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TECENDO A REDE: A PSICANÁLISE NA SAÚDE MENTAL*
Antônio M. R. Teixeira
Psiquiatra, psicanalista, professor adjunto da U.F.M.G
Mestre em Filosofia Contemporânea (FAFICH - UFMG)
Doutor em Psicanálise (Université Paris VIII)
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise
[email protected]
Resumo: Trata-se da transcrição de uma conferência em que o autor expõe as diretrizes
metodológicas e epistemológicas do projeto "avaliação dos efeitos da capscização do
modelo de atenção à saúde mental", em atenção ao convite da comissão de organização de
Encontro de Saúde Mental "Tecendo a rede", realizado pelo Hospital Juliano Moreira em
Salvador. O autor demonstra em que sentido a noção de rede pode ser pensada conforme os
paradigmas de "construção do caso clínico" e da ´"clínica feita por muitos", dando ênfase à
importância de se considerar o saber que o próprio paciente elabora, a partir de seu
sofrimento psíquico, como eixo de orientação na condução clínica do atendimento.
Palavras-chave: Projeto de Pesquisa, construção de caso clínico, saúde mental
Summary: One is about the transcription of a conference where the author displays the
methodological and epistemological lines of direction of the project “evaluation of the
effect of the “capscização” of the model of attention to the mental health ", in attention to
the invitation of the commission of organization of Meeting of Mental Health “Weaveeing
the net”, carried through for the Hospital Juliano Moreira in Salvador. The author
demonstrates where sensible the net notion can be thought in agreement the paradigms of
“construction of the clinical case” and ´ " clinical made by many ", giving emphasis to the
*
Esse texto é a transcrição abreviada da conferência apresentada por ocasião do II Colóquio dos Residentes
em Psicologia Clínica e Saúde Mental do Hospital Juliano Moreira: Saúde Mental: tecendo a rede.Psicanálise
e saúde mental, no dia 26 de outubro de 2007.
importance of if considering knowing that the proper patient elaborates, from its psychic
suffering, as axle of orientation in the clinical conduction of the attendance.
Word-key: Project of Research, construction of clinical case, mental health.
Embora eu me sinta profundamente honrado pelo convite para intervir nesse
Seminário, eu devo confessar a vocês que não é em nome próprio que hoje irei falar. Eu
falo hoje, na realidade, em nome de uma equipe de pesquisa da qual me orgulho de
participar, com a qual venho trabalhando já há algum tempo a partir de um projeto
financiado pelo CNPq. Esse projeto consiste, para dizê-lo resumidamente, na realização e
no desenvolvimento de uma metodologia de intervenção junto aos Centros de Atenção
Psicossocial, segundo o paradigma, desenvolvido por Carlos Viganò, da Construção do
Caso Clínico, em continuidade com a proposta, elaborada por Di Ciaccia, da chamada
clínica feita por muito, a clínica à plusieurs. Seus primeiros frutos já se encontram
disponibilizados na revista eletrônica CLINICAPS, a qual foi criada para atender às
necessidades de divulgação, assim como para estabelecer interações entre os profissionais
envolvidos no trabalho de saúde mental.
Se vocês lerem uma só vez o editorial dessa revista eletrônica, vocês irão perceber
que nosso projeto responde a um programa mais amplo que o antecede e o ultrapassa. Ele
se lança no esteio do programa de Reforma Psiquiátrica, proposto no início dos anos 80,
valendo-se de uma leitura dos efeitos gerados pela implantação do dispositivo CAPS,
enquanto estratégia de substituição ao antigo modelo hospitalocêntrico. Ele se particulariza,
no entanto, por sua inserção num momento histórico em que a consideração das
dificuldades naturais de seu percurso vêm servir a argumentos que procuram distorcer a
percepção de seus rumos.
Seja como for, hoje é um fato, dificilmente contestável, que não mais se pode
conceber uma política de saúde mental alheia à experiência dos dispositivos CAPS. Tanto o
volume como a qualidade de publicações dos relatos extraídos desse formidável programa
vêem atestar sua importância. Mas em que pese a demonstração inequívoca da pertinência
desse modelo, as experiências clínicas que nele se encerram revelam uma heterogeneidade
incompatível com as tipificações que o nosso tempo cada vez mais exige, quando se trata
de avaliar a eficácia dos dispositivos terapêuticos.
Tal variedade pode ser entendida a partir da consideração de uma ampla série de
motivos, agrupados numa lista, decerto incompleta, que vocês encontram no editorial da
revista Clinicaps. Ela deriva, para começar, das condições de implantação de cada serviço,
seja pelo maior ou menor interesse do gestor em investir nesta área, seja pelas
particularidades político-institucionais de cada região. Afora isso, a experiência clínica
também se diversifica conforme os modos de composição das equipes e as conseqüências
que esses distintos modos engendram: por um lado, temos as organizações mais discursivas
e igualitárias, que tendem a gerar uma rivalidade entre os participantes, por outro, temos
organizações mais dogmáticas e hierárquicas, que tendem a fixar na figura de autoridade a
base normativa da discussão. A isso se acrescentam dificuldades no estabelecimento de um
sistema coerente de atendimento, sobre a qual se possa localizar o modo de circulação dos
usuários, assim como a ausência de articulações inter-institucionais bem definidas. E, por
fim, há que se levar em conta, como motivo mais radical dessa diversidade, a dimensão
ímpar de cada caso que se apresenta concretamente na experiência clínica, cuja
singularidade não se deixa mesurar numa avaliação quantificável.
É considerando, portanto, o problema que nosso tempo coloca com relação à
avaliação dos resultados de um programa de trabalho cujo produto não é tipificável, cujo
produto não pode ser identificado como elemento de uma coleção visível, que eu gostaria
então de interpelar, a partir de nossa experiência, o sentido que tem o uso da bela expressão
que vocês escolheram para dar o título a esse colóquio: tecendo a rede. E muito embora
haja consenso de que quando se fala em rede, sob o sol da Bahia, a última coisa que nos
ocorre é a idéia de trabalho, ainda assim eu gostaria de perguntar por que adotamos a
imagem da rede como suporte analógico para tornar pensável o modo de trabalho que se
realiza em saúde mental.
A analogia, como se sabe, responde a uma tentativa de tornar pensável uma coisa
desconhecida por comparação com algo já conhecido. Para que possamos adotar uma
descrição um pouco mais técnica do termo, eu gostaria que vocês retivessem a distinção
entre o que se denomina tema e foro da analogia: o elemento conhecido corresponde ao
foro da analogia, ao passo que aquilo que se quer fazer conhecer vem a ser o tema da
analogia. Mas esse tornar pensável não é uma pura abstração; ele responde ao uso que se
pretende fazer de uma idéia nova, um paradigma cujo sentido ainda foge à clara evidência.
Chaïm Perelman nos ensina, por exemplo, que quando Descartes se serve, artificialmente,
da expressão “encadeamento de idéias”, por mais natural que essa imagem vos pareça, ela
resulta de um recorte artificial (PERELMAN, 2004, p. 339). Pois, por si mesmas, as idéias
não dispõem de cadeias. Se ele se serve dessa expressão, é porque lhe interessa enfatizar a
imagem de uma corrente da qual, se um elo for omitido, o restante da seqüência se desfaz.
Lacan, por sua vez, quando se vale da imagem do ponto de estofamento como foro para
tratar da operação de significação, ele está às voltas, como os lacanianos bem o sabem, com
a necessidade de tornar pensável o efeito retroativo da cadeia significante. Já no momento
em que ele fala da angústia, como é o caso do S. X, a analogia já não é mais com a cadeia
nem com o ponto de estofamento, mas com as malhas do significante: ele necessita da idéia
da malha como foro para pensar a dimensão simbólica como algo que retêm ao mesmo
tempo que deixa escapar, construindo a noção de objeto justamente como aquilo que escapa
a essa malha.
O uso, portanto, da analogia, por mais sedutora e singela que ela nos pareça, está
longe de ser um gesto natural ou inocente. Basta, vocês percebem, que o raciocínio seja
concebido como cadeia, como estofamento ou como malha para que a relação entre o
discurso e seus elementos seja vista numa perspectiva totalmente distinta. Quando vocês se
servem, por exemplo, da imagem de um jogo de xadrez como foro para conceber uma
batalha, vocês deixam evidentemente de lado o seu aspecto sangrento e emotivo, expondo
somente o que ali se deixa definir numa relação formal de estratégia. Cada foro escolhido
estrutura diferentemente seu tema, colocando em evidência alguns elementos e deixando
outros na penumbra.
Quando, portanto, nos servimos da expressão “tecendo a rede” como foro para
tematizar a questão do atendimento, em saúde mental, estamos enfatizando determinados
aspectos do que pode vir a ser o atendimento na perspectiva de nosso trabalho, deixando
outros de lado. Segundo Milton Santos nos assinala, é na passagem do século XVIII para o
século XIX, com o químico Lavoisier, que vemos surgir, na noção de química, como
“ciência da ligação e da comunicação das substâncias”, o uso que mais tarde se
popularizaria da palavra rede (SANTOS, 2004, p. 261). A imagem de rede nos remete,
portanto, em sua origem, à idéia de uma realidade que deve ser pensada mais pela ligação
do que pela substância de seus elementos. Dessa assubstancialidade Milton Santos deduz
que uma das principais características da rede é a de ser virtual. A rede, em si, é uma
abstração virtual. Ele só se torna real (no sentido de wirklich), ela somente adquire
realidade quando posta em ação em seu uso concreto na experiência (IDEM, p. 277).
Por que então, caberia perguntar, nos servimos da imagem de uma tessitura da rede
como foro para tratar do tema da saúde mental? O que se quer trazer à luz e o que se quer
deixar na sombra quando nos servimos dessa perspectiva? O que significa, enfim, acionar
arede, tornar efetiva a rede que tecemos em nosso campo de trabalho? São questões que eu
gostaria de deixar no horizonte de nossa reflexão, antes de dar seqüência a meu raciocínio.
Se me fosse permitido me servir aqui de uma associação livre, eu diria a vocês que a
primeira idéia que a imagem da rede me evoca é a idéia de uma rede de proteção, de uma
rede de amparo. Na verdade, trata-se de uma associação que, eu creio, não é só minha.
Temos uma certa tendência espontânea quase universal em associar a rede à idéia de
proteção e de amparo. Essa tendência universal de associar a rede à noção de amparo
responde, no meu entender, a um outro universal, que todos os leitores de Freud conhecem.
Eu me refiro, como vocês já devem ter adivinhado, ao fenômeno de abandono ou
desamparo como condição universal que Freud coloca na origem de nossa disposição
moral, condição essa que verificamos, sem exceção em todos os casos sobre os quais
trabalhamos em nosso projeto de pesquisa, sem mencionar aqueles que recebemos em
nossos consultórios.
Sendo assim o desamparo uma condição universal de todo ser falante, associar, por
sua vez, a noção de rede à idéia de amparo não nos permite passar do virtual ao real, do
universal ao singular, do abstrato ao concreto. Essa referência não nos permite nada fixar a
propósito da situação singular do sujeito que se apresenta na experiência clínica. Temos
aqui apenas um universal abstrato, vazio de qualquer conteúdo concreto, ao qual
corresponde uma outra abstração que todos vocês aqui conhecem, forjada pelo poder do
estado: a oferta de um programa de saúde pública que visa promover o atendimento dito
universal, cuja universalidade, no entanto, se paga pela impessoalidade inerente ao
planejamento do programa.
Pois é um fato, assinalado mais de uma vez por nosso colega Célio Garcia, que não
existe programação universal do que se apresenta em nossa experiência clínica (GARCIA,
2003, p. 5). Não existe codificação da demanda em saúde mental acessível a um programa
de atendimento universal, uma vez que o código não alcança a queixa, e por isso não atende
às exigências mínimas de que necessitamos para operar em nossa prática. Dessa
impossibilidade de codificar a demanda resulta um impasse que se apresenta, para nós, no
ponto de interseção entre os campos da ciência e da tecnologia, por um lado, e o campo da
experiência prática, por outro. Pois é próprio à ciência, vocês me perdoem se estou a dizer
obviedades, é próprio à ciência, como se sabe, a produção de um saber que enuncia leis
universais sobre o campo em que se aplica. Do momento em que as leis científicas da física
e da química devem ser válidas para um universo de casos observáveis, quando se trata de
aplicá-las na produção, por exemplo, de um medicamento, este somente poderá ser
considerado cientificamente testado se seus efeitos puderem ser verificados num universo
determinado. Estamos longe de considerar científico um procedimento cujo efeito pode ser
verificado apenas numa experiência singular. É, pois, no interior desse mesmo propósito
que a ciência se alia à tecnologia: a ciência dela se serve como instrumento de precisão,
produção e verificação dos efeitos mensuráveis e codificáveis.
Mas, quando se trata do ponto que aqui estamos examinando, qual seja, o lugar da
interseção entre a ciência e a tecnologia com a prática que se efetua no campo da saúde
mental, as tipificações empíricas e as avaliações quantitativas não mais se produzem tão
naturalmente. Ao tomarem, por exemplo, o caso da psicanálise, é curioso lembrar que, a
despeito de toda a pressão mercadológica de produzir novidades, a indústria ainda não
ousou lançar o divã high-tech. Não existe divã high tech, não existe aprimoramento técnico
do divã, porque não é possível codificar, partindo do parâmetro científico-tecnológico, o
que seja, empiricamente falando, um tipo clínico em saúde mental. Não existe tecnologia
que nos permita distinguir o que vem a ser para nós o caso típico, no sentido em que o
típico se define, no campo da ciência, como elemento que pode ser incluído numa coleção
de casos que exibem um comportamento previsível.
Muito pelo contrário, nada mais distante disso do que o caso que se apresenta em
nossa experiência clínica. O efeito de uma terapêutica depende de uma conjunção complexa
de fatores que de longe ultrapassam as transformações físico-químicas que um
medicamento produz no corpo do paciente: elas percorrem um leque que se estende desde o
sentido que tem, para determinado sujeito, estar fazendo uso de uma substância, passando
pelo modo de relação transferencial que ele mantém com quem o prescreve, sem mencionar
o tipo variável de expectativa que ele dirige aos demais participantes da equipe que dele se
ocupa.
Dada, pois, essa complexidade, da qual deriva a impossibilidade de definir,
mediante uma doutrina de saber consistente, o que seria o caso clínico tipificável no âmbito
da psicopatologia, a solução proposta foi a de criar uma codificação arbitrária. A nosologia
que hoje prevalece, iniciada pelo DSM e finalmente adotada pelo CID, hoje se apóia numa
tipologia de convenções, sem compromisso com a teoria. Não é preciso pesquisar muito
para verificar isso essa demissão da teoria nas classificações atuais das doenças mentais.
Basta ler os prefácios tanto do DSM quanto do CID para constatar que seu programa
atualmente se pauta por uma abordagem que se pretende o mais puramente descritivista,
visando dissociar a classificação nosológica de todo esforço de teorização.
Pois bem. Se ainda tiverem paciência para continuar a ler esse insípido prefácio do
DSM, vocês verão que a razão para tanto seria, se quisermos nos ater ao principal
argumento de seus idealizadores, que uma classificação deliberadamente ateorética
favoreceria, em princípio, um maior consenso entre os pesquisadores. Ora, todos aqui bem
sabem que é preciso muito mais do que um consenso de definições para se integrar esforços
de pesquisa. Mesmo definições comuns não conservam essa suposta neutralidade teórica,
visto que cada profissional dela se serve conforme sua orientação para designar entidades
distintas. Os termos de psicótico ou de perverso, no discurso jurídico, significam coisas
absolutamente diferentes quando saídos, por exemplo, da boca de um psicanalista. Quanto
ao mais, se dependêssemos do consenso para pesquisar, seríamos até hoje geocentristas. Tal
estratégia assemelha-se, portanto, mais à “imposição de um consenso”, se nos permitem o
oxímoro, do que à um consenso propriamente dito. Desse fato se explica a passividade à
qual é obrigado o profissional na leitura dos critérios de classificação propostos pelos atuais
compêndios, assim como a apatia inevitável que experimentam os estudantes. Ao estudar
uma entidade mórbida, é-se confrontado com uma série descritiva de fatos ou de situações
que se amontoam uns sobre os outros, sem que se saiba qual é a ordem que os unifica.
Poderíamos então dizer que nosso projeto responde à necessidade, que julgamos
premente, de rearticular a teoria no seio da observação clínica, mas as coisas não são
tampouco simples assim. Como vocês podem ler, na revista Clinicaps, em artigo publicado
por Anamáris Pinto (2007), aqui presente, que faz parte de nossa equipe, um dos problemas
mais importantes com o qual nos deparamos, em nossas intervenções, diz respeito à
coexistência, nos centros de atendimento, de um leque eclético de orientações teóricas não
raro divergentes que disputam lugar na condução dos casos. Ali se encontram equipes que
incluem tanto terapeutas biologicistas quanto os que se valem de uma abordagem mais
psicodinâmica, afora aqueles de orientação cognitivista, para não citar vários outros. Diante
desse fato, intervir nos serviços CAPS propondo um outro paradigma teórico só faria
ampliar ainda mais esse leque já demasiado plural dos saberes, deixando sem resposta a
questão de definir qual finalmente seria a orientação clínica a ser seguida.
Diante desse fato, prossegue Anamáris Pinto (2007):
se o espaço em que os vários saberes disputam entre si é o lugar da prescrição da melhor conduta, o
que se constata é que a sessão clínica só pode funcionar como princípio de articulação desses saberes
ao esvaziar justamente o lugar visado pela prescrição. Isso somente é possível ao se tomar como guia
não o saber teórico, mas o saber do próprio sujeito em tratamento, no lugar esvaziado dos saberes
prescritivos. (PINTO, 2007, p. 02).
Há, como se pode perceber, uma inspiração profundamente freudiana nessas linhas,
sem que por isso se trate de ali prescrever a teoria freudiana do padecimento mental. Pois o
que fazia Freud, no momento em que normalmente se propunha um saber sobre a
sexualidade da criança, senão chamar a atenção, em suas “Teorias sexuais infantis”, para o
saber que as próprias crianças construíam em resposta à questão que a realidade do sexo
coloca?
Insistimos, portanto, que muito embora o nosso projeto resulte das conseqüências
que podemos extrair da orientação psicanalítica, em nossa relação com os serviços de
atendimento em rede pública, a psicanálise em nenhum momento assume para nós uma
função prescritiva na condução dos casos atendidos. Para ressaltar melhor isso, ocorreu-me
buscar, como fonte de comparação, um ensinamento extraído de um campo exterior não
somente à teoria da psicanálise, mas de todo campo da saúde mental, no intuito de expor,
fora de nosso comprometimento doutrinal, o que significa para nós, psicanalistas, orientarse pelo saber do sujeito em tratamento.
Uma vez que intervenho num colóquio de saúde pública, eu gostaria de me referir,
especificamente, ao conceito de “distritalização sanitária” que se encontra descrito por
Eugênio Mendes (1993), a partir do paradigma proposto pelo geógrafo Milton Santos
(2004), para quem o espaço é o “resultado da inseparabilidade entre sistemas de objetos e
sistema de ações”(SANTOS, 2004, p.100). Trata-se de pensar o espaço como territórioprocesso, a ser entendido “como um conjunto indissociável de que participam, de um lado,
certo arranjo de objetos geográficos naturais e sociais e, de outro lado, a sociedade em
movimento” (SANTOS, 1991, p.18). Conforme essa perspectiva, o distrito sanitário, em
vez de ser um recorte territorial imposto por uma autoridade sanitária, constitui-se antes
como um “lugar de negociação e concertação constante entre os diferentes atores sociais do
território distrito”(MENDES, 1993, p.265). Longe de ser tecnocraticamente constituído,
esse território deve sua existência ao conjunto de relações geradas pelos seus próprios
processos sociais. Esse território se compõe, por exemplo, numa cidade banhada por um
rio, a partir das relações que ali se estabelecem entre aqueles que vivem da pesca, os
trabalhadores de uma represa que do mesmo rio se serve para gerar energia elétrica, assim
como pelos funcionários de uma cooperativa que atende à demanda dessa população.
Se transpormos então essa discussão para o nível do atendimento clínico, tal como a
noção de construção do caso nos autoriza a fazer, diríamos então que, da mesma maneira
que o conceito de território-processo, acima descrito, deve servir de guia para as políticas
sociais de saúde pública, os modos de solução encontrados pelo próprio sujeito em
atendimento, assim como o saber que ele próprio dali engendrou, deve ser o principal vetor
de orientação a ser utilizado nos trabalhos em equipe. Para valermos agora de nossa
terminologia, diríamos da necessidade, descrita por Cristiana Ramos em nossa revista, de se
separar da perspectiva de um saber sobre o sujeito, em que as soluções chegam ao paciente
como determinações impostas desde o campo do Outro social, para lhe dar a possibilidade
de realizar ele mesmo uma composição com esse Outro a partir das saídas que ele mesmo
criou. Não nos cabe colocarmo-nos a serviço desse Outro social como princípio normativo
de orientação do tratamento; está antes em questão criar, como enfatiza Carlo Viganò
(1999), o lugar do Outro que permite a palavra do paciente.
Mas não se trata tampouco, como se é tentado a crer, de propor uma perspectiva
interdisciplinar. Conforme ressalta Renata Andrade (2007), num outro artigo da Clinicaps,
não visamos substituir o modelo hierárquico do “quem sabe mais pode mais”, que dá
geralmente ao médico a prerrogativa da decisão sobre a equipe, por uma espécie de
democratismo em que todos os saberes se valem e se articulam: “a autoridade passa a ser o
saber do paciente, este é o saber focalizado na construção do caso clínico”(ANDRADE,
2007, p.02)
trata-se de um trabalho de recolhimento das passagens subjetivas que possam apontar a relação do
sujeito com o Outro [...] permitindo à equipe que o acompanha operar em uma lógica de trabalho na
qual o paciente nos dirá qual é a direção da cura. (ANDRADE, 2007, p. 03)
Segundo a mesma perspectiva, escreve W. Alkmin (2007), a construção do caso
deve partir de uma posição de não saber: é preciso operar com “um vazio de saber que
permite que o paciente faça suas próprias perguntas sobre o seu mal-estar” (ALKIMIM,
2007, p.02). Por esse motivo, ele prossegue, “a construção do caso clínico longe de ser um
trabalho definitivo e estanque, é sempre uma construção provisória, sujeita aos limites do
material que já emergiu” (ALKIMIM, 2007, p.02), e pronta a ser modificada pelo que ainda
está por se revelar nas falas e condutas do sujeito. Longe de constituir uma deficiência, sua
provisoriedade tem a virtude de fazer “um furo no saber dogmático que determina as
condutas terapêuticas repetitivas e estereotipadas” (ALKIMIM, 2007, p.02) próprias ao
automatismo das instituições. Cabe fazer, como observa Célio Garcia, com que o sistema
não se apresente no mesmo lugar, lembrando que quem reincide não é o paciente, mas “a
instituição na sua mesmice, no seu anacronismo, nos seus hábitos, quanto tudo em volta se
modifica e evolui” (GARCIA, 2003, p. 7).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALKIMIM, W. (2007) “Construir o caso clínico, a instituição enquanto exceção. Revista Eletrônica Clinicaps
no1.
ANDRADE, R. (2005) “Discussão X Construção do caso clínico”. Mental – Revista de Saúde Mental e
Subjetividade. UNIPAC, ano III, nº 4
GARCIA, C. (2003) “Rede de Redes”, in Tô fora: o adolescente fora da lei, B.H., Del Rey, pp. 4-5.
MENDES, E. (1993) “Um novo paradigma sanitário”. in: Uma agenda para a saúde, São Paulo, Hucitec, p.
265.
PINTO, A. (2007) “A Sessão Clínica como articuladora da diversidade dos saberes”. Revista Eletrônica
Clinicaps no 1
SANTOS, M. (1991) Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo, Hucitec, p. 18 (APUD in MENDES, E.
“Um novo paradigma sanitário”. IN: Uma agenda para a saúde, São Paulo, Hucitec, 1993, p. 265).
SANTOS, M. (2004) A natureza do espaço, São Paulo, Edusp, p. 100.
VIGANÒ. C. (1999) “A construção do caso clínico em Saúde Mental.” Curinga no 13. Belo Horizonte: EBPMG, p. 56 (APUD in ALKIMIM, W. Construir o caso clínico, a instituição enquanto exceção. IN: Revista
Eletrônica Clinicaps no 1, 2007).
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