jobim e todas as suas maravilhosas criações. Salve todos os realizadores que levam (levaram) o selo “Bossa nova”. Esses grandes compositores e grandes músicos com suas mirabolantes dissonâncias e complexas harmonias não têm culpa de terem sido tão bons. E, em muitas vezes, o que é bom é mesmo difícil – tanto na arte como na vida. Mas, por favor, não 125 façamos disso uma regra. Salve Tom, salve João Gilberto, salve Baden Powell, Carlos Lyra, salve Toquinho, salve Vinícius de Moraes. E salve os punks que tocam “Águas de março” com apenas três acordes. 126 A intimidade do menestrel DVD de Oswaldo Montenegro é comedido, mas não decepciona Quando eu tinha 17 anos, além do rock nacional e internacional – e seus respectivos “pops” –, em matéria de MPB, só existia pra mim Caetano, Chico, Milton, Djavan, Elis Regina, Rita Lee e Roberto Carlos. Só os medalhões. Foi quando comecei a tomar contato, por influência de uns amigos, com a música de Oswaldo Montenegro, de quem eu só conhecia até então “Agonia” – vencedora, para muitos injusta, de um festival da TV Globo –, “Bandolins”, “Intuição” e “O 127 condor”. Mas eu não havia ainda ouvido um disco inteiro de Oswaldo. Eu não sabia o que estava perdendo. Então, mais ou menos a partir daquele momento juvenil, acho que as portas, inesgotáveis, da música brasileira, muito além dos grandes nomes veiculados pela grande mídia, começavam a abrir-se pra mim. Comecei a ver as possibilidades estéticas que nossa riquíssima musicalidade, como nossos inúmeros e maravilhosos músicos, de norte a sul, oferece. Depois de Oswaldo, aí sim, mil nomes começaram a pipocar em minha discoteca e, sobretudo, na minha alma musical. Não é que os nossos “grandes nomes” não sejam ecléticos e não tenham processado também influências múltiplas. É por um motivo que não entendo ainda muito bem que Oswaldo Montenegro foi, com certeza, um dos principais responsáveis por essa “abertura” do meu gosto musical. Engraçado é que hoje eu não ouço mais seu trabalho. Acho que foi uma paixão musical adolescente. Das boas. E paixões antigas fazem eco. E as respeito. O caminho natural dos músicos que buscam sucesso é migrarem para o Rio. Sempre foi assim. Oswaldo Montenegro fez o caminho inverso. Um dos menos “cariocas” dentre os músicos cariocas, ele foi iniciar, “de fato”, sua carreira musical em Brasília. E isto, do carioca, ele mesmo confirma no belíssimo documentário que está no seu Dvd Intimidade, dizendo:“Eu, como compositor, não me sinto carioca. Eu não sou esperto como o carioca, malemolente como o carioca...”. Já tendo ele corrido o Brasil e o mundo, pude ver sua humanidade e “globalidade” num show que assisti no 128 Canecão em 1990. Era muita bagagem musical e teatral, numa mistura de mundo e brasis, com todas as influências cabíveis em um artista, trazidas por ele, a sua casa, o Rio, que o abraçava definitivamente, como se deve abraçar um grande nome da música, um grande e generoso cantor e compositor, um multiartista. Aquele foi um grande show. Era um grande momento da carreira do cantor, depois de ter apresentado ao país anos atrás a canção “Bandolins” e de ter ganhado um festival com “Agonia” e, logo depois, de ter ficado quase uma década meio esquecido. Era uma volta triunfal à mídia, com o gás advindo da inclusão da música “Lua e flor” em uma novela. “Lua e flor” puxava as vendas do seu primeiro disco ao vivo, que já era um grande sucesso. Provavelmente o cantor nunca houvera feito tantos shows na vida. Agora, em situação parecida de ostracismo, Oswaldo Montenegro é um ilustre desconhecido da nova geração. Embora tenha feito entre o sucesso “Lua e flor”, no fim dos anos oitenta, e hoje, pelo menos dois ótimos trabalhos – os CDs Letras Brasileiras – a “imprensa cultural” praticamente não o tem considerado. Agora, o modelo Dvd lhe abre uma nova possibilidade de estar em evidência, ou, pelo menos, de ganhar novos fãs, ou ainda, no mínimo, brindar os antigos com um registro bem realizado de suas canções. Intimidade traz 16 canções de fases diversas da carreira do cantor. O Dvd abre com a simpaticíssima “Pra longe do Paranoá”, como sempre com o acompanhamento da flauta de Madalena Sales. É uma coletânea de sucessos – como não poderia deixar de ser, em se tratando de um 129 primeiro Dvd, com ampla distribuição. Ali tem “Lua e flor”; “Intuição”; a linda, e não tão lembrada, “Aquela coisa toda”; “Bandolins”; “O condor”; “Por brilho”; “Léo e Bia”, esta com a participação de Zeca Baleiro. É bom que se preste atenção na pouco conhecida “Andando e andando em Copacabana”, com sua letra muito divertida. A gravação, da não menos divertida “Sou uma criança, não entendo nada”, de Roberto e Erasmo, relembra um dos melhores momentos da carreira do Tremendão – a música é um achado. Embora oportuno e bem feito, o trabalho tem, ao meu ver, limitações. Estas limitações estão atreladas ao conceito do projeto: a série Intimidade, da gravadora Somlivre – iniciada com o Dvd de Guilherme Arantes – se propõe a gravar apresentações na casa do artista. No caso de Oswaldo, na sala de seu apartamento. O cantor aceitou o convite da gravadora e não tem nada a ver com as restrições do projeto. Mas parece um grande desperdício (ou uma grande “economia”) ver um artista que andava sumido da mídia lançar um Dvd por uma grande gravadora e não poder usar o recurso de um show bem produzido, num grande espaço. E estamos falando de alguém que tem público para tal. Contudo, se a opção e o conceito foi mesmo esse – da ultrasimplicidade –, à qual o próprio título Intimidade remete, fazer o quê? Acontece que o que se faz com o atual trabalho é abusar da idéia de simplicidade: uma apresentação para familiares e amigos no espaço de seu apartamento no Rio – gravada pelo Estúdio Mega –, feita às claras como que num ensaio. É de se esperar que o som tenha sido muito bem captado, e é óbvio que foi. 130 No entanto, como um vídeo musical, e até como discografia, parece bem claro que o Dvd fica devendo. Pouca produção e até mesmo poucas canções. Estas, contudo, são tocadas, todas em arranjos diferentes dos originais – porém irrepreensivelmente – por uma banda de primeiríssima: Oswaldo, que toca violão e um pouco de piano, é acompanhado de Pedro Mamede, na bateria; Sérgio Chiavazolli, violão e bandolim; Alexandre “Meu Rei”, no baixo; Caíque Vandera, no piano; além da inseparável Madalena, na flauta e teclados. Ponto alto – O que mais faz valer a pena no Dvd é – o que poderia ser um contra-senso, mas que hoje é plenamente aceitável – o que vem de bônus. Muito mais que um making of da apresentação, o que Intimidade traz como extra é um pequeno, porém tocante, documentário sobre a vida e a obra de Oswaldo. Seu começo de carreira, seu namoro com Madalena Sales – sua grande parceira musical –, relatos das excentricidades do inquieto artista, como um pequeno apartamento que ele mesmo pintou com cores variadas todas as paredes e teto, como quem grafita um muro, num desabafo criativo. Houve quem o chamou de maluco por isso. E sobre loucura, música e sua união com Madalena Sales, o cantor declara: “Na primeira vez que Madalena veio tocar com ‘a gente’ eu senti que era a minha chance de não ir para o hospício”. O ator Oswaldo diz ao público na Oficina de montagem de musicais que em teatro ‘vale tudo’, em teatro ‘pode tudo’, mas que, entretanto, ‘atuar não é mentir’. Ele, que a tantas pessoas deu sua primeira oportunidade como artistas de ingressarem no meio. Se Oswaldo é o 131 teatrólogo que não mente, não faz diferente como cantor e compositor. Quem o conhece não consegue perceber divisão entre o homem e o artista. Esses entes seriam nele, em tempo integral, uma coisa só. A última imagem do Dvd é do cantor junto à sua atual esposa Paloma Duarte e Madalena Sales, com quem está abraçado. Os três estão unidos num pequeno momento íntimo: Oswaldo, a ex-namorada e Paloma demonstram uma fina intimidade, uma, mais que cordial, amorosa intimidade. E, convenhamos, isso é lindo. Enfim, vale a pena conferir. 132 Mar, reflexivo mar Paulinho e seu canto das águas: isso é lindo “...a rede do meu destino parece a de um pescador, quando retorna vazia vem carregada de dor”. Timoneiro (Paulinho da Viola/ Hermínio Bello de Carvalho) Seria mesmo de se esperar que o menino criado em Botafogo viesse no futuro escrever lindas canções que falam sobre o mar. Imagino o bairro naquela época – antes da grande especulação imobiliária que saturou até o máximo suportável a cidade do Rio de Janeiro – , com os barcos de pesca a predominar a paisagem, em vez dos iates de hoje. Imagens vistas em nossa infância nos acompanham pra sempre: cada um de nós tem seus belos fantasmas pessoais, feitos de natureza viva ou morta. Hoje, o menino está com os cabelos branquinhos. E não é que dizem que ele está mais bonito assim... Ao lado de minha filha Juliette, assistindo a Paulinho da Viola, na véspera de natal, no Dvd, ouvi dela a seguinte observação: “Nossa! Todas as músicas dele falam de água”. Todas não é verdade. Foi um exagero precipitado do olhar infantil. Na verdade só algumas canções dele 133 têm esse tema, dentre uma vasta obra. No entanto, o assunto está, sim, presente em versos de várias de suas canções. E o fato de serem estas canções tão belas pode ter influenciado a fala de minha pequena. Talvez as canções “marítimas” de Paulinho estejam, de fato, entre suas melhores. Às vezes é o mar, às vezes um rio, um barco, uma tempestade: a água está lá. E como o mar e a água são capazes de dar luz a grandes e ricas metáforas sobre a vida cotidiana... E isso é lindo. Na canção (usarei a palavra “canção” em vez de “samba”) Timoneiro, de 1996, ele canta: “e quanto mais remo mais rezo pra nunca mais se acabar / essa viagem que faz o mar em torno do mar / meu velho um dia falou, com seu jeito de avisar: olha, o mar não tem cabelos que a gente possa agarrar...”. Esta é uma das mais lindas poesias cantadas já produzidas pela música brasileira que levam a palavra mar. O refrão então (“não sou eu quem me navega / quem me navega é o mar...”), se distingue do que normalmente se ouve em letras de sambas convencionais, pela sutileza, pela riqueza metafórica, pela surpresa. Fica claro que uma letra como a de Timoneiro, ao falar sobre quem vive do mar, e sobre o mar em si, está propondo, na verdade, uma reflexão sobre as angústias comuns à vida de qualquer pessoa. No, provavelmente, maior sucesso da carreira de Paulinho da Viola, Coração Leviano, gravado em 1978, já estava lá o mar: “este pobre navegante / meu coração amante / enfrentou a tempestade / no mar da paixão e da loucura / fruto da minha aventura em busca 134 da felicidade...”. Uma coisa muito legal deste samba, digo, desta canção, é a capa do disco original em que ela está gravada. Ela está aqui nas minhas mãos neste momento. É um vinil, obviamente, e a capa é daquelas duplas, que abrem. Na contracapa e no meio, um cavaquinho em processo de manufatura, numa bancada, em meio a várias ferramentas. E penso: quem poderá me responder se as mãos que fabricam aquele instrumento são de Paulinho? Não sei. Na foto, elas me parecem mãos meio rudes. Entretanto, como todos sabemos que ele é um grande aficionado de trabalhos manuais, é possível que seja mesmo ele quem monta o cavaquinho. É uma das mais lindas capas que já vi. Mas isso não tem nada a ver com mar. Pelo menos, a princípio, não tem. Acontece, ainda, que, muito antes disso, lá no comecinho da década de 1970, Paulinho da Viola já se consagrava como compositor de samba, usando a água para falar de amor e de carnaval, com o seu grande clássico Foi um rio que passou na minha vida. Os versos que fecham o grande samba (agora, neste caso, sim, só posso mesmo usar a palavra samba) são pura maravilha: “não posso definir aquele azul / não era do céu, nem era do mar / foi um rio que passou em minha vida / e meu coração se deixou levar”. Mais água – Em Onde a dor não tem razão, o sambista canta: “canto / pra dizer que no meu coração / já não mais se agitam as ondas de uma paixão / ele não é mais abrigo de amores perdidos / é um lago mais tranqüilo, onde a dor não tem razão...”. No “sambaexplicação”, que critica os sambistas “excessivamente 135 modernos”, Argumento, lá está o sábio conselho: “faça como um velho marinheiro, que durante o nevoeiro leva o barco devagar...” A mensagem do verso tinha endereço certo: os sambistas apressados em transformar o samba – na ocasião, alguns nomes da MPB (sambistas “de fato” ou não) abusavam de recursos pouco tradicionais, como a inserção do teclado eletrônico, modificando tremendamente a sonoridade daquilo que concebemos como samba. Uma discussão polêmica. Na verdade, um estilo musical não depende de instrumentos específicos para se caracterizar, mas sim o ritmo é preponderante neste caso. Contudo, discussão de estilo à parte, é muito fácil ver a versatilidade de um verso como este de Argumento e sua aplicabilidade em várias situações. Isso é mais que um verso musical. É algo muito próximo de um provérbio chinês ou bíblico. A figura do “velho marinheiro” evoca sabedoria, e, conseqüentemente, paciência – coisas que emanam dos olhos do compositor. Coisas das quais se precisa cada vez mais, nesta vida tão veloz e precipitada. Na lindíssima Quando o samba chama, de 1996, lá está o amor, e o mar: “o que era sonho / pétalas no mar / logo é transpiração...”. Em Mar grande, do mesmo ano – dispensarei comentários e transcreverei a letra: “se navegar no vazio é mesmo o destino do meu coração / parto pra ser esquecido / navio perdido na imensidão / lobo do mar / timoneiro / me leve pro sol / quero outro verão / não quero mar de marola / das praias da moda, na arrebentação / quero um mar alto, um mar grande / por favor não me mande de volta mais não / não quero cais / outro porto / não mais o mar 136 morto da minha ilusão / prefiro ir à deriva / me deixe que eu siga em qualquer direção / se eu sou de um Rio marinho / o mar é meu ninho / meu leito e meu chão / se navegar no vazio é mesmo o destino do meu coração”. E, por fim, recentemente, até novos parceiros adotaram o mar. Ao colocarem letra em uma melodia feita por Paulinho, sob encomenda despretensiosa deste, Marisa Monte e Arnaldo Antunes, ao escreverem Talismã (em sua primeira parceria com o sambista) utilizaram estilo muito próximo do que o próprio Paulinho da Viola faria: “eu não preciso de talismã / nem penso em meu amanhã / vou remando com a maré...”. Remar com a maré, não contra ela. É isso que Marisa e Arnaldo fizeram ao escrever algo tão simples e “pauliniano”. Talismã, assim como algumas das canções citadas aqui, está no novo trabalho de Paulinho da Viola, que é o Acústico MTV. É este o Dvd que eu assistia com Juliette. Quando eu ouvi dizer que ele estava lançando um Acústico MTV, eu pensei: até você, Paulinho? Achei descabido, já que sua música sempre fora acústica – nunca ouvi um samba dele com guitarra. E, como sabemos, a idéia desses projetos da MTV é, basicamente, que os artistas mostrem versões acústicas para canções que originalmente continham instrumentos elétricos em seus registros, sobretudo guitarra elétrica. Assim como também sabemos que a idéia original da emissora já foi pras picas há muito tempo. Mas, tudo bem. Se o Paulinho quer, se quis participar, deixa ele. Ele deve saber o que está fazendo. Afinal, é uma oportunidade que ele tem de ver sua música divulgada no país intero, e até no exterior, com mais eficiência que 137 os discos “normais”. Uma produção cara, bem cuidada, enfim, um convite difícil de se recusar. E o negócio ficou mesmo muito bom – eu já vi umas seis vezes, no mínimo. Há ainda no Dvd outros destaques, como Dança da solidão; o inesquecível – e deslumbrantemente filosófico – tema novelesco Pecado capital; a irônica Eu canto samba, aqui num arranjo sofisticadíssimo, trazendo a notícia: “...há muito tempo eu escuto esse papo furado dizendo que o samba acabou: só se foi quando dia clareou”; o delicadíssimo pot-pourri de voz e violão com trechos de 14 anos, Jurar com lágrimas, Recado e Coisas do mundo minha nega; e a – não existem muitas outras formas de tratá-la – obra-prima Sinal fechado, uma música que destoa bastante de tudo o que ele já criou. A letra de Sinal fechado é sutilmente cantada em duas pessoas que dialogam, numa única voz. Este último trabalho de Paulinho, que, na verdade, é o seu primeiro Dvd exclusivamente musical, é um convite a novos fãs; gente que precisa descobrir o grande artista, grande compositor, e cantor de voz mansa e macia. Para os antigos, o Dvd representa a possibilidade de deliciaremse com os velhos sucessos, e alguns não tão velhos, num som de inigualável captação – todo grande compositor merece uma gravação dessas. Sendo assim, boa sorte a Paulinho da Viola. E “Viva o Paulinho da Viola”. Do Rio para o mundo. Ou melhor, do rio para o mar. 138 A ditadura perpétua do rei Roberto Carlos vale mais que um título besta Ainda bem que a monarquia musical não é hereditária. E melhor ainda que Roberto Carlos não tenha filhos aspirantes ao título de rei. Esta babaquice de rei começou, na história da música pop, se não me engano, com Elvis, “the king”. O obstinado rapaz Roberto, de Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, traçou seu caminho em linha reta sobre o terreno torto do mundo pop. Impulsionado por uma infância e adolescência traumática e, claro, por um talento esplêndido, ele foi desbravando caminhos e abrindo portas. Então o descobriram. Já com uma enorme popularidade e prestígio, ele liderou o “movimento” Jovem Guarda, que na verdade se confunde historicamente com o programa de TV comandado por ele no final dos anos sessenta. O programa – que também se chamava Jovem Guarda – apresentava os cantores e cantoras de “iê-iê-iê”. Este termo é uma alusão ao refrão da música “She loves 139 you”, dos Beatles: “...she loves you, yeah, yeah, yeah”. Assim a Jovem Guarda se popularizou, como uma espécie de rock-and-roll brasileiro. Enquanto Caetano, Gil, Mutantes – e toda a turma tropicalista – faziam uma música moderna processando influências, a turma de Roberto fazia seu pastiche de rock. Um tipo de rock aguado. Eu não sou apreciador da Jovem Guarda. Salvo Roberto e Erasmo, não consigo gostar de mais nada do que aquelas pessoas produziram. Um grande e querido amigo meu, belo pesquisador musical, Luciano Neto, jornalista, outro dia me deu as gravações – acho que todas – do grupo Renato e Seus Blue Caps. Fico super constrangido em dizer a ele que não gostei muito do que ouvi. E também não curto muito a fase inicial dos Beatles. Amo os Beatles a partir de “Help”. Mas o roquezinho do início da carreira não acho tão bom – talvez os ótimos Beach Boys fizessem aquilo melhor. É só uma opinião, por favor, não queriam me trucidar. Apesar da bobagem da Jovem Guarda, Roberto fez na época discos soberbos, magníficos, revolucionários e quase impecáveis. Com o disco de 1971, que contém a música “Detalhes”, Roberto e Erasmo Carlos se distanciam da estética que norteava o movimento. Arranjos mais rebuscados, delicados e letras mais intimistas e menos superficiais são ali apresentadas. Esse afastamento de Roberto parecia – e assim foi – decretar o fim da jovem Guarda. Contudo, a sofisticação não comprometia a inteligibilidade das letras, que continuavam acessíveis ao grande público. Nascia, ou melhor, definia-se o maior cantor romântico do país. Um contrato com a Rede Globo faz de Roberto um 140 milionário. Como obrigação, um programa de TV por ano: só isso. Como é até hoje. Então, vejam a combinação: um disco por ano, lançado estrategicamente em dezembro pela CBS, com o programa de TV impulsionando as vendas do disco. E funcionava mesmo. Uma máquina imbatível. Um rei que lança um disco por ano, sem falha, todos os anos, como um operário rico. Os súditos do rei que usam, a cada dezembro, parte do décimo terceiro salário para, numa corrida desenfreada às lojas, comprar o novo, e normalmente bom – mas isso não importava –, disco do monarca. Nas festas natalinas o disco do rei tocando na vitrola. Em todo o Brasil, ele estava ali, onipresente, no momento mais emocionante da família: a reunião para a ceia de natal. Tudo armado pra dar certo. Uma verdadeira fonte inesgotável de dinheiro. Roberto Carlos não tem culpa disso. Elvis não teve culpa de ter ficado milionário. Lennon e McCartey também não. Todos eles foram musicalmente muito talentosos, de fato. Fico até com um receio de usar a forma verbal “foram”. Mas tem algo chato nisso de dar tanta prioridade a uns poucos. A sacanagem – ou necessidade – de eleger “o cantor”. Roberto silenciou ótimos cantores e compositores românticos contemporâneos seus. Não que ele pretendesse fazer isso. Foi a máquina. Por mais que um cara cantasse bem e compusesse bem, como se confrontar com uma indústria áudio-visual que girava em torno de um grande cantor romântico, que tinha privilégios como mixar discos nos Estados Unidos, com direito a um programa anual na TV, divulgado e aguardado como “o 141 programa”? E foram tantos os cantores românticos talentosos em nossa música, que nos anos setenta seguiram uma linha parecida com a de Roberto e para os quais a indústria fonográfica nunca deu a importância devida: Fernando Mendes e o falecido Paulo Sérgio são exemplos. E vários outros grandes foram ofuscados pela sombra espessa e poderosa do rei, como o próprio Fábio Júnior, que apesar de seu público cativo, tem motivos pra se ressentir do pouco caso da indústria. Está-se falando de cantores “românticos” – atém-se aqui a falar deles. Mas é claro. Tudo já estava armado para que a massa pobre comprasse, além do feijão e do arroz diários, um LP do Roberto por ano. E um LP era uma coisa cara. Não se comprava LP pirata ou se baixava na rede. A concepção de disco pirata era outra – e isso é uma outra história. Pois bem. Enquanto outros artistas lutavam pra tentar vender um compacto, Roberto, sem esforço, vendia LP. Fazer o que? É assim mesmo. É a cultura de massa. Até hoje eu sinto prazer em ouvir os discos do cara. Aqueles gravados antes da metade dos anos oitenta, claro. Pois depois disso a queda de qualidade foi considerável. Mas os discos antigos eu adoro. Passei toda a minha infância imitando Roberto Carlos. Eu imitava bem. Eu chorava com as letras. Emoção pura e verdadeira. Ele me proporcionou algo como uma “educação sentimental”. Ele me ensinou sobre amor, sexo e dor. Uma criança, um taxista ou uma empregada doméstica não querem saber das artimanhas do mercado. Eles querem é ouvir algo que lhes toque o coração. Roberto encontrou o tom de se fazer isso. 142 Hoje nosso (anti?) herói vende bem menos. “Musica baiana de pular”, sertaneja e similares são mais comerciais. Quanto ao título de rei... Não. Ele não merece, não. Tampouco nos dias atuais, quando ele se encontra em franca queda de popularidade. Aliás, ninguém merece título de rei. Vamos parar com essa bobagem. Eu queria que ele me ouvisse: “– Roberto. Você é muito mais que esse título idiota que lhe foi conferido. Tome uma atitude, meu irmão. Rompa o contrato com a Globo, dê uma banana pra sua gravadora e vá fazer música quando estiver inspirado, sem essa de obrigação. E proíba que o chamem de rei. Isso é aviltante, é imoral, isso “engorda”. Se bem que neste último ano ele deu sinais de um retorno à lucidez, gravando com o Caetano o disco com músicas do Tom Jobim. Enfim um pouco de bom gosto e bom senso. É isso o que eu quero: ver o rei se desnudar, chutar a coroa, descer do trono e viver seus dias como um grande artista popular desbravador e rompedor de portas como um dia foi. * 143 O Gênio Cara-de-pau Roger Waters fará chover no molhado seu rock pra brasileiro ver Cenário musical para depois do carnaval: o lançamento nacional do Acústico MTV do carioca Lobão e o megashow do inglês Roger Waters, na Praça da Apoteose. Sobre o primeiro eu já falei um tanto – e é claro que voltarei a falar quando o disco sair e eu, assim, ouvi-lo. Aí vou dizer, ainda que não faça a menor diferença, se o disco é bom ou ruim. E sobre o segundo, o cantor inglês... vou te contar um negócio... Ora. Que o cara foi foda não se tem dúvida. A pergunta é se ele ainda é. Waters foi um dos autores e o “mentor” de duas – lá vai o jargão mala – “obrasprimas” da música, que são o maravilhoso álbum The Dark Side of the Moon e o não menos maravilhoso The wall, que depois virou um instigante filme de Alan Parker, onde Waters foi roteirista e quase um codiretor. Um dia Mr. Waters resolveu abandonar o Pink Floyd. A crítica internacional especializada foi com ele na sua viagem solo. Mas só ela. Pois os amantes do bom rock e da boa música em geral, continuaram mesmo é ouvindo os discos do Pink Floyd. É claro que há os Maria-vai-com-as-outras mundo afora que renegam a banda depois da saída do cara. Muitas vezes a pessoa 144 nem entende inglês e sai repetindo o que os críticos musicais metidos a besta dizem, como: o Pink Floyd sem Roger Waters não conseguiu mais escrever boas letras. Eu, que não falo inglês, acho que o grupo fez coisa interessante depois da saída dele, sim. E os jovens do mundo inteiro assistiram a grandes espetáculos proporcionados pelo grupo sem sentirem falta de ninguém. Muito pelo contrário: os shows jamais decepcionaram, parecendo completas sinfonias mágicas de som e luz. E o seguinte é esse: 90% das pessoas que vão à Apoteose, vão para ouvir os clássicos do Floyd. Não fossem os preços salgados (que saudade do Rock in Rio a 35 reais) até eu iria – embora eu e a maioria preferiríamos ir ver David Gilmour com sua voz doce, grave, levemente rouca, e sua guitarra alucinógena. Agora... que cara de pau do Roger. A primeira parte do show vai ser de sucessos e a segunda uma apresentação – na íntegra – do álbum The Dark Side of the Moon. Caramba! Exatamente como fez o Pink Floyd em Pulse. Os antigos amigos de banda devem estar achando isso muito engraçado. A tempo. Ouço com muito prazer In the Fresh – Cd duplo ao vivo de Roger Waters, com as grandes canções da banda mais influente do rock progressivo, que ele ajudou a popularizar, compondo, muitas vezes (sejamos justos) sozinho, coisas sofisticadíssimas e de grosso calibre. 145 Tropicália vive Nossos hippies são melhores que os deles? Faz “mais ou menos” 40 anos do movimento tropicalista. Não sou exatamente o que se pode chamar de uma enciclopédia musical, e também não vivi os dias “tropicais” de Caetano, mas, ainda assim, o que vai aqui, por sugestão de Daniel Rodrigues, não chegará a ser desinformativo. Não tenho o poder de desconstruir algo tão emblemático. E nem quero. Acho até que se me perguntarem qual meu cantor preferido eu responderei: Caetano Veloso. Mas não me perguntem isso. A cultura anda em círculos – como tudo. Assim são os movimentos culturais de maior ou menor relevância. Visto isso, penso: será que agora, nessas voltas que o mundo dá, é a vez de o primeiro mundo chupar da nossa fruta, da mesma forma que fizemos com eles no passado? É que todos sabemos que os beatniks, as jaquetas de couro, o jeans, e, por fim, os hippies e os Beatles (todo esse caldeirão da Contracultura) influenciaram profundamente a música, a literatura, as artes e o comportamento de todo o mundo. Não se pode negar que toda a Tropicália foi fortemente influenciada pelos 146 gringos. É simples: no âmbito musical, existiriam os Mutantes sem os Beatles? Não creio. Alguém crê? Os anos 60 foram realmente os mais marcantes dos quais se tem notícia no tocante à cultura jovem. É muita coisa ao mesmo tempo: popularização da guitarra elétrica, da maconha, da pílula anticoncepcional, a revolta contra o super-poder dos pais – e essa revolta convertida em protestos contra tudo e todos. Como, por exemplo máximo, contra a Guerra do Vietnã. Esses protestos foram o grande laboratório para todo e qualquer movimento de protesto envolvendo a juventude até hoje. A Guerra do Vietnã gerou o embrião, que cresceu, se multiplicou e transmutou. Nesta onda nasce o Tropicalismo. Mas reduzir o movimento ao nível de um protesto seria tolice. O Tropicalismo retomou o conceito de “antropofagismo cultural” da Semana de Arte Moderna de 1922, e acabou por preencher, dessa forma, uma grande lacuna de décadas praticamente sem vanguardas brasileiras – exceto o “Cinema Novo”. No que diz respeito ao “hippismo”, podemos ressaltar algumas diferenças entre os nossos hippies e os de “lá” (primeiro precisamos concordar que, relativamente falando, o Tropicalismo está para o Brasil, assim como o movimento hippie está para Estados Unidos, Inglaterra e França nos anos 60). Enquanto a contracultura estrangeira ocupava-se bastante com coisas como misticismo oriental e astrologia – a expectativa para a vindoura “era de aquário”... – , os 147 “nossos hippies tropicais” tinham uma postura mais irreverente. Aliás, ultra-irreverente. E essa irreverência apontava inclusive para o próprio umbigo nacional – é claro que a “coisa” com as “bananeiras” foi um grande deboche. Um “respeitoso deboche”. Sobre a música que se fazia, enquanto os norteamericanos e ingleses insistiam com seu rock e folkmusic locais, por aqui o buraco era mais embaixo: o Tropicalismo nutriu-se, sem preconceito, da música vinda de fora e, despudoradamente, vestiu nosso cancioneiro mais tradicional e ritmos regionais com esses tecidos importados. Mistura de ritmos, sons, imagem... A “globalização cultural” chegara ao Brasil, mas vestida por nossos próprios alfaiates: Hélio Oiticica, Caetano Veloso, Rogério Duprat, Mutantes, Gilberto Gil, Tom Zé, Walter Franco, Torquato Neto... Hoje, meio que timidamente, parece haver um movimento contrário. “Eles” começam a fazer seu próprio “tropicalismo”, nutrindo-se do nosso – e, importante, reverenciando-o. O que fizemos há 40 anos, importando tendências e as processando em nossos liquidificadores G.E. brasileiros, vários artistas estrangeiros começam a fazer agora. David Byrne, exlider da banda Talking Heads deu o pontapé inicial nos anos 80, em seu namoro com a música brasileira e a Tropicália, via Tom Zé. Depois foi a vez do surpreendente Beck. Depois o “filho pródigo” Sean Lennon foi também um simpatizante. E, por fim, o artista mais brasileiro da atualidade, Devendra Banhart – o tropicalista da vez. 148 Resumindo. O que Caetano e sua trupe já sabiam no fim dos anos 60 e início dos 70, os gringos parecem estar descobrindo hoje – que é bom ter uma refeição com alimentos multicoloridos. Incluindo banana nanica, obviamente. Que façam bom proveito. 149 A mulher que diz sim Vanessa da Mata canta e escreve femininamente “Sim” é o título do novo disco de Vanessa da Mata, cantora que cantou como ninguém a visão do romantismo feminino na música “Ai, ai, ai”, do seu trabalho anterior. Agora, com este “Sim”, ela nos apresenta um álbum 100% autoral – coisa rara entre cantoras brasileiras. Todas as canções são de autoria dela. A moça está com tudo: parte do Cd foi gravada na Jamaica; há a participação especialíssima de Ben Harper, que surpreendeu e encantou a todos (um paralelo para tal feito seria a participação de Stevie Wonder no álbum “Luz” de Djavan, em 1982); tem ainda as participações de João Donato, Wilson das Neves – o baterista preferido de Chico Buarque –, Davi Moraes, Kassin, e uma turma de gringos que sabem o que estão fazendo. O regae se sobressai em “Sim”. Não seria descabido colocá-lo na sessão de regae de uma loja de discos. Tudo nele é muito rítmico, mas Vanessa vai muito além disso. Ela vai no samba, vai na balada-pop, vai no eletrônico, mas tudo sem que seu trabalho – que é MPB, obviamente – perca a unidade estética sonora e conceitual: a linha romântica que permeia todas as 150 gravações. O ritmo jamaicano é central no disco, é verdade – apesar da salada de estilos. Mas a tal unidade é reforçada pelas letras da compositora. Vanessa faz aqui uma crônica de relacionamentos amorosos: das 13 canções, apenas a faixa “Absurdo” não fala de amor. No mais, todas as músicas abordam a experiência homem-mulher. Hora com um tom de paixão, hora desilusão. Suas letras simples e poderosas podem se encaixar facilmente no cotidiano, pois são muito diretas e objetivas – sem deixar de lado uma refinada poesia. Elas me fazem lembrar as melhores canções do Roberto nos anos 70, pela facilidade em se poder encaixá-las no dia-a-dia de qualquer mulher ou casal, como retratos da vida real. Isso se dá, milagrosamente, sem soar brega. Bom lembrar que tudo o que ela escreveu para “Sim” é essencialmente feminino, com o que há de mais bacana em uma ótica feminina para abordar com arte temas do cotidiano de uma mulher: com delicadeza. Se Vanessa da Mata continuar compondo e cantando desse jeito – é uma das mais belas vozes dos últimos dez anos –, ela vai acabar se tornando a grande cantora-compositora pela qual a música brasileira tanto vem clamando há um bom tempo. Potencial para agradar de montão, ela tem. Agora só falta o mercado retribuir o sim. 151 152 2. O que está aconte cendo? 153 154 Amando o verão Aqui estou eu dentro do verão. O verão que me apaixona. O verão que quase me entorpece. E o que vou escrever agora é, seguramente, para ser publicado na Internet. Talvez no ótimo portal de variedades para o qual colaboro sobretudo como cronista musical, talvez para o também ótimo site destinado prioritariamente a escritores amadores, semiprofissionais e afins – e tal site tem sido há um bom tempo uma espécie de diário pra mim. Um diário psicopoético, pois não escrevo memórias e acontecimentos nele da forma linear como se faz com diários, mas sim em forma de poesia, na maioria das vezes. Parece não haver mais tempo na vida para diários de papel. O verão sempre me lembra a minha infância. Uma infância de menino do interior a nadar destemidamente e com um prazer inenarrável em rios de águas quase sempre barrentas. No caminho para tais “balneários” eu ia pelo asfalto quente – que já derretia em alguns pontos – com minha bicicleta enorme e velha. Às vezes eu ia meio que sem destino e adentrava em certas estradinhas 155 escuras pra saber que o tinha no final. Muitas vezes o que eu encontrava no final de uma dessas vias misteriosas eram cães muito bravos a guardar sítios e fazendas. Então corríamos em disparada. Às vezes me vinha – a mim e a meus dois ou três companheiros de jornada – uma tempestade. Uma vez deixei meu irmão de criação horrorizado quando uma enorme tempestade nos acometeu subitamente e eu disse “graças a Deus!”, para seu espanto – ele, bem mais velho que eu, estava aterrorizado com a violência da água e dos trovões. Ele não compreendeu o meu enorme prazer ao receber contra o rosto e o peito aquela enxurrada de água gelada apesar dos riscos das descargas elétricas a ameaçar os cabos e galhos que margeavam a estrada, e a ameaçar nossos corpos. Naquela época, o que eu pensava sobre aqueles adultos que viviam a dizer coisas do tipo “bons eram os tempos de criança”, é que eram uns babacas otários. Eu doido pra ser logo grande e poder fazer “de tudo”, enquanto eles ficavam reclamando do mundo adulto naquela atitude ingrata. Hoje cá estou: um adulto no verão. E o que eu penso? Como era bom meu tempo de criança. Hoje tenho que calcular os riscos de uma tempestade. No entanto, continuo, sim, amando a chuva. E, tenho certeza, ainda topo tranqüilamente um passeio daqueles. 156 Pós-modernidade chega às telas Blade Runner – Caçador de Andróides inaugura, tardiamente, nos anos oitenta, o cinema pósmoderno em Hollywood Em 1982, ano em que Blade Runner foi lançado em nossos cinemas, eu estava tão envolvido com o estudo do sexo oposto que nem tomei conhecimento do filme. Com 12 anos de idade, Sessão da Tarde, filmes de terror e revistas de sacanagem me interessavam muito mais que qualquer estética cinematográfica revolucionária. Então, só muitos anos depois, numa reapresentação, é que fui, já na condição de cinéfilo, assistir a Caçador de Andróides na telona. E o que senti naquela poltrona do velho cinema é indescritível. A primeira cena do filme já é acachapante: uma torre cuspindo fogo no céu escuro de uma cidade fria, caótica e futurista, com a bela, forte e perturbadora música de Vangelis ao fundo. Ao fundo nada: a música do grego 157 Vangelis, que está em todo o filme, aparece muitas vezes em “primeiro plano”, transcendendo à cena em si. A cidade de Los Angeles do futuro, com seus prédios piramidais, seus veículos voadores, feita em maquetes, soa mais real que estas animações feitas com uso de computação gráfica de hoje em dia – uma maquete é tridimensional naturalmente e sua presença física é um fato, diferentemente de alguns efeitos cansativos de computador, que quase nunca conseguem um realismo convincente. Falar da estética de Blade Runner – Caçador de Andróides é pôr lenha em um tema que serve a várias teses, dado o tamanho da riqueza visual e sonora exposta naquele trabalho. Contudo, som e imagem é pouco. Tudo em Blade Runner serve como material de estudo. O filme propõe um estudo sobre a contraluz na fotografia de cinema. Se quisermos uma síntese do cinema noir, ali está. Se quisermos um estudo sobre a presença do anti-herói no cinema; se o caso for estudar a possibilidade do estabelecimento do caos nas sociedades do futuro; ou a revolução das máquinas – como só no primeiro Matrix se fez algo de bom nível – ; se o assunto for a própria pós-modernidade; se pretende-se fazer um estudo sobre a morte e a imortalidade, o que, pra mim, são os temas centrais do filme... Enfim, Blade Runner é um “filme-estudo”. O autor da estória de Caçador de Andróides é o falecido escritor Phillip K. Dick, criador também das narrativas filmadas em Total Recall, de Paul Verhoeven, e em Minority Report, de Steven Spielberg. Mas o pioneiro 158 em filmar Phillip Dick foi mesmo o irregular cineasta Ridley Scott, que tem em seu currículo um outro marco da ficção-científica, que é Alien, o Oitavo Passageiro, além do mega-sucesso Gladiador. Contudo, é indiscutível que o ponto alto de Ridley Scott foi mesmo Blade Runner. Foi naquele momento que o criativo, produtivo e injustiçado autor de ficção-científica, Dick, foi revelado ao mundo em sua primeira e mais contundente adaptação para o cinema, através da lente caótica de Scott. A trama de Blade Runner não é complexa, ao contrário do que alguns pensaram. Um “caçador de andróides” é contratado para encontrar e exterminar um grupo de replicantes (como são chamados os andróides do filme) que fugiram de uma colônia, numa rebelião. Em sua caçada, ele, o detetive Deckard – vivido por Harison Ford –, faz uma imersão na L.A. abandonada, úmida e marginal do futuro. Num futuro em que só as classes menos favorecidas habitam a Terra. As pessoas com poder aquisitivo iriam morar em marte. No percurso, apaixona-se pela replicante Rachel (Sean Young). O tema composto para o casal é uma das mais lindas e inebriantes músicas de amor compostas para cinema, com uma delicada melodia feita no saxofone – hoje o tema é tocado em propagandas de motel. O sax da canção faz um bom contraponto com o resto de toda a trilha do filme, que tem bases predominantemente eletrônicas. Aliás, o contraste é a tônica de toda a obra. O contraste relativizando bem e mal é um exemplo disso: os vilões do filme – no caso os andróides – parecem mais humanos que as pessoas de verdade. 159 Estava em Blade Runner a materialização da chegada da pós-modernidade ao cinema americano, onde – ao contrário do que se propunha com aquela “Era Reagan”, com os seus “Rambos” – o maniqueísmo foi descartado sem receios, primando-se o questionamento. 160 Da série "Clássicos pós-modernos" Clube da Luta é um chute no pescoço: neurônios podres no ventilador Violência no cinema não é coisa nascida no final do último século. É um negócio muito mais antigo. Afinal, o que foi o western? Pedagogos não cansam de falar da violência da TV e no cinema e de como isso é negativo como influência para nossas crianças e jovens. Para alguns, o fenômeno Rambo, cria da era Reagan, parece ter sido o fio divisório entre o entretenimento “sadio” e a produção audiovisual de violência gratuita. Não sei não. Não sei se Rambo é mais violento que o “Pica-pau”. De qualquer forma, podemos citar alguns filmes pósRambo que souberam explorar, de forma crítica e inteligente, a violência nas telas. Oliver Stone, com Platoon, Nascido em 4 de julho, Assassinos por natureza; Martin Scorcese, com Os bons companheiros, Cassino; e até mesmo o tão criticado Quentin Tarantino, com seu Pulp Fiction e seus dois volumes de Kill Bill. O primeiro – Oliver – usou seus filmes para cicatrizar (ou cutucar) feridas suas (ou da América). Já Scorcese 161 quis mostrar as entranhas do crime organizado, seu glamour e suas teias. Tarantino pretendeu mesmo é debochar da violência no cinema – e para tal, usou de ultra-violência, uma violência, além de cômica, quase surreal. Dentre os muitos filmes “violentos” produzidos por Hollywood, há um que se destaca. Não pela pancadaria e pirotecnia dos “Rambos”. Não pela crítica à violência. Mas por tratar – sem maniqueísmo – dos vários tipos de violência que acometem a sociedade capitalista, como as violências psico-sociais. O filme é Clube da Luta (Fight Club, 1999), de David Fincher. É um dos mais pungentes retratos sobre os efeitos do capitalismo imbecil já produzidos pelo cinema. Clube da Luta é um filme único. Sempre que penso em meu cartão de crédito estourado, ele me vem à mente. Nesse sentido, o caótico final da trama representa exatamente a utopia de muitas pessoas. É uma trama com final feliz: otimista e libertador. O filme não obteve grande êxito de bilheteria. Não foi muito alugado nas locadoras. E não foi muito assistido na televisão. Por quê? Primeiramente por que não é um “filme de luta”, como sugere o título, e é, inclusive, pouco violento neste aspecto, frustrando os amantes do gênero. Em segundo lugar, o título não é o mais apropriado para um filme-cabeça, apesar de adequado ao enredo – o que leva muitos a pensar que se trata, exatamente, de um “filme de luta”. Outro “problema” é a narrativa, mais lenta que o usual no cinema comercial contemporâneo – isso nos dois terços iniciais. 162 No Brasil, o filme ainda sofreu com uma espécie de estigma, causado pelo episódio das mortes provocadas pelo psicopata num cinema de um shopping em São Paulo, onde o rapaz disparou seu fuzil contra a platéia durante uma sessão do filme. E a pergunta não calou: teria a fita, influenciado aquele ato de extrema violência? Até hoje busco respostas pra isso. Eu mesmo não quis assistir ao filme na ocasião do lançamento, tamanho o choque que sofri em decorrência daquilo. Mas há relação do filme com o ocorrido? Pode ser que não – afinal o assassino sofria de distúrbios psíquicos. Mas pode ser que sim. Assim como há os relatos de crianças que saltam do décimo andar brincando de Super-homem. Uma criança que assiste Superman pode sentir vontade de voar – quantas vezes eu mesmo senti. Desta forma então, Superman seria um filme ainda mais perigoso que Clube da Luta ou Rambo, porque aí estaríamos falando se suicídio infantil. Mas é bem verdade que não houve suicídios infantis em massa por causa do Super-homem, fora alguns poucos casos. E é bom lembrar que Clube da Luta não contém cenas de tiroteio que pudessem inspirar o psicopata. Talvez o filme tenha dois tiros. Ou apenas um – não estou certo agora. E ainda, se formos ver pela ótica da má influência dos filmes violentos, o que dizer então das novelas com seus triângulos amorosos? E os comerciais de televisão, que fazem com que as pessoas desejem o tempo inteiro possuírem coisas das quais, na verdade, não precisam – frustrando gravemente os que não podem comprar. Está tudo errado. Será que a culpa é do cinema? O cinema é um reflexo da sociedade, ou viceversa? Essa é uma questão que dá pano pra manga. 163 Deixa pros psicólogos, sociólogos e filósofos em geral. E, destes, para quem ainda não usou Clube da Luta em algum de seus trabalhos, aí fica a dica. Mas, hei de convir, inócuo o filme em questão não é. São neurônios podres do homem pós-moderno jogados no ventilador. Os (anti) heróis do filme são Jack (interpretado por Edward Norton), que está decepcionado com a monotonia de sua vida, e seu novo amigo Tyler Durden (Brad Pitt), um vendedor de sabonetes que faz exatamente o que deseja com a sua. São dois opostos. O “Clube da luta” do título é uma invenção de Durden. Em algum local, homens lutam, não para vencer, mas pelo simples prazer de lutar – como uma volta ao estágio primitivo do ser humano. Uma forma estranha de busca de satisfação e autoconhecimento. Para Jack, o clube é uma alternativa de livrar-se da roda-viva capitalista, mostrando-se bem mais eficaz que os grupos de auto-ajuda que ele vinha freqüentando. Mas lutar como lazer e catarse não é o único objetivo de Tyler Durden, líder do clube. Ele tem projetos mais ambiciosos. No entanto, este é o tipo de filme em que não se pode contar muita coisa – é claro, estou me dirigindo principalmente a quem ainda não assistiu, e sei que muitos não viram – , pois há algumas boas surpresas no roteiro extraordinariamente estruturado. Mas o clima não é barra-pesada. Apesar de tratar da violência, o filme tem muito humor. Negro, mas tem. E não há violência como um nervo exposto à la Tarantino. É um filme “também” sobre a violência. Mas não apenas isso. É sobre a mente humana. E sobre o que o mundo capitalista fez com a mente humana. As 164 situações são realistas e alegóricas ao mesmo tempo. Por exemplo, é compreensível o comportamento de Jack, levando-se em conta a paranóia do universo urbano em que está imerso. Há também, na vida real, muitos canalhas simpáticos e carismáticos como Tyler Durden. Mas quem vê o filme percebe: na soma de tudo, a situação filmada é insólita, só mesmo num filme acontece aquilo ali – aquilo que eu não posso dizer aqui. Pode até acontecer, mas não exatamente daquela forma. Quando à hipótese de um filme como esse gerar violência, ainda não cheguei a uma conclusão. Pode até ser que sim, para algumas pessoas extremamente sugestionáveis e com tendências violentas e rebeldes. Mas Tyler Durden não é mais cruel que o Pernalonga ou o Pica-pau. E uma coisa é certa: Clube da Luta gera mais reflexão que a maioria das produções milionárias que vêm sendo produzidas ultimamente. É um filme que faz pensar. Pensar muito. E pensar é um ato humanista. 165 O Bertolucci que me faltava Eu, cinéfilo de meia-tigela, não conhecia La Luna Foi há muito tempo – há muito tempo mesmo – numa sessão das oito no extinto Cine Guanabara que estava eu, acompanhado de um amigo e sua família católica, num cinema completamente lotado para assistir a Jesus de Nazaré, de Franco Zefirelli. Contando há quem não acredite. Depois de passarem o saudoso programa Canal 100, com os jogos de futebol magistralmente registrados em película, vieram os traillers, que, para espanto geral, não eram, naquela noite em especial, muito ortodoxos, ou seja, não eram muito católicos – entre a meia dúzia de filmes anunciados antes da atração da noite, havia pelo menos 3 deles com cenas de sexo. Uma cena com um casal fazendo amor na praia com seus corpos na penumbra, outra com um casal nu, agarrado, rolando na grama, outra com um bacanal num saveiro e um rapaz se masturbando freneticamente. Um dos filmes eu me lembro do nome: O Sol dos Amantes, do qual nunca mais ouvi falar. Bem. O pai católico à minha esquerda tapava os olhos da filha de 8 anos. Os adolescentes nas fileiras de trás assoviavam de forma entusiasmada. Não é sonho. Isso aconteceu mesmo. E estávamos ainda na ditadura militar, saibam. Só que o Cine Guanabara era um tipo de território livre, anacronicamente às avessas. 166 À beira da falência, aceitava menores pagantes para assistir a pornochanchadas. Eu mesmo fui um deles, sempre na esperança – e quase sempre na certeza – de poder entrar pra ver filmes proibidos para menores. Mas o caso dos traillers na sessão de Jesus de Nazaré foi mesmo o cúmulo da falta de organização e de vergonha. Quanto às famílias católicas, ao zeloso pai a tapar os olhos da filha, eu fico imaginando o que sentiriam se assistissem La Luna, de Bernardo Bertolucci. Eu não sabia, La Luna foi exibido nesta mesma época naquele cinema. Outro dia uma amiga me falou sobre o filme, que assistiu naquela sala e gostou muito. Me surpreendeu que ela tivesse mesmo gostado do filme, já que, embora eu ainda não o conhecesse, sabia se tratar de um filme com uma trama que envolvia o assunto incesto. Um detalhe importante é que minha amiga é evangélica. Isso poderia fazer pensar que ela atiraria pedras no filme. Mas, ao contrário, ela me descreveu o filme como muito belo. Mas há um detalhe sobre essa minha amiga. Ela é muito ligada a temas psicológicos, leitora de Freud, Piaget e toda sorte de livros de psicologia. Isso explica, em parte, o fenômeno. Voltarei a falar sobre o filme com ela, qualquer dia desses. La Luna, produção americana dirigida por Bernardo Bertolucci, rodada em Roma, produzida em 1979, é um filme que não poderia ter passado tão despercebido como passou. Um moralismo da indústria cinematográfica – ou do próprio público, o que é mais provável – pode explicar o fato dum filme brilhante como este viver nesse ostracismo. Só no último 167 domingo tive a chance de assisti-lo em meu DVD. Era o Bertolucci que faltava pra mim. O filme praticamente não é citado em listas, por isso não havia gerado meu interesse – eu, um pequeno fã da obra do grande diretor italiano vivo. Como eu pude não ter visto La Luna antes? É assim mesmo. Há também filmes do Wood Allen os quais ainda não vi. Até o emblemático Persona, de Ingmar Bergman, só fui assistir há poucas semanas, veja só. Não é a primeira vez que escrevo sobre Bertolucci e sexo para este site. Quando se pensa nesses temas associados, logo nos vêm à mente Último Tango em Paris, Beleza Roubada, e Os Sonhadores. Assistindo a esses 3 filmes temos a nítida impressão de que poucos cineastas falam de sexo com tanta contundência. Mas é importante evidenciar que o sexo não é tudo nesses filmes, e sim parte inseparável de um todo, como é a vida. De qualquer forma, para Bertolucci são preferíveis estórias que envolvam famílias atípicas. E para minha surpresa, o último limite da atipicidade eu viria encontrar, tardiamente, no filme La Luna. Com uma atuação hipnótica da, infelizmente, quase desconhecida atriz Jill Clayburgh, La Luna conta a estória de Caterina, uma mulher que vive intensamente uma relação de afeto (amor, ódio, busca de auto conhecimento) com seu único filho. Joe, o belo rapazinho de dentes irregulares, o menino de cidadania americana, não sabe que é filho adotivo por parte de pai, assim com não sabe que é italiano, e filho de um italiano. Com a morte do infeliz pai americano – é impressionante a cena do enterro –, mãe e filho viajam 168 para a Itália onde buscam reencontrar o rumo das suas vidas. Respeitada cantora de ópera, Caterina vê diante da nova vida um vigor esquecido. Aprimora seu canto, intensificando-o, e sendo cada vez mais reconhecida por seu talento. Tenta reaproximar-se afetivamente do filho – algo que houvera negligenciado em sua infeliz vida na América. Nesta busca pelo entendimento do (e com o) filho, descobre que ele está viciado em heroína. Então abandona a música – ofício no qual depositara toda sua paixão – para dedicar-se ao confuso e dependente rapaz. No entanto, a não menos confusa e dependente mãe, com essa intensa aproximação, deixa aflorar em si sentimentos em relação ao filho que personificam o mais rígido dos tabus sexuais, numa montanha russa de sentimentos, que falam de culpa e desejo, de interação entre presente e passado. Talvez falem de um passado mal resolvido à costa do Mediterrâneo. Sim, perturbador e cheio de humanidade, La Luna é, sem dúvida, o mais chocante filme de Bertolucci. E certamente um dos mais chocantes filmes já produzidos. Um prato cheio, uma refeição completa para os freudianos, e indigesta para os puritanos. O que diria o papai à sua filhinha diante de algumas cenas do filme? O que diriam aos seus filhinhos as cuidadosas mães que jamais pararam para pensar no assunto. Que assunto? O fio, tenso ou frouxo, porém irrompível, que liga mães e filhos, do nascimento até sempre. A frágil fronteira entre os sentimentos que regem o nosso estar social e sexual, orientando nosso comportamento regulado por mecanismos morais de defesa. A proximidade entre libido e afeto. De fato. Não sejamos radicais. Este não é 169 mesmo um filme para se assistir em família, depois da novela. Ele não deve, na verdade, ser assistido por qualquer pessoa. Seu público é específico. A intensa viagem psicológica de La Luna, me faz agora ver o eterno Último Tango em Paris como um mero passeio sensual – e olha que estou falando deste que é um clássico indiscutível do cinema erótico. E ainda há tempo para outros temas em La Luna. A música, por exemplo, é de uma força impressionante no filme. Em alguns momentos ela é algo orgânico para a trama, como a seqüência da chegada do piano, ou como na emocionante cena final. Os bastidores da ópera ocupam também lugar de destaque, em cenas especialmente atraentes – poucos filmes não-musicais tiveram sets de ópera tão bem cuidados. Toda a relação da personagem central com sua própria voz é de uma emocionante musicalidade. Até mesmo quando grita, Clayburgh é musical. O contraste de culturas também é tocado pelo filme. O rapaz americano, com seus tênis All Star, é mostrado como um corpo estranho nas ruas de Roma. Sofre com a solidão. E como se sentem solitários Caterina e Joe... Com roteiro original do próprio Bertolucci (toda e estrutura e construção dos personagens pode fazer-nos pensar que se trate de um roteiro adaptado), e a bela, e em muitos momentos inventiva, fotografia de Vittorio Storaro, este é o filme que salvou meu domingo de préverão. Apesar do tema espinhoso e enfumaçado, o filme é, na verdade, um domingo. Um domingo de sol ao Mar Mediterrâneo. 170 Mais Bertolucci e sexo A manteiga virou margarina light – sem problemas Quando se soube que Bernardo Bertolucci rodava um novo filme bastante erótico – falo de Os Sonhadores (The Dreamers, 2003) –, muito se alardeou tratar-se de uma espécie de reedição de Último Tango em Paris (Last Tango in Paris / Ultimo Tango a Parigi, 1972). Não foi. Não que Os Sonhadores seja pior que o Último Tango em Paris. Acho até que eles merecem, sinceramente, igual número de “estrelinhas”. Mas o fato de os dois filmes terem como tema central o sexo e da trama se passar em Paris, não os torna filmes idênticos. Entretanto, obviamente, não são díspares. Na época do “Tango”, Bertolucci era um jovem cineasta com 32 anos de idade e um enorme desejo de chocar o mundo, e com isso ficar rico e famoso. Com a aposta do produtor Alberto Grimaldi, conseguiu as três coisas. Fez um filme desses que são clássicos indiscutíveis, ousado na forma e no conteúdo – diga-se o certo: mais na forma 171 que no conteúdo. Um filme bilíngüe – o que poderia trazer dificuldades, mas acabou lhe conferindo charme. Com um roteiro não muito bem amarrado: são jogadas na tela as tórridas cenas de sexo entre um, ainda, viril Marlon Brando e uma linda, magra e de seios fartos, Maria Schneider. O sexo nunca tinha sido mostrado daquela forma em um filme sério. Realista. Brutal. Visceral. O sexo como fuga, para a tragédia pessoal da vida do personagem de Brando, e como anestesia, para as dúvidas existenciais da jovem insegura e prestes a se casar, vivida por Schneider. Como pano de fundo para seu Kama Sutra, Paris. Dessa forma o mundo inteiro pirou. E parou para contemplar o escândalo. É obvio que o filme tem grandes qualidades – grande fotografia, grandes atores. Mas a época fez de Último Tango em Paris, Último Tango em Paris. Sabe como é? O filme certo na época certa. E o ineditismo daquilo tudo. Mas é bom lembrar aos desavisados que não estamos falando de um filme comercialmente apelativo, com base meramente no sexo: Último Tango em Paris é denso e triste. Mais tarde, em 1976, Nagisa Oshima faria o seu “tango”, com direito a sexo explícito, no não menor O Império dos Sentidos. Mas o que houve com o belíssimo Os Sonhadores? Por que não repetiu – nem de longe – o sucesso de Último Tango? Vamos ver. Tem Bertolucci? Tem (e um Bertolucci rodado, consagrado, laureado com os nove oscars de O Último Imperador em 1987 e uma coleção de sucessos. Um cineasta, aos seus 63 anos de idade, com completo domínio de suas intenções cinematográficas). Tem sexo? Tem. E tem muito. E tem 172 os belos corpos de jovens atores. E tem, na íntegra e em sua plenitude, o corpo da boa atriz Eva Green – o que não é pouca coisa. Aliás, feeling pra descobrir sensuais e belas atrizes é uma coisa que Bertolucci sempre mostrou ter, e isso merece mais um parêntese (a primeira grande descoberta foi Maria Schneider, que trabalhou no Último Tango. Em Beleza Roubada (Stealing Beauty, 1996) – considerado um filme “menor” de Bertolucci: até hoje não entendo o motivo, pois o filme é todo, todinho bom, sendo, provavelmente, o meu filme preferido do diretor – foi a vez de Liv Tyler, que quase me fez enlouquecer. Depois, em Assédio (L’Assedio, 1998), ele nos trouxe a beleza negra de Thandie Newton. E, por fim, essa Eva Green. Poderia ter melhor nome a moça?). Mas falávamos sobre o porquê de o filme não ter obtido o sucesso esperado. Os Sonhadores é uma obra de arte. É uma característica do grande público, rejeitar qualquer filme que lembre um “filme de arte”. E o fato de o filme ter cenas de nu frontal, alguma sugestão de incesto, não foi o suficiente para arrebatar as platéias. Estamos na era do filme pornô. É natural que cenas como as que mostram a moça acariciando, em plano explícito, o pênis do seu hóspede, ou a cena dos três na banheira, ou a em que a menina é desvirginada, exibindo o seu sangue, choquem hoje menos, muito menos do que a cena da manteiga – de “Tango” – chocou os espectadores nos anos setenta. Naquela época as pessoas não tinham filmes pornôs em casa. 173 É uma pena que isso tenha acontecido com Os Sonhadores, que assim como Último Tango, não é simplesmente um filme sensual. A trama fala sobre a juventude parisiense de 1968. Na contramão daquele momento histórico, três jovens se trancam num amplo apartamento e passam dias ali, descobrindo sua sexualidade e discutindo cinema, divertindo-se como crianças, completamente alheios aos movimentos político-estudantis de esquerda e a tudo o que se desenrolava a pleno vapor, com o avanço da juventude engajada pelas ruas da capital francesa. O filme não tem muito mais que isso. E é assim mesmo – estamos falando de cinema minimalista, o que Bertolucci nunca deixou de fazer – sendo esta uma de suas marcas. Mesmo que, hoje, ele tenha perdido, não por culpa sua, a capacidade chocar as pessoas, o filme em questão pode ser tudo, menos “inofensivo”. Eu mesmo, confesso que fiquei chocado. Beleza, arte e minimalismo – do qual o diretor usara e abusara no belo filme O Céu que nos Protege (The Sheltering Sky, 1990), e porque não dizer, também em Último Tango em Paris – sempre vão chocar alguém. Os Sonhadores possui esses ingredientes, e é uma obra de arte pungente, mesmo. Bacana também é ver a estupefação do cineasta no set de filmagens em meio aos jovens atores completamente nus, no making of do dvd. Não dá pra não ver. 174 Adultério à americana Show de Kate Winslet em filme médio que merece ser visto Meu editor está esperando até hoje um texto meu sobre um Dvd nacional. Sei que a safra de nacionais nas locadoras é muito boa, mas – não sei por que motivo – só vem filme americano na minha cabeça. Mas eu chego lá, e ele há de ter paciência com este ser colonizado culturalmente. O que posso dizer sobre o filme Pecados Íntimos (Little Children) estrelado pela, cada vez melhor, atriz Kate Winslet, lançado há pouco? Numa palavra, o filme é regular. Sabem como é: umas três estrelinhas, no máximo, ou o bonequinho do mais popular jornal carioca sentado, assistindo sem aplaudir. Mas não seria melhor eu usar este espaço só para fazer crônicas sobre ótimos filmes? Não sei. Só sei que Pecados Íntimos, apesar de um tanto novelesco, não é desinteressante. O que tem nele? Tem uma das melhores – se não a melhor – atuação de Kate Winslet. Tem boas soluções estéticas. Tem tórridas, e ao mesmo tempo sutis e lindas, cenas de sexo. E tem – aí vai o xis da questão – o final mais desconcertantemente moralista do cinema americano 175 desde Atração Fatal, de Adrian Line. O adultério, que é o tema de Pecados..., é um dos temas preferidos do cinema, como sabemos todos. Este assunto delicado e tão presente na vida humana – e até animal – foi magistralmente mostrado no recente Closer – Perto Demais, baseado em peça homônima de sucesso. Este sim um grande filme. A trama de Pecados... é até verossímil. Ainda que não empolgante, prende o expectador, mas me parece grossamente arrematada – não pela forma, mas pelo conteúdo. A vida é doce. E doce é o sexo. E doce é a aventura da paixão. E sofrível é o conjunto de desejos não realizados de cada indivíduo desta nossa western civilization. Os cinco personagens que estão no centro do roteiro de Pecados Íntimos são, essencialmente, pessoas excepcionalmente frustradas. Mas nada que fuja do real – e disso não podemos reclamar do filme. São eles: o marido, advogado desempregado que não consegue ser aprovado no “exame de ordem”; sua esposa, a executiva aparentemente viciada em trabalho – e quase todo vício é escape para uma frustração; o outro marido bem sucedido profissionalmente, que se masturba diante do computador, apesar de ter uma bela esposa em casa (a qual só ele e ela própria não conseguem achar maravilhosa, já que estamos falando de Kate Winslet); a esposa em questão agora, entediada com a confortável vida de dona de casa e mãe relapsa, e com o pouco caso do marido; e, por fim, o homem que é posto em liberdade, após ter sido detido por atentado ao pudor – um homem com sérios problemas psíquicos, mas sem as características de um estuprador, apesar do estereótipo 176 que o estigmatiza perante a sociedade local. Os cinco personagens mencionados têm algo mais em comum além de serem pessoas frustradas. Eles são um tanto inocentes. Um tanto quanto infantis, ingênuos. Há crianças no filme. Elas sempre aparecem. Mas é nos adultos pueris (alguns naturalmente sonhadores) que está o foco – daí o ótimo e adequado título original Little Children. Entretanto há algo incômodo na abordagem dada: o moralismo do final da trama – no que Iza Calbo disse que eu não devo jamais contar – , onde casamentos extremamente infelizes são mantidos (droga! contei o final). Há eventos que levam a esse desfecho, mas isso se dá também por conta dos filhos, como reza a tradição ocidental-judaico-cristã. E aqui não estou falando de casamentos mornos não – são casamentos verdadeiramente infelizes aqueles ali. Até um pastor protestante desaprovaria a manutenção daqueles casamentos. Mas o roteirista (ou escritor – não sei se o roteiro é original ou adaptado) preferiu assim. Fazer o que? Mas, calma. Isso que fiz de falar sobre como tudo termina não é como contar o final do filme Sexto Sentido, ou de Os Outros. Eu disse pouco sobre a trama, e o que eu contei não vai comprometer sua apreciação. Os psicólogos, sobretudo sexólogos, podem gostar muito do filme – gosto mesmo de indicar filmes pra psicólogos. Este Pecados Ìntimos pode ser um grande instrumento para estudo da sexualidade pós-moderna, 177 incluindo aí a instituição família. E ver miss Winslet na telinha faz valer o aluguel do Dvd. Isso eu garanto. 178 Passeio pela cidade (santa) do Rio de Janeiro Rio, mês de janeiro, trinta e oito graus na pequena Praça Tiradentes. Foi quando eu e Mary adentramos a monumental Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro. Igreja vazia. Dois rapazes que haviam acabado de limpá-la já saíam. Mais duas pessoas tocando órgão baixinho na parte superior às nossas costas. Sentamonos em bancos distantes: ela mais à frente. Nunca havíamos entrado lá. Entre as coisas que eu pensava e aquelas que eu não sei se ela pensava, estávamos encantados com o deslumbrante – ainda que não suntuoso – interior da catedral, que me parece ter arquitetura neo-gótica. Casal esquisito: um ateu e uma crente no interior de um templo. Eu interessado em entender os crentes. Ela, entre coisas que eu nunca vou saber, interessada em entender um pouco da história da Igreja e, também, como de costume, orar. Não que seja costumeiro ela orar em igrejas. Refiro-me simplesmente ao fato de a oração fazer parte da sua vida. Fome. Mas ainda assim gastamos um tempinho e fomos almoçar em Copacabana. Depois passeamos pelo bairro, até que fomos, já meio fora de hora – pois o sol estava um maçarico –, a um quiosque no calçadão. Um chope 179 pra mim e um suco de laranja pra ela. Como quase não vinha brisa do oceano, caímos logo fora, depois de conversarmos um pouco sobre a vida. Dentre as várias coisas que falamos, a possibilidade – remota – de moramos num lugar como Copacabana. De volta, no metrô, apreciamos uma pequena e bonita família que conversava ora em inglês, ora em hebraico, enquanto esperava. Estavam sentados ao nosso lado reclamando do calor: pai, mãe, talvez a sogra da mãe e um bebê lindíssimo com olhos azuis como o céu daquele dia de verão do Rio. Então, intrometido, perguntei, referindo-me ao bebê, se era a primeira vez dele no Brasil. A mamãe muito simpática respondeu que sim. Perguntei se ele era polonês – a mulher o havia chamado de polonês. Então ela me respondeu que ele era israelense, com família de origem polonesa. Então aquilo me fez pensar um monte de coisas. Fiz um recorte temporal que dava da Segunda Guerra até a atual situação na Faixa de Gaza. O Holocausto, a Guerra dos Seis Dias, as intifadas, o Hamás, e tudo o que permeou e moveu a questão palestino-israelense nas últimas décadas. Estariam eles de férias? Estariam fugindo da instabilidade daquelas terras de Sião? O neném estava cagado – eu pude sentir com meu olfato bastante aguçado. É. Cheiro de cocô de neném é o mesmo em qualquer etnia. Qual seria a ligação entre a bela Catedral Presbiteriana e o bebê judeu? Puxa vida. Se pararmos pra pensar, são muitas as ligações. Nas areias de Copacabana os humanos reverenciavam – e torravam como cordeiros 180 submissos – ao deus sol. O deus sol, chamado pelos antigos persas de Mitra, que devido a circunstâncias políticas, perderia status para outros deuses pertencentes a grandes impérios vindouros, com destaque especial, claro, para o deus hebraico de nome hoje impronunciável, que em adaptações lingüísticas livres chamamos de Javé, Jeová, ou, como Bob Marley, Jah. Javé, que foi o deus imediatamente mais popular depois de Zeus, tornaria-se, como sabemos, o nosso Deus cristão, junto com Jesus e o Espírito Santo, na inquestionavelmente confusa Trindade Divina. O bebê israelense não sabe de nada disso. Um dia saberá uma verdade. E será uma verdade cultural – e nada além disso. Contudo uma verdade cultural não é pouca coisa. Talvez até não exista outro tipo de verdade. A catedral que visitamos é uma verdade. Ela está lá, linda. É uma verdade tangível, física. E o silêncio do seu interior pode gritar aos ouvidos de quem tem um pingo de sensibilidade. Seu grito pode ser em forma de sua explosiva estética arquitetônica, em forma de reflexão histórica, em forma de convite à oração. Ela existe não menos que o bebê, e carrega em si uma compilação histórica implícita não menos complexa que a que está em toda a herança genética e cultural daquela criança e sua família. O Deus da catedral evangélica é o mesmo deus hebraico da família do bebê. Será aquela criança, um homem do século XXI, capaz de compreender uma cultura que a cada dia sofre um desnorteante acréscimo de elementos? Eu, que sou uma criança do século passado, estou bastante confuso. Porém não menos maravilhado. 181 O dia em que uma cidade sorriu diante da morte Foi no município de Mendes, mas poderia ter sido em qualquer pacata cidade do nosso sul-fluminense. Em qualquer cidade do mundo. Mendes sorriu. Três rapazes mortos eletrocutados. Seus corpos carbonizados, e, diante do quadro, uma platéia a comemorar a morte deles. Fotos espalhadas por toda a cidade. A tragédia transformada em espetáculo. Parece que nossos pacatos moradores não são muito diferentes dos de qualquer metrópole: são também insensíveis e cruéis. Vivemos em um país dito cristão. Todo cristão deve conhecer a passagem bíblica em que Jesus proclama “...aquele que não tiver pecado que atire então a primeira pedra”. No entanto, a multidão de “santos” sentiu-se no direito de rir da desgraça alheia. Como se todos nós vivêssemos rigorosamente dentro da lei. Eu pergunto: quem nunca comprou um CD pirata ou outro produto ilegal? Quem nunca se apropriou de absolutamente nada que não era seu? Quem nunca praticou sonegação fiscal? Quem de nós exige nota fiscal por um cafezinho ou um drops? E é bom que se saiba que quando deixamos de pedir uma simples nota 182 fiscal – e nossos estudantes nem sabem o que é isto –, estamos desviando dinheiro que poderia estar indo para a saúde e para a educação, por exemplo. Pois bem. Num sistema falho e corrompido – do qual somos coadjuvantes – ainda temos que conviver com a hipocrisia de parte da população que se considera gente 100% honesta, e que acha mesmo que a morte dos rapazes foi justa e oportuna. Alguns chegaram a lamentar o fato de um deles ter sobrevivido. Foram cabos elétricos. Mas se eles tivessem sido assassinados por uma milícia paramilitar – como essas que há nas favelas do Rio – o povo mendense não estaria menos satisfeito. Não me refiro a todo cidadão mendense, obviamente. Aqueles jovens não nasceram ladrões. Não nasceram delinqüentes. E não tiveram tempo de se redimir. E, minha gente, isso não é engraçado. Não é satisfatório. Nenhuma morte pode ser considerada satisfatória. Se nossos adultos e anciãos fossem mais eficientes e justos (e não me refiro aos pais deles, e sim a toda nossa sociedade), casos como este poderiam ser evitados. Países com alto IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) – como Canadá e Finlândia – possuem baixíssimo índice de criminalidade. Praticamente não há roubos e furtos nas cidades finlandesas. Quanto a nós? Não temos educação de qualidade, não temos capacitação profissional, não temos empregos disponíveis, não temos distribuição de terra e renda: somos uma sociedade falida em todos os sentidos. Então resolvemos nossa angústia diante desta impotência 183 como cidadãos, comemorando a morte de três rapazes pobres que tentavam furtar cabos. Estamos de parabéns. 184 Nossas pobres elites O Brasil não se cansa de discutir “Tropa de elite”. E é apenas o começo Muito bom que seja assim. E olha que o lançamento oficial, nos cinemas, é só agora no começo de outubro – e todos nós, contraventores que somos, já vimos o Dvd pirata. O filme ainda vai gerar muita discussão. Tem muito pano pra manga ali. Mas, afinal, o que a imprensa e a opinião pública ainda não disseram sobre o polêmico filme? Acho que quase tudo já foi dito. Quase. O fato é que o filme é rico de subliminaridades, além dos discursos ultra-diretos – e frágeis. Antes de falar mais, vou avisando: “Tropa de elite”, dirigido por José Padilha, e tendo no papel principal um irretocável Wagner Moura, é um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Faz bem para o nosso cinema. Agora... Se o filme faz bem para a nossa sociedade, eu não sei. E receio que não faça. O filme passa mensagens que merecem discussão. Não vamos ficar só nessa de “que filmaço!”. É um grande filme? É. É super bem realizado? É. “É preconceituoso?” Como é... Chega a ser simplista. Mas 185 estamos no Brasil. Em que outro lugar uma força policial usa uma caveira como símbolo? O mesmo lugar que produz um filme que, entre outras controvérsias, endossa a tortura como método de se obter confissão. Não há imparcialidade na visão do filme: o herói/protagonista é um assassino torturador. E o pior: todas as torcidas estão com ele. E pior ainda: têm-se a impressão de que “o filme” espera causar na população, exatamente esse sentimento de simpatia pelo “honesto”, sádico e perturbado Capitão Nascimento, personagem central da trama. E pra fechar a tampa do caixão: consegue. É muito fácil botar na conta dos traficantes e dos consumidores de droga todas as mazelas do Rio de Janeiro. Numa das cenas finais – meio que dando a “moral da história” –, em uma dessas passeatas pela paz – mais especificamente por luto a um rapaz assassinado –, um policial invade o “cortejo” e dispara sua indignação dizendo mais ou menos isso: “toda essa violência é culpa de vocês, seus maconheiros...”. É esse novo mote que agora tanto se diz de “quem compra droga está patrocinando a violência do tráfico”. É obvio que isso de fato ocorre. Entretanto, tal discurso tenta simplificar ao extremo as diversas questões sociais envolvidas. Chegar para um médico que fuma maconha nos fins de semana e dizer que ele é um patrocinador da morte de vários jovens, não seria o mesmo que dizer, caso não fosse maconha, e, sim, cerveja, que sua cervejinha está contribuindo para uma indústria que é responsável por um dos maiores índices de mortes 186 registradas no país: as mortes por acidentes de trânsito, provocadas por motoristas embriagados? Isso sem falar na violência doméstica e todos os outros tipos de violências praticadas com o “auxílio” do álcool. A droga ilícita é um problema mundial hoje. Mas e o alcoolismo, com sua feroz e lícita propaganda? Não é? Ah... Mas aí entram as grandes corporações. Não são meros traficantes infelizes malocados no alto dos morros. São mega-empresas. Não se mexe com quem paga grossos impostos, não é assim? Então vamos fazer dos traficantes – e agora também dos usuários – os vilões da derrota social deste país, e, sobretudo das nossas metrópoles. Os traficantes e os “maconheiros” não são mais produtos da sociedade que fracassou. Esta que fracassou na geração de empregos, fracassou na distribuição de renda e de terra, fracassou na educação etc. Os bares entopem nossos adolescentes de álcool – o mesmo álcool que os pais bebem em casa. Dali, já se sabe o destino de tudo. Mas quem é que vai prender os donos das cervejarias? Eles estão dentro, e absolutamente dentro, da lei vigente. É bem mais fácil torturar e matar jovens favelados, sem perspectivas. Seria a nossa elite policial (o BOPE do filme – que dizem ter sido tão bem retratado) um reflexo da nossa elite política? Seria um reflexo das nossas oligarquias? É esta a polícia que nós queremos? Será que nosso país rico e miserável, mergulhado numa coisa que chamam, erroneamente, de guerra civil vai ter que começar a crer em “Rambos”? 187 Fiquei sabendo que há várias escolas passando em sala de aula o Dvd (pirata, obviamente) de “Tropa de elite” como filme didático. Talvez com uma proposta de “didática anti-drogas”. Anti-drogas, pró-violência e própirataria. Nosso cinema vai bem. Mas nosso povo... 188 Viver é muito perigoso (e a culpa não é dos hippies) Não é mole não. João Guimarães Rosa escreveu: “viver é muito perigoso”. O perigo me emociona. A dor e a angústia alheia, mais ainda, me emocionam profundamente. Os atos de heroísmo de determinadas pessoas me emociona – talvez pelo meu questionamento íntimo em face da possibilidade ou não de ser eu mesmo um pequeno herói. Hoje amanheci com o telejornal noticiando uma coleção de desgraças em profusão. Desastres naturais, incidentes aéreos e acidentes rodoviários, desastres familiares, desastres sociais de todo tipo, e, sobretudo, guerras. O conflito armado entre Israel e Palestina na Faixa de Gaza, as guerras no continente africano... Nos Estados Unidos, a história de um piloto que conseguiu evitar a morte dos passageiros do avião que houvera sido acometido de uma pane causada pela entrada de urubus em uma das turbinas que explodiu. O corajoso piloto fez um pouso de emergência em um rio e ninguém morreu. Ele se arriscou entrando duas vezes de volta ao interior do avião que estava na água, pra verificar se ainda havia alguém lá dentro. Então, diante de tudo o que vi, não tive como não chorar. E chorei bastante. Antigamente o meu horário de chorar diante dos telejornais era à noite. Agora me pego chorando logo pela manhã, e isso me é uma novidade – sempre tive na vida amanheceres mais leves e felizes, 189 como um passarinho que festeja a chegada do dia. Os dias estão bastante pesados e está cada vez mais difícil amanhecer cantando. Em Brasília crianças vendem e fumam crack a menos de três quilômetros do palácio do planalto, área de segurança nacional. Já cansei de ver gente culpando Bob Dylan e os Beatles por isso. Quantas vezes os músicos dos anos 60 e 70 não são responsabilizados pelo alargamento do uso de drogas ilegais e pelas conseqüências advindas disso? Puxa vida. Substâncias alucinógenas ou alteradoras dos estados de consciência existem desde os primórdios da história humana. Elas sempre foram usadas sem muitas restrições, seja recreativamente, seja como recomendação para a saúde, seja em forma de experiência religiosa. Cerveja, vinho, ópio, são coisas muito antigas. A própria Bíblia Sagrada, chega, em alguns versículos, a recomendar o uso de vinho, tratando-o como uma bebida que “traz alegria” – em outros versículos restringe o uso, verdade seja dita. Fato é que substâncias “chapantes” fazem parte da construção da história humana, em bons e maus momentos. Em felizes celebrações, assim como em situações embaraçosas e tristemente constrangedoras. Mas o rock e os hippies, não raro, são hoje "historicamente" apontados como os culpados pela disseminação do uso de drogas. É fácil apontar culpados. É mais fácil do que tentar compreender as intrincadas redes histórico-geográficas, com seus diversificados nós, que lavaram o mundo atual a ser como é. Só que precisamos de explicações e de soluções. Crianças não deveriam estar fumando crack. 190 Crianças não deveriam ainda hoje estar sendo estupradas – esta uma prática comum em todas as épocas anteriores da humanidade. Crianças não deveriam estar sendo mortas em conflitos territoriais, como na Palestina (estes nada têm a ver com consumo de drogas ilegais). Crianças não deveriam estar fora da escola, ou freqüentando a escola só para poder comer – em escolas que não conseguem sequer proporcionar uma alfabetização decente. Crianças não deveriam estar sendo induzidas ao consumo de cerveja através dos famigerados comerciais de televisão. Acontece que desde que o mundo é mundo, desde que existe ‘humanidade”, as crianças tentam copiar os adultos. Acontece que os adultos são, na verdade, crianças. São crianças grandes, nada além disso. No seu livro História Social da Criança e da Família, o escritor francês Philippe Ariès relatou o fato de que na Idade Média não se tinha a noção de criança que se tem hoje. A criança era apenas um adulto em miniatura. Sua vestimenta era adulta, e até mesmo a representação de seus rostos em pinturas lembrava muito os rostos de pessoas adultas. Hoje percebo algo em caminho inverso: os adultos são crianças em tamanho aumentado. Talvez sempre tenha sido assim. Adultos brincam o tempo inteiro. Brincam de polícia e ladrão. Praticam jogos de guerra. Esperam por proteção divina como uma criança espera pela proteção do papai e da mamãe. Esperam por alguém para resolver seus problemas enquanto brincam. Em suma: esperam pelo herói. É daí que vem o sucesso de Jesus, do Superman, do Homem-aranha e do piloto de avião que ontem fez o magistral pouso de emergência naquele rio próximo a Nova York. Somos impotentes 191 demais. Dependentes demais. Como crianças. Somos crianças curiosas e indefesas. E espero que não percamos a sensibilidade pueril que nos faz sorrir e chorar. È melhor assim. É angustiante sermos tão indefesos e ignorantes: este é o preço de sermos seres humanos. Sendo que a maioria de nós, creio, prefere ser gente a ser pedra. Gente sofre. Gente mata, morre, se embriaga, se entorpece, descobre novos remédios e novos venenos, faz música, poesia, cria histórias, fuça, descobre, se engana, inventa. Puxa vida... gente goza. E corre perigo. E como corre perigo... Seja viajando de avião, seja bebendo vinho, seja comendo batata frita, seja ouvindo rock, seja votando em quem não merece confiança, seja fazendo fofoca, dizendo suas “verdades”. 192 Viagem segura? Verão. Fim de um ano muito estranho. Manhã triste e lindamente nublada. Ontem, assim como já hoje e toda a noite que passou, eu viajava. Viajei na minha cadela, Lisbela. Como eu viajei nela... Fiquei pensando sobre seu amor. Será que a submissão de Lisbela é um jogo? Será que ela só me agrada e me olha com aqueles olhinhos que só ela tem, apenas para obter de mim carinho, comida e proteção? (Proteção eu não sei se ela sabe o que venha a ser.) Viajei um tempão nela. Eu acho esse termo muito engraçado: viajei. O verbo viajar usado dessa forma. Engraçado como ele expressa bem o que se sente. É um emprego meio hippie da palavra viagem. Não sei se hippie, não sei se surf, não sei se beat, não sei se neo-anarquista. Mas, sim, expressa razoavelmente bem o que se pretende dizer. É como se o tempo destinado à observação de algo fosse surpreendente e revelador, como uma viagem. Então, ontem viajei na minha cadela. Mas também viajei nas crianças que freqüentam minha casa. Viajei em minha mãe, com seu cabelinho querendo, tardiamente, ficar branco. Viajei na televisão, que insisto em assistir e insisto em gostar. Vi uns curta-metragens muito legais. Quando eu fui pra cama, eu viajei no corpo da minha mulher – e nele eu sempre viajo. E viajei muito naquela posição que ela sabe que me faz gozar rápido. Ela sabe ser uma estrada ensolarada quando quer. Muito embora 193 eu quase sempre prefira viagens longas, e com nuvens ao redor. E, agora, nessa manhã de terça-feira, eu viajo no meu pequeno quintal e na paisagem branca do meu bairro. Depois de ter ido lá fora sentir um pouco de frio – gosto de sentir o frio de uma manhã como esta – eu estou aqui, diante do monitor, mas com a janela do quarto aberta à minha direita, e dando uma olhada nas folhas de figo que balançam com o vento, e atrás delas, as folhas verde-escuras de tangerina. Lisbela fica presa nos fundos, na pequena área de serviço. O quintal acaba sendo perigoso pra ela. Há menos de um ano ela fugiu e foi atropelada. Numa bobeira, ela saiu pelo portão da frente e foi em disparada para a outra rua, onde encontrou um belo cãozinho peludo que pretendia namorar com ela, que estava no cio. No cio, tadinha. Ela nunca namorou. Encontrara naquela tarde um namorado. Então encontrou também o pára-choque de um carro. Quando a fui socorrer, o rapazinho peludo lá estava, já havia bastante tempo, de pé lhe fazendo companhia. Peguei-a no colo. E sabe o que aconteceu? O cara veio nos acompanhando até o meu portão. E eu o agradeci pela atenção dada à minha bonequinha vira-lata e me despedi dele. Que interessante a atitude do cãozinho. Quanta atenção dispensada. Negócio bonito de ver. Amor? Não: sexo. Mas qual a diferença? Os dois são lindos. Em segredo eu sei que o sexo é mais lindo. E, voltando ao acidente... Pensei que ela não fosse mais andar. Uma lesão na coluna, eu imaginava. Ainda bem que ela apenas fraturou a bacia e mais uns ossinhos: vértebras, perna, etc. Mas a coluna ficou intacta, como vimos na 194 radiografia. Então hoje ela só manca um pouco, tendo ficado com a traseira meio torta. Pra nossa alegria, teve uma excelente recuperação. E, olha, já fez coisas maravilhosas depois do acidente, como, por exemplo, matar ratos: até agora três. De lá pra cá, ela fica sempre na área perto do tanque de lavar roupa. Uma prisão, na verdade. Contudo, sua grande alegria é ultrapassar a porta da cozinha, entrar pela casa, vencer a sala e dar para o quintal em alta velocidade. E penso: que bom que ela voltou a correr. E viajo nessa felicidade dela ao ultrapassar o limite a ela determinado para a sua segurança. UM LIMITE DETERMINADO PARA A SUA SEGURANÇA. Para a sua segurança. 195 Pra que serve uma Les Paul preta? Primeiramente, o que vem a ser uma Les Paul? Uma caneta importada? Uma bolsa de patricinha? Não, não, não. Nada disso. Quem gosta de rock deve saber tratarse de um modelo de guitarra fabricada pela tradicional marca Gibson. Há um famoso videogame musical, chamado Guitar Hero, em que o jogador pode escolher o personagem e a guitarra com que vai jogar. Eu não gosto de jogar videogame. Aliás, eu não gosto de jogar. Não que eu não goste de jogos: eu apenas não gosto de jogar. A não ser o futebol, no qual sou aquilo que chamam de “pato”. Mas nem este eu estou podendo, pois parece que meu joelho direito já era. Pois bem. Juliette, minha filha, foi jogar Guitar Hero outro dia desses e escolheu jogar com uma mocinha. Na hora de escolher a guitarra ela foi com uma Les Paul preta. Então eu pensei: que tremendo bom gosto. A danadinha tem um formidável bom gosto. Eu nunca falei pra ela que a Les Paul é o meu modelo preferido, e ainda assim ela gosta do mesmo tipo de guitarra que eu. Eu não sou guitarrista. Nem ela. Aqui em casa só temos um violão Gianini e uma imitação mais barata do modelo tradicional da guitarra Fender, que é outra marca tradicional. Não somos uma família de músicos. Vivemos a música com razoável intensidade. Como 196 apreciador de culturas, devo estar contaminando os meus. Pra que serve tudo isso? Pra que serve uma Les Paul preta? Pra que serve um violão? Pra que serve o rock’n’roll? Pra que serve a música? Pra que serve um tambor? Pra que serve fazer furos em um pedaço de bambu e dele extrair sons? Pra que serve cantar? Pra que serve a língua e a cultura? Pra que serve a roda? Pra que serve o fogo? Pra que serve o tesão de viver? Pra que serve a existência? Pra que serve o silêncio? A vida não serve pra nada – a não ser vivê-la. A vida não tem uma finalidade. Vivemos, simplesmente. E isso é a melhor coisa que se conhece. Provavelmente não exista outra melhor. 197 O olho do céu noturno A foto foi tirada meio que por acaso, sem um planejamento que pudesse antever o seu possível significado. Se não por acaso – já que nosso subconsciente nos apronta peças –, pelo menos foi sem querer. Coloquei-a no perfil do Orkut. E também o fiz sem pensar no significado. Há uns cinco anos pintei um quadro que tem o desenho de um estábulo com uma luz dentro e, no céu noturno ao fundo, uma lua crescente e um enorme olho a olhar pra baixo. Um quadro legal, porém com traços ultra-simples. Aí as pessoas perguntam e eu explico que não é uma casa, e sim um estábulo. Quanto ao olho, eu digo que é o olho da noite. Às vezes eu digo que é o olho de Deus. Fiz em óleo sobre madeira. E quanto à tal fotografia? Certo dia minha filha Juliette estava tirando umas e fez essa, onde estou, frente ao quadro que pintei, olhando para esse enorme olho acima de mim. No momento da foto eu não estava bolando nada. Era apenas mais uma das minhas palhaçadas. Hoje dei pela coisa e vi que não foi palhaçada, não. Aquela foto é mesmo, para meu choque, eu olhando para o olho de Deus. Aquilo sou eu frente a frente com Deus. Encarando Deus. Muitos não sabem que eu sou ateu. Outros muitos, pelo contrário, sabem. Estes, não gostam do que sabem. 198 Prefeririam que eu esquecesse essa bobagem de ateísmo e me comportasse como um homem normal. Preferencialmente como um cristão normal, “enquanto há tempo”. Então vivo nesse esforço administrativo e diplomático, onde negocio o tempo inteiro com os que me cercam, fazendo concessões, adaptando o meu radicalismo materialista ateu à fé dos que comigo convivem, tentando estabelecer um meio termo, onde o diálogo e a paz sejam possíveis. A paz sempre exige meios termos. Já conheci ateus radicais. E, para minha decepção, alguns deles eram pessoas que mesmo eu não suportei, preferindo mesmo os crentes. São ateus radicais demais pro meu gosto. Pessoas sempre prontas pra ofender incisivamente, e sem a menor compaixão, os que têm alguma fé. Assim não dá. Não é a minha praia. Sei que já ofendi crentes e que até hoje devo ofender, de vez enquanto, em certos impulsos incontroláveis de egoísmo e insanidade humana um ou outro crente de qualquer religião, mas não vivo com esse propósito destruidor. Tenho uns pensamentos iconoclastas, é claro, como qualquer ateu, contudo prefiro hoje a tolerância ideológica. Até mesmo porque se eu não tolerar eu sou engolido. Já tive a ilusão de que poderia me unir a outros ateus e lutar contra a religião, o que considero um dos principais males do mundo, e fazer dessa luta um objetivo de vida. Só que eu cansei de maquinar coisas desse tipo. Cansei de encontrar ateus que não sabem exatamente o motivo pelo qual se declaram assim – muitos são ateus por pirraça. E é até compreensível. É como aquele adolescente que ouve Black Sabath ou Iron Maiden pra irritar os pais caretas ou para contrariar a sociedade capitalista cristã à sua 199 volta, só de birra. Cansei de encontrar ateus que estão mais mal informados que os crentes. E aí não vale. Pra ser contrário a uma coisa, é bom que se conheça essa coisa. E é bom que esse conhecimento não seja superficial. Tem que ir fundo. Há de se conhecer com um mínimo de profundidade os livros sagrados e as religiões a que se quer criticar. E a disputa de idéias não pode ir pro confronto aberto, isso é inútil. Pois, não raro, as pessoas que optam por um credo têm suas bases a defender. Há pessoas que defendem muito bem seu credo. Elas podem inclusive estar felizes e seguras na fé que escolheram – embora eu saiba que é a religião que escolhe as pessoas, e não o contrário. É. Eu e o olho de Deus. Sou eu e Deus. Não sou eu contra os crentes inocentes que foram pegos pelas garras inevitáveis e invencíveis dessa cultura humana milenar – e todos nós, crentes, agnósticos ou ateus, somos muito inocentes e manipulados pela máquina de inteligência antinatural. Não se trata disso. Ali, sou eu contra os que forjaram o maior personagem da história: Deus. Histórico ou lendário? Real ou fictício? Não importa. Deus é o cara. E hoje vejo o tamanho daquela foto na minha vida. Ela sintetiza minha luta contra o que julgo falso. Minha luta contra o que julgo negativo e pernicioso. Minha luta pra desvendar coisas maldosamente, requintadamente, maquinadamente escondidas. Minha luta contra esse lindo véu de seda colorida que é a religião. Minha luta pra mostrar que uma história contada não passa, muitas vezes, de apenas uma história contada, com todos os símbolos a que tem direito, e vai, obviamente, se utilizar destes ao máximo. 200 Minha luta contra o Deus que um dia foi criado pelo homem. Minha luta contra mim mesmo, e contra o que tentaram fazer de mim. Minha luta pela verdade. E, tenho que reconhecer, neste caso, por uma única verdade. E as verdades, como se sabe, são muitas. Estou meio cansado. Não sei se ainda luto contra esse dragão – e, lembrando Dom Quixote, estou seguro de que ele não é um moinho de vento. O Leviatã tem, mais do que garras e várias cabeças, raízes. Ainda assim, e ainda por isso, acho que, por agora, vou ficar na minha, quieto. Ao menos por enquanto. Não tenho armas para uma briga dessas. Não sou um covarde. O fato é que tenho outras batalhas para as quais preciso estar inteiro. Sintome e vejo-me como um homem de bem, que luta pelo bem de sua vida e da vida dos outros. 201 Meu retiro de carnaval No meu bairro não há barulho de carnaval. Hoje, mais do que nunca, eu não sei se gosto ou não desta grande festa do povo brasileiro. Eu já achava quatro dias muita coisa. Pois agora em muitas cidades o carnaval dura oito dias. Haja saúde pra gastar, paciência e dinheiro. Aqui em casa fiz meu retiro particular. Não ligo a TV. No aparelho de som ouço, basicamente, rock. O último Radiohead, o último Robert Plant, o último David Gilmour e até mesmo algumas coisas carnavalescas e não novas, como Los Hermanos. E não apenas rock: o último da Adriana Calcanhoto também está o máximo. Estou dando uma atenção também aos dois volumes do Tim Maia “Racional”, naquela sua pitoresca – ou quase típica – busca espiritual em face aos seus desencantos. Muita música das minhas caixas acústicas de madeira sai da minha pequena sala e toma toda a casa. Livros? História e antropologia. Astronomia me interessa: vou ver se vejo uns DVDs do Carl Sagan, que foi o grande divulgador das ciências no fim do século XX astronomia, física e biologia. Meu menino interior gosta de recordar Carl Sagan. Em casa e em calma. Sem churrasco. Sem cerveja. Comida normal. Água fresca. Ah... Tem também um delicioso suco natural de manga – que é a coisa mais deliciosa do mundo para o meu paladar. O que neste mundo pode ser mais saboroso que 202 um suco de manga madura? Minha mãe me aparece também com umas acerolas e eu as coloco no liquidificador. Pois bem. Nada aqui lembra carnaval. Não é que eu deteste carnaval. É que neste momento eu, definitivamente, não preciso dele. Penso que, no fundo as pessoas não gostam tanto do Carnaval como objeto em si. O que elas querem é gozar. E o ambiente carnavalesco sugere a possibilidade desse gozo. Possibilidade: nada além de possibilidade, pois o gozo que se almeja é um sonho. Mas isso não é só coisa do carnaval. A vida inteira é assim, seja nas lutas ou nas festas. O resultado que se consegue está sempre com sabor de incompletude. Um resíduo incômodo – ou, ainda pior, falta de resíduo. Vou esperar passar o carnaval para poder voltar às minhas atividades normais: estudar, trabalhar, conversar besteira e tomar cerveja Bohêmia bem gelada com os amigos. Esperar passar o verão. Esperar a chegada do querido outono, quando poderei escolher, eu mesmo, meus dias de festa. Ou apreciar a boa festa da vida, que vem quase sempre de surpresa, sem precisar de calendário. 203 Abrir a felicidade? A vida de um homem comum e a nova campanha do refrigerante preto Estou aqui. E estar aqui é doce e amargo. Pronto. Lá vem um desses cronistas depressivos pra baixar ainda mais o astral nesse invernozinho gripado e pouco contente do Rio de Janeiro, pensarão. Realmente, o que estou matutando pras próximas linhas tem contraindicações, e é mais dor que sorriso. Se “a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes”, como cantou de forma provocante Humberto Gessinger, eu não sei. Assim como não sei de muita coisa. Só sei que estou mergulhado numa das minhas confusões de existir. Amargo, tentando não perder o que me resta de doçura.Tenho, no decorrer da minha vida, aprendido a apreciar o amargo e também a me enjoar fácil do que é doce. Estou aqui nesta vida e neste mundo, e minha cabeça não mais vive tanto em outros mundos. O meu “algo além” não ultrapassa mais a estratosfera. Hoje pouco penso em astronomia, na organização dos astros – não que isso não mais me importe em definitivo. Os meus predadores, eles fazem-me ficar mais pra caverna do que pra céu. Quem são os meus predadores? São aqueles mesmos que me deram a vida e me ensinaram 204 sobre a vida: os atores sociais. A sociedade é o deus dos deuses. Ela é quem nos faz ser e deixar de ser. Ela é quem nos ensina tudo o que sabemos e nos faz desaprender o essencial. Ela é quem nos torna confortáveis, “sociáveis”, e, ao mesmo tempo, nos deixa sem jeito, sem graça, com mal estar de ser. Ela e seus dogmas morais impossíveis de serem cumpridos com gosto. Ser imoral é estar vivo. E ser vivo é sofrer sanções de variada sorte. Eu nunca tive paraíso, nem hipotético. Eu nunca acreditei em céu. E também nunca cri em inferno. E também nunca cri em formas absolutas de bem viver. Me fizeram pensar que eu pudesse acreditar nessas coisas. Creio que, na verdade, nunca acreditei em nada. Acho que eu fingi durante muito tempo – pra mim mesmo – acreditar. Mas isso já faz alguns anos. Resta-me então agora olhar para o micro. A vida pequena e funcional. A cozinha, a sala, a cria, a companheira, os amigos, o umbigo: estas são as coisas às quais devo me ater. Verdade absoluta? Deus? Satanás? Espíritos? Big Bang? Galáxias? Creio que já gastei tempo demais com isso tudo. E, no entanto agora, o que entra no lugar de Deus e das Galáxias? O dinheiro? Não. Deus saiu e o dinheiro não entrou. Isso me deixou vazio de tudo, cheio de questões e formulações incompletas, que são como vapor de éter. Não guardo comigo as coisas que mais protegem um homem, são estas dinheiro e Deus. Sinto-me então às vezes como um pequeno homem solitário num pequeno barco, num grande mar, à mercê do tempo. Meus braços 205 até têm alguma força para remar, mas a terra firme está longe demais. Minha vida é incontinência. Cansaço em descansos compulsórios. Estou aqui. Tentando me distrair com arte e afins. Tentando extrair um mínimo de satisfação da arte. Música e artes visuais. São elas, as artes pop, a minha religião, onde me refugio tentando satisfazer meu nãosei-o-que. Satisfação. Alguém, em algum dia, provavelmente uma bactéria, inventou que satisfação é o que de fato importa na vida. A luta por satisfação pode ser vista no comportamento de qualquer inseto, planta ou micróbio. E de lá pra cá – desde as bactérias primordiais – isso é tudo o que buscamos. Satisfação pode ter como sinônimo a palavra felicidade. Antigamente, que eu me lembre, o slogan da Coca-cola era um simples “Coca-cola é isso aí”. Como é que alguém conseguia vender um produto dizendo sobre ele apenas “... é isso aí”? “É isso aí” pode ser, na verdade, a expressão máxima irredutível da afirmação do ser. Era eu um menino, e no dia em que eu ganhei uma camisa da Coca-cola, numa tampinha premiada, pensei, sem ter feito a formulação em si, mas pensei: “eu sou”. Nada mal o trabalho daqueles marqueteiros. Depois vieram outras frases ainda bem interessantes como a recente “Viva o lado Coca-cola da vida”. Mas nada supera e consegue ser mais pesado e contundente que o novo slogan. E eles pegaram bem pesado desta vez: “Abra a felicidade”. “Abra a felicidade”, este é o novo slogan da multinacional. Num mundo que busca a felicidade como algo a ser conquistado imediatamente – uma felicidade fast food – nada poderia ser mais oportuno 206 que essa nova campanha. A felicidade nunca esteve tão barata: o preço de uma Coca-cola. São os truques, os mecanismos do capitalismo para multiplicar seus ganhos e manter o povo anestesiado. É um grande barato. Há muitas coisas baratas. Somos idiotas felizes com uma bebida barata, e todos os tipos de felicidade forjada e barata, como um crediário a perder de vista para comprar uma nova TV, e assim poder ver nela, em bom vermelho, o rótulo do refrigerante. A felicidade que vem da TV às vezes é mesmo muito barata, como esta coisa, essa possibilidade de extraí-la de dentro de uma garrafa como se uma lâmpada maravilhosa fosse. Porém o eterno e aparentemente imortal americam way of life trazido pela televisão não é tão barato assim. Há um vasto repertório de sonhos pré-fabricados que não saem nada barato para os pobres do mundo. Há muitos sonhos caríssimos. Sonhos impossíveis. Sonhos que eram inconcebíveis antes do advento da comunicação de massa. Sonhos que eram insonháveis e que agora habitam nossas almas. Burguesia e plebe sonham juntos os mesmos sonhos, porém só a primeira tem poder para realizá-los a contento, transformando-os em, mais do que sonhos, projetos de vida. Confesso que fico feliz quando abro uma Coca-cola com garrafa de vidro. Há estudos sobre a influência das marcas no mundo contemporâneo e seu papel na felicidade das pessoas que confirmam o que eu estou falando, o que não faz de mim um louco varrido por me contentar com uma coisa tão pequena como abrir uma Coca-cola. Sou apenas mais uma vítima do mercado mundial. Há muitas coisas bem baratas que me trazem 207 contentamento psicológico – que é o único contentamento que existe –, como abrir uma Coca-cola, alugar um filme na locadora, comprar um CD e ouvir as músicas que estão nele, comprar um livro e ler o que nele está escrito, sabendo inconscientemente de antemão o conteúdo, pois muito do que se lê nos livros já se sabe. Quase sempre assim: comprar, comprar, comprar. Mas como eu faço para comprar as felicidades mais caras – aquelas que só as pessoas da parte de cima da pirâmide social podem comprar... O sol nasce para todos? Tá legal. Alguém hoje em sã consciência realmente se satisfaz com essa informação, de que o sol nasce para todos? Entramos então naquelas velhas novas anedotas: “O que você prefere? Aproveitar esse sol que nasce pra todos, de pés descalços com uma enxada nas mãos, longe da sombra num sertão sem nuvens, ou ainda na sombra quente e insalubre de uma fábrica, fazendo hora extra, ou preferiria olhar para esse sol com óculos escuros de dentro de uma Mercedes Benz conversível, com uma bela e despreocupada mulher ao seu lado numa estrada paradisíaca?”. Seria a Coca-cola um deus? Sei lá. De qualquer forma, Deus abençoe a Coca-cola! A felicidade vinda desta bela garrafa com seu belo rótulo vermelho, me custa apenas duas moedas. Quanto ao feio líquido negro que vem dela, que mais lembra suco de petróleo ou de cocô? Ah, isso é o que menos importa. E quando Ele, Deus, puder dar uma olhadinha nos trabalhadores rurais, operários e todos os pobres compradores de aparelhos de TV e de garrafas de Coca-cola... Que não falte 208 comida barata, diversão barata e arte barata aos pobres do mundo. Tudo o que eu escrevi nos parágrafos anteriores está impregnado de ironia e tristeza, isso parece claro. Houve, porém, um intervalo entre o tempo em que eu os escrevia e o instante imediatamente atual, este aqui. Não fui assistir TV. Mas fui tomar um banho em chuveiro quente – uma dessas maravilhosas invenções que só puderam ser disponibilizadas a todos, graças ao nascimento e desenvolvimento da burguesia capitalista industrial. Botei uma confortável blusa de lã, meu jeans, meus velhos tênis adidas, e fui até o meu quintal, de onde vislumbrei as discretas montanhas do meu bairro com suas casas, do outro lado da ferrovia. Olhei pra minha garagem, pro meu carrinho velho e tosco, mas, no fundo, simpático e funcional, e pensei se eu precisaria mesmo de um Mercedes. Voltei do quintal mais animado. Minha doce e atenciosa esposa – uma mulher boa, porque é, entre vários atributos, uma boa lutadora – passa álcool no telefone. Puxa vida... Chuveiro, ferrovia, telefone... este computador aqui... tudo isto advém do tal capitalismo industrial. Talvez eu ame o capitalismo mais do que presuma. Esse amor pode trazer na bagagem toda essa minha carga de ódio. Amor e ódio são irmãos em luta. Quem afinal não gosta disso tudo que nos rodeia? Quem não gosta da TV? Bobagem. Todos gostam, ainda que alguns não admitam ou não saibam. E todos gostam da idéia do grande e delicioso bolo – aquele quase mítico bolo que deve crescer pra depois ser distribuído. Eu queria apenas que o bolo fosse mais igualitariamente dividido. Eu queria 209 uma fatia maior para mim e os meus. Uma fatia mais justa e mais irmã para todos. Mas, enquanto o bolo não chega... Vamos trabalhando e vivendo o prazer das “pequenas coisas”. E, pieguice ou não, o sol nasce pra todos, sim. Abrir a janela e ver a luz do sol é, na verdade, abrir a felicidade. E nada contra a minha querida Coca-cola. Até porque não posso contra ela. * 210 Quarenta anos Quarenta anos. Quarentinha. Quarentão. Quarentena... Estou nesse momento pensando no meu menino. No menino que sou eu e que fui e que nunca me abandonou – ao menos completamente. Este 20 de dezembro de 2009 é apenas e nada além de um número a mais – ou a menos – nesse nosso calendário cristão. Acontece que sou um homem nascido em meio às inúmeras variações do culto ao calendário. Portanto, não estou ileso às datas. O que fiz nesses 40 anos? Pergunta óbvia de homem óbvio e mediano. Não que eu me sinta óbvio e mediano, mas num momento como o de agora eu não consigo fugir: o que fiz da minha vida nesses 40 anos? Quantos caminhos, descaminhos e ausência de vias visíveis, na cegueira do dia-a-dia... Quanto aprendizado... Quanto desaprendizado... Quantas e mortes e ressurreições... Não sei. Talvez eu tenha morrido e nascido bem menos do que deveria. De toda forma, vi um mundo de poesia e de pedra dura. Vi um mundo de alternativas e de algemas. Um mundo de belezas e de desgraças. Vi o encantador e o assustador. Vi coisas que, tenho certeza, só eu vi. Pois minha vida é só minha, apesar dos meus que me cercam e a mim se achegaram com minha parte 211 de facilitação e permissão (e acaso). Eles, os meus queridos, não sabem o que eu sei, não sabem o que eu vi, não sabem o que eu senti. Os mais doces e os mais amargos momentos. E, confesso, que o que vi, foi meio que como um expectador querendo entrar no filme. Como se o homem que sou estivesse o tempo inteiro, em quase todos os dias desses 40 anos, projetado numa tela, em ação, assistido da poltrona por meu clone expectador. Como se a tela – a vida – fosse uma parte da verdade, e a poltrona – a sobrevida – a outra. Quarenta anos amando cada por de sol, amando cada amanhecer, amando cada verde, cada flor, cada caminho, cada homem e cada mulher e tentando-os compreender e sabendo são todos eles muito confusos – uns de beleza mais fácil, outros mais difícil. Quarenta anos ouvindo e cantando canções a cada santo dia. Todos os dias são santos e todos merecem música e celebração. Daí um certo desconforto que tenho com as celebrações formais. Eu tendo a considerá-las hipócritas e feias, pelo fato de pensar eu que a vida inteira deveria ser uma celebração. Além de serem, a maioria delas (refiro-me às celebrações formais com pompa e sorrisos obrigatórios), de uma estética muito comprometida com feiúra e frustração plástica. Não se celebra um quadro como se ele fosse mais forte que a verdade. Um quadro com uma flor pode ser belo e humano e representar a boa vontade estética dos homens, mas nunca será tão importante quanto uma flor. Um quadro com uma mulher nua nunca terá o calor e a verdade de uma fêmea. Então as celebrações me parecem tentativas frustradas de agradecer à vida, na tentativa de 212 “enquadrá-la”. Talvez toda a própria arte seja fruto da nossa impotência de criar beleza verdadeira. Talvez a melhor maneira de agradecer a vida seja viver. De toda forma, estou eu aqui a escrever sobre uma data que é apenas mais um dia após o de ontem. Sou um homem maduro (?) e comum. E tenho uma tempestade na alma. Uma jovial tempestade de umidade, correntes voando, galhos se rompendo, animais correndo assustados. Mas sou também uma árvore com raízes bem firmes, adornada com flores amarelas sob um ameno sol. Neste exato momento uns passarinhos estão fazendo um tremendo barulho aqui no meu pequenino quintal. Eles estão em volta do pequeno pé de figo. Eles são lindos, e o vento no quintal é lindo, e as pessoas são lindas. Daqui a pouco devo ouvir música, com a inseparável companhia da história que já se foi – porém nunca irá de fato, visto que toda história é eterna e a minha não é diferente. Venha a vida. E seja bem vinda. 213 Os ratos e o ano novo A chuva que cai ininterruptamente aqui sobre o bairro de Humberto Antunes, Mendes, Estado do Rio de Janeiro, desde ontem pela manhã é cinematográfica. Chuvas ininterruptas me dão a sensação de filme, ou de livro. Dão uma sensação de afastamento da realidade. Tudo está aqui. A ferrovia está aqui. As pequenas matas – aqui quase tudo é pequeno – estão aqui. As ruas de paralelepípedo – muita gente nem sabe o que é uma rua de paralelepípedo – estão aqui. Os mesmos vizinhos de sempre. O abissal silêncio das madrugadas, que só é interrompido ora ou outra pelas locomotivas ou pela música dos sábados – pela péssima e barulhenta música dos sábados. Tudo está tão “aqui” que faz com que as coisas se pareçam com um filme que é reapresentado por tempo indefinido, como aconteceu nos cinemas com Blade Runner, por exemplo, que ficou em cartaz por muito tempo, voltando e voltando. Blade Runner, um filme extraordinário. Neste filme também chove muito. As chuvas ácidas de um dos possíveis futuros preconizados pelo cinema. Ontem, quarta-feira, um som no quintal quebrou o silêncio: Lisbela, minha amiguinha canina, matava mais um rato. São milhões de anos de instinto predatório não perdidos, ali, no DNA de Lisbela. Mais um rato enorme. 214 O segundo em três dias. Ela sabe que nós aqui em casa ficamos agradecidos, afinal ratos são incômodos e transmitem doença – ratos já dizimaram milhões de homens no curso da história. E sei que ela, Lisbela, ficou feliz e orgulhosa com sua performance assassina. O terreno ao lado da minha casa abriga ratos. É bonito ver o verde do terreno, e olhar o morro e o céu por entre as plantas que nele há e crescem em pura força verde, mas há certos inconvenientes, como os ratos e insetos morando ali. De manhã, quando, na minha incumbência masculina, fui pegar o bicho e colocar em duas sacolas – quando o correto seria enterrá-lo – eu percebi que o rato é um animal muito bonito. Bonito mesmo. A sua cauda nem tanto. Acho que o rato é um animal que não ficou numa boa no processo de urbanização advindo com o século dezenove. Acho que homem e rato têm uma grande dívida um com o outro. Muito embora creio que o bichinho esteja em desvantagem – assim como os palestinos em relação aos judeus (parêntese importante este, pois preciso ressaltar que palestinos não são ratos, e que em muitos momentos, na dada questão geopolítica, judeus foram mais ratos, num ambiente em que todos estão certos e errados ao mesmo tempo, sejam homens ou homens-rato, semitas ou anglo-saxãos). De toda forma, acho que ele, o rato, ainda está em melhores condições que a vaca, o porco, a galinha e até mesmo que o cavalo, que é usado pelo homem com certa indiferença. O rato tem sua independência. Tem sua dignidade. Um certo direito à marginalidade. Nem isso os outros animais citados possuem, já que são tratados muito mais como coisas que como bichos. 215 Então lá fui até um dos latões do bairro com as sacolas de lixo não selecionado – como é o costume por aqui – com o bichinho dentro de uma delas. Ecologicamente incorreto, porém dentro do senso comum local – ainda que eu seja um pequeno homem a lutar, em algumas situações, contra o senso comum local. Na volta, o que vejo em frente ao meu portão? Um passarinho morto. Puxa vida. Não dá pra ter menos mortes num dia como o de hoje, com essa chuva que mata sem parar pessoas nas casas mal feitas, construídas em lugares mal habitáveis por todo o país? Levanta-se aqui uma suspeita de bruxaria no tocante ao pequeno pássaro morto. Certa vez havia sete cigarros no chão apontados para o meu portão, ordenados cuidadosamente, como se apontando pra minha casa como flechas. Sempre houve muita macumba no meu bairro. Acho um barato as pessoas crerem nisso. Digo “um barato”, numa visão antropológica hiper-relativista e tolerante, pois, na verdade, sou ateu e acho que elas deveriam se ocupar mais com ciência, com trabalho, com arte e com prazer. Com os ratos e o passarinho e as pessoas vítimas dos desastres pela chuva no famigerado sistema de loteamento camponês que insiste em encurralar seres humanos em habitações pouco-humanas para os padrões atuais de humanidade que estas mesmas pessoas mortas estavam cansadas de ver nas novelas, morre também o ano de 2009. É Preciso. Tem que ser assim. Pra nascer 2010. Mas o que podemos fazer pra 2010 nascer feliz? Encher a cara? Beber e beber e beber? Comer e comer e comer? A frase é legal e gosto de ouvir e repetir: “estamos de parabéns!”. Celebremos a morte e a vida do 216 calendário. Eu, aqui, com minhas mãos com o olor de dessalgar bacalhau, tecendo minhas impressões críticas com minha metralhadora giratória de brinquedo com inofensivas bolinhas coloridas. Um hipócrita a mais. Tenho convencido um amigo a tornar-se vegetariano – pois admiro demais os vegetarianos –, falando pra ele coisas como a nossa hipocrisia em querer salvar baleias enquanto comermos bois como se fossem estes maçãs caídas do pé. Quem disse que um boi vale menos que uma baleia? O amigo disse que está indo por partes, e que já não come mais aves e pode olhá-las agora sem culpa. Que bonito isso! E eu na cozinha temperando uma ave pra assar. Sou culpado. Sou mantenedor do sistema de matança capitalista industrial. Sou poluidor. Sou hipócrita. Sou escravo. Sou um homem. E não sou muito diferente do rato que foi assassinado pela Lisbela. Tenho pena do rato. Tenho pena de quase tudo. Preciso de um final feliz para esse texto, pra ver se o ano também termina/começa bem. Se não vão achar quer sou pessimista. E este ano foi, na verdade, muito bom pra mim. Final feliz é bom. Talvez finais felizes sejam hipócritas. Talvez não. Talvez eles sejam fruto da nossa eterna necessidade de sonhar. Essa mesma necessidade que fez a ciência e a arte – a cultura, por fim. A nossa necessária e companheira inseparável imaginação. A necessidade de pensar no que é bom, a aperfeiçoá-lo. Preferencialmente no que seja bom para mais de uma pessoa, já que, como disse o poeta “é impossível ser feliz sozinho”. Então vou olhar para meu bairro imutável como bela fotografia amarelada e ver que ele é um belo lugar, com gente feia e gente bonita, 217 como qualquer outro lugar. Com homens, mulheres e ratos. E com uma bela chuva de final de ano. Uma chuva que parece estar saindo do terceiro livro da série Crepúsculo que minha menina acabou de ler, enquanto eu releio, com mais contemplação que outrora, o monótono – porém lindo – On The Road, a emblemática obra de Jack Kerouack que tanto inspirou os malucos do mundo inteiro, chegando até mim.Venha o porvir, que eu quero é mais. Mais do bom e do melhor, e para o maior número possível de seres vivos e mortos. * 218 Sobre a mentira como método pra se dizer a verdade Em certa pesquisa internacional, dessas publicadas pela influente, respeitada e odiada revista Veja, resultados apontavam para um suposto fato, de que uma pessoa comum fala, em média, 30 mentiras por dia. O número assusta qualquer um, é claro. Aí o que a gente faz? A gente pega e relativiza a coisa: quem sabe digamos apenas umas 15 mentiras por dia, ou, quem sabe, 10, ou 5. Ou então não levamos em consideração tal pesquisa. Mas... Como não considerar essas pesquisas? Informações como esta nos levam, em maior ou menor grau, a uma reflexão. Não tem como fugir disso. Eu mesmo, penso agora em minha relação com a mentira. Sei que menti muito durante toda a minha infância. Menti bastante também durante a adolescência. Talvez eu possa mesmo ser um bom mentiroso. Ou um mentiroso com um talento médio, pelo menos. Também andei mentindo um pouco já adulto – e a palavra adulto pra mim quase sempre traz aspas implícitas. De uns tempos pra cá, entretanto, resolvi falar só a verdade – o que para os pesquisadores em questão deve ser algo, dirão, impossível. No entanto, garanto que fui muito verdadeiro nos últimos anos. Tentei, ao menos. E, comparando-me com outras épocas, eu tenho certeza de 219 que menti bem pouco (segundo os pesquisadores, poucas vezes a cada dia). E nisso eu não sei se fiz a melhor opção. Minhas verdades machucaram pessoas. Atraíram a antipatia de pessoas que antes eram simpáticas a mim. Falar a verdade é uma barra bem pesada. Em alguns aspectos chego a me arrepender de ter sido tão transparente. E de que adianta sermos transparentes se dentro de nós o que há é merda? Sim, isso mesmo. Refiro-me a todas as merdas que nossa cultura nos enfia pelos olhos, ouvidos e boca durante toda a nossa vida, desde que nascemos. Resultado: hoje procuro usar filtros mais dinâmicos para as minhas falas. Não tô a fim de sair por aí ofendendo pessoas com verdades, até mesmo porque são “apenas” as minhas verdades. Nossos pontos de vista são meros pontos de vista. Nossa visão é desgraçadamente rasteira. No entanto também não podemos – e nem devemos – abandonar de vez toda e qualquer verdade pessoal construída. Se assim o fizéssemos, seríamos sinceros como bichos. E, nada contra os bichos – pois sei que são mais sábios que nós –, mas não podemos mais, a essa altura do campeonato, ter a sinceridade de um animal, num mundo tão impregnado de símbolos como este que criamos. Temos nossas verdades, sim. E estamos presos a elas e precisamos delas pra viver e elas são nossas âncoras... Âncoras: não flechas. Sejamos cuidadosos com nossas verdades, passando-as aos outros com certo cuidado. É uma tarefa bem difícil, claro que é. E eu bem sei. Um bom filtro para verdades é a mentira da arte. Quantas vezes os artistas disseram as verdades que 220 queriam dizer usando de artifícios enganosos, que são os diversos tipos de signos artísticos? Um quadro que não revela abertamente a intenção do pintor; uma canção que não diz diretamente o que quer dizer; um romance; um conto; um poema; tudo isso pode estar ocultando verdades. Ou melhor, filtrando-as. As leis da física são o que de mais próximo se tem da “verdade”. E a arte, por sua vez, é o que mais se assemelha à mentira. É o artifício, é o jeitinho dos homens e mulheres para enganar seus próprios sentidos em prol de uma coisa que só nós, humanos, almejamos: o bem estar estético. Procuramos a boa música, a boa literatura, enfim, a boa arte, pelo simples motivo de que nos falta a boa vida. Falta-nos a verdade suprema. Falta-nos a plenitude tão querida pelos antigos gregos. Não somos plenos em alegria e nem em verdade. Somos frustrados nestes quesitos. Talvez os próprios gregos tenham pretendido tapar esses buracos com a grandiosa arte que empreenderam. Talvez eles soubessem, já, muito bem que nos falta essa tão ausente boa vida. Quando escrevo um poema eu sou o homem mais verdadeiro do mundo, e também o mais mentiroso. Talvez a maior parte da literatura universal gire em torno de uma abstração: o amor. A frase “eu te amo” é um signo. Ela que dizer um monte de coisa. Ela pode estar dizendo um monte de coisas ao mesmo tempo. Ela pode estar escondendo outras. Ela pode estar dizendo nada. É uma das frases mais belas criadas pela cultura humana e está presente em todos os idiomas. E não é uma frase plena de verdade ou, ao menos, de significado claro, como por exemplo “eu estou com fome” ou “eu 221 estou com tesão”. Contudo é, sim, bela. Ela pode ser doce ou amarga – tudo vai depender da ocasião, do falante e do ouvinte. “Eu te amo” é uma frase impressionante. Como alguém poderia estar sendo absolutamente sincero ao dizer algo tão poderosamente carregado de simbologia? Parafraseando um grande letrista do rock brasileiro, Cazuza: “amor é uma mentira que a nossa vaidade quer”. Ou ainda: “mentiras sinceras nos interessam”. 222 Recapitulando a grande estrada e o palhaço da caixa “(...) Eu estava curtindo uma temporada fantástica e o mundo inteiro se abria à minha frente porque eu não tinha sonhos.” (On The Road, página 314, Jack Kerouak) Eu havia dito a mim mesmo que não publicaria nada durante estas férias, mas cá estou eu mais uma vez quebrando pequenas promessas. Verdadeiramente, eu não me lembro de ter feito promessa alguma a esse respeito. Nas minhas orelhas agora o som do Radiohead. Vejo o som do Radiohead como uma síntese de toda a música que já foi produzida na América (do norte). Como tenho quase zero de inglês, em face da minha amiga de longa data preguiça, eu consigo penetrar na música, instrumentos, voz, sem a preocupação com a significância as palavras. O CD que estou ouvindo é o Amnesiac, e, embora eu não entenda as letras acho que eles não estão me mandando tomar no cu – mas, também, se estiverem... Esta terá sido a forma mais elegante e artisticamente bela de se xingar alguém. O som é melancólico: ao extremo. É tão melancólico que traz uma alegria de ressurreição dentro de si. O último disco deles, In Rainbows, também é excelente. 223 Neste exato momento o sol ultrapassa minha varanda e vem entrando pela janela de madeira que já está aberta, como bom convidado, em meu quarto. O meu quarto? Ele é o reduto de um “poeta beat” sem estrada. É engraçado como imagino eu saber tanta coisa de estrada tendo tão pouco caído nela. A minha estrada sempre veio dos livros e filmes. A grande “estrada aberta” de Whitman é tão aberta que acaba podendo abrir-se pra dentro: mesmo pra dentro de quatro paredes ou pra dentro da tela de um televisor. Quando Walt Whitman escreveu seus poemas não existia televisão e o cinema era ainda incipiente. Portanto, se dissessem a ele que um homem no século vinte e um pegaria a estrada sem sair de casa ele riria-se. Mas é claro que eu sei que se os escritores beats vivessem na estrada “de fato” – de asfalto –, eles não arranjariam tempo pra escrever tanta coisa: Kerouak, por exemplo, acho que escreveu vinte e três livros. Não me sinto um bitolado em coisas virtuais – como estradas virtuais, já que é disso que tenho falado. Acho que apenas sou malandro e pego as estradas que me são possíveis. Um dia contei, de improviso, numa mesa de bar, uma parábola para um amigo. Falei pra ele que sou como um palhaço dentro de uma caixa. O palhaço tem uma mola forte o suficiente para arrombar a tampa da caixa e sair. Mas por algum motivo ele não o faz. O que ele faz? Faz furos na caixa de papelão e fica olhando lá fora. O meu amigo ficou espantado: “que imagem mais triste...”, disse ele. Ele estava certo. É mesmo uma imagem triste. É a imagem de uma prisão. Mas penso: 224 os prisioneiros, numa prisão de verdade... Eles não podem ser felizes? Claro que podem. E sei que muitos o são. Cada pessoa é feliz à sua maneira e inventa a sua felicidade. Há inúmeros casos de presidiários que quando libertos não puderam “ser felizes”. Ou seja, não puderam contemplar a plenitude esperada com a abertura dos portões. Graciliano Ramos esteve preso e, quando liberto, disse, em entrevista, que não fazia muita diferença, como se sempre tivera sido livre e prisioneiro – só muda o ambiente. Tenho quarenta anos e minha estrada me espera. Ele pode estar na estrada (a estrada da estrada), pode estar em minha casa, num compartilhar com pessoas queridas, num aprender, num novo sentir, num novo captar, num recapitular – e voltar também é importante, pois somos construídos de passado surpreendentemente vivo –, num novo livro, num novo filme, numa nova canção, ou, até mesmo, num velho automóvel, porque não? A propósito: é o palhaço quem abre a tampa da caixa ou é uma pessoa quem deve abri-la? Ah... Pensei agora que as pessoas sempre se assustam com o palhaço... Só que, para a “sorte” de todos, o palhaço, que tem uma potente mola, não tem asas. * 225 Desejo e prudência A urgência para os que jogam amor, para os que estão em “estado de amor”, para os que amam, enfim, deve ser velada, implícita – jamais explícita. A urgência deve estar de tal forma implícita, a ponto de, ela, a urgência, transmutar-se, nesse mundo de sonho e representação necessária, em não-urgência. As coisas devem esperar. Ou não. Talvez nem precisem esperar, pois a esperança é algo bem próximo da tristeza e da agonia. E a urgência é como uma ejaculação precoce, como uma felicidade incompleta e precoce, como um amor precoce. A vida e o amor são difíceis, mas isso não os torna menos belos. O que poderia ser mais enfadonho que um amor fast-food? A vida e o amor precisam de entradas. As pessoas não são hambúrgueres. Não são carne moída, como estudantes saídos do filme The Wall. Contudo, como adaptar-se ao balé onde dançam no mesmo palco – ou pista – o desejo e a prudência? Qual a fórmula matemática dessa dança? Quem dita o ritmo da dança? O que se faz quando a vida chama pra dançar e não sabemos nada ou quase nada daquele ritmo? Cortamos os pés? Atiramos no DJ? Não sei. Que tal alguns primeiros passos prudentes? Que tal observar os grandes dançarinos, aqueles a quem, brandamente, invejamos? Talvez o doce da vida seja aprender a dançar. 226 Eles eram dois jovens artistas. Pelo menos viam-se como artistas – e o importante da nossa imagem está no reflexo que nós próprios vemos. Ela era, entre outras coisas, dançarina. Ele? Eu não sei bem que tipo de artista era ele. E acho que nem ele sabia. Acho que fotógrafo. Ele enquadrava as coisas como faz um fotógrafo. De toda forma, acho que sua arte era visual. Mas uma coisa era certa sobre o cara: ele não sabia dançar. Contudo eles eram artistas que não tiravam seu ganha-pão de suas artes. Certo dia eles se conheceram numa dessas boates da vida. Ele sabia que ela já havia estado naquela boate. Ela sabia o mesmo dele. Os dois, porém, não haviam tido a oportunidade de se conhecerem. Chegara então o oportuno dia. E ele perguntou: “Se você costuma vir aqui e eu também, é estranho que nunca tenhamos nos aproximado, não acha?”. Ela concordou, “sabendo” que as coisas não se dão por acaso. Passados alguns meses eles estavam falando sobre suas vidas na mesa de um restaurante como velhos amigos. E houve avanços no embalo das horas daquele belo dia azul, pois dali passaram, quase instantaneamente, de velhos amigos para um estado de infância, e permitiram-se deitar num gramado onde brincaram de olhar bichos nas nuvens. Ali, naquele gesto brincante, eles mostraram-se bons aprendizes. Virar criança não é, definitivamente, pra qualquer tipo de pessoa. Eles brincaram até o anoitecer. E até depois de anoitecer. Muita coisa acontecera. O tempo passou e os jovens artistas continuaram jovens – e artistas nunca 227 envelhecem –, continuaram artistas, e continuaram bons aprendizes, e bons brincantes. Então, juntos, produziram boa arte. E se ajudaram mutuamente a aprenderem coisas. Ele aprendeu a dançar e a ter calma no coração – e a não fazer tantos planos pro futuro. Ela aprendeu... Bem... Ela aprendeu muitas coisas a respeito de viver o grande barato de ser mulher e do poder disso. E eles não cansavam de aprender mil coisas, em delicada profusão de conhecimento empírico e sensorial. Sobre desejo e prudência, contudo, eles pouco puderam saber. Há coisas nessa vida sobre as quais pouco se sabe. * 228 Rio e Prudência “Estranho seria se eu não me apaixonasse por você”. Este é o verso que inicia a canção All Star, de Nando Reis, que foi apresentada ao mundo na voz de Cássia Eller. Isso foi depois de ela falecer. Todas as pessoas deveriam conhecer essa canção na voz da Cássia. É assim mesmo. Soa-me estranho não se apaixonar por aquilo que é misterioso e ao mesmo tempo revelador, conflituoso e harmonioso, amedrontador e também encorajador, pleno de diversos cacos de violência simbólica e também salpicado de carinhos e afetos múltiplos. Carinho apaixona. O Rio é uma dessas coisas apaixonantes. No entanto, aquela pequena, suave e bem equalizada voz da razão – “ voz pequena que sai do grande corpo” – recomenda prudência. O Rio e vários outros caminhos requerem prudentes alfinetadas de verdade (mas, de qual verdade falamos?). Eu aceito a recomendação de prudência da mesma forma que aceito a vida e seu grande absurdo e maravilha incontroláveis. Aceito. O que não quer dizer que me desapaixono. 229 Vejo o Cristo noturno da janela do apartamento. O Cristo não tem nada de apaixonante, pois ele não carrega em sua gênese a essência da “maravilha mutante”: o Cristo é duro. E as coisas de verdade, as pessoas de verdade, são moles. E se apaixonam. E são, por isso, lindas. * 230 Sobre Ester Tarde de sexta-feira. Dia dos namorados. Leve frio de começo de junho, nesse clima nunca radical do Estado do Rio, sudeste do Brasil, sul da América, entre os trópicos. Ponho roupa preta, acabada com meu paletó, preto, alemão, de fino corte. É meu único paletó, usado em ocasiões especiais apenas – e, na maioria das vezes, nem nestas. Saio então pelas ruas. Chuva fina. Abro meu guarda-chuva e vou, fugindo das rodas dos carros nas poças. É uma tarde triste. Mas não estou triste, embora meu estado seja, digamos, solene. Meu último encontro com Ester foi na quarta-feira, na casa dela. Naquela tarde, por horas eu a ouvi em seu lindo quartinho branco, com flores e listras verde claro. Não estávamos sós, eu e Ester. Éramos quatro naquele pequeno cômodo que mais parece um pequeno templo: eu, dois amigos e ela. Um dos amigos fazia as perguntas. Outro apontava sua câmera de filmar fixada em tripé. Eu apontava também uma outra câmera, também num tripé, mas com movimentos de ida e volta nos detalhes do corpo de Ester, que estava sentada numa confortável cadeira. Imagens em ida e volta, zoom e não-zoom. Detalhes das mãos que não paravam de 231 gesticular, com braços que moviam-se pela emoção daquilo que ela nos falava, terminando em um dedo em riste. Detalhes de sua boca com honrosos dentes amarelados. Detalhes de seus olhos expressivos por trás das lentes que refletiam, às vezes, e de forma mal calculada por nós, a luz difusa de um refletor. Seus cabelos brancos, suas rugas impregnadas de história e poesia, dor e cultura. Cultura poderia ser o nome dessa mulher. Uma mulher, espantosamente, não-triste. Na quarta-feira eu não estava com meu paletó preto. Só que hoje meu novo aguardado encontro com Ester seria apenas virtual. Marcamos às quatro na casa do amigo, a fim de dar uma primeira olhada nas imagens captadas na quarta-feira. Ester na tela. Ela ficou bem na tela. E o que ela faz na tela do televisor não pode ser feito por qualquer mulher. Ela nos conta sobre sua infância no Egito, sobre sua vida. Ela nos fala sobre morte. Sobre a morte de parentes ante a foice do nazismo na Alemanha. Sobre a morte do pai – a qual presenciou. Sobre sua passagem na Inglaterra, por Oxford, se não me engano. Reclama que na escola primária, ainda no Egito, as crianças aprendiam “apenas” três idiomas, e que o resto ela teve que aprender sozinha. Ela tem muita história pra contar. Muita. O muito que nos conta, vira e mexe é arrematado com um sorriso maravilhoso – não que ela seja de rir à toa. Em nossa frente fotos que ela deixou em nosso poder, para serem digitalizadas. Muitas fotos em preto e branco, evidentemente, de pessoas em sua maioria 232 mortas. Algumas delas mortas em circunstância que não é difícil imaginar. Acho que não me convém – nem a mim e nem a ela – entrar em detalhes agora. O que conto é parte da pré-produção do documentário que começa a ser realizado numa parceria entre eu e meu amigo Elano Ribeiro, e com a valiosíssima colaboração de um novo amigo, Janér Baptista. Esther (sim, com “h” no meio) é o verdadeiro nome de uma incrível senhora que conhecemos, a qual nos oferecerá, para um novo projeto, a matéria prima: ou seja, o “livro aberto” de sua vida. De família Judia, nascida no Cairo, formada na Inglaterra, Esther é uma mulher brasileira com oitenta e seis anos. Uma cidadã do mundo. As nuances do mundo de Esther, só poderão saber aqueles que assistirem ao trabalho pronto, que pretendemos entregar ao público ainda este ano. * * 233 * 234 Autoleitura é um quasearrependimento. 235 236