TER com sentido existencial

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Variação morfossintática em inquéritos do Projeto Atlas Lingüístico do Brasil: TER
com sentido existencial
Camila Alves Gusmão
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo documentar um aspecto da realidade do português
brasileiro, as ocorrências de verbos com sentido existencial, atentando de forma especial
para as diferenças diatópicas, com controle também das variáveis diastrática, diageracional
e diagenérica.
Foram examinados vinte e quatro inquéritos lingüísticos realizados nas cidades de
Aracaju, Maceió e Recife, oito inquéritos para cada capital, com o intuito de verificar as
ocorrências dos verbos TER e HAVER com sentido existencial, além do próprio verbo
EXISTIR.
Analisam-se, desta forma, as preferências de uso dos falantes, examinando-se o
processo de variação e os possíveis caminhos da mudança lingüística
METODOLOGIA
O corpus analisado constitui-se de 24 inquéritos do Projeto Atlas Lingüístico do
Brasil – Projeto ALiB –, Projeto de caráter nacional que ganhou forma em 1996, e que
objetiva, prioritariamente, descrever a realidade lingüística do Brasil, verificando as
variações no que tange à língua portuguesa, com enfoque na identificação das diferenças
diatópicas (fônicas, morfossintáticas, léxico-semânticas e prosódicas), não esquecendo das
variáveis diastráticas.
Essa pesquisa desenvolveu-se com base em 24 inquéritos realizados nas capitais de
Aracaju, Maceió e Recife. Para a obtenção dos dados, partiu-se da observação das
informações integralmente contidas nas diferentes modalidades de questionários aplicados
– Questionário Fonético-Fonológico, Questionário Semântico Lexical, Questionário
Morfossintático, Questões de Pragmática, Temas para Discursos Semi-dirigidos e
Perguntas Metalingüísticas – e não apenas do exame das respostas à pergunta específica do
questionário que se encontra, assim, formulada:
TER/HAVER em sentido existencial
“Como era esta cidade, antigamente, em termos de festas? [Antigamente,
esta cidade era mais desenvolvida? Por quê?]”
No presente trabalho, observaram-se além do uso do verbo TER com sentido
existencial, as ocorrências dos verbos HAVER e EXISTIR, atentando para a preferência do
falante. A análise levou em consideração as variações diastrática, diagenérica,
diageracional e diatópica e suas implicações no fenômeno em questão.
Para a efetivação da pesquisa, foram desenvolvidos os seguintes passos:
Seleção do corpus – Foram selecionadas três capitais do Nordeste – Aracaju,
Maceió e Recife. Cada capital contempla oito inquéritos dos quais foram retirados os
recortes estudados. Estes foram constituídos mediante uma avaliação do corpus a qual
revelou as ocorrências do verbo TER em construções existenciais e dos verbos HAVER e
EXISTIR.
Os informantes – Distribuem-se, igualmente, nas capitais consideradas,
mantendo-se sob controle as variáveis de que resulta a seguinte estruturação por cada
localidade: dois homens e duas mulheres de escolaridade fundamental e dois homens e
duas mulheres com nível universitário, distribuídos eqüitativamente em duas faixas etárias
— faixa etária I (18 – 30 anos) e faixa etária II (50 – 65 anos).
A recolha dos dados – Nessa amostra, contemplam-se dados colhidos em
respostas concedidas pelos informantes em todo o corpo dos questionários, e não apenas
referentes à pergunta específica do Questionário Morfossintático, analisando-se as
ocorrências dos verbos TER, EXISTIR e HAVER e observando-se as tendências
apresentadas pelos falantes.
Objetivo a alcançar – Identificar os caminhos da variação lingüística e as
preferências do falante.
ANÁLISE DOS DADOS
O trabalho tem como meta analisar o uso do verbo TER com sentido existencial,
assim como as ocorrências dos verbos HAVER e EXISTIR nos inquéritos do Projeto Atlas
Lingüístico do Brasil (ALiB), realizados nas cidades de Aracaju, Maceió e Recife.
O Projeto ALiB tem por objetivo principal descrever a realidade lingüística do
Brasil, no que tange à língua portuguesa, atentando de forma especial para as diferenças
diatópicas, com controle de variáveis sociais de gênero, faixa etária e escolaridade.
Foi registrado um total de 1285 ocorrências dos verbos em estudo, com a seguinte
distribuição diatópica: 431 ocorrências em Aracaju, 461 em Maceió e 393 em Recife. Esta
pesquisa pretende demonstrar a pluralidade dos usos da língua, verificando a variação que
nela se registra e identificando as preferências do falante.
Distribuição diatópica: totalização das ocorrências
Verifica-se, de acordo com a distribuição diatópica, o total de ocorrências em cada
cidade e também o número geral dos dados obtidos. Nota-se que o uso do verbo TER com
sentido existencial prevalece sobre as outras formas, independentemente da região
estudada, totalizando 1227 (96%) ocorrências, em contraste com 30 (2%) casos de
preferência pelo verbo HAVER e 28 (2%) pelo verbo EXISTIR. Necessário se faz destacar
que os registros de HAVER, em Recife, estão majoritariamente concentrados na
informante 070/8 — informante mulher, universitária, faixa etária II —, com 23
ocorrências, o que, lhe assegura uma posição distinta entre os demais informantes e faz
com que essa capital apresente resultado diferenciado das demais no tocante à presença de
HAVER.
De acordo com a distribuição diatópica, percebe-se a prevalência de uso do verbo
TER, havendo um certo equilíbrio entre as realizações efetuadas nas diferentes cidades –
Aracaju 410 ocorrências, Maceió 454, Recife 363. Ao se analisarem os verbos HAVER e
EXISTIR, verifica-se um maior índice de ocorrência de HAVER em Recife – 26 casos –,
opondo-se de forma considerável a Maceió onde não houve registro desse verbo. Em
Aracaju, foram verificados apenas 4 casos do verbo HAVER e 17 do verbo EXISTIR,
superando, neste último caso, todas as realizações obtidas em construções com o verbo
EXISTIR nas outras localidades em questão – Maceió 7 ocorrências, Recife 4.
Distribuição diastrática – Nível fundamental / Nível universitário
Ao analisar a distribuição diastrática, percebeu-se nos falantes do nível fundamental
uma preferência pelo uso do verbo TER, em construções existenciais, com 669 ocorrências
– 55% – em contraste com os informantes universitários que apresentam 558 – 45% –
casos com o verbo TER. Desse modo, compreende-se que não houve uma diferença
significativa no uso de informantes dos dois distintos níveis de escolaridade.
O estudo dos verbos HAVER e EXISTIR demonstra uma tradicional escolha pelos
falantes de nível universitário que fazem mais uso dos verbos em questão. Foram
registrados apenas 3 (10%) casos do verbo HAVER no corpus do nível fundamental e 27
(90%) ocorrências com os falantes universitários. No entanto, ao se contemplar o estudo do
verbo EXISTIR, percebe-se um maior equilíbrio no uso do verbo em questão entre essas
duas categorias, pois os falantes de escolaridade fundamental obtiveram 13 realizações –
46% –, opondo-se quase eqüitativamente a 15 – 54% – nos informantes universitários.
Distribuição diagenérica – Masculino / Feminino
De acordo com a distribuição diagenérica, observou-se um maior número de
ocorrências do verbo TER – com sentido existencial - em informantes do gênero feminino,
totalizando 748 (61%) realizações em oposição a 479 (39%) dos homens o que completa
um quadro de 1227 ocorrências.
Quanto aos registros do verbo HAVER, verifica-se um maior índice também entre
informantes do gênero feminino – 25 casos, 83% –, ressaltando-se o caso da informante de
Recife – 070/08 – que apresentou 23 realizações de HAVER, portanto 88% do que se
registrou globalmente nessa capital. Entre os homens só se obteve 5 ocorrências desse
verbo, o que totaliza 17% de um total de 30 casos.
O quadro se inverte, porém, no estudo do verbo EXISTIR, para o qual a realização
entre os homens supera os casos recorrentes entre as mulheres, com 20 ocorrências (71%)
no gênero masculino, opondo-se a apenas 8 (29%) ao se tratar do gênero feminino.
Estudos fazem referência ao uso da língua pelas mulheres e a sua relação com a
busca pela inserção num dado contexto social. Para TRUDGILL (1994), o fato de as
mulheres terem menos oportunidades que os homens leva-as a marcarem o seu
comportamento, inclusive lingüístico. CALLOU e LOPES (2003) não consideram
relevante a diferença de gênero, levando em conta o pressuposto de que não há linguagens
distintas entre homem e mulher, mas uma preferência por certos usos lingüísticos, o que,
na mulher, refletirá a busca por um padrão menos estigmatizado. No caso específico de
TER, porém, a preferência por esse verbo não tem traço estigmatizante nem de exclusão
social o que contempla um maior índice de uso desse verbo na escolha realizada pelas
mulheres.
Distribuição diageracional – Faixa I (18 a 30 anos) / Faixa II (50 a 65 anos)
De acordo com a distribuição por faixa etária, verifica-se, mais uma vez, a
prioridade dada pelo falante ao verbo TER, em construções existenciais, num total de 628
(51%) ocorrências para a faixa I e 599 (49 %) para a faixa II. Não houve uma diferença
significativa na distribuição dos verbos por faixa etária. O que se destaca, porém, é a maior
prevalência dos verbos HAVER e EXISTIR para os informantes da faixa etária II, o que
marca, ainda, certa presença dessas formas mais tradicionais. Foram registradas 29 (97%)
ocorrências do verbo HAVER para a faixa II, em oposição a apenas 1 (3%) ocorrência para
a faixa etária I. Com o verbo EXISTIR, percebe-se um maior índice de realizações entre os
informantes mais velhos – 23 casos, 82% – em contraste com as 5 – 18% – ocorrências dos
representantes da faixa etária I.
O estudo do uso da forma inovadora, no caso, o verbo TER com sentido existencial,
revelou uma preferência de falantes mais velhos pela forma fixada na tradição gramatical.
No entanto, é válido ressaltar que o uso do verbo TER prevaleceu sobre todas as outras
formas de construções existenciais. Destaca-se, por fim, como relevante, as considerações
de CALLOU e LOPES (2003) que afirmam ser categórico entre os jovens o uso da forma
inovadora.
RESULTADOS FINAIS
Com essa pesquisa, chegou-se ao resultado da predominância do verbo TER em
construções existenciais em relação aos verbos HAVER e EXISTIR, tanto entre falantes de
escolaridade fundamental como de nível superior, tanto entre informantes do sexo
feminino ou masculino quanto no discurso de falantes da faixa etária I ou II. Ou seja, os
informantes selecionados das três capitais nordestinas dão preferência ao verbo TER com
sentido existencial.
Observou-se que, em muitos casos, a forma como o inquiridor elabora a pergunta
pode influenciar na escolha do falante, como se vê no exemplo:
INQ – e essas coisas todas juntas se ele quiser chamar (ININT) aqui tem muitas ...?
INF – tem .... aí se chama ... juntando pé de coco, pé de manga, essas coisas se
chama, já se chama um sítio...
(Inquérito 070/01 – H I / Fund. / Recife – Questão 132 do QFF)
A pesquisa dos dados, associada à leitura de outros trabalhos, permite concluir que
o uso do verbo TER- com sentido existencial - possui uma grande predominância nas
escolhas dos falantes, sejam eles universitários ou não. É importante ressaltar que a
percepção de mudanças lingüísticas pode contribuir para a formação de uma sociedade
mais consciente e reflexiva para com as transformações da língua, o que pode proporcionar
também um ensino/aprendizagem do idioma com menos barreiras, formando falantes
menos preconceituosos no que concerne aos fenômenos de sua língua, no caso, o português
popular brasileiro.
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